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A utopia que não está no fim da viagem:
a peregrinação medieval
Hilário Franco Jr.
Universidade de São Paulo (Brasil)
Resumo
Mesmo os estudiosos que superam a barreira do entendimento stricto sensu
de utopia e aceitam a existência na Europa medieval dessa forma de pensamento e
comportamento social, deixam de lado uma de suas manifestações mais curiosas – a
peregrinação. De fato, ao contrário do caso clássico de viagem que leva à descoberta de
uma sociedade utópica, esta é, na peregrinação, a própria comunidade que se constitui
espontaneamente para a viagem.
Palavras-chave
Viagem, peregrinação, utopia, Europa medieval.
Hilário Franco Jr. é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo e autor,
dentre outros, de As utopias medievais (São Paulo: Brasiliense, 1992), A Eva barbada. Ensaios de
mitologia medieval (São Paulo: Editora da USP, 1996), Cocanha. A história de um país imaginário
(São Paulo: Cia das Letras, 1998), A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura (São Paulo: Cia. das
Letras, 2007), e Os três dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval (São Paulo: Editora da USP,
2010).
Hilário Franco Jr.
V
¹ Para um amplo quadro
civilizacional e temporal,
Kötting, 1950; Chélini
e Branthomme, 1987. A
extensão do fenômeno fica
manifesta, a título de exemplo,
pelo fato de a França contar
ainda hoje com 445 locais de
peregrinação, cf. levantamento
de Cabanne, 1958, p.265-275.
Em relação à Europa medieval
existe um cômodo repertório
bibliográfico, embora com
indicações prioritariamente
anglo-saxônicas: Davidson e
Dunn-Wood, 1993.
² Hahn, 1896, 1896a, 1909.
60
iagens devocionais estão atestadas em ambientes culturais bastante
diversos, em todos os continentes e todas as épocas, mas talvez
nenhum tenha atribuído tanta importância a elas quanto a Europa
medieval cristã. Tratava-se, de certa forma, da idealização de um aspecto da
realidade histórica de então, a intensa mobilidade das pessoas. O próprio
início do período que conhecemos por Idade Média deu-se com grandes
deslocamentos populacionais de grupos do norte europeu (a Völkerwanderung
germânica) em direção aos territórios romanos. E pelos séculos seguintes a
errância continuou intensa. Por muito tempo, mais do que comércio, havia
comerciantes, isto é, não eram os consumidores que buscavam os locais de
venda e sim os vendedores que se deslocavam em busca de seu público. Da
mesma maneira, pelo menos até o século XII, mais do que artesanato, havia
artesãos, trabalhadores especializados que iam de senhorio em senhorio,
de mosteiro em mosteiro, de cidade em cidade, oferecendo seus serviços.
Os monges viajavam com certa frequência entre os diversos mosteiros da
sua Ordem, os clérigos seculares circulavam por sua diocese e mesmo fora
dela para comparecer a sínodos e concílios, para cumprir funções pastorais
e administrativas. Os grandes laicos moviam-se constantemente entre seus
vários senhorios para consumir in loco as rendas e taxas a que tinham direito.
Os cavaleiros deslocavam-se não apenas para as longínquas Cruzadas, mas
também pelas regiões cristãs à procura de aventuras e torneios. Até fins da
Idade Média as cortes monárquicas eram itinerantes, mudavam em função
das estações do ano, da necessidade de visitar certos domínios reais, das
circunstâncias das campanhas militares.
Quase todos os povos em algum momento da sua história realizam
viagens devocionais¹, propensão psicológica que talvez possa ser entendida
como resquício inconsciente das prolongadas transumâncias que o
homem pré-histórico realizava. Migrações que eram parte da sua luta pela
sobrevivência, mas que originalmente talvez tenham sido atividade ritual que
apenas mais tarde ganharia sentido utilitário, como Eduard Hahn propôs
em relação à agricultura, à domesticação do boi, ao uso do arado, à caça².
Qual, então, a especificidade das viagens rituais no caso do cristianismo? Ao
dessacralizar a natureza – reduzida a mera criação de Deus, sem poder em
si mesma – a religião cristã esvaziou o poder de atração que certos acidentes
geográficos produzem.
Os homens pré-históricos eram atraídos por grutas que não por acaso
muitas vezes pintavam, como Altamira ou Lascaux. Os egípcios visitavam a
ilha de Philae, no Nilo, centro do culto a Osíris. Os gregos antigos dirigiamse à ilha de Delfos, cujo nome era associado a delphys, “útero”, onde Pítia, a
sacerdotisa de Apolo, descia por uma cavidade (stomion, palavra que significa
ainda vagina) para alcançar o umbigo (onfalos) do mundo e poder então
fazer suas profecias. Os hindus procuravam (e ainda o fazem) se banhar
na confluência dos rios Ganges e Yamuna. Os xintoístas japoneses até
hoje consideram sagrada a montanha de Fuji-Yama. Os budistas chineses
têm três montanhas sagradas, Wou-tai chan, O-mei-chan e Pou-to chan,
para as quais peregrinam ainda atualmente. Os maias deslocavam-se
periodicamente até o cenote (poço natural sagrado) de Chichén-Itzá devido
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A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
à forte impressão despertada pela água vinda das profundezas da terra e
que ligava todo um conjunto de cavernas e grutas. Os imponentes baobás
que se destacam nas planiformes savanas da Tanzânia e de Madagascar
faziam as populações locais atribuírem sentido sagrado a essas árvores, que
se tornaram objetos de veneração. A pequena (cerca de 30 cm de diâmetro)
pedra basáltica negra da Caaba depois de ter sido objeto de peregrinação
dos árabes pré-islâmicos tornou-se também para os muçulmanos de todo
o mundo. O Pico de Adão, no Ceilão, alta montanha de mais de dois mil
metros, atrai peregrinos por sua gigantesca marca de pé gravada na rocha,
deixada pelo deus Rama de acordo com os hinduístas, pelo Buda conforme
os budistas, pelo apóstolo Tomás segundo os cristãos, por Adão consoante
os muçulmanos. Entre os hebreus, as montanhas sagradas eram comuns
(Ararat, Galaad, Sinai, Thabor, Garizim, Gólgota, etc.) e alguns salmos (o
mais expressivo deles o 47) cantam a subida dos fiéis a esses locais para
encontrar Deus.
O cristianismo, de seu lado, inverteu essa lógica das movimentações
coletivas rituais. É verdade que o magnetismo de certas paisagens parece ter
influenciado o surgimento de alguns focos devocionais cristãos medievais,
como as grutas do Monte Sant’Angelo, de Chartres ou da Sainte-Baume, a
escarpada falésia de Rocamadour, a íngreme colina de Le Puy, o imponente
maciço montanhoso de Monteserrat, a impressionante ilha-montanha
do Monte Saint-Michel. Mas sempre, mesmo nesses casos, à sacralidade
de lugares que sacralizam pessoas sucedeu-se a sacralidade de pessoas
que sacralizam lugares. Sabe-se que desde a Pré-História muitos grupos
humanos sedentarizaram-se pelo desejo de não abandonar seus mortos,
tendência acentuada pelo cristianismo ao recusar a cremação praticada em
determinados períodos históricos pelos gregos e romanos. Entre os séculos
VII e XII completou-se o processo da sociedade dos vivos estabelecerem-se
na proximidade da sociedade dos mortos. A terra destes, ou cemitério, foi
santificada e colocada ao lado das igrejas³.
Entretanto, os mortos não são todos iguais. A elite deles, ou santos,
deixa restos (reliquae) que guardam sua virtude. Mais exatamente, toda
relíquia é o santo vivo afirma em 408 o bispo Vitório de Rouen, que justifica
o poder taumatúrgico dela explicando que o poder de cura não é menor na
parte que no todo, que “quem cura vive, quem vive está nas relíquias” (qui
curat et vivit, qui vivit in reliquiis est). Em fins do século VII ou princípios
do VIII o Sacramentário Gelasiano precisa que na mais ínfima parcela de
relíquia o santo está integralmente presente (praeclaris reliquiis collocatis
integritas sancti corporis esse credatur4). Desta maneira, o poder sacralizador
das relíquias era tal que se transmitia a objetos que entravam em contato
com elas, as roupas de um santo, por exemplo, gerando novas relíquias,
chamadas de secundárias ou representativas (brandea). Porque as relíquias
são o próprio santo, a estátua-relicário que as contém é tão venerável quanto
a arca do Antigo Testamento, blasfemar contra ela é blasfemar contra o
santo5. Em certos casos a transferência de sacralidade ocorria por analogia
de forma, caso da Cruz à qual se reza, diz Tomás de Aquino, como ao
“crucificado em pessoa” (quasi ipsum crucifixum)6.
3
Deffontaines, 1948, p. 278;
Lauwers, 2005.
Vitório de Rouen, XI,
col.453a e 454b; The Gelasian
Sacramentary, II,1, 1984, p.
161.
4
Liber miraculorum Sancte
Fidis, I<13> 28 e 24, 1994,
p.114.
5
Summa Theologica, III, q.25,
a.4, 1903 (Opera omnia, 11), p.
282. Tal sentimento era antigo:
Santa Paula diante da Cruz
adorava o Senhor “como se ela
o contemplasse ali suspenso”
(ante Crucem, quasi pendentem
Dominum cerneret, adorabit):
São Jerônimo, CVIII, 9, 1955,
vol. V, p. 167, linhas 10-11.
6
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
61
Hilário Franco Jr.
Quarta, 2009, p. 232-237. A
argumentação de Johansson e
Shreeve citada por Quarta é
de I figli di Lucy, 1991, p. 305313. O fenômeno descrito por
Johanson e Shreeve parece ser
mais antigo do que se pensava,
como deixa supor a recente
descoberta na Etiópia de um
esqueleto da mesma espécie
que Lucy e 400.000 anos mais
velho, cf. Haile-Selassie, 2010.
7
Besson-Girard, 2008;
Singleton, 2008.
8
Dupront, 1987, p. 377.
Vicaire concordará com isso
afirmando que “a estrada é
o essencial da peregrinação”
(1980, p. 19). A distância é
tão fundamental mesmo no
fenômeno peregrinatório
contemporâneo, que dos
franceses que peregrinaram em
1925 a Lourdes, no sudoeste do
país, estavam sobretudo pessoas
da diocese de Lille, no norte
do país, cf. Deffontaines, 1948,
p. 305.
9
10
Hebreus, XIII, 14.
11
João, XIV, 6.
Instructiones variae, 5, col.
240b.
12
62
Sob forma geográfica, humana ou material o sagrado sempre exerce
enorme fascinação, atrai multidões que esperam dele se beneficiar graças
ao princípio de contágio. Daí porque a peregrinação é fenômeno tanto
antropológico quanto histórico. O mesmo ocorre com a utopia, de acordo
com recente proposta de Cosimo Quarta. Para ele, o desenvolvimento da
inteligência dos hominídeos significou o surgimento de conflitos entre
o indivíduo e seu grupo, fonte de angústia e origem da busca de novas
possibilidades. Se diante de uma situação de penúria alimentar alguns grupos
recorriam ao que estivesse ao alcance (como folhas e sementes), outros
procuraram soluções alternativas em lugares aparentemente inverossímeis,
com a espécie homo revelando-se, como afirmam os paleoantropólogos
Johanson e Shreeve, “um animal em devir”. A inquietude dotou a espécie da
faculdade de pre-ver aquilo que ainda não era fisicamente visível, portanto
de projetar, de se dirigir para um “dever ser”. Assim, conclui Quarta, é
preciso “definir o homem não somente como sapiens, mas também como
utopicus”7.
Hipótese louvável, por superar a estreita posição tradicional que reduz
a utopia a um gênero literário e vê na obra de Tomás More o ato inaugural
do pensamento utópico, confundindo assim forma (ensaio ficcional político)
e conteúdo (descrição de uma sociedade ideal). No entanto, é preciso notar
que se há propensão antropológica ao “dever ser” ele é manifestado ou
recalcado historicamente. Largas porções da população mundial, como a
China e a Índia antigas, a África negra, quase todos os povos nômades,
jamais conheceram formas utópicas8. Estas são produtos ocidentais, saídas
da matriz greco-judaico-cristã. Daí porque, apesar de pouco reconhecidas
pela historiografia especializada, as utopias foram numerosas e importantes
na Europa medieval. Dentre elas, a peregrinação.
À primeira vista, contudo, peregrinação e utopia se opõem já que a
primeira busca um local preciso onde estão relíquias sagradas e a segunda
designa um local que não se pode identificar. Todavia peregrinação não
é tanto o santuário ad limina quanto, na bela formulação de Alphonse
Dupront, um “combate com o espaço”9. Espaço que deve ser não apenas
percorrido, mas em certo sentido negado. É espaço que busca o não-espaço,
o Aqui que procura o Além: “não temos neste mundo moradia (civitatem)
permanente, procuramos aquela que virá”, diz a epístola paulina10. É isso que
comprova a mais importante meta de peregrinação cristã, o Santo Sepulcro,
espaço vazio que testemunha a crença na Ressurreição do Cristo e, por
meio dela, na ressurreição dos corpos no Fim dos Tempos que antecede a
bem-aventurança eterna na Jerusalém celeste. É, portanto, a trajetória de
Adão a Cristo, do homem pecador ao homem redentor, do Paraíso terreno
perdido no começo dos tempos até o Paraíso celeste que será alcançado
definitivamente após o Juízo Final. Não por acaso, o ato de peregrinação era
associado ao Cristo, ele próprio caminho que leva à Salvação (“Ego sum via,
veritas et vita”)11. Ao exaltar a necessidade de peregrinar, São Columbano,
em princípios do século VII, intitulou um sermão Quod praesens vita non
sit dicenda vita, sed via, “Que a vida presente não seja chamada vida, mas
via”12. Isso não significa, porém, que a Europa medieval tenha renunciado
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A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
ao desejo da perfeição social terrena, mesmo porque ela pensava em termos
de correspondência entre os dois planos cosmológicos: “assim na Terra
como no Céu”.
Para verificarmos a hipótese de a peregrinação cristã medieval ter
sido uma forma utópica – não no stricto sensu literário, e sim no sentido mais
rico de comportamento social – consideremos algumas das características
de sociedade ideal de acordo com a escala de valores da época, ou seja,
pureza, justiça, igualdade, fraternidade, festividade.
*
Se peregrinatio era a viagem por excelência – daí muitas vezes ter
sido chamada a partir do século XI simplesmente de iter (“jornada de
viagem”, “estar afastado de um local”, “trajeto”, “via”) – isso se devia ao
fato de ser mais do que uma atividade ordinária. Era um rito. Ou seja,
sequência ordenada de atos, gestos e sons com função eminentemente
simbólica (conjuratória, propiciadora ou comemorativa) que remete a um
mito, recriando-o ao externá-lo. Trata-se, diz a Antropologia, de categoria
analítica que serve para interpretar a realidade concreta, sem ser, porém,
criação meramente intelectual. Como observou Walter Burkert, “ideias não
produzem ritos, estes produzem e modelam ideias ou mesmo experiências e
emoções”13. Mais precisamente, peregrinação pode ser colocada na categoria
que Marcel Mauss chamou de rito corporal positivo, que normalmente
tem, porém, forma negativa14. De fato, o esforço físico, os riscos variados, o
distanciamento da pátria, dos familiares e dos amigos, portanto a destruição
de parte de si mesmo, a purgação enfim, é um conjunto de negações cujo
conteúdo é positivo. Assim como no sacrifício tanto o oficiante quanto a
vítima são transformados pelo ato, cuja meta é estabelecer comunicação
entre ambos, afirmam Hubert e Mauss15, pode-se dizer que o mesmo ocorre
na peregrinação, onde o peregrino é, em certa medida, a um só tempo
sacrificador e sacrificado.
Enfim, a peregrinação é purificadora por implicar passagem de uma
condição a outra. Da mesma forma que no sacrifício o objeto passa do
domínio comum ao domínio religioso16, durante a peregrinação, o indivíduo
entra na esfera sagrada, reabre a comunicação com Deus, fechada pela Falta.
Um apócrifo cristão dos séculos VIII-IX afirma que depois que Deus deixou
de falar com Adão e Eva, eles construíram com pedras um altar sobre o
qual depositaram como oferenda a Deus uma mistura de folhas, terra e
seu próprio sangue. Compungido, o Senhor disse ao homem que “assim
como você derramou seu sangue, derramarei o meu quando me encarnar
na tua progênie”17. Aceitando, com Mauss, que “as coisas sociais são por
definição coisas funcionais”, que todo rito é, portanto, em certa medida,
funcional18, podemos perfeitamente aplicar tal ideia à peregrinação. Porque
a maioria das sociedades não celebra seu culto em um lugar qualquer, e
sim naqueles consagrados pelo mito19, o rito da peregrinação acontece no
local onde Adão e seus descendentes vivem o Exílio – o mundo. Porque
rito é mecanismo de defesa contra a angústia, é repetição dissimulada e
13
Burkert, 1997, p. 37.
14
Mauss, 2002, p. 331.
Hubert e Mauss, 1968, p.
201 e 257.
15
16
Ibid., p. 200 e 203.
Il combattimento di Adamo,
1982, p. 53-55.
17
18
Mauss, 2002, p. 238.
19
Ibid., p. 333-334.
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63
Hilário Franco Jr.
20
Freud, 1991.
21
Maraval, 1984, p. 482-483.
Por exemplo em Enarrationes
in Psalmos, 1956: XXXVIII,21,
p. 421; XLIX,22, p.591-592;
LXIV,2, p. 824, linhas 53-58;
LXXXVII,15, p. 1219, linhas
16-17; CXVIII, s.VIII,2, p.
1686, linhas 27-29; CXIX,6-9,
p. 1782-1786; CXXV,1-5, p.
1844-1849.
22
Guilherme de Digueville,
Le pélerinage de vie humaine;
William de Langland, Piers
Plowman.
23
Enarrationes in Psalmos,
1956, XXXVIII,21, p. 421,
linha 28.
24
Hermoldo de Brême,
Chronicon Holtzatiae, 1869, p.
253, linhas 23-24.
25
Le livre de saint Jacques,
I,17, 2003, p. 362. O sermão é
analisado (e traduzido para o
galego) por Jacopo Caucci Von
Saucken, 2003.
26
Itinerarivm Egeriae, 1965,
I,8,4, p.49 e II,45,4, p.87;
Itinerarivm Antonini Placentini,
ed. Paul Geyer, ibidem, 1,
p.129, linhas 2-3; 23, p.141,
linha 2; 26, p.143, linha 11;
27, p.143, linha 22; 33, p.145,
linha 19.
27
Vtopia, Basiléia, Jean Froben,
4ª ed. novembro de 1518, livro
II, p. 93, linha 1, reprodução
fac-símile e tradução de André
Prévost, 1978.
28
29
1965, p. 1170-1176.
64
inconsciente do fato que gerou o trauma psíquico, de acordo com Freud20,
peregrinação é sublimação do Exílio. Porque todo rito está inscrito num
tempo sagrado, num calendário religioso, a peregrinação com sua esperança
de renascimento com frequência começa na primavera. Um estudo sobre
a peregrinação a Jerusalém nos séculos IV a VII mostra que devido a seu
sentido de ascese e de esforço ela habitualmente acontecia na Quaresma21.
Dito de outra forma, a peregrinação cristã é teatralização do mito
do Exílio. Peregrinar é caminhar para a pátria celeste, e mesmo a Igreja é
peregrina, lembra Agostinho22. Peregrinar é buscar a purgação que reabre as
portas do Paraíso. A própria vida humana é uma peregrinação, proclamam
alguns textos em fins da Idade Média23. É por ter sido expulsa do Éden
que a humanidade se tornou viajante por este mundo hostil e estranho,
que não lhe pertence, onde é “peregrinus et inquilinus”24. De acordo com
um cronista alemão de princípios do século XII, a Criação está dividida
em seres espirituais no Céu, os anjos, e “terrenos peregrinos” aqui embaixo25.
Em sermão destinado àqueles que se dirigiam a Santiago de Compostela, o
papa Calisto II assinala por volta de 1120 a vinculação de tais viajantes ao
pai do gênero humano: “Adão é considerado o primeiro peregrino porque
transgrediu a lei divina e foi enviado ao exílio deste mundo.” Logo a seguir
o papa completa: assim como Adão foi salvo pelo sangue e pela graça de
Cristo, todo peregrino que se afasta de seu país devido a suas transgressões
é colocado no exílio por seu sacerdote e salvo pela graça de Cristo caso se
confesse e termine sua vida em penitência26.
A deslocação semântica no campo peregrinus-peregrinatio é elucidativa
desse significado. A primeira palavra ainda tinha sentido indefinido na
passagem do século IV ao V, quando em um relato de viagem à Terra Santa
ela aparece uma vez como “viajante devoto”, outra como “estrangeiro”.
Século e meio depois a transição estava completada, como sugere outra
narrativa do mesmo tipo na qual as cinco ocorrências do termo são todas
no sentido de “viajante devoto”27. Em relação à peregrinatio a trajetória foi
mais lenta, mantendo até o século IX as acepções clássicas de “estada no
estrangeiro” e “viagem longe de casa”, para somente na segunda metade do
século XI se firmar a evolução que deu à palavra o sentido de “exílio longe
do Senhor”, “expatriação penitencial”, “peregrinação”, “cruzada”. Mas ainda
no começo do século XVI Tomás More usou o termo em sentido genérico,
embora sem conotação de estrangeiro: de peregrinatione vtopiensivm é no
seu texto simplesmente “as viagens dos utopianos”28.
De qualquer forma, aquela dupla evolução cronológica talvez
revele um dado sociológico, o caráter marcadamente individual das
viagens devocionais nos primeiros séculos cristãos, seu caráter coletivo
posteriormente. Hipótese que fica reforçada se for correta a sugestão de
Francis Garrisson de que foi na época carolíngia que a benção dos signa
peregrinationis constituiu-se efetivamente em ritual29. Assim, o Liber
miraculorum de Saint-Gilles, do século XII, de 31 relatos de graças concedidas
aos devotos daquele santo em 17 deles fala explicitamente de peregrinos
que viajam em grupo. Constatação significativa, pois aquele era um dos
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A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
santuários mais visitados da Idade Média­30. Embora em menor proporção,
também o livro de Rocamadour cita diversas vezes a viagem grupal31. Se
em Compostela, diz a crônica da cidade redigida em torno de 1140, os
peregrinos constituem-se em multitudine, é porque eles ali chegavam em
grupos: ainda em princípio do século XIV uma canção occitana refere-se à
may clientela de peregrinos que foi de Aurillac até aquela cidade32.
Foi nessa segunda etapa que a conexão entre peregrinação e
Exílio tornou-se nítida e ganhou caráter ritual. Todavia, rito nem é mera
manifestação de seu “mito implícito” na expressão de Claude Lévi-Strauss33,
nem pode ser reduzido a seu “mito etiológico”, lembra Jean-Claude Schmitt34.
Ele é, na verdade, reordenação de material mítico que acaba por resultar em
um complexo específico de significação. Seu sentido punitivo, de atualização
do Exílio, não fazia esquecer que era também dramatização de uma pena
esperançada, isto é, um rito purgativo, destinado a ajudar na superação do
Exílio sem negar sua existência e suas marcas. Peregrinar proporcionava
satisfação a uma necessidade emocional, retribuía em certa medida o
sacrifício realizado pelo próprio Deus tornado homem. Marie-Humbert
Vicaire nota com razão que embora nem sempre de maneira consciente, no
ato de peregrinar estava presente o sacrifício do peregrino e o do Cristo35.
Também Victor Turner e Edith Turner avaliam que “na Cristandade, por
detrás de tais viagens, encontra-se o paradigma da via crucis adicionado ao
elemento purgativo apropriado aos homens decaídos”36.
Com efeito, o caráter expiatório da peregrinação é inegável.
Abandonar a terra, as pessoas e os costumes conhecidos era sentido como
punição necessária para lavar o pecado da condição humana. A recomendação
que São Jerônimo fez em 376 ou 377 aos monges – “não é possível atingir
a perfeição na sua pátria”37 – era extensiva aos peregrinos. Se até o século
XIII não era frequente que o peregrino se confessasse ad limina, é porque
imaginava que o esforço da rota tinha sido suficientemente penitencial e
purificador. O mesmo pensavam as autoridades constituídas ao prescreverem
peregrinações – ditas penitenciais ou expiatórias – para punir diferentes
crimes, civis ou religiosos38. Foi comum nos séculos XIV-XV na Holanda,
Suíça e Alemanha condenar agressões físicas, homicídios e efrações com
peregrinações obrigatórias. Essa era a pena que a Inquisição impunha a
certos condenados no sul francês, bastante atingido pela heresia39.
Depurativa, a peregrinação constitui-se em “rito de novo nascimento”
diz Dupront40, depois dessa experiência religiosa “não se pode retomar a
vida anterior da mesma maneira”, reitera Vicaire41. Se peregrinar não era
condição suficiente para transformar um pecador em santo, em vários casos
parece ter sido condição necessária para tanto. Ao túmulo de Saint-Martin
de Tours, tão importante na Gália da Alta Idade Média, foram Santa
Genoveva, São Germano e São Columbano. Na mesma época o Santo
Sepulcro foi visitado, dentre outros, por Santa Helena, Santo Alexis, Santo
Eucário de Lyon, São Jerônimo, Santa Paula, Santa Radegunda de Poitiers,
São Tomás de Farfa, São Wilibaldo, São Félix. São Frutuoso, no século
VII, visitou diversos corpos santos presentes na Península Ibérica. Roma
foi a destinação, por exemplo, de São Paulino de Nola em fins do século IV,
Liber miraculorum sancti,
2007, II, p. 46-47; III, p.
50-51; IV, p. 54-55; VI, p.
62-63; VII, p. 66-67; VIII,
p. 70-71; X, p. 80-81; XII, p.
90-91; XIV, p.104-105; XV,
p.120-121; XVI, p. 124-125;
XVII, p. 128-129; XVIII, p.
132-133; XX, p. 140-141;
XXIII, p. 168-169; XXIV, p.
180-181; XXV, p. 186-187. De
acordo com o levantamento de
Marcel e Pierre-Gilles Girault,
a peregrinação a Saint-Gilles
ocupa o terceiro lugar (depois
de Jerusalém e Compostela,
mas antes de Roma) nas
citações feitas pelas canções de
gesta de 1100 a 1325 (2001, p.
372). Corroboram esse dado
as insígnias de peregrinação
de Saint-Gilles encontradas
em locais distantes como
Alemanha, Bélgica, Holanda
e Inglaterra, cf. Köster (1983,,
p. 99-106). Outro indício
sugestivo é que no Liber
peregrinationis de Compostela
aquela peregrinação é a mais
comentada, excetuada a da
própria cidade de Santiago.
30
Miraculis Sancte Marie de
Rupe, 1996, I,1, p. 102-103; 4,
p. 108-109; 5, p. 108-109; 6, p.
110-113; 22, p. 130-133; 23,
p. 132-133; II,9, p. 188-189;
18, p. 206-207; 24, p. 214-215;
38, p. 232-233; III,4, p. 254255; 24, p. 280-281. Também
testemunham nesse sentido,
devido aos riscos de longas
viagens individuais, as insígnias
de Rocamadour encontradas
em sítios arqueológicos na
Alemanha, Escandinária,
Estônia e Inglaterra (Köster,
1983, p. 43-88).
31
Historia compostelana, II,50,6,
1988, p.312, linha 171; Canso
dels pelegrins de San Jac, e.2, v.1
(in Nelli, 1980, p. 88).
32
33
Lévi-Strauss, 1971, p. 598.
34
Schmitt, 1999, p. 972.
35
Vicaire, 1980, p. 22.
36
Turner e Turner, 1978, p. 6.
Epistvlae/Lettres, 1955,
XIV,7, vol. I, p. 40, linha 28 37
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
65
Hilário Franco Jr.
p. 41, linha 1.
Embora elas tenham
começado no século VIII,
segundo Albert, p. 68-72,
difundiram-se a partir do
século XIII, como mostra Van
Cauwenbergh, 1922.
38
Le livre des sentences de
l’inquisiteur Bernard Gui, 2002,
vol. II, p. 978-979; vol. I, p.
840-841; vol. II, p. 1454-1455 ;
vol. II, p. 1472-1473.
39
40
Dupront, 1987, p. 378.
41
Vicaire, 1980, p. 23.
Le livre de saint Jacques, 2003,
II,13, p. 488.
42
Miraculis Sancte Marie de
Rupe Amatoris, 1996, I,4, p.
108-109 e I,6, p. 110-113.
43
66
São Brice no começo do século V, Santo Hilário de Arles em meados dele,
Santo Iriez de Gap em fins do VI, São Landelino de Cambrai três vezes
nos anos 640, Santo Ouen em fins do século VII, São Wilibrordo duas
vezes no mesmo período, São Wilfrido cinco vezes na passagem do VII ao
VIII, São Bonifácio duas vezes nas primeiras décadas do século VIII, São
Geraldo de Aurillac sete vezes nas últimas décadas do IX, Santo Anselmo
de Canterbury em fins do XI. No século XIII São Francisco visitou
Compostela e a Terra Santa; São Domingos, Rocamadour; São Fernando,
Compostela. O exemplo mais eloquente, contudo, é o de São Luís (12141270), que peregrinou a Rocamadour, Vézelay (quatro vezes), Sens, SaintMartin de Tours (em três oportunidades), Le Puy, Chartres, Saint-Julien
de Brioude, Sainte-Baume, Monte Saint-Michel e Saint-Denis (em
inúmeras ocasiões), além evidentemente da Terra Santa, embora não tenha
podido visitar Jerusalém. Santa Brígida da Suécia não ficou longe, tendo
ido em 1341 a Compostela, entre 1364 e 1370 a Assis, Monte Gargano,
Bari (relíquias de São Nicolau), Benevento (São Bartolomeu), Salerno (São
Mateus), Amalfi (Santo André), entre 1371-1373 à Terra Santa.
Como a história de todos esses personagens lembra, pureza não é
virtude isolada, está estreitamente articulada com outras. Assim, a coletividade
peregrina para ser pura precisa de justiça, por ser pura pratica a justiça. Daí
o desenvolvimento de toda uma estrutura de proteção ao peregrino durante
o percurso (estatuto jurídico) e mesmo depois (confrarias). Os milagres, tão
frequentes durante a caminhada peregrinatória, restabeleciam a justiça negada
a muitos na sociedade medieval. Com efeito, fortemente hierarquizada e
tendo poucos mecanismos de controle a Cristandade deixava largos poderes
nas mãos de monarcas soberbos, de senhores tirânicos, de eclesiásticos
prepotentes, de burgueses cúpidos. A frequência com que a documentação
exalta a justiça praticada por grandes personagens revela o quanto ela era na
verdade rara. Nada estranho, portanto, que o Liber miraculorum de Santiago,
elaborado entre 1132 e 1157, indique camponeses, artesãos, mercadores,
clérigos humildes e pequenos cavaleiros como especialmente beneficiados
pela intervenção do santo. Apenas 14% dos casos transmitidos por aquela
fonte favorecem elementos da alta nobreza. Um dos milagres explicita a
quebra da injustiça social da desigualdade, quando um camponês espancado
pelo seu senhor é salvo pelo próprio apóstolo42.
A justiça era essencial para a comunidade peregrina proteger seus
membros das frequentes agressões, externas ou mesmo internas, como
mostra o livro de milagres da Virgem de Rocamadour. No primeiro caso,
temos o exemplo do devoto que deixou sua São João de Acre natal para
ir a Compostela, passando pela cidade da Virgem. Tendo que se afastar
de seus companheiros devido a um “ventrem purgaturus”, ele foi assaltado
por três malfeitores que não puderam, porém, dar um passo para fugir
com o butim e além disso ficaram com as mãos paralisadas. No segundo
caso, um peregrino de Toulouse que guardou indevidamente para si certa
soma em dinheiro que deveria doar à igreja de Rocamadour, perdeu a fala
(privatus est offcio lingue)43. Mas não se esperava apenas a intermediação dos
poderes supra-humanos. Diante dos frequentes abusos que os viajantes a
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
Compostela sofriam por parte de bascos e navarros, tão denunciados pelo
Liber sancti Jacobi, em 1177, Ricardo Coração-de-Leão obrigou-os a jurar
a pax peregrinorum pondo fim aos maus costumes da região. E, de fato, nos
séculos XIII-XIV foram raros ali os casos de roubos a peregrinos44.
Se a base da justiça é a padronização de decisões independentemente
da categoria social dos envolvidos, ela era proporcionada aos cristãos
medievais somente pela peregrinação, que estabelecia “uma condição
praticamente uniforme, em que se perdiam as desigualdades possíveis de
sexo, posição ou riqueza”45. Desigualdades decorrentes da corrupção e da
violência em que tinham caído os descendentes de Adão. Na terceira geração
humana Deus enviara anjos à Terra para ensinar a verdade e a justiça, mas
eles sucumbiram à sedução das mulheres, que deles geraram monstros46.
Ora, ao colocar os peregrinos fora do direito comum a Idade Média de
certa forma resgatava a situação da Roma antiga, na qual a justiça (ius) era
a tradição (mos) no seu aspecto estritamente preceptivo. No caso, a tradição
cristã de que o primeiro peregrino, o Adão exilado, embora já não tivesse
mais a originalem iustituiam, na expressão de Anselmo de Canterbury47,
ainda não perdera todo senso de justiça.
A condição jurídica incomum do peregrino medieval era facilmente
identificável pelo porte de insígnias, pequenos broches de formatos variados
fixados na roupa. Geralmente de chumbo e estanho, elas podiam também
ser conchas naturais no caso de Santiago de Compostela e do Monte SaintMichel, além de, por metonímia, outros santuários. Surgidas no século
XII e bastante difundidas até às primeiras décadas do XVI, as insígnias
metálicas eram moldadas com a imagem do santuário visitado ou da
relíquia ali conservada ou do santo reverenciado. A proteção jurídica ao
peregrino era, porém, anterior ao aparecimento desses sinais distintivos. Ela
existia desde a época carolíngia, quando nasce uma ordem social específica,
o ordo peregrinorum ao qual corresponde um conjunto jurídico específico, a
lex peregrinorum48. Uma capitular emitida por Pepino da Itália entre 782 e
786 acrescenta à punição habitual por um homicídio a multa de sessenta
soldos no caso de a vítima ser um peregrino. Trezentos anos mais tarde,
o Decretum de Ivo de Chartres dobra em relação ao peregrino a reparação
monetária que a lei dos bávaros estipulava para a morte de um viajante49.
Em 1123 um cânone do Concílio de Latrão protege os peregrinos de
Roma (romipetas) e outros santuários ameaçando de excomunhão quem os
sequestrasse ou assaltasse50. Em todo Ocidente um conjunto de medidas,
“espécie de direito internacional protetor do peregrino”51, permite preservar
os bens e direitos dele tanto na terra de origem durante sua ausência quanto
em terras estranhas, ao longo da viagem. Por exemplo, uma compilação
jurídica castelhana do começo da segunda metade do século XIII garante
aos peregrinos de “burdon e esporciella” o direito de venderem animais, roupas
ou prata sem precisarem provar a propriedade deles52.
Como as rotas das peregrinationes maiores ( Jerusalém, Roma e
Compostela) entrelaçavam-se, unidas por toda uma rede secundária
de caminhos que passavam por santuários menores, com frequência os
viajantes vindos de determinados centros de peregrinação e dirigindo-se a
Roger de Hovedeen, 1869,
p. 117-118; Lacarra, 1993, vol.
I, p. 268.
44
45
Garrisson, 1965, p. 1166.
Gênese, VI,1-6; Graves, 1987,
p. 112-115.
46
La conception virginale et le
péché original, XX, 1990, p.
176-177.
47
Bruna, 1996, p. 13, 16, 154
e 184-186; Gilles, 1980, p.
161-189.
48
Textos citados por Garrisson,
1965, p. 1179.
49
Concilium Lateranense I,
cânone 16, em Sacrorum
Conciliorum nova et amplissima
collectio, 1776, vol. XXI,
col.285.
50
Lacarra, 1993, p. 255, cf.
também Garrisson, 1965, p.
1189; Gilles, 1980, p. 185.
51
Libro de los fueros de Castiella,
56, 1924, p. 31.
52
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
67
Hilário Franco Jr.
53
Ries, 1999, p. 20.
Cronache dell’anno mille
(Storie), IV,VI,18, 1998, p. 228,
linhas 4-7; Liber miraculorum
sancti Egidii, 1a, 2007, p. 36-37;
Le livre de saint Jacques, II,
2003, p. 471-504.
54
68
outros cruzavam com viajantes que voltavam de seu itinerário purificador.
Em todas estas andanças, longas ou curtas, a lex peregrinorum protegia
igualmente os viajantes, não fazendo distinção conforme o santuário
buscado. A norma jurídica reconhecia que todo peregrino passava por
intensa experiência religiosa ao visitar diversos mosteiros, catedrais e igrejas,
ao rezar, confessar e receber a comunhão eucarística a cada etapa, ao ouvir
e contar episódios bíblicos e milagres ao longo das estradas. Ela admitia
que durante o percurso ficavam diluídas as diferenciações entre os homens.
Em tal contexto, observa Julien Ries, “o universo parece uma verdadeira
harmonia”53.
A rigor, a equiparação jurídica de todo peregrino expressava uma
igualdade mais ampla e profunda, derivada do caráter ritual da peregrinação.
Se em qualquer rito há dissimetria básica entre oficiantes e fiéis, no interior
deste último grupo há igualdade estrutural mesmo que nas igrejas medievais
os potentes ficassem mais próximos ao altar e os pauperes no fundo do templo,
os homens à direita e as mulheres à esquerda. Por esta razão ao ritualizar
o matrimônio, transformando-o em sacramento em meados do século XII,
a Igreja apesar de sua evidente misoginia não pôde deixar de estabelecer
o consentimento mútuo e livre dos nubentes. Ora, sendo a peregrinação
um rito não é de estranhar que ela tenha criado agrupamentos igualitários
do ponto de visto ritual. Ainda que as condições materiais continuassem
distintas entre peregrinos ricos e peregrinos pobres, tal fosso era encurtado
durante a experiência peregrinatória. O modelo era a itinerância pela
Galileia de Jesus e seus apóstolos, que tinham usufruído em comum seus
poucos bens.
É significativo que a prática peregrinatória tenha sido ao longo da
Idade Média bem difundida nos diversos grupos sociais. No plano dos
textos, o cronista Raul Glaber conta que para Jerusalém dirigem-se tanto
representantes da baixa e média plebe como reis e condes, marqueses e bispos
e “coisa inaudita, mulheres de grande nobreza ao lado de outras muito mais
pobres”. Algo parecido acontece na tumba de Saint-Gilles, para onde vão, diz
o hagiógrafo local, “tanto nobres como pessoas humildes (mediocres), doentes
de todo sexo, condição, idade”. A mesma ideia é transmitida pelo hagiógrafo
de Santiago, pois dos 22 episódios de intervenções miraculosas do santo a
alta nobreza foi beneficiada em somente três, a pequena em oito, o baixo
clero em duas, tanto quanto os mercadores, uma vez cada um camponês,
um grupo de aldeões, um peleteiro, um marinheiro. Além disso, há três
casos em aberto, sem a procedência social dos miraculados, permitindo que
outros indivíduos pudessem ali se reconhecer54. No plano dos gestos, na rota
compostelana a igualdade é simbolicamente afirmada por todo peregrino a
poucos dias de marcha da cidade apostólica, perto de Rabanal del Camino.
Ali, a mais de 1500 metros de altitude, em determinado ponto do monte
Irago, ao pé de um fino, longo e rústico mastro de madeira em cuja ponta há
uma pequena cruz de ferro, todo peregrino deposita um pedregulho. Isto é,
um objeto natural, sem valor material, pequeno, anônimo, quase uma figura
do próprio viajante, assim reunido a outros que por ali já tinham passado e
à espera de outros que ainda passarão.
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
Enquanto na sociedade medieval as roupas usadas por cada
indivíduo indicavam claramente sua categoria social55, na comunidade
peregrina – assim como na Utopia – essa distinção era apagada pelo fato
de todos se vestirem da mesma forma específica, a modo di pellegrino
definem as fontes italianas, a loy de pèlerin explicitam as francesas. Cada
peça do vestuário respondia a uma razão prática, mas também simbólica.
As sandálias facilitavam a caminhada e seguiam o ensinamento de Cristo
aos apóstolos56, além de serem sinal inequívoco de humildade, como indica
o termo que as designava, deschaus, “descalço”. A ampla capa protegia das
intempéries e tinha caráter penitencial, como sugere o nome de um de seus
modelos, esclavine, na qual geralmente a pele está virada para fora marcando
a marginalidade do peregrino57. O chapéu de aba larga (galerus), de feltro ou
couro, resguardava a cabeça e o rosto, sendo preto, como a capa, para indicar
circunspecção.
O cajado (baculus) propiciava um apoio adicional na marcha, e sendo
uma espécie de terceiro pé “simboliza a fé na Santa Trindade [...]. O cajado
ajuda o homem a se defender dos lobos e dos cães [que] simbolizam o
Diabo, sedutor do gênero humano”58. A sacola (conforme o local chamada
de pera, capsella, scarcella, sporta ou isquirpa)59 servia para guardar uns poucos
pertences, e por ser feita de pele de animal morto significava que “o peregrino
deve mortificar sua própria carne viciosa e concupiscente por meio da fome
e da sede, do jejum, do frio e da nudez, do esforço e dos opróbrios.” Essa
sacola “não é fechada por cadarços, está sempre aberta simbolizando o
peregrino que divide seus bens com os pobres”60. Outro signo distintivo
era, na contramão da moda de cortar a barba, que se impunha desde o
começo do século XII, o fato de os peregrinos não se barbearem. Isso se
devia em parte a um motivo prático, a dificuldade de fazê-lo durante a
viagem. Mas sobretudo por identificação com os membros da comunidade
utópica evangélica, todos de barba longa segundo a tradição monástica e
patrística ainda viva no começo do século XIII quando o Pseudo-Rábano
Mauro proclama que a barba “é a divindade do Cristo”61.
Um aspecto, não dos menores, que revela o caráter não hierárquico
da peregrinação é certa resistência oficial a ela, análoga àquela que as
instituições sempre dedicam à utopia. Ainda hoje há locais de peregrinação
que atraem multidões e não são reconhecidos pela Igreja (como Juazeiro
ou Medjugorje, na Bósnia). Durante a Idade Média, várias autoridades
eclesiásticas insistiram, sobretudo no século XII62, que mais importante
que abandonar sua moradia habitual seria abandonar seus hábitos pessoais,
visitar o interior de si mesmo. A verdade é que mesmo enquadrada em
cerimônias eclesiásticas a peregrinação está enraizada em cultos milenares,
de sociedades agropastoris, daí ser frequente a presença de relíquias próximas
a fontes sagradas. Como já se notou, “entre a relíquia, coisa de Igreja e de
instituição, e a fonte, lugar sacro de água curativa, as escolhas dos peregrinos
são patentes: a assiduidade é maior na fonte que no interior da igreja”63. Não
é casual, portanto, o surgimento espontâneo, popular, de tantos locais de
peregrinação. Na Idade Média foi o caso, por exemplo, do Monte Gargano
e de Compostela; nas Idades Moderna e Contemporânea foi comum que
Mane e Piponnier, 1995, p.
103-107 e 139-170; Girault,
2001, p. 262.
55
Para peregrinar, diz ele, é
preciso tão somente cajado,
túnica e sandálias (calceatos
sandaliis): Marcos, VI,8-9.
56
Girault, 2001, p. 263-264. Os
utopianos durante o trabalho
vestem-se de couro ou pele
e quando saem em público
colocam por cima um manto
(chlamydem) da cor natural do
tecido: Vtopia, II, p. 85, linhas
5-9.
57
Le livre de saint Jacques, I,17,
2003, p.361. O Missal de Vich
também atribui ao cajado a
função de “vencer as armadilhas
do inimigo” (cf. Webb, 2001, p.
47), invertendo o significado da
Árvore junto à qual Adão tinha
sido vencido pela serpente.
58
Continuam úteis as
indicações fornecidas por
Charles Du Fresne Du Cange,
1954, s.v. Esclavina, Galerus,
Pera, Scarcella, Sporta. E
também sua curta dissertação
“De l’escarcelle et dv bovrdon
des pelerins de la Terre Sainte”,
em Histoire de S. Louys, IX
du nom, roi de France, écrite
par Jean de Joinville, 1668, p.
235-238.
59
Le livre de saint Jacques, I,17,
2003, p. 361. Em Compostela,
no século XII, vendiam-se
sacolas de peregrinos feitas de
pele de cervo, o que devido
ao caráter cristológico que se
atribuía a esse animal acentuava
o simbolismo do objeto.
60
Platelle, 1975; Girault, 2001,
p. 292; Bormolini, 2003.
61
62
Constable, 1979, p. 125-146.
63
Dupront, 1987, p. 411.
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
69
Hilário Franco Jr.
Não por acaso a revolta
camponesa de 1358 ficou
conhecida por Jacquerie, a
expressão francesa faire le
Jacques significa “bancar o
idiota”, a peça de vestuário que
chamamos de jaqueta referia-se
na origem à roupa dominical
da gente do campo (jaquette é
palavra de 1375), diminutivos
do nome designam pequenos
animais (jacquet em certas
regiões é “esquilo”, jacquot um
pássaro). Ainda hoje o número
de famílias que têm esse
sobrenome (e derivações como
Jacob, Jacquot, Jamet, etc.) é
expressivo, cf. levantamento de
Moreau, 1991.
64
Respectivamente, Dupront,
1974, p. 247; Raphaël, 1973,
p. 20; Turner, 1978, p. 34-35;
Franco Jr., 2010.
65
Dupront, 1987, p. 406.
Também no mundo
muçulmano a peregrinação
afirma a existência da
comunidade, Umma, na qual
todos são iguais diante de
Deus, cf. Wensinck, 1991, vol.
III, p. 38.
66
70
gente simples descobrisse imagens da Virgem (como em Guadalupe ou
Aparecida do Norte) ou que crianças tivessem visões dela (caso em Lourdes
e Fátima).
O fato de muitos dos locais de peregrinação terem sido revelados por
meio de milagre a laicos, não a monges ou eclesiásticos, expressa bem, desde
sua origem, o caráter de subversão da ordem social que instaura a peregrinação.
Percorrer a rota dos santos coloca de certa forma o fiel em contato com o
sagrado sem, excepcionalmente, a intermediação sacerdotal. Se as condições
jurídicas e materiais dos camponeses medievais frequentemente impediam
peregrinações mais longas, o desejo de fazê-las restava intacto. No território
da atual França, cruzada por rotas que se dirigiam a Compostela, por séculos
o nome preferido que os trabalhadores rurais davam a seus filhos lembrava
sua ligação com o apóstolo daquela cidade – Jacques64. Se o conjunto de
peregrinos de diversas origens e condições constitui-se numa communitas
é por ter como res communis a possibilidade de uma communicatio (tanto
no sentido de comunicação quanto de comunhão) direta com Deus. A
organização das rotas, a institucionalização dos ritos, o reconhecimento
eclesial do culto funcionaram, nesse sentido, como tentativa da sociedade
hierárquica restaurar sua ordem reabsorvendo a marginalidade peregrina.
Naquela comunidade o senso de identidade é, em graus variados,
mais importante que o de alteridade. Na estrada, no santuário, diante da
relíquia, implorando pelo milagre, os peregrinos são todos suplicantes,
todos pecadores, todos cristãos. Dupront considera a massa peregrina
una, pois nela se fundem indivíduos de todas idades, sexos ou condições
sociais. É uma comunidade efêmera porém homogênea, completa Freddy
Raphaël, porque fundada num mesmo projeto e num mesmo desejo. É por
ser “um ato de vontade, não um mecanismo social obrigatório para marcar
a transição de um indivíduo ou grupo de um estado ou status a outro dentro
da esfera mundana”, que Victor e Edith Turner consideram a peregrinação
um fenômeno “liminóide” (liminoid). Ou seja, a peregrinação cristã deve
ser entendida na confluência da sua característica cultural com sua função
social. Dito de outra forma, a análise da peregrinação escapa da oposição
simplista entre cultura erudita e cultura popular, para ganhar sentido no
âmbito daquilo que chamamos de cultura intermediária65.
Não se trata de negar a manifestação de tensões entre grupos na
condução do culto, e sim de enfatizar que as posições sociais não são
estáticas no cristianismo medieval, no qual é extremamente poderosa a
noção de ecclesia, que significa tanto “comunidade” (o conjunto de fiéis)
como “hierarquia” (a instituição eclesial). Posições estas que durante
a peregrinação tendem a se definir mais em termos da solidariedade da
communitas que da hierarquia da estrutura, para falar nos termos dos Turner.
Foi a essa conclusão que chegou também, ainda que por outros caminhos,
Alphonse Dupront, para quem “na sociedade peregrina não há problema
de distinção entre o um e o outro, pois o ato peregrino é essencialmente
fato coletivo. A sociedade criadora da peregrinação é, com efeito, a massa,
sendo essa entendida de um ponto de vista orgânico, muito mais que
quantitativo”66. Tal constatação reforça a condição da peregrinação como
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
rito, prática cultural que justamente por ser simbólica é necessariamente
coletiva, mesmo quando em certos casos na aparência diz respeito a um ou
a poucos indivíduos isolados (batismo, casamento, sepultamento).
A relativa igualdade existente na sociedade celeste reflete-se na
comunidade peregrina e estimula seu senso de fraternidade, solidariedade,
hospitalidade. Os textos insistem que quem hospeda peregrinos de graça
recebe a graça, segundo a noção de hospes tamquam Christus, fulcral para
a caridade cristã. É significativo que em latim hospes seja conceito bipolar,
designando tanto a pessoa que dá como a que recebe hospitalitas. É
igualmente expressivo que nessa segunda acepção hospes seja “estrangeiro”,
portanto termo próximo a peregrinus. Assim, é coerente que os viajantes
devotos fossem acolhidos graciosamente em locais chamados de hospitalis
ou hospitium. Pela importância deles para a comunidade peregrina, em fins
do século XV o alemão Hermann Künig von Vach indica para seus leitores
mais de uma centena de hospícios no trajeto entre Einsiedeln e Compostela.
Apesar de idealmente gratuita, a hospitalidade oferecida aos peregrinos
poderia ser cobrada, desde que a preço justo. Várias vezes a legislação
espanhola medieval lembra que toda mercadoria vendida a peregrinos deve
ter o mesmo preço, peso e medida daquela vendida a pessoas da região. De
maneira correspondente, o caminhante de Deus deve pautar sua conduta
pelo desprendimento: para o Liber sancti Jacobi aqueles que partem com
ouro e prata, comendo e bebendo muito sem repartir com os pobres, não são
peregrinos, e sim “ladrões e bandidos de Deus”. Quem morre no caminho dos
santos com dinheiro “está excluído do reino dos verdadeiros peregrinos”67.
Embora na Idade Média, no plano concreto, a via peregrinationis propicie
ocasiões de trapaças, roubos, assaltos, desregramentos sexuais e assassinatos
(como comprovam os muitos casos narrados pelos livros de milagres), no
plano imaginário ela restabelece a situação perdida com o Pecado Original.
A comunidade peregrina medieval é utópica.
Sem dúvida, uma das funções da peregrinação cristã é reforçar laços
de fraternidade e solidariedade interpessoais e intergrupais. Isso ocorre
de duas maneiras. De um lado, a criação de tais laços ao diminuírem ou
suspenderem as barreiras entre os humanos inverte um dos efeitos da Queda
sentidos no Exílio, a criação de oposições entre homem e mulher no par
Adão/Eva e entre irmãos no par Caim/Abel. De outro lado, a proximidade
concreta dos indivíduos, pensada em termos de communitas, faz com que não
se peregrine somente para si, para a própria salvação pessoal. Ao retornar
para casa todo peregrino, percebe Dupront, é memória viva da experiência
sagrada e está carregado de graças que se difundem por toda a sociedade
na qual ele se reintegra. Se na época carolíngia, conforme afirma Albert, a
coletividade peregrina era “profundamente hierarquizada”68, pode-se pensar
que isso refletia o rigorismo veterotestamentário de então, ultrapassado a
partir do século XI pela fraternidade neotestamentária que se impunha nas
novas condições históricas.
Sentimento fraterno forte entre os peregrinos devido à fé comum e
aos riscos vividos juntos, daí se institucionalizar fora do ato peregrinatório
em associações que visavam prolongá-lo – as confratriae. Em 1120 já há
Le livre de saint Jacques, I,17,
2003, p. 363-364.
67
Dupront, 1987, p. 407;
Albert, 1999, p. 17.
68
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
71
Hilário Franco Jr.
­ Historia compostelana, II,15,3,
1988, p. 251, linhas 66-77.
69
Vazquez de Parga, 1993, p.
249.
70
Georges, 1971, p. 113-135;
Sigal, 1985, p. 151-155.
71
A lista de patrocínios das
confrarias da região é fornecida
por Vincent, 1988, p. 301-303.
72
72
menção a uma confraria santiaguista suficientemente importante para que
alguns de seus mebros fossem recebidos pelo papa a quem pediam que a sede
compostelana fosse elevada a arcebispado69. Em território da atual França,
pelo menos desde 1172 existia uma confraria reunindo antigos peregrinos
a Rocamadour, em fins da Idade Média foram comuns as de peregrinos
ao Monte Saint-Michel e, sobretudo, a Compostela. Estas últimas eram
quase duzentas, presentes em cidades de todo tamanho. A maior delas, a de
Paris, contou nos anos 1340 com mais de mil membros70. Cada confraria
reunia sob o patronato de determinado santo pessoas que tendo um elo
comum (profissional, geográfico, caritativo) estabeleciam entre elas aquilo
que os antropólogos chamam de parentesco artificial, e nomeadamente uma
microssociedade de auxílio mútuo. Tanto que em certas regiões alemãs, suíças
e luxemburguesas elas eram chamadas de Brüderschaft, “fraternidade”.
Como toda confraria pretendia prolongar no tempo cotidiano
as funções da peregrinação que estava na sua origem, critérios morais é
que definiam a aceitação e a permanência de seus membros. Prezava-se a
igualdade entre eles, expressada pela admissão de mulheres e pela eleição
daqueles que por certo tempo dirigiriam a confraria. Valorizava-se a
fraternidade, que estava na base de sua existência e constava dos próprios
estatutos, caso da confraria santiaguista de Gand, que em 1497 proclama
ter sido criada “para cultivar o amor fraternal, a amizade e a unidade entre
todas as pessoas boas e devotas”. Na prática, a fraternidade redundava em
obras caritativas para seus membros pobres e doentes, em financiamento de
enterro, missa e serviço religioso periódico em memória de seus membros
defuntos, em hospedagem oferecida aos peregrinos em geral nos hospitais
que mantinham para essa finalidade. Promovia-se a festividade na grande
reunião anual da confraria, no dia do santo patrono, quando ocorria um
concorrido banquete de confraternização e, nos séculos XV-XVI, uma
representação teatral71.
Tomando o caso da Normandia em fins da Idade Média, podemos
pensar que o número de confrarias patrocinadas por cada santo tinha relação
com a existência, importância e proximidade de seus respectivos santuários
peregrinatórios72. Santo Agostinho, talvez o teólogo mais influente na
Europa medieval, mas que não era objeto de peregrinação, foi patrono
de uma única confraria. Inversamente, Fiacre, obscuro santo irlandês
cujas relíquias estavam desde o século VII num mosteiro perto de Meaux,
deu nome a 58 diferentes fraternidades. Na mesma linha, enquanto São
Domingos, fundador da poderosa ordem dos dominicanos, mas sepultado na
Itália, patrocinava somente duas, São Martinho cujas relíquias estavam em
Tours era protetor de 118. O Santo Sepulcro, principal meta dos peregrinos
cristãos, mas longínquo e de acesso difícil para os normandos, tinha na
região apenas duas confrarias, enquanto a Virgem Maria com relíquias e
imagens espalhadas por todo Ocidente patrocinava 371.
A fraternidade peregrina tinha sua maior expressão, talvez, na
suspensão temporária da violência legalizada e sistemática da guerra. Já na
Antiguidade os gregos interrompiam suas guerras em fins de julho para
peregrinarem à ilha de Samotrácia, onde ocorriam então os ritos iniciáticos
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
dos Cabiris, os mais importantes do mundo grego ao lado dos de Elêusis
(que se davam no começo de outubro). Na Europa medieval, desde o século
VIII a monarquia franca impôs uma verdadeira pax peregrinorum, adotada
e ampliada a outras categorias sociais pela Igreja na segunda metade do
século X, a Pax Dei. O desrespeito a ela, diz o cluniacense Raul Glaber,
inaugurou em 1030 uma grave fase de carestia que não poupou ninguém.
Assim, quando se difundiu em 1033 a notícia do restabelecimento da paz,
pessoas de todas as condições sociais, maximi, mediocres ac minimi, foram
tomadas de grande júbilo73.
De fato, a comunidade peregrina é uma comunidade da festa. Ou
seja, em sentido antropológico, centrada em sistemáticas trocas simbólicas
e concretas: no plano espiritual, alegria coletivamente partilhada; no
plano material, contratualismo social e divino que se manifesta em dons e
contradons. Como toda festa, ela se desenrola em espaço-tempo especial,
extraordinário, pois “toda peregrinação se situa num contexto hierofânico”
nota Ries. Sendo toda hierofania um centro que rompe a homogeneidade
do espaço, “toda peregrinação prolonga e reflete o simbolismo do centro do
pensamento mítico”74. Da mesma forma, como a festa comemora (isto é,
lembra e celebra) o tempo sagrado, aquele gerado por um evento primordial
que repercute na vida do homo religiosus, o tempo festivo da peregrinação não
é o tempo cotidiano, profano. É tempo reversível, renovável, que permite
representificar os fatos da origem e desta forma a pureza primordial. Não
é outro o sentido de um milagre bem difundido em diferentes versões: por
volta de 1020 um peregrino falsamente acusado de roubo é enforcado, seu
pai prossegue até Compostela e na volta encontra o filho ainda pendurado,
porém em perfeita saúde, sustentado que tinha sido por Santiago75.
No plano espiritual, a alegria é inerente à peregrinação. Desde o
início a emoção é forte. Letbaldo, peregrino originário de Autun, ora ao
Cristo pedindo que se tivesse de morrer naquele ano, que morresse em
Jerusalém, pois assim “minha alma, salva e cheia de alegria, seguir-te-á até
o Paraíso”, relata um cronista. A rota apresenta sempre dificuldades, mas
muita conversa e canções populares ajudam a passar o tempo e a alegrar a
caminhada. Também para isso surgem em fins da Idade Média insígnias de
peregrinação na forma de apito, como os usados pelos devotos de NotreDame de Boulogne76. Deparar-se com um campo florido onde colher
lavanda, tomilho e alecrim deixa os peregrinos cheios de alegria, descreve
uma canção de gesta77. Um fato simples como encontrar o caminho correto
também é motivo de alegria, daí porque os pequenos montículos de pedra
que servem de sinalização para os peregrinos medievais são chamados de
montjoies. O mesmo nome, em diferentes línguas, recebem colinas que
permitem avistar a meta da viagem, por exemplo Nebi Samwil ( Jerusalém),
Montgauzy (Le Puy), Monte del Gozo (Compostela). Chegados ao destino,
estes últimos peregrinos se regozijam “nas festas sagradas do excelente
apóstolo Santiago”, oferecendo-lhe “com alegria” seus louvores. A noite
de vigília é passada por esses peregrinos no interior da catedral tocando
cítara, lira, tambor, flauta, trompeta, harpa e outros instrumentos musicais,
enquanto se salmodia, canta, conversa78.
Cronache, IV,IV,10, 1998, p.
214; IV,V,14, p. 222.
73
­74 Ries, 1987, p. 39-40.
Le livre de saint Jacques, II,5,
2003, p. 478-479; Cesário
de Heisterbach, Dialogus
miraculorum, VIII,58, 1851,
vol. II, p. 130-131; Vicente de
Beauvais, Speculum historiale,
XXVI,33, 1965, p. 1066; Jacopo
de Varazze, Legenda áurea.
Vidas de santos, 94,5, 2003, p.
566.
75
Peças nº86 a 91 do catálogo
de Bruna, 1996, p. 89-91.
76
Glaber, Cronache, IV,18,
1998, p.228-230, linhas 27-28;
Canso dels pelegrins de San Jac,
e.7, vv.3-4, 1980, p. 89.
77
Le livre de saint Jacques, I,17,
2003, p. 377-378 e 357.
78
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
73
Hilário Franco Jr.
Liber miraculorum sancti
Egidii, III, 2007, p. 48-49;
XVIII, p. 132-133; XXII, p.
156-157; XXIV, p. 180-181 e
XXVI, p. 190-191; XXVII, p.
194-195.
79
Bloch, 1973, p. 116-117;
Rousset, 1959, p. 53-67; Nagy,
2000.
80
Liber miraculorum sancti
Egidii, XX, 2007, p. 140-141;
Inventio S. Eligii anno 1183 et
miracula, 6, 1890, p. 428; Jean
Renart, 1974, p. 210.
81
Respectivamente, Vita
Geraldi, IV, 8; Chronicon, 1999,
p. 169, linhas 52-55; Historia
dedicationis ecclesiae S. Remigii,
12, 1701, vol.VI-1, p. 718;
Libellus de consecratione ecclesiae;
Le livre de saint Jacques, I,17,
2003, p. 365; Miraculis Sancte
Marie de Rupe Amatoris, II,25,
1996, p. 216-219; Epistolarum
sive registrum, X,75.
82
Godefroy, 1883, vol. II, p.
295. Note-se que na mesma
época coquillard nomeava
o bandido que fingia ser
peregrino compostelano
para roubar os verdadeiros
peregrinos.
83
74
O trajeto de volta dos peregrinos também se dá cum gaudio, afirma o
hagiógrafo de Saint-Gilles. A alegria deles pode se dever à saúde recuperada
no santuário, à visão onírica do santo, à libertação da prisão graças à
intervenção dele ou simplesmente ao fato de ouvir o relato de milagres,
registra a mesma fonte79. Sabendo-se que os homens medievais eram
bastante emotivos80, não surpreende que sua intensa alegria explodisse em
lágrimas ao entrar no santuário depois de muitos dias de rota sonhando
com aquele momento. Um grupo inteiro de peregrinos chorou ao entrar na
cripta de Saint-Gilles e se aproximar das relíquias do santo. Na abadia de
Saint-Éloi de Noyon, em 1183, ao presenciarem um milagre os peregrinos
passaram de “grande alegria” a “uma torrente de lágrimas”. Diante do altar
da igreja de Saint-Gilles, um peregrino “plore du cuer et des iex” (chora no
coração e nos olhos), segundo a bela fórmula de um poeta bem no começo
do século XIII81. Reintegrados na sociedade, os peregrinos prolongavam
a alegria da experiência ad sanctos por meio da festa realizada pelo menos
anualmente por cada confraria.
Bem entendido, a alegria festiva da peregrinação não a imunizava da
violência que sempre acompanha o sagrado. Por exemplo, o abade Odo de
Cluny relata o caso da relíquia que se transportada a cavalo mata o animal
pelo poder de sua virtus. O cronista Ademar Chabannes informa que em
1018, na ânsia de se aproximar das relíquias, mais de cinquenta peregrinos
morreram pisoteados na igreja Saint-Martial de Limoges. Em 1049 havia
tanta gente para venerar as relíquias de São Remígio quando da consagração
de sua nova igreja, em Reims, que algumas pessoas faleceram esmagadas e
sufocadas. Em fins do mesmo século, a afluência de fiéis era tal nos dias de
festas na basílica de Saint-Denis que muitas mulheres foram mortalmente
asfixiadas pela multidão. No sermão Veneranda dies, de começo do século
XII, o papa conta como na basílica de Saint-Gilles o desejo de estar o mais
próximo possível do santo provocou briga entre franceses e bascos e ocasionou
a morte de dois peregrinos. Multidões iam à igreja de Rocamadour, mas fora
das atividades piedosas evitava-se uma grande proximidade (verentes nimiam
vicinitatem procul), diz um texto do século XII, pois a Virgem poderia se
ofender e jogar os incautos precipício abaixo. Em 1207 o papa Inocêncio III
precisou autorizar um ritual de purificação da catedral compostelana devido
aos homicídios que tinham acontecido no seu interior82.
O clima de festividade religiosa da peregrinação medieval tampouco
estava isento de certa festividade profana inevitável em agrupamentos
humanos amplos e heterogêneos. É o que mostra a palavra que se adotou
nos séculos XV-XVI para designar uma personagem cada vez mais frequente
na época, a mulher que fingia ser peregrina e enganava o marido nas rotas
dos santuários – coquillarde83. O termo vinha de coquille, “concha”, cujo duplo
entendimento permitiu a construção do novo significado: de um lado, aquele
objeto era insígnia dos peregrinos santiaguistas; de outro, a palavra tinha
a acepção vulgar de “vagina” por seu formato e por ser antigo símbolo de
Afrodite, deusa do amor nascida de uma concha de acordo com certa versão
mítica e personagem bem conhecida por trair seu marido tanto com outros
deuses quanto com mortais.
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
A utopia que não está no fim da viagem: a peregrinação medieval
No plano material, não é por acaso que toda peregrinação reúne
multidões e coincide com o calendário de feiras e de exuberância que as
acompanha. Esses traços “testemunham a complexidade da peregrinação e
fazem dela, para os grupos humanos que a vivem, uma busca ávida, exigente,
de festa total”, julga Dupront84. É isso que revela o Canso dels pelegrins de
San Jac ao contar a prece dirigida por peregrinos de Aurillac ao chegarem
à cidade do apóstolo: “Oh Santiago,/ proteja os peregrinos do pecado/ e
dê-lhes queijo e trigo/ para que consigam muito dinheiro”85. Entretanto a
melhor expressão desse sentimento é o país de Cocanha, descrito por vários
textos e imagens a partir de meados do XII. A primeira versão conhecida,
do norte francês, trata inegavelmente de uma peregrinação, primeiro
a Roma, depois, por ordem do papa, a um país maravilhosamente rico,
livre, igualitário. Bem entendido, essa peregrinação penitencial – na versão
irlandesa de fins do século XIII ou começo do seguinte, o indivíduo deve
preliminarmente ficar sete anos “mergulhado até o pescoço” em excremento
de porco (swineis drite)86 – é paródica. Ela subverte o modelo e quer se
perenizar, ultrapassar a condição efêmera de toda comunidade peregrina. O
protagonista do poema abandona aquele local perfeito apenas para tentar, a
seguir, nele incluir mais pessoas: “meus amigos eu queria / para aquela terra
levar”. Contudo ele é depois obrigado a reconhecer que “o caminho que
seguira, / nem a trilha, nem a estrada, / jamais pude encontrar”87. Como
aconteceria quase 400 anos depois com Rafael Hytlodeu, cujo criador
possivelmente conhecia The Land of Cockaygne88.
*
Toda migração tem sentido utópico, busca superar as lacunas
do presente no futuro, corrigir as imperfeições do aqui no alhures. Em
civilizações valorizadoras das relações com o mundo divino é em direção a
este que se dá a migração por excelência, a peregrinação. Como “todo rito
corresponde a uma representação religiosa”89, no caso da Europa medieval
cristã a peregrinação é metáfora do Exílio que coloca o homem diante das
dificuldades inerentes à vida terrena, mas também lhe propicia oportunidade
de resgatar, mesmo que passageiramente, algumas condições edênicas. O
pedido do peregrino à Virgem “de nos gitar en Paradis / E donar gracia de
peatge/ Per fayre be lo sant viatge”90 parece ter duplo sentido. Um, futuro, de
ser colocado naquele local sem qualquer restrição (peatge, “pedágio”). Outro,
presente, que identifica o local perfeito (Paradis) com a rota peregrinatória
(sant viatge). Se a comunidade peregrina é impulsionada pela “esperança de
um estado melhor, seja ele de corpo seja de alma”91, é porque a peregrinação
exercia a função de exutório utópico diante da distopia de uma sociedade
pecadora, injusta, desigual, egoísta, triste.
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o processo peregrinatório
medieval não se concluía ad limina, no santuário buscado. Não era este a
terra prometida do peregrino, era o caminho, não em si mesmo, enquanto
realidade geográfica, e sim na modalidade de vida ali estabelecida. Se vários
peregrinos medievais sonharam morrer ad sanctos – para muitos desde a Alta
84
Dupront, 1987, p. 408.
O San Jacz,/ Guarda pelegrins
de peccatz/ E dona lei formatge
e blada/ Per poder far molt
pogezada [moeda de Puy], e.14,
1980, p. 90.
85
The land of Cokaygne, vv.179181, 1904, p. 150, transcrito,
traduzido e analisado por
Franco Jr., 1998, p. 165-195.
86
Le fabliau de Cocagne, vv.171172 e 175-177, ed. Vëiko
Väänänen, Neuphilologische
Mitteilungen (Helsinki), 48,
1947, p. 28-29, transcrito e
traduzido por Franco Jr., 1998,
p. 34.
87
88
Surtz, 1979, p. CLXVII.
89
Mauss, 2002, p. 330.
Canso dels pelegrins de San Jac,
e.4, vv.2-4, 1980, p.88.
90
91
Dupront, 1987, p. 409.
MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010
75
Hilário Franco Jr.
Idade Média “ver Roma e morrer” era mais que um provérbio; São Ricardo,
abade de Saint-Vannes, lamentou em 1027 ter retornado da Terra Santa,
queria ter permanecido “em Cristo, ser sepultado Nele”; o duque Guilherme
X da Aquitânia era lembrado pelo fato de ter morrido como peregrino em
Compostela, em 1137, na Sexta-feira Santa92 – não seria também porque
aquilo que tinham conhecido no caminho não era reproduzível na terra de
origem?
A rota peregrinatória era utopia – estando em toda parte, não estava
em “lugar nenhum” – e eutopia, experiência de um “local feliz”.
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1969, p. 991; Suuger, 1964, p.
281. É pertinente a observação
de Dupront de que a pulsão
peregrina inconscientemente
exclui o retorno (1987, p. 373).
92
76
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Hilário Franco Jr.
The utopia which is not at the end of the voyage:
the medieval pilgrimage
Hilário Franco Jr.
Abstract
Even those scholars who overcome the barrier of a stricto sensu
understanding of utopia and accept the existence in medieval Europe of this
form of thinking and social behavior, fail to acknowledge of of its most curious
manifestations – the pilgrimage. In fact, unlike the classic case of the travel which
leads to the discovery of a utopian society, this is, in pilgrimage, the community
itself that is spontaneously constituted for the journey.
Key-words
Travel, pilgrimage, utopia, medieval Europe.
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