REVISTA REDAÇÃO

Transcrição

REVISTA REDAÇÃO
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
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DATA: 17/04/2015
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O que experiências em países tolerantes com o uso de drogas têm a
nos mostrar? (LÚCIA SESTOKAS e NATHÁLIA OLIVEIRA)
Confira o levantamento, análise e infográfico feito em 36 países que adotaram políticas de drogas flexíveis, ou seja,
políticas que despenalizaram, descriminalizaram ou legalizaram o uso, o cultivo, a produção e/ou o comércio de
alguma substância psicoativa considerada ilícita (maconha, cocaína, lisérgicos etc)
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DIREITOS relacionados a drogas estão entre os maiores motivos de encarceramento no mundo. Existem cada vez
mais provas de que a declarada guerra às drogas é uma política custosa [1], que falhou em estabelecer um “mundo livre das
drogas”[2], e que serviu e serve para militarizar territórios e justificar iniciativas de caráter intervencionistas e higienistas.
Mas como seria um modelo de política de drogas que não endossa os resultados conhecidos de encarceramento e
genocídio de populações periféricas? No âmbito do projeto Gênero e Drogas, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania,
realizamos um estudo que propõe uma análise dos países que flexibilizaram suas política de drogas nas Américas e na
Europa.
Identificados os 36 países que apresentaram flexibilização, fizemos um segundo levantamento – agora sobre a
evolução do encarceramento em cada um deles, a partir do ano de mudança da legislação até meados de 2014. Foram
encontrados 22 países que aumentaram o número de pessoas encarceradas, com um destaque para o aumento do
encarceramento de mulheres em vários desses países.
Análises locais: particularidades das Américas e Europa
No caso da Europa, dos 21 países que flexibilizaram suas políticas de drogas, 10 apresentaram aumento da população
carcerária geral desde a adoção da nova legislação até os anos 2010. É, contudo, essencial ponderar que em alguns desses
10 países houve diminuição do encarceramento após a flexibilização, mas se observou aumento expressivo do número de
pessoas presas depois da crise econômica de 2008. Esse é o caso de Portugal, em que o número de pessoas presas
diminuiu após a mudança da legislação sobre drogas. Essa diminuição foi mantida por quase uma década: em 2000 eram
12.944 pessoas encarceradas e, em 2010, 11.613.
De forma geral, os países europeus flexibilizaram suas políticas entre as décadas de 1970 e 1990, antes, portanto, do
continente americano. Outra particularidade da Europa é o número muito inferior de países com superpopulação carcerária,
bem como de pessoas em prisão provisória, quando comparada com a América Latina.
Já nas Américas, dos 15 países que flexibilizaram suas políticas de drogas, 13 apresentaram aumento na população
carcerária. Na maioria dos países da América Latina, se nota aumento sistemático do encarceramento, principalmente após
a mudança da legislação de drogas, com recorrência de superpopulação carcerária e elevado número de pessoas em prisão
provisória. Esses dados demonstram uma grande fragilidade no direito básico de acesso à Justiça em quase todos os países
estudados, o que pode ter relação direta com a idade das democracias latino-americanas, uma vez que em quase todos
esses países ditaduras avançaram pela segunda metade do século XX.
Além disso, na grande maioria dos países americanos, houve aumento do percentual de mulheres presas por delitos
relacionados a drogas. Para analisar esse dado, é necessário levar em consideração o perfil da mulher em situação de
cárcere, que, no caso da América Latina, é predominantemente de mães, provedoras do lar, rés primárias e processadas por
crimes sem violência[4] – um perfil que o ITTC identifica desde a sua primeira investigação no cárcere, em 1997.
Considerações a partir desse levantamento
A partir dos dados sistematizados nesse estudo, foi possível verificar que a adoção de uma política de drogas tolerante
somente com parte dessas condutas não necessariamente tem efeitos de desencarceramento. As 36 legislações estudadas
adotam uma postura de tolerância em relação ao uso de substâncias, porém, existe pouca ou nenhuma regulamentação
sobre sua produção, distribuição e comércio, havendo apenas exceções pontuais como a Holanda, o Uruguai e o Colorado,
nos EUA. O resultado disso é a criminalização de grupos economicamente mais vulneráveis e que historicamente se ocupam
de atividades do mercado informal, como o varejo de drogas. A criminalização do comércio de drogas se mostra uma
escolha política de criminalização do trabalho de uma parte da população.
No Brasil, a política de drogas implementada em 2006 adotou a despenalização da pessoa usuária e, simultaneamente,
o endurecimento das penas para tráfico de drogas e para “associação” ao “crime organizado”, além de criar novas condutas
tipificadas como crime. Na prática, a despenalização da pessoa usuária significa, ainda que ela não vá para a prisão, que ela
continua na malha da justiça criminal. A pessoa pode ser enquadrada e processada por estar fazendo uso de substância
ilícita. De maneira geral, a pessoa enquadrada pela polícia, que vai enfrentar julgamento e cumprir uma pena é a pessoa
usuária pobre, negra e periférica.
Ainda, o endurecimento de penas para “tráfico” resultou em um aumento de 50% da população carcerária total entre
2006 e 2014, com um aumento de 345% das pessoas presas por tráfico de drogas, entre 2005 e 2013. No caso das
mulheres o percentual fica ainda mais gritante: o aumento do encarceramento feminino foi de 84,5% e, em 2014, cerca de
60,3% das mulheres presas respondiam por delitos relacionados a drogas. A experiência do ITTC mostra que as pessoas
que são presas por tráfico entram nesse mercado como um trabalho, para sanar um problema econômico, pontual ou
crônico, pra geração ou complementação de renda.
Esse diagnóstico é ainda mais marcante no caso das mulheres: a mulher pobre e negra tem ainda mais dificuldade de
acesso ao mercado de trabalho formal, assim como mais dificuldade no acesso à estrutura pública. O emprego no comércio
de substâncias permite provisão para a família enquanto mantém uma flexibilidade que possibilita que ela cuide da casa e
dos filhos, ainda responsabilidades atribuídas predominantemente às mulheres.
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Hoje, o Supremo Tribunal Federal está em processo de julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, colocando em
pauta a possibilidade de descriminalização do uso caso seja declarado inconstitucional o artigo 28 da Lei 11.343/06. Ainda
que seja positiva a perspectiva de uma descriminalização do uso, é possível dizer que essa medida pode não ter efeitos
impactantes de desencarceramento, principalmente se direcionada somente para a maconha e se adotada com base em
critérios objetivos de quantidade.
Descriminalizar somente à maconha não aborda a questão da estigmatização de pessoas usuárias de outras drogas. A
manutenção da criminalização do uso de substâncias como o crack, muitas vezes associados a populações mais pobres,
pode significar uma continuidade das dificuldades hoje enfrentadas por essas pessoas no acesso a direitos básicos. Ainda,
adotar critérios objetivos de quantidade para estabelecer essa diferenciação pode significar a criminalização automática de
pessoas, reforçando práticas de exclusão social de quem trabalha na ponta do comércio de drogas [5].
Às vesperas do início Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas (UNGASS), não podemos esperar
encontrar um modelo de política de drogas único, sendo essencial atentar às especificidades locais, que não são levadas em
consideração quando importamos um modelo pronto.
Pensar política de drogas é também falar de Política de Saúde, assistência social, segurança pública, judiciário,
trabalho, raça, gênero, distribuição de renda. As políticas de drogas ainda são pensadas no tripé segurança pública, saúde e
justiça criminal, de maneira desarticulada com as realidades locais. Se entendemos que o varejo de drogas é também uma
maneira de geração de renda, o investimento das políticas públicas deveria focar em políticas sociais de geração de renda e
erradicação de desigualdades. Dedicar, por outro lado, o orçamento em mecanismos de cerceamento de direitos é perpetuar
desigualdades sociais. Hoje, o investimento maciço do Estado em polícia, armas e cadeia serve primordialmente para
perpetuar e aumentar as atrocidades cometidas em nome da guerra ás drogas à parcela mais vulnerável da população.
Ainda que não haja um modelo de política de drogas pronto que seja possível seguir de olhos fechados, já é possível
notar que perpetuar uma política construída com base em dicotomizações entre pessoas usuárias e “traficantes” resulta na
perda de direitos para algum grupo, notadamente para pessoas que trabalham com o varejo de drogas. É necessário
questionar para quem e para quê serve a política de drogas e pensar em propostas que vão além da manutenção do
panorama que a gente já tem hoje: uma guerra às drogas que resulta em políticas militarizantes, higienistas, genocidas e
encarceradoras de populações marginalizadas. A guerra às drogas nada mais é do que mais uma guerra às e aos pobres.
Para mais informações, acessar The alternative World Drug eport:
https://www.unodc.org/documents/ungass2016//Contributions/Civil/Count-the-Costs-Initiative/AWDR-exec-summary.pdf
[2]
Para mais informações, acessar Ending the Drug Wars:http://www.lse.ac.uk/IDEAS/publications/reports/pdf/LSE-IDEAS-DRUGS-REPORTFINAL-WEB.pdf
[3]
Para entender a diferenciação das políticas, ver o Glossário de políticas de drogas:http://ittc.org.br/glossario-tipos-de-politicas-de-drogas/
[4]
Para mais informações, ver também Corina Giacomello:https://drogasenmovimiento.files.wordpress.com/2014/01/13-11-18-women-inprison-for-drug-crimes-in-latin-america-an-invisible-population.pdf
E o relatório Women, Drug Policies and Incarceration
http://www.wola.org/sites/default/files/WOLA%20WOMEN%20FINAL%20ver%2025%2002%201016.pdf
[5]
Para mais informações, acessar Guerra às drogas: heranças e novos paradigmas :
http://jota.uol.com.br/guerra-drogas-herancas-e-novos-paradigmas
[1]
LÚCIA SESTOKAS é Internacionalista e desenvolve o Projeto Gênero e Drogas no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
NATHÁLIA OLIVEIRA é Cientista social, desenvolve o Projeto Gênero e Drogas no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e integra
a Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Abril de 2016.
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Células-tronco não curam tudo (LUCAS VASQUES)
Especialista em Alzheimer, o neurocientista brasileiro, radicado no Canadá, Marco Antonio Prado atua em pesquisas
para descobrir por que as mudanças moleculares e celulares em doenças neurodegenerativas provocam falhas
cognitivas
BRASILEIRO, radicado no Canadá há anos,
o neurocientista, mestre e doutor em Bioquímica
e Imunologia Marco Antonio Prado se dedica a
pesquisas científicas para compreender como e
por que as mudanças moleculares e celulares em
doenças neurodegenerativas causam falhas
cognitivas, especialmente em doenças como o
Alzheimer. Após concluir seu PhD e pósdoutorado em 1994, comandou um laboratório de
pesquisas no Brasil até 2008, quando foi
recrutado como professor titular da Universidade
de Western Ontario e como cientista no Instituto
de Pesquisa Robarts.
Prado foi reconhecido como parceiro do
Guggenheim pela John Simon Guggenheim
Memorial Foundation, em 2004, e recebeu o
Prêmio Acadêmico Faculdade da Universidade de
Western Ontario (2013-2014). Em colaboração
com sua companheira, Vânia Ferreira Prado, ele
tem gerado novos camundongos geneticamente
modificados para formular déficits neuroquímicos
na demência, com foco particular para a doença
de Alzheimer.
Esses
ratos
têm
permitido
novas
descobertas sobre mecanismos de falha
cognitiva, que utilizam tecnologia de ponta para
avaliar a percepção deles. Uma de suas principais
atividades é desenvolver novos tratamentos para
a doença de Alzheimer. Entretanto, outro
interesse do laboratório de Prado é a extensão da
doença de Prion e sua interface com Alzheimer e
acidente vascular cerebral.
Ele recebeu apoio financeiro contínuo por 20
anos, a partir do NI H, CI HR, Associação de
Alzheimer, Brain Canada, Instituto do Cérebro
Weston, CN Pq e outras agências em três países
(Brasil, Estados Unidos e Canadá), e preparou
mais de 30 estudantes de graduação e pós-doutorado, além de ter publicado mais de 130 artigos em revistas científicas de
primeira linha, como Neuron, PLoS Biology, PNAS, J. Neuroscience e FASEB J. O neurocientista conta à Psique quais são as
principais novidades no que se refere à doença de Alzheimer.
O que se sabe até hoje sobre os mecanismos biológicos envolvidos na doença de Alzheimer (DA)?
Prado: Existem inúmeros mecanismos que vêm sendo estudados nos últimos anos. Por exemplo, uma proteína conhecida
como APP, a qual é normalmente metabolizada no nosso organismo em fragmentos menores. Essa proteína pode gerar um
peptídeo (algo como um pedaço da proteína original), que se acumula na doença de Alzheimer. Esse elemento, conhecido
como peptídeo amiloide, aumenta bastante no cérebro de pessoas que apresentam DA . Isso, provavelmente, ocorre devido
a alterações na produção ou degradação do peptídeo. O amiloide é tóxico para neurônios e se organiza em agregados.
Existem evidências de que essa toxicidade causa várias outras alterações bioquímicas, que diminuem a capacidade dos
neurônios de se comunicarem uns com os outros. Um grupo de neurônios conhecidos como colinérgicos é afetado e eles
param de trabalhar normalmente. Isso parece aumentar ainda mais a formação desses peptídeos amiloides e aumenta a
toxicidade desses peptídeos. Outros eventos ocorrem, como alterações em uma proteína conhecida como tau, que regula a
capacidade dos neurônios de manterem suas funções. Tudo isso culmina em morte de neurônios específ icos e disfunção
cognitiva.
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Quais as principais alterações bioquímicas
conhecidas relacionadas ao Alzheimer?
Prado: Os peptídeos amiloides agregam- se para
formar as placas, enquanto que a tau também se
agrega e forma emaranhados neurofibrilares. Essas
são alterações patológicas. De maneira geral, o
enovelamento de proteínas e a capacidade dos
neurônios de lidar com o acúmulo de proteínas
agregadas estão comprometidos.
Existem evidências epidemiológicas e
biológicas de um relacionamento entre
diabetes e doença de Alzheimer (DA). Há
várias pesquisas testando a possibilidade de
que algumas drogas usadas em diabetes
possam ser usadas na DA
Alguns estudos defendem que existe relação
entre Alzheimer e diabetes. Quais seriam essas
convergências e você acredita que os remédios
usados hoje para tratar diabetes podem ser
utilizados para combater o Alzheimer?
Prado: Existem
evidências
epidemiológicas
e
biológicas de uma relação entre diabetes e DA .
Pessoas que apresentam diabetes têm maiores chances de desenvolver DA . Há várias pesquisas testando a possibilidade de
que algumas drogas usadas em diabetes possam ser usadas na DA . No entanto, os resultados dessas pesquisas ainda não
foram publicados. Cientistas usam evidências para julgar se um tratamento é efetivo ou não. Acreditar ou não é irrelevante
no momento, enquanto não tivermos dados pré-clínicos e clínicos bem substanciosos.
Na medida em que o ser humano vive mais, a tendência é a ocorrência mais frequente de demências como o
Alzheimer. Em função desse quadro, segundo seus estudos e pesquisas, o que há de mais moderno em termos
de descobertas de novos mecanismos de falha celular e de memória?
Prado: A incapacidade dos neurônios de se comunicarem de maneira apropriada na DA é uma área de pesquisa que
começou a ser explorada recentemente. Isso parece ocorrer antes dos neurônios morrerem. A incapacidade deles de
lidarem com agregados de proteínas pode ser uma das causas. Quanto à memória, começam a ser reconhecidas também
importantes alterações no metabolismo de RNA (ácido ribonucleico), responsável pela produção de proteínas. O problema
não é simples e, além disso, é possível que várias alterações diferentes ocorram de maneira simultânea na função de
neurônios. Outro aspecto importante é a inflamação no sistema nervoso. Células que são consideradas como suporte no
cérebro parecem ter uma importância maior do que imaginávamos anteriormente. Algumas dessas células regulam
processos inflamatórios no cérebro, que podem também danificar os neurônios.
Nossa capacidade de reconhecer alterações moleculares devido ao déficit de acetilcolina melhorou. Somos
capazes de detectar alterações no genoma, no transcriptoma e no proteoma de forma muito mais detalhada e
sofisticada
Você, ao lado de sua mulher, a bioquímica Vânia Ferreira Prado, havia produzido um grupo de camundongos
geneticamente alterados, com o objetivo de mostrar que os roedores não aproveitavam a acetilcolina, um dos
mensageiros químicos responsáveis pela transmissão do comando de uma célula nervosa para outra, o que
influenciava na memória. Poderia detalhar esse estudo, informar qual foi sua evolução e o que mudou em
termos de abordagem para os dias de hoje?
Prado: Em 2006, começamos a produzir animais com déficits parciais na atividade colinérgica em camundongos. Mais
recentemente, fomos capazes de produzir déficits mais elaborados exclusivamente em regiões do cérebro que participam da
DA . Além disso, agora somos capazes de estudar a memória de camundongos usando tablets, que permitem testes muito
similares aos usados em humanos. Finalmente, nossa capacidade de reconhecer alterações moleculares devido ao déficit de
acetilcolina melhorou muito. Somos capazes de detectar alterações no genoma, no transcriptoma e no proteoma de forma
muito mais detalhada e sofisticada. Outra mudança recente é a nossa capacidade de ativar grupos celulares específicos
usando optogenética ou quimogenética. Isso permite entendermos que tipos de neurônios contribuem para os déficits
cognitivos na DA .
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Na época, você apostava que essa defasagem
na liberação da acetilcolina estava associada
aos efeitos do Alzheimer sobre a memória. Essa
conclusão ainda vale ou os avanços nos
estudos indicam outros caminhos?
Prado: Embora não seja o único problema, o déficit
colinérgico contribui bastante com os maiores
problemas na DA .
Entre as conclusões da pesquisa está, além do
déficit de memória espacial, o fato de que a
carência de acetilcolina no hipocampo também
apresenta
alterações
em
um
processo
eletrofisiológico chamado potenciação de longa
duração, necessário para a formação de vários
tipos de memória de longa duração. A indústria
farmacêutica desenvolveu remédios para o
equilíbrio de acetilcolina no organismo, o que
pode ajudar no combate ao Alzheimer?
Prado: Embora alguns medicamentos tenham sido
desenvolvidos, eles ainda apresentam muitos efeitos
A incapacidade dos neurônios de se comunicarem de forma
indesejáveis. Além disso, nem todos os pacientes
adequada na DA é uma área de pesquisa que passou a ser mais
respondem bem a esses medicamentos. Essa é uma
explorada recentemente
área de pesquisa que continua atraindo interesse de
indústrias farmacêuticas. O objetivo seria salvar os neurônios que secretam acetilcolina ou mimetizar seus efeitos no
cérebro, sem ocasionar problemas em outras partes do organismo.
Existem medicamentos no mercado, como galantamina e rivastagmina, mas os resultados não são tão
significativos. A explicação estaria no fato de que no Alzheimer são afetadas as memórias visual, auditiva, de
números e de reconhecimento de rostos, além da espacial, e o fato de outras formas de memória sofrerem
prejuízos sugere que o nível de outros neurotransmissores também seja alterado, o que não seria corrigido
pelos medicamentos que tentam aumentar a concentração de acetilcolina?
Prado: É exatamente isso. Existem outras alterações que também são importantes e a acetilcolina não resolve todos os
problemas.
Os estudos sobre a relação de acetilcolina com a perda de memória se aplicam para qualquer tipo de
demência ou especificamente para o Alzheimer? Aliás, como identificar se um idoso está com Alzheimer ou
outra demência?
Prado: Em várias formas de demência a acetilcolina parece estar envolvida. O diagnóstico do tipo de demência tem de ser
feito por médicos neurologistas especializados na área. Eles usam uma combinação de testes clínicos e de memória. No
entanto, o diagnóstico definitivo depende de avaliação patológica post mortem.
Neurocientistas do Massachusetts General Hospital de Boston, nos Estados Unidos, desenvolveram uma
técnica chamada Alzheimer em petri, uma espécie de Alzheimer artificial. O que acha dessa técnica e se é
possível dizer que a medida permite aprofundar as pesquisas sobre a doença e pela busca por novas drogas e
tratamentos?
Prado: O que eles fizeram foi produzir neurônios humanos com as mesmas mutações encontradas em famílias que têm
uma forma rara de Alzheimer. Esses neurônios em culturas especiais podem ajudar a entender mecanismos biológicos da
doença. No entanto, não substituem análises em modelos de animais intactos. Afinal, queremos saber se melhorando
aspectos bioquímicos da doença podemos melhorar os déficits de memória também. E isso não pode ser examinado em
células ou tecidos.
Muito se fala em fatores de prevenção ao Alzheimer. Em sua avaliação, por meio de sua vasta experiência, é
possível prevenir da doença?
Prado: É possível modificar hábitos no nosso dia a dia, o que pode diminuir a chance de desenvolver a DA . Por exemplo,
posso dizer que boa alimentação, exercícios físicos, interações sociais e educação são os principais fatores que podem
influenciar o desenvolvimento da doença. É claro que os nossos genes também têm um papel importante, e esses não há
como mudar.
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A idade provoca inevitáveis perdas de
neurônios, o que facilita o surgimento do
Alzheimer. É possível impedir ou retardar
essa perda, além de modificar hábitos?
Prado: Além da necessidade de modif icar
hábitos não muito saudáveis, a saúde
cardiovascular é um importante fator para a
prevenção de demência.
Em sua opinião, a neurociência vislumbra
uma cura em médio prazo? Estaria nas
pesquisas com células-tronco a chave para
a descoberta da cura do Alzheimer?
Prado: "Para todo problema complexo existe
uma solução simples e ela, geralmente, está
errada" (H. L. Mencken). A DA é extremamente
complexa. Não existem soluções simples ou
pílulas mágicas. Estudar pessoas idosas e
animais idosos é muito difícil. Células-tronco
podem ajudar a entender mecanismos da Prado revela que algumas atitudes podem diminuir a chance de
doença, ao permitirem gerar neurônios em desenvolver a DA, como boa alimentação, exercícios físicos, interações
sociais e educação
culturas para estudos bioquímicos. Entretanto,
essas células dificilmente podem ser usadas para substituir neurônios. Elas precisariam contatar outros neurônios de forma
correta. Essa ideia de que as células-tronco são uma panaceia, ou seja, que podem curar tudo, é danosa.
Para isso não seria necessário substituir os neurônios defeituosos?
Prado: Sim, o que seria impossível.
É correto dizer que as pessoas que sofrem com fatores socioculturais, sendo mais pobres, têm estimulação
cerebral menor, pois quase não leem, não vão ao cinema etc., e isso faz com que tenham uma propensão
maior a desenvolver a doença? Em resumo, isso demonstra que exercitar o cérebro faz bem?
Prado: Dados epidemiológicos sugerem que a educação é um dos principais fatores que modulam o aparecimento da DA .
Ainda não entendemos as razões. Pessoas com mais escolaridade desenvolvem a doença mais tarde. Óbvio que esse é
apenas um dos fatores, existem vários outros que contribuem com o risco de desenvolver a DA (genes, hábitos de
alimentação, saúde cardiovascular, exercícios físicos, entre outros).
Os neurônios em culturas especiais podem ajudar a entender mecanismos biológicos da doença, mas não
substituem análises em modelos de animais. Afinal, queremos saber se melhorando aspectos bioquímicos
podemos melhorar os déficits de memória
Existem casos comprovados de doentes de Alzheimer assintomáticos, ou seja, idosos que tiveram seus
cérebros analisados após sua morte e revelaram placas e emaranhados de proteínas que são a marca típica
dos estágios avançados da doença, porém sem apresentarem seus sintomas. Como explicar esse fato?
Prado: Sim. Existem pessoas que têm a patologia, mas não apresentaram sintomas cognitivos durante sua vida. Uma das
possibilidades é que, além da patologia, alguma forma de neurodegeneração precisa ser associada para o desenvolvimento
da doença. Outra possibilidade é que algumas pessoas tenham tipos de genes que ajudam o cérebro a lidar com essas
patologias. Sabemos pouco sobre esse processo ainda.
Ultimamente muitos cientistas brasileiros reclamam da falta de recursos para as pesquisas. Você conhece
bem os dois lados, pois trocou a UFMG pela University of Western Ontario, devido à falta de condições
estruturais. Como avalia a questão e quais as diferenças básicas que encontrou depois da sua mudança?
Prado: Existem excelentes cientistas no Brasil, mas, de maneira geral, a infraestrutura e a previsão de verbas são péssimas.
No Canadá, sei do meu orçamento para pesquisas para os próximos cinco anos. Tenho acesso aos últimos tipos de
equipamentos. A infraestrutura para a pesquisa científica é muito mais organizada. Além disso, meu principal trabalho é ser
pesquisador e treinar alunos de pós-graduação e dar aulas presenciais para a graduação. No Brasil, eu ministrava oito
horas/ aula por semana, e no Canadá são 20 horas/aula por ano letivo. Na maior parte das universidades do Brasil,
professores têm de lidar com a falta de infraestrutura e um ambiente onde a pesquisa não é valorizada.
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Por exemplo, o prédio onde eu trabalhava na UFMG, o Instituto de Ciências Biológicas, corria um risco permanente de
incêndio. De fato, se o corpo de bombeiros vistoriasse o prédio na época que trabalhávamos lá, não poderia liberá-lo. A
infraestrutura elétrica era péssima; novos equipamentos não podiam ser ligados. Acho que em 2007 tivemos um incêndio
que assustou todos, mas os bombeiros não foram chamados. É uma irresponsabilidade enorme dos dirigentes e do governo.
Não acho que melhorou muito e o problema é similar em outras universidades. Faltam dinheiro e infraestrutura, existe
excesso de corporativismo e falta vontade política para melhorar a pesquisa. Não conheço nenhuma universidade séria onde
dirigentes universitários são eleitos por alunos, professores e funcionários. Nas melhores universidades os dirigentes são
contratados por competência. Enfim, temos ótimos pesquisadores brasileiros, eles são tão bons ou até melhores do que os
canadenses ou americanos, mas fazem milagre para produzir ciência. Isso é fruto de um sistema educacional e político que
não valoriza a ciência de qualidade.
Células-tronco podem ajudar a
entender mecanismos da doença.
Entretanto, essas células dificilmente
podem ser usadas para substituir
neurônios. A ideia de que as célulastronco são uma panaceia, ou seja,
que podem curar tudo, é danosa
Você já disse que talvez pudéssemos
ter descoberto a cura do Alzheimer se
não precisássemos lidar com uma
rotina de falta de investimentos no
Brasil.
Por
que,
então,
essa
descoberta ainda não ocorreu em
centros nos quais não há dificuldades
na obtenção de verba?
Prado: Em nenhum lugar do mundo é
fácil obter verbas para pesquisa. No caso
da DA , os investimentos são muito aquém
do necessário. Mas, certamente, se
pesquisadores brasileiros tivessem uma
ideia genial hoje para tratar a doença,
essa ideia não seria aplicada nos próximos
O neurocientista conta que, hoje, existe a possibilidade de se estudar a 30 anos por falta de infraestrutura.
memória de camundongos usando tablets, que permitem testes similares aos
usados em humanos
Há informações de que nos Estados Unidos gastam-se US $ 200 bilhões ao ano no tratamento de pacientes
com Alzheimer. Em contrapartida, gastam-se US $ 500 milhões, em média, em pesquisas que tentam
desvendar as causas primárias da doença. Isso quer dizer que mesmo em grandes centros ainda se gasta
mal?
Prado: Sim, e gasta-se pouco. Se a sociedade acha que pesquisa é cara, é preciso ver o custo da doença. Você colocou
muito bem a pergunta, pois o custo da doença é 400 vezes maior do que o da pesquisa.
LUCAS VASQUES é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista PSIQUE, Abril de 2016.
Golpe, democracia e barbárie (MÁRCIA TIBURI)
MAIS uma vez, em defesa da democracia. A chamada “comissão especial do impeachment” seria irônica se não fosse
um estranho fenômeno de cinismo no pior sentido: a maior parte dos deputados que dela participam são acusados por
algum tipo de corrupção. Salvam-se poucos. Uma câmara de deputados que, na sua maioria, parece trabalhar contra a
democracia em todos os seus atos vai julgar uma das poucas pessoas que não foi acusada de cometer nenhum crime.
Qual o teor de um julgamento sem crime de responsabilidade? Não podemos compreendê-lo sem que nos coloquemos
à questão ética que deveria fundamentar esse procedimento e todas os nossas operações políticas em todos os níveis, micro
e macropolíticos. Ética, a uma altura dessas, pode parecer algo meramente retórico. Falar dela dá a sensação de
anacronismo. A acusação é uma velha estratégia de quem quer se redimir por antecipação, desviar a atenção da própria
culpa. Talvez por isso, no Brasil, as pessoas tenham se apegado tão facilmente à acusação e a corrupção tenha se tornado
“corrupção dos outros”. Essa é a forma superficial que a questão da corrupção assume entre nós. Quando os brasileiros
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começarem a se ocupar com uma reflexão menos superficial sobre a corrupção de si promovida pela corrupção substancial
do capitalismo na vida, nos corpos, na mentalidade e na existência como um todo, então podemos ter esperanças no fim
dela. Enquanto isso, o presidente da câmara, suspeito e acusado de diversos crimes continua conduzindo o processo de
impeachment como se nada estivesse acontecendo com ele mesmo.
Foto Gazeta do Povo
Fato é que a defesa da democracia entre nós confunde-se hoje com a defesa do mandato da presidente Dilma Rousseff
que, hoje em dia, parece sofrer realmente algo da ordem de estupro político. Dilma foi objetificada para os fins
inconfessáveis dos defensores do impeachment. Seria ela tão maltratada se não fosse mulher? É uma pergunta que
podemos nos colocar, sobretudo as mulheres que sabem como sofrem, simbólica e fisicamente, apenas porque são
mulheres. Teríamos que aprofundar um pouco a questão do fator “gênero” no caso da posição ocupada por Dilma Roussef
hoje. Ser a primeira mulher a assumir a presidência da república deve causar muita raiva, muito ódio e muita inveja em
muitos homens que consideram que esse cargo seria seu de direito. As mulheres conhecem a inveja masculina, sabem que
a inveja masculina, como qualquer outra, é destrutiva. Mas vem com a força física e a força do poder da dominação
masculina. A inveja é pior naqueles que tem o poder nas mãos.
O governo Dilma não é o governo dos sonhos do povo brasileiro, muito menos das feministas. Na realidade, é um
governo muito ruim. No quesito ajuste fiscal, trabalhadores saem perdendo em benefícios enquanto taxas de juros
beneficiam quem tem capital, as grandes corporações. No campo dos direitos das mulheres e dos grupos LGBT, tudo o que
era péssimo ficou ainda pior. A intromissão do preconceito religioso e fundamentalista ataca as poucas leis minimamente
razoáveis sobre direitos reprodutivos, sem que o governo tenha investido em políticas públicas voltadas para as mulheres e
a população LGBT, inclusive de esclarecimento acerca desses direitos. O Estatuto do Nascituro e a absurda “bolsa estupro”
são retrocessos objetivos em nossa cultura promovida por coronéis machistas e que não tem o mínimo respeito pela cultura
e pelo cotidiano, bem como pelos direitos das mulheres. Infelizmente, eles não receberam o necessário rechaço da
presidenta. No que concerne aos direitos dos povos originários do Brasil, a situação é das piores. Indígenas brasileiros vivem
em estado de invisibilidade quanto a direitos e, ao mesmo tempo, submetidos a todo tipo de violência. A usina de Belo
Monte em terras indígenas, o chamado “recorde negativo” de demarcação de terras, no faz lembrar de momentos infelizes
da história brasileira como a ditadura. Mesmo assim, nada disso justifica um golpe disfarçado na forma jurídica distorcida do
impeachment.
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A defesa da democracia como um princípio que assegura que podemos confiar nas instituições, exige que não se
cometa um crime contra a democracia. O golpe, ou o processo de conspiração e julgamento sem crime de responsabilidade,
é ele mesmo o crime em cena. Um crime que se disfarça de direito e de defesa da democracia. Orquestrado pelo legislativo,
o judiciário, e a mídia, os poderes que regem o Brasil cada vez mais ignorante e mistificado, o golpe é a máxima corrupção
à qual parcela do povo faz coro, assinando embaixo de uma cultura corrupta que serve àqueles que desenvolvem uma
relação com a sociedade ao nível do individualismo egoísta, avarento e predador.
Hoje a defesa do golpe e a execração cotidiana da presidente (que vem acompanhada de todo tipo de ignorância sobre
“comunistas” e outras designações políticas) tornou-se gesto que faz parte de toda uma cultura autoritária que toca o
fascismo. O golpe foi introjetado por alguns cidadãos, como se tivesse nascido em seu coração. A população se torna ela
mesma golpista sem entender de que modo é manobrada, sobretudo pelos meios de comunicação.
O golpe, seja como Grande Golpe institucional, seja como o pequeno golpe que cada um traz dentro de si, faz parte da
grande ideologia que impede que se veja o que de fato está acontecendo. Essa ideologia é a face sorridente do capitalismo
que agrada até mesmo às suas vítimas. Tirada a máscara ideológica, surgirá a caveira descarnada da democracia.
Retornamos ao pó da barbárie.
MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes
graduação em Educação, Arte e História da Cultura
colunista da Revista CULT. Publicou diversos livros
(2013) e “Como Conversar com um Facista” (2015).
(2012). Revista CULT, Abril de 2016.
e mestre e doutora em filosofia. É professora do programa de pósda Universidade Mackenzie, da graduação em Filosofia da Unicamp e
de filosofia, entre eles “Filosofia Pop” (2011), “Sociedade Fissurada”
Publicou também romances: “O Manto” (2009), “Era meu esse Rosto”
Protesto e repressão (ÂNGELA ALONSO)
EM 21 de março, dois grupos de estudantes da PUC-SP se manifestaram. Um trouxe trio elétrico, bandeira e hino
nacionais e os slogans: “Sergio Moro, estamos com você”, “O meu partido é o Brasil”. A outra turma reagiu: “Não vai ter
golpe”. O conflito de ideias evoluiu para as vias de fato e a Polícia Militar entrou em campo, munida de pouca paciência,
alguns cassetetes e as indefectíveis bombas de efeito moral.
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Protestos desse tipo viraram o dia a dia de nossas grandes cidades, contra ou a favor do governo. Até aí, nada de
mais. Manifestações são o arroz com feijão das democracias. E até termômetro delas: ditaduras não suportam dissidentes.
Contudo, além de manifestantes e governantes, tais atos contam com um ostensivo terceiro elemento: a polícia. Ela vem
garantir a ordem e apaziguar confrontos, como os da PUC. Mas, na prática, princípios se interpretam. A margem para tanto
é larga porque manifestantes trafegam no meio-fio: reconhecem as autoridades, às quais endereçam clamores, mas as
deslegitimam, considerando-as ineptas para efetivar suas demandas. Quando se anda na segunda linha, sempre se pode
aspirar gás pimenta.
É que o Estado, como os manifestantes, tem postura ambivalente em relação a protestos. Mobilizações acontecem nas
ruas, espaço público sujeito a regras que manifestantes nunca acatam in totum, por exemplo, ao burlar o perímetro que a
polícia demarca como lícito para os atos. Ante a desobediência, os governos, por meio de seu braço policial, decodificam a
lei, ora classificando os manifestantes como “opinião pública” legítima, ora como “vândalos” perturbadores da ordem. A
rotulagem remete às estratégias clássicas de autoridades diante de protestos: tolerância, barganha, repressão.
Qual delas os governos preferem? Depende. Repressão demais tem efeito paradoxal: faz crescer o que se visava
sufocar – como em junho de 2013. Já leniência em excesso também infla protestos, ao atestá-los isentos de risco, uma
“festa da democracia”. Por isso, autoridades calculam ao orientar a polícia. Na equação, entra o grau de afinidade do
governo com os manifestantes. Há os do contra, como os revigoradores para o governante. Daí por que, em vez de reprimir,
barganhar ou tolerar, a autoridade pode pender para uma inusitada quarta opção: o congraçamento.
Autoridades e manifestantes
Tais diferenças de reação estatal ficaram patentes nas últimas megamanifestações. Em junho de 2013, a polícia abusou
das bombas de efeito moral. Já em março de 2015, tirou retratos com manifestantes. Esse passado soou como um aviso de
futuro para eventos do miolo de março. Tomemos os dos dias 13 e 18 em São Paulo.
No domingo, 13, polícia, autoridades, mídia e setores organizados da sociedade pularam a tolerância, indo direto ao
congraçamento. Camaradagem desde o planejamento, com liberação da Avenida Paulista e organização digna de
megashow. Associações patronais e empresas – como o Habib’s – conclamaram e subsidiaram o protesto. Hotéis
franquearam toaletes e a Fiesp serviu aos participantes não esfihas ou coxinhas, mas carne de primeira. O beneplácito da
grande mídia se escancarou em capa do Estadão, que, num arroubo, falou num “Occupy São Paulo”. A complacência policial
ultrapassou a selfie e se materializou em ato prenhe de simbolismo: a tropa bateu continência para os manifestantes.
Na sexta-feira, 18, dia da manifestação pró-governo, mudou tudo. Embora tenham pré-agendado, os organizadores
penaram, só vendo liberada a Paulista – ocupada por remanescentes do 13 – na manhã do dia do evento. Até então o
governador se esmerara em declarações equívocas. Talvez temeroso de confronto entre os pró e os contra o governo, afinal
acedeu à retirada dos domingueiros e de suas barracas de grife, com gentilezas e sem cassetetes. Para os que chegaram na
sexta, nada de banheiros químicos. O apoio logístico veio dos aliados tradicionais do PT: os sindicatos. Em contraponto ao
pato da Fiesp, bandeiras da CUT. Em vez de filé mignon, pão com mortadela. A mídia escrita e televisiva minimizou o ato do
dia 18 na mesma proporção que magnificou o do dia 13. E, em vez de batalhão amistoso, as franjas do ato foram
delimitadas pela tropa de choque.
Dois padrões de resposta do Estado e das elites sociais aos protestos, portanto. Pode-se conjecturar que ação desigual
corresponda a número dissonante, já que o Datafolha contou cinco vezes mais pessoas no domingo que na sexta. Ainda
assim, 100 mil pessoas é gente demais para ser desconsiderada. Então, talvez a diferença resida no tipo de gente que
protesta.
Gente diferenciada
No dia 18, o batalhão de choque se posicionou a distância, mas preparado para o enfrentamento com os
manifestantes. No dia 13, a Polícia Militar esbanjou simpatia, com a tropa de cerca viva do ato. Num caso, proteção; no
outro, prontidão para o ataque.
A polícia distinguiu porque sempre distingue. Distingue por raça, prende e mata mais negros que brancos. Distingue
por classe, prende e mata mais pobres que ricos. E reprime mais atos populares que de classe média. Para entender a
variação de solicitude, cabe pôr a lupa nos manifestantes.
À primeira vista, no domingo e na sexta protestou o mesmo povo. Ou melhor, a mesma elite: varões de classe média.
O Datafolha dá, para os dois dias, números idênticos para sexo (57% homens, 43% mulheres) e escolaridade (18% com
ensino médio, 77% e 78% com superior), mais alta que a média da população. Não espanta: há mais mulheres na política
das ruas que na das instituições, e a escolaridade é um corte, porque protestar requer acesso a conhecimentos e recursos.
Esse perfil social talvez esclareça por que o choque não bateu. Mas a polícia aturou uns e se irmanou com outros. Deve
então haver diferenças entre os manifestantes que abrem distâncias sociais.
Escolaridade elevada indica classe média. A renda confirma: o estrato que ganha entre cinco e dez salários mínimos
compareceu em pé de igualdade nos eventos (26% e 28%). A discrepância está nas pontas da pirâmide social. Os mais
pobres (até 5 s.m.) foram um terço dos presentes no dia 13 (31%) e perto da metade no dia 18 (44%). No ápice, a
diferença se inverte: 37% dos domingueiros ganhavam mais de 10 s.m., com destaque para empresários; já na sexta, a
faixa caiu para um quarto dos manifestantes (24%) – funcionários públicos e profissionais liberais. De outro modo, a
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residência diz o mesmo: os de sexta moram em proporções parecidas das zonas leste, oeste e centro, ao passo que um
terço dos de domingo veio da zona sul – e suas roupas atestam que dos condomínios, não das favelas.
Patente é a silhueta mais jovem (48% tinham até 35 anos, no dia 18; já 40% passavam dos 51, no dia 13) e mais
negra da sexta-feira. No domingo, 15% se disseram pardos e apenas 4% pretos. Já na sexta, o número de pretos triplicou
e, somados aos pardos, responderam por quase um terço dos presentes (31%) – o que se via a olho nu. Para não perder a
escala: na Pnad de 2014, 40,3% dos paulistanos se autodeclararam pretos ou pardos. O pessoal de sexta, portanto,
representa mais fidedignamente os paulistanos que o de domingo. O governador, os policiais e a elite econômica local se
deram conta da gente diferenciada. E agiram de acordo.
Pró e anti
A diferenciação reassomou nas pautas: antiPT/pró-Moro, no domingo, anti-impeachment/pró-Lula, na sexta.
No 18, embora organizadores e muitos participantes tenham tentado a desvinculação, o vermelho dominou. A presença
de Lula sacramentou o ato como de em apoio ao governo. Os slogans recuperaram a antiga agenda petista: defesa do
Estado de direito (“não vai ter golpe”) e de direitos sociais e individuais (redistributivismo, igualdade de gênero, vide os
adesivos roxinhos de Frida Kahlo), ataque a Eduardo Cunha em particular e a adversários de Lula em geral e ao oligopólio
dos meios de comunicação (“o povo não é bobo, abaixo a rede globo”). E um clamor por tolerância: “Eu não te odeio”.
Já no domingo, o oposto: o Judas malhado foi Lula, sob forma de Pixuleco, com Sérgio Moro ungido a cristo salvador.
Reprovação ao PT e ao governo, mas também a “políticos em geral”, que vitimou Alckmin e Aécio, corridos da manifestação.
A tônica foi a exigência de moralidade pública, sem advogar alternativas. Como na Espanha, “que se vayan todos”,
uma antipolítica. Um dos poucos a discursar foi um militar: Jair Bolsonaro. Não por acaso, pois opiniões consonantes como
as suas bordaram o evento, em demonstrações contundentes de ira santa, com referências a Deus e à família, e
impropérios a adversários. Um destes, muito jovem, berrou um “não vai ter golpe”. Quase o lincharam. A polícia, impassível,
escoltou-o lentamente em meio à turba raivosa, que externou todos os preconceitos conhecidos, culminados num
“viadinho”.
Jogo é jogo
Enquanto no domingo na Paulista policiais testaram sua fotogenia, no protesto na PUC, mencionado ao início, um
grupo gritava: “Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar”. Os policiais tratam diferentemente os
manifestantes, que retribuem. Durante, “o mesmo que para um jogo de futebol.” Resumiu bem: a polícia está disponível
para o a manifestação, perguntei a um dos soldados que treinamento ele recebera para atuar na Paulista. “O padrão”,
respondeu congraçamento, quando o time joga a seu favor, e pronta para descer o cacete, em caso contrário.
ÂNGELA ALONSO é professora livre-docente da Universidade de São Paulo e presidente do Cebrap. Ilustração: Eugênio.
Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Abril de 2016.
De cuspe a Deus, teve de tudo na votação do Impeachment (MALU FONTES)
ALÉM de a votação da admissibilidade de um processo de impeachment contra a presidente da República já ser, em si,
um fato histórico com robustez suficiente para atrair todo um país para a sua transmissão, o Brasil teve e terá outros
motivos para lembrar, por décadas e décadas, as cenas transmitidas para o mundo no último domingo pela TV Câmara.
Se, por um lado, a população tem o direito e a razão de estar assombrada com as espécimes esquisitonas que se
sucederam no microfone da Câmara, atendendo ao chamado do inominável Eduardo Cunha para dizer sim ou não ao
impeachment, por outro, cabe uma pergunta típica de advogado do diabo: por que tanta surpresa com os tipos que
desfilaram diante do microfone da Câmara?
Quem ficou horrorizado com o que viu, da aparência tosca às falas surreais, invocando Deus e até o papagaio da
família, parece supor que aqueles tipos destoam da cara, do caráter ou do comportamento do povo brasileiro. Que aquilo só
pode ser fruto de geração espontânea, algo fenomenológico que ocorre lá pelas bandas do Cerrado, justo onde Juscelino
Kubitscheck decidiu construir Brasília.
Portador não merece pancada e o problema da paisagem não está na janela. Gostemos ou não, aqueles tipos
estranhos, que fazem o Coronel Saruê de Antônio Fagundes parecer contido e cool, são exatamente a cara do Brasil. Foram,
literalmente, exportados para Brasília pelo povo brasileiro.
CRINA DE CAVALO
Diante do espanto com o show de horrores e histrionices visto domingo, manifestado na esfera pública virtual, nas
mesas de botecos, nos bancos escolares e nas alcovas de todos os estratos sociais, ficou uma sensação rara de que o verso
de Caetano Veloso não se aplica a algumas coisas.Definitivamente não se aplica à relação entre a Câmara Federal e o povo
brasileiro: Narciso acha feio o que é espelho. Além das lições políticas que todo esse processo deixa, para os ganhadores e
os derrotados, também se aprendeu muito sobre hipocrisia, estética, religião e família.
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Foi preciso uma sessão de votação de impeachment para o brasileiro descobrir que é tendência entre os seus
representantes os implantes malsucedidos de cabelo, assim como os tons acaju e a textura dos fios a la crina de cavalo
sintética. Foi preciso Janaína Pascoal, a musa da República da Cobra, entrar para a história do país pedindo o impeachment
de Dilma para que o eleitorado brasileiro descobrisse o quanto os deputados brasileiros são religiosos, tementes a Deus e o
quanto prezam os valores familiares.
Como uma garota de programa foi filmada recentemente fazendo saliências com alguém da casa, vossas excelências
aproveitaram o microfone da Câmara para renovar os votos matrimoniais com suas consortes oficias. Ah, e algo que precisa
ser registrado: na votação, Tiririca, em seu segundo mandato, usou pela primeira vez o microfone da Câmara. Ou seja, pior
que está, fica, sim.
TORTURADOR
O jornalismo enxerga tudo, mas é ligeiro demais para se deter em detalhes que só a história escancara. O que foi
aquela cena de Jair Bolsonaro invocando seu ídolo maior, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores, mais
cruéis e mais perversos torturadores do regime militar brasileiro, e a quem o deputado dedicou seu voto? Somente numa
republiqueta latina, que nunca se deu ao trabalho de fazer a revisão de seus anos de chumbo e tortura, para um homem
com mandato homenagear um torturador na casa de representantes do povo e ficar por isso mesmo.
Só os próximos e o próprio Jean Willys devem saber o naipe das coisas que Bolsonaro lhe disse como insulto, durante a
votação, para que, como revide, recebesse uma bola de cuspe em sua direção. E somente com a cantilena divina foi
possível espalhar para o mundo o que já sabemos de nós mesmos: somos uma piada pronta. O jornal espanhol El País, em
sua versão brasileira, diagnosticou com precisão o resultado do impeachment, usando como métrica a invocação de Deus
pelos deputados: “Deus derruba a presidenta do Brasil”.
MALU FONTES é Jornalista, Doutora em Cultura pela UFBA, além de professora desta mesma instituição. Jornal CORREIO,
Março de 2016.
Gripe fora de hora (DAVID UIP)
QUADROS gripais costumam ter evolução benigna. Assim, basta o controle dos sintomas a base de analgésicos e
antitérmicos, hidratação, boa alimentação e repouso, que a doença tende a desaparecer em poucos dias. Em alguns casos,
no entanto, a infecção pelo vírus influenza pode trazer complicações, principalmente em pessoas que possuem baixa
imunidade ou fazem parte dos grupos mais vulneráveis, como os idosos, crianças, grávidas e doentes crônicos.
Quando o vírus A H1N1 retornou em forma de pandemia, em 2009, o susto foi grande. Não havia vacina à época.
Somente em São Paulo foram registrados 9,7 mil casos e 641 mortes. Passados sete anos, já se sabe que a gripe causada
pelo H1N1 não é mais nem menos perigosa do que as causadas pelas cepas mais comuns em circulação pelo mundo. Os
cuidados relativos à prevenção e ao tratamento são os mesmos.
Em 2016 a gripe surgiu fora de hora no Estado de São Paulo, antes de o inverno chegar. Até 29 de março foram
notificados pelos serviços de saúde 465 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) confirmados para o vírus
influenza, com 82,5% de predominância para o tipo A H1N1, e 59 mortes. O número de casos graves de gripe já supera os
registrados durante todo o ano de 2015, quando o vírus A H3N2 foi predominante, respondendo por 55,6% do total. Mas o
cenário não se assemelha, nesse momento, ao ano da pandemia.
Ao analisarmos os gráficos do Centro de Vigilância Epidemiológica, observamos que em novembro de 2015 se nota um
aumento na frequência de casos de SRAG por H1N1 e, concomitantemente, há elevação do número de casos pelo influenza
B, cenário que se manteve até a nona semana epidemiológica deste ano, quando, de fato, a circulação do H1N1 se mostrou
prevalente. Em 2015, a presença de uma ou mais comorbidade foi verificada em 60% dos óbitos por SRAG notificados no
Estado. Neste ano, o índice é parecido: 61,5%. É precipitado dizer o que causou a circulação antecipada e não prevista dos
casos de influenza antes do período de junho a agosto, como costuma ocorrer. Os institutos Adolfo Lutz e Butantan, ligados
à Secretaria estadual da Saúde, estão investigando o porquê.
Evidentemente que não é possível esperar respostas para agir. Ao detectarmos uma circulação mais intensa do vírus no
noroeste do Estado, iniciamos em 23 de março uma campanha extra de vacinação em 67 municípios da região de São José
do Rio Preto, com doses de 2015. Com o apoio do Ministério da Saúde, que enviou doses da campanha deste ano, o
governo paulista antecipou a vacinação na capital e na região metropolitana de São Paulo, iniciada no dia 4 de abril para
532 mil profissionais de saúde de hospitais públicos e particulares e que a partir desta segunda-feira (11) também será
estendida a idosos, gestantes e crianças entre seis meses e cinco anos incompletos, totalizando, nesta imunização
antecipada, 3,5 milhões de paulistas.
Já a partir do dia 18, a imunização atenderá portadores de doenças crônicas e em tratamento com imunossupressores,
puérperas (até 45 dias após o parto), e população indígena residente na capital e região metropolitana de São Paulo. Para
as demais cidades do Estado a campanha de vacinação contra a gripe deve seguir o calendário do Ministério da Saúde, com
início previsto para o dia 30 de abril.
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As vacinas – trivalentes – são produzidas pelo Instituto Butantan e protegem contra os três tipos de influenza que
circularam no último inverno do hemisfério norte. Importante ressaltar que a vacina, além de prevenir a gripe, ajuda a evitar
complicações decorrentes da infecção por esses vírus, a exemplo de pneumonias, otites e sinusites. São Paulo está
enfrentando sua onda de gripe fora de hora com a seriedade e a serenidade que o momento exige. Há motivo para alerta
entre as autoridades de saúde, mas nenhum para pânico entre a população. Vida normal.
DAVID UIP, 63, infectologista, é secretário da Saúde do Estado de São Paulo. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de
2016.
O novo moralismo jovem (LUIZ FELIPE PONDÉ)
UMA coisa tem me preocupado muito nos últimos tempos. Sei que em meio ao horror que virou a vida política
brasileira, com a ausência de referências que valham a pena, tudo parece menor, mas nem tudo é menor. Uma das razões
da vida inteligente no Brasil estar tão chata é que a democracia, quando muito ativa, tem uma tendência a invadir todas as
dimensões da vida. Como uma forma de fanatismo religioso que tudo devora. Este traço é típico do modelo de soberania na
democracia, a saber, a soberania popular. E quando tudo vira política, a vida sempre será violenta.
Mas, eu não disse até agora o que está me preocupando há algum tempo. O que tem me preocupado há algum tempo
é a tendência de alguns jovens se transformarem nuns chatos, caretas e moralistas. Vejo isso piorar a cada dia. E é
broxante. Dê-me um jovem que não gosta de ler, mas não me dê um jovem que acha Nelson Rodrigues um machista. Se
você não sabe com certeza o que vem a ser um moralista (no senso comum), eu explico. Do modo mais preciso, técnico e
filosófico possível, um moralista é alguém que caga regra. Os franceses falam, como sempre, de forma mais chique: "faire la
morale".
Sim, parece estranho. Principalmente, se eu completar da seguinte forma: acho que o que começou o processo de
transformação dos jovens nuns chatos moralistas foram os anos 1960 e seu discursinho de paz e amor. Devíamos ter dado
mais atenção ao fato de que na raiz do movimento hippie estava o medo de ir para a guerra (do Vietnã). E todo moralista é
um covarde. Outra raiz do movimento hippie era a preguiça de acordar cedo. E todo preguiçoso é um covarde.
Sei que essa afirmação parece absurda porque associamos a juventude à revolução e à contracultura, mas o maior
produto da contracultura foi a caretice dos jovens se acharem reformadores do mundo e abandonarem qualquer senso do
próprio ridículo. E todo reformador é um chato, sem senso de qualquer ridículo. Por isso, os jovens perdem, a cada dia, o
senso de humor e se levam cada vez mais a sério. Como alguém de 18 anos (ou mesmo mais jovem), pode se levar tão a
sério? Suas ideias são artificiais, sua experiência de vida, postiça, e sua visão de mundo, infantil. Todo jovem que se julga
revolucionário é um Torquemada de bolso.
Assusta-me o modo violento e rápido com o qual, cada vez mais, mais jovens se acham arautos do modo justo de
comportamento. Muitos defendem a pureza de sentimentos (ninguém tem ciúme), a pureza da alimentação (e perdem o
paladar para o sangue, que sustenta toda a existência no planeta) e negam a existência de inseguranças (ninguém confessa
que está morrendo de medo do mundo). Ninguém tem preconceitos, a não ser os preconceitos "justos". Quase todo mundo
está disposto a atirar a primeira pedra porque se acha um puro de coração. Não existem mais adúlteras, apenas praticantes
de poliamor. E um mundo sem adúlteras é um mundo sem misericórdia. Um dos traços mais cruéis dos moralistas é sua
total insensibilidade para o pecado.
E onde não há pecado, não há misericórdia. Nem esperança. Nem os puritanos calvinistas do séculos 16 e 17
imaginavam-se tão puros quanto muitos dos jovens hoje se imaginam. Resumo da ópera: preocupa-me a ideia, presente em
muitos jovens, de que eles não têm pecados. Culpa é para os opressores; eles, os jovens, não têm maus sentimentos. E
quando os têm, "foram impostos pela sociedade". Com certeza nós, os pais e professores desses jovens, somos muito
responsáveis por este estado de moralismo em que se encontram. Cegos ao gosto de sangue em nossas bocas, cospem na
cara de quem não tem certeza absoluta de representar o bem. Como idiotas, temos construído a ideia de que eles tem de
salvar o mundo.
Nós contemporâneos, como infantis que somos, não percebemos que estamos construindo um novo clero puritano,
com todo o moralismo, a boçalidade, a insensibilidade e a arrogância que marca toda a pureza de coração nesse mundo.
Nunca foi tão importante cuidar dos jovens para que eles despertem desse sono dogmático acerca da própria "santidade".
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
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As famílias da sociedade órfã (ROSELY SAYÃO)
A FAMÍLIA transformou-se em bode expiatório das mazelas de nossa sociedade. Crianças se descontrolam, brigam,
desobedecem? Jovens fazem algazarras, bebem em demasia, usam drogas ilegais, namoram escandalosamente em espaços
públicos? Faltou educação de berço. Como é bom ter uma "Geni" para nela atirar todas as pedras, principalmente quando se
trata dos mais novos.
Até o secretário estadual da Educação de São Paulo, em um artigo de sua autoria, para defender sua tese de que
estamos vivendo em uma "sociedade órfã", inicia suas justificativas afirmando que "... a fragmentação da família, a perda de
importância da figura paterna — e também a materna — a irrelevância da Igreja e da Escola em múltiplos ambientes geram
um convívio amorfo".
As escolas também costumam agir assim: quando um aluno é considerado problemático e indisciplinado, ou apresenta
um ritmo de aprendizagem diferente do esperado pela instituição, a família é chamada para resolver o "problema".
Vamos refletir sobre expressões usadas a respeito da família: "família fragmentada", "família desestruturada", "família
disfuncional", "família sem valores" e outras semelhantes. Não lhe parece, caro leitor, que tais expressões apontam na
direção de que a família decidiu entornar o caldo da sociedade?
Não é a família que está fragmentada: é a vida. Hoje, os tratamentos médicos, o conhecimento, as metodologias, as
relações interpessoais, as escolas, o Estado etc. estão fragmentados. Mesmo não sendo a família um agente passivo nesse
contexto, é salutar lembrar que ela se desenvolve conectada ao clima sociocultural em que vive. A família não está
desestruturada ou disfuncional: ela passa por um período de transição, com sucessivas e intensas mudanças, o que provoca
uma redefinição de papéis e funções. Esse processo está em andamento, o que nos permite falar, hoje, não em família, mas
em famílias, no plural, já que há grande diversidade de desenhos, dinâmicas etc.
As famílias não estão sem valores: elas têm valores fortes, em sua maioria eleitos pelas prioridades que a sociedade
determina. O consumo é um deles: as famílias não decidiram consumir cada vez mais, foi o sistema econômico que apontou
esse valor para elas. Há problemas com a escola, sim: ela tem ensinado sem educar devido, principalmente, à primazia do
conteúdo -que insisto em dizer que não é conhecimento-, às políticas públicas adotadas e à ausência de outras, prioritárias.
Por isso, a escola tem tido um papel irrelevante na formação dos mais novos.
Há famílias em situações de risco e fragilidade? Há. A escola perdeu sua importância na socialização de crianças e
jovens? Sim. Mães e pais podem estar mais ocupados com suas vidas do que com os filhos? Sim. Mas isso ocorre porque as
ideologias socioculturais da juventude, do sucesso e da instantaneidade ganharam grande relevância, e não há políticas
públicas - de novo - que busquem equilibrar tal contexto. E, mesmo assim, têm sido as famílias a instituição protetora dos
mais novos!
A sociedade não precisa, tampouco demanda, que o Estado exerça a função de babá, de pai ou de mãe. Ela necessita
que o Estado reconheça, na prática, que as famílias e a escola dependem de ações públicas de apoio ao seu pleno
desenvolvimento e que garantam os seus direitos.
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
Impeachment, exigência da realidade (CARLOS SIQUEIRA)
O BRASIL vive a mais grave crise de sua história republicana, resultante da falência de aspectos políticos, econômicos,
sociais, federativos e éticos do país. Esta crise teve origem ainda no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff,
quando o PSB cumpriu o seu papel, na pessoa do então presidente da sigla Eduardo Campos (1965-2014), e advertiu a
mandatária sobre os graves problemas que seriam gerados pela ausência de diálogo político e pelos equívocos e
irresponsabilidades cometidos na economia.
Lamentavelmente, não fomos ouvidos e nenhuma mudança de rumo aconteceu. Reeleita, a presidente cuidou de
prover novos ingredientes a uma receita já desastrada. Para espanto de todos, iniciou o novo mandato com a proposta de
um ajuste fiscal de viés claramente liberal e conservador, que incluiu a diminuição de direitos previdenciários e trabalhistas e
cortes nos programas sociais. Contrariou o programa de governo que não escreveu, mas que verbalizou fartamente por
meio de sua publicidade, evidenciando as fragilidades até então negadas.
Nos aspectos que envolvem diretamente a vida dos cidadãos e compõem o pano de fundo do processo de impedimento
ou "juízo político", como dizem de forma mais apropriada os hispânicos, nosso país acumula derrotas sob o comando da
presidente Dilma. O governo tenta sem sucesso pôr em prática uma política econômica de tendência tristemente
conservadora, que valoriza e beneficia de forma excessiva o setor financeiro, em detrimento da produção, do trabalho e do
emprego.Sacrifica o futuro do país ao desmontar a política de ciência, tecnologia e inovação, destruindo assim, em pouco
tempo, um esforço que até certo ponto vinha sendo bem-sucedido. Liquida a indústria nacional, cuja participação no PIB
regride a patamares de 50 anos atrás.
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Enfraquece ainda mais a Federação, cujas consequências na prestação de serviços básicos à população já estão muito
evidentes. Dessa forma, despreza a agenda política progressista, ao banir para a condição de verniz de discurso as reformas
política, agrária, urbana, federativa e tributária. Entrega simultaneamente ao trabalhador, por exemplo, o corte de mais de 9
milhões de postos de trabalho e a limitação de direitos trabalhistas, com destaque para o seguro-desemprego.
Igualmente grave é a explosão da dívida pública, que perigosamente aproxima-se de R$ 3 trilhões, comprometendo
parcela significativa do orçamento da União. O impasse em que se encontra o país, entretanto, não resulta apenas dos
aspectos de natureza política. A simples leitura do bem fundamentado parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) revela
que a presidente cometeu crime de responsabilidade ao editar decretos de aumento de despesa sem autorização do
Congresso, desrespeitando a Constituição e a lei orçamentária.
Portanto, não há dúvida de que ao descalabro governamental somam-se aspectos legais. A inaceitável narrativa do
"golpe" beira o ridículo. Diante desta sombria realidade, a dinâmica política impõe ao PSB apoiar o processo de
impeachment que ora tramita na Câmara dos Deputados, única saída constitucional e legal, no momento, para que nosso
país tenha um governo de transição, a exemplo do que realizou o presidente Itamar Franco.
Um governo que coloque o país nos trilhos e inicie a tarefa de reconstrução nacional, unindo a nação e promovendo a
necessária coesão social e política, visando enfrentar a herança, esta sim maldita, do atual governo.
CARLOS SIQUEIRA é presidente nacional do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de
2016.
Golpe brasileiro ameaça democracia (MARK WEISBROT)
A PRESIDENTA Dilma Rousseff está ameaçada de impeachment, mas não há evidências que a vinculem a qualquer
esquema de corrupção. Em vez disso, ela é acusada de manipular as contas públicas, algo que presidentes anteriores já
haviam feito.
Para traçar uma analogia com os Estados Unidos, quando os republicanos se negaram a elevar o teto da dívida, em
2013, a administração Obama recorreu a vários truques de contabilidade para adiar o prazo final no qual se alcançaria o
limite. Ninguém se incomodou com isso. A campanha do impeachment, que o governo descreveu corretamente como golpe,
é um esforço da elite brasileira tradicional para obter por outros meios aquilo que não conseguiu conquistar nas urnas nos
últimos anos.
O ex-presidente Lula é acusado de receber dinheiro de empresas investigadas por corrupção para fazer discursos e
reformar um imóvel que ele afirma não ser dele. Mesmo que as acusações sejam verdadeiras, não há prova de vínculo com
corrupção. O juiz Sergio Moro, entretanto, lidera uma bem executada campanha de difamação de Lula. O magistrado teve
que pedir desculpas ao Supremo Tribunal Federal por ter divulgado grampos telefônicos de conversas entre Lula e Dilma,
Lula e seu advogado e até mesmo entre a mulher de Lula e os filhos deles.
É claro que o Partido dos Trabalhadores não estaria vulnerável a essa tentativa de golpe se a economia não estivesse
em recessão profunda. Mas também a esse respeito a mídia está claramente equivocada, defendendo mais cortes nos
gastos públicos e mais juros altos. O Brasil precisa, pelo contrário, de um estímulo sério para fazer sua economia pegar no
tranco. O principal obstáculo à recuperação é o poder dos grandes bancos.
O Brasil está pagando juros de quase 7% de seu PIB sobre a dívida pública, mais que a Grécia no auge de sua crise.
Mas o Brasil não tem crise de dívida nem apresenta qualquer risco significativo de moratória. Seus juros usurários são o
resultado do poder político de seus próprios bancos, que hoje desfrutam um "spread" recorde de 34% entre suas taxas de
empréstimos contraídos e concedidos.
A simples redução dos juros sobre a dívida pública para o nível de alguns anos atrás criaria condições para um estímulo
importante. O governo dos EUA vem guardando silêncio sobre esta tentativa de golpe, mas há poucas dúvidas quanto à sua
posição. Ele sempre apoiou golpes contra governos de esquerda no hemisfério, incluindo, apenas no século 21, o Paraguai
em 2012, Haiti em 2004, Honduras em 2009 e Venezuela em 2002.
O presidente Obama foi à Argentina para derramar-se em elogios ao novo governo de direita, pró-EUA, e a
administração reverteu sua política anterior de bloqueio de empréstimos multilaterais ao país. E hoje, no Brasil, a oposição é
dominada por políticos favoráveis a Washington.
Seria mais uma coisa lamentável se o Brasil perdesse boa parte de sua soberania nacional, além de sua democracia,
com este golpe sórdido.
MARK WEISBROT é codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy,
organização norte-americana especializada em política externa. Tradução de CLARA ALLAIN. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,
Abril de 2016.
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O 'outrem' e o 'nós' de Temer (PASQUALE CIPRO NETO)
MUITO já se falou sobre o "exercício" de Temer que "vazou" no início da semana e sobre a impressionante capacidade
que essa gente tem para inventar razões para certos atos. Parece-me, no entanto, que um ponto do "treinamento" de
Temer passou despercebido. Transcrevo a passagem em questão: "... eu sei que dizem de vez em quando que, se outrem
assumir, nós vamos acabar com o Bolsa Família, vamos acabar com o Pronatec, vamos acabar com o Fies. Isto é falso. É
mentiroso".
Por favor, releia o trecho que transcrevi, com atenção especial para a palavra "outrem". Imagino que boa parte dos
leitores saiba o que significa "outrem", mas não custa transcrever o que registra o "Houaiss": "Pessoa que não participa do
processo de comunicação e cuja menção é imprecisa ou indefinida (seja porque o falante não sabe, seja porque não lhe
interessa dar a indicação precisa); outra pessoa".
A julgar pelo uso que Temer fez de "outrem", o brilhante pessoal do Instituto Houaiss será obrigado e dar outra
redação à definição desse pronome, a começar pelo tipo de pronome. O "Houaiss" diz que outrem é pronome indefinido,
mas Temer, inexorável, acaba com isso. Bem, para quem ainda não entendeu o que expliquei no parágrafo anterior, lá vai:
Temer disse que sabe que de vez em quando dizem que, "se outrem assumir, nós vamos acabar com o Bolsa Família...".
Quem leu com atenção o trecho destacado notou que o "outrem" de Temer se tornou "nós" imediatissimamente.
Temer nem se vale do recurso da ocultação do sujeito de "vamos", o pronome reto "nós", que poderia ter ficado implícito na
desinência dessa flexão verbal. Em outras palavras, o "outrem" de Temer não é o que está no "Houaiss" ou nos outros
dicionários; é mesmo o definidíssimo "nós", ou, como diria a galera, "é nóis" (ou, melhor ainda, "É nóis, mano!"). Como diria
o impagabilíssimo Osmar Lins, do PAN (Partido dos Aposentados da Nação), "Peroba neles!".
Mas voltemos ao "aquecimento" de Temer e suponhamos que ele não tivesse empregado "outrem". Teríamos algo
semelhante a isto: "... eu sei que dizem de vez em quando que, se assumirmos, nós vamos acabar com o Bolsa Família...".
Se assim tivesse sido, alguém poderia dizer que Temer teria se valido do plural majestático, que se caracteriza quando uma
autoridade emprega "nós" no lugar de "eu", por exemplo.
Modéstia? Sim, de fato Temer fala em modéstia em outra passagem do seu "treinamento": "...muitos me procuraram
para que eu desse pelo menos uma palavra preliminar à nação brasileira, o que eu faço, com muita modéstia, com muita
cautela, com muita moderação...". A modéstia de Temer é patente e inquestionável, sobretudo quando se leva em conta o
que o ainda vice-presidente disse sobre as declarações do ministro Ricardo Berzoini a respeito da fala de Temer. Lá vai:
"Certas afirmações não merecem, digamos assim, a honra da minha resposta". Haja modéstia!
A sucessão de patacoadas que os nossos brilhantes homens públicos (da situação e da oposição) têm proferido é de
chorar, é, literalmente, desesperadora. Lamento dizer, mas esse é o mais fiel retrato da verdadeira nação que somos,
"primitiva", como bem disse o grande Clóvis Rossi em recente artigo. O que o discurso dessa gente deixa escapar é só uma
nesga da barbárie. É isso.
PASQUALE CIPRO NETO é Professor de português desde 1975 e também colunista semanal desta publicação. É o idealizador e
apresentador do programa “Nossa Língua Portuguesa”, transmitido pela Rádio Cultura (São Paulo) AM e pela TV Cultura, e do
programa “Letra e Música”, transmitido pela Rádio Cultura AM. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
Somos os otários de todos
(CONTARDO CALLIGARIS)
NO DIA 8/4, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) tomou a palavra na Comissão Especial do impeachment.
Mostrou (mais uma vez) que esse impeachment não tem tanto a ver com as pedaladas fiscais, por mais que fossem
enérgicas, quanto com o descontrole, a incompetência e a corrupção no partido de governo.
Até aí, tudo bem. Mas, criticando a política educacional do PT, o deputado produziu esta pérola: "É a receita de
Gramsci, da hegemonia cultural, e da escola de Frankfurt, da doutrina de gênero, numa tentativa de destruir a família"¦"
Mamma mia. Deputado, Gramsci não distribuía receitas. Nos cadernos que ele preencheu no fundo das prisões fascistas, ele
registrava suas tentativas de entender como funciona o mundo. A "hegemonia cultural" não é uma estratégia que Gramsci
proporia ao partido comunista; ao contrário, trata-se de um conceito para tentar entender como, em cada momento da
história, a classe dominante produz e impõe à população um conjunto de ideias e crenças.
Entender como funciona a hegemonia cultural talvez nos permitisse nos livrar (um pouco) dela, ou seja, descartar a
visão do mundo sugerida pelos preconceitos mais triviais das "elites". O incrível parágrafo do deputado Marinho é um bom
exemplo da retórica da hegemonia cultural. A família sequer é um valor cristão, sua idealização faz parte de um projeto de
gestão de nossas vidas – por exemplo, o dos vários movimentos "Tradição, Família, Propriedade". Marinho convida seus
ouvintes a defender a família para que, combatendo o PT e Gramsci etc., eles aceitem a família como um pressuposto e se
esqueçam de criticar esse valor.
Vamos à frase seguinte de Marinho, a "doutrina de gênero da Escola de Frankfurt". Aqui, evito os detalhes, porque
sinto um pouco de vergonha alheia. Com o que se apavora o deputado? Com a ideia de que o gênero poderia ser uma
construção social e não só um efeito do sexo anatômico? Ou ainda com a obviedade de que alguém pode se sentir
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pertencendo a um gênero que não corresponde ao seu sexo anatômico? O que propõe o deputado: exterminar essas
pessoas? Segregá-las para que ele não se sinta ameaçado em suas certezas?
Mais uma coisa: não existe uma "doutrina de gênero", salvo a dos que querem nos convencer de que só há dois
gêneros e eles devem corresponder ao sexo anatômico de cada um (mais um exemplo de hegemonia cultural, aliás). A frase
do deputado Marinho não vale essa resposta toda. De onde vem minha irritação? É que pertenço, há tempos, à classe dos
otários, e isso começa a me irritar. É uma classe média, remediada (enriquecer não está no topo da lista), alguns são
marxistas, outros liberais, mas o essencial é que todos são frequentadores de cinemas, teatros e livrarias, geralmente laicos
e agnósticos em matéria de religião, desprezam os moralistas, desconfiam das agremiações que ferem a liberdade individual
e promovem ideais de justiça social e de convivência social-democrata.
Você se reconheceu? Não tem um partido que nos represente. A Rede? Só se Marina nos escrevesse uma carta jurando
que ela governaria sem o apoio da bancada evangélica. O PSDB? Rogério Marinho é do PSDB, João Campos também é, com
sua moção de repúdio ao "beijo gay" nas novelas. O PT, por não ser um partido marxista, poderia representar uma boa
parte dos nossos. Seriam seus "companheiros de caminhada". Claro, veio o mau governo. Mas já éramos os otários da
caminhada. O governo sempre preferiu comprar a amizade de Maluf, Malafaia etc. a respeitar quem tinha depositado nele
suas esperanças de uma sociedade melhor. O pressuposto, suponho, era que nós reconheceríamos a necessidade das
alianças e continuaríamos apoiando o partido, sem precisar que ele respondesse aos nossos anseios.
E o resultado foi o abandono de qualquer agenda libertária e progressista. Um exemplo? Em 14 anos, o governo foi
incapaz de introduzir sequer a discussão de um projeto de descriminalização do aborto. O medo de comprar brigas e de
perder apoios falou sistematicamente mais alto. Alguém dirá que isso seria arriscado demais num país católico como o
Brasil. A Itália e a Espanha também eram. Outros dirão que a agenda libertária é coisa para país nórdico. Concordo, nórdico,
como o Uruguai.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
Universidades em defesa da democracia
(MARIA LÚCIA CAVALLI NEDER)
O CONSELHO Pleno da Andifes, representação oficial das universidades federais brasileiras, reunido no dia 17 de
março, manifestou preocupação com o agravamento da crise política e econômica no país e suas ameaças à ordem
constitucional e aos direitos civis, políticos e sociais do povo brasileiro.
Os reitores das universidades federais repudiam argumentos pseudo-jurídicos utilizados para encobrir interesses
político-partidários e a busca pelo poder, com a divulgação seletiva de elementos processuais antes da conclusão dos
processos, ignorando o princípio da presunção de inocência. Igualmente, reprovam o uso de interpretações políticas parciais
em substituição aos preceitos constitucionais que, necessariamente, devem fundamentar qualquer processo de impedimento
de mandato legitimamente conquistado.
Ao se propor o impeachment sem cumprir os requisitos constitucionais de mérito, não se estará apenas afastando
injustamente uma presidente legitimamente eleita mas sim cassando o voto livre de 54 milhões de brasileiros. Também
preocupa o ataque agressivo, com fins desmoralizantes e deslegitimadores, desferidos contra a política, os políticos e os
partidos políticos em geral. Se nessas searas habitam personagens desacreditados, muitas vezes com protagonismo, ainda
que efêmeros, entendemos que a depuração será alcançada pelo repetido exercício de eleições e do contraditório civilizado,
pois a alternativa é se curvar ao domínio dos espertos ou das hordas atiçadas.
Os homens públicos de responsabilidade - e eles existem em todos os partidos -, as instituições e a sociedade civil, em
especial a academia, não podem se submeter aos interesses inconfessáveis daqueles que apostam no "quanto pior, melhor".
Estamos falando de uma das maiores economias do mundo, referência democrática para todo o continente. A ninguém trabalhadores, empresários, intelectuais, instituições- interessa um país com economia estagnada, com instituições e
lideranças políticas debilitadas, uma sociedade fracionada e beligerante. Por isso mesmo, a situação requer, mais do que
nunca, a obediência aos preceitos constitucionais e espírito público na defesa da democracia e do Estado de Direito.
As universidades federais, pautadas pelo rigor científico, pela criatividade acadêmica, pela liberdade de pensamento e
pela pluralidade de ideias, estão comprometidas com o fortalecimento das instituições públicas em defesa da democracia, da
justiça social e da paz. A política e o ambiente democrático são os melhores remédios para superar as controvérsias naturais
da sociedade. A lei é para todos, inclusive para os operadores do direito. As regras devem ser seguidas. O combate à
corrupção e a disputa pelo poder só serão legítimos, legais e virtuosos sob a égide dos preceitos constitucionais.
Expressamos a nossa expectativa de rigorosa apuração de todas as denúncias de corrupção e defendemos
intransigentemente os princípios republicanos presentes na Constituição Federal.
MARIA LÚCIA CAVALLI NEDER, reitora da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), é presidente da Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
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Tasaday - Afinal, quem são? (ÁTILA SOARES COSTA FILHO)
A estranha saga da tribo que desconhecia a religião e a guerra
NEM MESMO a mais densa floresta tropical do
mundo seria obstáculo para os olhares curiosos da mídia
internacional naqueles meses quentes de 1972. Sendo o
estilo "documentário televisivo" ainda uma novidade - e
muito apreciada nos lares, sobretudo americanos e
europeus -, a bola da vez da imprensa planeta afora era
a ilha filipina de Mindanao, no Sudeste Asiático. O
motivo? Teria sido descoberta, no ano anterior, a
comunidade humana mais primitiva de todos os tempos,
se comportando e sobrevivendo de maneira exata a dos
ancestrais na Pré-História.
Tudo se deu por conta das informações passadas
por um caçador ao diretor da agência governamental de
apoio e preservação às minorias culturais daquele país a PANAMIN -, Manuel Elizalde (este, um amigo íntimo do
ditador filipino Ferdinando Marcos). O rústico caçador
confessara a Elizalde seus raros contatos com alguns
habitantes na "intocada" região. Estes encontros teriam
posto um fim de, pelo menos, mil anos de isolamento
total daquela pequena comunidade, desde seu
assentamento ali. Não demorou para que o Ocidente sempre ávido por curiosidades exóticas - tomasse
conhecimento daquele furo excepcional de reportagem.
Afinal, nossa cultura passou a ser herdeira da trilha
iniciada pelo antropólogo britânico Bronislaw Malinowski
(1884-1942), pioneiro da Antropologia Funcionalista. Esta corrente defendia as instituições sociais como dependentes da
cultura, onde esta e o indivíduo se integram e interagem. Assim, Malinowski entendia o animal humano como um organismo
vivo que gostava de fabricar todas as ferramentas que o conduzissem à realização de suas vontades.
A princípio tudo aquilo, de fato, remetia a uma genuína viagem no tempo: os habitantes, de aspecto muito primitivo, e
andando seminus, viviam de forma extremamente minimalista, se valendo de uma tecnologia arcaica ao máximo. Sem a
menor dúvida, não haveria espaço para grandes realizações na produção artística, de utensílios, ou na fabricação de armas,
e muito menos arquitetônica (já que a vida era em cavernas). A escrita, completamente ignorada. Também chamava a
atenção o caráter pacífico daquela gente que, ao que tudo indicava, ignorava em seu vocabulário termos para "arma",
"guerra" ou "inimigo", e não praticavam religião ou rito algum. Apesar do pouco número de integrantes, as junções
consanguíneas também eram proibidas - assim como a traição conjugal.
O primeiro encontro de Elizalde com os tasaday aconteceu em junho de 1971, em uma clareira montada na borda da
floresta. Para ali havia se dirigido com um grupo que incluíam um piloto de helicóptero, um médico, seu guarda-costas,
alguns nativos (que ajudassem na comunicação) e Edith Terry, uma estudante da Universidade de Yale. No ano seguinte, foi
a vez de Elizalde trazer consigo a Associated Press e a National Geographic Society para um novo encontro - agora, no
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interior de uma "autêntica" caverna pré-histórica. Eram muitas as matérias que iam para a mídia impressa e eletrônica, além
de documentários na TV e entrevistas. O tema fervilhava em todas as grandes capitais do planeta, provando que os tasaday
gozavam de uma imensa popularidade.
"O primeiro encontro de Manuel El izalde com os tasaday aconteceu em junho de 1971, em uma clareira montada
na borda da floresta"
Porém, em 1976, o presidente Ferdinando
Marcos manda fechar o acesso à então
proclamada reserva. Na verdade, desde
1972 que ela tinha tido sua acessibilidade
muito limitada pelas autoridades, em uma
política de preservação cada vez mais
obscura. Àquela altura iniciava-se por
parte da imprensa e opinião pública uma
série de desconfianças sobre aquela
insólita história. A razão foi uma série de
incompatibilidades que naturalmente iam
se apresentando, como o fato de jamais
alguém ter achado restos de defuntos
dentre a comunidade, nem mesmo traços
de rejeitos ou resíduos, naturais em
qualquer grupo humano - pré-histórico ou
não. Também a honestidade de Elizalde foi
posta em dúvidas depois ter informado
sobre a dieta de 24 remanescentes na aldeia, como composta por frutas silvestres, miolos de palma, inhame (que se achava
em escassez na época), raízes, larvas e girinos. Entretanto - como foi posteriormente comprovado -, tal hábito alimentar
viria a compor somente menos de 30% das necessidades energéticas daquele resto de povo, o que se constituía em uma
inviabilidade total.
"Eram muitas as matérias que iam para a mídia impressa e eletrônica, além de documentários na TV e
entrevistas. O tema fervilhava no mundo"
De fato, a fama de Elizalde nunca tinha sido das melhores: volta e meia envolvido em escândalos, o muito
ambicioso bon vivant às vezes podia parecer, à vista de todos, querer se aproveitar da causa para se apropriar dos hectares
da reserva e tocar seus projetos na política. Este playboy não hesitaria em proibir terminantemente o acesso de
nutricionistas e agentes de saúde desejosos de aprofundarem suas pesquisas em torno da aparentemente malnutrida tribo...
e foi o que fez. Aos poucos, o mundo ia se esquecendo dos exóticos tasaday.
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Eis que, após o misterioso assassinato em 1983 de Benigno Aquino Jr. - líder da oposição ao governo de Marcos -,
Elizalde foge do país, vindo a ser acusado de levar 35 milhões de dólares da fundação. Ainda retornaria às Filipinas em
1987, mas viria a falecer de leucemia na Costa Rica dez anos mais tarde, viciado e completamente falido. As fontes
informavam que o motivo da falência foram o vício, seu gosto exacerbado por bebida e mulheres - para sua residência na
Costa Rica, havia até trazido algumas jovens filipinas. Seja como for, com a deposição de Ferdinando Marcos em 1986,
finalmente, o caminho parecia estar livre para a imprensa e os pesquisadores... e foi aí que a chocante realidade veio à
tona.
Oswald Iten, um antropólogo e
jornalista suíço vai às cavernas e passa juntamente com auxiliares, incluindo o
repórter filipino Joey Lozano - cerca de
duas horas com seis membros tasaday. O
depoimento de Iten revela que as
cavernas, no instante de sua chegada,
estavam
todas
desertas
e
que,
simplesmente,
aquela
comunidade
supostamente paleolítica - agora vestida
de jeans e t-shirts - era nada mais que
integrantes de conhecidas tribos locais
que, sob pressão de Elizalde, passaram a
se comportar, diante das lentes, como da
Idade da Pedra em troca de benesses
assistencialistas. Diria Iten: "A fraude
parecia óbvia já há tempos. Alguns queriam saber por que as cavernas eram tão limpas. Mesmo uma tribo da Idade da
Pedra teria produzido lixo - como cascas de caranguejo ou restos de comida. E como uma pequena tribo poderia evitar a
consanguinidade? Além de tudo, estes indígenas também se posicionavam a apenas três horas a pé de uma vila moderna.
Parece estranho não terem encontrado a aldeia enquanto procuravam por comida".
"A fraude parecia óbvia já há tempos. Alguns queriam saber por que as cavernas eram tão limpas. Mesmo
uma tribo da Idade da Pedra teria produzido lixo"
Em outro episódio, a revista alemã Stern, em 1986, enviou jornalistas para algumas entrevistas com o grupo. Logo a
seguir, aqueles alemães declararam ter notado partes de roupas de tecido por baixo das folhagens com as quais os nativos
tentavam se fazer passar por primitivos. Claramente, foram pegos de surpresa pelos jornalistas e, desesperados,
rapidamente se "ajeitaram" na forma que puderam...
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Seja como for, mais interrogações se somariam a tantas mal explicadas questões, como o porquê dos membros da
tribo serem tão resistentes a doenças (pois o isolamento absoluto deveria lhes atribuir o efeito contrário), e da razão de
tantos de seus instrumentos e utensílios parecerem cortados com uso de facas de aço, se todos ali deveriam desconhecer o
metal. Agora, todo o cenário parecia revelar um grande embuste montado para gerar mais dinheiro, assim como desviar a
atenção dos excessos totalitaristas nas Filipinas. A ideia seria maquiar o país como mantenedor de um Éden pacífico onde a
inocência e a paz fossem ali soberanas. Mas os eventos de então, parecendo conduzir ao sepultamento do caso, também
traziam algumas revelações em sentido oposto.
Ainda em 1986, durante o segmento intitulado para o programa 20/20 da ABC, dois jovens tasaday disseram ao
entrevistador, por meio de Galang, um tradutor contratado, que eles realmente não eram tasaday. Dois anos depois, os
mesmos tasaday - de nomes Lobo e Adug - vieram a público confessar que, na verdade, haviam mentido na entrevista
encorajados pelo tradutor, que lhes prometera cigarros e roupas caso topassem entrar na farsa. Galang ainda confirmaria a
declaração de ambos.
Posteriormente foi a vez de um acadêmico de Linguística da Universidade do Havaí, o Professor Lawrence A. Reid,
trazer mais elementos de grande relevância após ter passado 10 meses com a tribo e mais alguns grupos linguísticos
vizinhos entre 1993 e 1996. O professor concluiu que provavelmente eram tão primitivos quanto aparentavam de quando
surgiram para o mundo, e que sua língua era um dialeto diverso daquele do grupo mais próximo. Entretanto, ele viria a
publicar no periódico Linguistic Archaeology que, após uma análise pormenorizada, verificou-se que, na verdade, havia cerca
de 300 variações do dialeto tasaday no Kulaman (parte do Manobo). Reid ainda declarou que os tasaday tinham se
espalhado fora da comunidade do Cotabato há não mais de dois séculos - provavelmente em razão de algum surto de
doença. Mais uma vez a versão do embuste ganhava força, já que a impressão era que se esculpia a imagem da tribo como
do "bom selvagem"; e seu mundo, o idílico símbolo de uma nação notoriamente opressora.
"O cenário parecia revelar um grande embuste montado para gerar mais dinheiro, assim como desviar a
atenção dos excessos totalitaristas nas Filipinas"
Mas Elizalde estava longe de se render. Empenhou-se em defesa dos tasaday quando o congresso ia a fundo na
história para descobrir alguma provável farsa. Em 1988 leva membros da aldeia para Manila a fim de abrir um processo
contra os "caluniosos" professores filipinos. E, apesar das desconfianças de que um dos redatores dos discursos da
presidente Corazon Aquino fosse um amigo do mesmo, naquele ano, a própria declara que os tasaday eram uma "legítima
tribo da Idade da Pedra." Afinal, os tasaday eram, sim, muito rudimentares, mas não levavam, propriamente, uma vida ao
estilo paleolítico. Estudos antropológicos apontaram, além do fato de pertencerem ao grupo Lumad, que estes seminômades
adotavam a economia de subsistência de forrageamento. Sua dieta consistia de alimentos silvestres e caseiros, extraídos de
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pequenos jardins, onde a maior parte era obtida com o esescambo de produtos florestais com os agricultores manobo - a
não mais que 40 quilômetros de distância. Quanto às cavernas, apenas as procuravam para se abrigar à noite em razão de
suas idas atrás de comida. Na verdade, eles viviam em cabanas simples. Assim, mantinham certo contato com outros grupos
manobo do Cotabato do Sul, especialmente o povo de Blit (distando a apenas 4 quilômetros dos tasaday).
"Os tasaday viviam em cabanas simples. Assim, mantinham certo contato com outros grupos manobo do
Cotabato do Sul, especialmente o povo de Blit"
Hoje os tasaday, obviamente, cederam à imperiosa força da Nova Ordem, da evolução cultural e tecnológica de um
mundo geopoliticamente muito transformado, e se encontram em situação de pobreza - a exemplo do que ocorre com os
povos indígenas no continente americano. A farsa, tida como a maior na Antropologia depois do capítulo "Homem de
Piltdown", foi um fato. Porém, mesmo os catedráticos mais exigentes concordam que a descoberta trouxe alguma novidade
para o cenário da Antropologia, além da sensação de espanto geral. Lembremos que a Humanidade conquistara o espaço
havia pouco mais de uma década, e que a Guerra do Vietnã expunha o que havia de pior em nossa natureza. Um retorno ao
Éden pacífico, ainda que inconsciente, talvez fosse o sonho de muito bicho-homem naqueles dias tão singulares na História.
SAIBA +
NANCE, John. The Gentle Tasaday: A Stone Age People in the Philippine Rain Forest. New York: Harcourt Brace
Jovanovich, 1975.
HEMLEY, Robin. Invented Eden: The Elusive, Disputed History of the Tasaday. New York: Farrar, Straus and Giroux,
2003.
HEADLAND, Thomas N. (ed.). The Tasaday controversy: Assessing the evidence. American Anthropological Association
Scholarly Series, 28. Washington, D.C.: American Anthropological Association, 1992.
ITEN, Oswald. Die Tasaday: Ein Philippinischer Steinzeitschwindel. Neue Zurcher Zeitung: Zurich, 12 abr. 1986, p. 7789.
Átila Soares da Costa Filho é designer, especialista em História da Arte, Filosofia e Sociologia. Também é autor de A
Jovem Mona Lisa e outras questões curiosas na História da Arte (Ed.Multifoco, Rio).
ÁTILA SOARES COSTA FILHO é designer, especialista em História da Arte, Filosofia e Sociologia. Também é autor de A Jovem
Mona Lisa e outras questões curiosas na História da Arte (Ed.Multifoco, Rio). Revista LEITURAS DA HISTÓRIA, Abril de 2016.
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