do Trabalho completo

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Máquina-homem, Máquina-corpo – Um adeus ao corpo.
Igor Dreidy de Sousa Moraes1
Em um texto emblemático o filósofo francês David Lapoujade, atesta de forma
categórica que o corpo é aquilo que não aguenta mais: “Não se trata nem de um
postulado nem de uma tese, mas de um fato” (LAPOUJADE, 2002, p.82). O corpo seria
alguma coisa da ordem da mínima ação ou da ação mínima - esquadrinhado,
atravessado, aparelhado - o que sobra à esse corpo que não aguenta mais, talvez seja
algo do movimento que para, da paragem do movimento, ou ainda de uma certa
gagueira do corpo: “Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil
andar de bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar
(...)” (LAPOUJADE, 2002, p.82).
Por sua vez, esticado pelo filósofo húngaro-brasileiro Peter Pál Pelbart, o fato
atestado por Lapoujade é seguido da questão do que esse corpo estaria farto, o que ele
não aguentaria mais? Para Pelbart (2011), o corpo estaria cansado da máquina
civilizatória, do adestramento, e na esteira de Foucault, de “(...) sua docilização por
meio das tecnologias disciplinares” (PELBART, 2011, p.45). Em um duplo movimento,
essa gagueira do corpo, percebida principalmente na arte por David Lapoujade, seria
algo como que movimentos pendulares, como linhas de fuga; corpo esgotado do
controle da forma-homem, disfarce bizarro diria Roy Wagner (2012) – controle das
posturas, dos ruídos, das formas, dos desejos. Jogo esquizofrênico entre natural e
artificial. Nenhuma natureza-naturante, nenhum artifício-artificializante, ao que nos
parece, consegue dá conta desse imbróglio de carne, sangue, fluídos, discursos, imagens
– campo de forças, campo de batalha (FOUCAULT, 2013).
Tendo essas imagens em consideração, do corpo esgotado e da máquinacivilizatória - tão bem delineada por Nietzsche em sua Genealogia da Moral (2009) e
por Roy Wagner em seu A Invenção da Cultura (2012) – pensamos com Lapoujade,
seguindo Beckett, que esse corpo que não aguenta mais, seja como que resultante de
uma memória que também não aguenta mais. Uma memória cansada, aparelhada por
1
Mestrando em Antropologia Social/PPGANT-UFPI. Co-líder do grupo SCIMTECH/UESPI; Realiza
pesquisa em Antropologia da Técnica, Cibercultura e Imagem Virtual. < [email protected] > toda sorte de encontros tristes (DELEUZE, 2009), uma memória “hiperventilada”,
“estancada” em um duplo em que passado-futuro, lembrança-projeto se atravessam.
Esvaziamento do presente, da “experiência-tempo” ou ainda, que esmaga “(..) a
singularidade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum (...)”
(AGAMBEN, 2013a, p.10). O corpo que não aguenta mais, em um jogo disparatado de
permutação, choques e sobrecodificações se entrecruzam por/em matrizes (BRETON,
2009) que devém curvas e linhas que linearizam os movimentos desalinhados – traçam
todas as possibilidades, com fins definidos, com possíveis condicionados.
Memória-corpo, máquina que se acopla a tantas outras máquinas, recortada e
trespassada por agenciamentos, fluxos, cadeias semióticas (LAZZARATO, 2014) –
platô de intensidades e velocidades, como engendra Deleuze (DELEUZE &
GUATTARI, 1995a) na esteira de Spinoza (2013). O corpo que não aguenta mais, é
aquele que não aguenta mais o movimentar-se, o imperativo do mover-se - “Como não
se mexer, ou então, como se mexer só um pouquinho para não ter, se possível, que
mexer durante um longo tempo?” (LAPOUJADE, 2002, p.82) - a lembrança dos gestos
pré-configurados em um espaço estriado (DELEUZE & GUATTARI, 1997) - “De
qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões.2” - a imagem do desejo préfigurado – “E se a gente se enforcasse? Um jeito de ter ereção.3”.
Seguindo a genealogia de Nietzsche (2009), e a trilha de Wagner (2012) sobre a
invenção do homem (e da cultura), a memória presta-se a tornar o homem um animal
constante e previsível, estabelecendo assim espaços nos quais o socius é “con-figurado”
e “con-formado”. A memória como “falta” atravessa a forma-homem e coloca-a pelos
avessos, esquadrinha todas as pegadas, todas as sombras, demarca desde fora, desde
dentro - “Interrompeu o gesto no meio do caminho e assim ficou: parado, com os braços
no ar, segurando o chapéu pela aba com as duas mãos, como se a qualquer momento
fosse preciso recolocá-lo na cabeça.4” - o homem é aquele que deve; o corpo aquele que
lembra.
O esquecimento, um dos grandes males que o saudável e psicologizado homem
contemporâneo enfrenta a doses cavalares do “neurofarmacocapitalismo” – “Nós
inventamos a felicidade - dizem os últimos homens, e piscam o olho.” (NIETZSCHE,
2
Cf. BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
3
Cf. BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
4
Cf. STIGGER, Veronica. Opisanie Swiata. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
2
2011, p.19). Não obstante é necessário esposar o esquecimento, fugir da lembrançagesto, escapar da forma-homem, esquecer a dívida adâmica, quiçá platônica; da
mnemotécnica (NIETZSCHE, 2009) e das técnicas corporais (MAUSS, 2013) em
direção a um nomadismo mnemônico-corpóreo, um cromatismo generalizado dos
corpos (DELEUZE & GUATTARI, 1995b) - uma microfísica dos gestos em potência
diferenciante e metaestável. Da invenção do homem (WAGNER, 2012) à singularidade
qualquer (AGAMBEN, 2013a). Abrir caminho – metodológica e teoricamente - frente à
floresta obscura da lembrança-culpa, desmanchar as imagens-posturas-práticas préformatadas. Possibilidade que abre-se pelo próprio esgotamento de todos os possíveis.
Gagueira do corpo, gagueira da memória – “Muita coisa deixo cair e escorrer, E por isso
me acham vocês um desprezador. (...)” (NIETZSCHE, 2012, p.21).
Um pouco de possível para pensarmos uma Antropologia dos corpos em sua
imanente-imanência, em sua textura - la peau est ce qu'il y a de plus profond 5 - uma
metafísica da carne (LINS, 2002). Máquina antropológica (AGAMBEN, 2013b) à
contrapelo da operatio classificatória ocidental – lá onde o homem vitruviano caíra, lá
onde o pensamento devém descolonização (VIVEIROS DE CASTRO, 2009), lá onde a
máquina civilizatória emperra; spatium onde os corpos atropelam os códigos, na mais
imperativa imanência – vida que pulsa, produção de um socius, invenção de modos de
existência. Com Artaud (DELEUZE & GUATTARI, 2012) perguntaríamos, pra que
serve um organismo? - E deixemos Durkheim (2007) e Radcliffe-Brown (2013) de lado,
por enquanto – para uma antropologia em que a antinomia natureza-culturas, e meia
dúzia de divisores se embaralham em redes sociotécnicas (LATOUR, 1994). Corpo
como “(...) um plano imanente que se adensa ao se abrir, que se desterritorizaliza ao se
recolher .” (UNO, 2012, p.40). Talvez seja “condição de possibilidade” lançar-se àquele
spatium
–
ontologia
variável,
corpo
a-orgânico,
multiplicidade
rizomática,
desobediência epistêmica. Com Godard, diria: Não um corpo justo, justo um corpo.
5
Cf. VALÉRY, Paul. L`Idée Fixe. La pléiade. IN: _____ Œuvres, Tome II. Paris: Bibliothèque de la
Pléiade, n° 148, 1960.
3
Referências Bibliográficas
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2013a.
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Janeiro, 2013b.
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2009.
DELEUZE, Gilles. O Afeto e a Ideia – Curso de 24 de Janeiro de 1978. [p.0522] IN:________. Cursos
sobre
Spinoza
–
Vincennes,
1978-1981. Fortaleza:
EdUECE, 2009.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.
1. São Paulo: Ed. 34, 1995a.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.
2. São Paulo: Ed. 34, 1995b.
_______________________________. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.
5. São Paulo: Ed. 34, 1997.
_______________________________. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.
3. São Paulo: Ed. 34, 2012.
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2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013.
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Sylvio (orgs.). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relumé
Dumará, Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1994.
4
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São Paulo: N-1 Edições, 2014.
LINS, Daniel. A Metafísica da Carne: que pode o corpo. In: ________. GADELHA,
Sylvio (orgs.). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relumé
Dumará, Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: Uma polêmica. São Paulo:
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___________________________. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para
ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
___________________________. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital – Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras,
2011.
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SPINOZA, Benedictus. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
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VIVEIROS
DE
CASTRO,
Eduardo. Métaphysiques
cannibales
-
Lignes
d'anthropologie post-structurale. Paris : PUF, 2009.
WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
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