DOM QUIXOTE EM CORDEL: TRABALHANDO
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DOM QUIXOTE EM CORDEL: TRABALHANDO
DOM QUIXOTE EM CORDEL: TRABALHANDO INTERDISCIPLINARIDADE E INTERCULTURALISMO EM SALA DE AULA1 Maria José Almeida de Souza2 - Palmeira dos Índios – UAB-UFAL Eliane da Silva Nicácio3 - Palmeira dos Índios – UAB-UFAL José Washington Vieira Silva4 - Palmeira dos Índios – UAB-UFAL Sara Naillê Gomes da Silva5 - Palmeira dos Índios – UAB-UFAL Grupo de Trabalho – Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Este artigo tem como objetivo o estudo da polissemia dialógica do interculturalismo, por meio da integração com outros conceitos como a interdisciplinaridade, a intertextualidade, o ensino de línguas e os recursos tecnológicos como meio de facilitar o ensino-aprendizagem. Para isso, abordar-se-á o conteúdo literatura de cordel e xilogravura, a partir do livro Don Quijote en cordel de J. Borges. Como se sabe, a literatura de cordel faz parte da literatura popular brasileira e é escrita para ser lida, falada ou cantada. Feita em versos, possui uma linguagem acessível e estrutura rítmica envolvente. O que diferencia o cordel Don Quijote dos nossos cordéis é o fato de estar impresso em Língua Espanhola e unir duas figuras da literatura espanhola e brasileira: o mítico personagem de Miguel de Cervantes, Dom Quixote e o lendário cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Serão privilegiadas, neste artigo, tanto a diversidade cultural de nossa sociedade quanto à da sociedade hispânica. Assunto que privilegia espaço de vivência e de discussões dos referenciais éticos, um espaço social em que a ação de cidadania promova a 1 Versão reformulada a partir de atividade em sala de aula e na escola de educação básica, em atendimento a Projetos Integradores 4, no 4º período. Texto sob orientação da Profa. Ms. Madileide de Oliveira Duarte. E-mail: [email protected] 2 Estudante do 5º período, Curso de Letras/Espanhol-UAB/UFAL – Polo Palmeira dos Índios. Graduada em Administração pela UNEAL e em Matemática pela UFRN. Pós-graduada em Metodologia de Ensino. Foi professora de Língua Portuguesa, Colégio Sagrada Família (1990 a 2000); Professora de Matemática e Química, Escola Estadual Humberto Mendes – Palmeira dos Índios/AL.E-mail: [email protected] 3 Estudante do 5º período, Curso de Letras/Espanhol-UAB/UFAL – Polo Palmeira dos Índios. Graduada Letras/Inglês pela UNEAL e Pós-Graduada em Letras/Inglês pela FACE. Professora de língua inglesa, Escola de Ensino Fundamental Turma da Mônica – Palmeira dos Índios/AL. Técnica em infraestrutura escolar e meio ambiente – Pró-funcionário. E-mail: [email protected] 4 Estudante do 5º período, Curso de Letras/Espanhol-UAB/UFAL – Polo Palmeira dos Índios. Graduando Letras/Inglês pela UNEAL. Professor de língua inglesa, Escola Estadual Humberto Mendes – Palmeira dos Índios/AL. E-mail: [email protected] 5 Estudante do 5º período, Curso de Letras/Espanhol-UAB/UFAL – Polo Palmeira dos Índios. Estudante de PósGraduação em Educação a Distância pela UNISEB Interativo COC. Tecnóloga em Secretariado pela FATEC Internacional. E-mail: [email protected] ISSN 2176-1396 17640 dignidade do ser e a igualdade de direitos, situando os saberes disciplinares no campo teórico literatura de cordel, a fim de superar a fragmentação existente no currículo escolar. Com esse propósito, esse estudo apresenta duas partes: 1) a obra Don Quijote en Cordel como um diálogo entre o marco da cultura espanhola e a cultura nordestina brasileira; 2) a estrutura da comunicação tendo como ponto centralizador as ideias apresentadas na obra Don Quijote en cordel, de maneira a reconhecer a pluralidade e diversidade de sujeitos e de culturas. Palavras-chave: interculturalismo. Literatura de Cordel. Língua espanhola. Interdisciplinaridade/ Introdução Este artigo apresentará inicialmente dois conceitos: interdisciplinaridade e interculturalismo, por meio de um eixo temático que articula a língua nativa, a língua espanhola, a literatura e as artes plásticas e outras disciplinas do currículo do Ensino Médio para uma educação intercultural. Para a autora Bochniak apud Saviani, (2003): Interdisciplinaridade é a forma de se superar a visão fragmentada do currículo como “somatório ou confluência de algumas poucas imbricações, formadas quase sempre em torno de disciplinas nucleares, que indiquem a espinha dorsal” de cada curso (BOCHNIAK apud SAVIANE, 2003, p. 53). Através dessa concepção, percebemos que deve haver interações recíprocas entre as disciplinas na educação formal, desde a educação básica à universidade. Para Lück (1994): O objetivo da interdisciplinaridade é, portanto, o de promover a superação da visão restrita de mundo e da compreensão da complexidade da realidade, ao mesmo tempo resgatando a centralidade do homem, da realidade e da produção do conhecimento, de modo permitir ao mesmo tempo uma compreensão da realidade e do homem como ser determinante e determinado (LÜCK 1994, p. 64-66). Quando se refere à concepção de inter-multiculturalismo, tomamos como base o trecho retirado do artigo de Paraquett (2000): Multiculturalismo, interculturalismo e ensino/aprendizagem de espanhol para brasileiros: Com base na determinação do Conselho da Europa e de outros autores 6, García Martínez et alii (op. cit., p. 86) definem, assim, esses termos: 6 Esclarecimento de Paraquett na nota de rodapé: Referem-se a Leurin, 1987 e Aguado, 1991. No entanto, na bibliografia da obra, não consta a primeira referência, enquanto a segunda é a seguinte: AGUADO T. La educación intercultural: concepto, paradigmas, realizaciones. Em JIMÉNEZ, M. C. (coord.). Lecturas de pedagogía diferencial. Madrid: Dykinson, 1991, p. 87-104. 17641 - O Multiculturalismo é determinado pela co-presença de várias culturas num espaço concreto, mas cada um com seu estilo e modos de vida diferentes. - Quando se fala em Pluricultural também há a co-presença de várias culturas, mas sem que haja a convivência entre elas. Ao contrário, ressalta-se a diversidade. - Também há o termo Transcultural. Mas, neste caso, trata-se de um movimento de uma cultura em direção à outra, sugerindo a aceitação do outro e de seus referentes culturais, sem discriminação, sem preconceito. - Por fim, entende-se por Interculturalidade a interrelação ativa e a interdependência de várias culturas que vivem em um mesmo espaço geográfico. Mas concentremos nossa atenção em dois desses aspectos: multiculturalismo e interculturalismo. Percebe-se que há uma diferença ideológica entre as duas perspectivas, pois enquanto no primeiro caso não há a convivência entre as diferenças, no segundo a ideia é exatamente a de interdependência (PARAQUETT, 2010, p. 144). Apesar de destacarmos as concepções apresentadas por Paraquett (2010), este trabalho se voltará mais especificamente a terminologia interculturalismo, porque: [...] esses autores têm razão quando ressaltam os benefícios de uma perspectiva INTERcultural, sobretudo quando a entendemos como políticas públicas que interferem na educação, dentro ou fora da escola. E o prefixo inter representa um papel importante nesse aspecto, pois sugere uma relação recíproca entre as duas partes. Sugere a integração, o encontro, o diálogo. E não é isso o que queremos? Não é disso que precisamos? Não é por isso que trabalhamos tanto, que lemos tanto, que escrevemos tanto? Afinal, por que somos professores? E por que professores de línguas estrangeiras? Por que aprendemos línguas estrangeiras? Se esta resposta está nos interesses econômicos, por exemplo, não estamos falando da mesma coisa, pois eu estou entendendo a aprendizagem de línguas estrangeiras como acesso a outra cultura[...] (PARAQUETT, 2010, p. 146-147). Percebendo a importância dessas concepções para os objetivos da educação com a língua estrangeira na educação básica, apresentamos a proposta de como interagir vários conceitos em um só objetivo: romper as barreiras do preconceito de uma língua em detrimento de outra e a fragmentação do ensino-aprendizagem nos currículos. Para isso, com base no projeto inicial, como atividade em sala de aula na graduação e na escola da educação básica, primeiro criou-se um eixo temático que articulasse a língua nativa, a língua espanhola, a literatura, as artes plásticas e as diversas disciplinas do 1º ano do ensino médio a fim de preparar o aluno para uma educação intercultural. Percebeu-se, então, a importância da interdisciplinaridade para o desenvolvimento de uma pesquisa que buscasse integrar esses campos teóricos a fim de se trabalhar um projeto de maneira que todos soubessem lidar com a diversidade cultural e com os recursos tecnológicos. Além disso, procurou-se uma obra que tivesse as características que respondessem às nossas expectativas. Não foi difícil. Após leitura da sinopse do livro Don Quijote en Cordel de 17642 J. Borges, como não adentrarmos no mundo da criatividade intertextual a que nos leva essa obra? Como não se encantar com esta provocação: a forma como os autores articulam as palavras em um enlace entre ambas as culturas, criando uma relação poética, dando novo sentido aos verbetes das duas línguas? Ninguém duvida de que, no Nordeste brasileiro, cavalgam figuras tristes, com sonhos e desilusões. Serão Quixotes? Serão Sanchos Panza? Sempre e sempre cavalgando, enquanto lhes resta esperança. Buscarão a bandoleiros dos homens de Lampião? Ou protegerão suas damas da fome e do desespero? De nada disso tem dúvida nosso poeta J. Borges. Como Miguel de Cervantes, ele percebe as aventuras do serão. Tanto nas planícies da Espanha como no sertão agreste predominam as injustiças, espalhandose como uma praga. E só um cavalheiro pode enfrentá-las com ousadia7. A referida comunicação apresentará duas partes: Don Quijote en Cordel: diálogo entre o marco da cultura espanhola e a cultura nordestina brasileira; “Dom Quixote em Cordel”: um estudo interdisciplinar e multicultural entre duas línguas. Numa visão que apresenta o interculturalismo e a interdisciplinaridade como um recurso didático para o ensinoaprendizagem a fim de compreender melhor a importância do estudo da língua espanhola no contexto escolar brasileiro. Don Quijote en Cordel: diálogo entre o marco da cultura espanhola e a cultura nordestina brasileira A relação de semelhança entre a obra Dom Quixote de La Mancha e a literatura de cordel começam quando comparamos o período histórico em que datam o início de publicação dessas literaturas: o século XVI, período do Renascimento. Tanto a primeira quanto a segunda obra são embasadas nos romances ou nas novelas de cavalaria, histórias de batalha, amores, sofrimentos, fatos políticos e sociais. Ambos os textos transportam os leitores para o mundo da fantasia, onde aparecem criaturas fantásticas e imaginárias, heróis destemidos em busca de suas amadas. Tradução livre: “Que nadie dude de que, en el Nordeste brasileño, cabalgan tristes figuras, con sueños y desilusiones. ¿Serán Quijotes? ¿Serán Sanchos Panza? Siempre y siempre cabalgando, mientras les reste esperanza. ¿Buscarán a bandoleros de los hombres de Lampión? ¿O protegerán a sus damas del hambre y del desespero? De nada de eso tiene dudas nuestro poeta J. Borges. Al igual que Miguel de Cervantes saca aventuras del serón. Tanto en las llanuras de España como en el sertón agreste predominan las injusticias, propagándose como la peste. Y sólo un caballero puede hacerlas con ousadía.” BORGES J. Don Quijote – Adaptado de la obra de Miguel de Cervantes / Texto de J. Borges; Ilustraciones de Jô Oliveira traducción: J.A. Pérez Montoro; resumen: João Bosco Bezerra Bonfim. Fortaleza: Conhecimento Editora, 2010. 7 17643 Ao lermos “Don Quijote en Cordel de J. Borges8, identificamos mais do que essa relação tempo e espaço, mas todas as concepções necessárias para estruturar e dar sentido ao projeto que pretendíamos desenvolver: interdisciplinaridade, já que o texto nos remete às diversas áreas do saber; e o interculturalismo, visto que durante todo o texto está presente a interrelação ativa e a interdependência da cultura espanhola e a cultura popular do Nordeste brasileiro, dividindo as mesmas estrofes em um mesmo cenário: [...] o poema se constitui como uma interlocução transatlântica entre imaginários distanciados no espaço e no tempo, a partir de idas e vindas entre as culturas brasileira e espanhola, propondo uma releitura criativa de distintas mentalidades, que apesar das diferenças detectáveis alcançam uma integração bem ao gosto dos diversos e reiterados sincretismos brasileiros. (DA ROCHA CARVALHO 2013, p.160) Percebemos que todos os recursos utilizados para a estrutura do texto dialogavam entre si; desde a intertextualidade presente entre a consagrada obra mundial Dom Quixote de La Mancha de Cervantes e a adaptação de Borges até a articulação com as palavras, quando José Antonio Pérez-Montoro9, ao traduzir a sinopse do livro_ texto original de João Bosco Bezerra Bonfim_ Don Quijote en Cordel, cria novos signos linguísticos para a língua espanhola: serón e sertón10: [...] Al igual que Miguel de Cervantes saca aventuras del serón. Tanto en las llanuras de España como en el sertón agreste predominan las injusticias, propagándose como la peste. [...] Isso mostra a importância de todos os envolvidos para fazer dialogar a cultura espanhola/cultura brasileira, Dom Quixote/lampião, Dulcineia/Maria Bonita, erudito/popular, cavalaria/cangaço. As xilogravuras11 de Jô de Oliveira12 são fundamentais para levar o leitor a compreender o enredo de Don Quijote en Cordel, cujas ilustrações dialogam com a história contada por J. Borges “há relação direta entre os versos do cordelista e as representações das imagens dos cangaceiros” (Da Rocha Carvalho 2013, p.161). 8 De Bezerros, Pernambuco, é considerado um dos mais conhecidos nomes na arte de xilogravuras e literatura de cordel. 9 Nascido na cidade de L’ospitalet de Llobregat (Barcelona, Espanha) vive em Brasílis e é tradutor para espanhol de poetas brasileiros de suas próprias obras. 10 Por não existir na língua espanhola o substantivo serão (período de tempo situado depois do jantar até a hora de dormir; trabalho realizado após o horário normal – disponível em: https://pt.wiktionary.org/wiki/ser%C3%A3o#Sin.C3.B4nimos acesso em 30 de julho de 2015), observa-se que Montoro cria uma versão nessa língua. O mesmo acontece com o verbete sertón. 11 É uma antiga técnica, de origem chinesa, em que o artesão utiliza um pedaço de madeira para entalhar um desenho, deixando em relevo a parte que pretende fazer a reprodução. Em seguida, utiliza tinta para pintar a parte em relevo do desenho. disponível em: http://www.significados.com.br/xilogravura/ acesso em 30 de julho de 2015 12 Artista plástico, pernambucano da Ilha de Itamaracá, é reconhecido por seus livros e selos. 17644 A xilogravura da primeira página do livro já nos mostra o que vamos encontrar um Dom Quixote vestido como um típico sertanejo nordestino brasileiro com seu chapéu de couro, deitado em uma rede. J. Borges descreve seu personagem da seguinte maneira: [...] Era uma vez uma aldeia igual a outras que havia e lá vivia um fidalgo magro, mas sempre comia: carne, fritos e lentilhas, e demais gastronomia. Devorou toda sua fortuna para acabar sendo pobre; porém não parecia -A carta oculta no envelope-. Quem o visse, não pensava que tinha pouco cobre. [...] [...] Lia até delirar pelo dia e noite inteira, e na sua cabeça viviam bruxo, dragão, feiticeira, combates e desafios, louco como um regador. Todos esses delírios povoavam toda sua mente, cobravam vida dos heróis do passado e do presente. E deste modo enfrentava o que viesse pela frente13[...] (BORGES, 2010, p. 5). Durante toda a obra, as xilogravuras ora nos remetem ao espaço, à vegetação característica do sertão nordestino pela figura frequente de cactos e mandacarus; ora nos remetem às paisagens da região de Cervantes por meio da figura de moinhos de vento. A lança utilizada por nosso fidalgo simboliza a cavalaria medieval. Ao mesmo tempo em que são apresentados desenhos de carroças puxadas por jumento, também se apresentam carruagens conduzidas por frades e puxadas por bois, fazendo um diálogo entre os meios de transporte medievais e os meios de transporte da região rural nordestina. Apesar da liberdade na hora de criar seu Dom Quixote vaqueiro, cuja imagem se cristaliza nos desenhos de Jô Oliveira, J. Borges respeita em linhas gerais o enredo relativo ao fidalgo manchego. O poeta organiza seu material narrativo deixando marcadas as três saídas de Dom Quixote, com um episódio de seu poema dedicado a cada uma. Esses episódios são intercalados com outros em que o sertão aparece abruptamente no texto, a começar do sonho que leva o Quixote ao Nordeste brasileiro, passando pelas aventuras por onde desfilam diversos cangaceiros até chegar ao clímax do embate com o Lampião e a morte do Cavaleiro da Triste Figura. (BORGES, 2010, p. 164) No poema a primeira saída de Dom Quixote é justificada nos versos abaixo: Tradução nossa: […]Era una vez una aldea/al igual que otras que había/y allí vivía un hidalgo/flaco, mas siempre comía: carne y fritos e lentejas,/y demás gastronomía./Devoró toda su hacienda/para acabar siendo pobre;/pero noble parecía/_La carta la oculta el sobre_./Quien lo viera, no pensaba/que tuviera poco cobre./ Leía hasta delirar/por el día y noche entera/ y en su cabeza vivían/ brujo, dragón, hechicera,/combates y desafíos,/loco como regadera./ todos eses desatinos/poblaban toda su mente,/cobraban vida los héroes/del pasado y del presente./ Y de ese modo enfrentaba/lo que viniese de frente. 13 17645 [...] Necessitava de uma dama E, pensando no passado, Pensou em uma camponesa De porte muito delicado: Se chamava Dulcineia E entrou em seu mundo de sonho. Dom Quixote em seu cavalo preparou bem sua espada para fazer o juramento com pessoa preparada. Saiu pronto sem comer, Para observar a sua amada [...]14. (BORGES, 2010, p. 9) A segunda saída do Quixote se dá por meio das aventuras dos monges beneditinos que acompanham uma dama e daquelas dos moinhos de ventos. É por meio da dama, caracterizada por uma prostituta, que recebe a notícia de Dulcineia. O encontro entre os “dois universos imaginários”, Dom Quixote e Lampião, é o ápice do diálogo entre as culturas espanhola e nordestina. “É através do sonho que Dom Quixote e Sancho conquistam o sertão nordestino, apesar da derrota do Cavaleiro da Triste Figura diante do Rei do Cangaço, e apesar da morte do fidalgo Alonso Quijano”. (BORGES, 2010, p. 169) [...] Don Quixote em uma manhã Andando por uma praça La em Campina Grande, Com ressaca de cachaça Viu vindo um cavaleiro E imaginou a desgraça. O cavaleiro vinha Em sua mesma direçãoe em seu escudo uma lua, Pintada com perfeição Tão bela e resplandecente Que lhe chamou a atenção. O cavaleiro lhe falou: - és um grande escudeiro, Dom Quixote de La Mancha, E sou eu “o cavaleiro da lua” do nordeste, O mais forte bandoleiro.15 [...] (BORGES, 2010, p. 37) O combate final entre Lampião e o Quixote retoma o combate que aparece na segunda parte do Dom Quixote de Cervantes quando às portas de Barcelona o Cavaleiro Andante se encontra com o bandoleiro catalão chamado Roque Guinart (aventura que transcorre na II Parte do Dom Quixote, capítulo 60). Assim como na obra cervantina, o poema de J. Borges termina com a retomada da lucidez do personagem e, logo após, sua morte: [...] Sei meu verdadeiro nome (agora fiquei lúcido) Não me chamo Dom Quixote Senão Alonso Quijano. Peço perdão a todos Por meus lapsos freudianos.[...] [...]Concluído o testamento, Na cama se prostrou E deu seu último suspiro. A morte se aproximou Para descanso do corpo. E esta história terminou.[...]16 (BORGES, 2010, p. 45). 14 Necesitaba una dama/y, pensando en el pasado,/pensó en una campesina/ de porte muy delicado:/se llamaba Dulcinea/y entró en su mundo soñado. /Don Quijote en su caballo/se preparó bien la espada/para hacer el juramento/con persona preparada/Salió pronto sin comer,/para observar a su amada. (Borges, 2010, p. 9) 15 Tadução livre: “Don Quijote una mañana,/ andando por una Plaza/alli en Campina Grande,/con resaca de cachaza,/vio venir un Caballero/e imagino la desgracia/El caballero venía en su misma dirección ,/y en su escudo una luna,/pintada a la perfección ,/tan bella y resplandeciente/que le llamó la atención./ El caballero le habló:/-eres un gran escudero, Don Quijote de La Mancha,/ e soy yo “el caballero/ de la luna” del nordeste,/mas fuerte que bandolero. (Ibidem, p. 37). 16 Sé mi verdadero nombre/(ahora cordura gano):/No mi llamo Don Quijote/Sino Alonso Quijano./Pido perdón a la gente/Por mi lapsus freudiano./[…]/Concluido el testamento,/en la cama se postró/y dio su último suspiro./la muerte se le acercó/Para descanso del cuerpo./Y esta historia se acabó. (Borges, 2010, p. 45) 17646 “Dom Quixote em Cordel”: um estudo interdisciplinar e multicultural entre duas línguas Para destacar a importância do ensino de Língua Espanhola como nova realidade da grade curricular, pesquisamos as fundamentações legais para o ensino-aprendizagem dessa língua no Brasil. O § 5º do Art. 36 da LDB (BRASIL, Lei 9.394, 1996), em relação ao ensino médio, dispõe que "será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição" (Art. 36, Inciso III). Complementando a nova LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental de Línguas Estrangeiras são mais amplos em seus objetivos, os parâmetros estão baseados no princípio da transversalidade, destacando o contexto maior em que deve estar inserido o ensino das línguas estrangeiras e incorporando questões como a relação entre a escola e a juventude, a diversidade cultural, os movimentos sociais, o problema da violência, o tráfico e uso de drogas, a superação da discriminação, educação ambiental, educação para a segurança, orientação sexual, educação para o trabalho, tecnologia da comunicação, realidade social e ideologia. Os Parâmetros sugerem, assim, uma abordagem sóciointeracional, com ênfase no desenvolvimento da leitura, justificada, segundo seus autores, pelas necessidades do aluno e as condições de aprendizagem: Portanto, a leitura atende, por um lado, às necessidades da educação formal, e, por outro, é a habilidade que o aluno pode usar em seu próprio contexto social imediato. Além disso, a aprendizagem de leitura em LE pode ajudar o desenvolvimento integral do letramento do aluno. A leitura tem função primordial na escola e aprender a ler em LE pode colaborar no desempenho do aluno como leitor em sua LM. Deve-se considerar também o fato de que as condições na sala de aula da maioria das escolas brasileiras (carga horária reduzida, classes superlotadas, pouco domínio das habilidades orais por parte da maioria dos professores, material didático reduzido ao giz e livro didático etc.) podem inviabilizar o ensino das quatro habilidades comunicativas. Assim, o foco na leitura pode ser justificado em termos da função social das LEs no país e também em termos dos objetivos realizáveis tendo em vista condições existentes. (BRASIL, 1998, p.20) Já segundo a Lei nº 11.161 (5 de agosto de 2005), no artigo 1º: “ O ensino da língua espanhola, de oferta obrigatória pela escola e de matrícula facultativa para o aluno será implantado gradativamente nos currículos plenos do Ensino Médio”. No momento, cria-se um contexto favorável para a aprendizagem da língua espanhola, meio importante para a divulgação do conhecimento. Observa-se que a educação deixou de ser 17647 tratada apenas em reuniões de professores para ser tratada também em encontros de cúpula entre países. Com base nessa visão, a estruturação do projeto “Dom Quixote em Cordel: Trabalhando Interdisciplinaridade e Interculturalismo em Sala de Aula” partiu do pressuposto que a escola tem de ser um espaço de vivência e de discussões dos referenciais éticos, um espaço social em que a ação de cidadania promova a dignidade do ser e a igualdade de direitos. Oliveira e Miranda (2004, p. 67) atenta para “a urgência de ressignificação da escola e do currículo como espaço de reinvenção das narrativas que forjam as identidades homogêneas.” Ao problematizar, pensamos em como situar os saberes disciplinares no campo teórico literatura de cordel e xilogravuras, a fim de superar a fragmentação existente, sugerindo uma nova proposta de trabalho a partir da diversidade cultural por meio dos recursos tecnológicos audiovisuais. O objetivo geral exposto foi integrar dois conceitos: interdisciplinaridade e interculturalismo a fim de articular a Língua, o Espanhol, a Literatura, as Artes Plásticas, História, Geografia, Matemática, Física, Química e Sociologia como um meio para uma educação intercultural, integrando as tecnologias educacionais. Para melhor esclarecimento, especificamos em como se organizariam todas as atividades de classe e extraclasse a fim de conduzir o aluno a: produzir textos orais e escritos em espanhol, assegurando-lhes o processo de leitura e escrita; compreender o estudo da língua espanhola embasado na obra Don Quijote en Cordel de J. Borges, englobando uma análise do texto, do discurso, uma descrição dessa língua, uma visão de sociedade; assegurar aos alunos o uso da língua nas práticas sociais de leitura, escrita e interação dialógica; conhecer, recriar e expressar-se de maneira artística trabalhadas em oficinas, a partir da literatura de cordel da nossa região e da hispânica, valorizando, pois, a criatividade e espontaneidade do aluno; identificar os elementos da cultura popular nordestina e da cultura popular hispânica na obra; reconhecer o cordel como narrativa em versos com padrões informais de escrita e temática variada; interagir com os materiais, instrumentos e procedimentos relacionados à produção do cordel: folhetos e xilogravura; desenvolver uma visão crítica dos aspectos sociais, culturais, econômicos, históricos e políticos; caracterizar e criar um roteiro de vídeo. Os trabalhos foram compartilhados com a classe e disponibilizados em ferramentas audio-visuais e apresentados por meio de seminário, em que participaram alunos, os professores e coordenadores. 17648 Encontramos na literatura de cordel uma variedade de conteúdos, habilidades e competências nas várias áreas do saber que compõem a grade curricular do 1º do Ensino Médio. Essa diversidade de abordagens e de possibilidades pôde ser aproveitada para instigar debates e discussões em sala de aula. “[...]Qualquer que seja o método de abordagem do professor, o debate em algum momento deverá ser sempre privilegiado, conscientizando o aluno de seu papel de herdeiro da cultura de seu povo e de agente transformador dessa cultura[...]” (PINHEIRO; LÚCIO, 2001, p. 85). Para integrar o conhecimento de meios tecnológicos às atividades desenvolvidas, o assunto foi exposto através da produção de um vídeo, em que os alunos interpretaram a narrativa do livro Don Quijote en cordel. Quadro: Para melhor visualização estão dispostos, no quadro abaixo, os conteúdos que foram trabalhados, em cada disciplina, durante a execução de todas as atividades. Disciplinas Conteúdo Habilidades/Competências Artes - Confecção de Xilogravuras e painéis. - Traçar e confeccionar xilogravuras e painéis. Língua Portuguesa - Gêneros textuais: Cordel e roteiro de vídeo; Compreender o estudo da língua portuguesa a partir do gênero cordel; Produzir textos orais e escritos. paródia, teatralização em formato de oficina, a partir da literatura de cordel da região nordestina; Estruturar e produzir roteiro de vídeo. - Produção de textos; - Ortografia; Língua Espanhola - Relação sintático-semântica; - Gêneros textuais: Cordel - Produção de textos; - Ortografia; Literatura - Relação sintático-semântica; - Literatura Brasileira; - Literatura Espanhola História - O cangaço no Brasil - A época das cavalarias (Idade Média) Geografia Geografia dos estados nordestinos citados no enredo do cordel; Geografia da região hispânica Compreender o estudo da língua espanhola a partir do gênero cordel; Produzir textos orais e escritos em espanhol, paródia, teatralização em formato de oficina, a partir da literatura de cordel da região hispânica. - Comparar a literatura espanhola e a brasileira, determinando as principais diferenças e pontos comuns; Conhecer os principais nomes da literatura espanhola e Nordestina. Caracterizar e analisar a época do cangaço no Brasil e a Idade Média, época das cavalarias; Comparar esses dois períodos e entender a importância desses períodos para a história brasileira e a espanhola. Comparar os aspectos físicos, políticos, econômicos, sociais e geográficos do Brasil e da 17649 originária de Cervantes. Matemática -Unidade de medida; - Geometria plana: Figuras planas, perímetro e área; - Função de 1º grau; - Função de 2º grau - Porcentagem; - Contagem. Física - Estudo do Movimento Uniforme; - Estudo do Movimento Variado; Química - Substância; - Mistura; - Métodos de separação de misturas; Sociologia - Representação das substâncias: fórmula estrutural e molecular - O homem em sociedade; - Valores e regras sociais; - A relação da sociedade e indivíduo; Espanha; Perceber pontos comuns entre esses dois países. - Compreender por meio da construção de figuras, delimitação de espaço, confecção de xilogravuras a unidade de medida de comprimento, área e volume; Determinar a equação do espaço em função do tempo entre os espaços citados no livro; Entender por meio de sua linguagem o conceito de porcentagem; Traçar gráficos espaço x tempo; relação entre a área brasileira e sua população, e a área espanhola e sua população. Utilizar os conceitos estudados em Matemática para entender o estudo do Movimento; Diferenciar a função do Movimento Uniforme e Movimento Uniformemente Variado; Determinar espaço, velocidade e aceleração fazendo a suposição de viagens entre os locais citados no texto. Entender o que é substância química; Identificar as principais misturas e métodos de separação utilizados pelos cangaceiros, cavaleiros medievais e figuras típicas nordestinas; Identificar a substância utilizada para pintar as xilogravuras e representar sua fórmula estrutural e molecular. Comparar a sociedade do cangaço e a sociedade medieval; Entender como a sociedade interfere na formação do indivíduo; Comparar; entender e analisar as características da sociedade nordestina e hispânica. Cultura e sociedade. Fonte: Dados propostos pelos autores da pesquisa, com base nos anais do evento. A avaliação foi baseada nas características destacadas por Angelo e Cross (1993, apud Gatti 2003, p. 108), portanto ela apresentou-se: Centrada nas observações dos alunos; Mutuamente benéfica, pois ajudou os alunos a aprenderem a se avaliar, bem como ajudou nós professores tanto a nos avaliar quanto, os nossos alunos; 17650 Formativa, orientada no sentido não de dar nota nem de classificar os alunos, mas no sentido de determinar quanto eles aprenderam, quais facilidades e dificuldades tiveram; De contexto específico, adaptada às necessidades de aprendizagem dos alunos e às características do assunto literatura de cordel e xilogravuras: interdisciplinaridade e interculturalismo; Em constante andamento, planejada para criar um fluxo de informação constante tanto dos alunos para professor quanto do professor para os alunos; Com raízes em boas práticas de ensino, que reforçam ou refazem com as avaliações procedidas. (ANGELO e CROSS, 1993 apud GATTI 2003, p. 108) Considerações Finais É através do sonho que Dom Quixote e Sancho conquistam o sertão nordestino, apesar da derrota do Cavaleiro da Triste Figura diante do Rei do Cangaço, e apesar da morte do fidalgo Alonso Quijano.( DA ROCHA CARVALHO, 2013, p. 169) Assim também, através da concretização dessa comunicação oral entre a cultura espanhola e a cultura nordestina, objetivou-se compreender ainda mais a importância da interdisciplinaridade e da interculturalidade para ressignificar o ensino-aprendizagem através das relações de rupturas com o pragmatismo implícito nas abordagens do ensino em sala de aula. A intertextualidade entre a obra de Miguel de Cervantes e a obra de J. Borges, Don Quijote en cordel, é extremamente embasadora para o processo supracitado, pois esses trabalhos literários possuem uma relação dialógica muito forte com as áreas do saber. A elaboração desse artigo foi uma experiência altamente produtiva e satisfatória, visto que, concedeu-nos a possibilidade de adentrarmos em diferentes leituras pertinentes para o enriquecimento do texto e do nosso conhecimento. Com tudo isso, fica claro que o docente precisa levar para sala de aula a polissemia dialógica do interculturalismo, precisa ser revolucionário de sua prática. Freire destaca que um educador humanista revolucionário se identifica com os educandos e estabelece com eles um diálogo contínuo. Enquanto professor pesquisador aplicado da própria prática, sabemos que o que foi aqui proposto será apenas o ponto inicial para uma investigação contínua e reflexiva para os fatos do ensino-aprendizagem. Estaremos a todo o momento relacionando nossa vivência com algumas das discussões teóricas construídas a partir das novas propostas para o ensino das disciplinas; interpretando e reelaborando o conhecimento através de uma nova pesquisa. Assim, 17651 a problematização fará parte do nosso dia-a-dia para que surjam novos objetos de pesquisa, novos campos teóricos. REFERÊNCIAS AGUADO Odina, Mª Teresa. (1991). La Educación Intercultural: concepto, paradigmas y realizaciones. En Mª Carmen Jiménez Fernández (coord.), Lecturas de Pedagogía Diferencial. Madrid: Dykinson. Pp. 87-104. ANGELO, T. A.; CROSS,K.P. Classroom assesment techniques: a handbook for college teachers. (2nd. Ed.). San Francisco, JosseyBass, 1993. Apud Gatti, Bernadete A. O Professor e a Educação em Sala de Aula (2003). BORGES J. Don Quijote – Adaptado de la obra de Miguel de Cervantes / Texto de J. Borges; Ilustraciones de Jô Oliveira. Fortaleza: Conhecimento Editora, 2010. BRASIL. MEC. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Arte. 1998. Disponível em: <ftp://ftp.fnde.gov.br/web/pcn/05_08_artes.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2015. DA ROCHA CARVALHO, Erivelto. 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