Travessia sem fronteiras

Transcrição

Travessia sem fronteiras
Puerto varas
rediscover
rome
O visual do alto do vulcão
Osorno já valeria a
viagem, mas o Cruce
Andino revela muito mais
na região fronteiriça entre
Chile e Argentina
travessia sem
fronteiras
Prestes a completar um século, a travessia dos lagos andinos liga Chile
e Argentina por uma rota deslumbrante de vulcões nevados, lagos
esmeraldinos, bosques que mudam de cor, cachoeiras, pássaros
cantores e uma culinária de encher os olhos, o estômago e a alma
texto Julio Cruz Neto | fotos Chema Llanos
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Puerto varas
“o turismo na
travessia dos
lagos iniciou
em 1913, após o
comércio de
lã diminuir”
A bucólica Frutillar, sede do belo Teatro del
Lago, fica próxima a Puerto Varas, de onde
se parte para as águas esmeraldinas do
Cruce Andino. Na página ao lado: na
primavera e no verão, o verde dos
Andes se mistura aos picos
eternamente nevados
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E
ra uma vez um pequeno
felino de um mês e meio, cor
de café com leite, que vivia
preso em uma jaula onde
mal podia espreguiçar-se.
Fora capturado na região
dos lagos andinos, em
algum ponto entre o Chile e a Argentina, e
parecia destinado a viver como um animal
doméstico ou, pior, exibido como atração
turística. Mas o roteiro foi corrigido a
tempo.
Com um mês e meio, foi comprado por
um bom samaritano que só queria
devolvê-lo aos bosques. Mas não foi mais
embora. Adotou seu libertador e passou a
acompanhá-lo por toda a parte. Passeava
de carro, nadava junto, dava a patinha —
que logo virou patona —, deitava a cabeça
sobre a perna dele para descansar. Comia
do bom e do melhor. Embora fosse um
puma, animal retratado como perigoso nos
documentários, nunca provocou um
arranhão sequer.
Tanta confiança só se concede a quem
quer bem aos animais, conversa com eles,
não os teme. É o caso de Alberto Schirmer
Roth, um senhor acostumado a cuidar de
pássaros doentes, como os 13 condores
que já passaram pela sua “enfermaria”
antes de voltar a voar, e descobrir lugares
onde seres humanos nem sonham existir.
Don Alberto, como é conhecido, vive na
Região dos Lagos, em um vilarejo chileno
minúsculo chamado Peulla, de cento e
poucos moradores, ponto central da
travessia entre Puerto Varas, no Chile, e
Bariloche, na Argentina, feita parte de
barco, parte de ônibus. Dono dos dois
hotéis do local e de toda a estrutura
turística do “Cruce Andino”, ele é uma
espécie de guardião deste que é um dos
lugares mais deslumbrantes da América
do Sul.
O viés turístico da travessia dos lagos
iniciou em 1913 pelas mãos de Ricardo
Roth, seu avô – depois que sua utilidade
na exportação de lã caiu em desuso.
Chegou a ter 60 mil turistas por ano em
2007, sendo cerca de 30% brasileiros.
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Puerto varas
Mas a crise econômica, a gripe A
(H1N1) e o terremoto de 2010 fizeram o
número despencar pela metade. As
pessoas não sabem o que estão perdendo.
Não conhecem, por exemplo, a cor de
esmeralda do Lago de Todos os Santos, em
uma tonalidade que quase chega a
confundir o limite entre a água e a mata; a
força da água que despenca nos Saltos do
Petrohué; os montes nevados que se
revelam pelo caminho; ou a vegetação
exuberante dos bosques, que vai
alaranjando e avermelhando conforme se
olha mais para o alto dos paredões que
margeiam o lago. Os animais, discretos,
não costumam dar o ar da graça. Mas não é
tão difícil avistar pássaros como o condor,
o martim-pescador e o chucao, o tenor da
região, pequenino e de cordas vocais
potentes, com um repertório vasto de
melodias.
Parte dessa boa impressão depende de
um céu limpo e um sol raiando, que
intensifica os contrastes e ajuda a aplacar
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o vento frio. Não é tarefa fácil em uma
região onde chove 3.500 mm ao ano, bem
mais que na Amazônia. Mas uma boa
pedida é evitar os meses de inverno, os
preferidos dos brasileiros por causa da
neve.
Independentemente da estação, a dica
mais importante é não fazer a travessia em
um único dia. De setembro a abril, quando
os dias são mais longos, é possível sair de
Puerto Varas pela manhã e chegar a
Bariloche para o jantar. Mas é um
desperdício não pernoitar em Peulla e
curtir o aconchego do vilarejo e da
paisagem que o cerca; cavalgar cruzando
rios com água quase no pé; praticar
arvorismo; admirar a boiada pastando no
prado extenso ao pé da montanha;
conhecer a escolinha onde 11 alunos são
divididos por baias em uma única sala,
de acordo com a idade; e apreciar um
anoitecer de outono, com o céu ainda
azul emoldurando a montanha já
completamente escura.
“é um pecado
não dormir
em peulla
e curtir o
aconchego
do vilarejo”
No museu (abaixo), na escolinha de Peulla
e nas casas de madeira (na página ao lado),
o estilo e o modo de vida dos imigrantes
alemães se manifesta de várias formas
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“vejo um papel
à distância,
porque sei
que sua cor
não pertence
a natureza”
Alberto Roth (acima) é o guardião de
Peulla, localidade onde se pode cavalgar,
praticar esportes de aventura ou
simplesmente contemplar a riqueza da
fauna que varia conforme a altitude
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“Aqui, os turistas relaxam. Há senhores
de 80 anos que fazem arvorismo”, conta
Don Alberto. Mas muitos param só para
almoçar e seguem viagem. “As pessoas
andam viajando que nem japoneses.
Passam tão rápido pelos lugares que
depois passam o ano todo discutindo com
a família de onde são as fotos. Isso não é
turismo.” Claro que ele tem interesse em
travessias mais longas, mas Alberto não é
do tipo marqueteiro que usa jornalista
para mandar recado e, afinal, sua opinião
faz sentido.
A primeira vista da travessia é a do
vulcão Osorno (2.660 metros de altura),
inativo há quase dois séculos e
deslumbrante desde sempre, fazendo
lembrar o Monte Fuji, no Japão. O formato
cônico quase perfeito deve-se às 40
crateras situadas ao redor da base. As
erupções ocorreram ali, o que preservou
o topo.
Depois aparece outro vulcão, cujo nome
não poderia ser mais autoexplicativo:
Puntiagudo (2.493 metros). Mais pontudo
que o Osorno, tem o topo irregular e um
pouco inclinado, qual uma Torre de Pisa
dos Andes. Há quem diga que ficou assim
após o terremoto de 1960. Outros afirmam
que foi a última erupção, ocorrida bem
antes. Viagem tem muito disso. Nativos
contam histórias com uma certeza que
parece protocolada em cartório, mas
sempre pode surgir um “ou não”. É o caso
do chucao, que uns dizem ter sete tipos
diferentes de cantos, outros 24... Seja
como for, o que importa é que o canto
deste pajarito é a trilha perfeita para
apreciar os vulcões
e toda a paisagem.
O monte Tronador também dá o ar da
graça. Tem quase 3,5 mil metros, mas
tamanho não é necessariamente
documento. Mais vale ter um bom ponto
de observação. Prova disso é a cascata
Yefe. De longe parece um filetinho d’água,
mas peça para o capitão do catamarã
passar perto e repare no capricho de seus
inúmeros degraus. “Gosto de todo o
trajeto, porque a cada dia que passa, ele é
diferente. Hoje tem aquelas nuvens ali, à
meia altura”, diz o capitão Jorge Araya,
65 anos, apontando na direção do vulcão.
“Amanhã, podem não estar ali, ou pode
ter caído mais neve.”
Havia um tempo em que a região dos
lagos era tão inóspita que nem os nativos
viviam ali, embora mapuche signifique
“gente da terra”. Para povoá-la, foram
recrutados colonos da então Confederação
Germânica, que vivia uma revolução –
a Alemanha propriamente dita ainda não
existia. Como em toda guerra, muitos
queriam fugir. E como o clima no sul do
Chile tem um ar germânico, o governo de
Manuel Montt resolveu incentivar a
migração.
“O Chile precisava de gente para
colonizar a região e os alemães precisavam
de trabalho e dinheiro, então ganharam
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“o legado do
povo alemão
é visível na
arquitetura
gastronomia,
e cultura”
O observador curioso vai se interessar não
só pelas belas flores e picos nevados, mas
também pela natureza morta dos salmões
após a interminável e fatal viagem para a
desova. Na página ao lado: à luz do
crepúsculo e em meio a névoa, os Andes
adquirem um clima envolvente
terras aqui”, diz Pedro Felmer, dono do
museu Antonio Felmer – Nuestras Raices.
“Quando chegaram, descobriram que não
havia nada além de bosque”. Era o ano de
1850. A Revolução Industrial se espalhara
pelo mundo, a carga horária nas fábricas
caía para perto das 50 horas semanais
(um avanço naqueles tempos), Darwin
publicara A Origem das Espécies e até o
Brasil inaugurava sua primeira ferrovia,
em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Enquanto
isso, os colonos alemães trabalham dia e
noite para construir suas casas em um
terreno inóspito e aprendem estratégias
rudimentares de sobrevivência, como fazer
carne de sol, por exemplo.
“Muito simples. Basta cortar a carne em
fatias finas, salgar e pendurar ao sol ou
fumaça para secar”, ensina um nativo,
quando os recém-chegados se deram conta
de que não havia sequer recipientes
grandes o suficiente para salgar carne e
armazená-la. Quando aportam ali, em
um veleiro, os primeiros 70 colonos
descobrem que não vão ficar exatamente
onde esperavam, que não há nenhuma vila
à beira do lago e o único abrigo disponível
é um galpão no meio da mata, sem
divisória alguma e sem forro. São
obrigados a racionar comida, fazer fila
para tomar o desjejum, realizar trabalhos
penosos e enfrentar várias outras privações
e provações.
Mas o povo germânico é batalhador,
criativo e caprichoso, como provam os
museus da região e o legado arquitetônico,
gastronômico e cultural. Sem falar na saga
de Ricardo Roth, filho de um paleontólogo
suíço “importado” pelo governo argentino
no final do século 19.
Ricardo é um aventureiro que se
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mandou de casa após concluir os estudos.
Não entendia nada do campo, mas queria
conhecer a natureza into the wild.
Percorreu toda a Patagônia e instalou-se
na região dos lagos, onde implantou a
primeira turbina para geração de energia
hidrelétrica da região e criou a primeira
estação de rádio, que os moradores
sintonizavam para saber, por exemplo,
o número de passageiros a bordo de
um barco.
Era um visionário, lembra o neto
Alberto. “Quando chegou aqui, as pessoas
queimavam os bosques para fazer pasto.
Ele entrou em pânico porque o local ia
perder o valor turístico.” Recorreu ao
explorador argentino Francisco Pascasio
Moreno, que o havia convidado para
participar das discussões fronteiriças
entre Chile e Argentina. Perito Moreno,
como era conhecido, sugeriu que ele
lutasse pela criação do primeiro parque
nacional do Chile – o que Ricardo, homem
refinado e culto, conseguiu em 1925, após
muito lobby em Santiago. O parque leva o
nome do homem que coordenara a entrega
de terras aos colonos, Vicente Pérez
Rozales.
Seu filho, Rui Roth, foi o primeiro
homem a chegar ao cume do Puntiagudo,
e morreu na ocasião. Gastou boa parte do
gene aventureiro do velho Ricardo,
deixando para Alberto um legado
diferente. “O que eu mais aprendi com
meu avô foi a tranquilidade com que fazia
as coisas e como as planejava”. Além do
olhar apurado e do faro fino para os
negócios e para a vida selvagem.
O olhar serve para zelar pelo meio
ambiente. “Enxergo um pedaço de papel
a distância, porque percebo que aquela cor
não pertence à natureza.” E o faro, para
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apreciar lugares que poucos conhecem
ou dão o devido valor, como o Cerro Rigi,
para ele o lugar mais interessante do Cruce
Andino, bem na fronteira. “Você sai do
lago e sobe 700 metros por uma trilha. Lá
em cima, vê de perto as flores de altitude,
que crescem em várias cores, com aromas
incríveis. Você sente cheiros que nunca
sentiu e ficam gravados na memória.
Quando você vê de novo a mesma planta,
já sabe o aroma que vai sentir.”
Esta montanha só conhece quem vai com
tempo para perder e se perder. Ou,
eventualmente, quem descola uma carona
no avião-anfíbio de Don Alberto. Mas
quem viaja no cronograma corrido da
travessia também volta para casa com a
memória farta de boas lembranças.
Um bom exemplo é o trecho entre Peulla
e Puerto Frias, a primeira parada no lado
argentino. A trilha mais fechada, com
cachoeiras e vegetação densa, muita
samambaia se derramando sobre o
caminho, lembra um pouco a nossa
Mata Atlântica. Mas há inúmeras
peculiaridades, como o alerce
(árvore que os alemães usaram e abusaram
na colonização, e agora não pode mais ser
derrubada, pois cresce apenas um
centímetro a cada 15 anos);
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“o lago frías é
ideal para um
pintor fincar
seu cavalete
e esquecer
da vida”
Num lindo dia de sol, o Lago Frías, em
território argentino, é sério concorrente
ao título de visual mais bonito de toda
a travessia dos Lagos Andinos
A Lonely Planet viajou a convite da
empresa aérea LAN, da companhia de
cruzeiro Cruce Andino, e dos hotéis
Cabañas del Lago, Cumbres Patagónicas,
Solace e Hotel Patagónico
a amancay (flor de verão sagrada para os
mapuches, que tinham hábito de batizar
com este nome suas filhas mais velhas);
a lenga (planta com folhas amarelas e
laranjas, que ganham tom avermelhado no
outono antes de cair); além de animais
como o puma, veado, javali, bisão e, mais
fáceis de ver e ouvir, os pássaros.
Já Puerto Frias, com sua vista bucólica
do Lago Frias, é o lugar ideal para um
pintor fincar seu cavalete e esquecer da
vida, principalmente se o céu estiver azul
e todos os matizes do bosque refletidos na
superfície. Quem sabe um dia desses
algum artista plástico aviste o puma de
Don Alberto, que após cinco anos vivendo
praticamente como um gato de estimação,
resolveu emancipar-se e nunca mais
voltou para casa. “Sempre lembro dele,
eu sofro. Vivi todas as etapas até a
maturidade”, lembra este emotivo senhor
de 72 anos. “É um animal sentimental”.
Desconfio que Don Alberto seria capaz
de dar seu hotel, com todos os hóspedes
dentro, por uma tela bem pintada do
felino, como uma espécie de prova de que
ele continua se espreguiçando livremente
pelas paisagens andinas. O nome dele é
Pangui. Quer dizer puma, na língua
mapuche.

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