Gaia Cultura Nº 1 - Gaia Ciência - arte, literatuda, cultura e maneira

Transcrição

Gaia Cultura Nº 1 - Gaia Ciência - arte, literatuda, cultura e maneira
Nº 1 - setembro, 2015
THOMAS MANN - HENRY TUKE
FREDERICK ROLFE - ALAN TURING
e muito mais
Alguma coisa
vindo por aí...
M
uito bem-vinda, cara leitora, muito bem-vindo, caro leitor, às páginas de GAIA CULTURA. Para
início de conversa, e para que ninguém perca tempo, declaramos que esta é uma revista
de orientação gay – ou gaia, guei, como prefiram – mas destinada a todos os públicos.
É uma revista de cultura, de informação, de
provocação, mas esperamos que seja também uma revista leve e divertida.
SUMÁRIO - Nº 1 set/2015
Geral
03 - Arqueologia recente: dando nome aos bois
06 - Notícias
História
08 - A inacreditável ingratidão
de um país
12 - Sodoma às margens do
Tâmisa
Artes Plásticas
14 - O mar e os meninos: uma
eterna e misteriosa atração
Literatura
19 - Um inglês perdido em
Veneza
21 - Um alemão perdido em
Veneza
GAIA CULTURA
Revista de Arte e Cultura
Editor: Júlio Bóreas
Arte e Diagramação: Jojo
O que significa ser uma revista gay? Revistas são objetos inanimados – às vezes
desanimados – então a orientação de que
falamos é a que anima os criadores da mesma, no momento de selecionar os assuntos
que abordamos, ou a maneira pela qual os
abordamos. Nosso critério é a cultura gaia
no que ela tiver de belo, aquilo que as variadas artes produzem para elevar o espírito
humano.
Preferência sexual é apenas uma das múltiplas facetas da complexa personalidade de
mulheres e homens. Sim, porque não existe
um terceiro (ou quarto, quinto, por aí vai)
sexo. Logo, esta não é uma revista feita por
gays, é uma revista feita por pessoas iguais
a todos as demais, que podem ou não ter
atração pelo mesmo sexo. Eu, por exemplo,
tenho.
E não é uma revista feita para gays, é uma
revista feita para todo aquele que, independente de suas preferências amorosas, se interessa por cultura: literatura, arte visual,
história, música e outras criações da inventividade humana. Cultura esta que estará
sempre, de alguma forma, relacionada à
atração – amiga, carinhosa, amorosa – entre pessoas belas e jovens do mesmo sexo.
Espero que gostem.
Júlio Bóreas
ARQUEOLOGIA RECENTE: DANDO NOME AOS BOIS
Júlio Bóreas
O texto de apresentação da página de internet Gaia Ciência foi a primeira expressão
de um conjunto de experiências culturais,
no qual se inclui esta revista. Como ele fala
da origem do termo gay, resolvemos reproduzi-lo aqui, com algumas modificações.
Ao começar estas linhas eu me perguntei: por que dar nome aos bois? Não estou
preocupado se o fazendeiro vai chamar a
vaca de Mimosa e o boi de Barroso, nomes
que parecem ser os sempre citados por
aqueles que obviamente não têm bois, o
que é o meu caso. Como citadino que se
preocupa com a “língua” dos literatos e
não com a “língua”, bem mais substancial
e bovina, que se vende no açougue, estou
interessado na frase feita: “dando nome aos
bois”. Ora, como tal frase significa identificar objetos ou pessoas, ficaria bem mais
palatável se fosse “dando nome aos gatos”
ou “às gatas”. Improváveis leitores, como
diria o velho Machado, estou aqui dando
nome a gatos e gatas, pois vou falar de gente.
Esta revista trata da cultura daqueles
que são chamados de homossexuais, homoafetivos, de uma série interminável de
nomes depreciativos e de gays (pronto, os
leitores improváveis estão prestes a se tornarem impossíveis... vamos em frente). Gay
é, todo mundo sabe, um termo alternativo
às tais denominações depreciativas, surgido entre falantes de língua inglesa, logo a
origem imediata de tal palavra, usada hoje
no mundo todo, a ponto de podermos dizer que já pertence ao português também,
é inglesa. Mas a origem da palavra inglesa
está mais próxima de nós do que parece.
Uma consulta aos sábios de Oxford
nos dirá que o significado da palavra como
“homossexual” apareceu na década de
1930, talvez um pouco antes, e que se fir3
mou na década de 1960. Uma década em
que os movimentos de afirmação de várias
“minorias” saíram dos guetos e alcançaram
as ruas “respeitáveis” – recebendo por isso
muita pancadaria aplicada pelos defensores da respeitabilidade. Mas a palavra gay,
se já existia, obviamente já tinha um significado em inglês, ou mais de um; o que
nos interessa foi muito bem definido pelo
dicionário eletrônico Oxford, que tenho
agora aberto diante de mim, em apenas
duas palavras: lighthearted and carefree.
Uma tradução literal funciona: gay é a
pessoa que tem o coração leve e é despreocupada. Que prefere encarar a vida com
alegria a encará-la com tristeza e que não
se preocupa se o resto do mundo também é
assim. Foi este o sentido encampado pelos
homossexuais.
Ora, o fato de os gays = homossexuais
terem se caracterizado como gays = alegres
é muito importante. Primeiro, por razões
óbvias: nada pior do que uma pessoa lamurienta. A lamúria, além de desagradável, é
absolutamente inútil. Agora, o realmente
importante: ser alegre e despreocupado
significa não querer impor sua maneira
de ser a ninguém. Quando vejo gays, com
ares de vestal, defendendo suas ideias com
santa indignação e um discurso empolado
eu me pergunto se eles escolheram o lado
certo. Então, embora alguns textos que
aqui aparecerão sejam teóricos e por isso
menos atraentes do que, por exemplo, ficção, espero que sejam sempre lighthearted
and carefree.
Mas voltando aos bois, ou aos gatos e
gatas. A palavra inglesa gay vem do francês
antigo gai, de origem desconhecida, afirma
o citado dicionário Oxford. Ora, nós também temos essa palavra, ou pelo menos palavra de mesma origem, gaio, que, segundo o Houaiss significa: que revela alegria;
jovial; que tem espírito arguto. O Houaiss
vai um pouco além ao rastrear a etimologia: gaio vem do francês antigo gai, que
vem provavelmente do occitânico gai (=
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petulante, alegre), que vem provavelmente
do gótico *gaheis (= impetuoso). Na década de 1980, tornou-se comum o emprego do termo guei, um aportuguesamento
sonoramente mais fiel da palavra inglesa.
Por aqui usaremos, indiderentemente gaio
(gaia), guei ou gay.
Occitânico é uma língua que era falada
numa ampla região do sul da França, que
compreende os atuais Languedoc, Gasconha, Auvergne, Limousin e Provença – por
isso esta língua também é chamada de provençal. Os falantes do francês, que incluíam os reis da França e, depois, os governos
da República, fizeram de tudo para acabar
com o provençal, mas a língua resistiu bravamente e hoje aos poucos vai florescendo, pela ação de ativistas que a defendem.
Gótico era a língua dos godos, um povo
germânico que, vindo não se sabe bem de
onde, dominou grande parte da Europa
depois da queda de Roma. Embora hoje
em dias haja mais “góticos” do que nunca,
a língua gótica, ao contrário dos vampiros,
está definitivamente morta.
A região onde se falava o provençal
também é conhecida como Aquitânia,
pois este era o nome da província romana ali existente. Província antiga e muito
próspera, sua produção cultural era intensa, ao contrário do norte da França, onde
o domínio romano era precário e sempre
envolto em disputas sangrentas com os locais (que o digam Asterix e Obelix). Findo
o Império Romano, a Aquitânia continuou
uma região próspera e culturalmente produtiva, ao contrário do norte, que continuou guerreiro, agitado e com a produção
cultural quase restrita aos conventos. Eram
dois “países” diferentes, com governos diferentes e línguas diferentes. Na cultura
provençal surgiu o que foi chamado de
Gaia Ciência, a arte da poesia trovadoresca. Era a cultura das cortes, uma cultura
alegre em que verso e música se associavam em festas descontraídas. Sendo alegre,
era uma cultura gaia, ou gaie. E também
Iluminura medieval, mostrando a cruzada contra os albigenses.
era uma cultura “gay”, pois a descontração
das cortes provençais dava lugar, também,
ao amor homoafetivo – há poemas trovadorescos que seriam hoje classificado de
“homossexuais”.
Ainda na Idade Média (século XIII) os
barões do norte invadiram e dominaram
a Aquitânia, com a desculpa de combater
a heresia dos albigenses (uma referência à
cidade de Albi, onde se concentrava a seita
dos cátaros, uma variante do cristianismo,
portanto “heresia”). Destruíram e mataram à vontade. Foi um duro golpe para a
região, que aos poucos perdeu seu brilho
e sua importância; somente no século XX
ela se recuperaria plenamente. Mas a gaia
ciência já tinha se espalhado por outras
terras. As primeiras produções literárias
portuguesas de que temos registro são trovas, no melhor estilo provençal.
Nos estudos culturais surgiu, nos fins
do século passado, a chamada Queer Theory, É uma teoria sociológica, que estuda o
sexo (ou, melhor dizendo, a sexualidade)
não como categoria biológica, mas como
construção da sociedade. Não sendo especialista no assunto, provavelmente estou
reduzindo muito a questão, mas a afirmativa é válida em linhas gerais.
Ninguém há de negar que amor e sexualidade são noções que interagem plena-
mente, pouco importando a complexidade,
e a própria possibilidade, da definição desses dois conceitos; a realidade por detrás
deles é facilmente identificada, sentida,
sem necessidade da teoria. O que muita
gente nega, seja por nunca ter analisado o
assunto, seja por obstinação em aferrar-se a
“verdades” absolutas, é a realidade evidente: que amor e sexualidade não reconhecem sexo, quem reconhece sexo é a função
reprodutiva. Somente fêmea + macho produzirão descendentes, mas a sexualidade
sempre teve e terá variantes, inclusive entre
os animais ditos irracionais.
Então, para nós, a sexualidade humana
é uma construção social (ou cultural, ou
ideológica). Sem os limites artificiais impostos pela ideologia e a doutrina, o desejo
sexual humano sempre se expressa na diversidade. Concordamos com a teoria queer. E gostaríamos de convidar a todos para
desenvolvê-la aqui, com seu nome original
ou com o nome vernáculo e poético de gaia
ciência. Uma gaia ciência do amor.
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Parada da Diversidade
2015
6 de setembro - Apesar da chuva e do frio, foi bom o público
da Parada da Diversidade deste
ano, em Florianópolis. Não tendo
ocorrido no ano anterior, parece
que os participantes estavam ávidos por retomar a prática, que já
estava se tornando uma tradição.
A chuva constante durante a manhã - afinal, é depois da chuva que
surgem os arco-íris - não assustou
as pessoas que, no início da tarde, se concentraram em massa na
Avenida Beira Mar, confirmando
a capital catarinense como um dos
melhores destinos gay friendly da
atualidade. Parabéns, povo de Floripa, foi mais um belo espetáculo
e uma demonstração de responsabilidade cidadã.
Ao humor dos
supremos árbitros
A notícia que tomou conta das
manchetes no final do mês de julho último foi a decisão da Suprema Corte dos EUA de permitir o
casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afirmaram os jornais
que agora tal casamento estaria
legalizado em todos os 50 estados
daquele país. Não é bem assim. Lá
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como cá, o tribunal supremo não
legisla. Ele apenas declarou que a
proibição do casamengo homoafetivo é incostitucional, logo não
pode fazer efeitos. Mas basta uma
mudança no entendimento geral
da corte - com o advento de novos
juízes ou uma nova avaliação por
parte dos atuais - que tudo volta
a ser como antes, sem necessidade
de consulta aos eleitores. Foi o que
aconteceu com a pena de morte,
suspensa pela Suprema Corte em
1972 e readmitida pela mesma
Corte em 1976 - hoje os EUA são
um dos países que mais executam
prisioneiros no mundo. Então, comemoremos com cautela.
Na prática, a situação é mais ou
menos a mesma daquela do Brasil.
Aqui não há o que os detratores
gostam de chamar de casamento
gay, ou seja, a união chamada de
casamento pelo Código Civil não
está acessível a pessoas do mesmo
sexo. Mas já faz tempo que a Justiça reconhece a união civil entre
tais pessoas como instituto gerador de direitos e de obrigações.
Fazer uma festa com véus, grinaldas, casacas, flor na lapéla e arroz
jogado na saída é uma opção que
depende apenas da vontade dos
nubentes.
Nos EUA, o âmbito da legislação estadual é muito mais amplo
do que no Brasil. Então, 37 estados já reconheceram o casamento homoafetivo por meio de leis
estaduais. Treze estados ainda o
rejeitam, é nesses que a decisão
da Suprema Corte fará diferença.
Mas não na cabeça dos fanáticos
fundamentalistas. Todo dia sai
nos jornais a notícia de que algum
funcionário rejeitou o pedido de
licença para um casamento homoafetivo, alegando estar agindo,
nada mais, nada menos, segundo
a autoridade de Deus. Como são
casos recentes, não sabemos ainda
como isso vai terminar
A múltipla-escolha
ao lado é uma dessas coisas simples
mas
expressivas
que. às vezes, encontramos na Internet. É pena que
nem todos percebam que o ser humano não pode ser
reduzido a um estereótipo redutor e
estigmatizante.
Saindo do armário?
Por muito tempo se pensou que
embaixo desta velha lápide romana de Cirencester, Inglaterra, repousava uma jovem mulher. Isto
porque nela está escrito em latim:
Em memória de Bodicácia, esposa,
que viveu vinte e sete anos. Mas os
arquólogos, esses abelhudos, exumaram este ano o corpo e viram
que se tratava de um homem. Seria o caso de um casal homoafetivo
romano, a “esposa” saindo do armário involuntariamente, séculos
após sua morte? Não, nada tão romântico. Apenas um anglo-saxão
analfabeto que, uns duzentos anos
depois que a lápide foi assentada,
gostou do que viu e a roubou para
sua própria cova, sem ter ideia do
nela estava escrito.
Nossa capa deste Nº 1 é uma
adaptação de um desenho de Guy
Davenport, intelectual estadunidense, morto em 2005. Professor,
escritor, além de pintor e ilustrador, ainda vamos tratar dele aqui.
O desenho acima é um dos muitos
que ilustram seu livro Apple and
Pears, uma coletânea de contos.
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A INACREDITÁVEL INGRATIDÃO DE UM PAÍS
E
m 2013 comemorou-se o
centenário de nascimento
de Alan Mathinson Turing,
matemático inglês, herói da II
Guerra Mundial, membro da Ordem do Império Britânico, fellow
da Royal Society (a nata dos cientistas britânicos) e um dos pais da
computação – ainda assim, existe
a possibilidade de ele ter sido assassinado pelo próprio governo
britânico, por um pecado nefando: era gay.
Turing nasceu em Londres, a 23 de
junho de 1912. Seu pai, Julius Mathinson
Turing, pertencia a uma família escocesa
e era filho de um clérigo. Sua mãe, Ethel
Sara Turing, Stoney quando solteira, era
de uma família inglesa residente na Irlanda. Julius trabalhava para o Serviço Civil
da Índia, em Chatrapur, mas como ele e
a esposa queriam criar os filhos na Inglaterra, mudaram-se para Maida Vale, Londres, onde nasceu Alan. Eles já tinham um
outro filho, John. Enquanto os pais alternavam temporadas na Inglaterra e na Índia, os filhos ficaram a cargo de um casal
amigo. Em 1927, os Turing compraram
uma casa em Guildford, Surrey, onde Alan
passou o resto da adolescência.Aos seis
anos, Alan entrou para a escola St. Michael, em St. Leonards-on- Sea, onde a diretora já notou seu talento precoce e cuidou
de orientar sua educação. Em 1926, aos 13
anos, Alan foi matriculado na Sherborne
School, em Sherborn, Dorset. O início das
aulas coincidiu com uma greve geral na
Inglaterra, mas o obstinado garoto foi de
bicicleta de Londres até a escola, cerca de
97 km, pernoitando em uma estalagem no
meio do caminho. A inclinação natural de
Turing para a matemática e a ciência não
encontrou muito apoio nessa escola, mais
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Alan Turing em tempos de escola.
preocupada em ensinar os clássicos. Mas
estudava matemática por conta própria e
conseguia efetuar cálculos dos mais avançados.
Em Sherborne, inicialmente solitário, Alan fez um grande amigo, talvez seu
primeiro relacionamento homoerótico,
Christopher Morcom, um jovem igualmente inteligente e atraído pela matemática. Terminado o curso secundário, em
dezembro de 1929, ambos vão juntos a
Cambridge, tentar o ingresso na tradicional universidade. Christopher consegue
uma bolsa para o Trinity College, em 1931,
Alan não. Ele reúne forças, reage contra
decepção e, no ano seguinte, consegue
uma bolsa para o King’s College. Mas o ano
de 1931 lhe reservava uma decepção muito
maior, um trauma que o abateu devastadoramente: Christopher Morcom morre
de tuberculose bovina, contraída ao beber
leite contaminado.
Turing, afinal, superou a perda e continuou seus estudos. Formou-se em 1934 e
logo no ano seguinte, com a idade de 22
anos, foi eleito fellow do King’s College.
Aos poucos seu interesse matemático foi
se concentrando no cálculo computacional e a possibilidade de criar máquinas
que o efetuassem. Desenvolveu a teoria de
uma Máquina Universal, depois conhecida como Máquina de Turing, onde criou a
noção de algoritmo e com isso aperfeiçoou
a teoria da computação. De 1936 a 1938,
Turing estudou na Universidade de Princeton, EUA, onde obteve seu grau de PhD,
interessou-se por criptologia e desenvolveu
três dos quatro estágios de uma máquina
binária eletro-mecânica de multiplicação.
Ao voltar para a Inglaterra, Turing começa a trabalhar também, em meio período, na Government Code and Cypher
School – GCCS, um órgão do governo dedicado à decifração de códigos. Lá inicia
um trabalho de decifração do código da
máquina de criptografia Enigma, dos ale-
Christopher Morcom, outro gênio precoce,
primeiro amigo de Turing na escola, provavelmente seu primeiro (e maior) amor.
Outras fotos de escola de Christopher (esq)
e de Alan (dir). É uma pena que essas fotos
amadoras do início do século XX tenham
uma resolução tão ruim.
mães, e cria a máquina conhecida como
Bombe, a partir de informações sobre a
Enigma fornecida por decifradores poloneses. A Bombe era um dispositivo eletromecânico que reproduzia as funções da
Enigma. Com o início da II Guerra, Turing
passa a trabalhar em tempo integral para a
GCCS, num lugar chamado Bletchley Park,
que ficaria famoso após a guerra.
Em 1940, Turing vai chefiar o Hut 8,
uma seção de Bletchley Park dedicada à
quebra do código naval alemão da Enigma,
que era mais complexo do que os códigos
de outros serviços. Ele concebe a ideia do
Bamburismus, uma técnica de estatística
sequencial, para ajudar a decifração. Em
1941, Turing propões casamento a Joan
Clarke, uma colega matemática e cripto-analista do Hut 8, mas o relacionamento
não vai adiante. Turing admite sua homossexualidade para a noiva e desiste do
casamento. Mas o trabalho de decifração
progride. Ele cria uma técnica chamada
Turingery, que serve para quebrar o código da Geheimschreiber (escritor secreto)
alemã.
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Chalé em Bletchley Park, onde Turing trabalhou e morou em 1939 e 1940.
Ainda durante a II Guerra, Turing vai
aos EUA, onde trabalha com os americanos em máquinas de decifração, técnicas
de criptografia de som e outros projetos.
Volta à Inglaterra no ano seguinte e continua seu trabalho em Bletchley Park. Não
é um exagero dizer que a contribuição de
Alan Turing e seus colegas para a derrota
dos nazistas foi fundamental, pois, com os
códigos quebrados, toda a estratégia alemã era antecipadamente conhecida pelos
aliados. Ao mesmo tempo, o trabalho de
Turing representou um passo indispensável para a criação e desenvolvimento dos
computadores, embora, por ser um trabalho secreto, só se tornou do conhecimento
do público na década de 1970.
Em 1952, Turing, então com 39 anos,
conheceu um jovem em Manchester, Arnold Murray, de 19 anos. Iniciaram um relacionamento. Pouco depois, a casa de Turing foi roubada. Durante as investigações
do furto, o relacionamento dos dois veio à
tona. Na inglaterra de então, homossexua10
lismo era crime, mesmo que praticado volutariamente por dois homens maiores de
idade, como era o caso. A homossexualidade só deixou de ser crime na Inglaterra em
1966. Turing, um dos principais responsáveis pela Inglaterra ainda ser Inglaterra, foi
julgado e condenado à prisão pela Justiça
inglesa. Recebeu a opção de submeter-se a
um tratamento hormonal. Ele aceitou. O
“tratamento” causou-lhe impotência e desenvolvimento anormal dos seios. Como
os homossexuais eram considerados mais
“vulneráveis” à sedução de agentes estrangeiros, ele perdeu seu emprego; mas como
“sabia demais”, foi proibido de trabalhar no
estrangeiro.
A 8 de junho de 1954, a empregada da
casa encontrou o corpo sem vida de Alan
Turing. A autópsia determinou que houve envenenamento por cianureto. As autoridades concluíram, rapidamente e sem
maiores investigações, ter sido um caso de
suicídio. E ainda se divulgou uma versão,
não comprovada, de que o veneno esta-
ria numa maçã meio comida, encontrada
junto ao corpo. Suicídio era, certamente, a
melhor das soluções para o governo inglês,
livrava-o da presença viva da mais absurda injustiça, cometida contra um cidadão
que servira à pátria como muito poucos,
transferindo a culpa para a própria vítima.
A verdade, não saberemos. Para alguns biógrafos, Turing foi “suicidado” pelo serviço secreto britânico, cujas ações, na época,
dão à versão uma verossimilhança que não
existe em outras teorias da conspiração;
para outros, foi um acidente ocorrido em
uma manipulação química.
Ao final de 2013, Turing recebeu o perdão de seu “crime”, concedido pela rainha
Elizabeth II, encerrando um processo que
se desenrolava na câmara dos lordes. A
emenda foi pior do que o soneto. Primeiro, perdoar apenas a Turing é uma injustiça com todos os outros homossexuais
que sofreram condenação pelo mesmo
“crime”. Depois, se algum perdão tivesse de
ser dado, seria por Turing e os demais homossexuais à Justiça britânica, pelo crime
(agora sem aspas) de perseguir cidadãos
honestos com base em uma lei hipócrita
e aplicada de forma desigual e arbitrária.
Turing merecia um contrito pedido de perdão. Ele e todas as vítimas como ele.
Em fins de 2014, foi lançado na Inglaterra o filme The Imitation Game, contando a história de Turing. Em 2015, o filme
ganhou vários prêmios, inclusive um Oscar
de roteiro. Com toda a publicidade gerada, iniciou-se na Inglaterra uma campanha
para que fossem perdoados os cerca de 49
mil ingleses condenados pelo “crime” de
homossexualismo. Convidados a participar, o príncipe William e sua mulher Kate
Middleton se recusaram, com a desculpa
esfarrapada de ser uma “questão de governo” (quando a vovó de William, a rainha,
concedeu o perdão real a Turing ninguém
lembrou que seria uma intromissão em
“questão de governo”).
O mais preocupante na atitude de
William - um dos melhor colocados no
grid da sucessão real - é seu desprezo
pela maioria dos reis ingleses que o pre-
Uma réplica funcional da Bombe em Bletchley Park.
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cederam. Afinal, monarquias precisam de
tradição para se manter e se há uma tradição na Corte de St. James é a de reis homossexuais. Citar a todos seria cansativo,
limitemo-nos aos mais famosos: Eduardo
II, Ricardo II, James I e, a cereja do bolo,
Ricardo I, Coração de Leão - que não falava inglês, odiava a Inglaterra, amava perdidamente o jovem rei Filipe da França e
morreu sonhando com a lança do Saladino
- sem deixar herdeiros, claro.
J. B.
UM POUCO DE FANTASIA
Dois atores do filme The Imitation Game (no Brasil, O Jogo da Imitação): Jack
Bannon, à esquerda, faz o papel de Christopher Morcom; Alex Lawther, à direita,
faz o papel de Alan Turing quando jovem. Morcom, como se sabe, morreu ainda
jovem, não houve necessidade de um ator que o representasse já maduro. Uma
bela dupla de rapazes, dignos de representarem a dupla real.
SODOMA ÀS MARGENS DO TÂMISA
M
ais de meio século antes
das atribulações que afligiram o desditoso Alan
Turing, um escândalo envolvendo
pessoas de elevada posição e a prática da homossexualidade sacudiu
a hipocrisia da Londres vitoriana.
O escritor e jornalista britânico
Colin Spencer, em seu excelente
livro Homossexulidade: uma história (publicado no Brasil pela Re-
12
Júlio Bóreas
cord), descreve como a separação
de classes era absoluta e intransponível na Inglaterra da época
(situação que, de certa forma, perdurou até a II Guerra Mundial):
“As classes trabalhadoras eram
sempre menosprezadas, como se
tivessem aparência, maneiras e
modos de falar estranhos, como
se fossem quase alienígenas, epor
isso eram apresentadas como cô-
micas (como em Punch) ou depravadas (como nos julgamentos)”.
Por isso, caso um burguês viesse a
se envolver num caso de imoralidade, a culpa era sempre do pobre
que houvesse participado da farra.
Se não houvesse um pobre envolvido, não havia caso, a invisibilidade estava garantida.
Quando determinada quantia
em dinheiro sumiu do Correio
Central, em Londres, logo suspeitaram do elo mais fraco, um
garoto mensageiro, de 15 anos,
Charles Swinscow, que, aparentemente, tinha mais dinheiro do
que ganhava. Pressionado, o rapaz
confessou que ganhara o dinheiro de um tal Charles Hammond,
para encontrar-se com cavalheiros. Este personagem providenciava os contatos entre rapazes e
homens adultos. Muitos mensageiros estavam envolvidos, assim
como ilustres membros do clube
Household Cavalry. Os encontros
se davam no nº 19 da Rua Cleveland. Os tabloides londrinos (sim,
eles já existiam então) sentiram
cheiro de lucro naquela história
pronta para uma primeira página e se esbaldaram. O caso ficou
conhecido como O Escândalo da
Rua Cleveland.
O homossexualismo era crime
na Inglaterra (até 1966!). Por que
a polícia não agia? Ora, porque
havia gente importante demais
envolvida. Entre os apreciadores
das graças dos mensageiros estavam: Lord Arthur Somerset, filho
mais novo do Duque de Beaufort e
pajem do Príncipe de Gales; Henry James Fitzroy, Conde de Euston, filho mais velho do Duque de
Grafton, um tal de Coronel Jervois, alguns senhores desprovidos
de títulos e (mas este nem os ta-
bloides nem a polícia tiveram coragem de citar) o Príncipe Albert
Victor, filho mais novo da Rainha,
Duque de Clarence e Avondale.
Puxa, por falta de duques, condes
e lordes é que não faltaria um dinheirinho aos rapazes do correio.
Com a grita dos tabloides, entretanto, a polícia - que também
estava doida para cutucar a aristocracia, que a desprezava - deu
seguimento ao inquérito e ao
processo. Lorde Somerset e o empreendedor Charles Hammond
fugiram para a França e por lá ficaram. Duas figuras sem importância, Henry Newlove e George
Veck, receberam penas leves, de
menos de um ano. O Conde de
Euston enfrentou galhardamente
o tribunal. Alegou que fora convidado a ir à Rua Cleveland para
ver poses plastiques (recriações de
arte clássica no palco) representadas por rapazes. Lá chegando, recebeu de um sujeito uma proposta
indecente. Ele o chamou de “patife
diabólico”, ameaçou surrá-lo e foi
embora para nunca mais voltar.
Bem, nessas horas, ser lorde,
conde ou coisa e tal é uma mão na
roda. O rapaz que identificou Euston como frequentador assíduo do
bordel foi condenado por calúnia
e o nobre aristocrata voltou para
casa de cabeça em pé.
A Inglaterra é um país de tradições. Hoje, em pleno 2015, arrasta-se nos jornais e nos inquéritos o caso do Círculo Pedófilo
de Westminster - um escândalo
envolvendo a nata dos governos
de Margareth Tatcher e Edward
Heat - ele inclusive - e abuso sexual de meninos pré-adolescentes.
Bem pior do que fornecer “renda
extra” a rapazes pobres mas já sexualmente ativos.
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Autorretrato de Henry Scott Tuke (1920)
O MAR E OS
MENINOS:
UMA ETERNA
E MISTERIOSA
ATRAÇÃO
a passagem do século
XIX para o século XX, a
arte europeia enfrentava
as mudanças mais radicais desde a Renascença. A inquietude
artística só era igualada pela inquietude política. Concentrados
principalmente na França e na
Alemanha, os novos movimentos
de contestação da arte acadêmica,
com ou sem manifestos panfletários, modificariam para sempre
a pintura figurativa, dominante
desde a Antiguidade. Alguns artistas, entretanto, não adotaram
as novidades, principalmente na
Inglaterra, onde a figuração nunca foi de todo abandonada. Foi o
caso de Henry ScottTuke, nascido
em York (1858), mas que se radicou em Falmouth, na Cornualha,
onde morreu em 1929.
Tuke pertencia a uma ilustre
família de médicos da cidade de
York, do norte da Inglatera. Foi o
segundo filho de Daniel H. Tuke
e Maria Strickney. Seu pai, seu
avô, seu bisavô e até seu trisavô
foram médicos dedicados à cura
dos alienados. Seu pai já era um
ilustre psiquiatra quando, para
fugir Seu pai, seu avô, seu bisavô
e até do clima inóspito de York,
mudou-se para Falmouth, na
Cornualha, procurando melhorar
dos sintomas de tuberculose que
apresentava; Tuke era apenas um
bebê. O pai se recuperou plenamente e o joven Henry desfrutou
de uma saudável infância à beira
mar, plena de ar livre, num clima
ameno, bem diferente da sombria
York. Diferente também porque
sua família era de Quacres, rígi-
N
14
Auguste Blue - de 1893/4 - hoje na Tate Britain
dos, puritanos, algo que
não existia no desprocupado ambiente do sul da
Inglaterra.
Henry Tuke interrompeu a tradição profissional
da família, não se tornou
médico (destino seguido
por seu irmão William),
pois não demonstrou o
menor interesse por tal
carreira.
Apresentando
cedo seu pendor artístico,
foi incentivado a desenhar e pintar. Aos 21 anos
mudou-se para Londres,
matriculando-se na Slade School of Arts. Logo
consegue uma bolsa. Formando-se em 1880, vai
para a Itália aperfeiçoar-se, depois para Paris. Ao
voltar à Inglaterra, fixa-se em Newlyn, também
na Cornualha. É lá que
inciará o cultivo de um tema recorrente,
bem pouco comum para um quacre, e que
se tornaria sua marca registrada: jovens
rapazes nus, divertindo-se ou trabalhando
à beira-mar.
Em Paris, Tuke conviveu com outros
pintores, inclusive o estadunidense John
Singer Sargent, que também pintava nus
masculinos, embora não os divulgasse.
Morning Splendour, de 1922
15
Os rapazes de Swanpool,
que serviam de modelo para
Tuke e de quem ele fez alguns retratos; muitos viriam
a morrer na I Guerra Mundial.
16
Foi lá que Tuke adquiriu um estilo claramente
impressionista, com pinceladas ásperas e visíveis, bem diferente do acabamento delicado
da pintura inglesa da época. Frequentou intelectuais como Oscar Wilde e John Addington
Symonds, já escritores conhecidos, de um grupo que mais tarde seria chamado de Uranistas
(derivado de Afrodite Urânia, conforme descrito no Banquete, de Platão), por louvarem
a beleza dos adolescentes. Tudo isso ampliou
as perspectivas artísticas do jovem inglês. Ao
mudar-se para Newlyn, reuniu-se a uma comunidade de artistas que lá se formara e que
incluía Walter Langley, Albert Chevallier
Taylor e Thomas Cooper Goth. O estilo impressionista de Tuke não se enquadrava bem
no daquele grupo, que ficaria conhecido como
Escola de Newlyn. Voltou então para Falmouth, mantendo, entretanto, a amizade com os
colegas de Newlyn.
Em Falmouth, Tuke foi viver em Swanpool,
um porto de pesca. Lá comprou um barco de
pesca por 40 libras e o transformou num estúdio/residência flutuante. Foi lá também que
o tema dos rapazes tornou-se central em sua
obra, a partir de 1885. Inicialmente ele pintou
cenas mitológicas, mas estas lhe pareceram,
e aos críticos, demasiado formais e sem vida.
Passou então a pintar seus modelos, os rapazes locais, como eles eram: jovens a pescar, a
nadar, a velejar e mergulhar. Sua pintura ficou mais naturalista, Nem por isso deixou de
pintar retratos e cenas marinhas, obras que
lhe rendiam dinheiro e prestígio junto ao público rico e sofisticado de Londres. Falmouth
ligava-se a capital por uma boa ferrovia e Tuke
nunca se isolou do mundo artístico londrino.
Retratou várias pessoas da alta sociedade, ou
famosas, inclusive T. E. Lawrence, mais conhecido como Lawrence da Arábia.
Em seus últimos anos, Tuke sabia que seu
estilo estava ultrapassado. Depois de sua morte, atravessou um período de esquecimento, do
qual foi resgatado pelo interesse que seus rapazes desnudos despertaram numa sociedade
mais livre e sem medo de expressar suas preferências, já na década de 1980, principalmente
entre o público homossexual.
Independente
de qual fosse o interesse
de Tuke por seus jovens
modelos, seus quadros
não são eróticos. As poses dos rapazes são naturais, sem afetação de
sensualidade, os genitais nunca aparecem, as
cenas são naturalmente corriqueiras, são o
dia a dia de uma aldeia
pobre de pescadores,
numa Cornualha ainda
pouco povoada e ainda
não transformada em
destino turístico. Tragicamente, muitos dos rapazes que aparecem nos
quadros morrerram na
carnificina da I Guerra
Mundial. Tuke manteve a amizade com todos
eles e ao morrer deixou
um bom legado para os
que ainda viviam.
Acima, The Bathers, de 1888;
ao lado, Cupid and the Sea
Nymphs, de 1899 (detalhe).
Tuke viveu nas épocas
chamadas de vitoriana
e eduardiana, que passaram à história como
épocas de puritanismo
hipócrita. Mas não havia então a histeria fabricada contra o “molestamento de menores”.
Tuke não molestou ninguém, ao contrário, mas
hoje ele poderia ter problemas com a lei, numa
Cornualha embuída do
mesmo “moralismo” do
resto da Inglaterra.
J.B.
17
Ruby, gold and malachite, de 1902.
Retrato de T. E. Lawrence - sem data.
18
F
UM INGLÊS
PERDIDO EM
VENEZA
rederick William Rolfe nasceu em Cheapside,
Londres, em 22 de julho de 1860;
apresentou desde cedo uma tendência para a leitura e o estudo,
mas abandonou a escola ao fim
da adolescência. Converteu-se ao
catolicismo e tentou ganhar a vida
como artista plástico, fotógrafo
e até como mestre escola. Suas
primeiras incursões como literato, muitas vezes assinadas com o
pseudônimo de Baron Corvo, renderam-lhe algum reconhecimento, mas muito pouco dinheiro.
O verdadeiro projeto de vida de Rolfe
era ser ordenado padre, mas não conseguiu
seu intento. Aparentemente, as autoridades
eclesiásticas duvidavam de sua verdadeira
vocação, pelo fato de apresentar uma certa
sensibilidade homoerótica. Nem um voto
de castidade de vinte anos, ao que parece
cumprido, rendeu-lhe a ordenação.
A partir daí, Rolfe desistiu de ser padre, mudou seu estilo de escrever e de vida,
aceitando suas inclinações. Sua prosa perdeu as características meio barrocas e tornou-se mais direta, irônica e ferina. Além
de Baron Corvo, assinou com os pseudô-
nimos: Frank English, Frederick Austin,
Fr. Rolfe. A religiosidaade de Rolfe não
entrava em conflito com sua homossexualidade. Ele mantinha contato com vários
homossexuais ingleses e não escondia suas
inclinações (ainda que na época a discrição fosse, mais do que uma opção, uma
necessidade, pois o homossexualismo era
ilegal na Inglaterra). Rolfe apreciava rapazes, mas, em seus tempos de professor,
jamais estabeleceu qualquer tipo de relacionamento com seus alunos. Seus prováveis amantes foram jovens gondoleiros, no
início da idade adulta.
O interesse de Rolfe pela Igreja Católica
foi acompanhado por interesse semelhante
pela Itália. Vários de seus livros são ambientados em território italiano, em épocas
diversas, como Chronicles of the House of
Borgias, publicado em 1901, sobre a família do papa Alexandre VI, incluindo, claro,
seus mal afamados filhos César e Lucrécia;
Don Tarquinio: a kataleptic phantasmatic
romance, publicado em 1905, sobre um
condottiere da Renascença; e Don Renato:
an ideal content, editado particularmente
em 1909.
Sempre afligido pela pobreza, Rolfe
retorna à Itália em 1908, fixando-se em
19
Veneza, para não mais sair. Por não
ter onde morar, dormia muitas vezes em gôndolas e dependia cada vez
mais dos amigos para subsistir. Desta
fase é The desire and the pursuit of the
whole: a romance of modern Venice,
um retrato satírico da cidade, que
inclui muitas caricaturas impiedosas
de quem com ele convivia, amigos ou
não. Um livro que, para não ferir suscetibilidades, só foi publicado vinte e
um anos depois da morte do autor,
ocorrida em Veneza em 25 de outubro de 1913, na mais desalentadora
miséria. Foi enterrado na ilha de San
Michele.
Rolfe parecia despertar sentimentos extremos nas outras pessoas.
Muitos o considerávam um pária,
que vivia às custas dos amigos, antes
de perdê-los, o que geralmente acontecia; outros o consideravam um artista perdido em meio a uma sociedade que não o compreendia. Seja como
for, possui até hoje uma pequena legião de apreciadores incondicionais
de sua obra literária - ele também
tentou ser artista plástico, sem maior
sucesso - que garante sua periódica
reedição.
O Barão Corvo entra em nossa
revista a propósito do que talvez seja
a primeira tradução de uma obra sua
no Brasil: História que Toto me contou (no original, Stories Toto told me),
lançado em 2012 pela Brava, uma editora minúscula de Florianópolis. Não
sei onde se pode encontrar o livro em
papel , mas a edição eletrônica pode
ser comprada na Amazon.
Toto é um jovem italiano que
trabalha como ajudante na casa de
um inglês autoexilado na Itália, coisa comum na época, em que muitos
súditos de Sua Majestade Britânica
fugiam do frio e da frieza humana
imperantes na Inglaterra para terras
20
Tumba de Rolfe em Veneza (foto de G. Dall’Orto)
mais cálidas às margens do Mediterrâneo. Aliás, não sei quando Toto trabalha, pois ele está
sempre contando histórias mirabolantes para
seu patrão, que parece preferi-las as tarefas que
o garoto deveria cumprir. Histórias sempre divertidas, misturando esperteza juvenil com religiosidade ingênua. Alguns leitores detectam toques sutis de homoerotismo nos contos de Toto,
o que só pode tornar as histórias melhores. Se
estiver interessado, ligue o computador, abra a
carteira e confira.
J.B.
Histórias que Toto
me contou. Florianópolis: Brava, 2012.
Ilustrar uma matéria sobre Frederick Rolfe é tarefa
ingrata. Na internet, encontram-se apenas duas
fotos dele, ambas pequenas e com uma péssima
resolução, por isso preferimos usar um desenho
(também da internet), feito a partir de uma das fotos. A outra fotografia que também se encontra na
rede é a da tumba do autor (que reproduzimos no
topo desta página).
UM ALEMÃO
PERDIDO EM
VENEZA
T
homas Mann foi um dos
maiores escritores alemães
do século XX, tendo recebido o Prêmio Nobel. Seu romance inicial, Os Buddenbrook, um
retrato atilado de uma tradicional família alemã, provavelmente
inspirado na sua, foi um grande
sucesso. Sua geração foi marcada pela tragédia das duas guerras
mundiais: na primeira, era um
apaixonado defensor do império
alemão; na segunda, já era um
exilado, pois fugira da Alemanha
para a Suíça desde que Hitler subiu ao poder, em 1933. Sua mulher, Katia Pringsheim, embora
convertida ao protestantismo,
vinha de uma importante família judia. Sua cidadania alemã foi
cassada; em 1941 ele foge para os
EUA, em 1944 consegue a cidadania americana, em 1952, desiludido com o mccarthismo, volta para
a Suíça, onde permanece até sua
morte, em 12 de agosto de 1955.
A obra de Thomas Mann é grande e importante demais para poder ser comentada
neste simples artigo. Gostaria de falar aqui
de apenas um de seus livros, que está intimamente ligado a um dos inúmeros problemas que fizeram de Thomas Mann um
homem atormentado. O livro em questão
é A morte em Veneza (1912 - no original,
Der Tod in Venedig) e o problema é o fato
de que, ao que tudo indica, Thomas Mann
era um homossexual que jamais aceitou
sua homossexualidade. Isto lhe valeu, entre
outros transtornos, uma relação conflituosa com seu filho Klaus Mann, abertamente homossexual. A morte em Veneza já foi
interpretado como um recado de Thomas
Mann a Klaus, mostrando que o homoerotismo leva à destruição. Muitos não
concordam com isto. É mais lógico ver em
Aschenbach, protagonista do romance, o
próprio Thomas Mann.
Gustav von Aschenbach é um famoso
escritor alemão, que passa por um período de crise. Tentando recuperar sua paz de
21
Cena do filme Morte em Veneza, de Luchino Visconti (1971).
espírito, viaja até Veneza. Lá ele se depara
com Tádzio, um menino extremamente
belo, que ele admira de longe. Mas este enlevo está prestes a se tornar uma obsessão.
Preocupado com isto, e mais ainda com
uma epidemia de cólera que ele descobre
estar assolando a cidade, ele resolve ir embora. Um pequeno incidente com a bagagem faz com que ele retorne ao hotel e permaneça em Veneza - o que, no fundo, era
o que ele desejava. Se quiser saber o resto,
leia o livro. E também existe a salvadora alternativa de ver o filme.
O poeta João Cabral de Melo Neto
afirmou certa vez que, depois de Chico
Buarque musicar Morte e vida severina
para o teatro, ele não conseguia mais ler
os próprios versos sem ouvir a música da
peça. Com A morte em Veneza aconteceu
algo semelhante, embora bem depois da
morte de Mann: seu romance ficou definitivamente ligado ao filme homônimo de
Luchino Visconti (1971) e à trilha sonora
do mesmo, com músicas de Gustav Mahler. O filme é realmente uma obra prima.
Nele, Aschenbach é um compositor, em
vez de escritor. A música de Mahler - outro homem atormentado, com uma fixação
22
doentia na morte - encontrou-se tão perfeitamente bem com o enredo que hoje é
difícil acreditar que o Aschenbach original
não fosse músico.
J.B.
A maior parte da obra de Thomas Mann foi
traduzida e publicada aqui por várias editoras brasileiras, inclusive A morte em Veneza. Há uma edição de bolso da Saraiva a
preço módico. Vale a pena ler, da mesma
forma que vale a pena assistir ao filme de
Visconti, que pode ser encontrado em DVD
ou sendo reprisado em alguma mostra de
cinema de arte.

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