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Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011
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A CRIMINALIZAÇÃO DA MORALIDADE:
A LEITURA MORAL DO DIREITO POR HART
The Criminalization of Morality:
a Moral Interpretation of Law by H. L. A. Hart
Roberto Bueno121
RESUMO: O artigo investiga a relação entre direito e moral a partir
das teorizações de H. L. A. Hart, situado no contexto da discussão
existente na Inglaterra de sua época e passando pelo debate entre
Hart e Devlin. O texto evidencia a tensão entre as perspectivas comunitarista e liberal, partindo da criminalização de condutas tipicamente privadas, notadamente envolvendo a conduta sexual. O texto
evidencia a inconciliabilidade entre legislação perfeccionista e um
Estado comprometido para com a tutela das liberdades individuais,
problematizando a possibilidade de imposição de uma moral por
121
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail:
[email protected]
rbue-
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uma sociedade através do direito. A partir de problemas como a
prostituição e o uso de drogas, o texto evidencia as diferenças entre
políticas paternalistas que visam proteger o indivíduo de suas próprias opções de políticas anti-paternalistas, confrontando o Estado
brasileiro e o Estado holandês.
ABSTRACT: This paper investigates the relationship between law
and moral theories from H. L. A. Hart, situated in the context of the
existing discussion in England of his day and through the debate between Hart and Devlin. The text highlights the tension between
communitarian and liberal perspectives, from the criminalization of
behaviors typically private, especially involving sexual conduct. The
text highlights the inconsistency between legislation perfectionist
and a state committed to the protection of individual freedoms,
questioning the possibility of imposing a moral for a society through
law. From issues such as prostitution and drug use, the text highlights the differences between paternalistic policies aimed at protecting the individual from their own choices of anti-paternalistic, comparing the Brazilian and Dutch States.
PALAVRAS-CHAVE: Direito e Moral. Hart. Devlin. Comunitarismo.
Liberalismo. Estado democrático. Legislação perfeccionista. Partenalismo. Anti-paternalismo.
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KEYWORDS: Law and Morality. Hart. Devlin. Communitarianism.
Liberalism. Democratic state. Perfectionist legislation. Paternalism.
Anti-paternalism.
INTRODUÇÃO
Os debates em torno à moral e ao direito não raro encontram-se
marcados por fundamentações religiosas e em crenças pessoais arraigadas em cada um dos partícipes de um diálogo público ou privado do qual
resta tão difícil separar-nos quanto o seria abandonar-nos à aventura de
desconstituir-nos como pessoas e encantar-nos com o mundo de personas
desconhecidas e passar a interpretar-lhes ou aderir-lhes de sorte a desconstituir-nos como nós mesmos.
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Supondo a não adesão a estes processos de suplantação do eu pela alteridade através de complexos processos dialógicos podemos dizer
que vivemos insertos imersos preocupados em harmonizar pelo resto de
nossas vidas princípios e categorias morais presas aos poços mais profundos de nosso mais recôndito passado.
Neste artigo visamos trazer parte do debate proporcionado por Hart
entre moral e direito, o qual se dá desde uma abordagem liberal cujas conseqüências se farão sentir abertamente tanto no decorrer da argumentação como, congruentemente, em suas conclusões.
1. DIREITO E MORAL: UMA PERSPECTIVA HARTIANA
Os debates em torno ao direito e a moral nos remetem ao debate
sobre a liberdade de determinação de nossas personalíssimas crenças e
valores bem como os limites do exercício destes elementos. Desde logo,
enfrentam-se duas posturas nesta matéria, uma amplamente ligada aos
valores e liberdades individuais e, por outro lado, uma perspectiva que denominaríamos de conservadora-coletivista em que predominam os valores
tradicional-comunitários.
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Como bom liberal, Hart não poderia deixar de inclinar-se e proceder
à pública defesa da descriminalização dos então positivados crimes sexuais na legislação inglesa. Desde logo, os argumentos divergiam energicamente em uma sociedade todavia marcada pelo debate moral conservador. Em seu momento talvez Hart houvesse podido fazer suas as palavras
proferidas pelo Juiz Harry Blackmun no ano de 1982, quando dos debates
sobre o caso Hardwich, em que um homem foi preso por praticar sexo oral
com outro homem dentro de sua casa. Na oportunidade o juiz manifestouse da seguinte forma:
[...] Privar os indivíduos do direito de escolherem,
por si mesmos, como se haver em suas relações íntimas apresenta uma ameaça muito mais grave aos
valores mais enraizados da história da nossa nação, do que jamais o faria a tolerância com a inconformidade [...]. (apud SANTOS, 1987, p. 25).
A posição do Juiz Blackmun converge com outra anterior era indicada por Hart em sua posição liberal. Na argumentação de Blackmun é
perceptível toda uma leitura moral que remete ao indivíduo o privilégio da
determinação dos rumos morais de suas vidas. Em suma, o juiz procura
traçar uma linha divisória bastante clara entre o que são valores individuais
e sua estrutura moral e, por outro lado, aqueles outros que seriam valores
morais que não poderiam ser impostos pela coletividade à dimensão da
realização individual e moral de cada um dos membros de uma determinada sociedade. Não muito distante desta leitura moral que se aproxima de
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nossos dias era aquela levada a termo no final dos anos cinqüenta quando
a realidade britânica ainda permanecia próxima aos valores tradicionais de
uma sociedade vitoriana.
Hart entende que o desenvolvimento do Direito encontra-se permeado por influência da moral (cf. HART, 1987, p. 31) e este será um dos aspectos mais importantes para a abordagem do tema que ora temos pela
frente neste artigo. Neste contexto, uma série de questões são levantadas
por Hart diz respeito às relações entre Direito e moral. Na sequência procuraremos realizar uma síntese delas de sorte a que toda a argumentação
hartiana sobre o tema ganhe mais sentido.
A primeira questão que apresenta diz respeito à possibilidade de
que sejam tecidas críticas ao Direito desde a ótica da moral. A crítica de
Hart é sobre a admissibilidade de que tomemos por regra que a mera positividade do Direito seja entendida como suficiente para impedir que a norma jurídica seja condenada segundo os princípios morais (cf. HART, 1987,
p. 32). Outra questão conexa a esta da qual Hart irá ocupar-se e dará lugar
ao desenvolvimento da argumentação desta sua obra é seu questionamento da coerção legal da moralidade, em suma, se “o fato de que determinada conduta seja considerada imoral, de acordo com os padrões comuns, é
suficiente para justificar sua punição pela lei [...]”. (HART, 1987, p. 33).
Contudo, entendemos que uma questão central em Hart diz respeito a consideração de condutas como imorais abriria as portas par justificar
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sua punição através de normas jurídicas (cf. HART, 1987, p. 33). Poderíamos, por tomar o exemplo de sociedades que radicalizaram no aprofundamento desta questão,122 legislar de forma restritiva à união entre brancos
e negros?
Desde logo, esta é uma pergunta-chave, uma vez que será a partir
desta linha de questionamentos que, posteriormente, terá desdobramento
o tema relacionado à possibilidade de punir ou não condutas havidas como
imorais, tais como o homossexualismo.
A abordagem deste tema por parte do pensamento liberal remete à
uma leitura do tema da moralidade realizada por John Stuart Mill em que
posicionava-se francamente contrário a que as intervenções em temas morais pudessem ter lugar. Sinteticamente, dizia ele que o único motivo pelo
qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de
uma comunidade civilizada contra a sua vontade é para impedir que ele
cause mal aos outros.
Mas esta argumentação milliana, contudo, não seria suficiente para
desarmar a argumentação conservadora ou tradicionalista. Esta tradição
poderia reivindicar a utilização do argumento de que a comunidade civilizada poderia valer-se da prerrogativa que lhe concede Mill para impedir,
122
Como exemplos históricos deste tipo de sociedades podemos citar tanto a Alemanha nacionalsocialista como também, já mais próximos de nossos dias, a legislação Sul-Africana durante o nefasto
período do Apartheid.
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em seu entendimento social, de sofrer o mal que alguns lhe pretendem
causar do ponto de vista moral.
2. A MORAL E O CONTEXTO DO DEBATE NA INGLATERRA NA OBRA
DE HART
Um dos sérios debates travados na Inglaterra dos anos cinqüenta
envolveu positivamente os interesses de Hart. Naquela quadra histórica
punha-se ao dia o debate sobre a possibilidade de punição no âmbito penal de condutas reputadas publicamente como imorais e que na legislação
constassem como criminosas. Uma das dimensões deste debate foi a criminalização da moralidade sexual, e sobre este tema nos ocuparemos nas
linhas que seguem abaixo. Acerca da cultura jurídica inglesa do período e
da posição da jurisprudência encontra-se ilustrativa posição no caso Jones
v. Randal (1774) quando a Corte sustenta que
[...] Tudo quanto seja contra bonos mores et decorum está proibido pelos princípios de nosso direito,
e a Corte Real, como censora e guardiã geral da
moralidade pública, está autorizada a conhecer e
punir.
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O que significa precisamente o poder de criminalizar a moralidade
sexual é ter o poder de atribuir à moral alheia uma intrínseca aversão ou
um desvalor publicamente compartilhado. Contudo, mais do que isto, subjaz a esta concepção uma vertente filosófica que denominaríamos de essencialista ou metafísica, capaz de identificar o bem e o mal. Ao fazê-lo,
tais correntes de pensamento sentem-se habilitadas e capacitadas para
impor o bem em detrimento do mal, de impor condutas que evitem aquele
mal identificado. Desde logo, nada mais essencialista ou metafísico, do
que a suposição da existência de uma capacidade tão ampla e que, por
definição, desconstitui o espaço privado de definição de seus próprios interesses e preferências.
Segundo esta proposta da visão essencialista, as preferências morais ganham, desta forma, a possibilidade de habitar a dimensão da ilicitude. Esta perspectiva não pode coexistir com uma perspectiva filosófica rival que contemple um ponto de partida analítico relativista. A legislação
norte-americana aderiu à primeira leitura filosófica quando, por exemplo,
em alguns estados norte-americanos a homossexualidade era criminalizada bem como a prostituição.
Os argumentos que miravam a condenação penal de condutas baseadas em argumentos morais transitavam entre o punitivo de uma moralidade socialmente nociva – e como exemplo disto poderia ser tomada a
prática da prostituição – à compreensão de condutas sexuais avessas à
compreensão majoritária como aceitável e/ou saudável. Como exemplo
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tomar-se-ia a homossexualidade, entendida durante muito tempo como
desvio de conduta ou doença psíquica, até que, já muito proximamente
aos nossos dias é que em vários países, dentre os quais o Brasil, terminou
por prevalecer o entendimento de que a sexualidade não implica abordagem patológica mas unicamente preferências de ordem sexual e, sendo o
caso, tema de ordem moral estritamente privada.
Conexo com ambos temas tornou-se desde já clássico o trabalho
de Comissão Wolfenden (Wolfenden Committee) que, em 1954, foi designado para apresentar estudo sobre a situação legal destas questões. Em
1957 a Comissão alcançou algumas conclusões e recomendou que
[...] as práticas homossexuais entre adultos consencientes, observada a privacidade, não permanecessem como crimes; por outro lado, decidiu-se,
unanimamente, recomendar que, não constituindo,
em si, a prostituição, uma ilicitude, deveria a legislação incriminá-la, se praticada nas ruas, porquanto
o assédio a cidadãos comuns era um incômodo
ofensivo. (HART, 1987, p. 41).
O trecho é bastante ilustrativo e a indicação de reformas sobre o
conteúdo das leis penais então vigentes, incriminatórias tanto da homossexualidade quanto da prostituição recebiam especial atenção da Comissão. No entanto, a Comissão pouco ou nada esclarece sobre a fundamentação teórica de sua recomendação, isto sim, permanecendo implícita a
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inspiração filosófica liberal-milliana presente em On Liberty. Fundamentalmente do que se trata é de que devemos preservar uma esfera de moralidade ligada unicamente às deliberações do indivíduo na qual contra a qual
nada possa o Estado.
Esta esfera de moralidade privada a qual haveria de ser dedicada
especial atenção no sentido de preservá-la deve conter, inclusive, uma dimensão de imoralidade ou amoralidade – segundo assim seja reputada pelo entendimento médio socialmente compartilhado – cuja prática reste protegida desta concepção predominantemente compartilhada e distanciada,
portanto, da intervenção legal por parte do Estado. A recomendação da
Comissão Wolfenden argumenta que “deve-se preservar uma esfera de
moralidade privada e imoralidade que é, em termos breves e rudes, irrelevante para a lei”. (apud HART, 1987, p. 42).
3. EM TORNO AO DEBATE HART-DEVLIN
É possível dizer que a argumentação teórica central ínsita na legislação penal inglesa daquele período estava conectada com as pretensões
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teóricas de Lorde Devlin. Nestes termos apresenta-se o debate entre Hart
e Lorde Devlin.
Os termos em que este debate entre Hart e Lorde Devlin foi posto
pode ser qualificado como aquilo que, a seu momento, Isaiah Berlin denominaria como irreconciliáveis. Inversamente a Hart, Lorde Devlin retoma
parte do conteúdo da Comissão Wolfenden para sustentar que “a supressão da imoralidade é uma tarefa legalmente tão importante quanto a supressão das atividades subversivas” (apud HART, 1987, p. 43). Estava
posto o argumento inicial em prol da intervenção do Estado em condutas
que já em filósofos anteriores ao período, tal como John Stuart Mill, 123 era
considerado como esfera privada do indivíduo.
O argumento nuclear para que tenhamos uma defesa articulada em
prol dos direitos de autodeterminação moral por parte de cada um dos indivíduos em uma determinada sociedade implica considerar que no marco
de uma sociedade secular não poderíamos entender alguma prática sexual
como ofensiva. A ideia central é de que “há certos padrões de comportamento, ou princípios morais, que a sociedade requer sejam observados”
(HART, 1987, p. 56) e, neste sentido, caberia na visão de Lorde Devlin ao
123
Temos uma boa noção do estágio do argumento liberal em torno a proteção da esfera privada dos
indivíduos tomando por base o período de nascimento de J. S. Mill, em 1806 (Londres, 20 de maio)
com falecimento em 1873 (Avignon, 8 de maio). Ademais deste período produtivo de praticamente cem
anos antes, consideremos que sua produção teve lugar em língua inglesa, devemos considerar sua
amplíssima influência tanto no período como posteriormente, elementos que o tornaram ainda mais
próximo da argumentação formulada por Hart (Harrowgate, 18 de julho de 1907 – Oxford, 19 de dezembro de 1994), Devlin e todo o seu contexto.
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Direito Criminal a imposição de um “[...] princípio moral, e nada mais”.
(apud HART, 1987, p. 56).
A articulação sociopolítica secular busca a preservação da privacidade das práticas a que se dediquem privadamente os indivíduos. Em suma poderíamos argumentar que no marco de um Estado que preserva as
liberdades haveremos de recorrer à desarticulação do poder do Estado em
intervir na esfera privada de cada indivíduo no que concerne ao exercício
de seus assuntos pessoais, desde logo, e recorrendo a Mill, quando terceiros não resultem prejudicados.
No que concerne a esta última argumentação deveremos nos preocupar com o entendimento sobre o que pode ser caracterizado como um
“prejuízo” a terceiros. Ao fim e ao cabo, desde qual critério poderíamos entender pertinente a reclamação de um indivíduo, ou grupo, sobre o caráter
prejudicial da conduta de outros? Haveria um critério objetivo para tanto?
Acaso poderíamos considerar prejudicial a queixa de alguém que se ofenda com a freqüência de pessoas com características e opções religiosas
e/ou sexuais quando deva eventualmente compartilhar espaço físico no
hall e nos elevadores do prédio em que reside? Haveria como considerar
realmente prejudicial e, portanto, motivada a queixa de que, por exemplo,
prostitutas freqüentam determinada área, ainda quando suas ações não se
caracterizem por distúrbios públicos? Como poderíamos responder positi-
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vamente a estas perguntas quando não temos um critério determinado? 124
Acaso respondêssemos positivamente à demanda em reconhecer o caráter prejudicial das condutas citadas nos exemplos não incorreríamos em
decisões marcadas por um manifesto e profundo subjetivismo judicial que
abriria brechas para que ampliássemos a tão indesejada intervenção pública nos assuntos atinentes à vida privada?
Desde logo, nos exemplos citados temos uma dimensão mais problemática do que aquelas citadas no texto hartiano, qual seja, a prática de
condutas em privado ou, se preferirmos, entre quatro paredes. Sobre estas, contudo, em nosso tempo histórico, nos parece amplamente compartilhada a visão de que sua tutela é um dos deveres aos quais uma sociedade democrática deve ocupar-se em manter protegidos. Nos exemplos logo
acima citados percebemos uma zona cinzenta, menos clara e evidente,
bastante tênue entre a proteção da esfera privada e a necessária intervenção pública.
124
Evitamos citar aqui outros casos corriqueiramente citados como exemplos concretos de maior incidência de disputas em torno à moralidade, tais como a questão que envolve o aborto, o adultério, a eutanásia, certas formas de bigamia e poligamia bem como a legislação sobre o suicídio. Desde logo, temos ainda casos de certa atualidade, e não pouca exoticidade, como a de dois alemães que encontraram-se através da internet sendo que um deles tinha a intenção de oferecer-se à prática canibal do outro, o que terminou por ocorrer. O desfecho do evento foi a condenação do autor da prática canibal, em
que pese ela contasse sabidamente com a anuência do indivíduo morto. Neste aspecto haveria de ser
levantada a questão sobre se a anuência de vítimas elidiriam a responsabilidade do sujeito ativo da
prática de crimes. Quanto ao aspecto exótico de certas legislações, Hart é bastante sugestivo ao referir-se à questão do tratamento então dispensado à bigamia na Inglaterra. Na oportunidade a bigamia
poderia existir de fato, sendo, juridicamente, irrelevante. Isto sim, tornava-se objeto de atenção jurídica,
e recriminação, quando o homem, por exemplo, desejasse oficializar as diversas relações celebrando
matrimônios com todas as mulheres com as quais mantivesse relações (cf. HART, 1987, p. 63). Em
uma situação como esta, por exemplo, qual seria a justificativa para perseguir judicialmente o indivíduo? Acaso fosse o caráter “imoral” da manutenção de relações com diversas mulheres acaso seria o
mero fato de oficializar o que tornaria realmente o fato mais odioso do que manter as mesmas relações
de forma não-oficial? Consistiria o caráter reprovável da bigamia o mero registro público?
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4. O DEBATE MORAL: A ARGUMENTAÇÃO LIBERAL PERANTE O
CONSERVADORISMO FILOSÓFICO
O debate entre Hart e Lord Devlin configura um Hart defensor da
ausência legislativa ou da interpretação moral, strictu sensu, por parte do
Judiciário de questões morais privadas. Aqui se contrapõe a visão prática
positivista, hartiana, a uma outra visão que poderíamos denominar de perfeccionismo moral, claramente presente em Fuller quando defende que a
lei ou sua interpretação podem e devem buscar a realização de valores
morais.
Desde logo, perante a argumentação que vínhamos erigindo na seção anterior, um Estado preocupado com a tutela das liberdades individuais não poderia congruentemente legislar de forma restritiva de práticas
morais privadas e, por conseguinte, adotar uma postura filosófica perfeccionista. Contudo, o perfeccionismo ínsito na argumentação de Lorde Devlin
sustenta ser admissível a qualquer sociedade tomar as providências legais
para que preservem a sua auto-existência ou, ao menos, aquilo que entende ser necessário à sua preservação (cf. HART, 1987, p. 45).
A respeito do apresentado no parágrafo anterior há uma crítica
consistente de que o argumento capitaneado por Lorde Devlin carece de
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uma constatação histórica ou empírica, ou seja, de que a tese de que a
sociedade desarticule-se e pereça por não proteger determinados valores
morais fundamentais não encontra apoio empírico, senão apenas hipotético, nos termos sugeridos por Lorde Devlin (cf. HART, 1987, p. 71).125 A rigor, parece insuficiente a argumentação, a ponto de que Hart sintetiza que
“[...] não há, de novo, uma maneira inequívoca de comprovar ou de refutar
a teoria quanto à circunstância de quem quer que se desvie da moral sexual convencional se revela, em outros pontos, hostil à sociedade”. (HART,
1987, p. 72).
Quanto a este último elemento, o entendimento de que o Estado
poderia legislar sobre matérias que a sociedade acredita ou avalia que lhe
atentam à sua preservação enquanto tal, desde logo, cabe refletir. O perigo ínsito nesta argumentação apresentada por Lorde Devlin é de que a
percepção de perigos pode ser bastante ampliada até o ponto de atingir
condutas e opções bastante distanciadas do razoável. Assim, por exemplo,
como justificaríamos argumentação contrária a uma sociedade que tenha a
firme e compartilhada percepção de que a união de negros e brancos deve
ser proibida? Em suma, se o critério for apenas o do estabelecimento des125
Cabe sublinhar que Hart não se opõe à tese de Lorde Devlin quando sustenta que alguma moral
compartilhada é necessária à manutenção da sociedade além do que como mero agrupado de pessoas
(tese da moderação) mas, isto sim, quando o referido autor procura suplantar a tese inicial para afirmar
a necessidade de uma moral (tese do rigor extremo) que se imiscua em detalhes da vida privada como
necessários para a manutenção dos valores morais sem os quais a sociedade não lograria manter-se
(cf. HART, 1987, p. 71-72). Em outro trecho o autor volta a sublinhar esta leitura quando afirma que
“[...] Pode-se argüir [...] que uma sociedade humana, na qual esses valores não sejam reconhecidos de
jeito algum, sua moralidade não é nem uma possibilidade empírica, nem lógica, e, ainda que fosse, tal
sociedade não teria qualquer valor prático para os seres humanos” (HART, 1987, p. 89). Ainda ao final
do livro, Hart volta a referir-se ao tema reforçando o ponto de vista de que “não se pode comprovar,
com manifesta certeza, que a preservação de uma sociedade exija a coerção de sua moralidade,
´como tal´”. (HART, 1987, p. 99).
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te consenso compartilhado, se o critério para estabelecer legislações moralmente proibitivas for apenas a de que se verifique o consenso sobre
questões morais, acaso haveria como argumentar de forma importante em
sentido contrário?
De forma positiva, não parece que a afirmação de tal posição permissiva de legislação com base unicamente no consenso possa permitirnos alcançar um locus legislativo seguro, previdente e prudente em matéria moral. Como nos recorda Hart, temos uma pergunta incessante, qual
seja, a de que “o problema relativo a saber se uma sociedade tem o
´direito´ (right) de impor sua moral [...] se é moralmente permitido a qualquer sociedade impor, legalmente, observância aos princípios que adota
[...]”. (HART, 1987, p. 46).
Contudo, ademais deste problema levantado no parágrafo anterior
acerca do direito impor uma determinada perspectiva moral, cujo viés encontra-se socialmente compartilhada, emerge um problema. A questão que
se põe é sobre quais fundamentos morais poderiam justificar a imposição
de uma determinada leitura moral de uma questão sobre outras leituras
morais acerca de um determinado problema. Como diz Hart, não há suficiência na argumentação da punição de homens “simplesmente porque outros não concordam com o que eles fazem” (HART, 1987, p. 69). Presente
esta questão, haveríamos de preocupar-nos com a legitimidade do Direito
Penal punir tão ligeiramente, na medida em que sem fundamentação teórica firme, a condutas morais.
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A abordagem de problemas morais desde a ótica do Direito Criminal pode levar-nos a prática de um conceito paternalista que se confunde,
eventualmente, com o que Hart denomina de “moralismo legal” (HART,
1987, p. 58), o qual encontra raramente uma justificação plausível em um
Estado democrático.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um aspecto central em favor da descriminalização de aspectos privados da moralidade humana encontra-se no fato de que tal política possui
um viés paternalista contra o qual uma sociedade livre e um Estado orientado por políticas tuteladoras das liberdades individuais haveria de preocupar-se em evitar.
O paternalismo aplicado desde a perspectiva da política criminal
implicaria em legislar minuciosamente sobre questões que em um Estado
democrático e liberal reputaria como atinentes, única e exclusivamente, às
determinações individuais. O ponto de partida de sua argumentação, como
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soa óbvio, é o de que ao indivíduo haveria de ser concedida maior esfera
de autonomia perante uma amplitude de intervenção estatal consideravelmente diminuída. A leitura do Estado liberal é de que haverá de evitar a
proteção das pessoas contra elas próprias e suas escolhas que, para o
milliano Hart, bastam os debates, os conselhos e argumentações, nada
mais restando possível do que precatar terceiros acerca de algumas conseqüências que imaginamos poder advir de certas condutas (cf. HART,
1987, p. 93). Esta leitura é desarmônica contra a perspectiva liberal que
busca o centro de equilíbrio das liberdades nas escolhas individuais.
Neste sentido o debate sobre a política criminal de drogas, por
exemplo, merece destaque. Uma prática liberal por excelência, trataria o
problema menos desde uma perspectiva principiológica baseada em convicções dogmáticas acerca das drogas. Isto normalmente se dá, inclusive
pela característica de tal abordagem, desde uma perspectiva excludente
relativamente às escolhas pessoais, excluída, desde logo, a circunstância
em que tal escolha tenha por sujeito ativo pessoas destituídas de razão
temporária ou definitivamente, casos em que se inserem os menores de
idade, os enfermos psiquicamente atingidos de forma temporária e um segundo grupo paciente de doenças que lhes atinjam o discernimento de
forma irreversível.
A perspectiva consagrada por uma política anti-paternalista é a de
dedicar-se ao tratamento das conseqüências, inclusive em termos de saúde pública, que as escolhas e preferências individuais possam ocasionar.
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Nestes termos, por exemplo, temos algumas políticas contemporâneas
brasileiras que preocupam-se em limitar o consumo do cigarro. Trata-se de
clara opção individual em que o Estado adota política restritiva mas não
proibitiva. O Estado adota política pública que visa a desencorajar progressivamente o vício do fumo. Esta política encontra argumentação não apenas em que afeta de forma considerável a saúde do fumante, posto que fôra este o argumento central isoladamente tratar-se-ia nada menos do que
de uma política aberta e inaceitavelmente paternalista. O aspecto central
neste tipo de política pública nos parece ser o fato de que a prática do fumo causa considerável impacto negativo sobre terceiros, e não apenas
somente sobre a saúde (e aqui o caso dos fumantes passivos) como também sobre os prejuízos financeiros que este grupo em especial causa às
finanças públicas.126
Opostamente às políticas paternalistas o Estado holandês, por
exemplo, aborda a questão das drogas e da liberdade sexual de forma distinta aquela que, por exemplo, é levada a termo no Brasil. 127 Na Holanda
há uma ampla liberdade para a escolha do consumo de drogas cujo pro126
Não temos no momento dados concretos, mas informações esparsas dão conta de que há um pesado investimento estatal no tratamento de doentes crônicos cuja origem encontra-se no fumo. Neste
caso, portanto, subsiste o argumento de que se trata de uma escolha individual, não moral, que causa
impacto sobre terceiros. Neste caso do fumo permanece o marco da política pública desincentivadora
do fumo na medida em que, por exemplo, não visa mais do que coibir o consumo do fumo em certos
locais públicos, abstendo-se da invasão ao seu consumo privado. No entanto, como se percebe, tal vedação parcial não termina por ser congruente com o problema detectado de, por exemplo, atingir os cofres públicos e, assim, causar impactos e prejuízos econômicos a terceiros derivados de vício alheio. A
rigor, tal impacto econômico aos cofres do Estado continuaria a produzir-se no caso de um fumante fazê-lo, contumaz e intensamente, apenas em privado.
127
Entre nós, por não avançar a argumentação relativamente a outros países próximos, é flagrante o
fracasso das políticas públicas que tem as drogas como objeto. Para observar tal fracasso não necessitamos mais do que atentar à realidade que nos cerca.
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cesso de comercialização bem como da legalização das lojas de venda
tem acompanhamento do Estado. Paralelamente, o Estado ocupa-se em
atender as conseqüências derivadas destas escolhas de seus cidadãos
com dados bastante concretos em mãos, uma vez que os negócios não
oficializados restam desestimulados, embora não inexistentes. A mesma
aproximação ao problema é feita pelo Estado holandês no que concerne à
prostituição, tratando do tema como uma questão de saúde pública, concedendo às profissionais do sexo todo acompanhamento de saúde que a
atividade exige.
Especificamente no que concerne à legislação sobre temas morais
e a imposição de um ponto de vista excludente de todos os demais sugere
que tangenciamos às estruturas mais basilares de um Estado democrático.
Neste sentido o liberal Hart sustentava que “não nos é dado, na vida social, adotar um só valor ou um só objetivo moral, levados, como somos, pela
necessidade de conviver com os outros” (HART, 1987, p. 62), convivência
que, contudo, não implica no absoluto direito de que às “maioria seja concedido o direito moral de determinar como todos devem viver” (HART,
1987, p. 95).128 Diretamente ou não, inspirado em Mill, a conclusão é de
que não se trata de apresentar uma teoria indiferente á moral mas, isto
128
Esta argumentação se assenta em um “equívoco fulcral’, diz Hart (1987, p. 96), dado que não se
pode conceder ao poder político um poder ilimitado cujo fundamento é de que aja em seu nome. A rigor, então, é um “equívoco [...] inaceitável, de que tudo que a maioria faz, com este poder, se encontra
além das críticas e jamais sujeito à resistência”. (HART, 1987, p. 96).
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sim, nos limites propostos por Hart,129 é de que o uso da coerção, e em
especial da penalização criminal, seja por demais restringida.
A título de palavras finais para este trabalho sugiro acompanhar as
mesmas com as quais Hart conclui Direito, Liberdade e Moralidade, que
nos parecem especialmente elucidativas a respeito de seus propósitos
com o livro:
[...] Ninguém pensaria, ainda quando a moral popular fosse mantida por uma ´esmagadora maioria´ ou
marcada pelo tríplice estigma da ´intolerância, indignação e repulsa´, que a fidelidade aos princípios
democráticos requer sejam admitidos e sua imposição sobre a minoria justificada. (HART, 1987, p.
97).
Neste sentido, indiscutivelmente, não encontramos à disposição de
um Estado democrático argumentos liberais que fundamentem legitimamente do ponto de vista moral a imposição de compromissos morais cultivados por maiorias ou por minorias no poder. Como nos diz Hart, em torno
à fidelidade aos princípios democráticos não podemos lançar mão da imposição de valores morais a partir do arcabouço jurídico estatal.
129
O que também mostra esta inclinação hartiana é citação de trecho de Mill: “Seria uma grave incompreensão desta doutrina supor que defende uma egoísta indiferença e que pretende que os seres humanos não têm nada a ver em sua conduta mútua, e que só devem inquietar-se pelo bem-estar ou as
ações de outro quando seu próprio interesse está em jogo... Os seres humanos devem ajudar-se, uns
aos outros, a distinguir o melhor do pior, e a prestar apoio mútuo para eleger o primeiro e evitar o segundo”. (apud HART, 1987, p. 93).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Antonio Fabris, 1987. 102p.
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MacCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Stanford: Stanford University Press,
1996. 184p.
______ . Derecho Legal y Socialdemocracia. Madrid: Tecnos, 1990. 216p.
PÁRAMO, Juan Ramón de. H. L. A. Hart y la teoria analítica del derecho.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. 470p.
SANTOS, Gerson Pereira dos. Introdução. In: HART, Herbert L. A. Direito,
liberdade e moralidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1987. P. 1127.
SILVEIRA, Sheila Stolz da. Um modelo de positivismo jurídico: o pensamento de Herbert Hart. Revista Direito GV 5, Vol. 3, No. 1, Jan.Jun., 2007,
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ZIPURSKY, Benjamin C. Practical Positivism versus Practical Perfectionism: The Hart-Fuller Debate at Fifty. New York Law Review, Vol. 83, Sep.,
2008, p. 1170-1212.