A Casa Sugimoto

Transcrição

A Casa Sugimoto
A Casa Sugimoto
ARCHITECTURES . Volume 5
Filme de Richard Coans e Stan neuman
Os membros da família Sugimoto construíram um altar para seus ancestrais em uma tumba feita de pedra depois
que a casa queimou em 1864. Os desenhos e detalhes da construção também escaparam às chamas, permitindo
que uma casa idêntica fosse construída quatro anos depois. A casa dos Sugimoto está ainda em pé, no coração de
Kyoto. É a encarnação da família Sugimoto, cuja fortuna se formou com o comércio de tecidos de Kymono.
(pausa retirando painéis)
Em uma casa japona as paredes não são paredes. Não há janelas. Esqueça tudo sobre as regras da arquitetura
ocidental. É impossível de compreender a organização das áreas ou sua hierarquia: os compartimentos são
simplesmente dispostos lado a lado. De fato eles não são todos do mesmo tamanho, mas não há mobiliário para
indicar o seu propósito. Os códigos para decifrar as áreas aqui são radicalmente diferentes. Sem dúvida porque no
Japão o espaço não é definido do mesmo modo que na Europa.
(pausa longa - escrevendo)
Ma. Espaço entre um objeto e o outro. Entre um evento e outro. Um vazio. Um oco. Um espaço em uma casa. Uma
pausa entre duas notas para criar um ritmo.
(corta para fachada)
A única fachada voltada para a rua, com trinta metros de extensão, é um sinal exterior de prosperidade e riqueza. É
uma série de construções alinhadas que variam em altura e aparência. No pavimento superior há sótãos com
diversas seteiras na fachada, conhecidas aqui como insect-box windows [janelas caixa-de-insetos].
Nenhuma Janela. Revestimento em madeira. Paredes de papel, adobe e madeira. Uma sucessão de filtros que
tornam impossível ver o interior. Indicando a entrada há uma espécie de estandarte de pano trazendo o ideograma
que representa a árvore simbólica da família, o “sugi” [sugui]. Para acessar a casa deve-se primeiro passar pela
antiga loja, onde o preço de atacado dos tecidos era negociado. Dois espaços opostos um ao outro definem o
corredor de entrada.
(pausa curta – corta para o pátio)
A loja próxima à rua e o primeiro pátio constituem uma zona de absorção, separando a rua dos espaços de morar.
(pausa longa - aspirando)
A casa é dividida em duas grandes áreas. Em um lado estão os espaços de recepção, no outro, os espaços habitados
pela família. Esta não é apenas uma diferença de uso. É um primeiro código.
No lado leste fica o ke, que designa os aposentos mais comuns: a grande cozinha com o piso formado por grandes
pedras e o espaço adjacente, que pode ser usado como sala de jantar.
No oeste está a outra extremidade, o hare, que designa as áreas especiais: o espaço de receber convidados, o
espaço do chá, ou o altar para dos ancestrais.
(pausa curta – altar)
Esta divisão de usos refere-se a valores espirituais. De acordo como Budismo, o demônio vem do lado leste e o
paraíso fica a oeste.
(pausa – som)
Uma passagem separa as funções nobres são das mais prosaicas, o que é incomum para o Japão. Esta fronteira
define um segundo eixo, o eixo de aproximação da casa, que tem o sentido da profundidade, perpendicular ao
primeiro.
Oku. Quanto mais afastado está da rua, em direção ao fundo do terreno, maior é o valor simbólico do lugar.
(pausa longa – fechando no fim do corredor)
Os dois eixos se impõem na organização do espaço. Um vai do leste ao oeste, do ordinário ao sagrado. O outro eixo
torna possível medir a importância dos visitantes. Na loja de tecidos, próxima à rua, ficam os compradores. No
fundo da casa, os hóspedes mais importantes. A implantação da casa no terreno não é simétrica, e ocupa apenas
dois quintos do lote, seguindo a mesma polarização que a planta da casa. No lado nobre e no fundo estão os jardins.
No lado prosaico há depósitos de arroz e madeira, sanitários e o lixo. Estes espaços podem ser acessados sem que
se tenha que atravessar a casa. No fundo do terreno, na porção mais distante da rua, e portanto a mais protegida,
estão as kora. As construções erguidas com grossas paredes de adobe pintadas de branco e com sólidas estruturas
de madeira protegem do fogo e do calor os estoques de tecido, os objetos ritualísticos ou de valor guardados em
casa.
(pausa – corte para vista superior)
Dos altos prédios vizinhos a casa não parece ser uma construção única, mas uma pequena comunidade, uma
coleção de casas menores não relacionadas entre si, separadas por pátios e árvores. A joja, os armazéns, os
depósitos e a habitação somam aproximadamente vinte telhados.
(pausa – telhados)
Yane. Telhado. Cobertura de uma para protegê-la da chuva. A tradução literal dos dois ideogramas é a “raiz da
casa”. A raiz é uma “banheira” [a bath], isto é, a cobertura [the roof]. [Possivelmente uma referência ao fato da
cobertura de um prédio ser semelhante a um barco, uma nave, um casco emborcado sobre a casa.]
(pausa – telhas)
As telhas “invernizadas” e achatadas formam um padrão de ondas e estão dispostas sobre uma impressionante
estrutura de madeira. Verdadeiro design [pure design] feito de grandes vigas.
(pausa longa – estrutura do telhado)
Nenhum prego.
Dizem que era mais rápido desmontar todo o telhado do que buscar água.
Todos glorificam o trabalho de marcenaria em um país onde há nada menos que 40 tipos de encaixes para compor
pilares, vigas e cintas estruturais. No Japão o marceneiro é o equivalente ao arquiteto.
(pausa longa – encaixes – corta para pilar central)
Um dos pilares tem importância simbólica. O Daikoku-Bashira, o emblema da casa. Feito de madeira de Sugui, é um
apoio de doze metros de altura que está encaixado em uma pedra com um buraco no meio que está enterrada no
solo. Esta é a única fundação. O restante da casa está erguido sobre apoios que descansam em pedras achatadas.
Entre o solo e o assoalho há um espaço com a altura equivalente a dois degraus. Um espaço com um sentido
higiênico [sanitary], permitindo ao ar circular e resfriar a casa.
(corta para maquete)
Além dos dois pilares principais que garantem a estabilidade lateral da construção, o restante da estrutura é
simplesmente apoiado sobre o solo. Quando a terra treme, a casa treme, mas não entra em colapso.
(corta para o assoalho)
A altura é também um código. Não se diz “entre”, mas “saia”, [referente à imagem da orientação dos sapatos] e
subir significa ficar sem sapatos. O carteiro não é convidado a tirar os seus sapatos e subir. Ele está sob o telhado,
mas o código indica que ele deve manter-se fora da casa.
(paura – tatami)
Nem tapetes nem assoalho. Achatado e frágil, o tatame é uma peça de cinco centímetros e meio de espessura feita
com palha de arroz comprimida, coberta por uma camada de junco prensado e arrematada por uma borda de
tecido. Suas dimensões são facilmente explicadas, é o tamanho de uma pessoa deitada. Em Kyoto tem 1,9m x
0,95m. Esta é uma unidade de medida. Cada espaço da casa é um múltiplo deste módulo: o quarto de três tatames,
o quarto de seis tatames, ou oito, ou dez, ou doze tatames. Cada múltiplo cria uma nova organização ortogonal,
uma padronagem de piso que identifica cada quarto. Marcada pelas bordas pretas e pelo padrão do junco na
superfície, a justaposição dos tatames cria um pano de fundo para o jogo de luz e sombra.
A separação entre os espaços não se dá por paredes ou janelas, mas por ranhuras no piso, pilares e ranhuras nas
vigas.
(pausa)
A estrutura permanente da casa é um grande esqueleto de madeira pronto pra receber painéis removíveis e
deslizantes. Os espaços são dispostos lado ao lado, sem corredores os separando. Como aponta o arquiteto japonês
Inoue Mitsuo, “a casa é uma série de espaços vazios conectados uns aos outros”.
(pausa)
Painéis vazados de madeira cobertos com papel translúcido, o shoji, separam o interior do exterior da casa. Painéis
inteiriços de madeira, cobertos por papel opaco, fussuma, dividem os espaços. No verão, painéis de junco prensado,
os sudore, substituem os painéis de papel de arroz.
Estes elementos de separação leve são uma invenção da necessidade. No caso de terremotos, eles não causam
estragos. No caso de fogo, há pouco para queimar.
No entanto, são divisórias de grande carga simbólica. Eles não providenciam nenhuma proteção contra o frio, ruídos
ou odores. Parecem imateriais. Inseridos entre pilares de madeira, eles não suportam nenhuma carga. Apenas as
raras paredes de adobe, uma mistura de terra e palha, remetem à origem rústica dos materiais: palha de arroz,
junco, terra e madeira.
(pausa)
No Japão, um espaço só se torna habitável quando um objeto funcional é posto ali, como uma almofada ou um
objeto de decoração, como uma pintura.
(pausa)
Flexibilidade total. Codificada pelo objeto, a função de um aposento desaparece quando sua mesa e vaso são
removidos. O espaço aguarda, sem qualificação. É o vazio.
(pausa)
Como a luz pode penetrar esta justaposição de espaços? Os filtros de papel são translúcidos. A luz passa, mas não a
visão. Mas aqui é a própria lógica da pergunta que deve ser invertida. Aqui é a sobra que tem o valor e que deve ser
manejada.
(Pausa)
A planta mostra poços de luz, recessos, vazios, como o jardim seco, próximo ao altar dos ancestrais. Mas toda a casa
é uma ilustração do claro-escuro. Uma ode à meia-luz.
(pausa – ideograma)
Oku. Algum lugar profundo, o mais longe possível da rua, na parte de trás da casa, onde moram as pessoas mais
importantes.
Dependendo da distância em relação à rua, a área muda sua natureza. Cada espaço transposto, cada painel que é
aberto e depois fechado marca uma progressão. Trata-se de uma escala de valores para aposentos que são quase
indiscerníveis um do outro. É também um sinal da importância dada à pessoa que acessa cada aposento.
No fundo fica o grande espaço, o maior da casa, doze tatames. Ele era reservado às pessoas de mais alta
importância, os monges do templo. O espaço permite a contemplação do jardim. É o ponto final da progressão,
uma espécie derradeira recompensa.
(pausa – jardim)
O jardim é a natureza dominada, mantida com sofisticação. É de fato uma composição. Musgos de cem anos de
idade, árvores, grandes pedras achatadas marcando o caminho, uma lamparina e uma urna de pedra.
O jardim é protegido por uma paliçada de junco trançado e bambu. Esta é uma área privada para meditação. A
proximidade com a natureza encoraja o diálogo permanente que o homem deve travar com o fluxo do mundo.
(pausa – varanda)
A varanda, egawa, é o lugar devotado a esta contemplação. Um longo assoalho de madeira que separa o espaço de
recepção do jardim. Um espaço coberto, ao mesmo tempo dentro e fora da casa. Um limiar entre edifício e
natureza. Um espaço entre. Uma das maneiras mediante as quais a casa estabelece um diálogo com o seu entorno.
Neste diálogo, se destaca ama padronagem de linhas cruzadas: alternam fino e grosso, opaco e translúcido. É a
invenção de um sistema de finas linhas que “hachura” a visão do exterior. Estas variações infinitas feitas de madeira
e papel se sobrepõem para permitir ver sem que se seja visto.
(corta para sala ocidental)
No meio desta arquitetura flexível e fluída há uma excepcionalidade. Uma quarto fechado com paredes e portas: a
sala “ocidental”, construído em 1929, o único cujos painéis não deslizam. O espaço é entupido com mobiliário
moderno. Há até mesmo um piano, um sinal de elevado status social. Uma imitação do ocidente que soa como uma
pobre contrapartida para tudo aquilo que a arquitetura tradicional do Japão apresentou à arquitetura mundial no
último século.
(corta para contexto urbano)
Desde que foi construída em 1743, a Casa Sugimoto sobreviveu ao fogo, terremotos, guerra e, mais recentemente,
à especulação imobiliária. Hoje ela faz parte do patrimônio cultural de Kyoto, um lugar para se visitar, onde as
pessoas vem conhecer a cerimônia do chá ou observar os rituais ligados ao grande templo Nishi Honganji, uma
honra proporcionada pelos membros da família Sugimoto que ainda vivem ali.
Independente do tanto que semeou na cultura arquitetônica contemporânea, esta casa é, em todos o sentidos da
palavra, tradição. É um estilo de vida e um lugar de meditação.
© 2000-2005 – ARTE FRANCE – Les Films d’ici – Le Centre George Pompidou
* Tradução: Pedro Engel

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