Eliakim Ferreira Oliveira

Transcrição

Eliakim Ferreira Oliveira
Redação Selecionada e publicada pela
Olimpíada de Química SP-2013
Autor: Eliakim Ferreira Oliveira
Série: segunda (2012) do Ensino Médio
Profs : Maurício Rodrigues e Talita Marcília de Oliveira Silva
Colégio: Santa Maira
Cidade: São Paulo, SP
Criando e Recriando a Realidade
Ao refletirmos sobre a história da humanidade, analisando especificamente a relação entre o
homem e as imagens, perceberemos uma necessidade indissociável de análise, reprodução e até
mesmo criação da realidade. E o homem o fez de diversas maneiras, sendo uma das principais a
pintura, relacionada fundamentalmente com a observação minuciosa de todas as cores que
compõem a realidade e a carência de reproduzi-las. E foi assim que o homem não só recriou a
realidade, mas também a reformulou, pondo-lhe novos elementos e novas cores. Para isso, foi
importantíssima a utilização das tintas e, por extensão, o uso do conhecimento acumulado da
Química e da Ciência como um todo.
Estamos no ano de 1666. Enquanto a peste negra assola a Inglaterra, um jovem caminha por
uma típica feira na cidade de Woolsthorpe; repentinamente, observa um prisma de vidro. Neste
momento, algo distinto (talvez profético) passa pela cabeça do jovem e o faz comprá-lo. Era apenas
um peso de papel. Entretanto, quem diria que este peso de papel revolucionaria a Ciência? Talvez se
soubéssemos que esse jovem andarilho é nada mais, nada menos que o futuro “Sir” Isaac Newton
(1642-1727), pai de uma nova visão científica que permearia a ciência por séculos, não teríamos
dúvida de que aquele momento era, quem sabe, extemporâneo para o conhecimento. Observando,
em seu dormitório, como um raio de sol vindo da janela decompunha-se ao refratar-se pelo prisma,
Newton teve sua atenção atraída pelas cores do espectro. Pondo um papel no caminho da luz que
emergia do prisma surgiam as sete cores do espectro, em raias sucessivas: o vermelho, o laranja, o
amarelo, o verde, o azul, o anil e o violeta. E o jovem resolveu ir além: repetiu a experiência com as
cores que formavam o espectro. A decomposição, porém, não se repetia: as cores permaneciam
simples. Conseguintemente, Newton concluiu que a luz branca é, na realidade, composta de todas as
cores do espectro. Provou tal hipótese de dois modos diferentes: inicialmente, utilizou-se de uma
lente, obtendo, em seu foco, a luz branca; e, depois, através de um dispositivo mais rudimentar, que
passou a ser conhecido como disco de Newton. Trata-se de um disco dividido em sete setores, cada
uma, pintada com uma das cores do espectro. Fazendo-o girar rapidamente, as cores superpõem-se
sobre a retina do olho do observador, e este recebe a sensação do branco. Era o estopim de um
vastíssimo conhecimento que se ia construindo e que nos permitiria o entendimento qualitativo das
cores que formam o Universo.
Voltemos agora no tempo. Estamos nos anos idos de 1490, na Itália, país que terminara há
pouco de misturar os ingredientes certos que dariam origem a uma das maiores revoluções nas artes
e ciências – o Renascimento (fundamental para a posterior descoberta de Newton). Nesse mesmo
ano, o multifacetado pintor Leonardo da Vinci (1452-1519) dá suas últimas pinceladas em uma de
suas obras-primas, ainda que não esteja dentre as mais célebres: vê-se uma senhorita, de belas
feições, segurando um animalzinho, para nós conhecido como arminho ou como doninha; por suas
vestimentas, percebe-se que faz parte de certa elite: esta senhorita é Cecília Gallerani, amante do
Duque Ludovico Sforza. E o que mais poderia impressionar-nos é um peculiar jogo com a luz: esta
incide no busto de Cecília e no mirrado corpo da doninha, e atrás vemos uma escuridão que deglute
qualquer luminosidade. Tal obra poderia, pois, representar um distinto conhecimento no uso das
tintas, indissociável ao grande pintor que foi Leonardo da Vinci. Eis que em A Dama com o
Arminho observa-se o quão as tintas podem refletir o modo como o artista contempla a realidade:
uma contradição, um contraste, um entrechoque entre luz e sombra.
Para Leonardo, a pintura era uma ciência. Mas via-a de uma maneira mais física. Cria, por
exemplo, que para compreendê-la era imprescindível o entendimento dos movimentos dos corpos.
Todavia, Leonardo não dava tanta atenção, de certa forma, à matéria-prima que sustentava sua
pintura: Leonardo nunca mencionou o quão importante eram para a pintura as tintas que utilizava.
Ora, pois, o que seria dessa “ciência” sem as cores que tanto delineiam as formas reais fitadas pelo
artista? E as cores da pintura nada mais são que o fruto da mistura e do caldeamento das várias
tintas, quiçá infinitas, que permitem a reprodução quase verossímil da realidade.
Nesse sentido, se desejamos realmente enfatizar a importância da tinta como recurso que nos
permite variadas criações, fundamentalmente a reprodução da realidade, como o fez Da Vinci,
voltemos à Inglaterra de Newton e saltemos alguns anos. Que tal o século XIX? Já é um período de
grande maturação do conhecimento científico. A visão científica lapidada por Newton e outros
grandes cientistas anos anteriores já tinha dado bons frutos. No East End londrino um jovem
chamado William Henry Perkin (1838-1907) decidira seu caminho: seguiria as veredas galgadas
pela Química. E sua contribuição para este amplíssimo ramo da Ciência estaria imbricada na
descoberta de um corante. Perkin, no sótão da casa de seus pais, tentou oxidar o sulfato de anilina,
substância derivada do alcatrão. O resultado foi um pó negro não muito impressionante. No entanto,
ao dissolvê-lo em “espírito de vinho”, o resultado foi notável. Perkin descobrira uma cor
inteiramente nova – a malva. O químico tingiu um pedaço de seda e apresentou-o aos amigos, que
ficaram impressionados, sugerindo que ele podia ganhar dinheiro com a descoberta. A alternativa
natural mais próxima à malva de Perkin era a púrpura. Tal corante fora utilizado para tingir o manto
de imperadores romanos e era extremamente caro. Para produzi-lo, carecia-se de extrair o muco
glandular de milhares de moluscos. Contudo, a invenção de Perkin era bem mais barata e em muitos
aspectos superior: sempre produzia o mesmo tom uniforme, não possuía um odor semelhante ao de
peixes e, mais importante, não desbotava à luz do Sol. Era um grande sucesso!
Conta-se que, em 1848, a rainha Vitória usou a cor no casamento da filha, a imperatriz
Eugênia, um ícone da moda. Logo, as ruas londrinas estavam inundadas de gente vestida naquele
tom – um surto da cor malva. A descoberta coloriu a era vitoriana e concedeu o título de cavaleiro a
William Henry Perkin. E o corante abriu portas para novas cores e para a indústria que as produzia.
Os corantes estavam entre os primeiros produtos a serem fabricados em escala industrial, sendo
logo seguidos por outros, como fertilizantes, sabão e dinamite. E, o que é digno de nota, percebeuse que o que foi feito pelo homem, o sintético, substituía o lugar do natural.
O inspirador de Perkin foi o alemão August Wilhelm von Hofmman (1818-1892), cujos
antigos colegas formaram a vanguarda da Química. Químicos profissionais alemães foram à
Inglaterra aprender os segredos cunhados por Perkin e retornaram à terra natal. Em 1878, a
produção inglesa de alcatrão de hulha rendia 450 mil libras, enquanto a alemã chegava a dois
milhões. Os químicos alemães, trabalhando num sistema universitário que incentivava a pesquisa,
descobriram uma nova gama de cores sintéticas. De importadora de corantes naturais, a Alemanha
passava a ser a maior exportadora de pigmentos sintéticos.
Até o final do século XIX, mais de noventa corantes já eram utilizados pela indústria
alimentícia. Surpreendentemente, em 1906 foi criada nos Estados Unidos da América a primeira
legislação de controle do uso de corantes pela indústria alimentícia. Deste momento em diante,
foram-se fazendo pesquisas que comprovaram a toxicidade de muitos corantes sintéticos, podendo
causar anomalias em recém-nascidos, distúrbios cardíacos ou cânceres.
Observa-se, portanto, que a Química proporciona um salto na indústria das tintas, o que nos
permitiu dar ainda mais cor ao mundo e também, como consequência, analisar a influência desses
novos compostos no próprio organismo humano. É claro que antes, mesmo sem a circunspecção do
conhecimento da Química, o homem o aplicava sem sabê-lo, com o uso de corantes naturais,
provindos de fontes naturais, tais como vegetais comestíveis (da cenoura, a cor laranja, da
beterraba, a cor vermelha, da uva escura, a cor preta); extratos de origem animal ou vegetais
normalmente não consumidos (do ácido carmínico, a cor vermelha, do estigma de açafrão, a cor de
mesmo nome); e resultados da transformação de substâncias naturais (do caramelo, o marrom).
Torna-se também pertinente discorrer sobre como a história da formação do Brasil entrou
em confluência com a história dos corantes. O pau-brasil, cobiçado pelos colonizadores por dele se
poder extrair um corante avermelhado largamente utilizado para tingir roupas na Europa, foi
explorado nas matas brasileiras durante os primeiros anos da colonização até a sua extinção.
Célebres químicos resignaram-se em prol do objetivo de se determinar a estrutura do corante
extraído do pau-brasil. É imprescindível citar o trabalho do químico francês Michel Eugène
Chevreul (1786-1889), pioneiro em tais pesquisas, que juntamente com o aclamado químico
Joseph-Louis Gay-Lussac (1778-1850) e Louis Nicolas Vauquelin (1763-1829) tornaram Paris o
centro da Química do século XVIII. O próprio Perkin foi outro que se dedicou ao estudo do corante
do pau-brasil. Coube, todavia, ao químico Robert Robinson (1886-1975), galardoado com o Prêmio
Nobel de Química em 1947, o privilégio de chegar à estrutura química da substância responsável
pela cor vermelha do pau-brasil. Robinson, que fora estudante de Doutorado de Perkin, na cidade de
Manchester, investigou esta substância de 1906 a 1974, quando publicou seu último artigo sobre a
brasilina, nome que deu à substância extraída da C. echinata (nome científico da árvore). Sem a
espectroscopia, Robinson definiu paulatinamente a estrutura da brasilina e demonstrou que o
produto da oxidação, a brasileína, é a substância responsável pela cor vermelha. E, ironicamente, tal
substância fora responsável por outra cor vermelha - esta, porém, provinda do derramamento de
sangue escravo no litoral brasileiro durante os primeiros anos da colonização.
Enfim, com esta retomada histórica vê-se que as tintas, as quais nos permitem criar e recriar
as cores, nos são indispensáveis. São necessidades intrínsecas do ser humano: colorir a vida,
recolorir a realidade, como se isso lhe preenchesse um vazio – algo que fez desde seus primórdios,
passando pelo momento em que compreendeu as cores até a sociedade imagética na qual vivemos.
A cor está presente em tudo o que observamos, ou com nossa visão comum, corriqueira, ou com a
contemplação que nos faz grandes reprodutores e reformuladores da realidade. Em quadros, roupas,
paredes, e, atualmente, na computação gráfica, quanto mais fidedigna a cor mais realista e natural
nos parecerá a realidade recriada. A Química, nesse sentido, sempre foi a grande contribuinte –
consolidada ou em processo de maturação. Nas primeiras imagens, nas primeiras tintas, nas cores
de Da Vinci, no pau-brasil e nos corantes sintéticos – lá estava a Química, ora criando ora recriando
a nossa realidade.
Referências Bibliográficas
• MOSLEY, Michael; LYNCH, John. Uma História da Ciência: Experiência, Poder e Paixão. 1ª ed. Tradução: Ivan
Weisz Kuck. São Paulo: Editora Zahar, 2011.
• VANIN, José Atílio. Alquimistas e Químicos: O Passado, o Presente e o Futuro. 8ª ed. São Paulo: Editora
Moderna – Coleção Polêmica;
• Coleção Os Cientistas – Vol. 1. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972.
• Coleção Os Cientistas – Vol. 2. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972.
• LOPES, João Manuel Brisson. Cor e Luz. Publicado em Maio de 2003 pelo Instituto Superior Técnico da
Universidade Técnica de Lisboa.
• PINTO, Angelo C. O pau-brasil e um pouco da história brasileira. Publicado pelo Instituto de Química da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
• TEIXEIRA, Luzimar. Corantes. Texto de apoio ao curso de Especialização, Atividade física adaptada e saúde.

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