Ano II • n. 3 • jul. - dez. 2005
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Voltar 1 Sumário Ano II • n. 3 • jul. - dez. 2005 Yumi Kori Maria Irene Aparício Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy Nicolai Filimonoff Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros 1ª JORNADA DO GRUPO DE PESQUISA EM COMUNICAÇÃO, ARTE E CRIATIVIDADE Anna Barros Milton Sogabe Mônica Rebecca Ferrari Nunes Reynaldo Damazio Edna Domenica Merola Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Roberto Padilha Moia / Anna Barros Cassius Breda Pereira Voltar 1 Sumário Voltar 2 Sumário Voltar 2 Sumário Voltar 3 Sumário Universidade São Marcos PESQUISA EM DEBATE REVISTA ELETRÔNICA DO PROGRAMA INTERDISCIPLINAR EM EDUCAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E COMUNICAÇÃO ISSN 1808-978X Ano II, no 3, jul-dez 2005 2006 Voltar 3 Sumário Voltar 4 Sumário Reitor: Ernani Bicudo de Paula Vice-Reitora Acadêmica e de Relações Internacionais: Luciane Miranda de Paula Vice-Reitor de Gestão e Desenvolvimento: Marcio Luiz Miranda de Paula PESQUISA EM DEBATE Revista eletrônica do Programa Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação Diretora da Revista: Prof.ª Dr.ª Anna Barros Comissão editorial: Carlos Felipe Moisés, Luiz Paulo Rouanet, Reynaldo Damazio, Rosemari Fagá Viegas Conselho consultivo: Alzira Lobo de Arruda Campos, Ana Mae Barbosa (USP), Carlos Elias Kater, Cidmar Theodoro Pais (USP), Cléa Lebjman, Dilma de Melo e Silva (USP), Eduardo de Camargo Oliva, Fernando Cilento Fittipaldi (SMA – Instituto Geológico), Gilbertto Prado (USP), Gilda Figueiredo Portugal Gouvêa (Unicamp – Fecap), Hélio de Souza Santos, João Alexandre Barbosa (USP), João Batista Brito (UFPB), Joaquim Antônio Severino (FEA – USP), José Americo Martelli Tristão, Laima Mesgravis, Leda Tenório da Motta (PUC-SP), Leonel Mazzali, Liana Maria Sabino Trindade, Lincoln Etchebèré Junior, Lúcia Santaella (PUC-SP), Luiz Fernando Santoro (USM), Marcos Antonio Lorieri (PUC- SP), Maria Esther Maciel (UFMG), Marília Gomes Ghizzi Godoy (USM), Milton Sogabe (Unesp), Paulo Sérgio Marchelli (USM), Regina Silveira (USP), Sandra Farto Truffem (USM), Saulo César da Silva (Centro Universitário Álvares Penteado), Senira Annie Ferraz (USM) Fernandes Site: www.smarcos.br Presidente: Luciane Miranda de Paula Editor: Reynaldo Damazio Revisão: Luiz Paulo Rouanet Imagem da Capa: Anna Barros Capa: Ricardo Botelho Diagramação: Regina Kashihara Conselho Editorial: Álvaro Cardoso Gomes, Carlos Felipe Moisés, Fabio Magalhães, Fernando Novais, Ismail Xavier, Manuel da Costa Pinto, Marcelo Perine, Myriam Augusto da Silva Vilarinho, Paulo Roberto de Almeida, Sergio Paulo Rouanet End.: Av. Nazaré, 900 • Ipiranga • 04262-100 • São Paulo • SP Tel.: (11) 3471-5700 • ramal 5776 • Fax: ramal 5754 e-mail: [email protected] • Site: www.unimarco.com.br © Unimarco Editora 2006 ISSN 1808-978X Voltar 4 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 5 Universidade São Marcos Voltar 5 Sumário Sumário APRESENTAÇÃO Anna Barros • 7 ARTIGOS Architecture as extended human skin/communication device Yumi Kori • 11 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício • 13 História e experiências brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis • 24 O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy • 39 Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff • 48 A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez • 56 Design gráfico e tecnologias Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez • 64 Relacionamentos: algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros • 69 1ª JORNADA DO GRUPO DE PESQUISA EM COMUNICAÇÃO A distorção da informação Anna Barros • 77 A distorção da informação na arte Milton Sogabe • 81 A memória na mídia: distorção da informação ou re-semantização de sistemas comunicativos? Mônica Rebecca Ferrari Nunes • 84 Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio • 88 Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola • 94 Voltar 5 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 •p. 5 Universidade São Marcos Voltar 6 Sumário Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: análise da vocação turística no território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen • 99 Aspectos da comunicação interpessoal no relacionamento professor – aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros • 107 A Síndrome de Down aos olhos da propaganda Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas • 112 A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros • 117 Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros • 124 A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira • 131 NORMAS EDITORIAIS • 139 Voltar 6 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 6 Universidade São Marcos Voltar 7 Sumário Cema de O Balípodo , animação em stop motion de Regina Kashihara e Ricardo Botelho (2005) Voltar 7 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 7 Universidade São Marcos Voltar 8 Sumário Voltar 8 Sumário Voltar 9 Sumário Apresentação Uma revista de Academia tem dois propósitos básicos: formar e informar. A formação, ao contrário do que comumente se imagina, estende-se aos alunos e a toda a sociedade, que pode rever seus conceitos e opiniões sobre os assuntos nela contidos. Propiciando um lugar de conscientização de problemas de várias áreas da cultura, oferece uma oportunidade para um melhor desenvolvimento da cidadania. Sendo fruto de um Mestrado interdisciplinar, Pesquisa em Debate, é um espaço de confluências e conexões, que reflete uma gama preciosa de enfoques sobre um mesmo sujeito em um compasso de trocas com outras universidades e mesmo com outros países, como os textos da Profª. Mônica Rebeca Ferrari Nunes, dos Cursos de Comunicação da Universidade São Judas, e da FAAP, do Prof. Milton Sogabe do Instituto de Artes da UNESP, Profª. Maria Irene Aparício, do Instituto Superior de Línguas e Administração de Santarém, Portugal, diretora da revista on line, Artciencia. Os dois primeiros, foram palestrantes convidados para a Jornada do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Arte e Criatividade da Pós-graduação Interdisciplinar da Universidade São Marcos, liderado pelas Profª Anna Barros e Rosemari Fagá Viegas, em setembro de 2005, cujos textos integram o dossier desse evento, inseridos na revista. A palestra da Profª. de Arquitetura da Columbia University, Nova York, e artista, Yumi Kori, (convidada pelo mesmo grupo de pesquisa), proferida em março, aparece em um resumo de sua autoria e que oferece algumas ilustrações de seu trabalho premiado em Tóquio, A Casa das Sombras. Os professores e alunos do programa, ainda além dos trabalhos constantes na Jornada, apresentam um material rico e variado que extravasa as salas de aula em benefício da comunidade. Agradecemos em especial a Regina Kashihara e Ricardo Botelho a imagem que abre a Revista, cena da animação premiada como Melhor Vídeo no I Festival do Minuto da Universidade São Marcos. Esperamos que o espirito de generosidade de todos os autores presentes neste número da revista ecoe nos domínios da pós. Nossos agradecimentos. Anna Barros Diretora da Pesquisa em Debate São Paulo, março de 2006 Voltar 9 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • Universidade São Marcos Apresentação • p. 9 Voltar 11 Sumário Architecture as extended human skin/communication device Yumi Kori Architecture as extended human skin/ communication device* Yumi Kori** I believe that architecture works as communication device for human beings. Relationship between nature and inhabitant, society and individual are influenced by architecture. For example, light, wind, sound is filtered and information is controlled by the architectural boundaries such as wall, windows and doors. Architecture also frame nature and create new relationship between inhabitant and nature. Arquitetura, como uma extensão da pele humana/ dispositivo de comunicação Eu creio que a Arquitetura funcione como um instrumento de comunicação entre os seres humanos. A relação entre a natureza e seus habitantes, entre a sociedade e o indivíduo é influenciada pela arquitetura. Por exemplo, a luz, o vento, o som são filtrados pelos limites arquitetônicos tais como paredes, janelas e portas e assim também, a informação é controlada. Além disso, a Arquitetura emoldura a natureza e cria uma nova relação entre ela e seus habitantes. * Resumo da palestra Arte, Comunicação e Educação na Cultura Japonesa. No Auditório da Unidade Padre Chico, a convite das Profas. Anna Barros e Rosemari Fagá Viegas, Grupo de Pesquisa Comunicação, Arte e Criatividade, da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação, USM. ** ARQUITETA E ARTISTA, nascida no Japão.Studio Myu é seu escritório de arquitetura em Tókio Ganhou vários prêmios em projetos arquitetônicos e em arte. Professora de arquitetura no Banard College e na Columbia University em Nova York.Em algumas instalações de arte Yumi trabalha com o músico vienense Bernhard Gal. Esses trabalhos constituem-se em paisagens sonoras, que não são narrativas nem esculturas mas sim uma aproximação experimental que une a arte de instalação com a tradição filosófica dos jardins japoneses e do paisagismo.Os dois artistas juntos exploram as interações entre situações espaciais e temporais nos espaços em que constroem suas instalações. Têm mostrado suas obras na Áustria, no Japão, na Alemanha e nos Estados Unidos. É a primeira vez que Yumi vem ao Brasil e que profere uma palestra em universidade brasileira. Voltar 11 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 11-12 Universidade São Marcos Voltar 12 Sumário Architecture as extended human skin/communication device Yumi Kori http://www.studio-myu.com/e_page/architecture/ho_hira/hira_01.html Voltar 12 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 11-12 Universidade São Marcos Voltar 13 Sumário Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Da natureza da técnica à técnica da natureza Ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício* Resumo Vivemos no mundo da Técnica como os antigos viviam no mundo mágico. Não o entendemos. Mas é precisamente o retorno a um certo mundo de Titãs que permite uma espécie de crença na salvação da humanidade pela técnica. No limite, a técnica poderá, até, ser a arma mais eficaz contra o Leviatã das más aplicações das novas tecnologias. Mas o que é a Técnica? Será apenas um instrumento do Homem, uma tecnologia, ou assume a inevitabilidade de factor autónomo, no sentido de fatalidade ou destino...? Ainda que antitéticas, veremos que uma e outra das concepções servem a designada função ideológica do pensamento. A primeira, por fornecer à sociedade um meio de não pensar o seu verdadeiro problema, a segunda porque permite aos homens esquivarem-se da responsabilidade das suas criações. Palavras chave: Arte, Figura, Natureza, Técnica Abstract We live today in the world of the Technique as the old ones lived in the magic world. We did not understand it. But, it is precisely the return to a certain world of Titans that allows a type of faith on the humanity’s salvation for the technique. Actually, it seems to be the solution of all the problems, the cure of all of the evils... Perhaps the technique will be able to be the most effective weapon against the Leviathan of the bad investments of technologies. However, what is the Technique? It will just be an instrument of the Man, a technology, or it assumes the inevitability of autonomous agent, in the fate sense or destiny? Although antithetic, we will see that both of the conceptions serve the ideological function of the thought. The first one, for supplying to the partnership a mean of not thinking his true problem, the second because it allows to the men to be avoided of the responsibility of their creations. Key words: Art, Figure, Nature, Technique 1. O verdadeiro problema que a tecnologia pretende ultrapassar é, precisamente, aquele que ela tem ajudado a cumprir; a dimensão irreversível da finitude do corpo humano. Numa palavra, o Homem pensa que pode dominar a Natureza, controlar a Técnica , pela tecnologia, mas é a Natureza que o subjuga pela Técnica. Isto só é possível porque o Homem está convencido de ter obtido alguma autonomia. Neste contexto, a Cultura parece ser a sua grande arma. O recurso à tradição , isto é, à memória das grandes produções espirituais do passado, e ao conjunto de atributos e produtos * Mestre em Ciências da Comunicação (especialização em Cinema) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente docente de Técnicas Audiovisuais e Projecto no Isla – Instituto Superior de Línguas e Administração de Santarém. Voltar 13 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 14 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário das sociedades humanas, bastam para manter a ilusão de continuidade, de percurso teleologicamente orientado, controlável , no limite. Ora, Ernst Jünger vislumbrou no cenário da I Guerra Mundial, a verdadeira natureza de um encontro, desde sempre, marcado; a convergência da técnica e do homem que continua a acontecer todos os dias. É desse encontro que trata a obra Der Arbiter (1932). Preocupado em responder à técnica, ao automatismo da natureza em que tudo se encontra irremediavelmente, Jünger considera, no entanto, que a técnica será destrutiva até ser dominada. Uma visão talvez demasiado linear, num mundo onde tudo acontece vertiginosamente e, quase, em simultâneo. Hoje, como ontem, o choque poderá ser ainda de origem e dimensão puramente virtuais e constituir, simultaneamente, o perigo e a esperança da nossa destruição/sobrevivência como espécie. Daí que, perante algo que poderá influenciar o curso da História – a rapidez/aceleração que comprime o vector tempo –, é importante saber dar uma resposta, agir. É ainda a fatal atracção dos pólos destruição/sobrevivência que constitui o maior problema do aqui e agora, porque é aqui e agora que tudo se joga, na imediatidade, sem espaço-tempo para a mediação que, como veremos, se vislumbra na figura do trabalhador Jungeriana. É também aí que a Técnica surge como problema e não como solução. Para onde quer que dirijamos o olhar, lá está o elementar como o gato na caixa de Schrödinger. Ficar parado não impede a catástrofe, a passividade não tem qualquer influência no resultado final. Também não contraria os nossos medos. É inevitável o confronto com eles, porque não prevemos nada, não sabemos nada... Esta declinação permanente, cada um pode confrontá-la de modo diferente. Não há o método. Jünger diz que não olhar não soluciona. Saber olhar, talvez. A Figura do Trabalhador é o resultado imediato dessa metafísica da visão que não se compadece com a visão da História. Porque está para além dela, num tempo absoluto, tal como o Herói, enquanto forma de dominação do mundo, de ultrapassar a morte. Ora, o problema fundamental está em perceber se existe uma forma de humanizar a técnica e tecnicizar o homem sem anular, pura e simplesmente, a humanidade. A ficção não hesitará em afirmar essa possibilidade, e talvez tenha sido essa a predicção de Jünger ao postular a fusão orgânica, o encontro adiado “sine die” entre Técnica e Bios. Mas podemos questionar-nos até que ponto Ernst Jünger se afasta desta mesma ambição, tanto mais que a Figura do Trabalhador, na sua função de mediação, acaba por justificar sempre o injustificável – o elementar que, afinal, nos escapa. Mais, é essa mesma Figura que dá à contingência um lugar cativo de coisa necessária à resolução de todos os problemas da humanidade, nomeadamente a guerra, palco de emergência dos escritos de Jünger cuja dimensão ficcional não chega para disfarçar um certo desencanto e desespero (nihilismo até), e a (in)consciência da fronteira inultrapassável da condição de ser humano. A este propósito dizia Lorenz, citando Nicolai Hartmann “o homem não quer olhar face a Voltar 14 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 15 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário face a dureza do real como a de algo perante si absolutamente indiferente. Ele pensa logo que, sendo assim, não vale a pena viver . 1 2. Não terá sido, porventura, intenção de Ernst Jünger mergulhar no mistério do Paradigma Perdido mas, ao questionar a Técnica, é impossível não retornar a esse mítico momento da origem ritualizado, em cada irrupção do elementar, da physis. A reflexão de Jünger, a propósito da técnica, quer em Der Arbiter (O Trabalhador), quer em Der Waldgang (O Passo da Floresta ), é uma tentativa de compreender o mundo em conflito e, sobretudo a estranha aceleração de uma História contada, até então, quase sempre, na primeira pessoa do singular. Ao aperceber-se que a técnica não é um simples instrumento (quantas vezes identificado com a tecnologia), e postulando o seu estatuto a priori, Jünger está a condenar o Homem à sua natureza subalterna, ainda que tente manter o derradeiro sopro de livre arbítrio, ao consignar em Der Arbiter , uma Figura – a Figura do Trabalhador – como elemento unificador de uma ideia de Cultura agonizante, à beira do século XXI. Em Der Waldgang o autor chega mesmo a afirmar que “As cadeias da técnica podem romper-se e é o indivíduo precisamente que as pode romper”. É na emergência do non-sense da destruição e da guerra que Jünger se apercebe que não é o Homem que controla a Técnica, mas é a Técnica (na sua essência) que constitui a frente de batalha e comanda o sentido da sua época e, provavelmente, de todas as épocas anteriores e posteriores. É justamente nesta profética ante-visão do futuro, que a questão da técnica nos interessa, na medida em que o autor terá antecipado algumas das questões fundamentais da Teoria da Cultura Contemporânea. François Jacob dizia em O Jogo dos Possíveis, que quase tudo aquilo que caracteriza a humanidade se resume na palavra cultura, enquanto Castoriadis afirmava que o abismo que separa as necessidades do Homem como espécie biológica, e as suas necessidades como ser histórico, é cavado pelo imaginário, utilizando como enxada a técnica. A metáfora parece acertada na medida em que, se no dealbar do século XX, o mundo parecia constituído por estratos sobrepostos mas não comunicantes: Homem/Cultura, Vida/Natureza, esta ideia de técnica vem, subitamente, restituir à história da humanidade, um certo elo perdido. A clarividência da ideia de que a Técnica não é mais do que a mobilização do mundo pela Figura do Trabalhador, tem consequências incalculáveis a todos os níveis. Parece-nos que a mais grave é uma certa legitimação da violência, nomeadamente da guerra, já que o espaço de controlo da técnica passa a ser todo e qualquer palco da acção (in)controlada, entendida aqui como agir . Mais, a ideia de mobilização, enquanto destruição absolutamente necessária e anterior à fase de reconstrução, atira, definitivamente, o homem para o caos determinístico de uma Natureza indiferente à sua 1 in LORENZ, Konrad; O Homem Ameaçado, Dom Quixote, Lisboa, 1988, p. 20 Voltar 15 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 16 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário dimensão carnal. E nem a Figura do Trabalhador parece salvar-nos do destino de uma de Fénix condenada a renascer eternamente das suas próprias cinzas. O que, no limite, (como se sabe, a teoria do Big Bang é a última pergunta, para a qual ainda não há resposta) pode até nem ser verdade...2 A recusa da instrumentalidade da técnica afasta, definitivamente, o homem da condição quer de criador, quer de vítima da técnica, já que, devido à sua característica de Totalidade, ela jamais entra realmente em contacto com o homem; “... L`homme n`est pas lié immédiatement mais médiatement à la technique. La technique est l`art et la manière dont la Figure du Travailleur mobilise le Monde.” 3. Esta aparente neutralidade pretende, é claro, evidenciar uma certa urgência de questionar a História, bem como os poderes culturais, no sentido em que a técnica nada mais faz do que prosseguir um caminho – não de progresso ilimitado, mas da permanência. Mas, se a ideia é suficiente para apreender um sentido da actualidade da experiência moderna, ela não chega, no entanto, para explicar a origem desse mesmo sentido. Isto é, a visão humana não chega para apreender a totalidade ; nem a História, nem a Ciência, nem mesmo a Arte. É caso para perguntar se haverá, então, figura que resista à permanente fragmentação da experiência... É claro que o Homem só pode, na sua materialidade, entrar em contacto com a máquina. E, nesta medida, o corpo é o seu interface com a realidade . Mas Jünger sabia, porque viveu “in loco” a experiência da guerra, que a este nível há um momento em que a ruptura é inevitável. O momento da descontinuidade observou-o ele no campo de batalha, quando o contacto desigual entre carne e metal abala todas as ideologias. Profundamente enigmático e não isento de polémica, Der Arbiter desvela uma solução ideal para a ordenação do espaço ideológico do Ocidente. A Figura do Trabalhador surge quase como uma necessidade. Parafraseando Eduardo Lourenço “o que não aparece funda a lógica paradoxal do que aparece...” 4 I.e, a essa relação dicotómica Homem/Máquina sobrepõe Jünger uma outra – Figura do Trabalhador/Técnica – que nos leva a perguntar se estamos de regresso à metafísica, às coisas mesmas, ou se, pelo contrário, é o fim da metafísica. Ao carácter ambíguo e (im)provável de uma única resposta, sobrepõe-se ainda a questão: “onde nos poderá levar o devir, se acaso atravessarmos a fronteira, neste limiar crítico do Humanismo ?”5 2 “A humanidade encontra-se hoje numa situação mais perigosa do que nunca. Mas a ciência forneceu à nossa cultura os meios, pelo menos potenciais para escapar ao declínio de que todas as grandes culturas foram vítimas. Isto acontece pela primeira vez na história do mundo” in EIGEN, Manfred et al; O Jogo, As Leis Naturais que Regulam o Acaso, Gradiva, Lisboa, 1989, p.324 3 in JÜNGER, Ernst; Le Travailleur, Christian Bourgois Éd., 1994, p. 198 4 In “Prefácio”, FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas, Edições 70, Lisboa, 1988, p. 14 5 “Pois, poderia mesmo acontecer que a natureza, escondesse precisamente a sua essência, naquela face que oferece ao domínio técnico do homem” in HEIDEGGER, Martin; Carta Sobre o Humanismo, Guimarães Ed., Lisboa, 1987, p. 47 Voltar 16 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 17 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário A verdade é que a Figura do Trabalhador constitui uma resposta às inúmeras questões colocadas pela modernidade, nomeadamente a questão da finitude e a permanente recusa dessa finitude. É aliás, nesse contexto, que surge a outra figura – o Herói. Na relação finita, incontornável, que o homem tem com a espacialidade, fantasmaticamente configurada pela morte, é preciso contornar a ideia de destruição total, de apagamento do ser na ausência do corpo. É então que emerge o Herói que habita, efectivamente, esse espaço imponderável e transcendental do confronto com a técnica. O Herói é a reconstituição de um Homem despedaçado pela Máquina. Mas, enquanto figura, também ele repousa na Figura do Trabalhador, e só esta última permanece no centro imóvel do próprio movimento. Vem a propósito citar Oswald Spengler que considerava que “O tempo não pode deter- se; não há retrocessos prudentes, nem renúncias cautelosas. (...) Nascidos nesta época, temos de percorrer até final, mesmo que violentamente, o caminho que nos está traçado. Não existe alternativa. O nosso dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi encontrado diante de uma porta de Pompeia, morto por se terem esquecido, ao estalar da erupção vulcânica, de lhe ordenarem a retirada. (...) Esse honroso final é a única coisa de que o homem nunca poderá ser privado.”6 O que parece estar em causa no pensamento moderno é o confronto do Eu com a Totalidade, nesse fugaz percurso em que, “cada um de nós, intrinsecamente insignificante, não deixa de ser – mesmo nesse instante incrivelmente breve – uma vida lançada no turbilhão cósmico”.7 É verdade que Jünger contrapõe, precisamente, ao caos, uma figura que permanece, mesmo quando o elementar emerge. E, no seio de toda e qualquer catástrofe, a figura é uma espécie de fio de Ariadne no labirinto da vida. Curiosamente, é para essa figura que nos dirigimos. É nela que caímos quando passamos a fronteira entre vida e morte. Porque a figura escapa a qualquer mutação. Não está antes nem depois. Está entre... No entanto, nesta abertura ao infinito, à (nossa) eternidade, o que causa medo é a invisibilidade dos limites. À pergunta inquietante «Onde está o limite?», a modernidade só pode responder com a experiência. Jünger tentou responder de modo diferente, numa tentativa de nomear o que nos escapa incessantemente; a linha do horizonte que se desvia quando nos aproximamos. Essa linha que é o tempo diferido da eternidade, o que é e não muda ou, talvez, a alma, que é também sombra projectada; i.e . a Figura do Trabalhador. Apesar de, radicalmente, Jünger considerar que “la technique, c`est-àdire la mobilisation du monde pour la Figure du Travailleur, étant destructice de toute foi en général est aussi la puissance la plus résolument antichrétienne qui soi apparue jusqu`ici.”8 É um facto que não está em causa uma avaliação positiva e/ou negativa da Técnica , mas Jünger só em parte consegue fugir a uma certa concepção ocidental da técnica , radicada ainda na 6 in SPENGLER, Oswald; O Homem e a Técnica, Guimarães Ed. Lisboa, 1993 7 Ibidem p. 44 8 In JÜNGER, Ernst ;Le Travailleur, Christian Bourgois Éditeur, p. 203 Voltar 17 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 18 Sumário Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício cultura grega. Enquanto “mise-en-oeuvre” de um saber, o domínio da Techné não está totalmente separado da virtude ética. Quer isto dizer que não a devemos julgar senão no âmbito do ajustamento da eficácia dos meios ao fim visado. Estamos a opor as considerações técnicas às considerações políticas, e as técnicas artísticas à expressão ou à interpretação. É uma questão de Língua, Cultura e Política. Para Jünger o carácter de tese/antítese da técnica constitui todo o seu poder e eficácia , já que o extermínio, a destruição, é apenas uma primeira fase da verdadeira construção. É o grau zero a partir do qual tudo renasce. A destruição tem em si o germe da criação; a génese de uma nova sociedade que emerge, primeiro com o Herói e, depois, com a Figura do Trabalhador. Ousaríamos dizer que, no limite, a técnica é o corpo mítico de uma paixão; o Poder . Na medida em que é a técnica / physis que encarna o poder de destruir e simultaneamente o de criar, num movimento dialéctico, perpétuo – o agir , o trabalho cuja conotação, aqui inteiramente assumida, é a de (re)construção. Este ponto de encontro com a teoria marxista, só o é em parte. É que, ultrapassando a ideia grega de Téchné , Marx colocou, explicitamente, a técnica como momento central e criador do mundo histórico-social. Mas, só aparentemente a (sua) técnica é um instrumento neutro, já que ela é sinónimo de trabalho enquanto força produtiva, indústria e tudo o que, ideologicamente, vem por acréscimo. Em contrapartida, Hegel contribuiu para uma outra noção de técnica , ao ver no trabalho um acto de construção espiritual do homem. Se Marx devolve ao homem histórico a sua dimensão corporal, a carne , Jünger vai mais longe e fala de um misto de homem hegeliano e homem de Marx, o Homem que é, sem alternativa possível, figura transcendente (a Figura do Trabalhador ) e o herói antes de o ser , no campo de batalha, a carne para canhão. Tímida procura do ser ontológico que é, paradoxalmente, um ser da paixão , um ser que sofre a limitação do corpo, ainda que de uma forma quase ascética. Se o destino do ser parece conduzir à ausência dos deuses, resta saber o que será mais difícil de entender: a Totalidade (espécie de Deus ex-machina ) ou o seu fragmento, a Humanidade . A resposta poderá passar, então, pela técnica enquanto dimensão essencial da criação dessa totalidade englobante que a Língua e a Cultura atiram para o domínio fragmentário da representação. Efectivamente, a essência da técnica nada tem de técnico. 9 A técnica é um processo de desvendamento, liberto de toda a pregnância humana. E o destino provável do desvelar da realidade é o perigo, por excelência, a beira do precipício ao longo do qual o homem caminha. Qualquer tentativa de dominação é, apenas, um adiamento do encontro com a verdade, já que “o limite liberta 9 “A civilização (cuja técnica constitui um domínio particular) tem por finalidade cultivar, desenvolver e proteger o ser-homem do homem, a sua humanidade.” in HEIDEGGER, Martin; Língua de Tradição e Língua Técnica, Vega, Lisboa, 1995, p.17. Voltar 18 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 19 Sumário Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício para o desvendamento, é pelo seu contorno, na luz grega (que não restringe, faz aparecer) que a montanha persiste no seu erguer-se e repousar. O limite constituinte é o que repousa – a saber, na plenitude da mobilidade...” 10 Heidegger questiona-se até que ponto a Técnica contribui, negativa ou positivamente, para a Cultura . E é esta questão que o leva a repensar o estatuto da Língua e as suas limitações na conferência que designou por Língua de Tradição e Língua Técnica; “atrás do título da conferência esconde-se a alusão a um perigo a crescer constantemente e que ameaça o homem no mais íntimo da sua essência – a saber, na sua relação com a totalidade daquilo que foi, do que vai vir e que presentemente é . (...) É um desmoronamento do mundo do qual o homem nota, contristado, os sobressaltos, porque é continuamente coberto pelas últimas informações.”11 O Logos, essência da Língua, é o recolhimento do que se torna manifesto, é a ordem da physis. A Língua quando se torna palavra (e, sobretudo poesia) é um trazer à presença pelo traçado do contorno – ge-stell -, ou a essência da técnica moderna. A Língua é, pois, a poesia original, a resposta mais próxima do real. 12 Ora, também Jünger postula a arte, particularmente a poesia, como solução e, tal como Heidegger, considera a Linguagem como um pensamento em imagens que germina. A tarefa maior da Linguagem é criar um espaço aberto, uma obra em processo de desvendamento. Na arte parece estar, efectivamente, a chave que permite ultrapassar a linha do nihilismo. O regresso urgente à poiésis, à criação que é téchné , (não é mimesis , não é imitação da natureza 13), é a natureza mesma revelada. O quadro é mancha de tinta e, tal como o real, emerge sempre para destruir ou tornar obsoleta a nossa ilusão das formas, “a criação não é falsificável e a obra de arte reflecte o jogo eterno da criação na natureza”.14 O elementar jungeriano é a arte da natureza que é o real. O seu princípio de destruição devolve-nos, incessantemente, ao lugar infinito e (in)significante do mutismo. Daí que só nos reste aflorar a realidade, pelos sentidos; a pintura que é tinta, a palavra que é grito. Este é o resultado da queda no elementar, da entrega que constitui, 10 in HEIDEGGER, Martin; A Origem da Obra de Arte, Ed. 70, Lisboa, 1992, p. 70 11 Ibidem, p. 41 12 “Na tecnologia que tudo avassala, ainda entreluz o logos. Pela nossa parte procurámos mostrar que essa forma é perigosa, reforçando o caminho para o pior quando procura garantir um único caminho. O perigo desse caminho a que a modernidade chama “método”, é a sua ilusão de dominar o existente (...).” / “Mas para libertar as melhores possibilidades do agir, é preciso salvar todas as possibilidades” in MIRANDA, J. A. Bragança de; Analítica da Actualidade, Vega, Lisboa, 1994, pp. 311 e 318 13 “L´art n`est rien de particulier, rien qui puisse être exposée dans ses parties puis reconstitué dans des domaines singuliers. En tant qu`expression d`un sentiment puissant de la vie, il ressemble à la langue que l`on parle sans être conscient de sa profondeur. Le merveilleux se rencontre partout ou nulle part. En d`autres termes, il est une propriété de la Figure” in JÜNGER, Ernst; Le Travailleur, p. 277 14 in EIGEN, Manfred et Al; O Jogo, p. 416 Voltar 19 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 20 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário cada vez mais, apanágio da arte. Jünger diz que “a arte é o meio pelo qual a Figura é gerada como princípio criador”, ou seja, a arte é a arte da natureza... Sabemos que Jünger critica as artes do seu tempo porque elas acentuam as metamorfoses, os monstros, a velocidade. i.e., o contrário das formas perfeitas, aparentemente imutáveis da natureza, de que as conchas são um exemplo. Talvez por isso, tenha dado maior importância à escrita e à poesia, no sentido em que através delas seria possível ligar o que o Museu (ideia preversa e burguesa da arte) desligou.15 O ponto fulcral da técnica não reside no gesto da sua utilização. É de saber, no sentido rigoroso e fundador que lhe deu Platão (épistème), e não de fazer que se trata. O que falta é articular essa noção de técnica, figura ideal de uma Totalidade que se adivinha virtual, com o espaço efectivo da Ciência e da Cultura, o seu domínio. Moniz Pereira diz hoje o que Jünger não teve palavras para dizer, “...o computador veio elucidar um problema filosófico de sempre, o da interacção corpo-mente (o “mind body problem”), em todas as suas versões monistas ou dualistas, com ou sem interacção, com ou sem epifenómenos, porque reconcilia aquelas duas visões: cada uma é afinal um ponto de vista, uma descrição da mesma coisa. (...) Mas as implicações da questão metafísica são claras. O Homem sentese ameaçado pela competição da Máquina (...), e também em desarmonia consigo mesmo, porque em desarmonia com as máquinas que fazem, literalmente, parte de si mesmo, isto é, do seu modo de se representar inserido na Natureza. (...) Já não podemos pensar o Homem sem a Máquina.”16 A construção orgânica do mundo pode até ser uma miragem, mas a robótica, a cibernética e outras maravilhas da Tecnologia e da Ciência, são fenómenos que remetem para uma dimensão fantasmática da técnica, para o seu poder ilimitado e imprevisível, que é também a sublime esperança da Humanidade. É claro que, para já, não é provável a fusão total entre homem e máquina. O cyborg está, ainda, enclausurado numa qualquer dimensão ficcional e a sua concretização dependerá, sobretudo, da (in)decisão de quem faz o quê com que objectivos... O que é indiscutível é o facto de estarmos, hoje, no limiar dessa realidade apenas intuída por Jünger, mas que emergiu, cresceu e se multiplicou, de forma virulenta, no berço da guerra. Foi o desenvolvimento tecnológico de uma indústria de armamento, e a necessidade no limite inferior de segurança (o medo), na sequência do gélido sopro da Guerra Fria, que engendrou uma espécie de vida orfã de pai e mãe – a inseminação artificial, a clonagem, as armas biológicas... e o que mais, estrategicamente, (ainda) não se disse. 15 “... a arte será sacralizada na instituição do museu (a fundação do Louvre data de 1793). Mas esta consagração terá como efeito a sua queda no inessencial...” in M. Le Bot ; “Technique et Art” , Enciclopaedia Universalis, Vol. 15, pp. 809-812 16 PEREIRA, Luís Moniz; “Inteligência Artificial – Mito e Ciência” in Colóquio/Ciências, nº 3, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1988, pp. 1-13 Voltar 20 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 21 Sumário Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício 3. À pergunta colocada pela Filosofia: “Para onde vamos?”, a Ciência procura dar uma resposta... A Biologia e, particularmente, a Etologia, respondem positivamente, e operam uma certa reconciliação da Técnica / Natureza com o Homem. Tal como em Jünger, a rejeição implícita do “humanismo” não aponta para uma dissolução mas para uma integração. Não ansiamos por uma civilização de máquinas, de superfícies polidas e/ou de robots. A nossa luta é a da sobrevivência, a partir do momento em que a consciência da finitude, determina o rumo de toda a nossa Cultura. É preciso escapar ao nihilismo provocado pela morte de Deus, mas por enquanto tacteamos apenas a fronteira a partir da qual tudo permanece. Podemos, portanto, estar de acordo com Jünger, relativamente à forma como enfrentou os problemas da sua época. E, tal como ele, consideramos que é decisivo responder à actualidade, não com a actualidade mas de forma um tanto profética. Mesmo se amanhã a Natureza irromper e esse Poder, que é a Técnica, nos disser que tudo não passou de “rêverie” – “de sonhos da razão”.17 É que, “não contorna a floresta quem está dentro dela” e, nesse sentido, o enigma que hoje se nos depara acompanhar-nos-á sempre, porque é da sua natureza deslocar-se. É uma imagem espelhada no horizonte... Em última análise, Homem e Técnica talvez não necessitem da mediação da Figura do Trabalhador . Talvez sejam as duas faces da mesma moeda. De uma mesma Realidade , Una, Indivisível, Total e inapreensível na sua Totalidade. Se assim é, qualquer olhar dirigido do exterior é pura ilusão. A “visão” (para Jünger há os que vêem e os que não vêem) será, por este meio, apenas um artífício da Linguagem para fugir à fatalidade da interioridade do ser. Mas quais são as consequências de fazer passar a «alma» (o garante da eternidade) pela Figura do Trabalhador, pois que só através dela o homem acede à permanência? “On voit ici se substituer à la religion, et plus exactement à la religion chrétienne, la connaissance qui assume le rôle du Rédempteur. Dans un espace òu les enigmes du monde sont résolues, la tâche de libérer l`homme de la malédiction du travail et de lui permettre de se consacrer à des sujets plus nobles échoit à la technique”18. Que técnica é esta que agrilhoa mas tem o poder de libertar? Não tenhamos ilusões. A técnica será 17 “A ciência fornece-nos uma visão da realidade segundo a perspectiva da razão (...). É uma visão poderosa, formal e austera, mas estranhamente silenciosa a respeito de muitas das questões que nos preocupam profundamente. A ciência mostra-nos o que é que existe, mas não o que é que se há-de fazer com isso. A política, o direito, a arte e a religião fornecem-nos outras visões de uma outra realidade. Essas visões da realidade são moldadas pela perspectiva da primeira pessoa e pelos princípios da razão prática ou estética que ordenam o imediato da nossa experiência vivida e os nossos valores, reflectidos nos nossos juízos éticos e estéticos. Como Vico referiu, há muitos séculos, é esta realidade – o mundo da sociedade civil e da cultura – que poderemos vir a compreender verdadeiramente, pois foi construída por nós e não por Deus.” in PAGELS, Heinz R.; Os Sonhos da Razão, o Computador e a Emergência das Ciências da Complexidade, Gradiva, Lisboa, 1990, p. 413 18 in JÜNGER, Ernst; Le Travailleur, p. 213 Voltar 21 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 22 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário sempre o mais perfeito exercício para morrer, na justa medida em que, com ela, se atinge a inércia total – a des-realização. Paul Virilio diz que “é difícil imaginar uma sociedade que negue o corpo, do mesmo modo que foi, precisamente negando a alma e, todavia, é para ela que nos encaminhamos”.19 No devir universal é disso que se trata. Quando agimos, estamos a morrer. Quando Descartes iniciou o deslocamento da alma do exterior para o interior do corpo, profetizou a trágica solidão do Homem, que a Fisíca Quântica acabaria por confirmar. Mas, por agora, como diria Nietzsche, “o que importa não é o que é verdadeiro é o que ajuda a viver”... Na altura em que Dendid criou todas as coisas, criou o Sol, e o Sol nasce, e morre, e volta de novo; criou a Lua, e a Lua nasce, e morre, e volta de novo; criou as estrelas, e as estrelas nascem, e morrem, e voltam de novo; criou o homem, e o homem nasce, e morre, e nunca mais volta. Canção Africana 19 in VIRILIO, Paul; A Inércia Polar, Dom Quixote, Lisboa, 1993, p. 124, nota do autor retirada de “L`Horizon Négatif”, uma outra obra de sua autoria Voltar 22 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 23 Da natureza da técnica à técnica da natureza ecos de Der Arbiter na cultura contemporânea Maria Irene Aparício Sumário Referências bibliográficas CASTORIADIS, C.; “Technique” in Enciclopaedia Universalis, Vol. 15, pp. 803-808 EIGEN, Manfred et WINKLER, Ruthild; O Jogo , As Leis Naturais que Regulam o Acaso, Gradiva, Lisboa, 1989 FOUCAULT, Michel; As Palavras e as Coisas, Edições 70, Lisboa, 1988 HEIDEGGER, Martin; A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Lisboa, 1992 HEIDEGGER, Martin; Carta Sobre o Humanismo , Guimarães Ed., Lisboa, 1987 HEIDEGGER, Martin; Língua de Tradição e Língua Técnica, Vega, Lisboa, 1995 JÜNGER, Ernst; Le Travailleur, Christian Bourgois Éditeur, JÜNGER, Ernst; O Passo da Floresta, Ed. Cotovia, Lisboa, 1995 LE BOT, M.; “Technique et Art ” in Enciclopaedia Universalis, Vol. 15. pp.809-812 LORENZ, Konrad; O Homem Ameaçado, Dom Quixote, Lisboa, 1988 MIRANDA, José A. Bragança de; Analítica da Actualidade, Vega, Lisboa, 1994 PAGELS, Heinz R.; Os Sonhos da Razão, O Computador e a Emergência das Ciências da Complexidade, Gradiva, Lisboa, 1990 PEREIRA, Luís Moniz; “Inteligência Artificial – Mito e Ciência” in Colóquio/Ciências, nº 3, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1988, pp.1-13 SPENGLER, Oswald; O Homem e a Técnica , Guimarães Ed., Lisboa, 1993 TROTIGNON, Pierre; Heidegger, Edições 70, Lisboa, 1990 VIRILIO, Paul; A Inércia Polar , Dom Quixote, Lisboa, 1993 Voltar 23 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 13-23 Universidade São Marcos Voltar 24 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez* Laima Mesgravis** Resumo Este trabalho resume as primeiras experiências de políticas públicas ou privadas do Crédito Educativo para alunos universitários, posteriormente substituídas pelo FIES. Palavras-chave: Crédito Educativo; Universidade; Política Pública Abstract This work summarizes the first experiences of public or private politics of “Crédito Educativo” (educational credit) for university students, substituted later by FIES Key-words: Educative credit; University; Public politics A questão do crédito educativo no país surgiu, com grandes expectativas a partir da crescente privatização do ensino superior e ampliou-se com a política pública da expansão das vagas nas universidades, na administração Jarbas Passarinho à testa do MEC, nos anos 60. O aumento das vagas no ensino público, com a troca do concurso de habilitação pela classificação, não supriu a demanda reprimida e o atendimento das exigências do acelerado processo de desenvolvimento da década de 1970. Para atender à massa de candidatos, foi necessário facilitar a abertura de centenas de universidades particulares pagas, mas esses candidatos, via de regra, não dispunham de recursos para as mensalidades, daí a necessidade das diversas experiências de crédito educativo que passaremos a examinar. Diversas são as formas de apoio estudantil nas instituições de ensino superior, dentre as quais o crédito educativo. O referido financiamento se deu através do chamado crédito rotativo, que tem * Mestre em Educação, Comunicação e Administração pela Universidade São Marcos. ** Professora Doutora do programa de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. Profa. Livre-docente pela USP. Voltar 24 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 25 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis como finalidade proporcionar condições para que o estudante universitário possa cursar a graduação, permitindo, mediante a devolução do empréstimo, que outros alunos sejam beneficiados. Este tipo de programa foi criado na Colômbia, em 1943, pelo estudante Gabriel Betancur Mejía, em sua tese de mestrado na Universidade de Siracusa, Estados Unidos, e tinha como proposta e objetivo atender e beneficiar a população estudantil de menos capacidade econômico financeira.1 Diplomado, Gabriel dedicou-se ao compromisso assumido com seu orientador de colocar em prática sua tese. Para tanto criou em 1950, o ICETEX-Instituto Colombiano de Crédito Educativo e Estudos Técnicos no Exterior, a primeira instituição conhecida no mundo que financia o ingresso de jovens na educação superior. Em 1969 constitui-se a APICE – Associação Panamericana de Instituições de Crédito Educativo, com sede em Bogotá, formada por oito instituições da América Latina e Caribe, com o objetivo de organizar uma força panamericana que reunisse as ações realizadas individualmente pelas diferentes instituições e que tivessem representação internacional, buscando soluções comuns para o tratamento dos problemas relacionados com o financiamento da educação superior. 2 Atualmente setenta membros, de vinte países, integram a Associação, cujo objetivo permanece inalterado. Conforme dados do Banco Mundial, mais de setenta países têm hoje um sistema de crédito educativo. 3 Segundo Souza & Faro 4, o programa de crédito educativo caracteriza-se por proporcionar empréstimos em bases iguais a todos os que o solicitam, independentemente da renda familiar; a amortização pode ser feita mediante prestações fixas, ou em prestações proporcionais ao rendimento que serviu de base de cálculo para o crédito. Porém, enquanto a prestação fixa permite a cobrança integral da dívida de cada mutuário, as prestações proporcionais à renda, por terem geralmente um único prazo de amortização, envolvem uma redistribuição da renda dos mutuários de renda alta para os de renda baixa. Os programas de crédito educativo baseiam-se nos princípios de liberdade inseridos nos ideais sociais como democratização e igualdade de oportunidades educacionais. No entendimento de Broderson & Sanjurjo: “O crédito educativo é um instrumento que, antecipando as rendas futuras do estudante, lhe permite o financiamento de sua educação presente5”. 1 APICE. Historia, hoja de vida y semblanza. Colômbia, 2002.www.apice.com. 2 Ibid. 3 APICE. Historia, hoja de vida y semblanza. Colômbia, 2002. www.apice.com. 4 SOUZA, A. M. & FARO, C. Crédito Educativo e Ensino Superior. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 4 (1): 3-17, jan./mar.1980. 5 BRODERSON, M. & SANJURJO, E. Financiamiento de la educación en América Latina. México: Fondo de Cultura Econômica, 1978, p. 397. Voltar 25 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 26 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Assim sendo, o crédito educativo é um mecanismo de inversão recuperável, que permite a utilização de um capital em forma rotativa, caracterizando seu cunho social. Trata-se de uma idéia positiva, uma vez que proporciona um meio de ampliar a ajuda econômica à classe estudantil, através do fundo rotativo que é mantido pelo próprio estudante. Zylmelman argumenta: “Todo crédito educativo deve ser considerado um instrumento financeiro, a fim de facilitar ao usuário a aquisição de bens que ele pretende e aos quais não tem acesso por carecer de recursos”.6 Este conceito baseia-se em princípios educacionais, democráticos, orientação para o mercado de trabalho e o econômico-financeiro: o educacional procura proporcionar a dedicação do aluno aos estudos, em tempo integral, através do empréstimo de manutenção provocando uma melhoria no aproveitamento escolar do estudante; o democrático, que visa à igualdade de oportunidades educacionais nas diversas classes, permitindo às pessoas carentes de recursos financeiros atingir o estágio de formação superior no seu campo profissional; o de orientação para o mercado de trabalho, que procura destinar o crédito para aquelas formações profissionais em que o desequilíbrio entre a demanda e a oferta indica a existência de insuficiente número de técnicos habilitados; o econômicofinanceiro, que, além de beneficiar diretamente o aluno, como se demonstrou no aspecto democrático, possibilita, também às universidades, um afluxo mais regular de receitas, pela forma como o crédito é processado, e os recursos são liberados para as instituições de ensino superior. De outra forma, ou a própria escola teria de financiar o estudante, ou então este, com imenso sacrifício pessoal, seria forçado a recorrer às linhas de crédito pessoal, oferecidas pelas instituições financeiras, ou o que é pior, forçá-lo a desistir dos estudos. Destarte, torna-se explícito o pressuposto básico desse tipo de programa: o estudante, ao receber seu empréstimo ou bolsa, tem aumentadas suas chances de ingresso e permanência no ensino superior. É neste aspecto singular que se situa o crédito educativo: sistema que visa a auxiliar financeiramente o jovem, para que este se eduque adequadamente, levando-o a assumir, desde o período de formação, o compromisso social de devolver, quando chegar a época, o correspondente financeiro que lhe possibilitou a formação profissional. O impacto que os empréstimos através de programas de crédito educativo teriam sobre a igualdade de oportunidades no ingresso ao ensino superior seria muito maior se estes empréstimos tivessem início no ensino médio. Desta forma as chances de cursar o ensino superior aumentariam sensivelmente. Segundo Souza & Faro 7 caso típico acontece na Suécia, onde os alunos de escolas de 2º grau recebem empréstimos estudantis, elevando dessa forma as chances de acesso ao ensino superior, 6 ZYLMELMAN, M. Fondos públicos para financiar la educación. México: ADI, 1974, p. 135. 7 SOUZA, A. M. & FARO, C. Crédito Educativo e Ensino Superior. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 4 (1): 3-17, jan./mar.1980. Voltar 26 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 27 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis já que freqüentam instituições de ensino de 2º grau de nível aprimorado. Igualmente os resultados positivos alcançados pelos programas de crédito educativo, sobretudo em países do continente latinoamericano, Estados Unidos e Europa, têm demonstrado a força de uma idéia que vem encontrando sua aplicação no contexto do ensino superior. No contexto brasileiro existem experiências concretas de empréstimos ou programas de crédito educativo, mas do tipo indireto, ou passivo, isto é, dispensa total ou parcial das anuidades durante o curso universitário, e o pagamento do crédito acontece a partir de alguns meses ou um ano após o término dos estudos. Essa prática é freqüente nas Universidades Católicas. Na PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)8, que segue modelo parecido com o de outras PUCs, como a do Rio Grande do Sul, são oferecidas aproximadamente 300 vagas semestrais de financiamento para atender aos 18.000 alunos que possui. A forma de concessão do crédito é por meio de seleção feita pelo Serviço de Assistência Estudantil da PUC. O teto máximo de financiamento é de 50% do valor da mensalidade e pode ser obtido para apenas um semestre ou para o curso inteiro. Depois de terminar o curso, o graduado tem um ano de prazo de carência para começar a pagar.O número de parcelas pagas depois de formado será igual ao número de meses durante os quais utilizou o benefício; e o valor mensal a ser pago é o mesmo que os estudantes de seu curso pagam à instituição de ensino superior, sofrendo os mesmos reajustes que as mensalidades sofrerem – em geral, o aumento segue o índice da inflação. Em caso de não pagamento das parcelas, a PUC recorre aos mesmos instrumentos jurídicos à disposição de qualquer instituição financiadora, como assessoria jurídica e Serasa. O benefício, que em 2003 completou dez anos de existência na PUC-PR, é realizado em parceria com a Fundação Cultural Leonardo da Vinci, que cuida da parte jurídica dos financiamentos. A Universidade Federal de Pernambuco9 vai um pouco além, pois concede Bolsas de Manutenção aos estudantes de graduação que comprovadamente forem de baixa renda. O objetivo é oferecer-lhes o apoio sócio-econômico e a oportunidade de desenvolver atividades curriculares e/ou extracurriculares vinculadas às Unidades Universitárias da Universidade Federal de Pernambuco, prioritariamente na área à qual o bolsista esteja vinculado. O estudante, por meio de inscrição, passa por um processo seletivo, conduzido pelo Serviço Social do Diretório da Universidade, que procederá à elaboração de laudo técnico, atestando a carência do candidato. São selecionados os alunos de menor renda familiar e, em caso de igualdade sócio-econômica, o quesito dirimidor será a nota no concurso vestibular. 8 PUC-PR. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. SAE – Serviço de Assistência ao Estudante, 2004.www.pucpr.br. 9 UFP. Universidade Federal de Pernambuco. Conselho de Administração. Resolução nº 2/2002. Ementa: Regulamenta o Programa de Bolsas de Manutenção Acadêmica da UPF, 2004.www.ufp.br. Voltar 27 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 28 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis O ponto que chama a atenção nesse programa é a forma de devolução do crédito. O aluno contemplado com a bolsa passa a desempenhar as chamadas atividades da Bolsa de Manutenção, a saber: estágio curricular, monitoria, iniciação à docência, iniciação científica e extensão. As atividades são coordenadas e controladas por um supervisor de alunos e, quando cumpridas dentro das normas de regularidade e freqüência, dão ao aluno a quitação da bolsa ou do empréstimo. A EAESP-FGV – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas10, possui um núcleo de consultoria que administra o chamado Fundo de Bolsa. O aluno de graduação pode recorrer ao fundo, restituindo o empréstimo após sua formatura. O Fundo permite o financiamento das mensalidades e das bolsas de manutenção.O reembolso começa no 5º ano depois do ingresso na faculdade e a forma de pagamento é semestral. Para ter acesso ao crédito o aluno precisa ter o seu pedido aprovado, mediante análise de documentação, realizada pela Comissão do Fundo de Bolsas; a aprovação depende também de disponibilidade financeira no semestre, bem como do número de solicitações e dos seus respectivos percentuais de empréstimo. Em 1972, a APLUB – Associação dos Profissionais Liberais Universitários do Brasil11, entidade de previdência privada, aberta, sem fins lucrativos, instituiu um programa de crédito educativo. A meta da APLUB era participar ativamente na formação de futuros profissionais universitários, por meio de um instrumento de apoio a estudantes que não possuíssem meios financeiros suficientes para alcançar seus ideais. A APLUB filiou-se à APICE – Associação Panamericana de Instituições de Crédito Educativo, em 1973, com a finalidade de manter intercâmbio de informações sobre o financiamento da educação superior. A experiência, nos primeiros anos, beneficiou vários estudantes, nas áreas de graduação, pósgraduação, residência biomédica e cursos técnicos de nível médio, atuando inclusive com bolsas rotativas de estudo no exterior, o que levou a desenvolver um programa de fundos administrados. Em 1974, a APLUB assinou o primeiro convênio para administração de crédito educativo com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SUL – PUC-RS. No ano seguinte, firmou convênio com a Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas. Administrando então cerca de 3.000 créditos, em 1976, a APLUB instituiu a Fundação APLUB de Crédito Educativo – FUNDAPLUB, e definiu seus programas de atuação: Programa I – Crédito Educativo – Graduação: Programa com recursos próprios e doações para concessão de crédito educativo em nível de graduação. Programa II – Crédito Educativo – Pós-Graduação: Programa com recursos próprios e doações para concessão de crédito em nível de pós-graduação e residência médica. 10 FGV-EAESP. Formando pessoas que fazem a diferença. São Paulo, 2003.www.fgvsp.br. 11 FUNDAPLUB. Sistema de Crédito Educativo.São Paulo, 2003. www.fundaplub.com.br. Voltar 28 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 29 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Programa III – Programa de Fundos Administrados: A experiência adquirida em crédito educativo e as condições técnicas permitiram a FUNDAPLUB disponibilizar seus serviços para administrar programas de universidades e empresas. Além dos recursos para o financiamento, um dos fatores mais importantes da manutenção e ampliação dos programas da FUNDAPLUB, é a recuperação da carteira, ou seja, o retorno dos financiamentos, que possibilita o atendimento da demanda crescente, respondendo ao objetivo social da fundação nas suas atividades. No Estado do Rio Grande do Sul encontramos a experiência do PROCRED – Programa de Crédito educativo 12. Criado em 1996, é sustentado com recursos provenientes da receita líquida de impostos do Estado e intermediado pelo BANRISUL – Banco do Estado do Rio Grande do SUL. Os critérios para seleção dos candidatos à bolsa são estabelecidos pela Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, e levam em conta o desempenho acadêmico e a carência de recursos econômico–financeiros. O prazo de carência para início do pagamento é de um ano depois de formado, e o pagamento é igual ao período de utilização do benefício, contado a partir do término da carência. Os valores de reembolso são atualizados pelos valores das mensalidades do curso na época do pagamento, acrescidos de uma taxa anual de 6% calculada sobre o saldo devedor do beneficiário. Atualmente apenas 1.300 alunos são beneficiados pelo PROCRED, sendo que em 2004 sequer foram abertas as inscrições para novos contratos. No dia 16 de Setembro de 2003, foi aprovado o projeto de lei complementar no 267/2003 do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul, que altera a Lei Complementar no 10.713. O referido projeto cria o Programa Comunitário de Ensino Superior – PROCENS, para integrar, juntamente com o PROCRED, o sistema estadual do ensino superior do Estado do Rio Grande do Sul. As instituições de ensino superior particular concederão desconto de 30% no valor das mensalidades, as empresas apoiadoras financiarão 50% e aos alunos caberão os 20% restantes. A participação do Estado se viabiliza através do ressarcimento às empresas do crédito fiscal presumido de ICMS, no limite de 90% dos valores aplicados. Os alunos poderão pagar sua parte com 24 meses de carência e em seis anos, sem incidência de juros. A seleção estará a cargo de comissões especiais nas Instituições de Ensino Superior (IES). Os portadores de deficiência física e sensorial de baixa renda e os filhos de policiais mortos na defesa da segurança pública serão candidatos natos. O projeto que tem em seu teor valorosa intenção, porém cabe aqui consignar que, dos 26,5 milhões previstos no orçamento de 2003 do Estado do Rio Grande do Sul para investimento no ensino superior, apenas aproximadamente quatro milhões foram aplicados. 12 GOVERNO-RGSUL. PROCRED. 2003.www.rgsul.gov.br. Voltar 29 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 30 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Em maio de 2003 o SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo)13, anunciou a criação do CEBRADE (Centro Brasileiro do Ensino Superior). A nova entidade foi criada com o objetivo de contribuir para a redução da inadimplência das instituições privadas de ensino superior. Para tanto irá gerir um sistema de crédito estudantil rotativo, por meio da concessão de bolsas pelas universidades conveniadas. O projeto, que contará com uma oferta inicial de 10 mil bolsas a partir de 2004, pretende ampliar o interesse dos alunos das escolas particulares, a fim de aumentar a procura por vagas nessas instituições; para isso, o financiamento conta com algumas vantagens, que não estão presentes nos modelos tradicionais. O estudante que tiver acesso às bolsas oferecidas pelo projeto só começará a quitar o débito um ano após a conclusão do curso e terá como prazo de pagamento o tempo de duração da graduação. Além disso, não será cobrada nenhuma taxa de juros sobre o valor disponibilizado; a única correção será em caso de alteração no custo do curso. A relação das três partes (IES, aluno e CEBRADE) acontecerá da seguinte forma: a instituição de ensino, a seu critério, concede a bolsa restituível e o aluno providencia a documentação necessária, enquanto o CEBRADE fica com o gerenciamento do sistema, tomando todas as cautelas necessárias para garantir a quitação dos empréstimos. Além da abertura do financiamento, o projeto do SEMESP inclui ainda programas de capacitação e titulação de docentes; parcerias com empresas para investimento em pesquisa científica; colocação de graduandos em estágios curriculares e o desenvolvimento de um plano de avaliação institucional. No final de 2002 foi formada a Ideal Invest14, para atender alunos do ensino superior em geral, por meio de crédito educativo. É um financiamento a que os universitários podem recorrer, além dos oferecidos pelo governo e pelas instituições de ensino; é o chamado crédito privado. Normalmente cobrando juros mais altos, esse tipo de socorro pode ser útil tanto para quem está em dívida com a IES onde estuda, como para quem não tem recursos sequer para começar a pagar o curso, depois de aprovado no vestibular. Há duas opções de financiamento, um chamado de crédito estudantil de recuperação, para quem está em débito, e outro de crédito estudantil de manutenção, para quem ainda não deve nada à instituição. No caso do crédito de recuperação, o estudante realiza um contrato com a Ideal Invest, que quita a dívida contraída com a IES e, então o universitário passa a dever à empresa. Este financiamento pode ser feito em até oito anos, a uma taxa de juros de 2,5% ao mês. Depois, o estudante pode voltar a pagar as mensalidades normalmente com a instituição. Já no crédito de manutenção, o estudante pode financiar até 30% do valor da mensalidade e há a possibilidade de firmar o contrato desde o primeiro ano. O prazo nesse tipo de crédito também é de 13 SEMESP.O CEBRADE. São Paulo, 2003.www.semesp.org.br. 14 IDEAL INVEST. Crédito Educativo. 2003. www.idealinvest.com.br. Voltar 30 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 31 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis oito anos (desde o início do financiamento) e os juros, cumulativos (que incidem sobre o saldo devedor), também são de 2,5% ao mês, até o final do curso; a dívida do universitário apenas se acumula, pois até então nenhuma amortização é feita. Depois de formado, o aluno passa a pagar, à financeira, o mesmo valor que pagava de mensalidade à IES. Em ambos os casos existem as opções de amortizar o financiamento em qualquer época para diminuir o saldo devedor, o valor da prestação ou até quitar a dívida. Verifica-se nesse tipo de financiamento, uma série de itens que merecem a atenção dos contratantes. O empréstimo chamado “crédito de recuperação”, que quita o débito do aluno junto à IES, trará o alívio do fim da inadimplência junto à instituição, porém há que se atentar para a necessidade de organização nesse tipo de aquisição, uma vez que o universitário, ao mesmo tempo em que paga as mensalidades normais do curso, deverá proceder à quitação das parcelas do financiamento. Outro aspecto diz respeito aos juros que, como já comentado em parágrafo anterior, normalmente são mais altos do que os praticados em outras opções de crédito estudantil e neste caso particular são atrelados às oscilações da taxa Selic. No caso do país voltar a vivenciar um cenário de hiper-inflação, a variação dos juros acompanhará essa taxa. Ainda, no tipo de “crédito de manutenção”, o percentual máximo de financiamento de 30% da mensalidade escolar é bastante irrisório, deixando a cargo do aluno a parcela mais significativa. Nos casos dos créditos já citados, não existe um prazo de carência para que o estudante possa se estabelecer e iniciar o pagamento da dívida, assim como, para ambos os casos, o aluno deverá apresentar, como condição básica de contratação dos financiamentos, um fiador com renda comprovada, atualmente de no mínimo R$ 1.500,00 ou que possua um imóvel quitado em seu nome. Como se verifica, o empréstimo é bastante limitador e voltado para classes de maior poder aquisitivo. O Programa de Crédito Educativo – PCE/CREDUC – O antecessor. O programa de Crédito Educativo Federal PCE/CREDUC surgiu em 1973 quando o governo brasileiro, através do Ministério da Educação e Cultura, elaborou uma série de estudos visando a desenvolver um sistema de bolsas de estudo restituíveis, destinadas a alunos do curso superior. O objetivo maior era atender às necessidades dos estudantes de classes sociais menos favorecidos, no que se refere ao acesso e permanência no ensino superior. Da evolução desses estudos surgiu o Programa de Crédito Educativo Federal, cujas principais vantagens eram: facilidade operacional e a garantia, origem e volume de recursos renováveis, permitindo sua permanente ampliação e continuidade. O Programa de Crédito Educativo foi criado pela Presidência da República, em 23 de agosto de 1975, com base na Exposição de Motivos nº 393 de 18 de agosto do mesmo ano, e implantado no primeiro semestre de 1976. Nos primeiros anos, o Programa foi operacionalizado com recursos do Voltar 31 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 32 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e bancos comerciais. Em 1983, foi alterada sua forma de custeio, passando os recursos a serem providos pelo orçamento do MEC e pelas receitas das loterias, previstas para o Fundo de Assistência Social (FAS), ficando a Caixa Econômica Federal como seu único agente financeiro. A Lei 8.436, de 25 de junho de 1992, institucionalizou o Programa. Posteriormente, em 17 de fevereiro de 1993, o MEC, através da Portaria 202, e o Banco Central, através da Circular 2.282, fixaram suas regulamentações e diretrizes. A partir da regulamentação da Lei 8.436, passou a ser definitivamente administrado e supervisionado pelo MEC. Segundo Barroso15 esse programa baseou-se em experiências de outros países para a formulação de um modelo operacional próprio, que tinha os seguintes objetivos: buscar a igualdade de oportunidades educacionais; diminuir a evasão do ensino superior; proporcionar aos brasileiros de escassos recursos financeiros novas fontes de renda que lhes facilitasse cursar o ensino superior; beneficiar os estudantes de estabelecimentos de ensino público e privado; possibilitar ao estudante o seu auto-financiamento, gerando um grau de responsabilidade; obter melhoria na qualidade de ensino e maior rendimento acadêmico. Observa-se, portanto, que o objetivo primordial do programa foi o acesso e a permanência do aluno no ensino superior, facilitando a dedicação plena aos estudos e substituindo, graças ao crédito de manutenção, o tempo durante o qual ele teria que trabalhar para sobreviver por dedicação aos estudos. De acordo com Souza & Faro16, segundo os objetivos propostos, o Programa definiu inicialmente duas modalidades de operação: “manutenção e anuidade”. O empréstimo “manutenção” foi idealizado na tentativa de reduzir as dificuldades de sustento dos alunos carentes, tanto na rede oficial como na privada. O valor desse empréstimo seria alterado de acordo com o custo de vida e a inflação. O programa de crédito de “manutenção” assumiu valores semelhantes ao do salário mínimo, muito embora não se constituísse de fato em salário atraente para o trabalhador, também não o sendo para o indivíduo com o 2º grau completo e, portanto, apto a ingressar no 3º grau. É provável que na época esse aluno pudesse ingressar no mercado de trabalho e auferir salários muito superiores ao mínimo regional. O empréstimo para “anuidade” teve seu valor fixado pelo próprio valor da anuidade estipulada pelo estabelecimento de ensino superior em que o beneficiário estivesse matriculado. O prazo de duração dos contratos era equivalente ao da duração média do curso, admitindo-se, em casos especiais, a tolerância de mais um ano. O prazo de carência era de um ano, contado a partir do término do prazo de utilização. Os juros eram de 15% ao ano, capitalizados semestralmente 15 BARROSO, C. L. Crédito Educativo. Revista Educação. Brasília: MEC, p. 65-70, 1974. 16 SOUZA, A. M.; FARO, C. Crédito Educativo e Ensino Superior. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 4 (1): 3-17, jan./mar.1980. Voltar 32 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 33 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis durante o prazo de utilização e de carência, calculando-se a referida taxa, pelo sistema Price. Durante o prazo de amortização, os juros eram de 12% ao ano, para remuneração dos agentes financeiros, mais 3% destinados à formação de Fundo de Risco do Programa, utilizado no ressarcimento dos saldos devedores não resgatados, depois de esgotados todos os meios de cobrança. O critério de seleção dos candidatos ao crédito educativo foi definido pelo Ministério da Educação e Cultura e baseou-se no índice de carência do candidato. Esse índice era determinado pela renda bruta familiar do candidato, pelo número de componentes da família que vive da mesma renda, pelos valores de referência regionais, e por uma constante destinada a abater o pagamento de aluguel ou a prestação da casa própria. Com base nestes critérios de seleção, a Caixa Econômica Federal, como gerenciador (administrador) do Programa, passou a selecionar os candidatos inscritos para serem atendidos de acordo com a disponibilidade de receita do Programa. Diversas foram as fontes de financiamento do programa de crédito educativo federal em seu início, destacando-se: os recursos orçamentários do MEC e de outras fontes, a fundo perdido, que comporiam o fundo financeiro com vistas a custear a parte subsidiada, os depósitos compulsórios nos bancos comerciais até o limite de 1% e os recursos próprios da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil. Assim idealizado, o Programa de Crédito Educativo foi implantado no primeiro semestre de 1976 nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País, incluindo a maioria dos estados em que, na época, se concentrava parcela inferior a um quarto da população universitária, e onde se localizava o maior índice de carência do País. No segundo semestre de 1976, o Programa foi estendido às regiões Sul e Sudeste, completando-se a sua implantação em nível nacional.17 Em 1979 o Banco do Brasil retirou-se do Programa, dados os altos custos de administração e a perspectiva de rentabilidade zero do investimento. Os Bancos Comerciais retiraram-se do Programa em 1980, fazendo que a Caixa Econômica passasse a ser o único agente financeiro nele envolvido. Após seis anos de implantação do programa, a participação do MEC no seu financiamento, mostrouse insuficiente, devido ao agravamento do processo inflacionário, a partir de 1978. Constata-se então, de acordo com Schwartzman: Que “o custo real do Programa de Crédito Educativo estava muito além da previsão feita na época da implantação. O total de recursos envolvidos perfazia no cômputo geral, Cr$ 17,5 bilhões a preços correntes. Desta soma um percentual de 33% correspondia a subsídios que deveriam ser cobertos pelo Ministério da Educação e Cultura.”18 17 CAIXA. Relatório de Gestão, Mar. / 2002. Brasília, 2004. www.caixa.gov.br. 18 SCHWARTZMAN, J. O Crédito Educativo no Brasil. Revista Educação Brasileira, v. 17, (34): 71-84, 1º sem. 1995. Voltar 33 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 34 História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Sumário Ao estabelecerem, a taxa de juros de 15% ao ano, os idealizadores do Programa de Crédito Educativo enfatizavam o cunho social do crédito, visto que, já em 1975, a taxa de inflação existente girava em torno de 30%ao ano. Aparentemente, não deve ter sido previsto que a inflação cresceria em proporções galopantes, anos depois. De acordo com Souza & Faro19, pelos cálculos estimativos feitos em 1979, mesmo que a taxa inflacionária tivesse sido fixada em torno de 30%, tomando por base o tempo de utilização, carência e amortização do empréstimo, o beneficiário restituiria ao programa apenas 48% da quantia recebida. O financiamento, então, era favorável ao beneficiário, mas muito pouco rentável ao programa, devido à alta taxa de juros no mercado e à elevada inflação.Verifica-se que os altos índices inflacionários constituíram um dos fatores intervenientes para o insucesso do programa de crédito educativo. Outro fator que contribuiu para o crescimento da dívida do MEC para com a Caixa Econômica Federal e, conseqüentemente para a retração do programa, foram os altos índices de inadimplência. Em 1979, quando os primeiros alunos iniciaram a restituição dos empréstimos aos bancos, verificou-se a principal falha do programa: inadimplência. Um ano após a conclusão do curso superior, o beneficiado pelo crédito não procurava a Caixa Econômica Federal para iniciar o pagamento de seu débito. Argumentam Souza & Faro20 que a não existência de avalista nos contratos de empréstimos foi outra crítica feita ao programa. A ausência de garantias reais tem contribuído para a alta taxa de inadimplência, restringindo conseqüentemente a participação de novos estudantes. Além das baixas condições econômicas e salários menores no mercado de trabalho, outra razão que levou os universitários a não efetuar o pagamento, e que chamou a atenção à época, prende-se a que muitos entendiam que a dívida deveria ser perdoada, com base no princípio de que o ensino superior gratuito seria obrigação do Estado. Outro aspecto foi a liquidez financeira do sistema, com taxa de juros crescente, além da correção monetária acompanhada de inflação galopante, tendo como conseqüência a diminuição de aplicações de recursos, no programa, por parte do próprio governo e dos agentes financeiros. Outrossim, uma das críticas mais freqüentes formuladas ao Programa de Crédito Educativo é a de que sua finalidade original de reduzir as desigualdades de oportunidades educacionais no terceiro grau terminou por resultar numa forma de manutenção de uma rede de ensino de má qualidade. 19 SOUZA, A. M.; FARO, C. Crédito Educativo e Ensino Superior. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 4 (1): 3-17, jan./mar.1980. 20 SOUZA, A. M.; FARO, C. Crédito Educativo e Ensino Superior. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 4 (1): 3-17, jan./mar. 1980. Voltar 34 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 35 Sumário História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Esses fatores e talvez outros de menor porte, eclodiram em insuficiência de recursos, o que contribuiu de certa forma para que, em 1983, houvesse uma parada nas operações de crédito educativo, com o propósito de definir e reestruturar o Programa, em face de nova realidade econômica do País. As alterações introduzidas foram: redução de juros de 15% para 6% ao ano, introdução da correção monetária parcial, equivalente a 80% da variação das ORTNs, a exigência de fiador e o alargamento do prazo para amortização em duas vezes o tempo de utilização do crédito. Em 1997 o Programa de Crédito Educativo financiou pela última vez novas vagas, tendo sido liberados R$ 309 milhões para atendimento de 58.709 cidadãos brasileiros. A partir dessa data, os recursos liberados foram suficientes somente para os aditamentos dos contratos em vigor.21 Dentre os fatores que levaram o Programa de Crédito Educativo à sua exaustão podemos destacar: • parcelas de amortização elevadas em decorrência do longo prazo da operação, capitalização dos encargos e juros; • inexistência de fiadores ou garantias do crédito; • dificuldades na cobrança administrativa, dada a grande mobilidade dos estudantes; • limitação das fontes de recursos pela diminuição do retorno dos créditos concedidos. O Crédito Educativo foi a principal fonte de recursos públicos federais para as instituições de ensino superior privadas. Quando de sua instalação, em 1976, o Programa financiava mensalidades e gastos de manutenção de alunos de instituições públicas e privadas. Desde então, mais de um milhão de estudantes foram beneficiados pelo Programa. No seu início, havia um volume apreciável de recursos e quase todas as solicitações eram atendidas. Nessa época o reembolso deveria ser efetuado com um ano de carência e com prazo equivalente à duração do respectivo curso, a uma taxa de juros fixa de 15% ao ano, para uma inflação média de 100% ao ano, no período 19761983. O Programa era administrado pela Caixa Econômica Federal, mas suas perdas financeiras, devidas aos juros negativos e à inadimplência, deveriam ser cobertas pelo Ministério da Educação, através de seu orçamento. Por volta de 1983, o Programa estava praticamente falido, já que o subsídio dos empréstimos chegava até a 90%. Os valores nominais de reembolso tornaram-se tão baixos que nem os estudantes se preocupavam em pagá-los nem a Caixa em recebê-los. Após o colapso de 1983, o programa foi reformulado, introduzindo-se novas fontes de financiamento – as loterias –, restringindo-se o acesso aos estudantes carentes de universidades particulares somente para pagamento de mensalidades. Nessa fase, os termos do reembolso ficaram mais apertados, mas permaneceu um grande subsídio, estimado em 55%. Apesar de 21 CAIXA. Relatório de Gestão, Mar. /2002. Brasília, 2004. www.caixa.gov.br. Voltar 35 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 36 História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Sumário mais baixo do que o anterior, esse subsídio ainda não era suficiente para tornar o Programa financeiramente viável. A partir de 1989, novas modificações buscaram trazer auto-suficiência para o Programa, tais como a introdução de uma taxa de 6% acima da correção monetária, a diminuição do período de carência e a exigência de um fiador. Não obstante, estima-se que o subsídio nesse período tenha sido de 8%, além dos custos administrativos e das elevadas taxas de inadimplência. Além da questão financeira, o Programa foi criticado em muitos aspectos, tais como o de nem sempre atingir os estudantes mais necessitados, de ter um inaceitável índice de inadimplência e de, muitas vezes, financiar indiretamente escolas de muito baixa qualidade. Foram também detectados, por volta de 1995, problemas de natureza político-operacional. Entre os primeiros estariam a baixa prioridade do CREDUC no MEC, a instabilidade dos recursos, a falta de clareza entre os papéis do MEC e os da Caixa Econômica Federal, problemas com o mecanismo de seleção, elevada concentração de benefícios nas áreas de Ciência Humanas e Sociais e uma acentuada dependência financeira por recursos do MEC, até o momento considerados insuficientes, e ausência de avaliação da qualidade das instituições que integram o Programa. Os problemas de natureza operacional eram, entre outros, de falta de informatização, ausência de um modelo atuarial, baixíssima taxa de retorno, elevado custo operacional (13%), prazo demasiadamente longo de permanência de estudantes, chegando a 12 ou 13 anos, em alguns casos. 22 Várias foram as causas do não pagamento do débito pelos alunos beneficiados pelo Programa, dentre elas: o descompasso dos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior versus as necessidades do mercado de trabalho, recessão econômica e desemprego, a desistência do aluno do curso superior escolhido e a própria atitude do aluno em relação ao pagamento do ensino superior. Sabe-se da existência, no meio estudantil, da bandeira de luta que defende a gratuidade do ensino público em todos os níveis. Outro aspecto que influenciou a alta taxa de inadimplência foi o desemprego dessa clientela estudantil, criado pela recessão econômica. Em 1981 e 1982 a taxa de desemprego girava em torno de 8,2%, sendo que a taxa inflacionária, em 1981 era de 110,2% e em 1982, de 131%, o que contribuiu cada vez mais para a inviabilidade do Programa.23 O principal indicador de gestão refere-se à inadimplência do Programa.O Quadro I apresenta a situação do Programa até o final do exercício de 2001. 22 SCHWARTZMAN, J. O Crédito Educativo no Brasil . Revista Educação Brasileira, v. 17, (34): 71-84, 1º sem. 1995. 162 CONJUNTURA ECONÔMICA. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1981/82. Voltar 36 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 37 História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Sumário QUADRO I – CREDUC – POSIÇÃO DE INADIMPLÊNCIA. Fases Quantidade de Contratos Saldo Devedor Utilização 11.401 126.622.055,11 Carência 14.201 103.890.544,72 Amortização 22.468 65.202.560,28 Total 48.070 295.715.160,11 Inadimplência 16.941 50.160.619,34 Índice de Inadimplência (*) 75,40% 76,93% Fonte: CAIXA: Relatório de Gestão – Março/2002. (*) Índice de Inadimplência calculado, apenas, sobre os contratos em Amortização. A CAIXA e o MEC, em trabalho conjunto, encaminharam proposta de alteração da Medida Provisória, no sentido de permitir que aqueles contratos que não mais se beneficiam da Lei 10.207, pudessem ser renegociados por normas mais flexíveis a serem estabelecidas pela CAIXA. Em 12/ 07/2001, a Lei 10.260 em seu art. 2º, §5º, permitiu essa flexibilidade e a CAIXA voltou-se aos estudos para operar de forma a garantir o retorno dos recursos em condições favoráveis ao estudante sem, no entanto comprometer o programa e lançar essa alternativa em 2002. Diversas ações foram empreendidas visando à recuperação do Programa. Em 1997 foi oferecida a prerrogativa de alongamento dos prazos de amortização. A medida provisória 1.706, de junho de 1998, atualmente Lei nº 10.207, possibilitou expressivos descontos para a liquidação e a renegociação de saldos devedores. Desde sua implantação, 53.711 clientes renegociaram ou liquidaram seus débitos. QUADRO II – CREDUC – POSIÇÃO DE CONTRATOS RENEGOCIADOS/LIQUIDADOS. Quantidade de Contratos Renegociados Valor de Contratos Renegociados Quantidade de Contratos Liquidados Valor de Contratos Liquidados Em 2001 3.325 60.943.626,70 919 10.324.172,63 Até 2001 32.979 368.950.163,01 20.732 63.992.737,14 Fonte: CAIXA: Relatório de Gestão-Março/2002. A grande instabilidade e as mutações no cenário econômico determinaram o esgotamento do modelo CREDUC vigente. Em 1999, com a criação do FIES – Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, o CREDUC deixou de contratar novos empréstimos para estudantes, mantendo-se, apenas, os aditamentos que, segundo se estima, persistirão até 2005. Iniciava-se uma nova fase da história do crédito educativo no país. Como já vimos, o estudo da questão exigiu um amplo espectro de pesquisas de caráter interdisciplinar, que recorreu a dados históricos, político-administrativos, sociológicos, educacionais e culturais, das últimas décadas do país. Voltar 37 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 24-38 Universidade São Marcos Voltar 38 História e Experiências Brasileiras do Crédito Educativo antes do FIES – Financiamento Estudantil Maria Hidalgo Sanchez / Laima Mesgravis Sumário Referências bibliográficas APICE. Historia, hoja de vida y semblanza. Colômbia, 2002.www.apice.com. APICE. Historia, hoja de vida y semblanza. Colômbia, 2002. www.apice.com. BARROSO, C. L. Crédito Educativo. 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Palavras-chave: Antropologia, cultura, identidade, aculturação. Abstract From contents of the course Cultural Meanings of the Identity the article reflects on the genealogy of the concept of culture and its insertion in Post-Modernity. Directing itself as a representation of the humanity, the concept is projected inherently to the subject of the cultural identity and is expressive of the contradictions and spallings of the current world. Key-words: Anthropology, culture, identity, acculturation O conceito de cultura indica uma genealogia que surgiu comprometida com a própria humanidade. Há uma tendência clara, na atualidade, de ter a cultura se tornado uma expressão da humanidade, singular ou plural, intrínseca à própria natureza humana. Em seus desdobramentos semânticos ordenam-se conjuntos e situações temporais mobilizados pelos sujeitos em suas produções coletivas. O tema da universalidade e particularidade cultural tomou o rumo do próprio modo de ser com que as sociedades articulam e expressam suas condições de vida material e de elaboração simbólica. Elementos de valor e condições da realidade emergem e exigem definições e atitudes críticas compromissadas com essa temática, que muitas vezes são expressas como “questões culturais”. * Professora Doutora do Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Aluno do Mestrado Interdisciplinar da Universidade São Marcos. Editor da Unimarco Editora. Voltar 39 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 40 Sumário O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy O objetivo deste artigo é sinalizar a necessidade de construção e reconstrução do conceito de cultura na antropologia e a forma como tal conceito foi abrangendo uma complexidade social, sendo experimentado como uma idéia contextualizada histórica e espacialmente. Entendemos ser esta uma questão central para um olhar compreensivo do mundo contemporâneo, e a freqüente tentativa de ordenamento das representações e da revisão do conceito de evolução cultural1. Na antropologia as colocações teóricas referentes ao conceito de cultura, abrangem uma dimensão crítica das idéias e representações que centralizam o diálogo político no que se refere às diferentes situações de cultura. A crise contemporânea de valores expõe uma dimensão da cultura que se projeta em identidades específicas retratadas em campos de intensos conflitos ideológicos, com implicações étnicas e históricas. Inicialmente, discutimos neste artigo a gênese da cultura e sua introdução como objeto de estudo da antropologia. Em seguida, situamos o movimento do relativismo cultural, para chegar à incorporação de um movimento definidor da cultura em relação à natureza e à expressão simbólica da comunicação. Finalmente comentamos a modernização, o individualismo e áreas de representação da cultura como expressão de uma pós-modernidade. O processo civilizatório, interrogado quanto a sua direção linear e de propósitos definidos no interior de um universo hierárquico, abre-se para um diálogo em que o sentido de modernidade e de urbanismo indica também formas de contestação e de contrastes. Uma atitude crítica e científica toma a forma de uma condição de se projetar no universo das diferenças humanas através da criação de elemento de valor e de produção de uma civilidade crescente2. 1. A gênese da cultura e sua inserção no desenvolvimento das civilizações. Na era de uma concepção linear. Ressalta-se a inicial representação cultural do termo cultura para designar uma parcela de terra cultivada. Entende-se uma idéia diante do fato de cultivar a terra, conforme ocorreu no século XVI. A partir daí, a dinâmica do pensamento expande-se para indicar diferentes conceitos com que a ação de cultivo se amplia. Progressivamente, como afirma Cuche, a cultura se libera de seus complementos e acaba por ser empregada só para designar a “formação”, a “educação do espírito”3. Nos bastidores da Revolução Francesa, do século XVIII em diante, o movimento do Iluminismo incorpora essa idéia, concebendo-a como um caráter distintivo da espécie humana. 1 Registramos que este artigo resulta de uma reflexão realizada entre os alunos no curso Significados Culturais da Identidade, que foi ministrado no 2º semestre de 2005. (Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação – Universidade São Marcos) 2 Vide a respeito dessa evolução ELIAS, Nobert – O processo civilizatório. 3 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. p. 20 Voltar 40 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 41 Sumário O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy Nessa época, o pensamento indicava saberes em uma direção certa da acumulação; uma visão otimista de desenvolvimento e de concepção idealizada do homem. O antropocentrismo construíase por uma noção crescente do progresso humano, ou seja, da sociedade fundamentada no capitalismo e no crescente poder da burguesia. Ao originar-se uma idéia de “ciência do homem” a concepção histórica da humanidade emerge pela dessacralização da história. Ou, como afirma Eagleton, “quanto mais predatória e envilecida parece ser a civilização real, mais a idéia de cultura é forçada a uma atitude crítica”, a Kulturbritik está em guerra com a civilização, em vez de estar em harmonia com ela 4. O antigo universo medieval torna-se o passado de uma nova dimensão de vida que proclama a ciência como expressão de uma situação de universalidade do homem, marcada por novos estilos de vida e pelos avanços do desenvolvimento urbano sob o nascente capitalismo. Dentro de uma ideologia comprometida com a idéia de unidade do homem e de gênero humano nasce a antropologia como ciência expressiva da civilização e sua condição de universalidade. A primeira definição de cultura origina-se em 1871, por Tylor, como expressão da totalidade dos costumes, das crenças, com o propósito de indicar estágios, ou graus de evolução. É notável a dinâmica da civilização e de sua ascendência francesa, onde a ciência abrange um amplo universo social mobilizado tanto pela aristocracia como pela burguesia ascendente e seus intelectuais. No entanto, ao lado dessa tendência é retornado o caráter específico e restrito de valores “cultivados”. Emerge esse contexto na Alemanha de forma a valorizar aspectos de uma visão particularista dos acontecimentos e costumes. Assinala Norbert Elias que a ascensão de uma marca distinta da nação alemã no século XIX tornou-se fruto do pensamento dos intelectuais unidos aos burgueses5. Introduziam-se valores ligados à ciência, arte, filosofia, em oposição aos valores da aristocracia. Abandonando as leis universais da evolução, esse movimento recusa as generalidades e opõese à dinâmica hierárquica dos países em suas projeções culturais de civilização. Como afirma, novamente, Eagleton, Por volta do final do século XIX, ‘civilização’, por sua vez, tinha também adquirido uma conotação inevitavelmente imperialista, suficiente para desacreditá-la aos olhos de alguns liberais. Consequentemente era necessária outra palavra para denotar como a vida social deveria ser em vez de como era, e os alemães tomaram emprestado o termo francês culture para esse propósito 6 . 4 EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. p. 220 5 ELIAS, Nobert, idem 6 EAGLETON, Terry. idem, p. 22 Voltar 41 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 42 Sumário O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy A temática do progresso toma um rumo diferente, particularista, que se tornou a chave para as novas representações do conceito de cultura, uma vez que passará a considerar os movimentos dos povos em seus fundamentos étnico-raciais. A antropologia vai ordenar novas tendências que se acentuarão no século XX com a temática da diversidade cultural, seus particularismos e singularidades. Esse movimento ganhou vulto inicial com Franz Boas, ainda em fins do século XIX; suas propostas nasceram na Alemanha e foram depois cultivadas nos Estados Unidos. Conhecido como relativismo cultural, o novo movimento vai seguir pelos meados do século XX e mobilizar diferentes tendências teóricas expressivas de uma constante indagação sobre as direções do progresso científico e dos sujeitos inseridos nessa dinâmica. 2. Cultura: o relativismo cultural Assim, as propostas do relativismo cultural registram um movimento científico que se tornou central na definição da antropologia. Na abrangência de uma ampla ordenação do conhecimento voltamos a ressaltar a produção de Boas e o conseqüente surgimento do(s) culturalismo(s) americano(s). Na comentada produção de Boas foi considerada a visão do historicismo cultural. Desta, derivaram-se as análises sobre cultura e indivíduo, cultura e personalidade, comunicação social, tipos culturais, os padrões (patterns) . Definida a realidade através de uma conceituação expressa pela configuração cultural, estilo, modelo cultural, os seguidores de Boas retrataram a coerência e dinâmica de múltiplos universos, concebidos pelos costumes humanos particularizados. Nos anos 1930, esse movimento introduziu o conceito de aculturação, caracterizando situações de contatos e dominação cultural. Diante de realidades altamente complexas, tornou-se ele problemático e deu motivos para a formação de um “memorando para o estudo da aculturação” em 19367. Duas ou mais culturas em contato recíproco e harmonioso tornam-se relevantes através do conceito de sincretismo. Pela sua inserção na dinâmica cultural este conceito teve grande domínio no campo das religiões e abrangeu um espaço na bibliografia especializada dessa área do conhecimento. Situações de descontinuidade cultural, as estruturas sociais e desestruturações formaram o foco da crítica francesa ao culturalismo. Esta crítica foi assumida na obra de Roger Bastide, cuja grande parte tratou das religiões africanas no Brasil. Exige-se um contato particular com a obra de Marcel Mauss, que se tornou a chave para a compreensão da origem subjetiva e do caráter total dos fenômenos sociais8. 7 Conforme esse memorando foi esclarecido o conceito de aculturação como resultante de um contato direto e contínuo, com alterações nos modelos (patterns). O conceito de assimilação e de difusão referem-se a formas da aculturação e do contato entre grupos, entre indivíduos. 8 MAUSS, Marcel. Antropologia, Org. Roberto Cardoso de Oliveira Voltar 42 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 43 O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy Sumário No início do século, o relativismo cultural projetado por Malinowski na Inglaterra tomou um rumo diferente do culturalismo americano, já que esse autor trabalha com a noção de sistema social e introduz a questão cultural como importante da adaptação do homem e como recurso intrínseco da própria natureza humana. Malinowski trabalhou com grande empenho na questão metodológica do trabalho de campo, que se insere em toda a obra do relativismo cultural. Refletiu-se sobre a pesquisa participante, a relação entre o pesquisador e o objeto de estudo e nessa época, a pesquisa de campo foi abordada sob uma consideração de objetividade e de neutralidade científica. É preciso registrar que o relativismo dessa época centralizou o conhecimento antropológico como a antropologia clássica. A lógica da objetividade e coerência, presentes em um universo de funcionamento que ordena os movimentos discutidos, toma uma direção de aprofundamento com relação à possibilidade de ser desvendada a subjetividade dos fenômenos humanos, entendidos em sua relação de intensa reciprocidade, de um contato que é reestruturador de sentidos simbólicos, ou mesmo ideológicos. 3. Natureza e Cultura Na segunda metade do século XX novos pressupostos revolucionaram as concepções da evolução homínida9. Indica-se a formação de símbolos que projetam o compromisso e definição do homem na sua vida coletiva. O sentido da cultura torna-se expressivo das representações simbólicas, como um universo em oposição à natureza. Lévi-Strauss esclarece essa questão com os conceitos de “sistemas simbólicos”, “estrutura”, “regras universais” etc. O homem entra em jogo com a civilização seguindo regras não definidas em si por ele, mas pela história e pela cultura a que pertence, e embora tais regras sejam universais, cada jogo tem suas variantes e a participação ativa dos jogadores.10 O caráter do positivismo, que anunciou as realidades culturais do século XIX, toma nova dimensão e novo entusiasmo frente a diversidade. A noção de barbarismo readquire poder pela dinâmica que o universo simbólico expressa diante de uma natureza. Designado por estruturalismo, o movimento antropológico no século XX criou-se pela dimensão inconsciente, que une os homens sem apagar suas particularidades. Os homens são os mesmos, mas não são substantivamente iguais, como afirma Roberto Da Matta11. 9 Caracterizada na evolução da natureza são abordadas as condições próprias de uma humanidade sapiens. A respeito da evolução homínida e o que ela representou na redefinição do conhecimento ver MUSSOLINI, Gioconda – Evolução, Raça e Cultura; FOLEY, Robert – Apenas mais uma espécie única. 10 Apud CUCHE, Denys. idem. 11 DA MATTA, R. Um mundo dividido. Voltar 43 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 44 Sumário O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy Desde os anos 1970, a cultura enveredou pelo caminho das subjetividades e os objetos de estudo e de análise da interação social ganharam a dimensão dos movimentos de coletividades variadas, complexas, plurais. Estilos de vida, gostos de classes, cultura de massas, gestualidades, sentidos de marginalidade desvendaram a moderna antropologia. Esta, a partir da onda dos movimentos de contracultura passou a interagir de modo inédito com seus objetos de estudo, renovando seus recursos metodológicos e permitindo mais intercâmbio entre pesquisador e as múltiplas realidades analisadas. A antropologia interpretativa de Clifford Geertz tornou-se central no debate contra o ecletismo e o caráter realista da antropologia clássica. Partindo de uma proposta da cultura inserida na evolução homínida, como uma expressão do homem produto e produtor da cultura, Geertz insere o trabalho de campo na própria percepção que o etnógrafo descobre entre os dados significativos da cultura. O conceito semiótico da cultura conforme esse autor centralizou o debate que se expandiu para várias áreas do conhecimento científico. Conforme ele: “O conceito da cultura que eu defendo e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas teias, e sua análise, portanto, não como ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.12 4. Uma palavra sobre modernidade e pós-modernidade A cultura como centro das cenas na pós-modernidade projeta-se na crise de identidades, que resulta tanto da fragmentação do sujeito como na diversidade das etnias que afloram junto do fenômeno da globalização. Segundo Hall, o sujeito moderno passa por vários descentramentos, primeiro apartado da divindade, em seguida como ser autônomo cartesiano, passando pelo sujeito histórico do marxismo, pela abertura ao inconsciente e ao imaginário do sujeito freudiano e chegando à condição pós-moderna em que o descentramento e a fragmentação são suas divisas essenciais13. A segunda metade do século XX e o início do XXI formam uma realidade complexa que põe em xeque os paradigmas científicos ocidentais para a compreensão da sociedade e dos homens, exigindo uma abertura necessária para a questão das culturas humanas. Esgotados os paradigmas racionais, torna-se evidente a inclusão dos elementos culturais no centro da reflexão, bem como das singularidades mitológicas e étnicas, a multiplicidade de explicações da realidade que se fundam na riqueza da linguagem e das criatividades humanas. 12 GEERTZ, C. A interpretação das culturas. p. 15 13 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. p. 75 Voltar 44 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 45 O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy Sumário Ainda de acordo com Stuart Hall, “Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha”. 14 Ou seja, a definição do sujeito e de sua identidade, tanto no âmbito individual como no coletivo, passa por mediações complexas, com implicações antropológicas profundas, mas que devem ser abordadas a partir de uma perspectiva interdisciplinar, ou transdisciplinar como quer Edgar Morin. 15 Analisando as transformações geradas na modernidade, Giddens fala em “descontinuidades”, ressaltando que os “modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilham de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes”.16 Nesse sentido, o antropólogo francês Marc Augé lança mão do conceito dos não-lugares, como dado da supermodernidade, assim definido: “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar. (...) a supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairian, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí lugar circunscrito e específico”.17 O aparecimento desses novos espaços não se dá apenas no sentido geográfico, mas também na configuração de novas formas de relação identitária na sociedade, estas, vêm se tornando um desafio para a interpretação, tais como as comunidades virtuais, as gangues urbanas, as comunidades marginalizadas (favelas, tribos indígenas que ocupam as periferias de grandes metrópoles etc.), os grupos religiosos, o crime organizado, movimentos artísticos como o Hip Hop, o grafite, entre outros. Em estudo recente, Berger e Luckmann falam numa “crise de sentido” como decorrente do “pluralismo” na modernidade 18. Para esses autores, a crise de sentido é decorrência de uma crise 14 idem, p 75 15 MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 16 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. p. 14 17 AUGÉ, Marc. Não-lugares – Introdução a uma antropologia da super modernidade.p. 73 18 BERGER, Peter L.; e LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Voltar 45 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 46 Sumário O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy estrutural das sociedades, que se deve ao fato “de que as sociedades modernas não conseguem mais realizar de maneira igual e relativamente exitosa uma função básica e antropológica que todas as sociedades têm que realizar, ou seja, geração, comunicação e preservação de sentido, como puderam fazê-lo outras ordenações sociais do passado”.19 Podemos concluir que qualquer discussão política e econômica hoje, em âmbito global ou local, terá que necessariamente passar pela dimensão da cultura e da identidade, como fatores indissociáveis para o entendimento dos ordenamentos sociais e intersubjetivos. 19 idem, p. 80. Voltar 46 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 47 O conceito de cultura: revisão e atualidade Reynaldo Damazio / Marília Gomes Ghizzi Godoy Sumário Referências bibliográficas AUGÉ, Marc. Não lugares – Introdução a antropologia da super modernidade. Campinas: Papirus, 2003. 3º edição. Tradução de Maria Lúcia Pereira. BERGER, Peter L.; e LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004. CUCHE, Denys. A noção da cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002. 2ª edição. Tradução de Viviane Ribeiro. ELIAS, Norbert. O processo civilizador . Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. 2 v. Tradução Ruy Jungmann. EAGLETON, Terry. A idéia da cultura. São Paulo: EdUnesp, 2005. Tradução de Sandra Castello Branco. DAMATA, R. Um mundo dividido. Petrópolis. Ed. Vozes, 1976. FOLEY, Robert. Apenas mais uma espécie única. São Paulo: Edusp, 1993. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1978. Tradução de Fanny Wrobel. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: EdUnesp, 1991. Tradução de Raul Fiker. GODOY, Marília G. Ghizzi. Os desafios da antropologia em favor da interdisciplinaridade. Tempo & Memória. São Paulo: Unimarco, ano 2, nº 2, janeiro/julho 2004. Pp: 21-32 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Ed, 1997. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guará Lopes Louro LEVI-STRAUSS. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2ª edição, 1970. Tradução de Chaim Samuel Katz e Egnaldo Pires. MALINOWISKI, B. Antropologia Organizador da coletâne: Eunice R. Durham. São Paulo: Ática, 1986. Tradução Elizabeth Dória Bilac. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. 3ª edição. Tradução de Lamberto Puccinelli. _______________. Antropologia Organizador da coletânea: Roberto C. de Oliveira. Tradução Regina de M. Morel, Denise Maldi Meirelles e Ivone Toscano. São Paulo: Ática, 1979. MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002. Tradução de Edgar de Assis Carvalho. ______________. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. Tradução de Fernando Castro Fero. MUSSOLINI, Gioconda. Evolução, Raça e Cultura. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1969. Voltar 47 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 39-47 Universidade São Marcos Voltar 48 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff* Resumo Em 1835, a Assembléia Legislativa da Província de São Paulo criou um curso especial de “engenheiros de estradas”. Atenderia essa escola à necessidade da construção de novas estradas e à conservação das já existentes. Ela foi a primeira manifestação do ensino das ciências exatas em São Paulo, cujo objetivo era atender ao clamor público da necessidade da conservação de pontes e estradas, pois, sem elas, a economia da Capitania e posteriormente da Província estariam aniquiladas. Palavras-Chave: Ensino secundário, engenharia, estradas de ferro, Gabinete Topográfico. Abstract In 1835 the Legislative Assembly of the Province of São Paulo created a special course on “road engineering”. The course was intended to meet the demand to built new roads and to maintain the existing ones. Thus appeared the first manifestation toward the teaching of natural sciences in São Paulo, whose goal was to meet the need for conservation of bridges and roads, given that, without these, the local economy and eventually that of the province would have to face extreme difficulties. Key Words: middles school, engineering, railroads, Office for Topography Introdução A lavoura da cana de açúcar, que se desenvolveu em São Paulo a partir do século XVIII, (17651775), e só foi ultrapassada em volume pela do café, em meados do século XIX, foi, segundo o historiador Alfredo Ellis Jr. a atividade responsável por “sustentar” a economia de fins do século XVIII, quando o ouro estava em declínio e o café ainda não havia florescido com a força que se veria posteriormente: “(...) tudo nos diz que, entre o ouro e o café, deveria ter havido um pequeno ciclo econômico, ou vários pequenos ciclos econômicos”.1 Segundo o autor, se suprimirmos aquilo que ele denomina de “ciclo do açúcar planaltino”, a economia brasileira não teria possibilidade de viver, porque entre a extinção do ouro e o começo do café existiram algumas décadas vazias economicamente. * Professor Doutor da Universidade São Marcos. 1 ELLIS, Alfredo Junior. A economia paulista no século XVII. São Paulo: Academia Paulista de Letras (vol XI), 1979, p. 76 Voltar 48 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 49 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff Durante a última metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, isto é, durante cem anos, o açúcar foi o grande produto da região de São Paulo. A cana-de-açúcar garantiu o surgimento e a consolidação de diversos núcleos urbanos, mais tarde transformados em freguesias e vilas, e também as novas atividades decorrentes do aumento populacional, principalmente na região que a historiadora Maria Thereza Schorer Petrone chama de “quadrilátero do açúcar”, formada por MogiGuaçu, Jundiaí, Sorocaba e Piracicaba. A produção de açúcar cresceu, e exigiu novos mercados consumidores: assim, seu crescimento estimulou o surgimento da atividade tropeirista e sugeriu profundas modificações no sistema de transporte, principalmente na ligação do planalto com o litoral, que até o advento do açúcar se restringia a uma via para pedestres. Para que se pudesse exportar mais facilmente e para que o frete fosse barateado, o poder público buscava alternativas que vencessem as péssimas condições das estradas na época. A má qualidade das estradas As queixas sobre a má conservação das estradas paulistas eram constantes entre aqueles que dependiam delas para a exportação do açúcar proveniente do quadrilátero do açúcar. A difícil descida da Serra do Mar e a Baixada Santista tinham que ser transpostas para que o produto chegasse ao seu destino. Maria Thereza Schorer Petrone diz que “A economia paulista, a economia do planalto, quando se integrou no mundial, sofreu o impacto das dificuldades de transporte decorrentes, por um lado, da má conservação de todas as estradas e, por outro, dos obstáculos inerentes à descida da Serra do Mar que, para os recursos da época era vencida com dificuldade”.2 A agricultura configurava-se uma atividade mais lucrativa no litoral que nas “terras do sertão”, porque seus produtos eram mais facilmente exportados tanto para o Rio, quanto para a Europa. Os efeitos da “serra acima” , como se dizia, suscitava dificultosa saída dos produtos, que só podiam ser conduzidos através de cargas, e mesmo assim, com grandes dificuldades, dada a aspereza do caminho que dividia o litoral do sertão. Conforme Maria Thereza Schorer Petrone, “a má qualidade do açúcar, além de atribuída aos senhores de engenho e aos encaixadores, era devida, em grande parte, ao péssimo estado dos caminhos. As queixas sobre os danos causados pelas más estradas de São Paulo eram constantes e bastante graves. É claro que esse problema não afetava o açúcar produzido na marinha, o qual, para ser exportado, não dependia de estradas. Atinge, isso sim, o açúcar do quadrilátero do açúcar que, para ser exportado, tinha que percorrer as péssimas estradas do planalto, vencer a difícil descida da Serra do Mar e atravessar a Baixada Santista”. 3 O principal 2 PETRONE, Maria Thereza Schorer. A Lavoura Canavieira em São Paulo: Expansão e Declínio. (1765 – 1851). São Paulo, DIFEL, 1968, página 186. 3 PETRONE, Maria Thereza Schorer. Op. Cit, página 187. Voltar 49 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 50 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff problema do comércio do açúcar era, pois, o transporte pelos péssimos caminhos, sobretudo pelo caminho do mar, fator que limitava sua capacidade exportadora. Assim, o primeiro produto paulista que buscou caminhos “serra acima”, encontrou o sistema viário pouco desenvolvido, com precários contatos com o litoral. A demora entre o pólo produtor até o porto de embarque do açúcar muitas vezes era responsável por sua má qualidade, já que, sendo um produto altamente perecível quando sujeito a intempéries, ele invariavelmente estragava durante a longa viagem. Tratando-se de produto particularmente sujeito à deterioração, é fácil compreender o grande prejuízo que o comércio do açúcar sofria com as péssimas condições das vias de comunicação. Além disso, o transporte encarecia demais o preço final do açúcar: em 1836, o preço do transporte de Rio Claro a Santos, sendo 7,9 réis a arroba por quilômetro rodado, e a distância um total de 250 quilômetros, perfaziam cerca de 1$970 réis por arroba. Isso significava de 50 a 70% do valor da mercadoria. Assim, o próprio transporte absorvia a maior parte do valor do produto. Os governantes de São Paulo sempre estiveram cientes dessas dificuldades no transporte do açúcar para o litoral. Era sabido que a articulação com o caminho do mar, única via de acesso ao litoral para os produtores do quadrilátero do açúcar, era indispensável para que houvesse comunicação com o “mundo exterior”. Melo Castro e Mendonça, no auge do desenvolvimento da cultura de cana, relacionou a má conservação das estradas com a má qualidade do açúcar paulista, o que limitava os lucros dessa cultura: “a cana de açúcar vegeta igualmente bem de Serra acima e na Marinha: e suposto que o produto de Serra acima seja mais abundante, e a manipulação menos complicada...” “... com tudo o transporte para o lugar de embarque, e alguma dannificação, que adquire o dito gênero no mesmo transporte fazem, que seja menos lucrativa a sua cultura nesta Situação, por este motivo quazi todo o assucar que se embarca em Santos degenera da sua qualidade ao ponto de ficar em descrédito em producto, que comparado aqui com o melhor da Serra abaixo não se lhe conhece differença.”4 Em 1802, Melo Castro e Mendonça escrevia para o seu sucessor no governo que “o único meio que há para evitar a alteração que pela humidade se occasiona no assucar he a conservação das estradas.”5 Assim, o sistema viário da Capitania passou por transformações que visavam suprir a necessidade do transporte do produto até Santos. As tentativas de melhora Bernardo José de Lorena foi responsável por uma tentativa bem-sucedida na melhoria dos caminhos e, conseqüentemente, na escoação do açúcar. A calçada do Lorena, como ficou conhecida sua obra de 4 PETRONE, Maria Thereza Schorer. Op. Cit, página 188. 5 PETRONE, Maria Thereza Schorer. Op. Cit, página 188. Voltar 50 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 51 Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff Sumário calçamento da descida da serra do mar, realmente representou um avanço muito grande para a época. Foi a partir da calçada do Lorena que o caminho do mar se efetivou como o “caminho do açúcar”. Antes descrita como um “caminho de horrores”, a ladeira passou a permitir a subida com pouco cansaço e a descida com maior segurança. Assim como Lorena, outros governantes tentaram empreender melhorias nas estradas paulistas, mas o problema estava longe de ser resolvido. A “batalha” passou a ser a conservação e a melhoria dessas obras. Durante a década de 1830, foram muitos os pedidos para a construção de uma estrada de carros que facilitasse a exportação do açúcar. A Assembléia Provincial de São Paulo fazia apelos constantes à União para que a situação dos transportes em São Paulo fosse remediada: “He o excessivo preço dos transportes que inutilisa no estabelecimento do agricultor as sobras do seu trabalho, e dessa arte o priva de outros gêneros que preciza, quam desanima sua industria, e o torna indolente (...)”.6 O sistema viário sofreu importantes transformações e melhorias com o advento da cana-deaçúcar, mas as dificuldades ainda eram grandes: faltavam trabalhadores para as obras de conservação e reparos nas estradas, assim como pessoas especializadas para orientá-los. As condições de transitabilidade continuavam razoáveis, mas o grande problema era a exportação dos produtos paulista. Em 1835, o presidente da Província, Rafael Tobias de Aguiar, atento à importância de boas estradas no negócio açucareiro, idealizou a criação do Gabinete Topográfico, instituição de ensino destinada, principalmente, a formar engenheiros aptos à construção e à manutenção das estradas, e certamente um dos precursores do ensino de engenharia em nosso Estado. O Gabinete Topográfico Com o intuito de melhorar os caminhos para que as necessidades econômicas de São Paulo fossem supridas, foi criado pela Lei Provincial número 10, de 24 de maio de 1835, sancionada pelo então presidente da Província de São Paulo, Raphael Tobias de Aguiar, o Gabinete Topográfico: Art. 1 – Haverá na capital da Província um gabinete topographico, contendo: 1. – Um Director. 2. – Uma escola para estradas. 3. – Os instrumentos necessários para os trabalhos geodésicos. 6 Annaes da Assemblea Legislativa Províncial de S. Paulo.Secção de Obras D’ “O Estado de S. Paulo”, 1926, p. 177. 7 Idem, p. 182. Voltar 51 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 52 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff 4. – A collecção de todos os instrumentos topographicos da Província que se puder obter. 5. – Uma bibliotheca análoga ao estabelecimento.7 Paula Souza considerou essa iniciativa como os “Primeiros Tentamens da Escola Polytecnica”, tendo frisado em seu discurso de inauguração desta Escola, em 15 de fevereiro de 1894, que: “a victoria, hoje alcançada, foi em luta porfiada: porque a idéia que hoje venceu não é nova. Nossos avós tentaram realiza-la. Elles bem avaliavam as grandes vantagens que esta região adviria a divulgação de conhecimentos mathemáticos. Crearam, por isso uma Escola de Engenheiros construtores de estradas, que modestamente denominaram Gabinete Topográfico”. 8 Tratava-se de uma instituição concebida para atender as necessidades da cidade àquela época: formar topógrafos medidores de terra e engenheiros construtores de estradas, denominados condutores de trabalho. Aos alunos habilitados nas disciplinas ensinadas pelo Gabinete eram concedidas as cartas de Engenheiros de Estradas. Segundo um dos diretores do Gabinete, o marechal engenheiro Pedro Daniel Muller9, os objetivos dessa instituição eram: arquivar todos os mapas e memórias de projetos relativos à construção de estradas e instruir alunos nas matemáticas puras e desenhos necessários as aplicações em medidas de terrenos, construções de pontes e conhecimentos dos instrumentos utilizados para esses fins. O Gabinete iniciou suas atividades no antigo Palácio do Governo, na época situado no Páteo do Colégio, a 1º de outubro de 1835, com quatorze alunos: conseguiu construir uma pequena biblioteca, “boas obras das matérias que lhe são necessárias e alguns instrumentos”, mas enfrentou algumas dificuldades, apontadas por Pedro Muller ao observar que era preciso promovê-lo, “a fim de se obterem entendedores das matérias acima mencionadas, e haver pessoas que profissionalmente se apliquem as construcçõens das estradas de que tanto necessita a Província”. 10 O Gabinete Topográfico funcionou por três anos, de 1835 a 1838, e embora não escapassem ao governo as vantagens que boas estradas trariam à província, tal como o fomento do comércio entre as regiões próximas, o Gabinete enfrentou muitos contratempos para se manter em funcionamento. Entre os motivos que dificultaram sua implantação efetiva estão, além da falta de um local apropriado para o Gabinete, a insuficiência de verbas para a contratação de funcionários. Entretanto, a principal dificuldade era encontrar profissionais capazes de dirigir a construção de estradas e obras públicas em geral, ou de ministrar as matérias que capacitassem os alunos. Com todos esses problemas, as atividades do Gabinete foram suspensas em 1838. 8 PAULA SOUZA, Antonio Francisco de. Sessão de installação da Escola Polytecchica em 15 de fevereiro de 9 MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província. São Paulo: Seção de Obras d’O Estado 1894. Annúario da Escola Polytecchica para o Anno de 1900. São Paulo. p. 403. de São Paulo, 1923, p. 261. 10 Idem, ibidem. Voltar 52 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 53 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff Em 1840, o funcionamento do Gabinete Topográfico foi restabelecido, tendo sido tomadas algumas providências quanto à organização, direção e melhoramentos das instalações. No entanto, depois de ter feito parte da recém criada Diretoria de Obras Públicas – que logo foi suprimida – o Gabinete Topográfico foi extinto em 1849, dessa vez definitivamente. É oportuno examinarmos algumas das características técnicas e os resultados práticos do Gabinete Topográfico. Neste período os planos para obras viárias eram extremamente ambiciosos. Para a Serra do Mar, projetava-se uma obra de melhor nível técnico, com novo traçado e melhorias na antiga Estrada do Mar. A obra, concluída em 1844, foi denominada Estrada da Maioridade, a primeira estrada de rodagem da Província de São Paulo. Algumas dúvidas sobre a eficiência dessa estrada foram levantadas, visto que em 1846 Dom Pedro subiu a Serra montado em uma cavalgadura, o que poderia demonstrar que o objetivo principal, o de permitir a circulação de carros, não havia sido atingido. Alguns anos mais tarde, Nabuco de Araújo declarava que aquela jamais seria uma estrada normal e própria de rodagem. No entanto, não podemos perder de vista as dificuldades que existiam para a construção de obras desse porte e, portanto, seus resultados devem ser relativizados. A construção da Estrada da Maioridade alcançou ampla repercussão em várias regiões da província. Alguns anos depois foi feito um esforço semelhante para a construção da estrada da Graciosa, ligando Curitiba com o porto de Paranaguá. Ex-aluno do Gabinete Topográfico, Saturnino de Freitas Villalva trabalhou em sua fase inicial, quando o território do atual Estado do Paraná ainda pertencia a São Paulo. Algumas melhorias devem ter sido executadas nos traçados de outras estradas já existentes na província, pois no início do século XX, já existiam as condições para que os veículos movidos a gasolina pudessem trafegá-las. Para o estabelecimento de tais condições, o advento do Gabinete Topográfico foi o grande passo inicial, já que representou uma primeira tentativa de sistematizar os conhecimentos sobre engenharia, assim como canalizá-los para a construção de obras vantajosas à província. Escragnole Taunay considerou o Gabinete Topográfico como um “avoengo” da Escola Politécnica e ressaltou sua importância para o desenvolvimento do ensino técnico e de engenharia na província de São Paulo, principalmente na formação de topógrafos, mais habilitados do que os “pilotos”, sucessores do “pratico de agulha” profissionais ancestrais dos agrimensores, topógrafos e engenheiros11. 11 Taunay, Affondo Escragnole. A engenharia e o ensino técnico em São Paulo anteriores à Escola Politécnica de São Paulo (trabalho escrito para comemoração do cinqüentenário da Fundação da Escola Politécnica). Anuário da Escola Politécnica de 1947, p.101. Voltar 53 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 54 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff Infelizmente a experiência do Gabinete Topográfico teve curta duração, apesar de ser um “Instituto tão necessário para o real desenvolvimento do paiz não podia medar naquelle regimen de ficções e de enfezada centralização. Por isso, apesar da grande falta que então se experimentava, de homens práticos, capazes de bem delinear e executar as estradas, já n’aquela época reputadas indispensáveis para a prosperidade de São Paulo, após a extinção daquella modesta tentativa, que alias já ia produzindo excellentes fructus, nada mais se ensinou entre nós d’aquelle gênero”. 12 Era evidente que estava reservado ao governo Republicano, “que é o Governo do Povo, pelo Povo e em proveito do Povo, a tarefa de cuidar seriamente deste empreendimento; e só agora é que realmente se poderá esperar de semelhante instituição os benefícios que nossos avós já tão sabiamente anteviam”.13 Nas primeiras décadas do século XX, a província de São Paulo pouco exigia em matéria de grandes obras de engenharia, mas tracejar, localizar e abrir estradas era uma necessidade básica para se alcançar melhores condições de vida. Foi para responder esse apelo que se criou o Gabinete Topográfico, uma experiência que, apesar de duração efêmera, pode ser considerada como um marco na implantação do ensino técnico e de engenharia em São Paulo. Entretanto, apesar do seu valor para a província de São Paulo, o Gabinete Topográfico estava longe de representar um ensino superior. Naquela época somente a Corte possuía uma Escola de Engenharia, a Escola Central. O ensino no Gabinete era dedicado a noções de matemática, física, geometria e topografia e por isso acreditamos que podemos enquadrá-lo no chamado “ensino secundário”, que deu grande ênfase às ciências exatas, o que não foi observado em outros estabelecimentos secundários da época, excetuando-se o “Gymnasio do Estado”, surgido no final do século XIX. No Arquivo do Estado de São Paulo, local onde foi iniciada a pesquisa, pudemos encontrar o Livro de Matrículas do ano de 1842, com a lista dos alunos que freqüentavam as aulas do Gabinete. Além disso, estão disponíveis na biblioteca do Arquivo a coleção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo, que incluem desde a lei que criou o Gabinete, em 1835, e as mudanças que a instituição sofreu, até a data do seu fechamento definitivo, em 1849. 12 Taunay, Affondo Escragnole. op. Cit, p. 101. 13 Paula Souza, Antônio Francisco de. op cit. p. 403. Voltar 54 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 55 Sumário Gabinete Topográfico: Precursor no ensino da engenharia em São Paulo Nicolai Filimonoff Referências bibliográficas MULLER, Daniel Pedro, 1923. Ensaio d’um quadro estatístico da Província. São Paulo: Seção de Obras d’O Estado de São Paulo. PINTO, Adolpho Augusto, 1977. História da viação pública de São Paulo. São Paulo: Governo do Estado. SOUZA, Antônio Francisco de Paula, 1973. Sessão de installação da Escola Polytecnica em 15 de fevereiro de 1894. Anuário da Escola Polytecnica para o ano de 1900, São Paulo. TAUNAY, Affonso Escragnole,1947. A engenharia e o ensino técnico em São Paulo anteriores à Escola Politécnica de São Paulo. Anuário da Escola Politécnica de São Paulo de 1947, São Paulo. Voltar 55 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 48-55 Universidade São Marcos Voltar 56 Sumário A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida1 Senira Anie Ferraz Fernandez2 Resumo O presente texto trata de uma análise do sistema de formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo, uma formação eminentemente multidisciplinar. Está organizado em duas partes, onde inicia-se por uma análise histórica da profissão e conclui-se com os preceitos de sua formação na atualidade. Mescla para isso fontes bibliográficas e fontes humanas através de uma pesquisa realizada segundo o método conhecido por transcrição da história oral, chegando a importantes considerações sobre a questão limitadora do atual modelo de formação do novo profissional. A importante questão debatida é até que ponto o atual sistema de formação no Brasil condiz e é aplicável ao escopo desta profissão. Palavras chave: Comissário de vôo; Aeronauta; Escola de Aviação Civil; Formação profissional de nível técnico, Portarias. Abstract The present article is about an analysis of the flight attendants formation system in the Sao Paulo state, an eminent multidisciplinary formation. It is organized in two parts. It starts by an historical analysis of the profession and it is concluded by the principles of this formation nowadays. For these purpose, this article shares bibliographic sources and human testimonies, where the testimonies were obtained by a research done according the oral transcription method. From these two relevant sources, important conclusions about the limitation aspects of the current formation system were obtained. The important question to be discussed is how far the current flight attendants formation system is applicable to the profession scope of this category. Key words: Flight attendant; Aeronaut; Civil Aviation School; Technical level professional education; Governmental decrees. A atividade do comissário de vôo3 é uma das mais importantes para o transporte aéreo comercial brasileiro e mundial. Este profissional, pertencente à classe dos aeronautas, é formado no Brasil de 1 Mestre pelo programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Educação, Comunicação e Administração da Universidade São Marcos. 2 Professora Doutora do programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Educação, Comunicação e Administração da Universidade São Marcos. 3 Também conhecida por comissário de bordo. Voltar 56 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 57 Sumário A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez acordo com as premissas de nosso órgão máximo da aviação, o Comando da Aeronáutica4, através do Departamento de Aviação Civil, a fim de exercer atividades a bordo de aeronaves nacionais brasileiras que vão do simples oferecimento de refeições e do atendimento cortês, como a profissão ficou por muito tempo estigmatizada, até procedimentos específicos de emergência. Entender suas diretrizes de formação torna-se um meio muito interessante de analisar muitos aspectos de sua atividade. Em nosso país a aviação civil e os profissionais que operam suas aeronaves, os chamados aeronautas, começaram a surgir, segundo Aldo Pereira5, em 1927 através da empresa aérea Condor Syndicat que, de origem alemã, implantou as primeiras linhas aéreas brasileiras, utilizando para isso hidroaviões na região sul do país. É na década de 1930 que a função de comissário de vôo começa a surgir de uma forma oficial nas aeronaves, primeiramente nos Estados Unidos e Europa, e logo em seguida no Brasil. Diz-se de forma oficial porque, segundo Pereira6, desde 1920 a profissão já existia dentro dos hidroaviões de empresas americanas como a Western Airlines e a Pan American, as quais utilizavam nessa época homens, com a função de amarrar e desamarrar aeronaves, carregar bagagens e malas postais e cuidar dos passageiros. As mulheres, símbolos maiores da profissão de comissário de vôo até hoje, só foram na realidade empregadas a partir da década de 1930, tendo como principal nome o da americana Ellen Church , que, não aceita para pilotar para uma empresa americana, concordou em tornar-se aeromoça 7, tendo como forte argumento o fato de que poderia tirar o medo dos passageiros em voar e ainda cuidar daqueles que passassem mal na viagem, uma vez que ela era enfermeira por formação. Grande desenvolvimento a profissão sofreu a partir de então, graças à melhora tecnológica das aeronaves que fez com que o trabalho destes profissionais ficasse menos pesado e muito mais sofisticado, chegando, nas décadas de 1960 e 1970, os comissários de vôo, em especial as comissárias, a serem consideradas modelos a bordo de aeronaves, fato que gera fortes influências até hoje na profissão. No Brasil esse panorama não é diferente. De trabalho pesado no seu início, a atividade do comissário evoluiu para uma profissão considerada requintada, exercida em sua maioria por belas mulheres, tendo seu ápice na década de 1970, sofrendo uma nova evolução, chegando ao panorama 4 Antigo Ministério da Aeronáutica. Hoje possui status de comando e está subordinado ao Ministério da Defesa brasileiro. 5 PEREIRA, Aldo. História da Aviação Comercial Brasileira. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora. p. 44. 6 Idem, p. 383. 7 Stewardess em inglês. Voltar 57 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 58 Sumário A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez atual, em que se busca conceituar o profissional comissário de vôo muito mais como um técnico em segurança do avião do que como alguém belo que somente distribua sorrisos e refeições a bordo de aeronaves. Essa evolução apresenta profundas relações com o sistema educacional que formou e ainda forma estes profissionais no Brasil. No inicio da profissão é fato, segundo Pereira8, que não existia qualquer tipo de formação ou treinamento especial. A cargo das próprias companhias aéreas, eram destacados funcionários, em geral despachantes do vôo, para cuidar dos passageiros quando a bordo das aeronaves. Uma formação mais estruturada só começa aparecer no Brasil por volta da década de 1950, quando pressionadas pela concorrência das empresas americanas, nossas companhias aéreas notam que a única forma de atrair mais passageiros seria através de um algo a mais em seu serviço de bordo. Neste momento, seguindo suas próprias diretrizes, as empresas começam a formar estes profissionais com o objetivo de melhorar o atendimento a bordo. O curso, segundo comissárias da época, vinculava-se à função de “recepcionista”9 e cuidava de como atender bem um cliente; havia aulas de gastronomia e etiqueta além de maquiagem. Definitivamente, não havia grande preocupação em ensinar ao comissário conceitos de segurança, visto que se acreditava à época que pouco os mesmos poderiam fazer numa situação de emergência. Apesar de desde 1938, segundo Pereira10, o Departamento de Aviação Civil, ou DAC, já controlar a admissão de comissários de vôo por empresas brasileiras11, a preocupação em regular a formação e educação dos mesmos demorou algum tempo12, ocorrendo somente depois de vários anos após a subordinação de toda a aviação civil brasileira ao Ministério da Aeronáutica, um órgão militar, a qual ocorreu em 1941. A supervisão do Ministério da Aeronáutica na educação do comissário de vôo começa a mudar o escopo da profissão. Já com boa experiência em educação de pilotos e sofrendo pressões variadas de setores da sociedade, o Ministério cria currículos padrão para que as empresas aéreas passem a formar e reciclar seus comissários. O foco passou a ser totalmente voltado à segurança da aeronave e de todos os seus ocupantes. O glamour e o contato humano estimulados até então nos cursos, dão lugar a uma educação de modelo tecnicista e militarizada. 8 PEREIRA, Aldo. Op.cit. p. 383. 9 Do inglês hostess. 10 PEREIRA, Aldo. Op.cit. p. 45. 11 À época ainda chamados aeromoços. 12 Diferentemente do que acontecia com os pilotos que já tinham sua educação regulada desde os primórdios da profissão no Brasil pelo Ministério de Viação e Obras Públicas e depois pelo DAC. Voltar 58 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 59 A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez Sumário Na década de 1980 deu-se uma profissionalização ainda maior da função de comissário de vôo. Em 1984 cria-se aquilo que se pode chamar da mais importante lei da categoria, chamada de regulamentação da profissão da aeronauta, a qual válida até hoje, delimitou ainda mais a profissão no Brasil. Novamente no campo educacional, a criação em 1986 do Instituto de Aviação Civil13 fez com que houvesse um controle maior por parte do governo brasileiro destes profissionais, através da instituição de uma política muito clara de sua formação. Nota-se de uma maneira muito clara, nesse documento, que a formação de um comissário de vôo passou a ser encarada, numa alusão às diretrizes do Ministério da Educação brasileiro, como uma formação profissional de nível técnico14. Apesar da alusão feita, destaca-se, na portaria citada um distanciamento e um corte de qualquer canal como o Ministério da Educação Brasileiro, o qual de direito deveria ser o responsável pela formação de nível técnico no Brasil, como sugere a nossa LDB15 em seus artigos de números 39 a 42. O próprio Ministério da Educação, através de parecer, concorda que se trata de uma formação especifica, que deve ser organizada por um órgão competente para tal, conforme relatado a seguir: Um espaço que, certamente, não será· ocupado pelo sistema formal de ensino médio profissional seria o da formação da mão de obra muito especializada, necessária para algumas empresas. Fala-se aqui da especialização em pilotagem de aviões, embarcações e trens, controladores de vôo e assemelhados. É um espaço muito complicado de atuar. Muitos pilotos da aviação se formaram nas escolas de Aeronáutica, muitos pilotos de embarcações se formaram em escolas da Marinha16. A mais recente alteração sofrida por este sistema de formação se deu em 1992 quando o IAC decidiu-se por desvincular a formação inicial das empresas aéreas e trazê-la para instituições particulares, denominadas escolas de aviacao civil. Essa desvinculação ocorreu em razão de um novo documento conhecido por RBHA 14117, que regulamentou, autorizou e deu poder ao DAC e consequentemente ao IAC para homologação das escolas que passariam a formar os futuros comissários de vôo para as empresas brasileiras. Este é o panorama atual da formação de um comissário de vôo no Brasil. Uma série de escolas homologadas pelo DAC através do IAC oferecem cursos particulares de duração aproximada de 13 Conhecido simplesmente por IAC. 14 A qual ocorre pós ou simultaneamente ao segundo grau e visa profissionalizar indivíduos diretamente para o mercado de trabalho. 15 BRASIL, Leis etc. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília. 16 BRASIL. Manuais do Ministério da Educação. Educação Profissional: Referenciais Curriculares nacionais de educação profissional de nível técnico. Brasília, 2004. 17 BRASIL, Portarias etc. Departamento de Aviação Civil. Portaria nº 827/DGAC de 04 de agosto de 2004. Atualiza o RBHA 141. Rio de Janeiro. Voltar 59 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 60 Sumário A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez quatro meses, nos quais, seguindo um currículo mínimo estabelecido, os alunos deverão obter um desempenho satisfatório que lhes permita serem aprovados na respectiva escola, para que possam fazer uma espécie de vestibular, realizado três vezes ao ano pelo IAC, em que a aprovação significa ao futuro profissional o direito de obter um Certificado de Conhecimento Teórico. Este certificado é uma espécie de licença que dá direito ao futuro comissário de concorrer a um emprego em uma companhia aérea. Essa companhia aérea, também regulada e fiscalizada pelo DAC e IAC, deverá prover ao futuro comissário de vôo uma complementação do curso ministrado pela escola, uma habilitação específica o tipo de aeronave de cuja tripulação o futuro comissário vai fazer parte, e uma espécie de estágio a bordo para que finalmente o mesmo seja considerado apto a exercer a profissão. Apesar de aparentemente funcional, existem certos pontos nessas diretrizes educacionais para comissários de vôo cuja aplicabilidade e respectivos reflexos acabam sendo muito discutidos no próprio meio da profissão. Um primeiro ponto, avaliando as escolas e depoimentos analisados de alunos e de instrutores é que o nível do corpo docente deixa muito a desejar. Não é somente o fato de a maioria deles não possuir formação universitária18, mas sim o fato de faltar muitas vezes um melhor preparo para a transmissão do conhecimento. Não há nas portarias do DAC um incentivo ao desenvolvimento das habilidades do instrutor tanto na didática quanto na pesquisa, ficando este último quesito inteiramente a cargo das empresas aéreas que acabam por não repassar às escolas estes novos conhecimentos. De um certo modo, a diretriz incentiva que os instrutores das escolas de aviação civil sejam apenas repetidores de um conteúdo já formulado e que tenham acima de tudo experiência de vôo, algo que na visão do DAC e do IAC parece ser considerado benéfico e suficiente para que o entendimento do assunto seja atingido. O máximo a que se chega na parte pedagógica é um lembrete do IAC para que os instrutores tenham feito algum “curso de preparação para instrutores”19. Somese a isso o fato de as escolas de aviação civil utilizarem os instrutores num regime free lancer, escalando-os, em geral, em suas folgas nas companhias aéreas 20, o que diminui o vínculo do profissional com a instituição e o próprio fomento à pesquisa. Devido à forte presença militar ainda presente no DAC, pode-se afirmar, baseando-se nas palavras do professor Nilton Santos21, que a qualificação de professores, na época da educação militar, que 18 Fato muito comum nas escolas de afiação civil brasileira já que possuir nível universitário não é considerado requisito mínimo da portaria número 827 do DAC, a qual regula o conteúdo e formação do corpo docente para tais instrutores. 19 BRASIL, Departamento de Aviação Civil. Portaria nº. 827/DGAC de 04 de agosto de 2004. Atualiza o RBHA 141. Rio de Janeiro 20 Muitos deles são comissários em atividade em empresas aéreas. 21 SANTOS, Nilson. Filosofia para crianças. Rondônia: Edufro, 2001, p. 7. Voltar 60 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 61 Sumário A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez atingiu seu apogeu após o golpe de 1964, era muito baixa, pois se buscava claramente não angariar professores qualificados, mas sim professores que pudessem ser moldados quanto a seu estilo de atuação, banindo qualquer tipo de criatividade. Somando-se a essa má qualificação e mais especificamente a um não fomento da pesquisa, encontra-se um currículo extremamente rígido e dificilmente mutável, proposto por IAC e DAC para a formação do comissário de vôo. Segundo a portaria 827 do Comando da Aeronáutica, é um fator que pode causar a perda de homologação de uma escola o “não cumprimento das normas contidas nos manuais expedidos pelo IAC referentes aos cursos 22”. Na prática, esse currículo imutável cria uma defasagem de quase 20 anos entre alguns conceitos que são ensinados e aquilo que realmente o comissário vai necessitar em sua atividade pratica quando de sua entrada em uma companhia aérea. Uma rápida checagem na bibliografia recomendada para formulação de uma aula pela portaria 827 permite afirmar que a maioria das publicações data da década de 1980. Sendo as escolas meras repetidoras de conteúdo e não fomentadoras da pesquisa, fica claro que essa defasagem será retirada quando do ingresso do comissário de vôo na empresa aérea, que acaba, na visão de muitos comissários, por realizar praticamente uma nova formação dos profissionais em suas dependências, levando para isto um tempo muitas vezes semelhante a de um curso de formação das escolas. Paralelamente a isso existe o fato que parece ser o mais critico de todo o sistema de formação de um novo comissário de bordo, que diz respeito a um foco muito mais no lado técnico da profissão do que seu lado humano. Nas diretrizes de formação publicadas e cumpridas pelas escolas, poucas horas da carga horária são reservadas para trabalhar relações humanas. Quando o são, acabam sendo abordadas segundo uma visão muito mais do condicionamento de comportamentos23 do que de uma visão sociológica da relação humana. Assim como na formação de um piloto, o comissário tem uma grande quantidade de assuntos técnicos presentes em seu currículo, que são, sem dúvida, muito importantes juntamente com uma série de condicionamentos que servem para treiná-lo em uma situação de emergência24. Não é objetivo discutir a eficácia ou não deste tipo de comportamento, mas sim salientar que no trabalho diário de um comissário de vôo, a maior parte do tempo é dedicada às relações pessoais e não às emergências. A possível explicação para essa quase nula ênfase nos aspectos humanos pode ser explicada, como já foi dito, pelo próprio órgão controlador da categoria e consequentemente do seu sistema de formação. A legislação, e especialmente o DAC, ao encarar pilotos, comissários de vôo e mecânicos de vôo como aeronautas, acabam por criar um modelo de educação cuja filosofia se concentra 22 BRASIL, Portarias etc. Departamento de Aviação Civil. Portaria nº 827/DGAC de 04 de agosto de 2004. Atualiza o RBHA 141. Rio de Janeiro. 23 Nota-se no programa fortes influências do behaviorismo. 24 Muitos dos comissários entrevistados informaram que são treinados para não pensar e sim agir. Voltar 61 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 62 Sumário A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez quase que exclusivamente no escopo técnico, parecendo esquecer que o comissário de vôo apresenta um perfil diferenciado, sendo que dele se exige um contato maior com pessoas. Some-se isso o fato de que existe um preconceito histórico com relação à profissão do comissário de bordo por parte dos usuários e até dos próprios demais aeronautas, desvalorizando o lado humano da atividade, encarada segundo uma visão pejorativa do servir , o que faz com que discussões sobre o lado humano desta profissão fiquem cada vez mais distantes, como se fosse um lado nebuloso da profissão, que não deve ser abordado. Paralelamente a tudo isso, existe no contexto da formação uma forte presença de métodos rígidos de ensino, fazendo que as escolas valorizem de maneira extrema a disciplina, em detrimento da criatividade ou da democracia. É muito comum alunos associarem às escolas palavras como quartel e autoritarismo, devido ao fato de estas possuírem regras extremamente rígidas quanto a conduta, horários, formas de se fazer perguntas, apresentação pessoal, dentre outras. Na visão dos seus diretores e responsáveis, essa é a forma encontrada de criar nos futuros comissários um senso de responsabilidade para uma profissão cuja disciplina é algo considerado essencial e muito cobrado pelas empresas aéreas. São inúmeras as citações no dia a dia dessas escolas que promovem essa disciplina forçada. Como diria Paulo Freire25, poderíamos afirmar, por analogia, que se trata daquilo que ele conceituou como uma “educação bancária”. Para Álvaro Vieira26, nesses casos, o educando acaba sendo tratado como um simples objeto da educação. Corroborando essa informação, temos fato de que na maioria das escolas não se estimula o debate entre os alunos e sim a simples aceitação do conteúdo proposto. A explicação para isso parece estar novamente na relação DAC versus historia da categoria, em que o DAC, de um lado, através da equiparação da educação de pilotos e comissários sob uma única filosofia de forte herança militar, procura mostrar com todas as letras o fato de que a disciplina é única forma de se alcançar os objetivos educacionais, e a categoria, de outro lado, por seu próprio histórico, tendendo a aceitar o fato que servir clientes é algo considerado menor, não necessitando para isso mais do que um simples condicionamento. A impressão que resulta do excesso de disciplina exigida nas escolas é de uma aceitação forcada do preconceito relativo ao lado servir da profissão, em que o elemento apaziguador encontrado pela maioria é o da importância do comissário com relação à segurança dos passageiros a bordo, que criou no Brasil até uma famosa autodenominação da classe como “técnicos de segurança da aeronave”, suprimindo qualquer tipo de debate que pudesse despertar e valorizar o lado humano e 25 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 4ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p.81. 26 VIEIRA, Álvaro. Sete lições sobre educação de adultos. São Paulo: Cortez, 11ª ed., 2000. p.29. Voltar 62 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 63 A formação de comissários de vôo no Estado de São Paulo Mauricio Libreti de Almeida / Senira Anie Ferraz Fernandez Sumário prazeroso de uma profissão em que uma das principais habilidades é a de servir pessoas. Todo um leque de discussão em torno de disciplinas humanas é desperdiçado sob uma falsa imagem de que servir é algo menor e sempre condicionado à forte disciplina. Em síntese o que se percebe é que o grande controle e a rigidez impostos pelo DAC e IAC , somados à falta de autonomia das escolas de aviação civil, a um grande preconceito quanto ao lado humano da profissão de comissário de vôo, faz com que o sistema de formação destes profissionais no Brasil siga um modelo limitador e pouco humanista, pela sua própria filosofia, não condizente com o escopo de uma profissão em que o contato humano é fundamental. Referências Bibliográficas BRASIL, Leis etc. Lei nº 7183 de 05 de abril de 1984. Regulamentação da Profissão do Aeronauta. Brasília. BRASIL, Leis etc. Lei nº 7565 de 19 de dezembro de 1986. Código Brasileiro de Aeronáutica. Brasília. BRASIL, Decretos etc. Decreto n º 2.208, de 17 de abril de 1997. Regulamentação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília. BRASIL, Manuais etc. Manuais do Ministério da Educação. Educação Profissional: Referenciais curriculares nacionais de educação profissional de nível técnico 2004. Brasília. BRASIL, Portarias etc. Departamento de Aviação Civil. Portaria nº 827/DGAC de 04 de agosto de 2004. Atualiza o RBHA 141. Rio de Janeiro. ANDRADE, Maria Lucia Di lorio e ARAÚJO, Mary Lane. O trabalho do aeronauta . Rio de Janeiro: Coopim, 1982. DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. 5ªed. Rio de Janeiro:José Olympio Ltda., 2000. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 4ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. KANE, Paula & CHANDLER, Christopher. Objetos sexuais nos céus: um relato pessoal da rebelião das aeromoças . Rio de Janeiro: Artenova S/A, 1976. PEREIRA, Aldo. Breve história da aviação comercial brasileira. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora, 1987. SANTOS, Nilson. Filosofia para crianças. Rondônia: Edufro, 2001. VIEIRA, Álvaro. Sete lições sobre educação de adultos . 11ª ed. São Paulo: Cortez, 2000. Voltar 63 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 56-63 Universidade São Marcos Voltar 64 Sumário Design Gráfico e Tecnologias Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez Design Gráfico e Tecnologias Rubens De Souza* Senira Anie Ferraz Fernandez** Resumo Este artigo tem por objetivo discutir questões referentes às relações entre tecnologias e o design gráfico. O suporte digital e a Internet apresentam novos elementos que interferem neste processo e as relações que estabelecem entre si. Verificou-se a necessidade de melhor explicitação das principais etapas de execução dos conteúdos elaborados pelos designers. A partir da revisão de literatura e dos dados coletados, foram elaboradas algumas categorias que apresentam e discutem certos elementos levantados como integrantes deste trabalho, ainda que não possam ser categorias fixas e estáticas, uma vez que tais elementos apresentam constantes alterações. Buscou-se revisar a capacitação dos profissionais ligados a esta área, delineando caminhos e possíveis soluções, para futuras reflexões e discussões, visando à melhoria do processo de sua formação. Palavras-chave: Comunicação, Design gráfico, Criação, Tecnologias. Abstract The objective of this article is to discuss the connection between technology and graphic design. The digital support and Internet present new elements that interfere in that process. A better highlight of the execution content of the main steps taken by designers is needed. Some categories were drawn from literature review and collected data. Those categories present and discuss elements that can be found in this article even though those categories can’t be fixed and static as the elements have constant changes. A review on professional ability of the area is explained, defining paths and possible solutions to future discussions and reflection so that an improvement can be offered to the education process. Key words: Communication, Graphic design, Creation, Technologies. Design gráfico e tecnologias A conjuntura atual delimita as mudanças de uma sociedade caracterizada pela informatização com seus aparatos capazes de produzir, armazenar e difundir mensagens culturais, e por sua vez amplia o fluxo de informações a partir da apropriação das recentes tecnologias que agregam aos meios eletrônicos diferentes dispositivos informatizados e interligados pela Internet. * Aluno do Mestrado Interdisciplinar em Educação, Comunicação e Administração da Universidade São Marcos. ** Professora Doutora do programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Educação, Comunicação e Administração da Universidade São Marcos. Voltar 64 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 64-68 Universidade São Marcos Voltar 65 Sumário Design Gráfico e Tecnologias Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez Assim, muitas áreas profissionais modificam suas atividades laborais ao se atualizarem neste complexo modelo midiático, ou seja, as redes de informática que democratizam os inúmeros conteúdos lançados pela Internet e que alteram a cognição da sociedade que os acessa. Com o objetivo de discutir tais fenômenos, este artigo analisa a área do design gráfico e suas relações com as tecnologias, as influências decorrentes dessa sistêmica, constatando-se que a aplicação de recursos tecnológicos às atividades do designer deve levar em conta um conjunto de elementos intervenientes neste processo e as relações que mantêm entre si. Inicialmente verifica-se que há uma insuficiência de informações quanto aos procedimentos adequados à efetivação do trabalho a ser executado, quando o profissional apenas demonstra um vasto conhecimento da tecnologia de ponta, mas não leva em conta que outras relações vão interferir em sua atividade produtiva, principalmente no âmbito das criações. Pode-se notar que os elementos envolvidos no processo de utilização da informática, com seu aparato tecnológico, especialmente da Internet, são muitos e se intercomunicam. Os protagonistas desta área profissional, responsáveis pelos conteúdos elaborados, não lidam apenas com as atividades técnicas e criativas relacionadas com o produto de imagens, mas com a análise, a organização e os métodos de apresentação de soluções visuais para problemas de comunicação. Assim, para uma visão geral do desenvolvimento de técnicas nesse universo, deve-se observar o percurso da tipografia até os atuais sistemas de impressão. Essa trajetória diferencia-se com o advento do suporte digital a partir de uma nova relação profissional, em que as regras são evidentes nas questões tecnológicas que as permeiam. A inserção do computador e de todas as tecnologias advindas dessa descoberta prestam valiosas contribuições às áreas do design. Rotinas são alteradas e se adaptam a um fluxograma operacional permeado pelo suporte digital. As empresas ligadas ao ramo da comunicação enxugaram seus departamentos, seus profissionais aderiram a esta nova realidade e os fluxos midiáticos se ampliaram. O conhecimento tecnológico capacitou os profissionais a desenvolverem seus trabalhos; todavia, muitos deles necessitam de aprofundamento em conhecimentos, quer eruditos, quer populares. Vale dizer que não é recomendável a redução da utilização das tecnologias no processo da aprendizagem profissional das diferentes modalidades de cursos superiores, e sim a geração de aprofundamentos nas reflexões que os permeiam e que propiciam novos experimentos por meio das mesmas tecnologias. Para isso, há a necessidade de orientação e apoio adequados, uma vez que a maioria das instituições de ensino registra maior ênfase no conhecimento técnico, visando atender às demandas do mercado de trabalho. As disciplinas ligadas às ciências sociais tornam-se então oportunas, por serem capazes de gerar insumos para novas reflexões, experimentos, diferentes tipos de pesquisas e atualização para este segmento profissional. Voltar 65 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 64-68 Universidade São Marcos Voltar 66 Sumário Design Gráfico e Tecnologias Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez Nota-se a urgente necessidade da ampliação do diálogo entre a universidade, as indústrias e os serviços midiáticos, a sociedade local e as corporações profissionais. O legitimador Conselho Estadual de Educação recomenda para os cursos superiores desta área profissional os projetos de conclusão de curso (projetos experimentais, monografias e estágios supervisionados), que são sinalizadores de grandes oportunidades para os recém-formados ingressarem no mercado de trabalho. Paralelamente, podem ser também um espaço comum a disciplinas como filosofia, sociologia, análise cultural e outras. Nessa circunstância, seria relevante uma análise técnica e pedagógica capaz de sistematizar e dinamizar as diretrizes curriculares por meio de levantamentos de dados suficientes para tal objetivo. Atualmente, no entanto, o trabalho de conclusão de curso (TCC) ainda apresenta pontos de dúvida em muitas instituições de ensino.1 Constata-se que a formação dos profissionais na área pressupõe três dimensões básicas: 1. Os processos midiáticos que configuram as técnicas de produção e difusão dos conteúdos elaborados por esses profissionais; sua rotina profissional, linguagem técnica, preceitos legais e éticos, planejamento e gestão, bem como critérios estéticos. 2. Divulgação dos projetos elaborados na finalização dos cursos, junto a organizações nacionais e multinacionais, de diferentes portes e setores, organizações governamentais e nãogovernamentais, com o objetivo de serem criadas melhores condições de gerar empregos. 3. Os conteúdos culturais que justificam as mensagens elaboradas, as simbologias, uma visão geral da sociedade, sua história, economia, política, cultura e relações. Além disso, verifica-se a necessidade de estabelecer uma definição precisa dos objetivos dos cursos de formação profissional dessa área. Para tanto, as estratégias pedagógicas, profissionais e a comunidade acadêmica devem objetivar as melhores formas de sobrepor os conteúdos mínimos necessários ao design para a formação profissional de curta duração, com um mínimo de reflexão nas áreas de ciências humanas. Ou seja, expressar maior ênfase em processos tecnológicos, conteúdos administrados nas instituições de ensino, e em programas que possam suprir demandas regionais nesta área profissional. Assim, projetos experimentais poderão ser desenvolvidos por alunos, simulando a realidade da comunicação no mercado de trabalho em que se encontram, além de oferecerem uma visão integral dessa dinâmica. É de fundamental importância que as universidades se mostrem sensíveis às novas modalidades de atuação profissional, como produção editorial, diferentes modalidades da web, com a inserção de conteúdos animados e sonoros, jogos interativos, conteúdos para telefonia celular e outros. Verifica-se nos últimos anos a abertura de várias instituições de ensino em regiões de grande concentração de faculdades, mas que oferecem os mesmos cursos profissionalizantes. A produção 1 Cf. FREITAS, Sidinéia G., pp. 21 – 28 Voltar 66 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 64-68 Universidade São Marcos Voltar 67 Sumário Design Gráfico e Tecnologias Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez editorial, por exemplo, poderia ser uma nova opção de curso profissionalizante, como são os recentes cursos de fotografia, moda etc. Em alguns casos se percebe, em muitas faculdades de comunicação social a aglutinação dos cursos de publicidade e propaganda, marketing, relações públicas, jornalismo, design e outros. Na realidade, cabe redefinir os diferentes cursos agregados às faculdades de comunicação social, numa espécie de “megacurso” funcionando por módulos divididos basicamente entre as disciplinas do tronco comum e as técnicas. Naturalmente, muitas disciplinas oferecidas em determinado curso acabam sendo potencializadas para outros, distanciando-se das especificidades requeridas pelas áreas profissionais. A renovação curricular pode ser um importante mecanismo para atender às novas demandas que surgem na “sociedade da informática”, com o crescente aumento da utilização das tecnologias permeadas pelo suporte digital. De outra forma, entende-se que o designer gráfico alterou sua maneira de elaborar as peças comunicacionais. Onde, por exemplo, se faziam cálculos diagramáticos para editar textos a partir de escalas de medidas próprias em técnicas de paste-up , estes cálculos foram substituídos pela editoração de textos que facilitam a organização com resultados imediatos. Estes benefícios propiciam melhor aproveitamento do tempo, dinamizando o fluxo operacional das atividades. Constata-se que tais facilidades se dão a partir dos diferentes softwares existentes no mercado, que auxiliam os designers não somente na diagramação, mas também na elaboração de ilustrações em duas ou três dimensões, e nos conteúdos animados ou estáticos criados para as diferentes mídias e suportes. Assim, verifica-se que na nova maneira como o indivíduo concebe a idéia para a elaboração de suas propostas, a criatividade não se altera em sua forma essencial de ser, pois é um processo mental. As mudanças ocorrem na forma de transferir a idéia. Normalmente as criações surgiam no papel, numa etapa de elaboração denominada rough, e a partir daí havia um percurso até se chegar ao original de impressão. Agora a maioria dos profissionais já desenvolve suas criações diretamente na tela do computador, utilizando-se igualmente do aparato tecnológico de entrada e saída de dados no computador. Contudo, a metodologia adotada para a solicitação de serviços ainda permanece inalterada, e as criações são elaboradas através do briefing. A Internet é, sem dúvida, mais um campo de atuação dos designers gráficos, ao mesmo tempo em que se constitui em fonte de pesquisa. A formação do designer, em suma, deve enfatizar o seu caráter humanístico, a fim de indicar novos caminhos a partir de levantamento e discussões de alguns elementos que possam interferir no processo, objetivando à melhoria profissional para as novas demandas do mercado de trabalho. É certo que muitas outras discussões merecem aprofundamento, e muitos outros elementos concernentes a este trabalho de pesquisa ainda poderão ser levantados. Voltar 67 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 64-68 Universidade São Marcos Voltar 68 Sumário Design Gráfico e Tecnologias Rubens De Souza / Senira Anie Ferraz Fernandez Não obstante, espera-se que este ensaio possa contribuir para a identificação de alguns benefícios a favor da mediação entre designer e tecnologias, com a finalidade de aperfeiçoar o desempenho dos profissionais desta área. Referências bibliográficas BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. VERMASHI, Elvira (org.). O ensino das artes nas universidades. 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Voltar 68 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 64-68 Universidade São Marcos Voltar 69 Sumário Relacionamentos: Algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Relacionamentos: algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto* Anna Barros** Os processos que estamos vivendo e as relações que estabelecemos no cotidiano da escola, em especial naquela onde se trabalha com alunos do Ensino Fundamental, exigem tomadas de posições cada vez mais embasadas nos conhecimentos das ciências que, direta ou indiretamente, influenciam a reflexão e a prática educacionais. Num mundo cada vez mais complexo, que proporciona uma rede quase que infinita de possibilidades, uma instituição educacional que se pretende séria e comprometida com valores éticos necessita de profissionais que estejam preparados para exercer sua liderança de forma competente e com embasamento suficiente, sobretudo para trabalhar com a dimensão educativa das relações humanas. Os sujeitos que participam da e na escola são pessoas, que agem e interagem como seres humanos e não meramente como executores de determinadas funções. Por isso, este pode ser um contexto privilegiado de vivência da condição humana: a construção constante e eterna das relações, com suas dificuldades, medos, imprevistos, etc. Neste sentido, a humanização da escola depende da interação de todos e deve ter, principalmente nas suas lideranças (devidamente preparadas e embasadas em fundamentos científicos), a garantia de se buscar uma escola mais humanizada, com todas as implicações desta realidade. Ao lado do avanço de toda espécie de técnica e tecnologia, os educadores precisam lembrar-se constantemente do caráter humano de todas as pessoas que atuam e participam da realidade escolar; caráter humano que deve ser compreendido, sobretudo, pela vasta rede de comunicações, relações e conexões que todos nós, os humanos, estabelecemos e vivenciamos, do nascimento à morte, em qualquer circunstância ou realidade. * Aluno do curso de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Professora Doutora da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. Voltar 69 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 69-74 Universidade São Marcos Voltar 70 Sumário Relacionamentos: Algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Para aprofundarmos um pouco mais esta reflexão, propomos que esta se faça através de uma concepção relacional sugerida por um texto de Edgar Morin, no qual apresenta três formas em que pode acontecer esta interação humana: em relação a si, em relação ao outro e em relação ao mundo1. E, com este enfoque, que evidentemente não exclui outras possibilidades de análise da questão, façamos uma analogia simbólica com as portas, que possuem funções semelhantes ao que pretendemos apresentar. A função das portas Em qualquer lugar onde as encontramos, as portas têm algumas funções em comum: servem para abrir, dar passagem, fazer conexão; também servem para proteger, isolar, trancar, esconder. Em ambas as situações, a existência da porta é vital. Toda pessoa tem as suas portas, que são usadas na abertura e no fechamento para os relacionamentos que podemos estabelecer. Podemos abrir as nossas portas para nós mesmos, no sentido de nos conhecermos melhor, percebendo quem realmente somos, o que podemos, o que sentimos, nossas potencialidades e limites, nossos medos e nossos desejos. Da mesma forma, nossa porta pode estar aberta para o conhecimento dos outros e do mundo que nos cerca. Portas fechadas podem também nos ajudar, nas circunstâncias de intimidade, ou podem dificultar nosso relacionamento com os demais. De qualquer forma que façamos esta analogia, a questão do abrir e do fechar das portas, como estabelecer ou não relacionamentos, está presente na realidade escolar e atinge as crianças e jovens diretamente. As portas físicas da escola, que se abrem para receber alunos, professores, funcionários e pais, exercem uma função de acolhimento para aquilo que existe de mais íntimo nessa realidade escolar. Essas portas se abrem para que todos possam entrar, para que todos possam Ser, neste ambiente educativo. Desta forma, a questão relacional também coloca em discussão as propostas educativas e pedagógicas. Em geral, estas propostas colocam a pessoa como centro do processo pedagógico, como sujeito de sua própria educação. Se a prática nem sempre corresponde a este posicionamento, a afirmação continua válida, pois o ensino humanizado tem que ser centralizado no que está acontecendo com a personalidade dos alunos. É o processo existencial individual inserido no social que deve ser a coluna vertebral do ensino, e não o saber especializado, setorizado e separado da sua instrumentalização existencial. (...) O objeto não pode ocupar o centro do programa. O centro do programa tem que ser ocupado pelo Ser, pela vivência do aluno na cultura em função da etapa do seu desenvolvimento como pessoa2. 1 Cf. MORIN, Edgar. X da questão: o sujeito à flor da pele. Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 139-140. 2 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Pedagogia Simbólica: a construção amorosa do conhecimento de ser. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996, p. 225 e 229. Voltar 70 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 69-74 Universidade São Marcos Voltar 71 Sumário Relacionamentos: Algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros As relações, portanto, são fundamentais neste processo de centralidade do humano. Porque, primeiramente, ao adentrar para o mundo escolar, o que afeta a realidade do aluno é o seu impacto com uma comunidade de outras pessoas, com muitas mais do que supostamente está acostumado a conviver. Além disso, neste contexto, ele, aluno, está sozinho, está adentrando num mundo completamente novo de estabelecimento de relações com muitos colegas. Isso, evidentemente, tem um impacto na sua vida e no desenvolvimento de sua personalidade. Antes de definir a escola como espaço sistemático de aquisição, elaboração, produção e transformação do conhecimento, de espaço de ensino e de aprendizagem, a escola é um espaço de estabelecimento de formas de relacionamento muito novas e muito diferentes para todos os que nela adentram. As pessoas são seres relacionais por natureza. A existência humana só é possível pelo estabelecimento de relações e isto deve ser essencial na experiência escolar. A escola, sem dúvida, pode e deve formar o ser humanizado, o seu lado cognitivo, afetivo, social e moral, capaz de conviver com a diversidade (em todos os sentidos) (...) e terá de ser vista como uma organização construída socialmente; portanto, com ênfase no processo de interação social que aí se desenvolve antes que nos aspectos formais que a caracterizam, impondo limites rígidos e intransponíveis3. A ação educativa, portanto, precisa considerar esta realidade das relações e das portas, antes mesmo da preocupação de focar a prática educativa no processo em si ou nos conteúdos a serem trabalhados. Antes do processo e do conteúdo, existem sujeitos convivendo, interagindo e influenciando-se mutuamente; e a maneira como estes sujeitos se relacionam, define todo o processo e o conteúdo da aprendizagem. As portas para si mesmo e para os outros Na dimensão relacional da pessoa consigo mesma, a dinâmica escolar poderia e deveria trabalhar na construção e no desenvolvimento da consciência do Eu, na essencial experiência de abrir as portas de si mesmo para si mesmo, com a intenção de melhor compreender-se como pessoa. É este princípio de auto-conhecimento e de construção de uma boa auto-estima que possibilita a pessoa a crescer sadiamente em todos os aspectos de sua personalidade. Para os profissionais da educação, é importante compreender que “a forma como nos sentimos acerca de nós mesmos é algo que afeta crucialmente todos os aspectos da nossa experiência”4, ainda mais quando se trata de crianças e adolescentes em desenvolvimento de sua personalidade. Crescer constantemente no conhecimento 3 ALONSO, Myrtes. A Gestão/Administração Educacional no contexto da atualidade in: VIEIRA, Alexandre Thomaz (org.). Gestão educacional e tecnologia. São Paulo, Avercamp, 2003, p. 33-34. 4 BRANDEN, Nathaniel. Auto-estima. 36a. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 9. Voltar 71 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 69-74 Universidade São Marcos Voltar 72 Sumário Relacionamentos: Algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros de si mesmo e procurar desenvolver uma auto-estima positiva são posturas fundamentais para o desenvolvimento do trabalho educativo. O relacionamento da pessoa com as outras pessoas, o abrir as portas para os outros, levanta questões que envolvem o afeto, a amizade, a tolerância, o amor, o respeito, a responsabilidade pelo outro; e também todos os aspectos negativos destes valores e situações. Estas relações devem levar em conta a realidade do outro. Por isso a escola é um espaço privilegiado de se aprender e de se ensinar que as relações humanas são o que de mais importante existem em nossa essência de seres humanos. Pela sua existência e exercício é que somos capazes de crescer nos outros aspectos. Da mesma forma, existe um caráter ético na maneira como as relações são vivenciadas na escola. A maneira como ela se dá mostra e ensina ao aluno que as relações podem ser justas, na medida em que existem experiências significativas de expressão de justiça; são sérias, na medida em que são respaldadas pelo respeito mútuo, que exclui a exploração, a dominação, a submissão, a fofoca, a falsidade, a inimizade. Evidentemente, como espaço de crescimento, é no espaço da escola que crianças e adolescentes se deparam com situações de conflito; a maneira de resolver um conflito indica a capacidade de crescimento e de desenvolvimento de uma personalidade sadia, capaz de encaminhar a solução através de um relacionamento mais adequado. A partir desta dimensão podemos trabalhar a questão do respeito mútuo, da tolerância, da aceitação do diferente. Neste sentido, podemos trabalhar com a idéia de que formamos uma grande teia de relações uns com os outros e que nos devemos respeitar como tal, porque todos somos interdependentes. Assim, a escola e os educadores precisam, como exigência ética, procurar favorecer por todos os meios possíveis a educação para a convivência solidária entre os alunos. Educação que estimula a relação positiva entre os diferentes grupos humanos em um clima de tolerância e diálogo, propício e fecundo, entre os diversos povos e culturas. Essa situação não se improvisa, mas vai sendo forjada dia a dia e é fruto de atitudes e vivências que os seres humanos tiveram desde sua mais tenra infância e nos quais a educação é chamada a desempenhar um papel significativo5. Para que as portas possam estar abertas, favorecendo este clima de bons relacionamentos, compreensão e tolerância, a escola como tal deve refletir, pelo cotidiano concreto, pelo que acontece nas salas de aula, nos corredores e nos pátios, que esta é a única maneira de, como pessoas, continuarmos a conviver e a nos ajudar mutuamente. 5 SERRANO, Gloria Pérez. Educação em valores. Como educar para a democracia. 2a. ed. Porto Alegre: Artmed, 2002, p. 53. Voltar 72 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 69-74 Universidade São Marcos Voltar 73 Relacionamentos: Algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Sumário Outras portas Uma outra dimensão é aquela que situa a pessoa em relação com o mundo, com os demais seres, vivos ou não, físicos ou espirituais, concretos ou simbólicos, que fazem parte da existência exterior ao próprio eu. Nesta dimensão, coloca-se em discussão a relação de uso/instrumento das coisas, o meio ambiente, a dimensão da ecologia profunda, a responsabilidade pelos objetos, a educação para a consciência terrestre, o sentido do transcendente e do místico, que caracteriza todos os seres humanos. Estas portas nem sempre são bem trabalhadas ou consideradas na realidade escolar, provocando um fechamento para toda a realidade que circunda a pessoa. Sem trabalhar esta dimensão relacional, crianças e adolescentes deixam de ter, na escola, a possibilidade de aprenderem a melhor se relacionar com o contexto. É profundamente importante darmos atenção a esta dimensão relacional e assumirmos a responsabilidade de fazê-la presente no cotidiano da escola. É preciso que ensinemos nossos filhos a venerar o mundo e a consciência que o ilumina. Façamo-los perceber concretamente o caráter sagrado, mágico da vida: esse inimaginável emaranhado de todas as formas e de todas as histórias possíveis que originaram infinitamente no espaço unitário da consciência. É o fim único da educação tornar a consciência humana consciente dela mesma e de sua disposição fundamental: sua expansão onidirecional. Sua liberdade, seu amor por todas as formas e por todos os seres6. Cada pessoa só se torna completa quando é capaz de ter as portas abertas para essa dimensão circundante, real e virtual, física e simbólica, material e cultural, no meio da qual todos nós crescemos e vivemos. Considerações finais Retomamos, aqui, a idéia fundamental de que todos somos, por essência, relação. Sem essas conexões invisíveis – mas extremamente reais e poderosas – que estabelecemos continuamente, não haveria vida nem sustentação da vida. Por isso, sem abdicar de sua função especificamente técnica, que é a de ensinar, a escola precisa trabalhar cada vez mais para compreender, refletir e avaliar como as relações humanas são vivenciadas em seu contexto. Da mesma forma, a escola precisa ter consciência de que educar para bons relacionamentos e para que crianças e adolescentes possam abrir e fechar as portas de maneira adequada deve ser parte fundamental de sua proposta pedagógica. 6 LÉVY, Pierre. A conexão Planetária. O mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 155. Voltar 73 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 69-74 Universidade São Marcos Voltar 74 Sumário Relacionamentos: Algumas portas na escola Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Não pode existir escola sem pessoas; e não pode haver pessoas que não se relacionem. Desta forma, não é possível compreender a escola a não ser como espaço de relações. Relações que acontecem naturalmente, mas que podem ser objeto de aprendizagem para que as pessoas possam ser mais pessoas. Referências bibliográficas BRANDEN, Nathaniel. Auto-estima. 36a. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. Trad. Ricardo Gouveia. BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Pedagogia Simbólica: a construção amorosa do conhecimento de ser. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. LÉVY, Pierre. A conexão Planetária. O mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: Editora 34, 2001. Trad. Maria Lúcia Homem e Ronaldo Entler. MORIN, Edgar. X da questão: o sujeito à flor da pele. Porto Alegre: Artmed, 2003. Trad. Fátima Murad. SERRANO, Gloria Pérez. Educação em valores. Como educar para a democracia. 2a. ed. Porto Alegre: Artmed, 2002. Trad. Fátima Murad. VIEIRA, Alexandre Thomaz (org.). Gestão educacional e tecnologia. São Paulo, Avercamp, 2003. Voltar 74 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 69-74 Universidade São Marcos Voltar 75 Sumário 1ª Jornada do grupo de Pesquisa em Comunicação, Arte e Criatividade Voltar 75 Sumário Voltar 76 Sumário Voltar 76 Sumário Voltar 77 A distorção da informação Anna Barros Sumário A distorção da informação Anna Barros* Quando escolhemos esse título para a 1ª Jornada do grupo de Pesquisa em Comunicação, Arte e Criatividade, estavamos mergulhados nas notícias das mídias sobre as várias CPIs que afligiam o País. Ampliando essa interpretação, direta e ostensiva, do que seja distorção de informação, seja por parte dos inqueridos, seja por parte da Imprensa, gostaria de trazer algumas idéias que afluíram à minha mente. A definição de informação é bastante conhecida por todos e ainda suscita questões sobre quando deixa de ser informação e passa a ser formação. Estamos dentro da Academia, a qual, desde a Grécia antiga tem sido o local sagrado onde se formam pessoas e cidadãos mais cultos e informados, aptos a levar o conhecimento e a sabedoria mundial a um patamar mais alto e amplo. É interessante notar que o próprio significado de Academia já tem sido distorcido, passando a significar, passando a significar algo já gasto e ultrapassado. Quando dizemos: ele (ou ela) é um acadêmico, queremos designar, alguém que ficou preso nas regras de uma cultura, que não alimenta a pesquisa em direção a novas e importantes descobertas. Por outro lado, tem sido dentro de todas as grandes universidades do país e do mundo que as grandes descobertas têm sido feitas e apresentadas à sociedade. Quando os professores e orientadores debatem assuntos trazidos por seus alunos e orientandos, estão preocupados em lhes dar uma formação científica, por meio da informação e do exemplo. Se todas as investigações começarem e terminarem dentro de um formalismo estabelecido, que tende a verdades absolutas, vai-se cair em ortodoxias escondidas, nas quais não há como verificar de onde estas verdades provêm, levando a investigação a uma distorção da informação. Para fugir das “verdades absolutas’ que sufocam tudo que é novo, temos por vezes de processar nossa pesquisa à margem do conhecimento já aceito pela cultura, levantando hipóteses criativas e ousadas: colocar nossa atenção na periferia do conhecimento. * Professora Doutora da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração. Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. Voltar 77 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 76-80 Universidade São Marcos Voltar 78 Sumário A distorção da informação Anna Barros A mudança, entretanto, nunca é fácil, pois parte de um lugar seguro na cultura, onde o sucesso pode ser obtido. Outra questão é de que, para ser aceita, tem que receber uma forma complexa e ordenada, podendo levar anos antes de ser aceita por esta mesma cultura. Para que qualquer mudança substancial entre no sistema, ela vai ter que passar por várias fases, sempre levando em conta a possibilidade de distorção nas informações. A primeira é subjetiva, acontecendo dentro do indivíduo em sua unicidade, e é absolutamente necessária se quisermos empreender qualquer mudança social. Uma mudança na maneira de construir a realidade terá de afetar antes a vida do pesquisador, pois só então terá efeito na sociedade. Problematicamente, deverá ir contra conceitos estabelecidos, que facilitam e referendam a atividade profissional; pode-se vislumbrar as dificuldades que isto implica. A maioria das grandes descobertas tiveram sua informação distorcida por elementos da própria sociedade científica, com o intuito, muitas vezes, de destruir algo tão esplêndido que iria prejudicar muitos colegas do pesquisador. Na Idade Média cientistas foram levados à fogueira pela distorção da ciência como vista pela religião. Este estado de coisas, com outras roupagens, ainda perdura em nossas sociedades pósmodernas; testemunhamos isso no nosso próprio dia-a-dia, até mesmo quando desejamos introduzir metodologias inovadoras no ensino. O tema desta jornada abre espaço a várias considerações dentro de um espirito interdisciplinar; esperamos vislumbrar inovações em vários domínios do conhecimento. A maior revolução dos últimos séculos, na maneira como percebemos o mundo e a nós mesmos, e onde a informação se processa em um universo de dimensão tão pequena que teremos que nos acostumar a usar a imaginação para vivênciá-la (ilustrações) encontra-se no campo da nanotecnologia (surgida na Física e se alastrando por várias ciências) A imaginação terá que se associar à informação científica recebida por sensores corporais e ambientais, pois nos é ainda impossível visualizar na escala nano, onde ocorre algo que não estamos ainda acostumados a perceber: que uma partícula exerce influência sobre os campos de energia a seu redor. A informação científica está ao sabor de elementos estruturais a que não estamos acostumados, e cuja comunicação pode se esgueirar por meandros de custosa informação, levando-nos a distorções na sua compreensão. Fazendo uma analogia, esse é um mundo todo novo, que na sua recepção pela sociedade pode ser comparado ao nosso antigo “novo mundo”, à América quando recém-descoberta e às iformações que chegavam ao “velho mundo”. Voltar 78 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 76-80 Universidade São Marcos Voltar 79 A distorção da informação Anna Barros Sumário Essas são situações extremas que se repetem de maneira semelhante, na vida diária de todos nós Há sempre um mundo novo que busca ser conhecido em cada informação passada, o qual será transmitido: distorcido fielmente ou fielmente distorcido. Os cientista têm recorrido a artistas para tornar visualizável o mundo nano, e atualmente na UCLA- University of California Los Angeles, acontece uma pesquisa em nano, do químico Gimzewski associado à artista dos Novos Meios, Victoria Vesna, a qual tem sido veiculada em várias exposições de arte, nas galerias da própria universidade e outros lugares pelo mundo. As imagens inseridas neste texto são dessas exposições. Fluid Bodies, nuvens de partículas formam sua imagem espelhada caminhando e memoriza essa ação quando você sai. Mais tarde sua imagem reaparecerá fazendo a mesma movimentação. Palavras aparecem e se dissolvem em partículas. Na escala nano, “uma partícula exerce influência sobre os campos de energia a seu redor”. Innercells, interpretam uma célula de mínimas proporções, agora tornada vizível pela artista com sua modelagem ao computador, com a qual podemos interagir de maneira semelhante a que acontece na ciência. Voltar 79 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 76-80 Universidade São Marcos Voltar 80 Sumário A distorção da informação Anna Barros Voltar 80 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 76-80 Universidade São Marcos Voltar 81 A distorção da informação na arte Milton Sogabe Sumário A distorção da informação na arte Milton Sogabe Quando pensamos na questão da “distorção da informação” logo relacionamos esse assunto com o jornalismo, quando um fato não é transmitido da forma mais fiel possível, criando uma deformação e tornando-se um empecilho para os objetivos da área. Já no contexto da arte, essa distorção adquire outros aspectos, sendo até inerente a própria arte, na medida em que o signo estético produz o seu significado pelas qualidades materiais do signo e muitas vezes contradiz o que o signo deveria representar. “o signo não é idêntico à coisa significada, mas se dela difere sob alguns aspectos, deve naturalmente possuir algumas características próprias, que nada têm a ver com a função representativa. Chamarei a estas características as qualidades materiais do signo”1 Principalmente na poesia visual, podemos presenciar este fato (http://www.arteria8.net/)2, onde a palavra adquire outros significados diferentes dos encontrados no dicionário, trazidos pela forma visual com que a palavra é apresentada. A palavra “grande” pode passar a idéia de “pequeno”, dependendo de como ela esteja apresentada visualmente no contexto. Com esta função, a questão da distorção da informação parece perpassar toda a produção artística, não se caracterizando com isso um desvirtuamento ou infidelidade ao real, mas um outro aspecto pelo qual a deformação pode ser pensada e utilizada. Embora tenhamos momentos em que sabemos que estamos distorcendo uma informação, há outros momentos em que acreditamos estar sendo fiel ao fato por nós presenciado, mas nosso próprio olhar sobre a realidade é uma distorção, na medida em que cada olhar realiza uma interpretação, de acordo com toda a experiência pessoal vivida, não existindo uma única e fiel interpretação de todos os aspectos de um mesmo fato. A realidade em si é incaptável, sendo intermediada pela nossa percepção que capta as sombras dessa realidade, tal como no Mito da Caverna narrado por Platão. Sabemos também que nossa percepção é limitada e nos engana a todo momento, seja nos 24 quadros por segundo no cinema ou em outras ilusões de óptica. * Professor Doutor do Instituto de Artes da UNESP 1 PEIRCE, Charles Sanders – Escritos Coligidos. Abril Cultural, São Paulo, 1980, pág. 74. 2 Revista digital organizada por Omar Khouri e Fabio Oliveira Nunes, acessada em 10/02/2006. Voltar 81 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 81-83 Universidade São Marcos Voltar 82 Sumário A distorção da informação na arte Milton Sogabe Cada meio utilizado para expressar essa realidade também possui características próprias na sua estrutura, que vão contribuir, interferir e construir aspectos diferenciados do mesmo fato. A arte se utiliza muito desse conhecimento e ao mesmo tempo os artistas sempre buscam a distorção e a subversão da função dos meios que utilizam, ampliando o potencial destes para além das funções oficiais. A história da pintura é uma história do processo de distorção da forma visível, indo do conceito de pintura como janela através da qual vemos a natureza, onde a pintura se aproximava de uma ciência óptica, até chegar ao abstracionismo, onde a referência visual é abandonada. Constatamos que a partir do Impressionismo, apesar da manutenção da observação e referência à natureza, o que os artistas procuram representar não é mais aquela paisagem aparente, mas algo além da realidade óptica, e no Expressionismo é a própria distorção da forma que produz o significado poético da imagem.3 No cinema, podemos encontrar logo no início de sua história, experimentações onde o nosso assunto pode encontrar relações, quando a distorção da informação, se é assim que podemos dizer nessa situação, produz vários significados a partir de uma mesma imagem, ou seja, utilizando a imagem da mesma expressão de um rosto, podemos atribuir-lhe outras expressões através de uma montagem com outras imagens que a sucedem e que acabam influenciando na leitura da expressão desse rosto (efeito Kuleshov)4. O rosto seguido de um prato de comida pode expressar fome e o mesmo rosto seguido de um caixão de criança pode transmitir tristeza. Nesse sentido, parece que esse rosto não possui uma expressão própria isolada, ou que tenha uma única e verdadeira expressão. O contexto é que vai definir a expressão do rosto. Na vídeoarte quando Nan June Paik5 aproxima um imã do aparelho de tv, alterando o percurso dos raios no tubo catódico, seu interesse está na distorção das imagens figurativas exibidas, e essa atitude abre o caminho para a abstração e a pós-produção da imagem eletrônica, ampliando as possibilidades imagéticas e de comunicação na televisão. Com a utilização na arte, das fotocopiadoras como meio de (re)produção de imagens, os artistas vão encontrar mais um meio para subverter, ou seja, para explorar o potencial criativo nele existente. Um dos recursos muito utilizados é o da distorção da imagem, quando se movimenta o “original” ou a fonte de referência no momento da cópia, deturpando a informação enviada para a máquina e construindo uma imagem deformada em relação ao elemento “copiado”. Com essa distorção ele utiliza a máquina para produzir uma nova imagem e não simplesmente para reproduzir outra. 3 GOMBRICH , E H – “Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação da forma”, Martins Fontes, São Paulo, 1986. 4 BRETTON, Gerard – “Estética do cinema”, Martins Fontes, São Paulo, 1987. 5 MACHADO, Arlindo – “A Arte do Vídeo”, Editora Brasiliense, São Paulo, 1988, pág. 119. Voltar 82 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 81-83 Universidade São Marcos Voltar 83 A distorção da informação na arte Milton Sogabe Sumário Atualmente, é quase um consenso no contexto digital, que as imagens fotográficas que vemos nas revistas e impressos em geral, não são uma representação fiel da realidade e quase sempre estão alteradas através de programas. Com a tecnologia digital a possibilidade de manipulação da imagem fotográfica aumentou num grau que podemos duvidar da fotografia como documento do real, sem falar das imagens geradas por algoritmos, que apresentam “realisticamente” elementos não existentes no tempo e no espaço. Mas mesmo a fotografia fotoquímica, já não podia ser tomada como um documento fiel aos fatos. A escolha de um ponto de vista, de um enquadramento e do momento de um registro fotográfico podem construir significados diferentes de um fato. A fotografia e o cinema documentário têm como objetivo a verdade, mas sabemos da relatividade do que seja a verdade ou a mentira, tema tão discutido pelos filósofos. A história nos mostra como os documentos, sejam eles construídos por palavras ou por imagens de qualquer tipo, podem ser distorcidos de acordo com os interesses da verdade de um grupo. Na história temos a conhecida e polêmica foto alterada onde Trotsky e Kamenev foram retirados da foto onde apareciam perto de Lênin em 19206. Independente da linguagem utilizada, a distorção dos fatos parece ser um elemento essencial no contexto da arte, que não tem o compromisso com uma verdade única e procura sempre explorar as várias possibilidades de “representar” os fatos, tornando-se mais rica quanto mais versões forem apresentadas, caracterizando assim o campo da arte como um espaço de liberdade, já que a verdade é relativa. 6 http://www.igutenberg.org/propa19.html (acesso 19/02/2006) Voltar 83 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 81-83 Universidade São Marcos Voltar 84 Sumário A Memória na Mídia: Distorção da Informação ou Re-Semantização de Sistemas Comunicativos? Mônica Rebecca Ferrari Nunes A Memória na Mídia: Distorção da Informação ou Re-Semantização de Sistemas Comunicativos? Mônica Rebecca Ferrari Nunes Este trabalho tem por objetivo discutir a memória gerada pela mídia, e, em especial, questiona o modo como a mídia pode construir uma memória, analisando certas produções audiovisuais de animação. O artigo quer também responder se esta memória se faz por meio de uma distorção ou re-semantização dos sistemas comunicativos. De imediato, vale retomar o que se entende por memória, no âmbito da teoria semiótica da cultura de origem eslava. Iuri Lotman e Bóris Uspenski (1981:40) revelam que cultura é “ memória não hereditária da comunidade, expressa num sistema determinado de proibições e prescrições” , pois entendem a cultura como informação traduzida em um ou mais sistemas de signos que, por sua vez, geram textos, os textos de cultura. A cultura age como uma complexa engrenagem apta a conservar e selecionar certas informações que podem ser reproduzidas e transmitidas ao longo de sua história. Assim, a cultura tem a capacidade de codificar e decodificar mensagens de épocas diferentes e transcodificá-las em outros sistemas de signos, diferentes daquele que originou tal informação ou texto de cultura. Desse modo, segundo os autores propostos para esta análise, as leis semióticas da cultura podem ser comparadas às leis da memória, uma vez que o que passou nunca é de fato aniquilado, mas sim reorganizado, ao sofrer processos de seleção e novas codificações para que, em determinadas condições, manifeste-se novamente, porém, de modo transformado. Em face da equivalência entre cultura e memória, pode-se pensar de que modo os produtos audiovisuais de animação constroem a memória da cultura midiatizada, uma vez que tais produtos submetem-se à velocidade como código dominante – e, muitos teóricos da mídia e da cultura contemporânea apontam a velocidade como razão da destruição da memória, a exemplo de Paul Virilio(1993), Jean Baudrillard (1991), Frederick Jameson (1996), entre outros. Ao comandar todos os fluxos de informação, a velocidade acirra a produção do efêmero, ao provocar a temporalização de tudo. A contração das distâncias físicas e a vivência no tempo, graças • Professora Doutora Titular – Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP. Voltar 84 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 84-87 Universidade São Marcos Voltar 85 Sumário A Memória na Mídia: Distorção da Informação ou Re-Semantização de Sistemas Comunicativos? Mônica Rebecca Ferrari Nunes às transmissões ‘diretas’ ou em tempo real, promovem a codificação do presente, e, para alguns autores, como Frederic Jameson (1996), fundam a ruptura da própria temporalidade, liberando um presente isolado, vívido, intenso e intoxicante. Porém, à luz do conceito de semiosfera, funcionando como um continuum fora do qual a comunicação e a vida de relação não existem, devemos nos voltar ao postulado de Lotman (2000) quando afirma que variados sistemas de signos compõem a semiosfera seguindo a lei da irregularidade, ou seja, os sistemas semióticos podem se desenvolver com velocidades diferentes e igualmente terem ciclos e magnitudes diversas. Esta diversidade de tempos permite, então, que a cultura crie mecanismos para retardar a flecha do tempo. E assim, a velocidade estonteante com a qual os textos da tecnologia se desenvolvem e se transformam pode estar imbricada a sistemas de linguagem que resistem à aceleração imposta por esta mesma tecnologia. Pode-se, então, reconhecer a irregularidade na interface inquietante entre a mídia eletrônica audiovisual e sistemas sígnicos cuja codificação não segue a lógica da velocidade específica ao formato das mídias terciárias, a exemplo da permanência, na cultura, de certos textos tradicionais como os mitos e as formas de magia costumeiramente presentes nos textos de animação infantis, ainda que mutados. Embora o desenho de animação caracterize-se como um sistema semiótico cuja orientação nuclear seja a velocidade presente no argumento dos roteiros, na composição psicológica de personagens, na duração de cortes, na criação de microcenas e também na criação das paisagens sonoras criadas pelas trilhas musicais, podemos verificar que certos signos que migram de sistemas latentes na semiosfera asseguram a permanência de representações arcaicas – o que de certo modo garante a construção de mecanismos de desaceleração ou, no mínimo, de superposições temporais. Assim, ainda que As Meninas Superpoderosas, populares entre crianças e adultos, dispensem a mediação de capas, anéis ou tapetes mágicos para voarem, contrariando a linhagem da literatura fantástica, e reafirmem seus superpoderes como habilidades cognitivas e motoras, continuam a presentificar certos signos de uma infância-modelo 1, a exemplo das maria-chiquinhas de Lindinha, do sentimento amoroso que nutrem pelo pai, do vestido cor-de-rosa de Florzinha, da rabugice de Docinho e de brincadeiras tradicionais, como o pega-pega, porém, impregnado de velocidade, já denunciando a migração e mutação de signos tradicionais para o sistema midiático. 1 Philipe Ariès(História Social da Criança e da Família. RJ:LTC,1981.), ao tratar da origem da infância no Ocidente Europeu, afirma que não existia sentimento de infância antes do século XVI. Crianças viviam como adultos, indistintamente, excetuando as interdições quanto à vivência da sexualidade. Eram adultos menores, sem roupas específicas, não havia um espaço específico separado do mundo adulto. A segmentação da população e a invenção da população infantil é produzida pela modernidade – afirmamos aqui estas características de um comportamento infantil tomando esta “invenção”como paradigma. Voltar 85 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 84-87 Universidade São Marcos Voltar 86 A Memória na Mídia: Distorção da Informação ou Re-Semantização de Sistemas Comunicativos? Mônica Rebecca Ferrari Nunes Sumário Clube das Winx, desenho animado italiano, produzido por Panini Comics, em versões eletrônica, impressa e digital, novamente acena ao hibridismo entre os sistemas semióticos cuja codificação se vale da velocidade e aqueles que se valem da magia como código. Na pista do sucesso de Harry Potter, o clube congrega fadas iniciantes que vão para Magix, um mundo mágico paralelo a terra, para desenvolverem suas habilidades. Nesta dimensão, Alfea é a escola das fadas, heroínas dos episódios: Bloom, a guardiã da chama do dragão; Stella, a fada do sol e da lua; Flora, a fada das plantas; Tecno, a fada da tecnologia; Musa, a fada da música. A Escola da Torre Nebulosa, abriga as bruxas más; a Escola da Fonte Vermelha, os rapazes, treinados para serem especialistas em magia e tecnologia. Na tessitura híbrida do desenho, fogo, sol, lua, plantas, elementos da natureza normalmente ritualizados a partir de uma simbologia diversa, em cada cultura, combinam-se à valorização de certos lugares tradicionalmente vinculados à elaboração de ritos e revelações, como as fontes, também sacralizadas como “a boca que simboliza a origem do poder e do saber” (Bethencourt, 2004) – habilidades dos rapazes da Fonte Vermelha, ao serem especialistas em magia e tecnologia, e também em roubar corações, ao gosto dos inúmeros clichês presentes em histórias de amor. Do mesmo modo, a escola das bruxas más, Torre Nebulosa, volta a dialogar com os lugares tradicionais do imaginário mágico, como as formas erguidas, propícias para a invocação e comunicação com os espíritos – comunicação necessária para o conhecimento das coisas ocultas, típicas da magia. Entretanto, se no imaginário mágico, a simbologia das cores tem menos incidência que a simbologia dos números, segundo Bethencourt(2004), em Club das Winks, a telinha, o site, a revista impressa tingem-se de cor-de-rosa para traduzirem as fadas de Alfea para o universo infanto-juvenil. Cor-signo que demonstra o maravilhoso e o fantástico traduzidos, transformados e mediados pela tevê. As asas coloridas das garotas assumem a função de signo mitigado do mundo feérico agora proliferado em um arsenal de poses e objetos sensuais pertencentes a culturas diversas: luvas, botas de salto alto, calças de cintura baixa, em tons metálicos, variando do rosa ao azul. Somadas às mariachiquinhas, da fada Musa, e ao corpo andróide, da fada Tecno, magia e tecnologia unem-se para representar a infância – compondo a semiose do desenho de animação que reconstitui e re-significa a visão mágica do mundo como texto tradicional. Verifica-se, então, que o desenho animado plasma um novo sistema de significação, resultante da heterogeneidade entre textos, códigos e temporalidades, evidenciando que a mistura de códigos e de signos, vindos de sistemas semióticos diversos, podem tornar o próprio desenho, compreendido como texto de cultura, um elemento complexo de memória. Recordar não é reproduzir mecanicamente um fato, mas reconstruí-lo ou mesmo construí-lo, inventá-lo, torná-lo informação nova, lembrando Lotman (1998). Os sistemas semióticos que compõem a semiosfera, e, neste caso, artefatos midiáticos, demonstram, em sua gênese, processos de re-semantização e na medida que o sistema re-semantiza, reconstrói-se, gerando um processo de recordação de sistemas anteriores na exata medida em que produz uma nova informação: uma infância adultecida. Voltar 86 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 84-87 Universidade São Marcos Voltar 87 A Memória na Mídia: Distorção da Informação ou Re-Semantização de Sistemas Comunicativos? Mônica Rebecca Ferrari Nunes Sumário Se em meio a velocidade contemporânea, o sujeito da cultura midiática ou cybercultura multiplica seu tempo em função das inúmeras conexões com as quais ele pode operar, o tempo da infância também se amplia, pois sobrepõe o presente da experiência imediata, no caso, o pensamento mágico que prevalece nas crianças que participam como público-alvo do desenhos analisados, ao discurso da mídia, por sua vez, pautado na velocidade que domina as ações do mundo adulto e nos próprios valores culturais que a indústria do entretenimento veicula, a exemplo do erotismo-tecno do Clube das Winks e dos artefatos que elas portam, como celulares e palmtops. De outro modo, o adulto ou o jovem também carrega, no tempo presente de suas ações cotidianas, os objetos de memória do mundo infantil, teoricamente passado – recuperado apenas nas performances da memória, cultural ou neurobiológica – ao modo das estampas dos personagens de desenhos animados, tais como as Meninas Superpoderosas, Bob Sponja, Hello Kitty, entre outros, em cadernos de jovens universitários ou estojos com chaveiros de pelúcia. Percebe-se que velocidade produz, de um lado a aceleração de certas experiências e, de outro modo, paradoxalmente, produz também um retardamento das codificações temporais – ou seja, do modo de interpretar o tempo, que verificamos com os objetos infantis que perduram como memória de uma infância vivida simultaneamente à vida adulta . Do mesmo modo que a mídia arquiteta a memória, ao reproduzir signos e textos longevos e fecunda a cultura, como observamos com os desenhos animados que reeditam signos tradicionais, isto é, re-semantizam outros processos comunicativos – codifica de modo ambíguo a infância, uma vez que a aceleração pode provocar o envelhecimento e destruir a própria infância como sistema comunicativo. Por outro lado, esta mesma aceleração gera a manutenção de traços infantis nas representações do mundo adulto, que pode significar um dos mecanismos da cultura para retardar o tempo. Referências Bibliográficas BAUDRILLARD, Jean (1991). Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’Água. BETHENCOURT, Francisco (2004). O Imaginário da Magia. SP: Companhia das Letras. JAMESON, Frederic (1996).Pós-Modernismo.( trad. Maria Elisa Cevasco) SP: Ática. LOTMAN, Iuri (1998). La Memória de la Cultura. In: La Semiosfera II. Madri: Ediciones Cátedra. _____________ e Bóris USPENSKII (1981). Sobre o Mecanismo Semiótico da Cultura. In: Ensaios de Semiótica Soviética (trad. Vitoria Navas). Lisboa, Livros Horizontes. NUNES, Mônica (2001). A Memória na Mídia: A Evolução dos Memes de Afeto. SP:Annablume/FAPESP. VIRILIO, Paul (1993). O Espaço Crítico . Rio de Janeiro: Editora 34. Voltar 87 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 84-87 Universidade São Marcos Voltar 88 Sumário Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio* Para muitos historiadores, a Guerra do Paraguai (1864-1879) pode ser considerada um genocídio, tamanha a brutalidade com que as forças da Tríplice Aliança – formada por Brasil, Argentina e Uruguai – dizimaram o exército paraguaio. Estima-se que a guerra tenha causado a morte de cerca de 100 mil pessoas1, a maior parte na população do Paraguai. As baixas, no caso do país derrotado, também incluiriam as vítimas de doenças e a emigração posterior ao conflito. Embora não sejam precisos e ainda hoje causem muita controvérsia, os números assombram, em virtude das condições técnicas do confronto e do contingente populacional das nações envolvidas. Além disso, é preciso levar em conta a trágica situação econômica e social do Paraguai ao final da guerra, somada ao impacto político resultante também sobre os supostos vencedores. Segundo o historiador Boris Fausto, “o Paraguai saiu arrasado do conflito, perdendo partes de seu território para o Brasil e a Argentina e seu próprio futuro”.2 O projeto de modernização do ditador Solano López, morto por soldados brasileiros em março de 1870, fracassou e o país se tornou “exportador de produtos de pouca importância”. O cobiçado acesso ao Atlântico pela bacia do rio da Prata foi definitivamente perdido e, para agravar a situação, a população do Paraguai ficou praticamente reduzida a velhos, mulheres e crianças. Fato curioso e de dimensões culturais inestimáveis, como se verá adiante, foi a edição dos jornais paraguaios El Centinela e Cabichuí durante a guerra, cujos editores, jornalistas e ilustradores dividiam seu tempo conturbado entre balas e letras, escrevendo e combatendo com o mesmo empenho. Os jornais mantiveram certa periodicidade e uma qualidade gráfica excepcional, contra todas as adversidades, parecendo ao estudioso de hoje pouco provável um trabalho de elaboração de textos, diagramação e impressão naquele cenário hostil e em condições materiais tão precárias. * Aluno do Mestrado Interdisciplinar da Universidade São Marcos. Editor da Unimarco Editora. Texto apresentado no seminário “A Distorção da Informação”, organizado por Anna Barros e Rosemari Viégas, em 28/09/2005. Mestrado Interdisciplinar, Universidade São Marcos. 1 FURTADO, Joaci Pereira. A Guerra do Paraguai (1864-1870). São Paulo: Saraiva, 2000. 2 FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2002, 1ª reimpressão. Voltar 88 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 88-93 Universidade São Marcos Voltar 89 Sumário Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio El Centinela foi lançado em 25 de abril de 1867. O Cabichuí veio a seguir, no dia 13 de maio do mesmo ano. Embora apresentem características editoriais e gráficas diversas, ambos tinham como objetivo levantar o moral das tropas, exaltar a nacionalidade e fazer circular informações com agilidade e muito humor. A crítica aos adversários era mordaz e desde logo se destaca a intenção de propaganda ideológica. Diante da imensa desigualdade bélica com relação às forças da Tríplice Aliança, da invasão de seu território e do acirramento do cerco às suas tropas, os paraguaios lançaram mão de uma estratégica de comunicação ousada para unir os combatentes e fortalecê-los psicologicamente. Era preciso insuflar otimismo nos combatentes, reforçando-lhes a nacionalidade e ridicularizando seus oponentes. Além do efeito propagandístico que tais edições representavam para os paraguaios, sua produção editorial também trouxe conquistas importantes para a história da cultura do país. Com a escassez de papel e tinta, imposta pelo bloqueio comercial da Inglaterra – aliada do Brasil e grande potência da época interessada no livre trânsito pelo rio Prata – a edição dos jornais tornou-se essencialmente artesanal, obrigando os jornalistas/soldados a produzirem as matérias-primas necessárias para assegurar a continuidade do trabalho. Como resultado dessa carência, pela primeira vez na história se produziu papel no Paraguai, reforçando o caráter de resistência e de inovação dos periódicos, especialmente na óptica do povo daquela jovem nação. O papel foi fabricado com fibras de árvores nativas, como o caraguatá e a ybira. As tintas eram obtidas a partir do suco de legumes, como cenoura e beterraba. O material resultante era grosseiro e a edição dos jornais complicava-se sobremaneira. Não bastassem as enormes limitações técnicas, pode-se imaginar a tensão de se fazer um jornal no meio do combate, com feridos e mortos ao redor, o país em frangalhos, mantendo o humor corrosivo e o alto nível de textos e ilustrações. Sem dúvida, foi uma façanha. El Centinela era editado em Assunção, na Imprensa Nacional, e portanto estava próximo e sujeito à ingerência do governo. 3 Seu discurso era mais “oficialista”: os artigos e os desenhos tendem a caricaturar o inimigo e a exaltar a figura do Marechal Francisco Solano López. O principal desenhista do semanário era Alejandro Ravizza, arquiteto e ilustrador italiano, de estilo neoclássico, contratado diretamente por López para trabalhar no Paraguai. Quando Carlos Solano López, pai de Francisco, governou o país, enviou o filho para diversas missões na Europa para tentar construir alianças que fortalecessem seu projeto de crescimento e modernização. O contato com artistas europeus é resultado dessas investidas diplomáticas. O artista paraguaio Manuel Colunga transformava as ilustrações de Ravizza em xilogravuras, conseguindo um surpreendente efeito de desenho com bico de pena. Com a intervenção de Colunga, o contorno e o volume se tornavam mais importantes que os planos e os espaços gráficos produzidos pela madeira talhada e a tinta. 3 El centinela. Edição fac similar. Assunção: Museo del Barro, 1998. Voltar 89 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 88-93 Universidade São Marcos Voltar 90 Sumário Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio O estilo do jornal El Centinela segue três linhas fundamentais. Em primeiro lugar, as imagens que enaltecem personagens gloriosos ou mitificam ideais épicos, abusando dos recursos alegóricos. Tratava-se de construir o imaginário de heróis nacionais, muitos nascidos de povos indígenas. Por outro lado, quando representavam ações de bravura, certas imagens apelam para o repertório romântico, refletindo os valores estéticos oriundos da Europa. Por fim, nos casos em que as ilustrações se propunham a ridicularizar os adversários, recorriam à caricatura jornalística da época, com traços de um expressionismo preciso e mordaz, também muito comum na imprensa européia do período. As ironias com o inimigo são o grande charme editorial da publicação, com soluções formais criativas e imagens fortes, tais como a recorrente representação dos brasileiros como animais – nós que tínhamos o maior contingente militar em combate e impusemos aos paraguaios derrotas navais duríssimas. Já o periódico Cabichuí , cujo nome significa uma espécie de vespa em guarani, era impresso no “ateliê” do exército, em Paso Pacú, em plena linha de combate. Logo no texto de apresentação diziase que “as gravuras do Cabichuí são trabalhadas com uma mão no fuzil e outra no cinzel, uma vez que estamos frente a frente, a um palmo de distância do inimigo”. 4 A empreitada rendeu quase cem números, resultado do tempo que sobrava nas tréguas e no repouso obrigatório dos soldados. Nas páginas do Cabichuí ficaram registrados desde momentos solenes, de sofrimento e alegria, sobre o cotidiano da batalha – crônicas que fazem referência a vitórias e derrotas – até poemas de autores anônimos, ou mesmo a poesia guarani de Natalício Talavera, importante autor da época. Sirva de exemplo a nota de morte do capitão Simon Villamayor, que recebera autorização do governo para aposentar-se do exército, em virtude dos longos anos de serviços prestados, e que tombou ao juntar-se à defesa de Villa del Pilar, onde se encontrava, e que fora cercada pelo exército inimigo. 4 Cabichuí. Edição fac similar. Assunção: Museo del Barro, 1984. Voltar 90 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 88-93 Universidade São Marcos Voltar 91 Sumário Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio Há muita dúvida entre os pesquisadores sobre a verdadeira identidade dos soldados/artistas, ou soldados/escritores, que produziram o jornal Cabichuí . Fala-se de um certo sargento Godoy, cujos desenhos chegaram a ser considerados melhores que os do “concorrente italiano” Ravizza, e do pintor Saturio Ríos. A ensaísta e pesquisadora espanhola Josefina Plá se refere ao trabalho dos gravadores Inocencio Aquino, M. Perina, Francisco Ocampos, Gregorio Baltasar Acosta, Gerónimo Gregorio Cáceres, J. Bargas e Francisco Velasco como integrantes da heróica equipe de editores combatentes. Segundo Plá, “considerada em conjunto a obra destes gravadores se destaca por sua notável unidade”. Podemos entender, observando a coerência e organicidade na diagramação, no diálogo entre textos e ilustrações, na variedade dos estilos narrativos, na originalidade de charges que demonstram uma crítica muito bem articulada ao absurdo da guerra, no bestiário construído para caracterizar as tropas inimigas, como a solidariedade nascida nas trincheiras gerou um trabalho em mutirão, que transformava os traços e as palavras individuais num projeto comum, harmônico, submetido ao que Josefina Plá definiu como “o sentido unívoco da técnica”. 5 A riqueza e a diversidade da imaginação desses artistas do front pode ser ilustrada pelas vinhetas utilizadas como letras capitulares, separando as seções nas colunas de cada página do Cabichuí . Seja nesse abecedário criado especialmente para as edições, seja nas gravuras estampadas entre as matérias, o Cabichuí apresenta traços fortes e provocadores, que condensam idéia e forma em pequenas obras-primas de beleza e concisão, talvez com inspiração no melhor da arte gráfica produzida na Europa. Em cada detalhe das páginas do Cabichuí e do Centinela se percebe o cuidado com o grafismo, o esmero técnico, a tentativa de documentar o instante histórico com criatividade e agudo senso de rebeldia. Outro detalhe interessante que chama a atenção e ilustra o teor inconformado de atuação do periódico é a representação de brasileiros como macacos, com 5 Cabichuí. Op. cit. Voltar 91 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 88-93 Universidade São Marcos Voltar 92 Sumário Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio destaque para grandes protagonistas como Duque de Caxias, Almirante Tamandaré, princesa Isabel e o imperador Pedro II, entre outros. Muitos desenhos apresentam as tropas brasileiras em fuga, humilhadas pelos paraguaios. E não raro nossos personagens históricos são demonizados. Há uma ilustração muito engraçada numa edição de agosto de 1867 do Centinela, entre tantas, em que soldados do Paraguai mostram o traseiro para o espião inimigo que os observa de um balão, num gesto de desprezo e provocação. A legenda diz: cara feia al enemigo. O que nos interessa ressaltar com esses exemplos colhidos ao acaso, é que texto e imagem combinavam-se com agilidade e clareza, passando notícias urgentes e mensagens reconfortantes, sem abandonar o zelo com os aspectos gráficos. Os jornais procuravam essencialmente informar, mas também levar um pouco de alegria às tropas, fazendo circular alguma nota de esperança, entre crônicas, narrativas literárias, manifestos, desabafos, poemas, reportagens, enfim, a mais diversa e sofisticada forma de jornalismo. A afirmação da nacionalidade que estava na origem da proposta editorial deu lugar a uma produção extremamente refinada e que pode ser considerada pioneira na América Latina, caso levemos em consideração o momento e as condições materiais em que foi realizada. Na opinião do crítico de arte paraguaio Ticio Escobar, “as gravuras do Cabichuí e algumas do Centinela constituem o fenômeno mais importante da prática visual paraguaia até o século XIX e um dos casos mais significativos na história das artes gráficas latino-americanas da época”.6 Não resta dúvida de que o legado dessas edições são a prova de que arte e história se mesclam, às vezes, de modo dramático, para deixar impressa a marca de nossa frágil, mas criadora, humanidade. No olhar do artista materializado nas xilogravuras do Centinela e do Cabichuí podemos entrever, transcorridos 135 anos do final do conflito, o cotidiano dos paraguaios, com suas utopias e desilusões, com sua alegria e miséria. Na distorção imposta pelo artista ao real, podemos reconstruir o mosaico histórico de um drama que envolveu quatro países num embate de repercussão continental. Se o Paraguai sofreu uma derrota cruenta e dolorosa nos campos de batalha, que desvelou as contradições na formação dos países latino-americanos e na sua emancipação política, ao menos nas páginas do Centinela e do Cabichuí os paraguaios conquistaram uma vitória significativa, demonstrando que a criatividade pode ser transformada numa arma poderosa de resistência, ainda que sob o fogo cruzado e a morte iminente. 6 Cabichuí. Op cit. Escobar foi o responsável, com Osvaldo Salerno, pela compilação dos originais. Voltar 92 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 88-93 Universidade São Marcos Voltar 93 Sumário Jornalismo na Guerra do Paraguai: Cabichuí e El Centinela Reynaldo Damazio Referências bibliográficas BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina – da Independência até 1870. São Paulo: Edusp, 2004, vol. 3. BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 Cabichuí . Edição fac-similar. Assunção: Museo del Barro, 1984. El centinela. Edição fac-similar. Assunção: Museo del Barro, 1998. FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil . São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2002, 1ª reimpressão. FURTADO, Joaci Pereira. A Guerra do Paraguai (1864-1870). São Paulo: Saraiva, 2000. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. SCHULZ, John. O exército na política – origens da intervenção militar (1850-1894). São Paulo: Edusp, 1994. Voltar 93 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 88-93 Universidade São Marcos Voltar 94 Sumário Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola* Resumo Questões relativas a disfunções na comunicação são colocadas do ponto de vista da educadora brasileira do Ensino Fundamental. O ensino da Língua Portuguesa é revisitado desde o início do processo da chamada democratização da escola pública (década de 70) até hoje. A análise das questões aventadas apóia-se nos conceitos de rede e de máscara. O cenário do ensino de Língua Portuguesa é mostrado em sua cotidianidade na qual predomina o fracasso, porém é apontada como alternativa: a construção dialética da prática do ensino. Palavras-chaves: Língua Portuguesa; Ensino Fundamental; formação do professor; Didática; desvantagem sócio-cultural; escola pública. Abstract In this article, the brasilian educator exposes the communication disfunctions on the education of chidren from 6 to 14 years. The teaching of Portuguese Language is reviewed since the beginning of the public school democratisation process, on the 70‘s, until now. The analysis of the questions raised is supported by the concepts of network and mask. The teaching of Portuguese Language scenery is shown in its daily life, where the failure is the main aspect. The dialectical construction of the teaching practice is the solution pointed as an alternative. Key-words: portuguese language, basic education, teacher formation, socio-cultural disablement, public school Sobre o tema Distorções da informação (colocado pelas professoras Dra. Anna Barros e Rosemari Faga Viégas, na qualidade de organizadoras da Jornada de Comunicação, Arte e Criatividade, dentro das atividades de pesquisa do programa de Mestrado Interdisciplinar – Educação, Comunicação, Administração – da Universidade São Marcos), construí minha fala do ponto de vista das educadoras que vivenciaram o processo da chamada democratização da escola pública, ocorrida a partir da década de 70, no Brasil, quando do início da captação de clientela proveniente de classes socioeconômicas desfavorecidas. * Mestre pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar. Voltar 94 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 94-98 Universidade São Marcos Voltar 95 Sumário Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola Nos anos finais daquela década, as universidades brasileiras já ensinavam a seus alunos de licenciaturas que, no ensino fundamental, a grande maioria dos alunos multirrepetentes não era culpada de seu fracasso, uma vez que os chamados problemas de aprendizagem eram provenientes da condição de desvantagem sociocultural por eles enfrentadas. No entanto, ainda hoje, vozes que partem da escola de ensino fundamental dizem, em uníssono, que o número de alunos com dificuldades de aprendizagem tem aumentado gradativamente nos últimos anos. Segundo Semeghini-Siqueira1, no final da oitava série, o fato de haver “um grande contingente de alunos não leitores fluentes e que não produzem textos de modo coerente e coeso é um indicativo de que mudanças são necessárias”, uma vez que esses alunos, apesar de terem concluído o ensino fundamental continuam excluídos socialmente pela mínima apropriação de instrumentos do discurso dominante. Segundo a autora, para que tais mudanças ocorram, é necessário reformular os cursos universitários que habilitam professores para lecionar Língua Portuguesa no ensino fundamental, tanto nas séries iniciais (curso de Pedagogia), quanto nas séries finais (curso de Letras), pois nenhum dos dois cursos consegue dar conta da formação necessária aos futuros responsáveis pelo ensino da Língua Portuguesa no ensino fundamental. Essa formação é, portanto, incompleta, tanto em relação à teoria da linguagem para os pedagogos, quanto às práticas educativas para os licenciados em Letras. A análise das conseqüências dessa formação incompleta, a ser apresentada a seguir, apóia-se na metáfora da rede para explicitar a tessitura dos significados ou feixes de relações construídas social e individualmente, e, portanto, em constante atualização. Na rede que se pretende tecer, por meio desta fala, há pontos (nós) que privilegiam o entendimento dos cenários, onde ocorrem as distorções da informação no processo de comunicação entre os atores do processo ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa. No entanto, “... não se pode perder de vista que a metáfora da rede contrapõe-se diretamente à idéia de cadeia, de encadeamento lógico, de ordenação necessária, de linearidade na construção do conhecimento, com as correspondentes determinações pedagógicas relacionadas com os pré-requisitos, as seriações, os planejamentos e as avaliações.” 1 2 SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa. A Escola inclusiva investe nas potencialidades do aluno: tópicos para reflexão com a comunidade . In BAUMEL, Roseli e SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (org.). Integrar para incluir: desafios da escola atual. São Paulo: FEUSP,1998. 2 MACHADO, José Nilson. Epistemologia e Didática. São Paulo: Cortez, 2000. 4ª. ed. P. 139-140. Voltar 95 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 94-98 Universidade São Marcos Voltar 96 Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola Sumário Desta feita, convido os leitores a acompanhar o percurso da exploração da rede de significações que serão apresentadas, imbuídos, portanto, da visão (analógica e metafórica) necessária. Um dos pontos constitutivos do perfil apropriado ao professor de Língua Portuguesa do ensino fundamental para a escola inclusiva, é o de: “trabalhar com uma concepção dialógica da linguagem: diálogo entre interlocutores e diálogo entre discursos” 3 A escola democrática tem escolhido como interlocutor o Estado de direito e ignorado o estado de fato. O poder público federal brasileiro impinge aos seus estados e municípios o dever de oferecer vagas na escola pública a crianças que completem sete anos. No entanto, a criança socialmente desfavorecida poderá, ou não, usufruir da permanência na escola, dos 7 aos 14 anos, e também do sucesso no percurso das oito séries; isso irá depender não só da organização familiar do aluno, como também do projeto político pedagógico da escola. Educadores do ensino fundamental têm recorrido a silogismos perversos, tais como, o de que: ‘se a exclusão social provém da falta de domínio dos saberes da cultura dominante, se as classes desfavorecidas partilham de culturas minoritárias, logo a criação de espaços curriculares para as culturas minoritárias enfraquece o acesso à cultura dominante, com prejuízo dos alunos provenientes de famílias desfavorecidas. ’ O silogismo tomado como exemplo é análogo ao conceito de máscara. “ A noção de máscara trabalha obscuramente em nosso psiquismo. A partir do momento em que queremos distinguir o que se dissimula sob um rosto, a partir do momento em que queremos ler em um rosto, tomamos tacitamente esse rosto por uma máscara.” 4 A máscara irá “ indicar uma teologia da dissimulação, uma tentação constante de dissimular, uma aspiração a ser outro que se é. A máscara realiza, em suma, o direito que nos concedemos de nos desdobrar. Oferece uma avenida de ser a nosso duplo, a um duplo potencial [...] que é a própria sombra de nosso ser, sombra projetada não atrás mas adiante de nosso ser. A máscara é então uma concretização do que teria podido ser. 5 Munidos do conceito de máscara, caminhemos à procura de dois seres: o professor e seu aluno. 3 SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa. Opus cit. P. 25. 4 BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1985. P.165. 5 BACHELARD, Gaston. Opus cit. P. 173. Voltar 96 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 94-98 Universidade São Marcos Voltar 97 Sumário Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola O diálogo professor-aluno tem por cenário a sala de aula. O professor representa o papel daquele que detém os saberes da classe dominante. Mas em que medida usufrui das liberdades de ler e de escrever que supostamente adquiriu? O desempenho dos papéis de leitor e de produtor de textos pelo professor proporciona-lhe o prazer desejado? O desempenho desses papéis tem a autonomia esperada? Possibilita a qualidade de participação social atribuída àquele que é sujeito-histórico? O aluno representa o papel de estar presente. Mas em que medida não andará perdido em seu mundo pessoal ou de outros iguais? Mas esses iguais são também sem rosto. Ou têm um rosto próprio, mas encoberto por véus das culturas minoritárias? Quando mostra sua ausência perante o discurso do professor, esse aluno se chama rebelde. Se algum continente é dado, ou seja, se algum tipo de protagonismo é oferecido, o rebelde permanece na escola, caso contrário, se evade. Lá fora, ele se chama infrator. O diálogo professor-aluno tem de novo por cenário a sala de aula. Desta vez o professor se identifica com o papel representado, é empático com a angústia impingida ao aluno pelas condições de desfavorecimento sociocultural. O aluno, por sua vez, percebe que pode tirar proveito desse tipo de sentimento. Tornam-se mãe-filho, até a quarta série. E depois? O diálogo professor-aluno tem novamente por cenário a sala de aula. Este cenário tem no centro um quadro-negro. O quadro negro é o centro do cenário: todo o restante tornou-se periférico! No quadro-negro não há linguagem. No quadro-negro só há meta – linguagem: análise sintática, análise morfológica, análise fonética. E quanto à análise léxica das redes de significações existentes na cultura a que o aluno pertence? E as pertinentes ao diálogo de discursos diversos? Não houve tempo, pela lentidão dos alunos. O jocoso paradoxo do segmento de fala criado nos remete à “ positividade da dissimulação, a manutenção – na própria alienação – de uma certa consciência de desdobramento. As ambivalências não são nunca simplesmente justapostas. Entre seus pólos está sempre em ação uma conversão de valores. Essa conversão de valores é que age na psicologia do ser mascarado. Do ser mascarado à máscara há fluxo e refluxo, dois movimentos que repercutem alternadamente na consciência. A fenomenologia da máscara nos oferece bosquejos sobre esse desdobramento de um ser que quer parecer o que não é e acaba por se descobrir ao dissimular, por meio de sua dissimulação.”6 6 BACHELARD, Gaston. Opus cit. P. 174. Voltar 97 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 94-98 Universidade São Marcos Voltar 98 Sumário Distorções da informação: do ensino da Língua Portuguesa na escola de Ensino Fundamental Edna Domenica Merola Caminhemos, então, nesse percurso de autodescoberta por meio do desdobramento dialético. O diálogo professor-aluno tem, desta vez, por cenário a diversidade cultural que dá continente à expressão das diversas subjetividades. Nesse diálogo, o professor assume o papel de mediar as trocas entre as diversas culturas, gerando novas linguagens. O diálogo professor-aluno constrói-se agora num cenário novo: o do projeto político pedagógico que endossa metas libertadoras e que aposta num currículo que permite a continuidade entre o saber local e o nacional, o que não implica forma alguma de barateamento em relação à apropriação da cultura da classe dominante, de forma que seja possível partir da cultura local para a ela retornar já com outra visão, fazendo dela, um ponto de partida e de chegada, num movimento dialético. Desta feita, nesse processo de busca por libertação dos cenários anteriormente mencionados e das distorções de informação que eles trazem em seu bojo, o professor de Língua Portuguesa e seu aluno dialogam. Constroem um ponto de encontro: é um cenário tão novo que pode até incluir a sala de aula. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1985. MACHADO, José Nilson. Epistemologia e Didática. São Paulo: Cortez, 2000. 4ª. ed. SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa. A Escola inclusiva investe nas potencialidades do aluno: tópicos para reflexão com a comunidade . In BAUMEL, Roseli e SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (org.). Integrar para incluir: desafios da escola atual. São Paulo: FEUSP,1998. Voltar 98 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 94-98 Universidade São Marcos Voltar 99 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas* Sandra Farto Botelho Trufen** Introdução A pesquisa teve como objetivo estudar, analisar e produzir um diagnóstico das propriedades rurais utilizadas como segunda residência e empreendimentos turísticos localizados em áreas de proteção aos mananciais existentes na Subprefeitura da Região Metropolitana da Grande São Paulo. A área de estudo foi delimitada a partir de uma das cinco sub-bacias que fazem parte da bacia do Alto Tietê: Cotia-Guarapiranga na microbacia do rio Parelheiros. A hipótese de trabalho, apontou o turismo de segunda residência e o investimento em empreendimentos turísticos como ações capazes de: gerar renda para a população local; contribuir para a preservação ambiental da área de manancial e, afetar negativamente área através da violência. A metodologia empregada constituiu-se na aplicação de questionários a 15 proprietários ou caseiros de propriedades rurais, assim como outros tantos 15 questionários a administradores de empreendimentos turísticos. Os questionários englobavam questões sobre o interesse original que levou os interessados à região, situação de interesse atual, aspectos de preservação ambiental, segurança pública infra-estrutura urbana de estradas, comércio e escolas, possibilidades de geração de renda aos moradores locais, transformação das propriedades em áreas de lazer público mediante cobrança de serviços, além de alguns outros aspectos. A tabulação dos dados permitiu verificar que, de modo geral, os proprietários das segundas residências, assim como dos empreendimentos turísticos gostariam de ver a região melhor preservada em seus aspectos ambientais, e vislumbram no turismo rural uma das possibilidades de alcançar esse objetivo. Os entrevistados acreditam, ainda, na possibilidade de geração de empregos e renda, controle da violência e melhoria nas condições de infra-estrutura urbana. A preocupação ambiental dos moradores da região foi fortemente acentuada no estudo, bem como a ansiedade de que o poder público atue nesse sentido como, por exemplo, inserindo o tema no Plano Diretor. * Aluna do curso de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Professora Doutora da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. Voltar 99 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 100 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Na acepção de Knafou (2001), a análise do turismo e de sua dimensão territorial pode-se estar de acordo com três tipos de situação: os territórios sem turismo – caso raro na atualidade em razão do progresso dos transportes e da facilidade de acesso da prática social aos lugares turísticos, mas para o autor isso não quer dizer que “três turistas em uma fazenda e um escritório de turismo possam ser suficientes para fazer um território turístico”; o turismo sem território – turismo que não procede da iniciativa de turistas, ou melhor, da prática social, mas é o resultado das operadoras de turismo que colocam o produto no mercado. O produto é localizado em ponto estratégico, formalizando alguma relação com o território, que não é suficiente para produzir um “território turístico apropriado pelos turistas”; os territórios turísticos – inventados e produzidos pelos turistas, mais ou menos retomados pelos operadores turísticos e pelos planejadores. O planejamento do território é apenas um planejamento do espaço, no qual o turismo constitui um princípio de organização, que neste caso deve ser muito bem pensado, pois não é apenas o espaço que se planeja, mas toda a sociedade. No que se refere à região estudada e a sua relação com o turismo e lazer, melhor dizendo, com “territórios turísticos”, a Subprefeitura de Parelheiros desenvolveu Plano Diretor, que trata dos problemas sociais, urbanos e ambientais do município, em especial visando sua inserção na área metropolitana. Esse plano contou com a orientação e supervisão da Secretaria Municipal do Planejamento Urbano – SEMPLA, e das Subprefeituras (Capela do Socorro e Parelheiros), com a participação dos munícipes de diversos bairros, de representantes de associações nãogovernamentais e demais interessados. É importante ressaltar que a sociedade civil esteve presente em todas as fases desenvolvidas. O Plano Diretor de Parelheiros está voltado às políticas públicas da região, cujos objetivos estabelecem o desenvolvimento urbano e ambiental, partindo de alternativas econômicas direcionadas ao desenvolvimento rural, como turismo e agricultura sustentáveis, compatíveis com a proteção dos mananciais, com vistas à produção de água e à proteção dos ecossistemas. Em relação ao desenvolvimento econômico e social, o Capítulo II do Plano Diretor estabelece duas vertentes: uma voltada para o turismo sustentável e a outra para o desenvolvimento rural, a partir dos seguintes princípios: a) conscientizar a população para a necessidade de conservação ambiental; b) valorizar e inserir as comunidades locais no processo de exploração racional do turismo; c) promover a agregação do valor e do retorno econômico para a economia local; Voltar 100 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 101 Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen Sumário d) promover o desenvolvimento social e proteção ao patrimônio natural e cultural local; e) garantir o respeito à capacidade de suporte dos ecossistemas; f) promover a viabilização da atividade turística como alternativa econômica para a Área de Proteção Ambiental (APA) Municipal do Capivari-Monos. Em relação ao desenvolvimento rural: a) promover a viabilização do espaço rural como espaço produtivo, dominantemente agrícola, mas com crescentes opções de novas atividades; b) promover a viabilização do espaço rural como espaço de residência, tanto para os agricultores quanto para a população urbana que busca uma segunda residência ou mesmo um padrão de moradia diferenciado; c) valorizar o espaço rural como espaço de serviços voltado ao lazer e ao turismo; d) promover a viabilização do espaço rural como espaço de proteção, baseado no uso sustentável dos recursos naturais; e) capacitar a população rural para a atividade profissional e desenvolver a atitude empreendedora voltada à agricultura e turismo sustentáveis e serviços correlacionados. E em relação ao turismo sustentável, os objetivos são os seguintes: I. desenvolver políticas públicas para o desenvolvimento do turismo sustentável, especialmente ecoturismo, turismo rural e turismo cultural; II. implantar centros de informações turísticas nas centralidades previstas; III. capacitar e instrumentalizar a comunidade local para o turismo receptivo, ampliando a possibilidade de ocupações profissionais; IV. estabelecer regulamentações para a visitação nas áreas naturais, em especial no interior da APA Municipal do Capivari-Monos; V. implantar serviços e equipamentos públicos e particulares, proporcionando urbanização local e melhoria das condições para recepção de turistas; VI. identificar fontes de financiamento e desenvolver ações que viabilizem o acesso a elas; VII. conservar e viabilizar o uso econômico do patrimônio histórico, arqueológico, cultural e arquitetônico; VIII. conscientizar a população e visitantes acerca da importância da proteção dos recursos naturais; IX. incentivar a implantação de infra-estrutura receptiva; X. implantar, de acordo com os princípios expressos no inciso I do artigo 4º, o Pólo Ecoturístico de Evangelista de Souza. Voltar 101 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 102 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen De fato, Viégas (2005) afirma que existe a possibilidade de desenvolver atividades voltadas ao turismo e lazer na região da Sub-Prefeitura de Parelheiros. Apesar de existir áreas degradadas e invadidas, a região possui ricas paisagens turísticas, importantes para a preservação dos ecossistemas, o que irá contribuir para a conscientização da população local sobre a necessidade da conservação ambiental e cultural, e até mesmo inseri-la no processo de exploração sustentável do turismo, com programas de capacitação para a recepção de turistas e geração de empregos. Ademais, com a possibilidade de reduzir os casos de violência ocorridos na região. A Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos, entre outros atrativos turísticos compreende lugares que podem ser preparados para a recepção de turistas. Esse modelo de investimento em turismo pode proporcionar à comunidade local, aos moradores do entorno e até mesmo aos visitantes, o conhecimento sobre Educação Ambiental. Reciclagens com passeios nas trilhas e outras atividades podem despertar o respeito e o interesse pelo meio em que estão inseridos, conscientizando-os acerca da importância da proteção dos recursos naturais. A criação de um parque, dotado de campo de futebol e área de lazer, seria mais uma opção, podendo ser utilizado para piqueniques. Mas para que todas as atividades acima descritas ocorram da melhor forma, não se pode deixar de pensar nas políticas públicas para o desenvolvimento de um turismo sustentável, como demonstrado no Plano Diretor1. Visando a contribuir com o desenvolvimento desse processo, a Subprefeitura de Parelheiros vem trabalhando junto à comunidade para conscientizá-la sobre a importância dessa área. Estão construindo um grupo com lideranças para o desenvolvimento da Agenda 21 Local na Região da Sub-Parelheiros (GTA21SUL) que integra Parelheiros, Campo Limpo, Santo Amaro e Jabaquara, e conta com a supervisão e orientação do Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – CADES, e Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, além das Subprefeituras de Capela do Socorro e Parelheiros. Agenda 21 – é o documento resultante da Conferência da ONU para Ambiente e Desenvolvimento – ECO 92, programa a ser implementado pelos governos envolvendo a criação de legislação, financiamento de projetos e transferência da tecnologia entre os países, com vistas à proteção ambiental. É processo e instrumento de planejamento participativo para o desenvolvimento sustentável que tem como eixo central a sustentabilidade, compatibilizando a conservação ambiental, a justiça social e o crescimento econômico. Depende da vontade política dos governantes e da mobilização da sociedade, que para implementar os seus programas e as suas recomendações se faz necessário desdobrar a Agenda 21 em agendas regionais, nacionais e locais. 1 Construído com o apoio da sociedade civil (Planejamento Estratégico Participativo) Voltar 102 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 103 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen A Agenda 212 Local é um instrumento de planejamento de políticas públicas, envolvendo a sociedade civil e o governo. Suas ações podem ser iniciadas tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil. O processo é amplo e participativo voltado a levantar os problemas ambientais, sociais e econômicos locais, e o debate sobre soluções para esses problemas através da identificação e implementação de ações concretas que visem ao desenvolvimento sustentável local. De fato, a Agenda 21 Local é processo e documento de referência para planos diretores e orçamentos municipais, entre outros, podendo também ser desenvolvida por comunidades rurais, e em diferentes setores/territorialidades, em bairros, áreas protegidas/unidades de conservação e bacias hidrográficas. Os principais desafios para a elaboração da Agenda 21 Local consistem em: planejamento voltado à ação compartilhada, na construção de propostas voltadas para a elaboração de uma visão de futuro entre os diferentes atores envolvidos; condução de um processo contínuo e sustentável; descentralização e controle social; e incorporação de uma visão multidisciplinar em todas as etapas do processo. Desta forma, governo e sociedade estão utilizando esse poderoso instrumento de planejamento estratégico participativo para a construção de cenários harmônicos, em regime de co-responsabilidade, que devem servir de subsídios à elaboração de políticas públicas sustentáveis, orientadas para harmonizar o desenvolvimento econômico, a justiça social e o equilíbrio ambiental. Para isso, deve-se formar um grupo de trabalho composto por representantes da sociedade civil e do governo (no caso de um município ou de um determinado território), podendo ter a liderança de qualquer segmento da comunidade. As atribuições desse grupo devem envolver desde a mobilização e a difusão dos conceitos e pressupostos da Agenda 21, até a elaboração de uma matriz para a consulta à população sobre problemas enfrentados e possíveis soluções, incluindo o estabelecimento de ações sustentáveis prioritárias a serem implementadas no processo de construção da Agenda 21 Local, envolvendo: metodologia de trabalho; reunião de informações sobre as questões-chave para o desenvolvimento local; identificação dos setores da sociedade que devem estar representados em função das particularidades locais; os papéis dos diferentes participantes do processo; identificação de meios de financiamento para a elaboração da Agenda 21 Local; e negociações com o poder local sobre a institucionalização do processo de construção e implementação da Agenda 21 Local. 2 Ministério do Meio Ambiente. Ary da Silva Martini, coordenador interino da Agenda 21 Brasileira. s/l. s/d. Disponível em: http://www.mma.gov.br/?id_estrutura=18&id_conteudo=908. Acesso em: 15 jan.2004. Voltar 103 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 104 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen Considerações finais Avaliar em que medida as atividades voltadas ao turismo e lazer (sítios de lazer e/ou residências de uso ocasional e os empreendimentos turísticos) contribuem com o uso e ocupação do solo, considerando as recomendações para área de Manancial não é tarefa fácil. Mas o que se pode afirmar, é que essas atividades podem assegurar a preservação de parcela de área permeável (vegetação arbórea), dentro da propriedade e impedindo o uso irregular do terreno. Dessa forma, o turismo sustentável em sítios de lazer e empreendimentos turísticos em áreas de mananciais, quando devidamente conduzido pode contribuir para a qualidade das matas e água, preservando parte do território das maiores ameaças identificadas, que são os loteamentos ilegais sobre áreas de risco. Por outro lado, os aspectos de violência aparecem como elementos restritivos à atividade, necessitando, portanto, de mais providencias, ações, atenção por parte do poder constituído. Para que o território se torne mais freqüentado, ou seja, turístico, faz-se necessário conter a violência urbana que existe, e dessa maneira transformar a imagem que alguns fazem da região, considerada “perigosa”. Tanto para os sítios de lazer como para os empreendimentos turísticos, consegue-se perceber a importância dessas atividades na região de Parelheiros, pelo fato de proporcionarem empregos, conseqüentemente, renda para a população local, e em alguns casos até mesmo a moradia e plantio para consumo. Esta hipótese é considerada positiva; os sítios de lazer contratam funcionários, particularmente caseiros, empregadas domésticas e serviços de manutenção. Os empreendimentos necessitam de funcionários permanentes que exercem funções de zeladoria, limpeza, manutenção, cozinha, administração e escritório, e os temporários, que normalmente desenvolvem trabalhos de cozinheira, horta e/ou jardim e segurança em épocas de maior movimento do turismo e/ou lazer. Em relação à legislação de recuperação e proteção dos mananciais, nem todos souberam afirmar a sua existência, deixando explícito a necessidade de uma melhor divulgação e principalmente atuação, tal como fiscalização mais eficiente, por se tratar de uma região de grande importância, e por ser responsável pelo abastecimento da Grande São Paulo. Em face do exposto, o Plano Diretor Regional de Parelheiros, irá contribuir, desenvolvendo os objetivos referentes à Política de Desenvolvimento Urbano e Ambiental; os Objetivos para o Desenvolvimento Econômico e Social; os Objetivos do Turismo Sustentável; e o Objetivo para o Desenvolvimento Humano e Qualidade de Vida, buscando soluções coerentes com a realidade da região. Além da Agenda 21 Local que se apresenta em fase inicial, envolvendo a comunidade civil, despertando sobre o potencial turístico existente, e contribuindo para o desenvolvimento do Plano Diretor. A Agenda 21 – GTA21SUL integra Parelheiros, Campo Limpo, Sto Amaro e Jabaquara, e conta com a supervisão e orientação do Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – CADES e Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, além das Subprefeituras (Capela do Socorro e Parelheiros). Voltar 104 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 105 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen A análise sobre a interferência da paisagem no território estudado demonstra que a paisagem é em grande parte reflexo da sociedade, ou seja, é extremamente reveladora. Para transformá-la, deve-se mudar o espaço, e para isso tem se que mudar a consciência dos atores envolvidos. Sendo assim pode-se afirmar que a avaliação das atividades estudadas é positiva, pois, contribuem para uma melhor qualidade de vida para a população local, e para a preservação do território e dos fragmentos ainda existentes. Para que esse desenvolvimento prossiga da melhor forma, a sociedade civil deve estar sempre presente em todas as etapas do processo referente ao território em questão. Considerando-se as localidades turísticas da atualidade como parte de uma rede, os nós dessas redes são invariavelmente, cidades cuja função estratégica, do ponto de vista do turismo não decorre apenas de infra-estrutura material de que dispõem e do papel que ocupam no espaço cognitivo, mas de sua localização – um feixe de forças sociais se exercendo em um lugar no mundo. (Santos, 1997:2) Referências bibliográficas BELLENZANI, Maria Lucia. A Apa Municipal do Capivari-Monos como uma Estratégia de Proteção aos Mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. 2001. Dissertação (mestrado em Ciências Ambientais). Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais – PROCAM na Universidade de São Paulo, São Paulo. BRASIL. Embratur/Ibama. Diretrizes para uma Política Pública Estadual de Ecoturismo. Brasília, 1994. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Agenda 21 Brasileira. s/l. s/d. BRASIL. Ministério do Turismo/ Secretaria de Políticas de Turismo. Diretrizes para o Desenvolvimento do Turismo Rural no Brasil., 2003. COSTA, Patrícia Côrtes. Unidades de Conservação: Matéria – Prima do Ecoturismo. São Paulo: Ed. Aleph, 2002. (Série Turismo). INSTITUTO DE HOSPITALIDADE (Org). Norma nacional para Meios de Hospedagem: requisitos para a sustentabilidade NIH-54, 2004. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2005. (Caderno da Reserva da Biosfera: série conservação e áreas protegidas, n.30). KNAFOU, Remy. Turismo e Território: Por uma abordagem científica do Turismo. IN:RODRIGUES, Adyr. Turismo e Geografia: Reflexões Teóricas e Enfoques Regionais. São Paulo, Ed. Hucitec, 2001. MESQUITA, Carlos Alberto Bernardo; VIEIRA, Maria Cristina Weyland. RPPN: Reservas Particulares do Patrimônio Natural da Mata Atlântica. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2004. (Caderno da Reserva da Biosfera: série conservação e áreas protegidas, 28). MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE E DA AMAZONIA LEGAL, INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE – IBAMA. Roteiro Técnico para elaboração de Planos de Manejo em áreas protegidas de uso indireto. Brasília, 2000. Voltar 105 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 106 Sumário Turismo sustentável em áreas de manancial: Análise da Vocação Turística no Território de Parelheiros Jéssica Fagá Viégas / Sandra Farto Botelho Trufen ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE TURISMO. Desenvolvimento de Turismo Sustentável: Manual para Organizações Locais. 1. ed. 1998. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE TURISMO. Desenvolvimento de Turismo Sustentável: Manual para Organizações Locais. 1 ed. 1998. RODRIGUES, Adyr. Um ensaio de uma tipologia. IN: RODRIGUES A.B.(org) Turismo Rural. São Paulo, Contexto, 2000. SANTOS, Milton. Pensando e espaço do homem. São Paulo: Editora da Universidade de São PauloEDUSP, 2004. SÃO PAULO (Estado). Prefeitura de São Paulo. Plano Diretor Regional de Parelheiros. São Paulo: Subprefeitura da Capela do Socorro/ Subprefeitura de Parelheiros/ Instituto Sócioambiental, 2002. SÃO PAULO. Fundação SOS Mata Atlântica. Diagnóstico e Caracterização por percepção de bacias hidrográficas. São Paulo, 2005. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Planejamento Urbano. Prefeitura do Município de São Paulo. Planos Regionais Estratégicos – PRE: Município de São Paulo Subprefeitura de Parelheiros. São Paulo, 2004. 55p. (Série documentos) SÃO PAULO (Estado).Secretaria de Estado de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras. Governo do Estado de São Paulo. PDPA Guarapiranga: Subsídios ao Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental da Bacia do Guarapiranga. São Paulo: CNEC/JNS, 1995/1997. 41p. VIÉGAS, Jéssica Fagá. Turismo em áreas de Manancial: Uma Análise da Vocação Turística na Região de Parelheiros, RMSP. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas), Programas Multidisciplinar da Universidade São Marcos – USM. 2005. Voltar 106 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 99-106 Universidade São Marcos Voltar 107 Aspectos da Comunicação Interpessoal no Relacionamento Professor – Aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros Sumário Jornada do Grupo de Pesquisa Comunicação, Arte e Criatividade A Distorção da Informação Aspectos da Comunicação Interpessoal no Relacionamento Professor – Aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas* Lucilene Regina Marques* Profª. Drª. Anna Barros** Resumo Este artigo visa constatar como é importante a comunicação interpessoal efetiva entre professor-aluno, para um bom desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem. Palavras – Chave: Comunicação interpessoal, professor, aluno, problemas. Abstract The text intends to proof the importance of a real interpersonal relation between teacher- student for the development of a teaching-learning process. Key-words: interpersonal comunication, teacher, student, problems. Comunicação Interpessoal: Conceitos Para o perfeito entendimento do processo de comunicação interpessoal, faz – se necessário o conhecimento sobre dois conceitos: dado e informação. Segundo CHIAVENATO “dado é um registro a respeito de determinado evento ou ocorrência”, e informação “é um conjunto de dados de determinado significado o que permite o conhecimento a respeito de algo”. A comunicação eficaz somente ocorre quando determinado dado é recebido e compreendido pelo destinatário e se torna informação, ou seja, o simples recebimento da informação sem a sua compreensão não efetiva o processo de comunicação; assim podemos concluir, que a comunicação é a transferência de informação e significado de uma pessoa a outra. A presença de pessoas nesse processo salienta a importância do entendimento do modo como elas se relacionam umas com as outras, reafirmando que a comunicação está sujeita à influência de dois fatores: a percepção seletiva e a percepção social. * Alunas do curso de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Professora Douotra da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. Voltar 107 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 107-111 Universidade São Marcos Voltar 108 Sumário Aspectos da Comunicação Interpessoal no Relacionamento Professor – Aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros Todo indivíduo possui de maneira única sua percepção seletiva, que age de modo a classificar as informações. Essa percepção seletiva é formada pelas referências pessoais; como exemplo, os valores e motivações que selecionam e rejeitam as informações. Percepção social é o modo pelo qual a pessoa forma impressões sobre uma outra pessoa, considerando o ambiente onde estão incluídas, na esperança de compreendê-las. Envolve o percebedor, aquele que está tentando compreender, o percebido, aquele que está sendo compreendido, e a situação, conjunto dos aspectos do ambiente. A construção da percepção social no indivíduo é influenciada pelos estereótipos, generalizações, projeções, caracterizados por mecanismos de defesa pelos quais o indivíduo tende a atribuir a outros características próprias, que rejeita inconscientemente, e a defesa perceptual que ocorre quando o observador distorce os dados. Processo de Comunicação O processo de comunicação é realizado em duas fases: primeiro o receptor deve perceber a mensagem e em seguida interpretá-la. Para tanto, cinco elementos fundamentais são utilizados: emissor, codificador, canal, decodificador e receptor. O emissor ou fonte da mensagem é caracterizado pela pessoa que inicia a comunicação. O segundo elemento é a codificação que ocorre quando o emissor utiliza-se de símbolos para transmitir a informação. Esse elemento é importante, pois a informação só pode ser transmitida de uma pessoa a outra por símbolos, e a utilização destes com problemas de significado é uma causa comum das falhas na comunicação. Canal é o meio de transmissão de uma pessoa a outra; receptor é a pessoa cujos sentidos percebem a mensagem do emissor, e a decodificação caracteriza-se pelo processo de interpretação dos dados pelo receptor, traduzida em informações significativas. Durante a comunicação podem ocorrer falhas que impeçam, perturbem, confundam ou interfiram na transmissão ou entendimento da mensagem. Essas falhas são classificadas em ruídos internos ou emocionais, caracterizados pelas reações emocionais que influenciam o modo de se compreender a mensagem, ou em ruídos externos, físicos (também chamados de interferência), quando a informação é afetada por aspectos externos, como a distorção da informação pelos sons ambientes. O emissor durante o processo de comunicação deve tentar evitar tais ruídos para facilitar o entendimento da mensagem, buscando melhorar a clareza e a força desta mensagem. Além dos ruídos, o processo de comunicação pode apresentar obstáculos ou resistência entre as pessoas, ou seja, variáveis que intervêm no processo de comunicação, fazendo com que a informação, tal como enviada, torne-se diferente da informação, tal como recebida. Esses obstáculos são chamados de barreiras à comunicação. Voltar 108 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 107-111 Universidade São Marcos Voltar 109 Sumário Aspectos da Comunicação Interpessoal no Relacionamento Professor – Aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros A mais comum tem a sua origem nas diferentes formas de percepção do indivíduo, o que possibilita vários entendimentos sobre o mesmo fenômeno. Para evitá-la, o emissor deve compreender que seus receptores possuem diferentes visões e experiências e deve considerá-las durante o processo de comunicação. Outro exemplo de barreiras à comunicação são as inconsistências entre as comunicações verbais e não-verbais, ou seja, toda mensagem que enviamos ou recebemos são influenciadas por fatores não-verbais, como: postura, trajes, movimentos dos olhos. Durante a comunicação o emissor deve atentar para a perfeita relação entre o que está sendo falado e os movimentos corporais. A quantidade de confiança que o receptor tem na mensagem enviada também constitui um obstáculo à comunicação. O entendimento da mensagem é atribuído à credibilidade do emissor, fato de extrema importância e alcançado ao longo do tempo. Diferenças na linguagem também se caracterizam como barreiras à comunicação. Palavras ou gestos utilizados devem ter o mesmo significado para o receptor e emissor. A utilização de termos simples e a explicação de termos não convencionais ou técnicos diminuem tais barreiras. Com o objetivo de evitarmos distorções de entendimento durante a comunicação, é preciso utilizar a repetição e o feedback para torná-la clara. A repetição ou redundância caracteriza-se pela reformulação de uma mensagem que assegure sua recepção ou reforce seu impacto. Já o feedback é o reverso do processo de comunicação. Nele é expressa uma reação à comunicação do emissor. Além dos ruídos e das barreiras, a comunicação pode sofrer alguns males, como omissão, distorção ou sobrecarga. A omissão caracteriza-se pelo cancelamento de certos aspectos ou partes da informação, ou feitas pelo emissor ou pelo receptor. A distorção ocorre quando a informação sofre alterações ou deturpações que lhe modificam o significado. Já a sobrecarga caracteriza-se pelo excesso do volume ou quantidade de informações que afetam a capacidade do receptor de processá-las. Os problemas de comunicação entre professor-aluno Conhecedores de como ocorre o processo de comunicação interpessoal, centramos, então, nosso problema na questão da dificuldade de comunicação entre professor-aluno. A tarefa de transmitir conhecimentos acaba sendo a maior carga que o professor apresenta, atualmente, em nosso sistema de ensino, que é centralizado nos pilares: professor e matéria (conteúdo). Assim, o aluno coloca-se numa posição de receptor, vendo-se obrigado a captar uma considerável, e cada vez maior quantidade de informações, tais como fórmulas, conceitos, nomes, datas, etc., que partem do professor, o emissor “oficial” do ensino. Voltar 109 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 107-111 Universidade São Marcos Voltar 110 Sumário Aspectos da Comunicação Interpessoal no Relacionamento Professor – Aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros Entretanto, acabamos por nos esquecer de que as tarefas de transmitir, emitir e receber informações compõem somente uma parte da função da comunicação entre alunos e professores. Para que se instaure uma comunicação eficaz, é necessária a transformação dos dados em informação, não centrada apenas na transmissão da mensagem, mas também na cooperação, na criatividade e no respeito mútuo. Conforme podemos observar nas colocações de BORDENAVE e PEREIRA, há vários problemas que atrapalham a comunicação entre professor-aluno, dos quais citamos a questão do professor estar muito preocupado em expor sua matéria, esquecendo-se de comunicar, isto é, de motivar o aluno a ter interesse pela aula e de estimular-lhe a inteligência, induzindo-o a expressar-se e a dialogar. Outra questão é do uso de termos e conceitos emitidos pelo docente que ainda não estão presentes nas experiências de vida pessoal e acadêmica dos alunos, de modo que várias idéias são expostas aos discentes, e apenas algumas delas terminam por ser captadas e retidas por eles. A utilização de recursos audiovisuais, quando feita de modo incorreto, em vez de colaborar com o processo de ensino-aprendizagem, terminam por desestimular o pensamento dos alunos. Os discentes também carregam parte da responsabilidade das deficiências da comunicação entre professor-aluno, porque eles tendem a não prestar atenção à fala do professor, preocupandose com outros assuntos não pertinentes à aula ministrada. Os alunos, muitas vezes, têm preguiça de pensar e de raciocinar, adotando, dessa forma, atitudes de passividade e desligamento. A falta de desejo de saber e aprender acaba fazendo com que eles tenham dificuldades de vencer barreiras físicas e emocionais, que se interpõem no decorrer do processo de ensino. Não podemos nos esquecer de que o ensino vai além da comunicação, pois segundo BORDENAVE E PEREIRA (1998, p. 185) “Ensinar é fazer pensar, é estimular para a identificação e resolução de problemas; é ajudar a criar hábitos de pensamento e de ação”. Sendo assim, vemos que para um professor ser um bom comunicador, deve colocar-se no lugar do aluno, para que com ele, consiga estimular a capacidade de pensar, restringindo as barreiras da comunicação. Dessa forma, percebemos que os problemas que interferem na comunicação interpessoal de professores e alunos podem ser de natureza psicológica, semiológicas, semânticas, sintáticas e também cibernéticas. Com isso, vemos como o processo de comunicação é complexo, e que para solucionar estas intercorrências, é preciso o auxílio da interligação de várias ciências. Assim sendo, nota-se que para melhorar a comunicação professor-aluno, é necessário que o professor (o emissor), o aluno (o receptor), a mensagem e os meios sejam cuidadosamente ajustados e preparados, para que os problemas sejam amenizados. É preciso entender que uma mensagem só será adequadamente entendida, quando houver uma interação profunda entre emissor e receptor, que estimule e facilite a assimilação do que se pretende comunicar. Voltar 110 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 107-111 Universidade São Marcos Voltar 111 Sumário Aspectos da Comunicação Interpessoal no Relacionamento Professor – Aluno Ana Carolina Caetano Senger Dantas / Lucilene Regina Marques / Anna Barros Considerações finais Ao longo da elaboração e construção deste artigo, pudemos constatar que a comunicação é um fator que rege o processo de ensino-aprendizagem. Quando o ato comunicativo entre professoraluno não se faz claro e eficiente, isto acarretará um grande prejuízo ao meio educativo. É válido salientar que, quando o equilíbrio entre pessoa, signo e objeto é inexistente ou prejudicado, a comunicação não se desenvolve como deveria, e conseqüentemente, o que se pretendia comunicar fica desestruturada. O professor e o aluno, ora sendo bons comunicadores, ora sendo eficientes receptores, devem tentar sempre construir um clima de confiança e amizade entre si, para que a empatia sja desenvolvida, e o mecanismo de assimilação da informação seja melhor oportunizado. Portanto, para que a máxima eficácia da comunicação seja alcançada, é preciso que a mensagem seja devidamente compreendida pelo receptor. Referências bibliográficas CHIAVENATO, Idalberto. Recursos Humanos.Edição Compacta.São Paulo: Atlas, 2002. STONER, James A.F, FREEMAN, R. Edward.Administração. Rio de Janeiro. LTC, 1982. BORDENAVE e PEREIRA Voltar 111 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 107-111 Universidade São Marcos Voltar 112 Sumário A Síndrome de Down aos Olhos da Propaganda Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas A Síndrome de Down aos Olhos da Propaganda Martin Kuhn* Rosemari Fagá Viegas** Resumo Este artigo tem como objetivo desvelar e compreender características implícitas na propaganda de instituições ligadas ao trabalho de assistência e estimulação à pessoa com deficiência, particularmente portadores de Síndrome de Down, na última década (1996 a 2006) e sua possível conseqüência na perpetuação ou alteração do estigma que atinge este segmento da população. As análises terão como base: teorias de Goffman, que tratam sobre as questões do estigma e estudos de D’antino que abordam as ações de comunicação, principalmente as propagandas de instituições especializadas no atendimento à pessoa portadora de deficiência física e mental. Palavras chaves: Propaganda, Deficiência, Estigma, Comunicação, Educação Especial, Mídia, Síndrome de Down, Sociedade É notória a constatação de que a sociedade tem procurado abrir espaços para o portador de Síndrome de Down , principalmente na área da Educação e do Esporte. Contudo é necessário rever alguns conceitos, principalmente aqueles referentes às potencialidades do deficiente. Nesse contexto, deve-se considerar o papel fundamental que os meios de comunicação desempenham como difusores de mensagens que contribuam para a transformação do imaginário social e do estigma para com o portador de Síndrome de Down . Não faz muito tempo que os temas relativos às pessoas portadoras de deficiência eram abordados somente por médicos, educadores e terapeutas. A única ação que se realizava em favor do deficiente era o seu atendimento dentro de instituições especializadas. Este tipo de abordagem sempre confirmou uma tendência presente na sociedade: o portador de Síndrome de Down ou de outras deficiências seria visto exclusivamente como alguém que carece de programas de assistência social, mantidos pelas organizações não-governamentais. Esta prática não resulta em efetiva estimulação e desenvolvimento das potencialidades do deficiente. Pelo contrário, promove a segregação. Lenir Santos, presidente do Conselho da Fundação Síndrome de Down em Campinas, assinala essa confusão entre programas públicos para o desenvolvimento da pessoa deficiente e programas de assistência social: * Aluno do curso de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Professora Doutora da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. Voltar 112 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 112-116 Universidade São Marcos Voltar 113 A Síndrome de Down aos Olhos da Propaganda Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas Sumário “Os programas públicos para o desenvolvimento integral da pessoa deficiente são confundidos, quase sempre, com programas de assistência social. Sempre que se busca apoio ou ajuda financeira para as atividades de educação da pessoa deficiente somos encaminhados para os serviços de assistência social. Ora, a assistência social é a satisfação de necessidades básicas do indivíduo, excepcional ou não”.1 Santos defende ainda que o modelo de abordagem dos temas e da postura que abordam o deficiente seja alterado, assumindo uma postura que coloca o deficiente não apenas como “um ser carente em busca de assistência”, mas como um ser humano com potencialidades, em busca de um programa educacional capaz de desenvolver todas as suas qualidades e valores. De acordo com essa nova perspectiva, Santos propõe uma abordagem, na qual a “pessoa” seja privilegiada em detrimento da “deficiência”, diminuindo o preconceito. A concepção de que o deficiente deve ser tratado com igualdade e que a sua relação com a sociedade deve ser marcada por um envolvimento absolutamente livre de pré-conceitos não é muito simples de se vivenciar. Não faz um século, que a condição para ser exterminado do convívio social era portar alguma deficiência física ou mental. Notem que o uso da palavra “exterminado” se refere primeiramente as práticas de isolamento em instituições fechadas, mas em alguns casos, esta exclusão resultava no extermínio literal do deficiente. “Durante muitos séculos, as pessoas com deficiência eram consideradas ‘inválidas’ e socialmente inúteis. Neste contexto de quase barbárie, a política de segregação formulada no final do século XIX e aplicada até a década de 1940, impondo a internação definitiva em instituições fechadas, representou um progresso humanitário”.2 Embora a citação acima esteja preocupada em apontar o início do chamado “movimento de integração das pessoas com deficiência”, fica clara a referência ao aspecto “exterminação” do convívio social quando se pensa numa internação definitiva em instituições fechadas . Porém, existem registros que atestam que esse “extermínio” se dava também de modo literal, numa situação tão extrema que muitas vezes o deficiente pagava por sua condição com a própria vida. Uma das provas desta prática, apresentada na tese de doutorado de D’antino, mostra uma imagem e comenta o episódio de uma pessoa com deficiência mental, negra, submetida à execução publica em 1916. 3 1 DA SEGREGAÇÃO À INTEGRAÇÃO: Um processo para a construção da cidadania. II Congresso Brasileiro 2 MÍDIA E DEFICIÊNCIA / Veet Vivarta, Coordenação. – Brasília: Andi; Fundação Banco do Brasil, 2003. p. 17. 3 D’ANTINO, Maria Eloísa Famá. Deficiência e a mensagem reveladora da instituição especializada: Dimensões e I Encontro Latino-Americano Sobre Síndrome de Down. Brasília, DF, 1997. p. 10. imagética e textual. Tese de doutoramento. IP/USP. São Paulo, 2001. p. 198. Voltar 113 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 112-116 Universidade São Marcos Voltar 114 Sumário A Síndrome de Down aos Olhos da Propaganda Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas Hoje, a leitura desses episódios causa estranhamento, e sensação de incredulidade: algo impossível te der ocorrido a tão pouco tempo na história. Mas os fatos não podem ser contestados. E a marca, o estigma que acompanha o deficiente mental, não desapareceu por completo. Em sua obra clássica Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada , Erving Goffman define estigma como marca, categorização de indivíduos, identificação de segregados, definição de desgraça de um indivíduo ou de classes de indivíduos.4 Esta marca que os portadores de Síndrome de Down carregam consigo, mesmo que bastante atenuada, precisa ser eliminada por completo da sociedade. É exatamente neste contexto que os meios de comunicação desempenham um papel especial ao contribuir com mensagens que cooperaram para a criação de uma relação de convivência sem preconceitos entre os indivíduos de uma comunidade, nas suas relações sociais. É incrivelmente paradoxal que, mesmo sem uma intenção direta, os meios de comunicação ao invés de eliminar os estigmas, as marcas e os avisos de exclusão, manifestos nas pessoas portadoras de deficiência, auxiliam na manutenção do imaginário social que classifica o deficiente como uma aberração. Esta também é uma preocupação apresentada nos estudos de D’antino, ao analisar as propagandas de instituições de apoio às crianças deficientes. Em seus estudos, foi detectada uma certa ambivalência destas ações de comunicação. Se por um lado os comerciais veiculados na televisão e em outras mídias provocam nas pessoas alguma iniciativa que se reverte em doações para a manutenção da instituição, por outro, acentua na mente do telespectador cada vez mais a marca de que o deficiente é um inútil, incapaz para o trabalho, carente, isolado, assexuado, entre outras idéias. D’antino analisa algumas propagandas utilizadas em campanhas de arrecadação de fundos, nas quais a criança deficiente é profundamente explorada, não como alguém com um valor ou com qualidades e limitações, mas sim com um ser grotesco, quase uma aberração, numa ação definida pela autora como a ‘venda da piedade’. 5 Em muitos casos a abordagem e a terminologia utilizadas pelos meios de comunicação de massa, neste caso, numa ação de propaganda institucional e de arrecadação de fundos, refletem na maneira como a sociedade interpreta os temas de interesses gerais. Se a linguagem verbal, sonora e visual for utilizada de modo inadequado e se a informação que se quer transmitir não é devidamente avaliada, acaba reforçando conceitos, estigmas e posturas preconceituosas que depois são transmitidas culturalmente, transformando-se num empecilho ao desenvolvimento social. 4 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. p.11. 5 D’ANTINO, Maria Eloísa Famá. Deficiência e a mensagem reveladora da instituição especializada: Dimensões imagética e textual. op. cit. p. 66. Voltar 114 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 112-116 Universidade São Marcos Voltar 115 Sumário A Síndrome de Down aos Olhos da Propaganda Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas Infelizmente a mídia televisiva e impressa no Brasil vem se valendo, cada vez mais, dos recursos de uma comunicação sensacionalista, nos quais as imagens veiculadas exploram as aberrações. Este estilo de comunicação gera no telespectador um olhar com predominância de sensações estéticas em detrimento de reflexões racionais 6 . Este fato pode ser percebido também na propaganda institucional e de captação de recursos destas instituições ao vincularem seus anúncios à figura marcante do deficiente mental ou às “aberrações” do deficiente físico. A preocupação com este tipo de ênfase midiática foi manifestada em 1991 por Demétrio Casado, no VI Seminário Ibero-americano sobre deficiência e informação em Madri. O autor condena a “freqüente associação da deficiência com a incapacidade total ou a infelicidade, conforme demonstram certas campanhas de captação de recursos”. 7 D’antino, em Deficiência e a mensagem reveladora da instituição especializada: Dimensões imagética e textual, também enfatiza esse aspecto das propagandas de captação de recursos : “Seja qual for o sentimento gerado por estas imagens o fato é que a criança com deficiência não só é reificada pela propaganda institucional como, também, apresentada de forma grotesca, de modo que a disseminação de sua imagem, ao contrário de prestar um serviço à população, no sentido de dirimir preconceitos, tende a perpetuá-los”.8 Contudo, existem alguns comerciais que merecem o reconhecimento por tratarem deste assunto de maneira coerente com os objetivos da instituição ou causa que está por traz das campanhas, e ao mesmo tempo valorizando as potencialidades dos indivíduos portadores de deficiência. É o caso de um comercial veiculado em rede nacional por emissoras como a Rede Globo e a TV Bandeirantes. O filme, intitulado Garçonete, foi criado por uma das grandes agências de publicidade do Brasil, a Giovanni, FCB e produzido pela Zero Filme, também uma produtora altamente conceituada por sua qualidade tanto para produzir filmes publicitários, quanto filmes para o cinema. O comercial se passa dentro de uma lanchonete. A câmera mostra as atividades de uma garçonete que é portadora de Síndrome de Down e alguns freqüentadores que acompanham com os olhos o trabalho que realiza. Por um momento a garçonete sai de quadro e ouve-se um grande estrondo de bandeja caindo no chão e copos se quebrando. A câmera procura lentamente onde aconteceu o acidente, e encontra 6 DORNELLES, Vanderlei. Do verbal para o visual: O status da imagem nas revistas semanais de informação. Dissertação de Mestrado em comunicação: Universidade Metodista de São Paulo, 2004. p. 10 7 CASADO, Demétrio. Identidade de las personas com discapacidades e informacion in: Real Patronato de Prevención y de Atención a Personas com Minusvaliá. Discapacidad e Informacion – Documentos 14/92. 3ed. Madrid, Secretaria General Del Real Patronato de Prevención y Atención a Personas com Minusvaliá, Op.cit.,1992. 8 D’ANTINO, Maria Eloísa Famá. Deficiência e a mensagem reveladora da instituição especializada: Dimensões imagética e textual. São Paulo, 2001. Tese de doutoramento, IP/USP. p. 63 Voltar 115 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 112-116 Universidade São Marcos Voltar 116 Sumário A Síndrome de Down aos Olhos da Propaganda Martin Kuhn / Rosemari Fagá Viegas uma outra garçonete agachada, catando cacos de vidros. Permanece um grande mistério que induz o telespectador a interpretar que aquela nova garçonete em cena está ajudando sua colega deficiente. Neste momento o filme mostra a portadora de Síndrome de Down concentrada em seu trabalho num outro ambiente da lanchonete, totalmente isenta de qualquer culpa naquele episódio constrangedor. Este filme publicitário certamente desempenhou um papel importante no sentido de atenuar o preconceito social para com o portador de Síndrome de Down, especialmente no que diz respeito ao seu potencial para o trabalho. Um pequeno exemplo disto foi relatado por Adilson Xavier, diretor de criação da Agência Giovanni,FCB: “Recebemos um e-mail de um pai agradecendo a agência porque a sensibilização da campanha rendeu um emprego ao seu filho, portador de Síndrome de Down”. 9 Em síntese, os dois exemplos de propagandas mencionados neste artigo apresentam aspectos diferentes do uso de uma mesma ferramenta de comunicação: a propaganda. Ao analisar os dois anúncios, percebe-se que houve avanços quanto à forma de tratar o portador de Síndrome de Down, ou mesmo de outro tipo de deficiência. Esse avanço passa necessariamente pela informação e pelos meios de comunicação de massa que, pela natureza de suas funções sociais, são ferramentas poderosas para formar conceitos, evidenciar ou dirimir pré-conceitos, e neste sentido, colaborar com o portador de deficiência no lento processo de inclusão na sociedade onde vive. 9 REVISTA DA PROPAGANDA. Editora Referência: São Paulo, Abril de 2003. p. 53. Voltar 116 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 112-116 Universidade São Marcos Voltar 117 A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Sumário A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto* Anna Barros** 1. A palavra distorção A palavra distorção, em geral e a princípio, nos sugere algo de negativo, de desvio, de alteração de algo. Há inúmeras situações, entretanto, em que isso acontece de maneira diversa. O Dicionário Houaiss traz a definição de distorção como sendo a “alteração da forma ou de outras características estruturais, desvirtuamento, infidelidade, proposital ou não”.1 O mesmo dicionário nos apresenta sua origem etimológica, do latim “distortionis”, que significa: torcedura, contorção, voltar para um a outro lado. De fato, há inúmeros processos comunicativos que fazem uso da distorção. Embora ela possa acontecer em diversas circunstâncias aleatórias, pode ser usada deliberadamente, quando existe uma clara intenção para tal. A seguir, alguns rápidos exemplos de situações em que a distorção foi usada como recurso intencional, provocando os leitores dos textos e das imagens. 2. A palavra poética distorcida Os poetas, via de regra, usam as palavras de seus poemas com sentidos nem sempre convencionais, visando a provocar certa reação no leitor. * Aluno do curso de Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Professora Doutora da Pós-graduação Interdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. 1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p.1061 Voltar 117 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 118 Sumário A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros A linguagem poética é, por essência, um meio de comunicação em que as palavras e seus sentidos dançam de acordo com as circunstâncias, os olhos, os sentimentos, as sensações, o espírito de quem as lê e de quem as escreveu. É este, portanto, um campo onde, muito facilmente, se recorre ao uso da distorção. No texto do poeta português Fernando Pessoa, transcrito abaixo, existe um exemplo típico de uso deliberado de distorção, criando uma ambigüidade. Ou mesmo provocando, genialmente, o nosso raciocínio. Neste texto, Pessoa afirma que “Navegar é preciso. Viver não é preciso” 2. Na verdade, estes versos foram tomados do latim “Navigare necesse; vivere non est necesse”, frase de Pompeu, general romano, que viveu entre 106 e 48 a.C., dita a um grupo de marinheiros, amedrontados, que se recusavam viajar durante a guerra. Pessoa traduziu “ necesse” por “preciso”, causando uma distorção de sentido e na comunicação da idéia: conhecendo a realidade portuguesa das grandes navegações, a palavra se refere a ser preciso, no sentido de ser necessário ou no sentido de precisão, exatidão? Embora o texto original seja claro, Pessoa provocou uma distorção, forçando-nos a questionar o verdadeiro sentido de seu texto. 3. A expectativa distorcida O escritor gaúcho Mário Quintana, perito pelas afirmações curtas, cheias de significados, surpresas e bom humor, escreve um texto, uma definição para a palavra “camuflagem”. O resultado desta definição bem-humorada é: “A Esperança é um urubu pintado de verde” 3. Evidentemente, a primeira idéia que temos, a partir da palavra “esperança”, é que seria uma definição de caráter mais ético, moral ou relativo a valores nobres, dado o peso semântico desta palavra. Em geral, a expectativa seria esta ou semelhante a esta. No entanto, ao utilizar o recurso do humor, Quintana distorce a nossa expectativa, em relação ao que vem em seguida. A justaposição camuflagem-esperança-urubu-verde provoca uma reação significativa em nossos conceitos, apesar de conter certa lógica. Neste caso, a própria expectativa lógica sofre uma distorção, com um texto curto, permeado de distorção e criatividade. 2 PESSOA, Fernando. Disponível em: <http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso05.html>. Acesso em: 08 set. 2005. 3 QUINTANA, Mário. Prosa & Verso, p. 79 Voltar 118 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 119 A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Sumário 4. O ponto de vista distorcido O ponto de vista de cada um de nós é o lugar de onde contemplamos a realidade. Deste modo, cada ponto de vista tem aspectos e elementos que se diferenciam, de um olhar para o outro, fazendo com que interpretemos a realidade observada de forma subjetiva. Esta situação, portanto, pode provocar situações interessantes em que um mesmo fenômeno ou realidade seja interpretado de forma diversa, diríamos que de maneira distorcida, dependendo do referencial. Imaginemos a cena relatada a seguir, que nos apresenta uma situação de comunicação distorcida pelo ponto de vista dos personagens envolvidos: “Um estudante de aviação estava fazendo seu primeiro vôo solo. Ao ligar o rádio para receber as instruções de vôo, a torre de controle perguntou: Você poderia nos dar sua altitude e posição?. O piloto disse: Tenho 1,70 m e estou sentado na frente.”4 Neste exemplo, a situação real de cada um possibilita uma percepção da realidade e as palavras são interpretadas de acordo com essa percepção. Para quem observa a situação da torre de comando, as palavras altitude e posição se revestem de um significado diferente daquele que o piloto, nervoso em sua primeira viagem, atribui a essas palavras. Está criada, neste exemplo, a distorção a partir de pontos de vista distintos. 5. A gramática distorcida A Língua Portuguesa, por sua estrutura gramatical e vocabular, às vezes pode gerar ambigüidades no processo de comunicação, distorcendo a mensagem original. O caso exemplificado a seguir faz uso desta realidade gramatical para promover um erro de compreensão, provocando uma situação humorística: “O gerente geral de um banco estava preocupado com um jovem e brilhante diretor, que depois de ter trabalhado durante algum tempo com ele, sem parar nem para almoçar, começou a ausentar-se ao meio-dia. Então o gerente chamou um detetive e solicitou-lhe que seguisse o jovem diretor durante uma semana, durante o horário de almoço. O detetive, após cumprir o que lhe havia sido pedido, voltou e informou: O diretor sai normalmente ao meio-dia, pega o seu carro, vai à sua casa 4 Tom CHUNG. Qualidade começa em mim, p. 182 Voltar 119 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 120 Sumário A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros almoçar, faz amor com a sua mulher, fuma um dos seus excelentes cubanos e regressa ao trabalho. O gerente, então, fica aliviado, achando não haver nada de mal nesse comportamento...” 5 . O texto continua, com o detetive esclarecendo que, ao usar o pronome “sua” estava se referindo a ele gerente, e não ao diretor. Ao empregar o pronome em terceira pessoa (seu carro, sua casa, sua mulher, etc.), o detetive causou uma ambigüidade, distorcendo a realidade dos fatos por ele observados. É óbvio que esta situação tem um fundo cômico, mas a partir dela podemos refletir que, ao usarmos certos recursos gramaticais que nossa língua possibilita, podemos obter resultados inesperados na compreensão das mensagens. 6. A situação distorcida Também podemos aproveitar certas situações vividas no cotidiano para observar o quanto a distorção pode ser utilizada para reinterpretar os fatos ou o significado das palavras e expressões, causando um resultado inesperado. Um conhecido livro didático de Inglês para os alunos do Ensino Médio traz o pequeno texto abaixo, com um final inesperado, bem-humorado e criativo. Ao partir de uma situação do cotidiano – o café da manhã –, o diálogo entre pai e filha termina de uma maneira inusitada: “John Knox era um famoso líder religioso na Escócia. Ele era muito duro e severo com todos, inclusive com sua família. Um dia, sua filha estava atrasada para o café da manhã. Quando ela chegou à mesa, Knox olhou para ela e disse: Bom dia, filha do demônio!. A menina respondeu: Bom dia, papai! 6 Nesta situação, o pai faz uma referência simbólica à filha, a partir de seus valores rígidos; evidentemente, a expressão por ele utilizada tem um caráter metafórico. Ao responder a saudação ao pai, a menina o faz dentro do contexto real e objetivo. O resultado disso é uma interpretação distorcida, deliberadamente criada, para ter um efeito surpreendente e humorístico. 7. A imagem da política distorcida Afirmar que a política sofre constantes distorções é quase que redundante. A realidade política, brasileira e internacional, com suas artimanhas, é vítima de distorções provocadas, sobretudo pelo humor e pela sátira. 5 Texto recebido por e-mail, sem indicação de autoria 6 MARQUES, Amadeu. Reading texts in English, p. 32 Voltar 120 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 121 A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Sumário A imagem da personagem Mafalda, na figura abaixo 7, explicita a distorção de seu rosto – literalmente distorcido no reflexo do bule –, comparando-o com a situação política como um todo. Também há a distorção feita, propositadamente, com outras intenções. Aproveitando a atual e triste crise política brasileira, humoristas também fazem adaptações de outros materiais existentes, distorcendo imagens e/ou palavras, para criar um efeito humorístico e, ao mesmo tempo, provocar nossa reflexão. É o caso da figura abaixo, retirada do site humorístico <http://www.euhein.com.br>, em que há a distorção de duas campanhas publicitárias do Governo Federal. A primeira distorção foi elaborada a partir da campanha “O Melhor do Brasil é o Brasileiro” , usando a imagem do ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares. As palavras foram trocadas/distorcidas para causar o resultado final, que lemos na imagem. A segunda distorção, na mesma figura, é feita, sutilmente, a partir do slogan do Governo Federal: “Brasil, um país de todos”. Aproveitando o clima de crise política, a palavra “todos” é trocada por “ tolos”. A distorção do slogan é sugestiva e esta simples alteração proporciona uma série de possibilidades de interpretações, reflexões e críticas. Voltar 121 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 122 Sumário A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros 8. A imagem da publiciidade distorcida A distorção na imagem também pode ser utilizada como um poderoso recurso para transmitir uma idéia ou um conceito. As figuras abaixo foram publicadas em duas páginas da Revista Época8, e pertencem a uma publicidade da Fundação Roberto Marinho. A primeira página apresenta somente a primeira foto. A segunda página traz a outra foto e, no alto, a seguinte frase: “Ainda bem que existem pessoas que enxergam o que muita gente não quer ver”. Esta campanha publicitária usa, exatamente, a questão da distorção da imagem como essência da idéia que quer transmitir. A imagem é distorcida e desfocada em dois momentos e em dois pontos diferentes, da primeira para a segunda foto. Com isto, a frase utilizada ganha um poderoso reforço visual: a propaganda distorceu a imagem para significar o próprio slogan e a própria distorção. 9. Distorção e comunicação Por fim, nesta breve reflexão sobre algumas situações específicas, queremos salientar que, em alguns momentos, a distorção é utilizada como um recurso comunicativo, com objetivos bem precisos e com intenções claras. Esta realidade reforça e exemplifica claramente a afirmação de Morin, quando diz que “a comunicação não garante a compreensão”.9 Para compreender, precisamos perceber as mensagens de acordo com suas intenções, seus contextos e levando-se em consideração a subjetividade da percepção humana, com toda sua carga cultural. Uma das intenções presente no processo comunicativo pode ser, sem dúvida, a distorção, utilizada como recurso visual ou de linguagem, para provocar reações diversas. Este uso, entretanto, não pode escapar de uma análise crítica e ética. Distorcer para enganar não tem respaldo. Somos favoráveis ao uso do recurso da distorção quando estes objetivos e intenções servem para provocar a nossa reflexão diante da realidade, inquietando-nos e incentivando-nos a transformá-la, de maneira positiva, ética e responsável. Distorcer para enganar é distorcer a possibilidade de uma boa distorção. 7 QUINO. O mundo da Mafalda, p. 20 8 Revista Época, n. 372, p. 70-71 9 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do futuro, p. 94 Voltar 122 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 123 A distorção como recurso Marcos Luciano Corsatto / Anna Barros Sumário Referências bibliográficas CHUNG, Tom. Qualidade começa em mim. 5ª. ed. São Paulo: Maltese, 1998. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.1061 MARQUES, Amadeu. Reading Texts in English. Vol. 1. São Paulo: Ática, 1989. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 5ª. ed. São Paulo: Cortez, 2002. QUINTANA, Mario. Prosa & Verso. 8ª. ed. São Paulo: Globo, 1998. Revista ÉPOCA. Rio de Janeiro: Editora Globo, fasc. XXX, 04 jul. 2005. QUINO. O mundo da Mafalda. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Voltar 123 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 117-123 Universidade São Marcos Voltar 124 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia* Anna Barros** Resumo Este artigo tem como objetivo apontar a dificuldade da inclusão social do indivíduo que enfrenta algum problema de cunho social. Esta dificuldade pode estar ligada à distribuição de renda que é feita de maneira desigual desde os primórdios. Com o advento da globalização, a tendência foi a ampliação dessa desigualdade, pois o mundo passou a agir de maneira integrada e exclusiva, no sentido da separação. O trabalho procura estudar a dificuldade da inclusão das pessoas em meio à evolução da sociedade. Palavras chaves: Exclusão Social, Globalização, Sociedade. Abstract This article intents to point out the difficulties of social inclusion in handcaped people under any social way. This diffculty can be due to the unequal affair distribution. The advent of globalization has magnified this unequality because the world started to act in a very integrated and exclusive way which led to class separation. The text aims at a study of the difficulty of integrating parts of the society facing the fast speed of social evolution. Quando falamos em problemas sociais, automaticamente somos remetidos às condições de pobreza dos povos, que os levam a se afastar das transformações na vida social, muitas vezes não por opção, mas, por falta de condições para acompanhá-las, sendo que um dos maiores fatores de agravamento desta condição é a concentração de renda. “A sociedade brasileira foi estruturada originalmente a partir de um padrão extremamente concentrado de distribuição social de riqueza”1. Essa afirmação nos remete à história da distribuição de riqueza no Brasil, que vai desde o período colonial, quando a divisão de terra já contemplou alguns pequenos grupos da sociedade em detrimento de outros até a atualidade, quando , aparentemente, pouca coisa mudou. A modernização trouxe muitas mudanças para a sociedade, e uma delas foi a globalização, que tem por objetivo integrar os povos, mas, favoreceu a concentração de renda e a pobreza continuou * Mestrando do Programa de Pós-graduação Intrdisciplinar em Administração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos ** Prof ª Dr.ª Orientadora 1 POCHMANN et.al. Atlas da exclusão social no Brasil: Os ricos no Brasil. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004. pág. 26/27. Voltar 124 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 125 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros a aumentar. Antigamente a pobreza era originária dos processos mais gerais de mudança, naturais ou sociais, que aconteciam em determinado lugar e ficavam circunscritos a ele. A globalização trouxe um novo contexto para as mudanças sociais; apesar de terem sido mais regionais no passado, tinham muito em comum com outros lugares. As comunidades tentavam administrar ou resolver o problema como se fosse um problema local; com o tempo, entretanto, percebeu-se que o problema não era exclusivamente local, mas que existia em maior ou menor intensidade em outras localidades. A questão da exclusão social advinha de fatores semelhantes nas várias regiões. O que era fator de exclusão social para uma região também era para outra; a regionalização , entretanto, não permitia que o problema fosse compartilhado de uma forma mais ampla; o que mudou, com a eclosão das mídias de massa, é que a informação se alastrou rapidamente, tornando-se propriedade global. As noticias dos acontecimentos mundiais atingem as mais longínquas localidades e, assim, os problemas de minúsculas aldeias passam a fazer parte da consciência global, tornando-se uma questão de cidadania. Um dos problemas mais prementes, atualmente, é o da exclusão social que deriva da confrontação entre camadas sociais diferentes. O poder econômico e o consumismo passam a representar um abismo entre os que estão incluídos e os excluídos. A exposição ao consumo acaba agravando as diferenças entre ricos e pobres. Os bens materiais, a educação, a tecnologia e a informação só são acessíveis a quem possua alguma renda para consumir. O indivíduo que possui renda para consumir passa a se destacar na sociedade e o que não consegue consumir fica à margem esperando ajuda para sobreviver. Os mais necessitados ficam no desejo de algum dia poder usufruir toda a abundância que está à disposição na sociedade, buscando a igualdade como uma forma de status. A exclusão sempre levará o indivíduo a se afastar dos grupos de poder. Por exemplo, na área da educação, quem não possui um nível mais alto tende a ser , pois ninguém está disposto a se nivelar pelo mais baixo. Essa situação gera a necessidade de um trabalho que possa auxiliar o indivíduo a ser considerado um cidadão pela sociedade. Surge a importância do direito à cidadânia, ou seja, a inclusão do indivíduo como participante ativo no crescimento social, afim de não continuar como um personagem à sombra. Estar incluído significa ser um cidadão com direitos e deveres. E a sociedade e o Estado precisam reconhecer suas manifestações como válidas, caso contrário ele não terá sua opinião respeitada. Para fazer parte da cidadania, o indivíduo deve estar incluído social e politicamente. A partir do momento em que não participa da sociedade o indivíduo se sente desvalorizado,”a pobreza reveste-se de um status social desvalorizado e estigmatizado, onde a humilhação o impede de aprofundar qualquer sentimento de pertinência a uma classe social ” 2 O pobre é obrigado a viver 2 PAUGAM. Serge. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais. In Org.SAWAIA. Bader. As artimanhas da exclusão _ Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. 2ed. P 67. Voltar 125 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 126 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros isolado do restante da sociedade e acaba por se isolar, ficando à espera de algo que não depende dele: o resgate dessa situação de exclusão. A exclusão interfere no desenvolvimento da sociedade, impossibilitando o acesso à educação, à saúde, ao saneamento básico, ao emprego, à tecnologia entre outros. Com a exclusão do indivíduo, a sociedade passa a administrar esses problemas, muito mais de maneira assistencialista do que segundo a ética da igualdade social, que levaria a incentivar e apoiar o indivíduo, levando-o a sair dessa situação. Para podermos entender melhor a exclusão social adotaremos a seguinte definição: A exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é o processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema.3 O funcionamento do sistema passa pelo governo, pela sociedade e por suas elites intelectuais e políticas. Investir em políticas de inclusão social é uma necessidade imediata da sociedade moderna, cujo foco principal será a redução da falta de acesso do indivíduo aos seus direitos de cidadão. O grande questionamento é a quem interessa a exclusão social, ou seja, quem é o grande beneficiário dessa situação. Se, por um lado, sabemos que governo e sociedade devem empenhar esforços para incluir o indivíduo, por outro, sabemos que há interesses, muitas vezes de ordem econômica, que preferem dar as costas ao problema e tirar proveito para si. Nesse contexto podemos citar as elites econômicas, políticas e todos aqueles que exploram as vítimas da exclusão, pois elas não têm condições de contestar, ou preferem ficar no anonimato por conveniência. Governantes, cada vez mais interessados no poder, preferem atender aos interesses econômicos em lugar de resolver os problemas básicos da sociedade. Ou seja: “educação, saúde, saneamento básico, empregos ) os quais) foram substituídos por diretrizes governamentais que privilegiaram as ações do capital, o mercado financeiro, os juros, a ciranda financeira e a globalização. O ser humano ficou à margem dessas diretrizes”4. O indivíduo passou a ser mero coadjuvante no cenário econômico, para facilitar e ampliar a desigualdade social, sendo que o governo tem papel importante nesse quadro. A falta de planejamento, ações e recursos relacionados a programas sociais tem sido essencial para o 3 SAWAIA, Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 9. 4 ALMEIDA, Nelson Morato Pinto de. Inclusão Digital: tecendo redes afetivas/Cognitivas. PELLANDA et.al.(orgs.) – Rio de Janeiro: DP&A, 2005. pág. 345. Voltar 126 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 127 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros aumento da exclusão. Observamos na história brasileira que os investimentos nas áreas sociais foram sempre relegados a segunda ordem. A visão assistencialista, que muitos ficam esperando que o governo assuma, ao mesmo tempo em que incomoda, passa a ser vital para a base de sustentação dos governantes. Qualquer discurso político que não incluir como plataforma de governo os programas de assistência social não terá validade para o eleitorado, fazendo que o candidato ou o partido político não consiga êxito na disputa pelo poder. Esses discursos estavam presentes nas campanhas presidenciais de Fernado Henrique Cardoso e de Lula. Não ter poder significa não ter acesso à distribuição de riquezas. O problema é que depois de eleitos, os candidatos, seus programas colocados em prática, não conseguem atingir os resultados esperados, pois envolvem muitos recursos e sua manutenção acaba sendo onerosa, gerando mais exclusão, pois o programa muitas vezes é um paliativo e não uma solução. Muitas situações são descritas como de exclusão, que representam as mais variadas formas e sentidos advindos da relação inclusão/exclusão. Sob esse rótulo estão contidos inúmeros processos e categorias, uma série de manifestações que aparecem como fraturas e rupturas do vínculo social(pessoas idosas, deficientes, desadaptados sociais; minorias étnicas ou de cor; desempregados de longa duração, jovens impossibilitados de aceder ao mercado de trabalho, etc.)5. Além das citadas, o indivíduo passa a ter outra situação de exclusão, quando participa de um determinado programa social, como por exemplo, “bolsa família”, o que acaba reforçando sua posição de excluído. A sociedade, por acreditar que esses programas servem muito mais de palanque para reeleição ou desvio de recursos, não os leva a sério. Portanto o indivíduo que participou do programa social além de, em alguns casos, não ter conseguido resolver seu problema de exclusão, passa a ser vítima de um outro preconceito da sociedade, o de tersido beneficiado por um programa assistencialista. O indivíduo, diante de tantas dificuldades, passa a agir de forma excluída. Muitas vezes ele mesmo se coloca como excluído, ou por não ter acesso ou por não querer fazer parte de programas assistencialistas, acreditando que estes não o ajudarão. No caso das pessoas que estão chegando ao mercado de trabalho ou que estão desempregadas há muito tempo, essa situação impede que ela possa participar de maneira igualitária na obtenção de uma oportunidade de colocação ou recolocação. O dinamismo do mercado de trabalho exige que as pessoas acompanhem sua evolução e, para isso, é necessário ter acesso à educação e ao uso 5 WANDERLEY, Mariângela Belfiore. Refletindo sobre a noção de exclusão. Org. SAWAIA. Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 17. Voltar 127 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 128 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros das tecnologias disponíveis, ou seja, não basta apenas saber o básico, é necessário estar sempre atualizado, buscar aquilo que ainda não se conhece ou não se domina. O problema que surge com essa situação é impotência de buscar o novo por conta própria, “o homem ao defrontar-se com aquilo que não conhece e domina, perde a capacidade de controle, fica inseguro e muitas vezes desesperado”6. Quanto menos conhecimento e/ou informação as pessoas tiverem, maiores as chances de exclusão e a de serem dominados por outras pessoas. Deixar o velho, ou tradicional de lado não é uma tarefa fácil. A sociedade sempre valorizou a experiência que está ligada ao passado; todavia há uma constante cobrança pelo novo. Uma pessoa que alguns anos atrás utilizava habilmente o teclado da máquina de escrever, atualmente pode estar desempregada, se não evoluiu para o novo, se não souber utilizar o computador e conhecer alguns dos programas mais difundidos. Quando surgiu o computador, muitas pessoas relutaram em usá-lo, pois isso invalidaria um conhecimento longamente empregado, ou seja datilografar. A parafernália ligada ao computador as assustava. A insegurança diante do novo foi uma barreira para o uso do computador . “O novo sempre requer um novo olhar e novos olhares geralmente geram insegurança naqueles que olham sem fazer uso de referências conhecidas, ao mesmo tempo em que provocam a ira daqueles que não querem abandonar a segurança dos referenciais” 7. Essa insegurança gerada pelo novo colabora para que o indivíduo demore para aceitar a mudança, e com isso, ele ficará mais excluído e mais dependente da ajuda governamental. Enquanto espera por essa ajuda, o indivíduo depara-se com a realidade, ou seja a necessidade de buscar conhecimento para conseguir melhorar suas oportunidades e reverter esse quadro de exclusão. Quando o governo ou a sociedade não faz sua parte, e nem o indivíduo busca uma solução para o seu problema, ficamos com uma lacuna e não encontramos o responsável pela iniciativa concreta de reduzir a exclusão. Um verdadeiro jogo de empurra acontece entre os envolvidos e alguém tem que pagar a conta da falta de solução para o problema. Aparentemente a solução inicial deve partir do próprio indivíduo: “é necessário encontrar uma vítima expiatória sobre quem descarregar o pecado da marginalização. Essa vítima é o próprio excluído. O sistema não é o culpado, mas sim o ser humano, que é o único responsável pelo seu êxito ou fracasso” 8.Ou seja, o indivíduo passa a ser 6 SAWAIA, Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 120. 7 NICOLACI, Ana Maria da Costa. Na malha da rede: os impactos íntimos da Internet. Rio de Janeiro: Campus, 1998. 8 GUARESCHI, Pedrinho A. Pressupostos psicossociais da exclusão: Competitividade e culpabilização. Org. SAWAIA. Bader. Op. cit. p. 154. Voltar 128 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 129 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros responsável pelas suas atitudes e escolhas, tendo que deixar o que é velho de lado e partir para o novo. Ele precisará ter a iniciativa de buscar ou de cobrar as soluções para o seu problema. Com a união dos povos, através da globalização, esse quadro tende a aumentar. O novo já não é algo regional, de fácil compreensão; ele vem ditado por outras nações mais dominadoras, em todos os sentidos. Os países ditos de primeiro mundo dominam o novo muito mais rápido que os países subdesenvolvidos, devido ao poder econômico que possibilita o investimento necessário para que a sociedade possa acompanhar a evolução. Resta aos países mais pobres a promessa de ajuda posterior, ou seja, a evolução é garantida primeiramente aos países mais ricos para somente depois vir a beneficiar os menos favorecidos. Nesse contexto globalizado, a expectativa é de que a exclusão social seja maior ainda, aumentando o abismo entre pobres e ricos, dominadores e dominados. A globalização da economia privilegia as nações ricas e as grandes corporações, que ditam um perfil econômico favorável a seus objetivos comerciais sem se importar com os efeitos danosos que provocam nas economias dos países mais frágeis. Esses efeitos geralmente estabelecem um aumento substancial do nível da pobreza da sua sociedade, a partir do desemprego provocado pela ação do capital e da especulação financeira em lugar da ação social, descentrando a identidade do sujeito trabalhador que, ao perder suas referências sociais, se encaminha para depressão profissional, social e humana, desembocando finalmente no estigma da exclusão social, de onde dificilmente consegue sair.9 Quando trazemos essa realidade para o território nacional, podemos constatar a grande diferença social aqui existente. Dentro do Brasil, possuímos realidades diferente; enquanto algumas cidades têm seus investimentos mais voltados para o crescimento econômico – cidades mais ao sul do país – outras ficam à margem da ajuda governamental para cumprir pelo menos o básico para sua população – cidades mais ao norte do país. Isso não isenta grandes cidades como São Paulo de ter num mesmo espaço geográfico situações de riqueza e situações de dependência total do setor governamental. Em São Paulo, “o modo de vida é dominado pela idéia de quantidade e de abundância, a pobreza na cidade é uma contradição. Expostos aos mais variados e intensos estímulos, que invadem todos os sentidos”,”10 o que tendem a aumentar a necessidade de consumo. A sociedade tem a seu dispor uma série de benefícios, tais como, educação, saúde, informação, entre outros. Porém, somente aquele que possui alguma “riqueza”, seja ela econômica ou intelectual, 9 ALMEIDA, Nelson Morato Pinto de. Inclusão Digital: tecendo redes afetivas/Cognitivas. PELLANDA et.al.(orgs.) – Rio de Janeiro: DP&A, 2005. pág. 347. 10 MELLO, Silvia Leser de. A violência urbana e a exclusão dos jovens. Org. SAWAIA. Bader.Op. cit. p. 134. Voltar 129 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 130 Sumário Problemas sociais e a dificuldade da inclusão social Roberto Padilha Moia / Anna Barros é que pode desfrutar de toda essa abundância. Essa situação gera a necessidade de um trabalho que possa auxiliar o indivíduo a ser considerado um cidadão, pela sociedade. Surge daí a importância do direito à cidadania, ou seja, a inclusão do indivíduo como participante ativo no crescimento social e não apenas como personagem de manobra dos interesses de poucos. Estar incluído significa ser um cidadão com direitos e deveres, que a sociedade e o estado devem reconhecer passando a aceitar sua manifestação como positiva e a respeitar sua opinião. Referências bibliográficas ALMEIDA, Nelson Morato Pinto de. Inclusão Digital: tecendo redes afetivas/cognitivas. PELLANDA et.al.(orgs.) – Rio de Janeiro: DP&A, 2005. pág. 345. GUARESCHI, Pedrinho A. Pressupostos psicossociais da exclusão: competitividade e culpabilização. Org. SAWAIA. Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 154. MELLO, Silvia Leser de. A violência urbana e a exclusão dos jovens. Org. SAWAIA. Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 134. NICOLACI, Ana Maria da Costa. Na malha da rede: os impactos íntimos da Internet. Rio de Janeiro: Campus, 1998. PAUGAM, Serge. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais. Org. SAWAIA. Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 67. POCHMANN et.al. Atlas da exclusão social no Brasil: os ricos no Brasil. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004. SAWAIA, Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 9. WANDERLEY, Mariângela Belfiore. Refletindo sobre a noção de exclusão. Org. SAWAIA. Bader. As artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ed. Pág. 17. Voltar 130 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 124-130 Universidade São Marcos Voltar 131 A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira Sumário A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista. Cassius Breda Pereira* Resumo O artigo estabelece uma discussão do trato da dor nas artes visuais, com foco no estilo Barroco e no do Expressionismo. A dor aqui discutida não é a dor física mas a dor que ultrapassa os limites do corpo. A arte abordada é a qual abre espaço para discussão do feio, do comum, do social, do homem. A mensagem dessa dor sofre influências de suas épocas mas podem estabelecer um paralelo com as aflições da sociedade contemporânea. Palavras-chave: Dor, Arte, Barroco, Expressionismo Abstract This article carries out a discussion of the way pain is portrayed by visual arts, having Barroque and Expressionism as focus. The kind of pain present in this text is not physical but the one that goes beyond the one the body can bear. Concerning art, this is approached in a possible debate on the idea of “ugly”, ordinary, social and mankind. The message of such pain suffers influences of each period of time, but those influences can be compared with the afflictions of contemporary society. Key-words: Pain, Art, Barroque, Expressionism Introdução Com base na bibliografia pesquisada, deseja-se estabelecer um paralelo entre os estilos do Barroco e o do Expressionismo sobre a mensagem da dor nas artes plásticas. A dor foi retratada sob várias óticas nos diversos estilos da arte visual. Os estilos que mais profundamente trataram dessa temática foram o Barroco e o Expressionismo. A dor em questão não é a dor física, da qual a medicina se ocupa, mas a dor psicológica, espiritual, social e existencial do ser humano. * Aluno do Programa de Pós-graduação Intrdisciplinar em Amninistração, Educação e Comunicação da Universidade São Marcos. Vice-coordenador acadêmico da FIA (Faculdade Interação Americana), em SBC/SP. Voltar 131 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 132 Sumário A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira O Barroco (séc XVII) foi um movimento inovador nas artes, sendo a primeira vez, que as artes deixaram a Península Itálica para alcançar o restante do continente, seguindo para as colônias na África, América e Ásia. As dialéticas que o estilo disseminou instigaram novos questionamentos sobre o papel do homem, de Deus e do artista. A dor representada nessa escola é social. Pela primeira vez na arte, o feio e o pobre (em oposição ao belo renascentista) são retratados. O Expressionismo (final do séc. XIX e início do séc. XX) um momento de transformação da arte; que proporcionou novos conceitos estéticos para a obra de arte. A dor, representada nesse momento criativo é existencial, a do sofrimento humano. A loucura, o feio e o psicológico dão vazão a essa abertura da obra de arte, que, a partir desse estilo, já não será a mesma, pois sua ideologia e estética sofrem a maior e mais profunda mudança quanto aos conceitos presentes. A problemática da dor apresenta-se em todo o processo de evolução do homem e as artes visuais não poderiam deixar de expressar esse sentimento. A inserção da dor como mensagem na arte nasceu da vontade de conhecê-la através dos caminhos das artes, o que nos leva a buscar entender como algumas escolas estéticas olharam e reproduziram, em expressão visual, a dor humana em seu sentido existencial. A importância e os questionamentos que o tema abrange são de suma importância para a compreensão das motivações que levam o ser humano a produzir, em artes plásticas, estilos tão particulares e inovadores, representativos da estética da dor. Fazer um paralelo entre essas duas escolas inovadoras é o que a pesquisa pretende, paralelo que está no entender como essas escolas trabalharam a questão da dor, onde existe um relacionamento entre suas óticas, seus estilos, seu modo de retratá-la. Caráter social da dor do Barroco: Tudo nos leva a crer que o caráter social da dor barroca está na intrínseca ligação entre o artista barroco e o questionamento social da época. Há uma nítida sugestão de conflito entre os ideais estéticos, entre a arte renascentista e nova arte – o Barroco. O artista barroco sofre e enfrenta os ideais heróicos clássicos e retrata o povo como seu herói. Parece que, na fantasia do artista barroco, é necessário bradar a dor das pessoas simples, que estão à mercê de uma elite, em circunstâncias cruéis. A sensação transmitida é de um basta. A Sagrada Família não pode ser retratada em um ambiente luxuoso, nem os personagens precisam ser nobres, em suas vestes exuberantes. A verdadeira Sagrada Família está no seio da população. São-nos mostrados, muitas vezes, personagens à beira da sociedade, maltrapilhos, pessoas em seu cotidiano simples, humildes, com pés, mãos e unhas sujas, afrontando a estética clássica, a Voltar 132 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 133 A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira Sumário qual jamais permitiria esse tipo de conduta. É nítida a sensação de descontentamento social que o estilo barroco conseguiu inserir na arte. A arte, até o Renascentismo, no séc. XVI, sufocava qualquer valor estético que fosse além da beleza considerada pura; Assim, a partir de elementos antes considerados antiestéticos, o Barroco vem a criar um novo conceito de estética, e parece, inclusive, ter desatado o nó que afligiu o homem durante séculos, expondo sua dor, sua verdade social, o que resultou em um conceito mais amplo de beleza. A dor existencial do Expressionismo: Nesse movimento da arte, vemos-nos diante da maior dor que o ser humano pode encarar, a dor do espelho; um espelho que nos desnuda, transforma e flerta com a nossa verdade. E é nesse espelho que os artistas expressionistas souberam retratar a sua dor. A dor desse estilo é da alma, de tudo aquilo que não vemos, mas sentimos, presenciamos. É uma dor psicológica que dilacera a carne. E a estética soube retratar essa dor. Essa representação é nítida nos rostos deformados que se apresentam nas telas expressionistas. Dão-nos a nítida impressão de que não são seres humanos em pleno gozo da vida, mas sim cadáveres. Existe uma atmosfera fúnebre que ronda esses artistas. Muitas vezes nos são apresentados quadros de pessoas doentes, em seu leito final, como se fosse necessário enaltecer a tragédia que cerca os expressionistas. Munch trata da dor do abandono e da solidão incansavelmente. Esse abandono é notório no quadro Os solitários (noite de verão), 1906-1907, onde ele apresenta um casal que contempla o horizonte frio, escuro e triste de uma praia imaginária, sem vida, em uma noite de verão. É a representação de uma noite de verão que foge de todos os arquétipos existentes e relativos a uma quente noite de verão. Para tornar a obra mais agoniante, o casal somente coexiste no mesmo espaço; eles não estão juntos, sofrem da mesma dor da solidão e do abandono. Outra tela que retrata essa solidão doentia, aterrorizadora, é Melancolia (Eduard Munch, norueguês, 1894/95). Nada mais parece parece ser belo diante do olhar expressionista. Parece, sim, que estamos deitados no divã de um consultório psiquiátrico, onde tudo deve ser exposto e encarado. Kirchner, outro expressionista brilhante, cria uma fantasia onde seus personagens estão envoltos em uma aura escura, com se nos quisesse dar a impressão do lado sombrio das pessoas. Sua pincelada é em diagonais que aumentam esse aspecto de seus personagens. Voltando à temática dos espelhos, essa foi a escola que maior quantidade de auto-retratos produziu. Isso nos leva a crer que havia uma intenção de demonstrar a dor, o horror que o espelho reflete. Os olhos desses auto-retratos estão entorpecidos por uma depressão, um descontentamento, um amargor incomum. O norueguês Eduard Munch, em seu Auto-retrato com Voltar 133 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 134 A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira Sumário cigarro aceso (1895), parece estar se consumindo na fumaça que o cigarro produz e que consome toda a tela em uma asfixia incomum. A questão dos auto-retratos não se restringe ao olhar e à atmosfera triste que paira nessas obras. A dor do espelho parece ser muito maior; basta olhar para o auto-retrato de Egon Schilie (1910), em que ele se retrata tão repugnante, tão horripilante, que somente alguém que estivesse sofrendo uma dor desesperadorapoderia fazê-lo. A dor no espelho indica um terror profundo, a ponto de muitos artistas não conseguirem controlá-Ia, dando vazão a descontroles emocionais totais. O estilo expressionista apresenta-nos uma dor vertical, seca e trágica. Um paralelo entre os dois estilos: Esses dois estilos reproduziram a dor em seu caráter mais profundo, em épocas diferentes, com temáticas que ora se encontravam, denotando a mesma intensidade, ora se tornavam uma só com intensidades peculiares. Assim o Barroco, revolucionário nas artes, deixa um enorme legado de nfluências para a arte expressionista. Por essas influências (...) serão despertadas as vocações dos mestres do séc. XVII, desde Greco ou Velazquez até Rubens ou Rembrandt. Nesta pintura nova, encontrarão o instrumento quer de um impressionismo fixando as aparências mais imperceptíveis, quer de um expressionismo do impulso vital ou das perfeições espirituais. A sensibilidade particularizada, dos sentidos e da alma, é doravante transmissível. O indivíduo deixa de estar emparedado no seu segredo (HUYGE, R. 1986, p. 127). No estilo barroco, séc XVII, existe uma preocupação com o social, com a elite dominadora que oprime a população. A arte expressionista, início do séc. XX, também toma as dores da população e questiona o social, agora em outro momento político, o do capitalismo, que dissemina as desigualdades sociais, tornando-se mais adiante opositor ao regime totalitarista de Adolf Hitler levando-nos a deduzir que nos dois estilos havia necessidade de questionar o status quo vigente e a crer em uma aproximação entre os dois estilos. Giulio Carlo Argan comenta o veio social dos artistas expressionistas: (...) A polêmica social dos expressionistas alemães não se limita à renúncia do artista à sua condição de intelectual – burguês, em favor da condição de trabalhador, de homem do povo. A burguesia é denunciada como responsável pela inautenticidade da vida social, pelo fracasso das iniciativas Voltar 134 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 135 Sumário A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira humanas, por aquilo que, para Nietzsche, constituía a total negatividade da história. Se para existir é preciso querer existir, lutar para existir é sinal que há no mundo forças negativas que se opõem à existência. A existência é autocriação, mas, se o mecanismo do trabalho industrial é anticriativo, por isso é destrutivo. Destrói a sociedade, dilacerando-a em classes exploradoras e exploradas; destrói o sentido do trabalho humano, separando concepção e execução; acabará por destruir, com a guerra, toda a humanidade (ARGAN, G. 1992, p. 240). A arte expressionista tem sua barroquice na apresentação exagerada do uso da expressão. O artista expressionista parece ter necessidade de enfatizar o trágico para realçar a sua mensagem. O Barroco fez uso desse aspecto, que foi um dos marcos da sua arte, a qual, por si só é expressionista, na ênfase da expressão e do exagero dos personagens. Mas a arte clássica do Barroco não pode ser comparada com a arte moderna do Expressionismo, quanto ao figurativismo do barroco e à nãopreocupação de retratar a realidade pura dos modernistas. Todavia, adiante, foi-nos possível traçar um paralelo na concepção dessas duas artes. Roger Cardinal comenta a desvinculação da arte expressionista na estética clássica: (...) o Expressionismo jamais se poderia mover na direção da arte pela arte. Sua reiteração de valores como vitalidade e espontaneidade, sua visão dinâmica do contato com a experiência vivida, significam que, mesmo quando abraça uma teoria de abstração, não o faz em termos de uma especulação fria, mas como um projeto carregado de emotividade (CARDINAL, R. 1984, p. 80) René Huygue comenta a despreocupação com as concepções do estilo clássico, em relação à arte moderna: “(...) Também aqui se prepara a arte moderna, menos preocupada em afirmar a regra universal do Belo do que deixar emanar o que há de único na alma do artista” (HUYGUE, R. 1986, p. 126). A atmosfera sombria do Barroco, em seu jogo com a luz e a escuridão, está presente no Expressionismo, o qual intensifica esse jogo, forçando uma forte escuridão. As cores do Barroco são fortes, para realçar o contraste claro/escuro, para expressar sua tristeza espiritual. No estilo expressionista, as cores também são fortes, mas há uma preferência por cores fúnebres como o roxo, o preto e o marrom, que dão maior ênfase à dor desses artistas. No expressionismo, a cor surge como matéria viva. É uma arte que antecede a abstração total, em que a matéria, por si, passa a expressar a arte. O estilo do barroco dá-nos a ilusão de um turbilhão, que movimenta os personagens na tela, os quais são construídos com a destreza de suas diagonais e espirais, característica dessa arte. Já no estilo expressionista, o movimento nos leva a crer que há um pulso delirante, ofegante, a impregnar as pinceladas desses artistas; é também um movimento forte, o qual, nesse instante da arte, interage com a tinta, intensificando a expressão. Basta olhar para a obra do holandês Vincent van Gogh Voltar 135 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 136 A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira Sumário Triga/com ciprestes 1889, que ressalta o movimento circular existente em suas elas. Um outro exemplo importante são as telas de Eduard Munch, nas quais o movimento é espaçado, dando-nos a impressão da tinta consumindo a tela. O movimento, no barroco, está na distribuição dos personagens na tela e, no expressionismo, na mistura da cor com as pinceladas do artista. A solidão e o abandono foram retratados nos dois estilos. Os artistas dessas duas artes expressaram essa dor, que aterrorizou a todos os homens, em todas as épocas. Esta dor é representada na obra Barroca de Caravaggio (italiano) A Madalena Arrependida ( 1516-1517) em que a personagem aparece em um momento de dor trágica. No expressionismo, a dor da solidão passa pelos caminhos do trágico. Esses artistas expressionistas procuravam o mais extremo dos sentimentos; algo de sombrio pairava na arte desses artistas. Na arte Barroca, a dor é representada pelo questionamento, pela busca da compreensão do viver e estar vivo. No expressionismo, a dor estabelece-se no limbo entre a vida e a morte. Munch, por exemplo, vivia impregnado da morte. Ele pintou, em várias de suas obras, personagens quase moribundos, faces cadavéricas. Existe, nesse paralelo, a necessidade de análise da mensagem da dor. A dor, a qual gera a discussão, é aquela que de certa maneira transforma, ora o homem, ora a sociedade. A dor como mensagem nas artes visuais está inserida na reflexão e na transformação que sua retratação nos traz. A dor do Barroco muitas vezes nos remete à dor do Expressionismo, pois a dor é universal e também um mecanismo que atua na psique humana de forma única. Esses estilos retrataram a dor em instâncias diferentes, pois é dessa maneira que cada artista, dentro do seu contexto histórico, abraça esse paradigma. A dor que procuramos identificar foi retratada em cada um desses movimentos, em sua acidez Expressionista diferente da dor espiritual Barroca; contudo esses artistas, desses dois estilos, talvez tenham vivido suas vidas “comuns”, com a mesma intensidade, a ponto de retratar na sua arte suas próprias dores. E duas obras podem ser consideradas como expressão dessa grande dor: Tomé o incrédulo, 1602-1603, de Caravaggio (italiano), barroco e outra O Grito, 1893, de Eduard Much, expressionista. Considerações finais: Com base nos autores pesquisados, tratamos da questão da mensagem da dor nas artes visuais, presente no paralelo entre os estilos do barroco e do expressionista. Tal paralelo entre os dois estilos faz-nos refletir a respeito da dor, no seu caráter particular,no que realmente leva o homem a reproduzir esse sentimento em suas obras e como os homens barrocos, do séc. XVII, e os expressionistas, do início do séc. XX, são dialéticos, sufocados, e sofrem, com isso, como o homem do início do séc. XXI. Voltar 136 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 137 A mensagem da dor nas artes visuais: um paralelo entre a dor do estilo Barroco e a dor do estilo Expressionista Cassius Breda Pereira Sumário Vimos, nesse paralelo entre os dois estilos, quanta influência a arte revolucionária do Barroco proporcionou ao Expressionismo. Influências que vão desde o trato da cor, do movimento, da expressão até o trato do caráter questionador e social. O paradigma da dor, o que a arte retratou, é de caráter social no estilo Barroco, e é de caráter existencial no estilo Expressionista. O paralelo traçado merece, assim, um aprofundamento e um tempo hábil maior de estudo, que, em outra oportunidade, poderá ser efetivado... para além dessas poucas linhas. Bibliiografia ARGAN, G. C. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BECKm, W. História da pintura. São Paulo: Ática, 1997. CAMON, V. A. A. Psicossomática e a psicologia da dor. São Paulo: Pioneira, 2001. EAGLETON, T. A Ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1993. ECO, H. A definição da arte. São Paulo: Elfos, 1995. ______. A obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1988. GOMBRICH, E. H. A História da arte. Rio de Janeiro: L TC, 1999. ________________. Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: EDUSP, 1999. HEGEL, G. W. F. Curso de estética, o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. HOVIN, T. A arte para dummies. Rio de Janeiro: Campus, 2000. HUYGUE, R. O poder da imagem. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1998. __________. Sentido e sestino da arte (11). 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Voltar 138 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 131-138 Universidade São Marcos Voltar 139 Normas editoriais Sumário Normas editoriais 1- A revista Pesquisa em Debate publica trabalhos originais de autores da Universidade São Marcos e de outras instituições nacionais ou internacionais, dando preferência aos textos dos alunos do programa, na forma de artigos, revisões, comunicações, notas prévias, resenhas e traduções, que apresentem interesse às reflexões que se desenvolvem no programa interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação (Mestrado e Doutorado). 2- Os trabalhos podem ser redigidos em português, espanhol, inglês, italiano ou francês. 3- Só serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil nos últimos três anos e, no exterior, nos cinco últimos anos. 4- Os originais submetidos à apreciação da Comissão Editorial deverão ser acompanhados de documento de transferência de direitos autorais, contendo a(s) assinatura(s) do(s) autor(es). 5- Os artigos terão a extensão máxima de 10 laudas, digitadas em fonte Times New Roman 12, espaço 1,5 e margens de 2,5 cm. 6- As notas devem ser colocadas no rodapé. 7- As imagens, quando houver, devem ser remetidas com os artigos para serem escaneadas pela produção da revista ou estarem em tif com 150 dpis. 8- Os artigos devem ser acompanhados de abstract e resumo de 10 linhas, no máximo, e de palavraschave, em português e em inglês. 9- As resenhas não devem exceder a sete páginas. 10- Abaixo do nome do autor e/ou co-autores deverá constar a instituição à qual se vincula e o endereço eletrônico para contato. 11- As traduções devem vir acompanhadas do texto original e da competente autorização do autor. 12- Caso o artigo seja resultante de uma pesquisa contemplada com auxílio financeiro, a instituição responsável pelo auxílio deve ser mencionada. 13. Os trabalhos devem ser apresentados em disquete e em duas vias impressas. O programa utilizado deve ser compatível com o Word for Windows. Voltar 139 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 139-140 Universidade São Marcos Voltar 140 Sumário Normas editoriais 14. Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas. No caso de divergência na avaliação, a Comissão Editorial enviará o trabalho a um terceiro parecerista. 15. Cabe à Comissão Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições recebidas. 16. Normatização das notas, d. NBR6023: - SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. - SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: Titulo do livro itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. x-y. - SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. x-y, ano. 17. As “Referências bibliográficas” devem ser colocadas no pé de página com a remissão em números situados na entrelinha superior e dispostas, no final do trabalho, em ordem alfabética, pelo sobrenome do primeiro autor. 18. As notas explicativas devem ser reduzidas ao mínimo e remetidas ao rodapé por números, situados na entrelinha superior. 19. “Anexos” ou “Apêndices” só serão incluídos se forem considerados absolutamente imprescindíveis à compreensão do texto. 20. As imagens e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto impresso de 10 x 17 cm. Devem-se indicar, a lápis, no verso, autor, título abreviado e sentido da figura. As legendas das ilustrações nos locais em que aparecerão as imagens devem ser numeradas consecutivamente, em algarisos arábicos, e iniciadas pelo termo “Imagem”. 21. Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos são de inteira responsabilidade dos autores. 22. Os trabalhos que não se enquadrarem nas normas da revista serão devolvidos aos autores, ou serão solicitadas adaptações, indicadas em carta pessoal. Voltar 140 Sumário PESQUISA EM DEBATE • Ano II • n. 3 • jul-dez 2005 • p. 139-140 Universidade São Marcos