Um Natal Branco e Vermelho

Transcrição

Um Natal Branco e Vermelho
Um Natal Branco e Vermelho
Não me recordo do último Natal que passei tranquilamente. Era capaz de ser
demasiado pequeno. Com certeza éramos bem mais do que apenas eu e o Alfred à
mesa.
Ao ligar a televisão soube que este ano não seria diferente. Quem me dera não ter que
o fazer, especialmente neste dia.
“...foi este o cenário de devastação que a polícia de Gotham encontrou nos armazéns
Killinger’s.”, Anunciava o repórter. “Testemunhas relatam o que as câmaras de
vigilância confirmam: um grupo de pais natal que, em vez de presentes, distribuiu
carnificina. Temos connosco um dos sobreviventes, o Sr….”
Tirei o som da televisão. Não preciso de saber mais nada. Para a Batcave.
“Está tudo bem, menino Bruce?”, Interrompeu-me o Alfred.
“Desculpa, Alfred. Parece que vais ter que passar mais uma ceia de Natal sozinho.”
“Não precisa de dizer mais nada. Eu ligo a televisão e sigo-o pelas notícias.”
Detesto ter que deixar o velhote sozinho durante esta noite mas, se não fizer isto,
muitos outros irão passar pelo mesmo.
Havia pelo menos 20 polícias e outros tantos paramédicos a trabalhar nos armazéns
quando lá cheguei.
“De todas as noites do ano, tinham que escolher logo esta.”
“Qual é o ponto de situação?”, Surgi das sombras e perguntei.
“Feliz Natal para ti também.” Estas entradas já perderam o efeito surpresa que um dia
tiveram no Gordon. Sempre fiel ao serviço. É claro que, tal como eu, iria sacrificar a
consoada com a família para lutar pelo bem maior.
“Pelo menos 32 mortos, o dobro dos feridos e outros 30 sequestrados, incluindo o
Mayor e a família.”, Respondeu-me. “Mas continuam a sair macas de lá de dentro. Se
esperares uns segundos, a conta irá certamente aumentar.”
“Posso entrar para dar uma vista de olhos?”
“Não precisas de perguntar. Se te disser que não, vais fazê-lo na mesma.”
Conheces-me demasiado bem.
O que vi nas notícias não fez jus ao cenário instalado: um centro comercial coberto de
gelo manchado por sangue. A primeira parte é fácil de explicar - só existe uma pessoa
em toda a cidade com tecnologia capaz de criar um cenário gelado: Victor Fries. Já o
sangue, bem como os mortos confirmados, não consigo entender. O Fries raramente é
um sanguinário, preferindo congelar as suas vítimas. O que se passou para ter
mudado de modus operandi?
Mudei a frequência do sonar térmico do computador de pulso para -20º C. Gotham é
fria mas não tão fria quanto o nosso “caro” Mr. Freeze. Encontrá-lo, mesmo numa
cidade deste tamanho, será uma questão de tempo.
O “Bat” há algum tempo que não saía da cave mas por ar é a melhor forma de cobrir o
máximo de terreno possível. O sonar começou a apitar descontroladamente ao passar
perto das docas. Pode ser apenas um armazém de peixe congelado mas a luz a sair
das claraboias despertaram-me a curiosidade, especialmente durante a véspera de
Natal. Decidi aterrar para dar uma vista de olhos.
Ao espreitar pelo vidro não vi sinal do Fries mas nem por isso fiquei desiludido: o
armazém estava fortemente guardado por um grupo de mascarados, com um barrete
de Pai Natal e um sorriso vermelho pintado.
Ao que tudo indica, o Freeze e o Joker decidiram passar a véspera de Natal juntos.
Capturá-los no mesmo local seria um presente demasiado generoso e eu não me
portei assim tão bem durante o ano.
Removi a claraboia com cuidado, prendi o cabo e desci sobre o único dos capangas
que se encontrava sozinho. Derrubei-o sem grandes dificuldades, encostei-me a um
dos contentores e liguei o scanner térmico. Estão pelo menos mais três nas
redondezas, cada um a guardar um contentor com aquilo que devem ser reféns do
ataque ao Killinger’s. Não vai ser fácil livrar-me de cada um deles sem que os outros
deem conta e descarreguem as armas sobre os reféns.
Decidi criar uma distracção de forma a afastá-los dos contentores com os reféns. Tirei
alguma C4 do cinto de utilidades e coloquei-a junto a um contentor com lixo industrial,
no lado oposto do armazém. Premi o detonador. Um monte de lixo e um fedor nojento
espalharam-se pela sala.
“Que raio…?”, Ouvi um dos guardas a dizer. Retirou um walkie talkie do bolso e falou.
“Chefe! O que foi isto?! Entendido. Ok. Nós esperamos aqui.”
Nada feito. Continuam inamovíveis. Tenho que pensar noutra coisa...
“Mas o que é que se passa aqui, seus palhaços?!”, Uma voz feminina ecoou pela sala.
O meu raciocínio foi interrompido pela entrada de um par invulgar: Freeze, como
esperava, e…Harley?! Que raio está ela a fazer aqui?
“Andam a dormir no serviço? Acordem porque ainda é cedo e hoje é véspera de Natal!
Temos que esperar pela chegada do Pai Natal, lembram-se?”, Continuou. O meu
cérebro ainda não se tinha adaptado ao que os meus olhos estavam a ver.
“Vou ver o que se passa.”, Disse o Freeze, tomando a iniciativa e dirigindo-se até ao
local da explosão. Fui sorrateiramente atrás dele.
“Victor!”, Sussurrei ao chegar.
“Ah!”. Ao contrário do Gordon, este até salta assim que me ouve.
“Que raio estás a fazer com a Harley e o que se passou nos armazéns Killinger? Já
não te basta congelar, tens também que matar?”, Questionei-o.
“Não matei ninguém, morcego.”
“Só me respondeste a metade da questão.”, Insisti.
“Não irias perceber a presença da Harley, morcego. Não sabes o que é estar
apaixonado.”
Com esta não contava.
“Finalmente ultrapassaste a Nora, é isso?”
“Cala-te!”, Gritou. Acho que isto significa que não.
“Está tudo bem por aí, senhor Freeze?”, Gritou a Harley do outro lado da sala.
“Não sei que arranjinho têm aqui mas isto termina agora, Victor.”, Disse.
Como previ, ele tentou apontar o canhão de gelo na minha direcção mas atirei-lhe um
Batarang com disrupção electrónica que depressa fez o seu serviço. Caiu redondo e
amarrei-o com o cabo. Deve ficar a dormir pelo menos durante umas horas.
“Freeze! Responde-me, Freeze!”, Insistia a Harley. “Porque não respondes, cabeça de
iceberg?! Argh!!!”, Gritou. Parecia irritada. “Não saiam daqui.”, Disse aos guardas.
“Vou ver que raio se passa com aquele cubo de gelo.”
Escondi o corpo inanimado do Freeze, deixando apenas o raio de gelo ao lado do
contentor de lixo, que continuava a arder e a cheirar mal. Regressei às sombras
segundos antes da Harley lá chegar” e dar com a arma de gelo.
“Freeze, perdeste o teu brinquedo? Que raio se passa aqui?! O Sr. Joker bem me
avisou para te ter sempre debaixo de olho porque não eras de confiança…”
“Olá, Harley.”, Interrompi.
“Bats! Não, não, não! Não vais arruinar o nosso Natal!”. Disparou sobre mim mas
desviei-me sem problemas. Agarrei-a e tirei-lhe a arma das mãos.
“Acabou-se a brincadeira. Diz aos teus capangas para largarem as armas e libertarem
os reféns. A polícia de Gotham está a caminho.”, Menti. A última coisa que quero é
que a chegada da polícia os deixe em pânico e lhes dê um motivo para desatarem a
disparar sobre os reféns.
“Como queiras.”
Levei-a com as mãos atrás das costas até aos contentores com os reféns. Os guardas
não ficaram contentes por me ver e prontamente levantaram as armas na minha
direcção.
“Oi!”, Disse a Harley. “Querem que este maníaco acabe comigo?! Baixem as armas e
libertem os reféns.”
“Não foram essas as ordens que recebemos do Sr. Joker, Miss Harley”, Disse um dos
guardas.
“Estão a ver o Sr. Joker em algum lado? Então se não está por perto, sou eu quem
manda.”
A algum custo, os guardas fizeram o que ela mandou. Um a um, os reféns começaram
a sair dos contentores. O ar desorientado era notório. Não deviam saber onde
estavam nem como tinham vindo cá parar. Com a situação resolvida, enviei uma
mensagem ao Gordon com a localização deste armazém. Pedi-lhe para trazer várias
carrinhas e cobertores. Deixar os reféns morrer de frio depois do que passaram seria
inglório.
Poucos minutos depois, soaram as primeiras sirenes do lado de fora do armazém.
Tudo parecia estar resolvido.
“Argh!”, Gritou um dos reféns.
Falei cedo demais. Um dos reféns agarrou o Mayor pelo pescoço e apontou-lhe uma
arma à cabeça. O dedo no gatilho pertencia a uma cara familiar que não destoava
deste contexto, embora sem a habitual maquilhagem.
“Vejam quem ele é! O pai natal decidiu aparecer mais cedo e estragar a festa, não
foi?”.
Joker.
“Não há leite nem biscoitos para ti, Bats, mas, se te mexeres, arriscas-te a que haja
bastante sangue, AHAHAHAH! No mesmo tom de vermelho usamos para decorar os
armazéns Killinger.”
“Larga a arma, Joker!”, Ordenei.
“Larga essa atitude, Bats! É Natal, tenta entrar no espírito da quadra!”, Respondeu-me.
“Diz ao teu amiguinho lá fora que eu e a Harley vamos sair e que ninguém vai fazer
nada ou irei servir os miolos do Mayor para a vossa ceia de Natal. Como está esse
apetite, uh? Podes ficar com os 4 ou 5 capangas mais o Freeze como prémio de
consolação, Bats. Não me servem de nada.”
Ele não me está a dar grande hipótese de escolha.
“Gordon, tenho aqui mais de 3 reféns, incluindo o Mayor e a respectiva família. Se não
deixarmos o Joker e a Harley saírem, arriscamos ter uma noite de natal vermelha.”
Na cara dele desenhou-se o típico sorriso amarelo e doente de quem conseguiu o que
queria.
“Diz-me só uma coisa.”
“Tudo meu caro amigo morcego.”
“Como convenceste o Victor a juntar-se a ti?”
“Oh Bats…sabes bem que o Victor é um doente cardíaco e eu sou um cardiologista,
AHAH. Apenas lhe disse que um dos meus contactos acidentalmente encontrou uma
cura para o sono criogénico da sua querida Nora. Menti, obviamente. AHAHAHAH!
Aquela mulher será o fim dele. AHAHAHAH!”
O riso doentio ecoou por todo o armazém.
“Conseguiste o que querias, Joker. Viste-me a falar com o Gordon. Larga o Mayor,
pega na Harley e ide à vossa vida. Quem sabe se essa mulher um dia também não
será o teu fim.”
“Ora essa Bats. A minha relação com a Harley é estritamente profissional.”
A cara dela indicava o contrário, num misto de desilusão e frustração. Um segundo
depois, o sorriso tinha regressado. Ambos recuaram até uma das saídas do armazém
e entraram numa carrinha que ali estava estacionada. O Mayor foi com eles, arrastado
e com o cano frio da arma a pressionar-lhe a nuca.
“Adeus Bats.”, Disse o Joker, abrindo a porta da carrinha. “Desejo-te um feliz Natal,
repleto de presentes!” BAM! As palavras foram acompanhadas de um tiro e um jacto
de sangue vindo da cabeça do Mayor. Os meus olhos voaram daí para a sua família. A
mulher e os dois filhos, ambos crianças, choravam desconsolados. Sei bem pelo que
estão a passar.
O Joker e a Harley saíram disparados do armazém e, tal como prometeu, o Gordon
nada fez para os impedir. Sempre a pensar no bem maior.
Abandonei o armazém e deixei que a polícia e os paramédicos tomassem conta da
situação. O Joker e a Harley fugiram, o Freeze vai para Arkham e eu regresso a casa.
O Alfred estava à minha espera quando entrei na cave.
“Como correu a noite, menino Bruce?”
“Triste Natal, Alfred.”
“Não seja tão duro consigo mesmo. Lembre-se que mais de 30 pessoas vão poder ter
uma ceia de Natal graças a si.”
“Então porque é que sinto que isto foi mais uma derrota?”
“Porque acha que todos os homens se regem pelo mesmo compasso moral, menino
Bruce. Isso não é verdade, especialmente quando estamos a falar do Joker e da
Harley.”
O velhote tinha razão.
“Suba que vou servir-lhe o jantar.”
Tirei o fato e vesti o pijama, a roupa oficial do Natal. Ao regressar à mesa esbocei o
primeiro sorriso da noite. Bacalhau cozido. O meu favorito.
“Desfrute. Sabe que assim só o cozinho uma vez por ano.”
Depois desta noite, não podia pedir melhor presente de Natal.