¿CAMBIAMOS?
Transcrição
¿CAMBIAMOS?
¿CAMBIAMOS? Frei Fabiano Aguilar Satler, ofm "É ilusão. Ninguém muda." Curtas e decididas, as duas frases foram lançadas à mesa da refeição. O tom imperativo daquele que nos servia essa suposta verdade causou-me uma tristeza momentânea. Fiquei parado, absorto, feito criança diante de prato que não lhe agrada aos olhos: revira-lhe o conteúdo desconfiada, sem no entanto levá-lo à boca. Assim me pareceu aquele juízo proferido à mesa de refeições: prato indigesto e quente. E as crianças sabem que prato quente começa a ser comido pela borda. Uma das memórias singelas dos meus tempos de infância, criança ainda na escola pública do interior, era a merenda servida no intervalo das aulas. Feijão com carne de sol dava ao dia, fosse lá qual fosse, ares de domingo: comida especial. O leite quente com bolachas alegrava-me pela metade, pois leite quente é, até hoje, coisa que não me agrada. A merenda mais comum, porém, era a sopa de farinha de milho, temperada com couve ou com um e outro pedaço de carne, quando havia. À distância, pergunto-me o que tornava aquelas sopas tão saborosas. Talvez a paciência e a dedicação das "tias" da cantina que nos preparavam a merenda. Carinho e gratuidade, amor e paciência são temperos importantes no preparo de qualquer prato. Assistam ao filme "A Festa de Babete". Está tudo lá. Comer aquelas sopas quentes de farinha de milho era um verdadeiro ritual aprendido à custa de muita língua queimada. Não atacávamos diretamente o centro do prato. Começávamos pelas bordas. Enquanto a boca soprava a beirada do prato para arrefecê-lo, uma das mãos rodava o prato, enquanto a outra levava as colheradas de sopa à boca. A velocidade da rotação do prato e a freqüência com que as colheradas de sopa eram levadas à boca eram ditadas pela pressa em acabar logo e poder ir brincar, ou então, pelo desejo de repetir o prato de sopa, quando houvesse mais. O olhar dividia-se entre o prato à frente e espreitar a fila para poder repetir. Coisas de criança que nos causam um riso gratuito quando afloram em nossa memória. Mas, voltemos ao nosso prato principal: não mudamos. Ele ainda está aqui à minha frente, à espera de ser digerido. Comecemos pelas bordas. Peço auxílio a Mercedes Sosa. A música e a poesia têm sempre o poder bom poder, diga-se de passagem - de trazer à tona verdades que carregamos escondidas em nós. Algumas músicas e poesias são profundamente regionais: enraízam-se no jeito de ver e viver a vida de um povo. Mas é justamente isso que possibilita que determinadas expressões de arte se tornem universais, que possam dizer algo a pessoas alheias àquela cultura. Quanto mais enraizada, mais universal é determinada expressão artística. Assim é a música da Mercedes Sosa: regional, latino-americana. E é ela quem canta que na vida tudo muda, tudo cambia: Cambia lo superficial Cambia también lo profundo Cambia el modo de pensar Cambia todo en este mundo. E percebendo a constante mudança de toda a realidade à sua volta, do sol em sua carreira pelo céu, da planta que se veste de roupas novas em cada Primavera, do cabelo do ancião, do clima com o passar dos anos, do brilho do brilhante, do sentir dos amantes, ela constata feliz: Y así como todo cambia, Que yo cambie no es extraño. Y lo que cambió ayer Tendrá que cambiar mañana Así como cambio yo En esta tierra lejana. Teilhard de Chardin, grande cientista e místico cristão, foi uma pessoa apaixonada por toda a obra da criação. Os místicos são assim: a despeito de toda realidade conflituosa visível, eles são pessoas apaixonadas. Mais do que uma páscoa, eles vivem num constante advento: vivem grávidos de esperanças. Esperança que brota de um olhar que transcende a aparente inocência da realidade à nossa volta. É a síndrome de Habacuc: teimosia. O profeta Habacuc dizia que, ainda que a figueira não florescesse, ainda que a vinha não desse fruto, ainda que não houvesse ovelhas nos apriscos, ainda que os cajueiros não mais dessem fruto, mesmo assim, ele exultaria e alegrar-se-ia no Deus que o salva. Teilhard de Chardin sofria dessa síndrome. Teilhard, a exemplo de Francisco de Assis, foi capaz de perceber a pulsão de vida presente em toda a criação, do átomo ao ser humano pensante-amante. No humano pensanteamante, dizia ele, a matéria atingiu o mais alto grau de sua interioridade. Essa gradual e crescente interiorização da matéria não terminou, é processo aberto ao futuro. Não estamos prontos. Você já parou para pensar nisso? Individual e coletivamente nos transformamos em direção à consumação de nosso destino Trinitário. Nesse caminhar aberto, aparentemente incerto, Teilhard propõe duas imagens para os possíveis caminhos pelos quais a humanidade pode enveredar: o cristal e a célula. O cristal é o símbolo do estático, do fim de caminho, do beco sem saída da evolução, do apagar das luzes. A célula, por sua vez, é o símbolo da transformação, da vida, da evolução contínua, da capacidade de regeneração. Qual desses será o caminho final da humanidade? Ele não responde. Apenas afirma sua serena certeza de que a tudo e a todos atrai para si o Cristo Cósmico, o ponto Ômega para onde converge toda a criação. Jesus falava das mudanças necessárias para a vida no Reino como um nascer de novo. Imediatamente, Nicodemos põe-se a pensar na estranha possibilidade de ver-se encerrado, novamente, no seio de sua mãe. Pobre Nicodemos - pobres de nós - tão custosos em entendermos o alcance e as conseqüências dos gestos e palavras de Jesus. Nascer implica voltar a ser criança, tornar a aprender, aprender de um jeito diferente. O judaísmo ensinava que Deus era assim e assado. Jesus propõe um aprendizado diferente. A pedagogia de Jesus leva a um Deus diferente do judaísmo de seu tempo e de certo cristianismo de nossos dias. A todos Jesus propõe uma mudança. Aos empobrecidos e aos pecadores, Jesus propõe que eles mudem a forma de enxergarem a Deus. Deus não é opressor, mas é misericórdia e acolhimento. Aos opressores, aos fariseus e doutores da lei, que oprimiam o povo através da religião, Jesus pede que eles deixem de oprimir o povo, em nome de Deus. O próprio Jesus precisou enfrentar mudanças ao longo da sua missão. Enquanto ele estava convencido de que o Reino que veio anunciar e inaugurar se destinava, preferencialmente, ao povo judeu, uma mulher cananéia consegue fazê-lo mudar sua concepção do Reino, com uma observação lapidar: também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos. Coisa estranha, o Filho de Deus ter que tomar lições de Reino com uma mulher estrangeira. Não pensem que faço apologia da inconstância. A inconstância é como as ondas do mar junto às pedras. Elas vêm e vão, entrechocam-se, batem ora numa direção, ora noutra. Não há rumo. É o caos. É claro que não nos podemos ver totalmente livres de uma certa inconstância inerente à nossa vida. O nosso humor não é o mesmo do início da manhã ao fim da noite, de domingo a sábado. O Alberto Caeiro reconhece: Nem sempre sou igual no que digo e escrevo. Mudo, mas não mudo muito. A cor das flores não é a mesma ao sol Do que quando uma nuvem passa Ou quando entra a noite E as flores são cor de sombra. Mudar é diferente de ser inconstante. As mudanças em nossa vida são como as águas de um rio. Um rio, antes de ser rio, é um riachozinho despretensioso, sem importância. Um riacho mais outro, mais outro, entretanto, formam um rio caudaloso. Assim é a aritmética das mudanças. Pequenas e imperceptíveis mudanças somadas e já não somos as mesmas águas que deixaram as nascentes. Olhando-nos, percebemos quanta coisa deixamos para trás. O rio, antes de chegar ao seu destino, serpenteia serras, fertiliza terras, alimenta gentes. Rio tem direção e destino: o mar. As mudanças em nossa vida têm destino certo: a consumação final no amor que é Deus e que a todos envolve. São João da Cruz comparava o amor transformador de Deus em nossa vida como fogo na lenha. Quanto mais verde a lenha, mais resistente ela se mostra para que o fogo a possa consumir e transformá-la em brasa, que ilumina e aquece. Mas, uma vez consumida pelo fogo, madeira e fogo tornam-se um. Não mais apenas madeira, não mais apenas fogo, mas uma única chama viva de amor. E assim, faço uma pequena, mas importante concessão. Há algo que, em certo sentido, não muda em nossa vida. E, mais uma vez, quem bem o disse foi Mercedes Sosa: Pero no cambia mi amor Por más lejos que me encuentre Ni el recuerdo, ni el dolor De mi pueblo y de mi gente. É servido?