DJAN OU A ALMA
Transcrição
DJAN OU A ALMA
DJAN OU A ALMA ANDREI PLATÓNOV TRADUZIDO DO RUSSO POR ANTÓNIO PESCADA ANTÍGONA 5 Ao fim de seis dias de viagem pelo Kúnia-Dária, Tchagatáev avistou Sari-Kamich. Durante todo esse tempo levara atrás de si o camelo reanimado, que já conseguia caminhar com as suas próprias forças, mas ainda não podia transportar um homem. Tchagatáev sentou-se na orla do areal, onde a areia acaba, onde a terra desce para a depressão que vai até ao distante Ust-Urt. Ali estava escuro, e era baixo, e Tchagatáev não avistava em parte nenhuma nem fumo, nem uma iurta – apenas um pequeno lago ao longe brilhava. Remexeu com as mãos a areia; estava na mesma: ao longo dos anos, o vento soprara-a ora para a frente, ora para trás, e a areia envelhecera da sua eterna permanência no mesmo lugar. Ali o trouxera em tempos a mãe pela mão e o mandara ir viver sozinho, e ele agora regressava. Continuou a avançar com o camelo para o interior da sua terra natal. Os arbustos selvagens erguiam-se como homens velhos pequeninos; não tinham crescido desde o tempo em que Tchagatáev era criança e pareciam ser as únicas criaturas daquele lugar que não se tinham esquecido dele, porque eram tão pouco atraentes que isso os fazia parecer submissos, e era impossível acreditar na sua indiferença ou na sua desmemória. Tão disformes e pobres como eram, só podiam viver da memória ou da vida alheia, e de nada mais. Tchagatáev gastou alguns dias a vaguear por aquela região da sua infância, em busca de pessoas. O camelo continuava a segui-lo livremente, receando a solidão e o tédio; por vezes ficava muito tempo a olhar para o homem, tenso e atento, pronto a chorar ou a sorrir, atormentando-se pela sua incapacidade. 35 Apesar de pernoitar em lugares desabitados e de ter já esgotado toda a sua comida, Tchagatáev nem por isso pensava muito no seu bem-estar. Dirigia-se, apressado e inquieto, para as profundezas da depressão deserta, pelo fundo de um antigo mar. Só uma vez se deitou a meio da caminhada do dia e se apertou de encontro à terra. De imediato começou a doer-lhe o coração, e Tchagatáev perdeu a paciência e a força para lutar; começou a chorar por Ksénia, envergonhando-se do seu sentimento e renunciando a ele. Via-a agora perto de si, na mente e na recordação; ela sorria-lhe com o sorriso triste de uma pequena mulher primeva, que só é capaz de amar na sua alma, mas não quer abraços e tem medo dos beijos como de uma mutilação. Vera estava sentada à distância, a costurar roupas de criança, encurtando a separação do marido e já quase indiferente a ele, porque no seu interior se agitava e atormentava outro ser humano, ainda mais amado e mais desamparado. Ela esperava por ele, desejava ver o seu rosto e receava separar-se dele. Mas reconfortava-a pensar que ainda durante muitos anos poderia beijá-lo e abraçá-lo quando quisesse, até que ele crescesse e lhe dissesse: «Basta, mamã, de me importunares. Estou farto de ti!» Tchagatáev ergueu a cabeça. O camelo mastigava umas pobres ervas ressequidas, uma pequena tartaruga olhava penosamente com os seus olhinhos negros e ternos para o homem deitado. O que tinha ela agora na sua consciência? Talvez um pensamento mágico de curiosidade pelo homem enorme e misterioso, talvez a tristeza de uma mente meio adormecida. – Não te deixaremos sozinha! – disse Tchagatáev à tartaruga. 36 Preocupava-se com tudo o que existia como se fosse sagrado, e o seu coração era demasiado avarento para não reparar naquilo que pudesse servir de consolação. Continuou o caminho com o camelo, em direcção ao Ust-Urt, onde mesmo no sopé de uma colina vivia um velho esquecido. Passava as noites num abrigo escavado na encosta seca da colina, e alimentava-se de pequenos animais selvagens e de raízes de plantas que cresciam nas fendas do planalto. A muita idade e a indigência tinham-no tornado pouco parecido com um homem. Tinha vivido muito para além da idade de homem, todos os seus sentidos estavam satisfeitos e a sua mente estudara e memorizara a natureza local com a precisão de uma verdade esgotada. Até as estrelas, muitos milhares delas, ele as conhecia de cor, por hábito, e estava cansado delas. Chamava-se Sufian; vestia um velho capote de soldado russo dos tempos da guerra de Chiva, usava boné e trazia os pés enrolados em trapos. Quando viu Tchagatáev, saiu da sua morada de terra ao encontro dele e fitou o espaço com os seus olhos desacostumados de ver gente. Na sua direcção caminhavam um homem e um camelo. Sufian reconheceu de imediato aquele caminhante e ficou secretamente amargurado por não haver para si nada de desconhecido. – Eu conheço-te – disse ele a Tchagatáev. – Tu eras o miúdo Nazar. – Mas eu não te conheço – respondeu Tchagatáev. – Não me conheces porque vives da mesma maneira que comes: aquilo que entra em ti volta a sair depois. E em mim tudo permanece. 37 O velho enrugou a cara, a tentar lembrar-se de um sorriso de saudações, mas a sua cara, mesmo em repouso, parecia a pele vazia de uma cobra morta e ressequida. Surpreendido, Tchagatáev tocou na mão e na testa de Sufian. Ninguém se preocupava com a vida e com os vivos, mas agora chegara o tempo... Tchagatáev disse ao velho que vinha de longe por causa da sua mãe e do seu povo. Mas existiria esse povo ainda neste mundo, ou teria acabado há muito? O velho ficou calado. – Encontraste o teu pai em algum lugar? – perguntou. – Não. E tu conheces Estaline? – Não conheço – respondeu Sufian. – Ouvi uma vez essa palavra a um homem que passou por aqui. Ele disse que era uma boa palavra. Mas eu acho que não. Se é boa, pois que apareça em Sari-Kamich, isto aqui era o inferno do mundo inteiro, e eu vivo aqui pior do que qualquer ser humano. – Pois eu vim ter contigo – disse Tchagatáev. O velho franziu de novo o rosto com um sorriso desconfiado. – Daqui a pouco vais-te embora, e eu morro aqui sozinho. Tu és novo, o teu coração bate com força, vais-te aborrecer. Tchagatáev aproximou-se do velho e beijou-o como antes beijava Vera, com força e sem esmorecimento. Era estranho que os lábios de um velho tivessem o mesmo sabor humano que os lábios de uma mulher jovem distante. – Aqui vais morrer de pena, das recordações. Os Persas costumavam dizer que aqui era o inferno de toda a terra... Entraram na cabana de terra onde Sofian vivia, com uma esteira de juncos por cama. Deu ao seu hóspede uma 38 espécie de bolacha feita de raízes de ervas do planalto. Pela abertura da entrada via-se a sombra da tarde, que avançava para a cova do Sari-Kamich, onde na antiguidade se encontrava o inferno da terra. Tchagatáev tinha ouvido na infância essa lenda da tradição oral e compreendia agora o seu pleno significado. No distante Khorasan, para lá dos montes Kopet-Dag, entre jardins e campos de lavoura, vivia o puro deus da felicidade, dos frutos e das mulheres, Ormuzd2, protector da agricultura e da reprodução humana, amante do silêncio no Irão. E a norte do Irão, para lá das montanhas, ficavam as areias desertas, que se estendiam em direcção ao meio da noite, onde apenas existia alguma escassa erva, e mesmo essa era arrancada pelo vento e arrastada para longe, para os negros lugares de Turan, onde a alma do homem dói sem parar. Dali, não suportando o desespero e a morte pela fome, as pessoas obscuras fugiam para o Irão. Irrompiam no meio dos pomares, nos alojamentos das mulheres, nas antigas cidades, e apressavam-se a comer, a encher os olhos, esqueciam-se de si próprios, até que os exterminavam; e os que sobreviviam eram perseguidos até à profundidade das areias. Então escondiam-se no fim do deserto, na depressão de Sari-Kamich, e ali penavam longamente, até que a necessidade e a recordação dos pomares translúcidos do Irão os faziam levantar-se de novo... E de novo os cavaleiros do negro Turan apareciam em Khorasan, para lá do rio Atrek, em Astrebad, no meio das propriedades do homem odiado, sedentário, obeso, destruindo e deleitando-se... Um dos antigos habitantes 2 Ormuzd (ou Ormazd) é a designação persa da divindade Ahura-Mazda, segundo Zoroastro. (N.T.) 39 de Sari-Kamich chamar-se-ia Ariman, o equivalente ao diabo, e a miséria teria enraivecido esse pobre diabo. Ele não era o pior de todos, mas o mais infeliz, e toda a sua vida atravessara as montanhas para ir bater às portas do Irão, às portas do paraíso de Ormuzd, desejando comer e deleitar-se antes de inclinar o rosto choroso para a terra estéril de Sari-Kamich e morrer. Sufian deixou Tchagatáev pernoitar. O economista teve um sono agitado: os dias e as noites passavam-se em vão, era preciso apressar-se e construir a felicidade no fundo infernal do Sari-Kamich. Incapaz de adormecer devido à impaciência do seu coração, ficou a contar enquanto o tempo passava. As estrelas brilhavam no céu como a luz da consciência, o camelo resfolegava lá fora, e pela areia arrastava-se prudentemente a erva esgotada arrancada pelo vento do dia, como se procurasse caminhar independente nos pés que eram as suas hastes. No dia seguinte, Tchagatáev e Sufian saíram dos seus lugares para irem procurar as pessoas desaparecidas. O camelo foi atrás deles, receando a solidão, como a receia o homem que ama quando está separado dos seus. No extremo do Sari-Kamich, Tchagatáev chegou a um lugar seu conhecido. Crescia ali uma erva grisalha, que não era agora mais alta do que na infância de Nazar. Ali lhe dissera a mãe em tempos: «Tu, rapaz, não tenhas medo; nós vamos morrer.» E puxou-o pela mão para mais perto de si. À volta deles reuniam-se todas as pessoas que então existiam, de modo que formavam uma multidão talvez de umas mil pessoas, contando com mães e crianças. O povo estava ruidoso e alegre: tinham decidido ir a Chiva para que ali os matassem todos de uma vez, e assim não terem de continuar a viver. O cã de Chiva havia muito 40