Dia05-20mar revisão - Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental

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Dia05-20mar revisão - Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental
Francisco César Filho, curador do evento: Olá meus amigos, muito boa noite senhoras e senhores, nós vamos dar início a mais uma atividade da I Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, evento que é apresentado pela Eletropaulo e pelo Instituto Votorantim com patrocínio da White Martins. Nós vamos agora promover um debate em torno da vida e da obra do Adrian Cowell. Eu quero ter a honra de chamar aqui para compor este grupo de debate, Felipe Milanez, Vicente Rios, Stella Oswaldo Cruz Penido e Daniel Santiago. Nesta dinâmica, vamos dar dez minutos de fala para cada um. Depois, nós abrimos para perguntas das pessoas da plateia, e ao chamar cada um de vocês aqui, vou identificá-­‐los. Vamos começar pela ordem, pelo Felipe Milanez, que é jornalista e advogado, e foi editor da revista Brasil Indígena e da National Geografic Brasil. Felipe: Obrigado, primeiro eu queria agradecer o convite para vir aqui e conversar com vocês sobre o trabalho do Adrian, parabenizar o Chico e os organizadores pela bela mostra. É muito importante hoje mostrarmos o que está acontecendo com relação ao meio ambiente à sociedade. O documentário é uma ferramenta extraordinária para isso e propõe reflexões, e um dos desejos do Adrian e seus objetivos nos filmes que fazia era que não ficassem parados ou só fossem vistos eventualmente, e sim que provocassem o debate e tivesse sempre discussões, mesas depois. Além de tudo, eu acho que honra bastante a homenagem que está sendo feita ao Adrian dar esse espaço de ter um debate sobre o trabalho dele. Eu acho que posso acrescentar com a minha presença aqui o fato de ser jornalista, de trabalhar muito na Amazônia, bastante em campo, e principalmente nessas áreas de conflito de desmatamento do Acre. E vamos ter a honra de ouvir do Vicente Rios o que foi filmar aquele bangue-­‐bangue. Rondônia é hoje um estado que já foi 40% desmatado e isto não trouxe progresso como imaginado. No filme é mostrado o ápice do desmatamento, que ocorreu em 2004: foram desmatados 27 mil km2. Caiu bastante, só que Rondônia, com as duas hidrelétricas que estavam sendo construídas no Rio Madeira, a Santo Antonio e a Jirau, que foram responsáveis pelos maiores desmatamentos legalizados do mundo, hoje é um dos estados que mais desmatou no mundo a floresta tropical. Alguns anos atrás estive nessa região de Rondônia, eu estava fazendo um trabalho sobre índios isolados que recém tinham sido contatados, o povo Piripicura. Por acaso eu encontro em Ji-­‐Paraná o Valmir, que é personagem do filme. O Valmir estava saindo de um exílio de três meses da terra dos Uru-­‐eu-­‐wau-­‐wau porque nessa época ele era vice do IBAMA. Ele tinha sido promovido em relação a quando foi filmado pelo Vicente e pelo Adrian, mas começou a ser muito ameaçado de morte. Um dia, ele estava voltando para o sítio dele e teve a informação de que havia dois pistoleiros esperando para matá-­‐lo, ele não for pra lá e evitou a emboscada. Pediu ajuda para parceiros dele da ONG Canindé, que é uma ONG muito ativa, muito férrea em Rondônia e muito próxima da FUNAI. Através dessas relações que ele tinha com os índios e com essas organizações, foi para a terra indígena de Uru-­‐eu-­‐wau-­‐
wau e ficou três meses escondido lá até que o encontrei nesse hotelzinho, no fim de mundo, em Ji-­‐Paraná, um cara superbranco. E ele estava mais pálido ainda e muito assustado. Isso é o que acontece com as pessoas que trabalham na Amazônia e tentam cumprir a lei, tentam fazer o que é o certo, o bem para a humanidade. O que é essa ética, que é a ameaça de morte, a violência? É uma pressão muito grande de corrupção e as pessoas que não entram nesse jogo são perseguidas. Eu estou organizando – é um bom momento para falar isso – uma grande mostra dos trabalhos do Adrian Cowell, grande parte deles feitos com o Vicente Rios. Isso deve acontecer em julho no Cine SESC. Nós vamos conseguir mostrar muitos filmes. Vários filmes dele estavam degradados, com problemas. Os filmes são todos do acervo da PUC. Alguns conseguiram ser restaurados, nós vamos ter a chance de ver na melhor qualidade possível e com uma grande abrangência do trabalho do Adrian. Vamos ver que é um trabalho poderosíssimo. Algumas das características que me ensinam muito do trabalho do Adrian são: seriedade e pesquisa, um padrão científico de trabalho. Ou seja, ele ouve os pares da ciência sobre o que está acontecendo, ouve as pessoas que estão em campo, tenta ouvir os diferentes aspectos do madeireiro, do cara que mata o índio, e propõe uma reflexão sobre aquilo que está acontecendo. Porque o que está acontecendo na Amazônia não é legal e não é bom. Ele filmou A Década da Destruição, então o filme tem um caráter político dentro desse contexto. Nós pretendemos mostrar um filme que se chama Matando por Terras, que é um filme extremamente violento sobre a região mais violenta do país, e uma das mais violentas do mundo, que é o Sul do Pará. No ano passado fiz um filme ali sobre o casal José Claudio e Maria, que foi assassinado. Eles eram meus amigos e vinham denunciando que sofriam ameaças – e foram mortos. Nesse trabalho do Adrian Cowell, aparecem mais de seis pessoas que foram assassinadas nessa situação, dizendo que iam morrer. Inclusive, um deputado que chega na assembleia legislativa do estado do Pará fala que está ameaçado de morte e à noite ele é morto. São filmes de muita coragem os do Adrian e do Vicente. E essa coragem que eles tinham para expor a vida não é pelo prazer de estar correndo risco. Apesar de que tem a questão da grana ali, era para trazer ao público distante o que acontece lá, e o Adrian foi pioneiro em mostrar a cadeia de consumo através dessa tecnologia. Já existiam casos, na época da borracha, da Inglaterra enviar um embaixador para esta região do Peru onde tinha exploração dos seringais e escravização de índios, e isso impactar no comércio da borracha na Inglaterra. Agora, o que o Adrian fez especialmente com A Década da Destruição e com os filmes posteriores foi extremamente contundente. Em A Morte do Chico Mendes, não é retratado só o Chico Mendes sendo assassinado no Acre, é retratado também o fazendeiro que o matou e quem eram os outros fazendeiros que faziam pressão sobre ele – que naquela época era a Fazenda Bordon, sediada em São Paulo. Ele tentava mostrar aqui em São Paulo, no Banco Mundial, nas instituições financeiras internacionais, qual era o impacto deste investimento deles na realidade da Amazônia. É por isso que eles iam a estes lugares tão perigosos, que além de representar um risco físico a eles também tinha doenças, malária, mal-­‐
estar, tudo o que havia de ruim. Mas por que eles estavam lá? Era importante ser mostrado, infelizmente nós perdemos o Adrian o ano passado, em setembro, quando ele estava vindo para o Brasil, ficaria um tempo aqui, trabalharia no que vinha falando, tentaria fazer novos filmes e tentaria seguir acompanhando a destruição da Amazônia. Só que mesmo que ele não tenha, em razão da idade e da morte, conseguido produzir mais, tudo o que ele produziu é extremamente atual hoje. Em Rondônia continua essa violência, continua esse desmatamento. Eu estive no ano passado em Abunã, no norte de Rondônia, onde foi assassinado o Dinho [Adelino Ramos] por denunciar madeira ilegal. Ou seja, continua tendo isso, todos esses problemas continuam retratados. O trabalho do Adrian e do Vicente foi um dos trabalhos mais influentes na época da Rio 92. Quando o príncipe Charles começou a se dar conta de que era importante preservar o meio ambiente – e o príncipe Charles tem bastante poder na Inglaterra –, isso veio a ter uma repercussão inclusive sobre a legislação que ocorreu depois da Rio 92. Este ano é o ano da Rio +20 e é extremamente importante ver o trabalho do Adrian, discutir, debater e tentar entender o que está acontecendo na Amazônia. E o documentário é essa linguagem direta com a qual a gente capta a expressão, a sensação, as palavras das pessoas de lá, traduz, joga na cara das pessoas aqui e diz: “É isso o que está acontecendo”. É uma ferramenta fundamental, de extrema importância, que não é substituível pela academia, pelo jornalismo escrito ou televisionado. É uma ferramenta muito valiosa, e a situação da Amazônia é extremamente urgente. É cada vez mais importante que São Paulo se dê conta do seu papel. Nós estamos no MIS [Museu da Imagem e do Som] e temos um acervo de áudio muito interessante sobre o que aconteceu na Amazônia entre 81 e 83. Houve uma série de entrevistas feitas aqui no MIS, que está na videoteca, com personagens que eram muito influentes na época dando depoimentos de vida, desde grileiros como Ariosto da Riva até sertanistas como o Orlando Villas-­‐Bôas. Para quem quer trabalhar e quer entender a Amazônia hoje, e aí eu me coloco como um jovem jornalista que está tentando encontrar um meio de reportar o que esta acontecendo lá, é fundamental vermos o que foi produzido, ver o trabalho do Adrian, de grandes jornalistas que trabalharam nessa época, coisas que nos deem um norte. Uma das características que eu estava me esquecendo [de mencionar] do Adrian é a ética. Quando eu vou para esses lugares onde eles filmaram e falo o nome do Adrian ou do Vicente, todos os que eram as fontes deles se sentem orgulhosos de os terem conhecido, tem uma proximidade e muito respeito. Eles tinham e têm ainda uma extrema dedicação com essas pessoas. Se o filme pudesse colocar alguém em risco de vida eles não soltavam o filme, eles não deixavam o filme ser veiculado. Esse filme ia ser veículo na Inglaterra porque era nos Estados Unidos que estavam fazendo a pressão, não lá. Mas esse respeito com quem está lá... Não adianta eu ir lá, filmar e voltar aqui e contar que tal pessoa é ameaçada de morte, porque em razão dessa pressão ela pode vir a ser assassinada. É ela quem fica lá e não nós, que estamos aqui. Essa questão ética também com relação aos personagens que são acompanhados eu acho que é fundamental. Obrigado. Francisco: Muito obrigado, Felipe Milanez. O Felipe falou dessa grande retrospectiva dedicada ao Adrian Cowell. Interessante que nessas semanas a obra dele está aparecendo, reaparecendo, ressurgindo. Na semana retrasada tivemos a exibição no Canal Brasil de algumas obras dele, hoje assistimos aqui a sua derradeira obra. E sexta-­‐feira, no Festival Internacional de Documentários que começa esta semana aqui em São Paulo, será exibido um documentário inédito sobre o Adrian Cowell chamado Coração do Brasil. Quero passar a palavra agora ao diretor deste documentário, o Daniel Santiago, cineasta e produtor que desempenha uma série de atividades no campo audiovisual. Daniel: Boa noite a todos, é um prazer estar aqui no MIS, que está retomando sua vocação de casa do cinema paulista depois de estar um tempo parado. Um prazer estar aqui na mostra. As pessoas aqui apresentadas talvez tenham mais vivência que eu em relação ao Adrian. Então eu gostaria de contar um pouco da minha experiência, de como conheci o Adrian. Em 2008 fui indicado por uma pessoa para falar com um senhor que tinha um projeto de retornar ao centro geográfico do Brasil. Eu não tinha a menor ideia do que isso significava, não tinha a menor informação. Fui levado a falar com o Sr. Sérgio Vaía, que hoje tem 83 anos. Lembro que quando encontrei com o Sérgio foi em um dia muito confuso, eu estava em uma gravação que não terminava nunca e ele estava na casa de uma pessoa me esperando. A cada duas horas eu ligava para ele e dizia: “Sérgio, vou chegar daqui a pouco”. Ele dizia que não estava fazendo nada, que ia me esperar. Nosso encontro estava marcado para as duas da tarde e foi acontecer lá pelas dez da noite. Em duas horas de conversa o Sérgio Vaía me convenceu a ir com ele ao centro geográfico do Brasil. Ele me disse o seguinte: “Em 1958, em uma expedição organizada pelos irmãos Villas-­‐Bôas, fizemos uma jornada de mais ou menos 90 dias para chegar ao centro geográfico do Brasil”. Era uma missão que foi confiada a eles pelo Paulo Arreto, presidente na época da Fundação Brasil Centro. Era um sonho do Juscelino Kubitschek, a dois anos da inauguração de Brasília, e os irmãos Villas-­‐Bôas, que na época tinham dificuldade para conseguir recursos para as expedições, usaram como motivo para buscar dinheiro na iniciativa privada para alavancar algumas dessas expedições. Então, vieram para São Paulo, na sociedade paulista, arrecadaram dinheiro dizendo que iriam, entre outras coisas, marcar o centro geográfico do Brasil. Eles foram atendidos, reuniram os recursos e em outubro de 58, depois de 90 dias de viagem, atingiram o centro geográfico. E o Sérgio Vaía me disse que estava fazendo 50 anos que tinham marcado o centro e que queria voltar lá, que tinha acordado com esse sonho na cabeça, que achava que era possível e que ia voltar. Disse que sabia que eu trabalhava com filmagens e me convidou para ir junto. Aí comecei a pesquisar um pouco sobre o centro geográfico do Brasil junto com meu amigo Ricardo Dias, que está aqui, e a primeira pergunta que nos ocorreu foi: “Quem mais que está vivo esteve no centro geográfico do Brasil em 58?”. Então descobrimos o Adrian Cowell. O Ricardo estava na minha casa e decidimos que precisávamos achá-­‐lo. Por incrível que pareça, dois dias depois o Adrian respondia, em português, que realmente tinha estado no centro geográfico e que coincidentemente estava vindo ao Brasil, naquele ano de 2008, para trabalhar o acervo dele. Que estava chegando na PUC de Goiás, no GPA, onde ele vinha fazendo todos os trabalhos dele e do Vicente. Enfim, conseguimos aproximar o Sérgio Vaía do Adrian num primeiro encontro em Goiânia em 2008. Essa conversa dos dois nós gravamos. O Sérgio então estabeleceu a forma como ele achava que seria melhor retornar ao centro geográfico do Brasil. Me lembro também que o Sérgio não tinha as coordenadas corretas. Ele sabia que essas coordenadas existiam, mas não sabia quem estava de posse delas. Ele tem uma filha que mora em Arraial do Cabo, onde ele guarda parte da documentação dele, e fuçando um baú encontrou as coordenadas do centro. Minha experiência com o Adrian foi, nesse ano de 2008, nossa troca intensa de e-­‐mails (trocamos mais de mil e-­‐mails), ele sempre muito ocupado com filmagens pelo mundo e pelo no Brasil, nunca sabia se seria possível estar aqui nesse momento. Mas as coincidências foram acontecendo e o Adrian está no documentário Coração do Brasil participando e contando como foi sua decisão de ficar no Brasil, como isso aconteceu, o convite que ele recebeu do Darcy Ribeiro para encontrar os Villas-­‐Bôas, essa expedição saindo, os Villas-­‐Bôas dizendo que, como já estavam levando meia dúzia de índios e sertanejos, um inglês a mais ou a menos não ia fazer a menor diferença. E o Adrian embarca nessa expedição de 58 vindo de uma excursão de Cambridge ao Brasil. E confesso para vocês que até esse momento desconhecia totalmente – apesar de trabalhar com documentário, com cinema aqui no Brasil –, como muitos de nós, a imensidão, o gigante documentarista que foi o Adrian Cowell. E a obra dele continua aí representando o que ele foi. Uma pessoa generosa, minuciosa, que compreendeu o Brasil como poucos. E a decisão dele de ficar no Brasil foi em 58, no momento em que ele foi para essa expedição ao centro geográfico. Ele tem o primeiro contato com os índios no posto Capitão Vasconcelos e começa a observar. Ele mesmo dizia que para se ficar são naquela situação era preciso entender o que estava acontecendo ali, aprender, assimilar. Acho que a carreira do Adrian no Brasil começa em 58, e a partir daí ele vai trabalhar 50 anos nessa obra gigantesca que não conhecemos toda, estamos conhecendo o que está disponibilizado. Eu posso dizer que são obras extremamente importantes para o povo brasileiro, para o mundo, para quem estuda e para quem faz documentário, porque desses documentários poderão surgir muitos outros. Cada um tem seu universo de imagens, seu universo de propostas. É isso o que eu queria dizer. Foi um prazer enorme conviver com ele durante o período do filme e enquanto durou nossa amizade. Ele está no coração do Brasil. Francisco: Obrigado, Daniel. Queria agora passar a palavra para Stella Oswaldo Cruz Penido. Stella é pesquisadora adjunta da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. É também coordenadora do Setor de Imagem em Movimento do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. Stella: Boa noite. Primeiro quero agradecer o convite de vir a essa mostra. O Adrian estaria vindo para o Brasil, embarcando no dia 10 de outubro de 2011. Não tem nem seis meses que ele estava com a passagem comprada. Ele estava vindo para o Brasil, indo para o Rio, porque nós íamos, coletivamente – o Vicente, o Adrian e eu –, terminar o projeto Histórias da Amazônia, fazer uma versão em português do filme Killing for Land – Matando por Terras. Tudo já estava andando, o Adrian já estava pilhado e a tradução estava sendo feita. Nós estávamos esperando. Depois nós finalizamos esse filme. Eu pensei no que eu podia falar hoje, até anotei umas coisas para falar um pouco sobre o Adrian. Esse filme que vimos foi o último filme, o último documentário que ele fez no Brasil. Não é, Vicente? Vocês fizeram no Brasil, em 2005. Estamos vendo um amadurecimento de 50 anos de envolvimento com o Brasil, desde essa viagem, a primeira viagem em 1958, quando ele veio com um grupo de estudantes – que você estava contando – de Cambridge pela América do Sul. E quando chegou ao Brasil ele resolveu ficar, essa história que você contou. E a expedição seguiu pela América do Sul e ele ficou no Xingu. O que eu acho mais marcante no Adrian é a natureza humanitária do trabalho dele. O trabalho dele sempre foi movido por uma causa coletiva. Ele sempre pensou em megaprojetos. Ele se direcionou a grandes projetos, mas sempre com foco nas minorias. Em 1967, a convite dos Villas-­‐Bôas, ele volta ao Brasil. Ele voltou na década de 60. Mas o Orlando e o Cláudio o convidaram para filmar o contato com os Kreen-­‐Akrore, os Panará. O Adrian veio e passou dois anos morando no Xingu, e eram equipes de cinegrafistas ingleses que se revezavam de três em três meses. A mulher dele veio, a Pilly, veio com a filha pequena, que devia ter uns cinco anos. Nessa época, se não me engano, a Pilly engravidou, e o filho deles se chama Xingu. Isso em 67, ele devia ter uns trinta e poucos anos. Depois, o projeto de A Década da Destruição nasceu. Desde o início o projeto já se chamava A Década da Destruição, já com a visão “mega” que ele tinha e ao mesmo tempo [o senso de] a importância, sempre conectado com a questão dos índios e das lideranças populares. Ele, na época de 1970, faz uma campanha na Europa indicando os irmãos Villas-­‐Bôas para o Prêmio Nobel da Paz, para dar visibilidade ao projeto do Parque do Xingu. Nós estávamos em uma época de ditadura, então, era importante essa visibilidade dos Villas-­‐Bôas internacionalmente. A mesma coisa durante A Década da Destruição. Ele queria filmar na Amazônia e identificou o Chico Mendes como uma liderança. Então, ele filma desde 85 até o assassinato do Chico Mendes em 88. E também o Adrian se preocupou em projetar o Chico internacionalmente para dar visibilidade ao trabalho dele, que seria uma forma de proteção. E o Chico Mendes ganhou dois prêmios, o Prêmio Global 500 [1990] e outro que não me lembro [Medalha de Ouro do WWF em 1991]. E, ao mesmo tempo, ele era um cara que não gostava de exposição. O fato de que ele era desconhecido no Brasil, tendo essa obra maravilhosa... Eu tive a oportunidade de conhecer o trabalho do Adrian em 98, quando organizei uma mostra de mais de 400 filmes sobre a Amazônia. Um amigo jornalista me disse: “Você tem que conhecer o trabalho do Adrian”. E foi uma dificuldade conseguir as cópias, mas na mesma hora você via que tinha um diferencial. Eram documentários que tinham roteiro. Quando vi pela primeira vez Na Trilha dos Uru-­‐eu-­‐
wau-­‐wau, fiquei totalmente ligada, é um thriller, tem uma ação que está acontecendo, tem uma dramaticidade. O trabalho do Adrian realmente sobressai. Ao mesmo tempo, ele era um cara, como se diz hoje, low profile. Nós fomos à casa dele e vimos os prêmios todos, ele tem alguns BAFTA, Leão de Veneza, milhares de prêmios, todos em um canto. Essa coisa da projeção pessoal para ele nunca teve importância. Era importante ter liberdade para trabalhar e a visibilidade que leva a ter compromissos. Então, ele foi realmente uma pessoa desconhecida no Brasil. Ele não fazia o trabalho dele por isso. Ele dizia que era um trabalhador da televisão, um peão. Ele se via como um profissional da TV. Era muito trabalhador, dizia: “To work!”, vamos trabalhar. Conheci o Adrian pessoalmente em 2003, e como todos os que o conheceram, fiquei superentusiasmada, quis trabalhar junto. Em 2005, tinha terminado um projeto e resolvi ir para Goiânia para ver o que acontecia. Tinha essa história de que o Adrian queria doar o acervo, já tinha um prédio em Goiás no campus da universidade. Era preciso levantar recursos, Lei Rouanet etc, e como eu trabalho em uma área de documentação e também trabalho na Amazônia há 20 anos, pude aplicar esse projeto na Fiocruz e ter respaldo para desenvolvê-­‐lo, captar recursos na Lei Rouanet, desde 2006. E o Adrian participou ativamente de tudo. Quando ele percebeu que eu queria mesmo e que era possível fazer, ele mandou todos os arquivos que ele tinha, o livro, e em 2006 ele esteve no Brasil. A Marina Silva era Ministra do Meio Ambiente. Ele conheceu a Marina no Acre, em 85, tem filmagens da Marina novinha. A Marina já tinha uma carta apoiando a vinda do acervo para o Brasil. E foi um projeto que deu muito certo. Ele quis dar de volta ao Brasil a memória, todos os filmes, todo o material que ele tinha filmado aqui. Como doação, ele não vendeu, com certeza. Alguma universidade nos Estados Unidos compraria, a biblioteca do congresso ou alguma universidade em Londres, mas ele tinha consciência de que esse material tinha que vir para o Brasil e lutou por isso, insistiu para que isso acontecesse. Lá na casa dele em Londres, o porão tinha quatro ou cinco salas com um monte de estantes de ferro cheias de latas, os negativos, as cópias, as versões, os magnéticos. É um material que se duplica, replica. Eram seis toneladas de filme, mas porque veio tudo, o som de um jeito, de outro, de várias formas. E o Adrian conhecia tudo, tinha tudo organizado para a montagem, se precisasse montar algo determinado ele sabia onde estava a imagem. Quando a Marina quis se candidatar à presidência, ele disse que tinha a imagem da primeira conferência nacional de seringueiros, que o som estava bom, que a imagem estava boa, procurou com o Vicente, pegou tudo, nós telecinamos e mandamos para a Marina. Ele tinha consciência de tudo, era um cara perfeccionista, trabalhador, detalhista. Quando estávamos em Londres organizando essas latas todas, empacotando para trazer para o Brasil, o Adrian deu uma festa para as pessoas que trabalharam naquele acervo: produtor, câmeras que estiveram no Brasil, entre outros. Nós entrevistamos pessoas que trabalharam com ele. Eu me lembro de um editor, Terry, falando que o Adrian chegava para editar com o filme pronto. E não tinha muito espaço para a criação do montador. Esse era o Adrian Cowell. Nesse projeto que finalizou agora, com a versão em português do Killing for Land, o Adrian esteve à frente em tudo. Era tudo à mão, ele tinha aquelas listas de edge borders – os números do negativo – e ele tinha aquela disposição para procurar aquilo. Ficamos dois meses em Londres e era trabalho duro: sábado de tarde eu sumia, porque era [trabalho no] sábado até meio-­‐dia. Era muita disciplina no trabalho. Foi uma experiência incrível e me tornou uma profissional muito mais capaz, só tenho a agradecer e cresci muito nesses anos que trabalhamos juntos. Queria falar isso, que o Adrian realmente era uma pessoa incrível e esteve à frente de tudo. Até mesmo esses filmes que estão passando no Canal Brasil ele acompanhou. Fizemos edição de som, porque alguns filmes tinham trilha de música e efeitos, mas outros só tinham a trilha mixada em inglês. Então, tudo foi refeito, tudo foi discutido. Ele trazia as fitas de um quarto com o som original, lá do acervo. Foi um prazer e um privilégio poder trabalhar com alguém tão profissional. Então, quando o acervo chegou, teve uma mostra no Rio, uma mostra em Brasília, teve também no Acre, fizemos umas exibições lá. Outro colega, o Vítor, fez uma mostra em Belém, mas é a primeira vez que em São Paulo tem uma mostra com bastantes filmes, uma mostra bem completa do trabalho dele no Brasil. Apresentador: Obrigado a você. Stella Oswaldo Cruz Penido é autora do texto sobre o Adrian Cowell no catálogo desta Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. É um texto que se chama “O espírito da floresta”, e está na página 79 do catálogo. Agora eu passo a palavra ao Vicente Rios, que foi parceiro durante muitos anos do Adrian. Cinegrafista, fotógrafo, coprodutor; e o Vicente também é vinculado à PUC de Goiás, que tem o acervo. Essa exibição aqui hoje só foi possível graças ao apoio dessa entidade. Vicente: Boa noite. Eu quero agradecer à Ecofalante por essa oportunidade de estar aqui, lembrando o meu companheiro. Ele que foi meu mestre, meu amigo, meu companheiro e um exemplo de profissional e de pessoa, único na minha vida. É um prazer, muito obrigado por estar aqui e ouvir vocês falarem sobre meu amigo. Eu gostaria de dizer que quando o Adrian chegou em 1980, ano em que eu o conheci, ele tinha uma proposta de filmar a Amazônia por um ano. Depois disso, eram tantas coisas, tantas desgraças acontecendo em volta, que ele foi ampliando o projeto. Eu me assustei quando ouvi dizer que tinha um inglês chegando que ia filmar a Amazônia por um ano. Isso em película, que é uma coisa cara, muito cara, principalmente na época. O Daniel sabe disso, os profissionais sabem disso. Nunca vi tanta abundância, aquilo era um presente para qualquer cinegrafista. Eu repetia uma cena sete vezes, se eu quisesse. Um dia eu falei para ele: “Você não está achando ruim que eu fique repetindo muitas cenas?” Ele disse: “O dia que você parar de tentar buscar o melhor, você não serve para trabalhar comigo”. Depois de um tempo, houve um incidente, morreu o avô de um cinegrafista. Até então eu estava fazendo assistência para eles. Então, ele resolveu testar meu trabalho e pediu para ver o material. Ele olhou pessoalmente o material, fez algumas correções de estilo, e a partir desse momento eu passei a trabalhar com ele como câmera, e não veio mais nenhum cinegrafista de fora. Eu montei minha equipe e nós ficamos. Às vezes, o Adrian ficava três meses na Inglaterra e eu ficava na Amazônia filmando e mandando para ele, filmando e mandando para ele. A surpresa é que o trabalho [que seria apenas] de um ano... nós chegamos aos 30 anos de trabalho juntos, que só foi interrompido pela morte dele. Esse filme do Valmir, às vezes nós comentávamos... Se vocês perceberam, o Valmir é uma pessoa destemida que enfrentou com muita coragem todos os madeireiros, e demos até sorte de encontrar o Lebrão, que é aquele personagem que se contrapõe ao Valmir. Mas nós tínhamos uma preocupação, nos perguntávamos se era possível que estivéssemos filmando mais um mártir, se depois do Chico Mendes matariam o Valmir também. Não o mataram, mas tomaram o emprego dele e mandaram ele embora na primeira viagem que a Ministra [Marina Silva] foi. Hoje ele não é mais funcionário do IBAMA e está com algumas dificuldades. Participante: Boa noite. Meu nome é Cláudio. Meu comentário é mais em função do filme do que do diretor, porque infelizmente não conheço sua obra, é o primeiro filme que vejo dele. Vou procurar conhecer mais porque achei muito bom o documentário. O que fica em relação à mensagem do filme, para mim, é o momento ambiental que a gente vive no Brasil. Depois de toda essa luta que tivemos com o Lula entrando, a Marina colocando realmente o pessoal em campo para lutar contra o desmatamento, temos uma reversão total com o código florestal e uma série de eventos políticos acontecendo. Preocupa bastante o momento que estamos vivendo. O que fica claro para mim é que isso é a resposta justamente da elite agrária. Você tem os ruralistas ganhando poder historicamente através de quebras e mais quebras de safras, elegem deputados, senadores e conseguem um contexto político em que eles é que dão as cartas. E isso é o que estamos vivendo agora. Com a Rio +20 acontecendo agora, estão até dizendo que vão deixar a votação do código para depois da conferência e nem sei se isso é bom ou ruim no contexto político que estamos vivendo. Por exemplo, o que é o IBAMA hoje? O IBAMA do Valmir há quatro ou cinco anos era o IBAMA do começo dessa luta toda. Hoje estão acabando com o IBAMA, politicamente falando. Dividiram o IBAMA em dois, temos o Chico Mendes, uma série de órgãos irmãos e politicamente falando, se você conversar com o fiscal do IBAMA que está aí há sete, oito anos na luta, ele vai dizer que tem muito menos poder de estar lavrando esses autos hoje. Mas então eu acho que esse documentário é muito bom para pensar o momento que estamos vivendo hoje. Essa luta do Valmir eu acho uma luta heroica, mas ele estava baseado simplesmente no código florestal brasileiro que hoje está aí a perigo. Então acho que essa discussão é muito importante. Obrigado. Francisco: Alguém mais quer comentar? Participante: Depois dessa fase, dessa repressão das madeiras, o governo federal agiu. Tinha tentado transformar em forma eletrônica [a fiscalização de] o comércio de madeiras. Naquela época se vendiam as ATPF [Autorização para Transporte de Produto Florestal], as notas. Tinha um comércio dessa ilegalidade. E foi o ápice dessa destruição. Aí se pensou, se planejou, “não vamos consertar esse problema, vamos criar uma nota fiscal eletrônica”. Criaram o DOF [Documento de Origem Florestal]. Hoje, o DOF já é tão fraudado que também não funciona mais. O ano passado se tentou destruir a legislação ambiental do Brasil. Um dos pontos era justamente em relação à política de fiscalização do IBAMA. Passou em uma medida provisória, uma pequena frase que dizia que só o órgão que dá licença pode fiscalizar. Então, isso significava que só as secretarias de meio ambiente estaduais poderiam fazer a fiscalização. A sensação é que enquanto se ganha direitos, logo depois vem uma regressão ainda maior. E hoje foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça a PEC 215 [Proposta de Emenda à Constituição que propõe a transferência da demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e áreas de conservação do Executivo para o Congresso], que acaba com as terras indígenas. Só faltou um voto, na verdade, então acabou sendo adiado. E para entender hoje o que eu disse, é fundamental ver o que aconteceu antes, e o acervo do Adrian e o trabalho do Vicente – eu sou absolutamente fã, admiro muito eles – é fundamental e pega toda essa região do arco de desmatamento: sul do Pará, Rondônia, o Acre, o Mato Grosso, algo que não está tão forte no Década [da Destruição]. Aqui nós entendemos o contexto do que está acontecendo hoje. Vai entender Vale em Carajás vendo Montanhas de Ouro, violência vendo Matando por Terras. A Floresta que Virou Cinza [publicação especial do Instituto Observatório Social], o que acontece quando uma estrada é aberta na Amazônia, como a 319 que está para ser asfaltada entre Manaus e Porto Velho. A Floresta que Virou CInza mostra o que vai acontecer, é uma aula de história mesmo. Participante: Eu me chamo João Carlos, sou padre. Quatro anos e meio já de Amazônia Legal, dois anos e meio trabalhando com os indígenas do Alto Rio Negro, dois anos no Mato Grosso com a questão da soja. Minha pergunta seria mais direcionada ao Felipe e à Stella. Na semana passada, a Dilma nomeou a primeira mulher para presidir a FUNAI. Qual era a visão que o Adrian tinha sobre as entidades governamentais, como a FUNAI, o próprio IBAMA, que nós observamos no documentário, que é um documentário muito na linha do CPT, da Comissão Pastoral da Terra, do Cimi [Conselho Indigenista Missionário], que são duas comissões hoje na Igreja que também levantam todas essas questões que ele tão bem levantou? E o contato que eu tive de referência infelizmente também como colega é pouco. Até porque São Paulo é só por questão de estudo. Estou com um projeto de voltar para a Amazônia agora no segundo semestre. Três anos com os Ianomâmis. Qual era a visão que o Adrian tinha dessas entidades governamentais? Porque as ONG já deram o que falar também. Felipe: Acho que é importante ouvir o Vicente também, porque ele foi numa expedição da FUNAI acompanhando o Apoema Meireles, um dos maiores sertanistas da história do Brasil. Em 2010 completou 100 anos do indigenismo rondoniano no Brasil, de quando Rondon criou o SPI [Serviço de Proteção ao Índio]. Eu fiz um evento em que chamei alguns sertanistas para contar as experiências deles, e chamei o Adrian, porque para mim o Adrian era um documentarista sertanista. A visão do Adrian sobre a questão era uma visão muito moldada no convívio que ele teve com grandes sertanistas, que não são valorizados no Brasil e nem necessariamente pelo meio indigenista. Se colocarmos a academia, existe certo conflito entre os sertanistas e os antropólogos. O Adrian defendia quem estava em campo, lá nessas áreas, contemporizando a capacidade de decisão que os sertanistas têm frente à tragédia que está para acontecer. O que ele presenciou quando recém teve que ir... Ele fez uma série, A Destruição do Índio [segmentos Carnaval da Violência, 1960; Caminho para Extinção, 1961; e O Coração da Floresta, 1961], na qual mostrava a preocupação dos sertanistas em proteger as culturas indígenas. E foram filmes superinfluentes para a criação do Parque do Xingu. Hoje nós estamos assistindo à destruição desse ganho, desses direitos, dessas terras indígenas. O Adrian tinha uma visão [clara] nas conversas que eu tive com ele e nos filmes que ele fazia, que era defender o papel da instituição, do Estado, como um protetor também dos direitos indígenas. Ele começou a trabalhar nessa questão antes da criação da FUNAI, quando ainda era o SPI. Então, o Adrian tinha uma visão rondoniana, extremamente dedicado, e dizia que aprendeu – isso a Stella conta bem melhor do que eu, com mais detalhes, a relação dele com o Cláudio Villas-­‐Bôas – lá com sertanistas, em campo, a lidar com os índios. Isso forma uma visão muito particular dele, que é diferente da visão teórica [que se tem] do índio, mas é a visão do índio enfrentando o progresso. E ele acompanhou. Existem alguns filmes dele, como os sobre os Kreen-­‐Akarore e os Uru-­‐eu-­‐wau-­‐wau, que ele filmou durante 20, 30 anos. Então, ele consegue mostrar daqueles povos o primeiro contato, esses povos sendo massacrados e dizimados, e depois tentando sobreviver e enfrentar a extinção. É uma visão extremamente sofisticada. Com relação à atual presidente da FUNAI, o Brasil está vivendo um momento muito difícil. É uma pena não termos o Adrian para nos ajudar a, pelo menos, registrar o que vai acontecer. A Marta Azevedo é uma intelectual da UNICAMP, tem experiência em trabalho com isso. A questão é o que ela vai conseguir fazer com um governo que tem uma política oficial de extrair as riquezas e as commodities da Amazônia; e vender isso e tentar, enfim, não sei, distribuir a riqueza, ou o que vai acontecer. Mas será que a FUNAI hoje consegue enfrentar uma bancada ruralista de 150 deputados que está acabando com o código florestal, que quer implantar a mineração em terra indígena, que quer acabar com as terras indígenas, que quer enfiar hidrelétricas em áreas de índios isolados? O mundo hoje está bem feio. Tomara que ela tenha força. Stella: O Adrian falava recentemente que ele filmou a destruição da floresta, e que ele queria filmar o fim da destruição da floresta. E ele acreditava, na época de 2009, 2010, em que tinha muita discussão sobre os créditos de carbono, que isso seria uma solução para a floresta em pé, daria valor à floresta em pé. E que ele ia fazer um filme sobre o fim do desmatamento... Vicente: Sim, por isso nós fizemos um filme que se chama Dinheiro na Árvore. Quando alguém diz: “Dinheiro não dá em árvore”... Agora vai dar. Stella: Agora é responsabilidade da PUC de Goiás. O Adrian tem quatro livros escritos, um deles se chama A Década da Destruição. Nos Estados Unidos, e acho que também na Inglaterra, eram vendidos junto com os filmes da série A Década da Destruição. Então, os livros estão aí, a universidade tem os direitos para a tradução. O Adrian dizia que o Brasil é o único país que ele conhecia que tem escola de indigenistas. Que a questão do indigenismo no Brasil evoluiu, primeiro com Rondon, depois com os Villas-­‐Bôas, que criaram o Parque do Xingu; e que o Rondon reconheceu que a política dos Villas-­‐Bôas era melhor que a dele. E depois da experiência do parque, sertanistas como Apoena Meireles e Sidney Pozuelo evoluíram para uma política de não contato com os índios isolados. Quando o Sidney foi presidente da FUNAI, acho que em 86 ou um pouco antes, conseguiu fazer um departamento na FUNAI para os índios isolados [Sidney Pozuelo foi presidente da FUNAI de julho de 1991 a maio de 1993, mas como funcionário de carreira foi chefe da Frente de Atração dos Araras na década de 1980]. Então, você demarca a área para não haver contato. Claro que isso tem mil desdobramentos, tem mil questões, mas é só para dizer que o Adrian pensava a questão do indigenismo no Brasil e acreditava... Quando você vê a questão da fronteira do Brasil com Peru, o Peru não tem nenhuma política para os índios isolados. Os índios isolados do Peru estão vindo para o Brasil, porque aqui eles têm mais. É uma discussão muito extensa. Agora, acho que a questão ambiental no governo da Dilma está regredindo. Acho que não existe um foco na questão ambiental. Acho que teve um desmonte do IBAMA. Naquela época, o presidente do IBAMA era o Marcus Barros [janeiro de 2003 a abril de 2007], uma pessoa que eu conheço, que é um médico da maior seriedade. É amazonense. Fez um trabalho seriíssimo no IBAMA, aquela operação Curupira [julho de 2005], na época em que a Marina era ministra. Denunciaram a corrupção dentro do IBAMA. Hoje em dia a questão ambiental não está sendo levada a sério realmente. Eu concordo com o Felipe, estamos em um momento em que a questão não está sendo considerada. Tudo o que aconteceu, com o que estamos vendo com o código florestal, com o Aldo Rebelo, tudo isso que a política está mostrando está tendo uma regressão nessa discussão. Vicente: Eu achei interessante o que a Stella falou sobre a divisa do Brasil com Peru porque eu andei nessas regiões todas com sertanistas, e uma das coisas que me impressionaram está exatamente nesse ponto: os índios peruanos estão entrando no Brasil. Se você vê aqueles índios Campa que tem lá, tem muitos peruanos, não tem nada de brasileiros. Inclusive a indumentária deles é roupa de frio, esqueci o nome, parece uma bata de padre que vem até o pé, de algodão muito grosso [cushma]. O que ela estava falando é uma realidade, isso já está comprovado lá. E também, se você for para o Acre, na divisa do Brasil no Acre, lá você vai ver quantos seringueiros estão dentro da Bolívia. A fronteira ali realmente está ao deus-­‐dará para todos os lugares que você vai. Eu queria só comentar uma coisa. As pessoas às vezes se perguntam por que o Adrian doou essas sete toneladas de filme para a universidade. É porque nesses 30 anos a universidade firmou convênio com o Adrian, e nesses convênios ele estava legalizado para entrar no Brasil e a universidade cuidava da documentação de importação temporária desses equipamentos que iam e voltavam. Então, vem daí o papel da universidade e com isso a universidade tinha os direitos desses filmes na língua portuguesa. Participante: O Daniel comentou sobre o Darcy. Eu sou de Montes Claros, sou conterrâneo do Darcy Ribeiro. Qual foi o contato do Adrian com o Darcy e por que houve a solicitação da Fundação Darcy Ribeiro por esse arquivo? Stella: O que o Vicente está falando é que a partir de 80 o Adrian filma no Brasil, filmou 10 anos ininterruptamente, e fez uma parceria. Ele fez uma coprodução com a Universidade Católica de Goiás. O Vicente é cinegrafista há trinta anos do trabalho dele, então, é mais do que justo que esse material fosse para Goiânia. Faz, sim, todo o sentido. O Vicente conhece as imagens. Vamos dizer que o material de A Década da Destruição seja 80% do acervo. Vicente: Mas eu acho que a pergunta dele não é essa, me parece que ele perguntou sobre o Darcy Ribeiro, não? Participante: A relação do Adrian com o Darcy Ribeiro. O Daniel comentou que tiveram contato. Vicente: Sim, ele falava disso com muito orgulho. Não só com o Darcy Ribeiro. Ele tinha muito orgulho de falar que foi amigo dele. Tem muito orgulho quando fala disso, é com muito orgulho que fala de todo esse pessoal que conheceu e que o orientou quando ele era um jovem recém-­‐chegado que não tinha muito conhecimento do histórico brasileiro. Tem um filme em que ele fala isso. Felipe: Complementando a tua pergunta, porque eu já tive o prazer de ouvir o Vicente falar disso, seria legal se o Vicente contasse da relação do Apoena na expedição em que vocês foram juntos. O Apoena era um sertanista. Como é que o Adrian se colocava nessas expedições? Como é que vocês faziam para acompanhar a FUNAI? Qual era a relação de confiança com o sertanista? Vicente: Nós sempre fomos muito orientados pelo Apoena naquele trabalho. Ele determinava qual seria o procedimento, como os cuidados que deveríamos tomar. O Apoena e o Zebel, que era o chefe do posto. Então, era tudo dentro de uma linha de pensamento, de raciocínio deles, de comportamento, de como andar... Por exemplo, eles sempre nos diziam: “Vocês andem armados e deixem os índios perceberem que vocês estão armados, porque todos eles já levaram chumbo e todos eles já mataram muitos brancos, então, eles vendo a arma vão tomar mais distância de vocês”. Mas, mesmo assim, eles quase me mataram. Felipe: Aconteceu uma coisa... Andando na casa do Vicente, em Goiânia, eu falei: “Vicente, que bonitas essas flechas aqui”. E ele disse: “Essas são as flechas que os índios atiraram em mim para me matar”. Griselda: Oi, boa noite. Meu nome é Griselda, eu trabalho no Instituto Votorantim. Eu queria saber do Vicente, entre tantos momentos, qual você acha ou qual você definiria, se é que tem algum, o mais bonito. Eu não sabia que o Adrian teve um filho, e pôs o nome Xingu, na Amazônia. O que você definiria como o mais bonito, se é que tem um. O mais crítico, o mais tenso. O que mudou de lá para cá, do tempo que você viveu até hoje, e qual seria o caminho para melhorias. Vicente: A coisa mais linda desses 30 anos foi o primeiro contato com os Uru-­‐eu-­‐wau-­‐wau. É uma coisa muito fascinante, porque você está contatando quase um alienígena, porque é uma forma única de ser, de estar, de ver o mundo. Então, você está fazendo um contato fascinante, indescritível. É muito impressionante. Por exemplo, eu ficava lá no mato, barba muito grande, cabelo muito grande, ficava meses e meses. Nos primeiros contatos, eles chegaram e eles se encabularam comigo, com a minha barba. Eles puxavam a minha barba, puxavam o cabelo das minhas pernas. Eu acho que na cabeça deles eles pensavam: “Esse cara é um macaco grande, branco”. Era tão impressionante isso que, por exemplo, o Jesko von Puttkamer, que era experto na questão indígena também, que esteve com Cláudio, Orlando... No primeiro contato, um índio chegou até mim e pegou a minha mão, e ficou massageando a minha mão. E eu pensei: “Esse cara está dando uma simpatia, uma amizade comigo”. E fui falar com o Jesko, “Jesko, aquele índio tem uma característica de muito amigo meu”. Ele falou “Por quê?”. Falei “Ele pegou a minha mão e ficou apertando minha mão”. Aí, o Jesko falou: “Fica esperto, eles adoram comer cartilagem”. Griselda: Na verdade você falou o mais bonito. Eu queria saber o mais tenso, o mais crítico que você acha que vocês vivenciaram. Vicente: O mais feio? O mais feio, não triste, mas a maior adrenalina foi o dia em que os índios tentaram me matar. Porque nós estávamos em um posto da FUNAI completamente isolado. Nós ficávamos lá e a comida chegava de avião. Nós abríamos uma pista de pouso. Sempre estávamos em uma condição... Tínhamos rádio, que passava para Porto Velho. Nós sabíamos a que horas o avião chegava. E quando o avião chegava todo mundo corria para a pista, e a pista era distante uns 4 km, 5 km. Então, nós recebemos a notícia de que o avião estava chegando, e todo mundo foi para a pista para aguardar as “iguarias” que iam chegar, porque nós ficávamos em condições, às vezes, até de meio subnutridos. Então foi uma leva para a pista de pouso, uns quinze ou vinte, não me lembro bem. E ficamos eu e o Adrian, que estava em uma rede escrevendo uma carta. E os índios rondavam nessa época o nosso acampamento. Às vezes, nas noites sem lua eles vinham e abriam as palhas para nos observar lá dentro. Nós estávamos com lamparinas, às vezes com lampião, uma vela acesa, lendo, alguma coisa nesse sentido. Então, foi aquela leva de gente muito grande para a pista e eu fiquei do lado de fora, escrevendo debaixo de uma árvore. Escrevi, passei diante da rede do Adrian, pedi um envelope, e fui para o barracão onde eu dormia. Estava sozinho lá, endereçando a carta, quando escutei um barulho. Eu olhei entre as frestas do rancho e os vi, nus. Dos índios que estavam conosco, nenhum ficava nu. Aí o coração começou a bater. Eu saí, eles queriam me matar pela janela, mas a janela abria para dentro, eu estava em uma quina de parede e acho que eles não me viram. Então se comunicaram entre eles. Quando os vi, corri para onde estava o Adrian, mas na minha correria eu não corria, saltava como um canguru. Era jovem. E eu escutei as flechas passando. E eu caí no meio da correria. Quando caí, já saquei e atirei, mas sem mira, sem nada. Não tinha tempo para isso. Eu entrei pela porta, o Adrian levantou também, tinha outro índio Suruí e ele atirou também. Eles correram e entraram no mato. No dia, é impressionante, eu não senti nada. Mas, um dia depois, eu voltei e fui lá para o nosso estoque de remédios e falei: “Peguei malária de novo, me dá remédio para a malária”. “Por quê?”. “Eu pego em mim e até no meu cabelo dói”. Então o Adrian, mais experiente, virou para mim e disse: “Não, você não está com malária, foi a adrenalina”. Eu falei: “Eu estou com malária, já tive malária, sei como é”. Ele insistiu e não me deixou tomar o medicamento. Era adrenalina mesmo, é impressionante o que ela faz. Participante: Um pouco completando a pergunta da Griselda, como é que você vê a evolução, você que participou desde o começo da década de 80? Como é que foi esse trabalho e o que você vê de diferença de lá para cá nessas várias regiões na Amazônia durante todas essas décadas? Vicente: Sinceramente, eu não acho que mudou tanto. Porque a devastação continua, os índios continuam acuados em algumas regiões. Ainda tem índios sem contato em vários pontos do Brasil. Tem índios completamente isolados, sem nenhum contato com a civilização. Eu não vejo grandes mudanças. O desmatamento continua. As invasões continuam. O conflito de terras continua, como o próprio Felipe filmou agora. Então, eu acho que de tudo o que nós filmamos, nada literalmente, vamos dizer, saiu do negativo e entrou no positivo. Eu não vi isso, infelizmente. Participante: Boa noite, meu nome é Márcio Laje Nogueira. Eu, na sexta-­‐feira próxima, às 14h30, vou, convidado pelo assessor do prefeito, o presidente da câmera, expor um projeto em que nós trabalhamos e achamos muito relevante para a cidade de São Paulo. Aqui nessa reunião tem pessoas ligadas diretamente ao meio ambiente, são mestres, professores, representantes de grandes grupos, e temos diversos tipos de temas. O último em pauta foi sobre os indígenas. Para mim, nós temos um grande débito com Deus e com eles. Os indígenas foram os primeiros moradores desse Brasil. Eles estão acuados porque são raça pura. Eles são acuados porque não têm defesa. As leis que os regem são sagradas, da natureza. Nós estamos profundamente errados, em todos os sentidos: social, político. Nós temos uma devastação para qual fizemos um projeto [de reflorestamento] em Brasília. A nossa proposta era de três bilhões de mudas por mês. De 513 deputados, eu estive pessoalmente com mais de 150. De 81 senadores, apresentei a proposta pessoalmente a mais de 25. Não procurei patrocínio, não procurei nenhum partido político, mas sim pessoas dignas e de bom-­‐senso. A nossa proposta seria a renovação de matas ciliares, renovação de mata atlântica e árvores frutíferas para a diminuição da fome no nosso querido país. Essa proposta foi feita uns sete ou oito anos atrás perante diversos senadores, e percorri diversos gabinetes. Teoricamente, fui muito bem recebido, mas na prática não funcionou nem 10%. De 25 anos para cá, foi destruída a obra que Deus nos deixou, esse paraíso, e somos nós que deixamos aqui virar um inferno. Nós temos consciência disso. E vem um partido, vem uma linha de raciocínio medíocre, mentirosa, e a cada dia estão destruindo a nossa casa. Eu faço a pergunta aos grandes dirigentes mundiais, Estados Unidos e China, que fizeram o pacto do Tratado de Kyoto e de respeitar a lei de Deus. Hoje, em termos de mata atlântica, não tem nem 10%. Nós tivemos uma onda agora, há pouco tempo no Japão, que destruiu diversas pessoas. Eu sou contra, totalmente, a retirada de petróleo. A próxima onda que vai vir, vocês têm ideia de quanto vai ser, o tamanho, a dimensão? Eu acho que esse é um assunto de sobrevivência do planeta. A questão é relevante, urgente, é parar a exploração inadequada de um produto, que é o petróleo. Nós temos diversas fontes alternativas. Nós temos agora esse problema da [Usina Hidrelétrica de] Belo Monte. São 400 mil hectares, e depois vão inventar o quê? A Bela Feia? Bela Linda? Porque vocês sabem que o objetivo dessas grandes serrarias são milhões e milhões de metros cúbicos de madeira. Nós tínhamos energia solar, eólica, atômica – sou a favor da energia atômica dentro de certos padrões. O que estamos vendo diariamente é a realidade. Acho que tem que parar neste país o corte de madeira. Para, não corta mais madeira. E essas pessoas que precisam do emprego, fazemos o inverso: plantam árvore, renovam. Temos um turismo ecológico de observação que está em evidência no mundo todo. Por que o ser humano não ouve mais o canto do pássaro? Por que a ninguém diz mais “Eu te amo”? Eu trouxe aqui algumas espécies de eucalipto, de Pyrus Eriotis, que temos essa alternativa de plantio para evitar o corte de madeira de lei. E trouxe uma árvore raríssima, um ipê verde. Quero que seja sorteada, porque da mesma forma que esta árvore é nobre e rara, uma reunião como esta é nobre e rara. Muito obrigado por tudo. Felipe: Eu sempre fui fã do Adrian e muito fã do Vicente, e tem uma das histórias dele que eu acho muito legal. O Vicente filmou o embate do Chico Mendes e filmou o fazendeiro do embate que queria matar o Chico Mendes. Depois o Vicente fica lá dormindo em um hotelzinho no Acre, só ele ali, e liga para o Adrian morrendo de medo. Como que foi essa história? É muito interessante esse acompanhamento do Chico Mendes. Vicente: O problema é que quando eu fui fazer o filme, primeiro eu entrei conversando com o pessoal da Bordon, e eu disse a eles que eu era um estudante universitário que estava indo lá para filmar o belo e grande progresso do Acre. E com isso um fazendeiro abriu a fazenda dele e fez lá um belo almoço para mim. Eu passei o dia lá com ele, fiz entrevistas com ele, e no outro dia eu estava com o Chico fazendo um empate dentro da fazenda dele, da derrubada da fazenda. O problema é que a notícia se espalhou e eu fui para Xapuri e só tinha um único hotel lá, o Veneza Palace Hotel. Em cima tinha um “ratódromo”. E o problema foi que descobri que meu vizinho de quarto era exatamente o gerente da tal fazenda. Foi muito constrangedor ter que ficar encontrando com ele nos corredores; e ele com uma cara muito feia para mim. Participante: Com relação ao Adrian, a produtora dele se chamava Nômade Filmes. O Adrian nasceu na China, e o trabalho que nós conhecemos dele aqui no Brasil, segundo a Charlotte Cowell, a sobrinha dele, esse mesmo volume de trabalho o Adrian fez em relação à Ásia. Esse acervo do Adrian que estava no GPA, na PUC de Goiás, é uma parte apenas do seu trabalho geral. Então, tem muito mais coisas para se descobrir ainda. Felipe: Só uma coisa em relação a isso. Ele ficou um ano e meio preso em uma guerrilha da Birmânia, quando ele fez a série Opium, que é a A Década da Destruição da Ásia. Eu não vi ainda, estou louco para ver. Vicente: É muito bonito. Quem trabalhou com ele lá, na guerrilha com Kon San, que era o rei da papoula, que foi vendido para os Estados Unidos na época do governo Nixon. Quem trabalhou com ele, que hoje é um cara muito famoso no mundo do cinema, foi o Chris Menges, que fez A Missão, Os Gritos do Silêncio, ganhador de dois Oscar [como diretor de fotografia dos filmes mencionados]. Que é amigo e vizinho lá da casa dele também. Felipe: Uma coisa que a viúva do Adrian me contou agora em Washington, depois que ele fez essa série, ele apresentou esse filme no congresso americano para mostrar como a política americana de drogas estava impactando na ditadura da Birmânia e na repressão aos guerrilheiros. Ele foi lá aos Estados Unidos e mostrou: “Vocês têm culpa nisto que está acontecendo”. Está no filme e ele debateu isso no congresso, nos anos 70. Apresentador: Stella, eu queria que você falasse, em linhas gerais, qual é o estado dessas sete toneladas de material que vieram. Qual é o plano de pensar, catalogar, restaurar essa obra. Do Felipe, queria saber o que ele espera dessa grande retrospectiva que vocês estão pensando da obra do Adrian, e que vamos ter acesso a partir de agora. Obrigado. Stella: Tivemos muito cuidado no transporte, fizemos muita pesquisa, o acervo veio de avião. Fizemos medições de umidade e temperatura em Londres e Goiânia, para que o material fílmico não sofresse estragos pelo choque térmico. Os negativos estão em muito bom estado. O Adrian filmou A Década da Destruição com muito dinheiro, então, de tudo o que ele filmou ele fez positivo das imagens e o magnético perfurado com som que ele capturava com o Nagra com quartzo. Nas latas onde ele guardava o positivo e o magnético perfurado do som, o magnético dava uma reação química nas latas de ferrugem. E o Vicente quebrou em dois meses dois aspiradores de pó só de aspirar o pó de ferro que ficava nas latas. No final, trabalhávamos todos de máscara porque sentíamos no ar o pó de ferro. Quando o acervo chegou aqui, fizemos uma mudança no projeto. Encomendamos da Cinemateca Brasileira quatro mil estojos e foi mudado em Goiânia. Não sei se já mudou tudo, foi um processo longo porque a Cinemateca estava mudando o molde, não foi algo tão simples. Compramos com o projeto quatro mil estojos para acondicionar esses filmes. No acervo, tem um engenheiro da Universidade Federal de Santa Catarina, o Saulo Güths, que desenvolveu um método que ele chama Reax, um aparelho que ele coloca em cima do split e que controla umidade e temperatura no acervo. Nós não temos isso na Casa Osvaldo Cruz, mas o GPA tem em duas salas, na do acervo e na outra sala de trabalho. Tenho a consciência tranquila de que tudo foi feito tecnicamente para que o material fique bem preservado. E agora tem que ter um controle, um trabalho de identificação das latas, que é um trabalho para várias vidas, não é, Vicente? Fala um pouco sobre como está sendo o trabalho de identificação dos filmes etc. Vicente: O problema agora é esse, catalogar, fazer a decupagem. Nós temos lá uma moviola que o Adrian também doou para nós. Então, pegamos esses positivos e identificamos a região, os personagens, as pessoas, os motivos e o que está sendo abordado. Tem muito trabalho pela frente e, com a partida do Adrian, só fiquei eu para poder identificar esse material agora. Está tudo sendo identificado e passado para dentro do computador, vai ser muito longo ainda, mas está tudo muito bem guardado e cuidado. Felipe: Para mim, é muito difícil fazer essa mostra. Eu vinha pensando há alguns anos em trazer o Adrian, contribuindo para ele ter reconhecimento em vida no Brasil. Meu objetivo era mostrar praticamente todos os filmes feitos no Brasil e provocar uma mesa de debate com o Adrian. Ele ia ficar duas semanas em São Paulo vendo todos os filmes e trazendo pessoas que participaram dos filmes para conversar, junto com o Vicente, antropólogos da época, sertanistas da FUNAI, algum índio que viveu. Seria uma espécie de despedida do Adrian, e isso foi interrompido pela morte dele com 77 anos, mas que eu considero completamente prematura porque o Adrian era uma pessoa muito ativa. Então, a proposta da mostra foi refeita, contando com a ausência do Adrian. Ela é construída em torno do lançamento desse filme Matando por Terra, que é um filme extremamente violento, extremamente real, chocante, atual. Para mim, que vivo em regiões de conflito, que perdi amigos assassinados, o José Claudio e a Maria, é atual isso que está acontecendo ali. Provocar um debate em torno da violência, porque isso não é discutido no Brasil, como com as mudanças climáticas, a produção de energia, não está na questão do código florestal, é como se a violência na Amazônia não existisse. Mas eu considero a violência como o principal problema da Amazônia, porque é difícil ter algum outro problema quando uma pessoa está dando uma entrevista para você com uma bala mirando sua cabeça, como foi o caso do José Claudio. Vai ser mostrado esse filme com o Vicente, com um trabalho de muita divulgação, porque o Vicente é que tem risco de ser perseguido por conta desse filme, além de outras pessoas. A mostra é um trabalho que estamos fazendo de tentar mostrar o máximo, tudo o que tem. Inclusive o que está degradado, que é uma conversa que estamos tendo para que seja projetado da melhor forma o que está degradado, para chamar a atenção para o fato de o Adrian ter o trabalho mais importante de documentação visual do Brasil e da Amazônia. E de que isso não pode ser abandonado. Então é para tentar conseguir recursos para o trabalho de restauração que a PUC de Goiás precisa, para mostrar que o filme está degradado, mas que é importante ser visto. E a partir daí ele vai ter que ser restaurado. Existem projetos, pessoas como a sobrinha do Adrian, a Charlotte, que mora aqui e quer ajudar, trabalhar junto com a PUC de Goiás para restaurar os filmes dele. O meu sonho é que a A Década da Destruição vire – não sei como a PUC de Goiás vai fazer isso – uma caixa de DVD e se popularize, que tenha em tudo quanto é lugar. A Bárbara, viúva dele, diz que tudo o que o Adrian queria era que os filmes dele fossem vistos. Se os filmes dele fossem vistos nas escolas, no segundo grau, se houvesse um convênio com a PUC de Goiás... Já perdemos essa geração. Temos o pior congresso da história, esses deputados pensam: “Quem vier depois que se vire, por que pensar nos netos se precisamos de energia agora?”. Talvez o Adrian ainda não tenha conseguido dialogar com quem está vivendo hoje, mas com certeza esse material sendo bem guardado e bem divulgado para as próximas gerações vai dar para que as pessoas que virão entendam como foram deserdadas da Amazônia. 

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