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A GLOBALIZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO ESPACIAL:
O CASO DA REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE
Iana Ludermir Bernardino1
Norma Lacerda2
INTRODUÇÃO
Com o novo pacto federativo estabelecido com a Constituição de 1988 – após mais de 20
anos de regime militar – os municípios brasileiros passam a conhecer um maior grau de
autonomia e maior responsabilidade no que se refere às políticas sociais e à organização
dos seus respectivos territórios. Nesse contexto, a gestão e o planejamento das
metrópoles brasileiras – iniciados na segunda metade da década de 1970 e caracterizado
pela alta centralização em relação ao Governo Federal – arrefecem substancialmente. O
processo de globalização, aportado no Brasil na década de 1990, “chega” portanto em
um momento em que as suas cidades, inexperientes no ofício de planejar, precisam dar
conta do seu "desenvolvimento".
De modo geral, até os anos de 1990, a globalização não possuía grande aderência nas
metrópoles brasileiras e não se materializava em características espaciais definidas. É
apenas a partir do início da década de 2000 que passa a ser possível relacionar o
fenômeno da globalização às transformações nos processos de planejamento, de
regulação e de ocupação do solo das regiões metropolitanas. A partir disso, a
globalização passa a ser percebida a partir de seus reflexos espaciais nas cidades
brasileiras.
Frente a esse contexto, o presente artigo tem como objetivo evidenciar a relação entre a
globalização e os processos de reestruturação urbana das metrópoles brasileiras. Adota,
como objeto empírico de análise, a Região Metropolitana do Recife (RMR), situada na
Região Nordeste do Brasil.
Para atingir este objetivo, o texto foi estruturado em três partes. Na primeira, evidencia-se
a emergência do planejamento territorial metropolitano no Brasil, chamando a atenção
para o seu contexto político e social e para o seu caráter tecnocrático e centralizado.
Mostra que o pacto federativo brasileiro, institucionalizado por meio da Constituição de
1988, ao ampliar as responsabilidades dos municípios, foi a causa do desmonte dos
órgãos metropolitanos. Na segunda, revela os desdobramentos das mudanças ocorridas
no processo de planejamento metropolitano sobre a metrópole recifense, a qual deixou
de ser uma região no sentido original do termo, na medida em que os seus vetores
espaciais de crescimento não têm sido respaldados por um planejamento territorial
metropolitano. Na terceira, ressalta-se que esse processo vem provocando uma
fragmentação espacial metropolitana com contornos e características bem definidas.
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco,
Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco. Contato:
[email protected].
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Pernambuco. Contato: [email protected]
1. “VIDA” E “MORTE” DO PLANEJAMENTO METROPOLITANO
Na década de 1970, os países centrais vivenciavam, ou ao menos vislumbravam, uma
situação de descompasso entre a sua capacidade de produção industrial e a capacidade
de consumo da demanda local. A era, conhecida como “fordismo” – caracterizada pela
ampla industrialização e por uma política do pleno emprego para criação de um mercado
consumidor – chegava ao fim. Emergia a necessidade de ampliar as fronteiras de
relações comerciais de forma que se pudesse buscar, em outros territórios, a
possibilidade de ampliação do mercado consumidor.
Para efeitos da discussão proposta, toma-se como premissa que a globalização é um
processo decorrente de um “ajuste espacial” de reorganização geográfica, o qual visa
permitir a expansão e intensificação do modo de produção capitalista. Diante da
hipermobilidade, da facilidade das comunicações globais e da “neutralização do lugar e
da distância”, os grandes conglomerados econômicos passam a poder transpor as
fronteiras nacionais com grande facilidade, o que leva a uma divisão internacional do
trabalho, caracterizado, sobretudo, pela fragmentação do processo produtivo em distintas
localidades, e pela transferência de partes da linha de produção, especialmente as
menos rentáveis, para outras localidades. Nesse processo, o Brasil, assim como tantos
outros países periféricos, passou a competir para atrair capitais excedentes e
investimentos.
Trata-se de um momento de redefinição das fronteiras das relações comerciais. Segundo
Harvey (2004), o capitalismo não pode sobreviver sem ajustes espaciais que permitam a
expansão ou a intensificação de sua atuação, sendo necessários processos recorrentes
de reorganização geográfica como solução parcial para as suas crises e impasses. O
processo de globalização, que hoje tem significados diversos e intensamente discutidos
nos campos empírico e teórico, pode ser vulgarmente associado a um movimento
econômico que teve como objetivo o “capitalismo mundial integrado”.
Enquanto os países centrais repensavam estratégias para manutenção e fortalecimento
do modo de produção ora vigente, os países de industrialização tardia viviam um
momento econômico e político completamente diferente. O Brasil, no período em
questão, estava sob um regime militar de governo – ditadura militar – caracterizado pelo
autoritarismo e centralização das tomadas de decisão. Tal regime perdurou por quase 20
anos.
Importa registrar que, no Brasil, um processo relativamente intenso de industrialização
caracterizou a década de 1970. Todavia, o desenvolvimento econômico estava associado
à criação e à ampliação de uma classe média consumidora e, simultaneamente, ao
achatamento salarial das massas trabalhadoras, conformando um regime de acumulação
com traços do fordismo periférico.3 Nas grandes cidades brasileiras, sobretudo naquelas
onde se concentravam as “oportunidades”, ou seja, onde a industrialização já se fazia
mais presente, a migração campo-cidade e a desigualdade socioeconômica imprimiram
marcas irreversíveis no meio urbano.
Consolidaram-se as ocupações informais – as contravenções sistemáticas4
protagonizadas pelas camadas de mais baixos rendimentos que ocupavam áreas que
apresentavam as piores condições geomorfológicas e ambientais (áreas alagadas,
charcos, áreas de mangue, áreas de relevo acentuado com instabilidade de terreno).
3
Termo cunhado por Alain Lipietz (1985) para designar o regime de acumulação capitalista que, diferentemente do
fordismo, alia altas taxas de produtividade do trabalho à conta de tecnologias modernas com formas de acumulação
extensiva (baixos salários dos trabalhadores).
4 Termo utilizado por Maricato em “Metrópoles na periferia do capitalismo”
Enquanto isso as classes média e alta se mantinham nos melhores terrenos das cidades.
As políticas públicas de promoção habitacional, incapazes de suprir toda a demanda,
construíam estruturas habitacionais em periferias distantes, em áreas carentes de
infraestrutura e equipamentos complementares ao uso habitacional.
É ainda nesse período, precisamente em 1974, que foram instituídas, pelo Governo
Federal, as primeiras Regiões Metropolitanas no Brasil, quais sejam: Belém, Belo
Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São
Paulo. A partir de então, cada uma dessas Regiões contou com uma estrutura
organizacional, responsável, dentre outras atividades, pelo planejamento territorial
metropolitano. Vivenciava-se no país uma centralização do poder político (governadores
dos Estados e das suas capitais nomeados pelo Presidente da República) e uma
dependência financeira dos Estados e Municípios em relação ao Governo Central. Nesse
contexto, a maior parte dos recursos para a implantação de projetos de caráter
metropolitano dele advinha.
Porém, no início da década de 1980, a situação econômica e política tornou-se
insustentável e a ditadura militar começou a ruir. Se, durante o regime militar, o
planejamento o metropolitano era centralizado e tecnocrático, a partir da Nova
Constituinte (1988) passou a ser de responsabilidade de cada um dos municípios
metropolitanos. A década de 1990 representou, portanto, um período de municipalização
do planejamento urbano e, em extensão, de enfraquecimento dos órgãos de
planejamento metropolitano. Dito de outra, as estruturas organizacionais metropolitanas
começaram a desmoronar, cabendo aos Estados estabelecer as suas regiões
metropolitanas. Foi neste contexto de redefinição política e de redemocratização que a
globalização aportou no Brasil.
No que se refere a Região Metropolitana do Recife (RMR), vários foram os planos
elaborados pelo seu órgão metropolitano: Plano de Organização Territorial (1982), Plano
Diretor Metropolitano - Metrópole 2010 (1998) e Metrópole Estratégica (2005). É oportuno
ressaltar que essa Região ainda conta com um arcabouço institucional: o Sistema Gestor
Metropolitano, composto pelo Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana
(Conderm), com suas Câmaras Técnicas, o Fundo de Desenvolvimento Metropolitano
(Funderm) e a Agência Condepe/Fidem5. Esta última é responsável não apenas pela a
elaboração de planos metropolitanos, mas também de planos para todas as
microrregiões que conformam o Estado de Pernambuco. Acontece que arranjos
institucionais metropolitanos – em um contexto em que os Estados estabelecem as
regras do jogo – funcionam de acordo com a importância que a gestão estadual a eles
conferem. No caso da RMR, o seu sistema gestor metropolitano se encontra paralisado.
O Governo Estadual, desde 2006, não tem reunido o Conderm, nem para discutir as
intervenções relativas a ações com impactos relevantes na estrutura espacial da
metrópole recifense, como as novas infraestruturas motivadas pela Cidade da Copa
2014. Ademais, vem desconsiderando o seu último Plano Diretor – Metrópole Estratégica.
Tal situação, vem permitindo aos atores privados nacionais e internacionais atuarem de
forma atomizada no território da RMR.
5A
Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife (Fidem) foi instituída em 1975, como órgão
vinculado a Secretaria de Planejamento do Estado, com a incumbência de funcionar como órgão de apoio técnico e
administrativo aos Conselhos Deliberativo e Consultivo da RMR instalados. Nesse mesmo ano, foi instituído, o Fundo de
Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife. Em 1999, a Fidem se transforma na Fundação de Desenvolvimento
Municipal (Fidem), mediante sua fusão com a Fundação de Desenvolvimento Municipal (Fiam). Em 2003, transforma-se
em Agência de Planejamento e Pesquisa do Estado de Pernambuco – Agência Condepe/Fidem, por meio da fusão com o
Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco (Condepe).
O caso da RMR assinala que o grau de atuação de qualquer sistema gestor depende de
lideranças políticas conscientes da sua importância, capazes de reforçar um poder
metropolitano compartilhado com os municípios ou, pelo menos, com a maioria deles. Na
sua ausência, assiste-se à “morte” do planejamento metropolitano. Não sem razão, na
literatura recente, é comum as metrópoles serem apontadas como órfãs de interesse
político, mesmo diante da crescente relevância social e econômica da escala
metropolitana para a sociedade brasileira (RIBEIRO, 2004). Afinal, elas concentram
simultaneamente o comando da produção e da riqueza e as maiores desigualdades
sociais.
Na ausência de uma gestão metropolitana surge um padrão de governança corporativa,
presente por meio de formas diversas de concessões de serviços públicos, de práticas de
privatizações e de parcerias financeiras para a construção de projetos de infraestrutura e
equipamentos urbanos de grande porte. A interpenetração entre o público e o privado se
estabelece com a presença reguladora do Estado, mediante as bénéfices de isenções
fiscais, a usura do patrimônio público, o marketing e a apropriação de espaços das
cidades (LEAL, 2006).
Se, até a década de 1990, a globalização não possuía grande aderência local e não se
materializava em características espaciais definidas, a partir da década de 2000 tem sido
possível relacionar o fenômeno da globalização a transformações nos processos
governança, planejamento, regulação e ocupação do solo das metrópoles brasileiras.
Devido à inexperiência de planejamento urbano da maioria dos municípios6 e ao
enfraquecimento das estruturas de gestão e planejamento metropolitanas, os grandes
investimentos econômicos vem redirecionando os vetores de crescimento da mancha
urbana das metrópoles brasileiras. Na metrópole recifense não tem sido diferente.
2. RMR: A GRANDE CIDADE SEM REGIÃO
A RMR é, na atualidade, considerada uma das 15 metrópoles do Brasil. Conforme Ribeiro
(2011),7 ela responde aos seguintes critérios, adotados em sua análise: (i) tamanho e
concentração populacional; (ii) número de agências bancárias, volume de operações
bancárias/financeiras e massa de rendimentos, capacidade de centralidade (volume
serviços raros em nível nacional, a exemplo do movimento aeroportuário de passageiros);
(iii) grau de inserção na economia nacional (número de empregos formais em atividades
de ponta como proxy da capacidade de inovação e incorporação de tecnologia); (iv)
poder de direção (número de sedes de empresas classificadas entre as 500 maiores do
país); e (v) gestão pública (capital estadual ou federal).
Embora a RMR conforme uma metrópole, ela não conforma uma região, na original
acepção desta palavra. O termo região (derivado do latim, régio, que remete a régere –
reger, governar, dirigir, gerir, gerenciar – e, mais remotamente, a rex, régis – rei,
governante, dirigente, gestor, gerente) sugere tratar-se de uma área sob o comando de
um poder de natureza política, que a delimita, para administrar com eficiência, eficácia e
efetividade. Como visto o aparato institucional de governar, dirigir a metrópole recifense
não tem operado desde a década passada. É exatamente neste contexto – deixando de
ser uma região nos termos acima considerados – que a RMR vem redirecionando o seu
processo de configuração espacial em um ambiente de intenso dinamismo econômico.
Apenas com o Estatuto da Cidade (2001) passa a ser exigido dos municípios com mais de 20.000
habitantes ou localizados em Regiões Metropolitanas, a elaboração de um “Plano Diretor”
6
7 Estudo elaborado no âmbito do Observatório das Metrópoles (2011), coordenado por Ribeiro, evidenciou
que, no Brasil, apesar de formalmente existirem mais de 40 metrópoles, apenas 15 conformam-se como
espaços metropolitanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Curitiba,
Salvador, Recife, Fortaleza, Campinas, Manaus, Vitória, Goiana, Belém e Florianópolis.
Desde meados da década de 2000, a economia de Pernambuco vem denotando
importante crescimento, à conta de contínuo investimento em infraestrutura de grande
porte, bem como da ampliação dos setores industrial, de serviços e de logística. Esse
dinamismo, com forte repercussão na RMR, tem resultado do desenvolvimento da
economia brasileira, caracterizado pela ampliação do mercado consumidor interno, e está
estreitamente relacionado ao crescimento do setor da construção civil, impulsionado por
expressivos aportes financeiros do Governo Federal para a construção de habitações
(REYNALDO et al. 2013).
As recentes dinâmicas de investimento na RMR vêm redirecionando a configuração
espacial dessa metrópole, expandindo a ocupação segundo três vetores: o sul, o centro e
o norte. O vetor sul vem sendo impulsionado pelo Complexo Industrial Portuário de
Suape (CIPS). Este atravessa uma etapa de desenvolvimento sem precedente com a
instalação da Refinaria Abreu e Lima, acarretando uma forte expansão de investimentos
produtivos, dentre os quais a implantação de um polo de construção naval. E a
expectativa é de atração de muitos outros. A grande mobilização de trabalhadores no
Complexo, para a implantação desses empreendimentos produtivos, tem-se traduzido em
intenso fluxo migratório e, por extensão, em aumento da demanda por moradias, nos
arredores desse Complexo. No momento de pico da construção da Refinaria, eram
70.000 trabalhadores, no Complexo, entre empregos diretos e indiretos8. Tal situação
vem contribuindo para a expansão e o adensamento dos assentamentos habitacionais
informais existentes – onde residem as famílias de menor renda –, e para a elevação do
interesse do mercado imobiliário formal por esses arredores.
O vetor centro vem sendo estimulado pelos investimentos para a ampliação dos meios de
transporte público (ferroviário e rodoviário), que facilitarão o acesso à arena esportiva
onde se realizarão os jogos da Copa de 2014. A perspectiva de viabilização da “Cidade
da Copa” e o incremento na acessibilidade têm resultado em expressivo aumento da
atratividade imobiliária, nessa porção territorial metropolitana.
O vetor norte é tributário dos recentes Polos Farmacoquímico e Automobilístico –
situados no Município de Goiana, fronteiriço à RMR. À conta desses Polos, tem emergido
uma perspectiva de dinamização dessa parte do território metropolitano, gerando,
inclusive, uma expectativa de ampliação dos limites dessa Região. Além disso, a possível
viabilização do Arco Metropolitano – estrutura rodoviária alternativa à saturada BR-101 –
ampliará a conectividade entre o Porto de Suape e o oeste e norte metropolitano. Em
decorrência dos eventos econômicos em Goiânia e da sua forte relação com a RMR,
optou-se, para fins do presente texto, por denominar esse amplo território Região
Metropolitana Expandida do Recife (RMER).
O três principais polos de investimentos econômicos – o Polo Automobilístico e o Polo
Farmacoquímico (norte), a Cidade da Copa (oeste) e o Complexo Industrial e Portuário
(sul) – tem redefinido os vetores de crescimento urbano da RMER e tem contribuído para
um processo de reconfiguração espacial da metrópole recifense.
A Petrobrás, empresa responsável pela Refinaria Abreu e Lima, iniciou, em 2013, o processo de
desmobilização de trabalhadores. Quando a refinaria estiver em operação, serão aproximadamente 4.000
trabalhadores. Emergem preocupações sobre o futuro das cidades mais “transformadas”.
8
3. FRAGMENTANDO E EXPANDINDO A RMR
Diante do panorama de investimentos econômicos apresentado, é crescente a
atratividade dos municípios da periferia metropolitana no que concerne a
empreendimentos imobiliários habitacionais. As novas localizações, até então pouco
exploradas pelo mercado, são favorecidas pela presença de terrenos de grandes
dimensões (facultando a produção habitacional em larga escala) e pela possibilidade de
construir para um público amplo, incluindo as classes baixa e média (à conta da
ampliação dos mecanismos de financiamento habitacional e da minimização do custo
unitário da moradia, dada a produção em massa). Os preços dos terrenos, na periferia
metropolitana – mais reduzidos em relação aos terrenos do Recife – e as estratégias de
marketing, associadas às novas centralidades econômicas são elementos importantes
para que se possa antever uma nova configuração da mancha urbana da metrópole
recifense.
A Figura 1, que ilustra a mancha urbana da RMER e a configuração atual da sua malha
rodoviária, visa demonstrar o alto grau de conectividade do município polo – Recife – aos
municípios de Olinda, Paulista, Abreu e Lima e Igarassu (ao norte), e ao município de
Jaboatão dos Guararapes (ao sul), assim como a conectividade moderada aos
municípios de Camaragibe e São Lourenço da Mata (a oeste). Também ilustra os três
focos de dinamismo econômico da região: os Polos Farmacoquímico e Automobilístico,
em Goiana (norte), a Cidade da Copa (oeste) e o Complexo Industrial e Portuário de
Suape (ao sul).
A Figura 2 espacializa dados referentes ao parcelamento do solo entre 1990 e 2013,
indicando a extensão dos novos loteamentos em relação à área do território municipal9. É
possível identificar que os municípios de Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, assim como
os municípios de São Lourenço da Mata e Camaragibe, tiveram porções territoriais
consideráveis loteadas nas últimas duas décadas.
9 Não existem dados disponíveis sobre o município de Goiana por este não estar inserido na Região
Metropolitana do Recife.
Figura 1 - Região Metropolitana Expandida do Recife | Figura 2 – Municípios da RMER segundo
intensidade dos loteamentos entre 1990 e 2013. Elaboração própria.
Na atualidade, os veículos de informação anunciam mais de 100 mil unidades
habitacionais nos municípios periféricos da RMER com concentração de investimentos.
Muitas das novas unidades estão inseridas em megaempreendimentos imobiliários,
concebidos a partir de uma tipologia peculiar: “cidade” planejada ou bairros planejados.10
Além do grande volume de unidades ofertadas11, os novos empreendimentos propõem-se
a oferecer uma “nova forma de morar”. De grandes dimensões, esses empreendimentos
oferecem, além de milhares de residências, diversas edificações para a instalação de
comércio e serviços de vizinhança, complementares ao uso habitacional. Alguns deles
conformam unidades espaciais que apresentam uma tendência à (ou o desejo de)
autossuficiência intramuros e tentem à reprodução de todos os usos e dinâmicas de um
bairro ou cidade.
A produção imobiliária recente tem revelado ainda outros fatores determinantes do
“formato” locacional e que podem contribuir para a reconfiguração espacial da metrópole.
A partir dos dados relativos às unidades habitacionais ofertadas, no período de 2006 a
2012, identifica-se, por meio de uma série histórica de gráficos (Figura 3), um
redirecionamento da atuação do mercado imobiliário. Se, até o ano de 2008, a produção
10
As chamadas “cidades” planejadas não constituem cidades, no sentido sociológico, na medida em que não
habitam nelas diferentes segmentos sociais. É o caso do Plano Piloto de Brasília que, embora concebido
como cidade, foi-se transformando em um bairro ocupado por uma classe média e baixa, formada
preponderantemente por funcionários públicos.
11
De janeiro de 2008 a dezembro de 2012, foram ofertadas 29.332 unidades habitacionais em lançamentos
imobiliários, segundo dados da FIEPE (2008, 2009, 2010, 2011 e 2012).
imobiliária esteve voltada, predominantemente, para oferecer moradias, nos municípios
do Recife e de Jaboatão dos Guararapes, a partir de 2009, constata-se uma participação
crescente dos demais municípios da RMR, no total das unidades habitacionais
produzidas pelas maiores construtoras e incorporadoras atuantes na região. A
participação do município do Recife, no total de unidades habitacionais em lançamentos
imobiliários, cai de 79,48%, em 2008, para 54,26%, em 2009, e para 42,94%, em 2012.
Paralelamente, municípios como Paulista, Olinda, Ipojuca, Cabo de Santo Agostinho, São
Lourenço da Mata e Camaragibe passam a figurar nas carteiras de projetos das grandes
construtoras.
Figura 3 - Evolução da participação de municípios da RMR sobre o total de lançamentos
imobiliários. Fonte: Pesquisa de Índice de Velocidade de Vendas. Unidade de pesquisas técnicas
UPTEC, FIEPE (2006-2012).
Elaboração própria, 2013.
Embora, por princípio, exista a relação entre a localização de grandes polos de
investimentos econômicos e os novos lançamentos habitacionais, no caso da RMER, as
polaridades econômicas, isoladamente, não são suficientes para interpretar a distribuição
espacial de investimentos imobiliários. A partir de 2009 – ano do lançamento do
Programa Habitacional Federal Minha Casa Minha Vida –, a mudança na dinâmica
espacial de oferta habitacional na RMR veio a indicar que as “polaridades econômicas”
nem sempre têm um papel preponderante quando da escolha da localização de novos
investimentos habitacionais por parte de investidores imobiliários privados. No caso da
Região, diante da escassez de linhas de financiamento habitacional para uma população
de classe média e baixa,12 existia uma “demanda reprimida” por unidades habitacionais.
Diante dos elevados preços de terrenos no Recife, os municípios de Paulista e Olinda,
localizados ao norte e com alto nível de integração ao Recife, apresentaram-se como
uma importante opção à produção imobiliária. Em 2009, os municípios representam
40,45% do total de unidades ofertadas, embora a porção mais densa dos investimentos
produtivos, nesse período, se concentrasse no sul metropolitano.
Ao sul da RMER, motivados pelos investimentos no Complexo Industrial e Portuário de
Suape, são anunciados para os municípios de Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca
grandes investimentos por parte do capital imobiliário. Segundo Leal (2006), as novas
estratégias de captação de recursos, particularmente de recursos estrangeiros, que
12 Desde a extinção do BNH – Banco Nacional da Habitação – em 1984, não houve um programa amplo e
consistente de financiamento habitacional no Brasil.
resultam na capitalização das grandes incorporadoras e construtoras locais, imprimem
novas dinâmicas espaciais na metrópole recifense. Segundo a autora, antigos grupos,
que se travestem de novos, “organizados através de fusões de setores do capital
industrial ao imobiliário, ou de novos grupos originados da articulação com o capital
financeiro nacional e internacional” determinam a valorização, a reconfiguração e o
surgimento de novas áreas de interesse do mercado de construção civil.
Na Região, além da financeirização das empresas locais e da associação do capital
imobiliário ao capital industrial, tem-se a associação do capital imobiliário aos tradicionais
proprietários de terras, no caso, os latifundiários da cana-de-açúcar, para a construção
dos land Banks. No caso de Ipojuca, em partes das terras do antigo engenho de cana-deaçúcar, pretende-se implementar um fragmento: uma cidade planejada de 200 hectares,
maior do que a área urbanizada de sede municipal (ver Figura 4).
Figura 4 – Empreendimento habitacional no município de Ipojuca. Fonte: Encarte Publicitário
Já no Cabo de Santo Agostinho, uma empresa que recentemente abriu o seu capital na
bolsa de valores, e que detém porção considerável dos terrenos livres do município,
promove uma complexa estrutura, de 1.800 há, para a implantação de plantas industriais
e de logística, além de uma “cidade planejada” de 470 hectares.
No caso do Município de Goiana, que todavia não faz parte da Região Metropolitana do
Recife, identifica-se o protagonismo do Governo do Estado na infraestruturação do
território para viabilizar a atração de investimentos privados. O terreno, de 160 hectares,
foi terraplenado, infraestruturado e disponibilizado como contrapartida para a atração da
montadora de veículos (ver Figura 5). O Governo do Estado se comprometeu ainda a
viabilizar uma nova estrutura viária de conexão rápida entre o município e o Porto de
Suape – o Arco Metropolitano – e a doar um terreno para a instalação de um Centro de
Pesquisa, Desenvolvimento, Inovação e Engenharia Automotiva. Recentemente, o então
governador assinou o termo de doação da Fábrica da Tacaruna (Figura 6) – edifício fabril
de 1825 tombado pela Fundação do Patrimônio histórico e Artístico Estadual. Sem
nenhum tipo de consulta pública, o edifício – localizado na fronteira entre Olinda e Recife,
importante marco histórico e inquestionável referência na paisagem – passou às mãos da
iniciativa privada, ignorando o fato de já existirem projetos para a sua reabilitação
definidos por Concurso de Projeto Arquitetônico, realizado em 2001.
Figura 5 – Capa do Jornal do Commercio em 28-12-2012. Figura 6 – Foto Fábrica Taracura do
Acervo do Governo do Estado
Em decorrência da implantação da montadora, o município de Goiana, com 75.664
habitantes (IBGE, 2010) vislumbra um acréscimo de 20.200 unidades habitacionais a
partir da construção de dois empreendimentos propostos (Cidade Atlântica e Northville), o
que acarretará, aproximadamente, 70.70013 novos moradores, ou seja, um incremento
populacional de 93,46%. Ambos os empreendimentos estão fora dos limites da área
urbana, segundo o zoneamento municipal. A urbanização dos 650 hectares previstos
para implantá-los resultará no acréscimo de 55,19% da área urbanizada do Município.
Assim como no exemplo citado do sul metropolitano, os novos empreendimentos em
Goiana também conformam fragmentos de cidade planejada desconectados do tecido
urbano preexistente, como ilustra a Figura 7 a seguir.
Figura 7 – Empreendimento Cidade Atlântica. Elaboração própria. Fonte:
http://defournier.wordpress.com/2012/05/23/cidade-atlantida/
No Município de São Lourenço da Mata, com a plena viabilização da Cidade da Copa 14 e
dos novos empreendimentos em fase de construção ou aprovação, prevê-se um
contingente de 66.668 novos residentes, acréscimo de 64,79% sobre a população do
Município, em 2010. O evento esportivo contribuiu para fossem viabilizadas obras de
infraestruturação do território que pudessem permitir a expansão da mancha urbana para
o oeste metropolitano, respondendo, com quatro décadas de atraso, a uma intenção do
planejamento metropolitano que remonta às décadas de 1970 e 80, qual seja: o estímulo
à interiorização da dinâmica econômica da RMR.
Os empreendimentos em questão configuram um ambicioso cenário de crescimento para
a Região Metropolitana Expandida do Recife. Em alguns municípios, a população
residente, estimada em decorrência da viabilização de dois ou três empreendimentos,
supera, em muito, as respectivas projeções de crescimento demográfico. A confirmação
ou não deste cenário pelos investidores imobiliários nessa Região, ou seja, a viabilização
de todas as unidades anunciadas e a utilização dessas para fins, de fato, residenciais (e
não sazonais, por exemplo), dependerá de inúmeros fatores sobre os quais não cabe
aqui discutir.
13
Para o cálculo, considerou-se a média de 3,5 habitantes por domicílio (IBGE, 2010).
14 A “Cidade da Copa”, grande complexo multiuso, que deverá se instalar em área de 240 hectares,
contando com estrutura habitacional e de serviços, incluindo grandes equipamentos institucionais,
equipamentos públicos e privados, além de um parque habitacional de mais de 7.000 residências.
FINALIZANDO
A análise acima desenvolvida sobre o processo de reconfiguração espacial da RMR.
impulsiona a chamar a atenção para três movimentos. Primeiro, os investimentos não
são orquestrados segundo um Plano de Ordenamento Territorial Metropolitano. São os
detentores dos capitais industrial e imobiliário que, em comum acordo com o Estado,
definem as localizações de seus empreendimentos. São situações em que os agentes
econômicos têm um papel preponderante na reconfiguração espacial da metrópole.
Segundo, o aporte de grandes volumes de capitais industriais vem se dando, na maioria
da vezes, em cidades frágeis, sendo capitaneado pelo Governo do Estado – foi o caso do
Complexo Industrial e Portuário de Suape, nos municípios de Ipojuca e Cabo de Santo
Agostinho, e o da Montadora de automóveis da Fiat, em Goiana. Os municípios da
Região Metropolitana Recifense, com estruturas urbanas que já apresentam
consideráveis problemas, passam a ter o seu processo de planejamento influenciado
muitas vezes por “fatores globais” descontextualizados da realidade local. Na Região
Metropolitana do Recife os processos de hierarquização e subordinação entre cidades
são subvertidos na medida em que os maiores investimentos da RMR, em volume de
recursos, localizam-se fora da cidade sede Recife. Alguns destes, como é o caso da
Montadora da Fiat, tem sido responsável pelo alargamento espacial da RMR, além das
suas fronteiras institucionalizadas.
Terceiro, a maioria dos municípios, objeto de vultosos empreendimentos, não possuíam e
continuam a não possuir um aparato burocrático e corpo técnico capaz de propor e
viabilizar o planejamento urbano. Ainda hoje podem ser considerados inexperientes no
ofício de planejar seu território. Os novos investimentos são aprovados a toque de caixa,
prejudicando a urbanidade das cidades (tudo é condomínio fechado, seja industrial, seja
habitacional)
Ressalte-se, por oportuno, que cada empreendimento guarda as suas peculiaridades. No
entanto, são as características comuns a todos eles que os tornam objeto de interesse.
Cada um dos empreendimentos ora mencionados conforma uma porção territorial
diferenciada do seu entorno imediato e apresenta uma demarcação precisa dos seus
limites espaciais. As unidades residenciais aglutinam-se dentro desses limites, marcados
por muros.
Embora com baixo nível de conectividade espacial – e, portanto, de integração –, os
empreendimentos comentados acima não autorizam pensar-se que esses fragmentos
deixaram de fazer parte de um todo (no caso, de compor a RMRE), uma vez que as
pessoas e as atividades neles presentes dependem da estrutura do conjunto – do
conjunto metropolitano recifense expandido – e, evidentemente, das leis que o regem. A
nova população desses empreendimentos tenderá a manter fortes movimentos
pendulares, em relação ao núcleo metropolitano, impactando o seu cotidiano: a curto e
médio prazos, o Recife continuará a ser o local privilegiado de moradia da mão de obra
mais qualificada e de concentração dos bens e serviços de melhor qualidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a
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