revista redação

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revista redação
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
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DATA: 24/04/2015
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Crise de refugiados gera batalha interna na União Europeia (GABRIEL BONIS)
Países articulam barreiras para impedir novas chegadas e criam leis para se tornarem ‘menos atrativos’ que
os vizinhos
SAKIS MITROLIDIS / AFP
Afegão chora ao ser barrado na fronteira entre Grécia e Macedônia
OS PRIMEIROS dois meses de 2016 evidenciaram que a crise dos refugiados seguirá no centro da agenda europeia
neste ano. Nem mesmo o intenso inverno no hemisfério norte e os mares agitados reduziram o fluxo de
refugiados chegando ao continente pelo mar. Em 2016, mais de 95,1 mil entraram na Europa dessa forma, mais do que nos
quatro primeiros meses do ano passado, segundo a ACNUR (a agência da ONU para refugiados).
Em 2015, mais de um milhão de refugiados chegaram ao continente via mar, a vasta maioria pela Grécia. A maior
parte deles vem de Afeganistão (27%), Iraque (16%) e Síria (41%) – os dois últimos países enfrentam guerras e a
ascensão do Estado Islâmico, enquanto o primeiro é tão instável que o seu governo pediu a países europeus no ano
passado que não deportassem afegãos porque não poderia garantir sua segurança quando retornassem. É difícil, portanto,
crer na estabilização desses três países a médio prazo. E improvável que eles deixem de produzir refugiados.
Assim, a tendência é que países vizinhos e a Europa sigam lidando com o intenso fluxo de refugiados em busca de
segurança. No caso europeu, essa dinâmica vem criando profundas divisões, em especial na União Europeia onde somente a
Alemanha recebeu mais de 1,1 milhão de refugiados em 2015. Parte das tensões internas, inclusive, advém das dificuldades
enfrentadas pela UE nessa crise humanitária. Enquanto alguns países do bloco estão no limite de suas capacidades de
recepção de refugiados, outros se cercam com muros. Alemanha e Suécia são os que mais aceitaram refugiados na UE em
2015. Mas Estocolmo anunciou em janeiro o fim da política de “portas abertas”, alegando não ter mais condições de mantêla, e prevê deportar centenas de milhares de pessoas que tiveram seus pedidos de asilo negados.
Na Alemanha, 62% da população acredita que o país acolheu mais refugiados do que deveria. Episódios como os mais
de mil casos de roubo, assédio sexual e estupros registrados em Colônia na véspera do Ano Novo, aumentaram a
insatisfação da população quanto à política de portas abertas da chanceler Angela Merkel – ainda que apenas três dos 58
suspeitos de envolvimento nos casos sejam solicitantes de asilo. Após o episódio, o apoio popular da coligação liderada por
Merkel despencou para 37%. Enquanto a chanceler é pressionada por seu partido conservador cristão a mudar a
abordagem com os refugiados, 55% dos alemães defendem que as fronteiras do país sejam fechadas.
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Começa, então, a se delinear uma corrida entre países da UE para empurrar a outros membros o peso de receber
refugiados. Diversos parlamentos nacionais veem discutindo legislações restritivas a refugiados para se tornarem “menos
atraentes” que outros vizinhos.
O Parlamento da Dinamarca, por exemplo, aprovou uma lei que permite à polícia confiscar dos refugiados bens que
não sejam essenciais com valor superior a 10 mil kroner (cerca 6 mil reais). A justificativa seria confiscar bens cujo valor
ajudariam a custear despesas como acomodação e alimentação.
Na Suíça, os refugiados terão de entregar qualquer item com valor superior ao equivalente a 4 mil reais. Na Bavária,
Alemanha, itens que valham mais do que 750 euros (cerca de 3,3 mil reais) podem ser confiscados. Em BadenWürttemberg, sudoeste do país, o valor é de 350 euros (1,6 mil reais). A Eslovênia propôs mudanças na legislação nacional
para estabelecer o máximo de cinco mil solicitantes de asilo, limitar o número de familiares que podem ser reunidos aos
aplicantes bem sucedidos e eliminar a ajuda financeira de 288 euros (cerca de 1,3 mil reais) aos refugiados.
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O clima de “empurrar” o problema para outro local também envolve a Turquia, para quem a UE pagará 3 bilhões de
euros para o controle do fluxo de refugiados tentando entrar na Grécia pelo Mar Egeu. Em troca, Ancara recebeu garantias
de que sua aplicação para aderir ao bloco seria reavaliada. Nesse contexto, o Partido Trabalhista da Holanda – país que
ocupa a presidência rotativa da UE – propôs retornar quase imediatamente os refugiados que cheguem à Grécia vindos da
Turquia. Pela proposta, a UE aceitaria reassentar até 250 mil refugiados por ano que estejam naquele país.
Na prática a proposta equivaleria a declarar Ancara como um “terceiro país seguro”, ou seja, isentando países da UE de
avaliar os pedidos de asilo daqueles que estiveram antes na Turquia, pois este seria um país seguro. A proposta foi vista
como moralmente questionável pela Anistia Internacional, entre outros motivos, porque a Turquia é constantemente
criticada por violações de direitos humanos. Além disso, o país já abriga 2,5 milhões de sírios e 250 mil de refugiados de
países como Afeganistão e Iraque, muitos dos quais têm sido deportados ilegalmente.
Ataque a bomba duplo na cidade de Homs, na Síria (STRINGER/ AFP/ 21.2)
A UE tem claramente adotado uma política conhecida como “Europa fortificada”, que visa construir barreiras que
impeçam a chegada de migrantes ao continente, como o recente deslocamento de frotas da Otan para interceptar barcos
com refugiados tentando chegar à Grécia pelo Mar Egeu e enviá-los de volta à Turquia. Legislações nacionais como a
dinamarquesa, por sua vez, aumentam as tensões na UE, impulsionado políticas que rebaixam os padrões de proteção a
pessoas fugindo de conflitos e perseguições.
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Há quem diga que seguir por esse caminho intensifica a crise na UE sem trazer uma solução viável ao problema. A
desunião interna ameaça ainda a Zona de Schengen, área sem controle de fronteiras ou checagem de passaporte na UE. E a
pressão de um eventual colapso dessa zona está sendo imposta quase unicamente na Grécia, por onde mais de 88 mil
refugiados entraram no continente em 2016. Atenas é acusada de “negligenciar seriamente” sua obrigação de controlar a
fronteira externa da zona e tem três meses para corrigir as falhas ou pode ser suspensa de Schengen. A pressão externa se
soma à crise econômica do país e a um governo desmontado por exigências de austeridade impostas pela própria UE.
Em meio à fragmentação interna, a UE parece ter esquecido alguns mecanismos internos que podem ajudá-la a
enfrentar a crise dos refugiados. A situação atual exige maior colaboração interna, destaca um estudo recente do Instituto
de Políticas Migratórias na Europa (MPI). O documento alerta para a necessidade de os países do bloco manterem os
padrões mínimos de recepção previstos nos regulamentos da UE, pois sem eles as novas entradas de refugiados tendem a
não ser registradas corretamente, prejudicando a confiança e a solidariedade entre os membros.
Logo, administrar os sistemas de recepção é um grande desafio, mas garantir que os países optem por manter suas
capacidades de acomodação estáveis mesmo em momentos de baixa procura por asilo pode ser uma saída para aliviar o
peso de Estados em dificuldade. Os países com vagas extras poderiam reassentar ou realocar refugiados de países em
dificuldade. Por exemplo, desde 2015 um centro de recepção na Eslováquia abriga 485 sírios que estão, na verdade,
pedindo asilo na Áustria.
Embora a opção mais interessante (e politicamente mais complexa) seja dividir o número de refugiados entrando no
continente de forma proporcional entre os países membros, há outras alternativas à Europa fortificada. Uma saída seria o
Fundo para Asilo, Migração e Integração (AMIF), que possui verba de 3,1 bilhões de euros para o período de 2014-2020. O
fundo tem, entre outras funções, o objetivo de fortalecer e desenvolver uma abordagem comum ao asilo e imigração no
bloco. Há no regulamento do fundo a previsão de disponibilizar verbas para o reassentamento de refugiados na UE.
Os países do bloco que reassentarem refugiados submetidos pelo ACNUR podem ter acesso a um montante fixo de 6
mil euros por pessoa reassentada por ano. Esse valor chega a 10 mil por ano para refugiados considerados prioritários e
vulneráveis, como os sírios. O AMIF poderia, por outro lado, gerar recursos aos países hóspedes, auxiliando-os nas despesas
com os refugiados. Para contrabalancear ainda mais o peso de receber refugiados, os países poderiam se empenhar para
seguir as novas regulações europeias sobre asilo, que definem que se o pedido de asilo não for analisado em até nove
meses, o solicitante pode começar a trabalhar no país hóspede.
A UE pode lidar com a crise sem fechar as portas a pessoas fugindo de conflitos e perseguições, mas é preciso
confiança mútua e que os países aceitem reassentar refugiados. Mas quem será o primeiro a romper a lógica da construção
de cercas?
GABRIEL BONIS é mestre em Relações Internacionais pela Queen Mary, Universidade de Londres. Especialista em migração
forçada, é pesquisador na Grécia, onde estuda a mobilização de moradores e ativistas de Salônica para ajudar refugiados em
trânsito pelo país. Revista CARTA NA ESCOLA, Abril de 2016.
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É possível fabricar um smartphone comercialmente justo? (EMMMANUEL RAOUL)
Os minérios utilizados na fabricação de celulares são em geral explorados em detrimento dos direitos sociais
mais elementares, especialmente na África central. Sem contar a devastação ambiental. Uma empresa
procurou então fabricar um “smartphone justo”. Mas ela sofre, entre outros problemas, com o mercado ilegal
COM 1,4 bilhão de aparelhos fabricados em
2015,1 o smartphone é um símbolo da economia
globalizada, resumida no verso de cada iPhone pela
seguinte frase: “Concebido na Califórnia, montado na
China”. As duas principais marcas desse aparelho,
Apple (231 milhões de unidades em 2015) e sua rival
sul-coreana Samsung (324 milhões),2 estão em intensa
concorrência.
E isso se traduz em condições de trabalho
deploráveis nas fábricas de montagem asiáticas,
colocadas em evidência pelas várias ondas de suicídio
na Foxconn, uma das principais fabricantes chinesas de
componentes eletrônicos. Em agosto de 2015, a
Samsung foi obrigada a criar um fundo de 78 milhões
de euros para indenizar seus funcionários de uma
fábrica, entre os quais foram identificados mais de
duzentos casos de leucemia.3 Acusado, por sua vez, de
usar trabalho infantil,4 o terceiro produtor, Huawei, foi
obrigado a fechar uma fábrica em 2014.
Além disso, mais de trinta minerais provenientes
de diversos continentes entram no processo de
fabricação dos smartphones. Eles são explorados sem
preocupação com o impacto social ou ambiental da
extração, que também alimenta conflitos armados,
como na República Democrática do Congo (RDC).
Produzir um telefone celular respeitando os
homens e o meio ambiente seria então uma utopia,
uma missão impossível? A iniciativa social holandesa
Fairphone decidiu empreender o desafio. Desde 2013,
vendeu 60 mil exemplares do que apresenta como um
“telefone ético”. Em meados de 2015, lançou o
Fairphone 2, do qual espera vender 100 mil unidades
por ano. Seus argumentos: os minérios utilizados em
sua fabricação não financiam as milícias da RDC; a
montagem acontece em fábricas chinesas nas quais as
inspeções permitem assegurar condições de trabalho decentes e que oferecem fundo de previdência. Além disso, a
concepção do telefone permite prolongar seu ciclo de vida e reduzir o impacto ambiental, tornando suas peças facilmente
acessíveis e substituíveis pelos usuários. Utilizando o máximo possível de plástico e couro recicláveis, a Fairphone instalou
uma filial de recuperação de seus aparelhos na Europa e um programa de reciclagem de telefones em Gana.
A empresa não conta com investidores, e sim com consumidores, atraídos em 2013 por uma campanha de
financiamento coletivo pela internet, que levantou 7 milhões de euros em algumas semanas. O segundo modelo também
nasceu graças ao crowdfunding: os compradores aceitaram desembolsar 525 euros por um aparelho que ainda não havia
sido fabricado e que foi lançado apenas meses depois.
“Ferramenta de denúncia”
O lançamento desses dois telefones, cujo valor agregado era apenas tecnológico, suscitou um grande entusiasmo dos
meios de comunicação, sempre prontos a divulgar iniciativas “éticas” e “justas”, apesar dos inúmeros limites impostos a esse
novo modo de produção.5 “O Fairphone ainda está longe de ser um modelo equitativo”, reconhece o próprio fabricante. A
ambição mais modesta é “construir um movimento a favor de uma indústria eletrônica mais justa”, mesmo consciente de
que o caminho pode ser cheio de percalços. Como conta Bas van Abel, para começar a trabalhar na RDC, a Fairphone
precisou gastar seus primeiros recursos... com a corrupção de funcionários locais para obter dos agentes encarregados das
minas o direito de gravar imagens.
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Depois, foi preciso encarar outra realidade, da qual é testemunha um vídeo feito pela equipe na região de Katanga, em
2011, no sul do Congo: a mineração é antes de mais nada artesanal, e até familiar; crianças e jovens trabalham com os
pais. Além disso, para encontrar estanho certificado, “não envolvido em conflitos”, a Fairphone reuniu um consórcio de
industriais, ONGs e atores locais e internacionais. Recorrem a um sistema de certificação que implica embalagens e
etiquetas específicas.6 Lançado por recomendação de um grupo de especialistas das Nações Unidas, esse programa tornouse indispensável após a adoção da lei Dodd-Franck pelo Parlamento dos Estados Unidos, em julho de 2010. A disposição
1.502 do texto, que supostamente enquadra as práticas de Wall Street, obriga as empresas cotadas no país a assegurarem
que não utilizam minérios financiados por grupos armados da RDC. Problema: o processo de certificação das minas é
incipiente. Cinco anos depois, apenas uma dezena de locais vende estanho legalmente. Por precaução e para facilitar, vários
gigantes da indústria eletrônica pararam de se abastecer in loco, criando um embargo de fato sobre os “três Ts” – estanho
(tin, em inglês), tântalo e tungstênio – que abalou totalmente o setor mineiro, do qual dependem de 8 milhões a 10 milhões
de pessoas.
Dois doutorandos, Christoph Vogel, da Universidade de Zurique, e Ben Radley, do Instituto Internacional de Estudos
Sociais de La Haye, foram em 2013 e 2014 às quatro zonas mais bem gerenciadas e encontraram “uma situação econômica
desastrosa”:7 queda ou estagnação dos preços e custos suplementares para os mineiros, enquanto o mercado negro
explodia. Além disso, a imensidão do território e a mobilidade dos grupos armados possibilitam que uma mina certificada
passe para seu controle ou para o de companheiros civis. Muitos mineradores precisaram retomar atividades no campo, em
média seis vezes menos lucrativas. Outros se engajaram nas milícias.
Um grupo de setenta universitários, representantes de ONGs e outros especialistas congoleses e internacionais
denunciaram essa situação em uma carta aberta publicada em setembro de 2014: “Os minérios alimentam os conflitos, mas
não são a causa [...]. As lutas de poder em nível regional e nacional, as questões de acesso à terra, de identidade e
cidadania são fatores estruturais que conduzem aos conflitos”, escreveram, antes de reivindicar mais atenção dos atores
locais. Se “houve progresso em direção a produtos um pouco mais éticos, nada foi feito para melhorar a condição de vida
dos congoleses”, lamentam os especialistas, entre eles Vogel e Radley, que temem que o “comércio equitativo” sirva de
escudo para um neocolonialismo econômico no leste do Congo. “Isso é verdade”, reconhece sem hesitar Van Abel, em uma
poltrona de sua empresa, no terceiro andar de um antigo hangar industrial no porto de Amsterdã. “As iniciativas para a
certificação não contribuíram para o desenvolvimento das comunidades locais como esperávamos. Mas permitiram a
retomada das trocas e são essenciais para fazer os compradores voltar a ter confiança na RDC”. A empresa expressa as
dificuldades pelo site e reivindica um pouco de paciência dos críticos. “Será preciso, na sequência, atacar o trabalho infantil.
A ambição é fazer cada vez melhor.”
Depois do estanho e do tântalo certificados, a empresa identificou minas responsáveis pelo tungstênio em Ruanda e
deseja recorrer ao ouro oriundo do comércio justo do Peru e da Colômbia. Mas a grande dificuldade ainda é penetrar no
mercado de ouro na China, explica Van Abel, que acaba de voltar de uma viagem para conversar com seu novo prestador
de serviços: a Hi-P International. Para garantir a fabricação de seus aparelhos em condições satisfatórias, a empresa
monitora regularmente os funcionários. Também encarregou uma organização chinesa de auditoria e consultoria para
realizar um balanço social junto ao fabricante, que é publicado on-line. Na Hi-P, assim, foram assinalados problemas de
segurança, um grande número de interinos (61% dos efetivos) e sobretudo questões relativas à jornada de trabalho: “Em
julho de 2014, alguns funcionários trabalharam até 77 horas por semana por 28 dias seguidos”,8 constata um relatório da
empresa auditora. De acordo com a Fairphone, a Hi-P se comprometeu a limitar a recorrência ao trabalho informal e a não
ultrapassar 60 horas de trabalho semanais. Contudo, observa Van Abel, “se reduzirmos muito o tempo de trabalho, os
trabalhadores ganharão menos dinheiro e pode ser que partam para outro serviço. As horas extras são parte importante de
seus salários; é preciso encontrar um tipo de compensação monetária”.
Graças aos conselhos do sindicato alemão IG Metall e de um organismo de pesquisa especializado em empresas
transnacionais, o SOMO,9 nasceu a ideia do Workers Welfare Fund (Fundo de Previdência dos Trabalhadores), que tenta
melhorar o cotidiano dos trabalhadores e constituir um novo órgão de representação no interior da empresa. O fundo,
alimentado por US$ 5 de cada aparelho vendido, recolheu US$ 300 mil na primeira versão do smartphone e beneficiou de
quinhentos a novecentos trabalhadores (segundo o carnê de pedidos) na terceirizada de então, a Guohong. Essencialmente,
a soma foi distribuída em forma de prêmios (em média, 90 euros suplementares por mês). O fundo também permitiu
melhorar a alimentação da cantina, com frutas, e promover a organização de festas e passeios. Porém, a Fairphone trocou
de fabricante para o segundo modelo; portanto, o fundo, na Guohong, se limitará a ser um canal de comunicação e um
lugar de diálogo entre diretores e funcionários. A Fairphone está, atualmente, em processo de introduzir o fundo em outra
fábrica de montagem, a Hi-P de Shenzou, para benefício do conjunto de seus trabalhadores, cerca de 3 mil assalariados.
Por que a empresa batizou seu telefone de “fairphone” se ele ainda não corresponde aos critérios do comércio justo
(“faire trade”)? Não seria uma propaganda enganosa? Van Abel responde com uma pirueta: “Esse nome não diz o que
somos, e sim o que queremos ser”. Para explicar o conceito, remonta às origens do projeto: uma campanha pela
regularização dos minérios provenientes de zonas de conflito, lançada em 2010 em parceria com a ONG Action Aid, quando
ele dirigia a Waag Society, uma fundação holandesa para as artes, ciências e tecnologias. “Não queríamos uma mobilização
habitual de ONGs. Como sou designer, pensei que fabricar um telefone poderia ser uma boa forma de explicitar os desafios
escondidos na cadeia de abastecimento.”
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Depois de dois anos procurando uma mina de estanho “sem conflitos” no Congo e de encontrar uma fábrica chinesa
pronta para aceitar uma (modesta) melhoria em suas normas sociais, a Fairphone mudou de figura e tornou-se uma
empresa social em 2013. A questão do nome suscita, dessa forma, debates internos: “Queríamos utilizar a palavra ‘justo’
[fair] para que as pessoas se perguntassem realmente o que significaria isso. E isso também poderia levar os proprietários
de iPhones e Samsungs a se perguntarem sobre sua responsabilidade social e ambiental”. Daí vem a transparência da
empresa, que publica em seu site a lista de fornecedores, a repartição dos custos de fabricação e os balanços sociais das
prestadoras de serviço, sem dissimular os aspectos negativos.
Quando a Fairphone lançou sua campanha de financiamento coletivo, a estratégia de comunicação visava colocá-la em
“posição de vulnerabilidade”. “Cada vez que nos criticavam – e claro que isso não faltou –, acolhíamos a crítica
voluntariamente”, conta o CEO, que chegou a convocar jornais alemães e holandeses para contar a corrupção necessária
para gravar imagens dentro das minas. Pensado como um “procedimento narrativo que fornece uma metáfora eficaz para a
complexidade de uma cadeia de abastecimento”, a Fairphone leva a questionar as práticas do conjunto da cadeia de
abastecimento. Pois, se esse aparelho ainda está longe de ser fruto de comércio justo, o que dizer dos outros? Se for feito
um teste comparativo, ele ganha de longe do Galaxy S4 da Samsung, o primeiro certificado como “ecológica e socialmente
responsável” pela organização sueca TCO Development, que não tem quase nenhuma diferença em relação a um telefone
não certificado.
Lideranças do comércio justo veem com bons olhos o Fairphone. Emilie Durochat, coordenadora da plataforma de
comércio justo, aplaude o que chama de “ferramenta de denúncia das condições de trabalho”. “Com esse telefone, podemos
abordar diversos temas”, constata Dominique Royet, diretora da Max Havelaar France, que vê nesse novo produto o “início
de um progresso contínuo rumo ao comércio justo de um smartphone, o que pode forçar uma evolução das regras do
comércio mundial”.
Como uma empresa que passou de 0 a 16 milhões de euros em um ano e meio – integralmente reinvestidos –, a
Fairphone ganhou o título de “startup tecnológica mais próspera”, pela publicação on-line especializada The Next Web.10 E
essa é uma mensagem ao setor: os consumidores estão atentos a produtos com tendências mais éticas.
1 International Data Corporation (IDC), 27 jan. 2016. Disponível em: .
2 Ler Martine Bulard, “Samsung ou l’empire de la peur” [Samsung, ou o império do medo], Le Monde
Diplomatique, jul. 2013.
3 Santé & travail, Paris, n.92, out. 2015.
4 Notadamente no site http://chinalaborwatch.org e em “Les secrets inavouables de nos téléphones
portables” [Os segredos inconfessáveis de nossos telefones celulares], Cash investigation, France 2, 4 nov.
2014.
5 Ler Christian Jacquiau, “Max Havelaar ou les ambiguïtés du commerce équitable” [Max Havelaar ou as
ambiguidades do comércio justo], Le Monde Diplomatique, set. 2007.
6 Sobre a iniciativa por um “estanho não relacionado a conflitos” (Conflict Free Tin Initiative, CFTI), cf. .
Sobre a iniciativa conjunta pelo abastecimento de estanho, tântalo e tungstênio (ITRI Tin Supply Chain
Initiative), cf. www.itri.co.uk.
7 Christoph Vogel e Ben Radley, “In Eastern Congo, economic colonialism in the guise of ethical
consumption?” [No leste do Congo, o colonialismo econômico na perspectiva do consumo ético?], The
Washington Post, 10 set. 2014.
8 “Social Assessment Program: Hi-P” [Programa de acesso social: Hi-P], Fairphone, abr. 2015. Disponível em:
www.fairphone.com.
9 Centro para a Pesquisa em Corporações Multinacionais (www.somo.nl).
10 “Fairphone named Europe’s fastest-growing startup of 2015” [Fairphone nomeada a startup de mais
rápido crescimento da Europa em 2015], TNW News, 24 abr. 2015. Disponível em: http://thenextweb.com.
EMMMANUEL RAOUL é jornalista e escreve para esta publicação. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Abril de
2016.
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Famílias, o plural da questão (LAÍS MODELLI)
As novas configurações familiares brasileiras exigem leis e discussões sobre identidade, afeto e núcleo familiar
A DECISÃO é recente: o Brasil permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo desde maio de 2013. Na data, o
Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução n. 175, que obriga os cartórios brasileiros a converterem união estável
homoafetiva em casamento. Somente naquele ano, o país registrou 3,7 mil matrimônios entre pessoas do mesmo sexo,
segundo dados do IBGE de dezembro de 2014. São Paulo foi o estado com maior número de registros, com 1945
casamentos (897 uniões entre homens e 1.048 entre mulheres), enquanto o Acre foi o único estado a não celebrar nenhum
registro no ano.
Apenas 22 países no mundo permitem o matrimônio homoafetivo e reconhecem os direitos dos parceiros
homossexuais, como a licença-maternidade, a adoção de filhos, a herança e o divórcio. A Holanda foi o primeiro país a
garantir tais direitos, aprovados em dezembro de 2000. Na ordem cronológica de aprovação, fazem parte da restrita lista:
Bélgica (2003), Espanha (2005), Canadá (2005), África do Sul (2006), Noruega (2009), Suécia (2009), Portugal (2010),
Argentina (2010), Islândia (2010), Dinamarca (2012), Brasil (2013), Uruguai (2013), Nova Zelândia (2013), França (2013),
Inglaterra (2014), País de Gales (2014), Escócia (2014), Luxemburgo (2014), Finlândia (2015), Irlanda (2015) e Estados
Unidos (2015).
Segundo o deputado federal Jean Wyllys, autor de projetos voltados para o público LGBT, a experiência argentina deve
ser seguida no Brasil. “A Argentina é o país com a legislação mais avançada do mundo em matéria de direitos da população
LGBT. A campanha pelo casamento civil igualitário, aprovado em 2010, promoveu um intenso e frutífero debate nacional
sobre os direitos LGBT. Depois do casamento, outras leis foram aprovadas, como a de identidade de gênero, e diversas
políticas públicas foram implantadas. Houve uma mudança enorme na percepção da sociedade argentina sobre a
diversidade sexual”, explica Wyllys.
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Ainda que o Brasil garanta o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a juíza aposentada Maria Berenice Dias explica
que o país não assegura o direito por força de lei, mas somente por decisão da Justiça. “Por não existir essa lei, ainda há
espaço para que iniciativas como o Estatuto da Família ganhem espaço”, explica Berenice. Proposto pelo presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o Estatuto da Família é um projeto de lei, em tramitação, que tenta definir o que
pode ser considerado uma família – excluindo, entre outras configurações, a união entre pessoas do mesmo sexo. De
acordo com a ala progressista de juristas brasileiros, o Estatuto da Família não tem sentido de existir, uma vez que ser
homossexual não é ilegal no país. “A Justiça avançou graças ao poder judiciário e assegurou o direito de casamento entre
pessoas de mesmo sexo, mas o Estatuto da Família foi uma manobra para tentar excluir esses direitos que já estão
assegurados. Nosso Legislativo, conservador e preconceituoso por ordem religiosa, planta posições extremamente
reacionárias”, afirma a jurista.
Para Jean Wyllys, os parlamentares que apoiam o Estatuto da Família sabem que ele não pode ser aprovado. “A única
finalidade desse projeto, do ponto de vista legal, é retirar direitos de uma parcela da população. É como se um deputado
apresentasse uma lei para que os negros deixassem de ter algum direito que atualmente têm, ou os judeus, ou as mulheres
etc. É, na verdade, um Estatuto Contra Uma Parte Das Famílias, e que nada traz de bom para as demais famílias. É
perverso. A finalidade política do projeto – e os deputados sabem que não vão conseguir aprová-lo – é usá-lo como
propaganda para promover o ódio e a violência”, afirma. Além da resolução de 2013, o Conselho Nacional de Justiça já
havia avançado na questão das famílias homoafetivas em 2009, quando mudou o padrão da certidão de nascimento do
tradicional “pai e mãe” para o termo “filiação”.
Making of do ensaio fotográfico de Simone Rodrigues para o livro Nomes do amor / Foto: Simone Rodrigues
A homoafetividade antes dos anos 2000
Berenice, a primeira mulher juíza do Rio Grande do Sul, foi responsável pela decisão pioneira no Brasil de reconhecer,
em 2001, um casal de homens como uma família. “Eles viveram juntos por 27 anos, até que um deles faleceu. Ele tinha
patrimônios adquiridos antes do começo da união, o que não dava para reconhecer como uma sociedade entre os dois”,
explica. “A discussão era: se eles fossem reconhecidos como casal, haveria um herdeiro; caso contrário, o parceiro não teria
direito a nada e todo o patrimônio iria para o município. O caso se tornou chocante ao demonstrar que aquele homem, que
tinha acompanhado seu parceiro a vida inteira, de repente ficaria até sem casa para morar porque eles não eram
reconhecidos como família.” A decisão de Berenice, junto a seus colegas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
considerou que família é determinada pela relação de afeto e não pelo gênero dos parceiros. A partir do caso, a juíza
conseguiu mudar o termo de “homossexualidade” para “homoafetividade”. “A troca foi importante por esclarecer que os
relacionamentos não devem ser da ordem da sexualidade, e sim da ordem da afetividade”, explica.
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O brasileiro Toni Reis, 51 anos, conheceu o inglês David Harrad, 57, na Inglaterra, em 1990, e eles iniciaram um
namoro. Em 1991, decidiram mudar-se para Curitiba. “Na época, não havia reconhecimento da união estável entre pessoas
do mesmo sexo no Brasil, então David não podia ter um visto de permanência com base na ‘reunião familiar’, como
acontecia para casais binacionais heterossexuais”, conta Toni. David permaneceu irregular no Brasil, foi autuado em 1996
com ameaça de expulsão do país, e só veio a conseguir o visto permanente em 2005. Nesse ano começou uma nova luta:
adotar como casal o primeiro filho. “Se adotássemos separados, como solteiros, e um de nós viesse a falecer, o outro não
teria o direito da guarda da criança.”
Foram três anos até conseguirem a permissão da adoção conjunta, mas com a condição imposta pelo juiz de que a
criança tivesse mais de dez anos e que fosse menina. “Achamos que a decisão foi discriminatória e recorremos. Na segunda
instância, ganhamos por unanimidade o direito de adotar conjuntamente sem qualquer restrição”, conta Toni. “No entanto,
um promotor do Ministério Público recorreu e levou o caso ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça,
alegando que casais do mesmo sexo não formam uma família. O STF rejeitou o recurso, mas o STJ só proferiu sua decisão
em 2014, retirando a possibilidade de adotarmos na nossa comarca. Uma demora judicial um tanto cruel. O promotor
recorreu novamente da decisão do STJ e a ministra Carmem Lúcia decidiu a nosso favor em março de 2015, dez anos após
o início do processo de adoção.”
A primeira adoção, iniciada em 2011 com Alysson, 11 anos, não foi fácil. O menino havia fugido de sete abrigos e sido
rejeitado pela mãe todas as vezes em que tentou voltar para casa. Quando o casal conheceu Alysson, o garoto estava há
um ano na casa de uma família de testemunhas de Jeová, que tentou influenciá-lo a rejeitar a adoção. Toni conta que
Alyson chegou a declarar: “Sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?” no dia em que foram fazer uma nova carteira de
identidade para o filho. Depois de vários encontros e grupos de ajuda, Alyson superou o preconceito e hoje a família tem
mais dois filhos, os irmãos Jéssica, 12 anos, e Felipe, 8 anos.
Em família, Weykman e Rogério / Foto: Simone Rodrigues
As novas configurações familiares
Quando a auxiliar de produção Eva, 45 anos, e a advogada Dalia, 45, se conheceram, em 1989, o Brasil acabava de
aprovar a Constituição de 1988, que define família como o resultado da união entre um homem e uma mulher ou um dos
pais e seus filhos. O relacionamento entre as duas se concretizou somente em 1995, mas nada havia mudado no Brasil
sobre a questão homoafetiva. O apoio da família e dos amigos, contudo, encorajou o casal a prosseguir e, em 2009, a
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adotar a primeira filha, Daisa. Com cinco anos na época, a menina havia sido devolvida ao orfanato por diversos outros
casais. “Eles queriam alguém com paciência para não devolvê-la”, conta Dalia. Um ano depois, adotaram a segunda filha,
Thamara, com 12 anos na época. Em 2013, ano da Resolução n.175, Dalia e Eva decidiram se casar. Naquele
momento, o casal relata ter sentido, pela primeira vez, discriminação: o juiz negou o pedido de casamento, e Dalia e Eva
entraram com um mandato de segurança. Juntas há 18 anos, tiveram que esperar mais um ano para conseguirem a
permissão para casar. Conquistado o direito, tornaram-se o primeiro casal homoafetivo a casar no civil e na igreja em um
mesmo ato. “Somos e sempre seremos uma família, e devem nos respeitar por isto”, afirma Dalia. O casal agora se prepara
para adotar dois sobrinhos que ficaram órfãos recentemente.
O auditor fiscal Rogério Koscheck, 52 anos, e o contador Weykman Padinho, 39 anos, iniciaram o relacionamento em
2006. Oficializaram a união estável em 2013 e se casarão em breve. Desde o início, ambos tinham vontade de serem pais.
“Envolvimento com outras pessoas, reprodução assistida, barriga de aluguel, adoção à brasileira, ou quaisquer outras
formas de paternidade que não fosse a adoção, não eram opção”, conta Rogério. Em janeiro de 2013, o casal iniciou o
processo de adoção. Um ano depois, foram indicados quatro irmãos, em Brasília. No entanto, um outro casal, já habilitado,
teve a preferência legal na adoção. Um mês depois, apareceram mais quatro irmãos, dessa vez no Rio de Janeiro, com
idades entre dois meses e 11 anos. Filhos da mesma mãe, todas as crianças haviam sido expostas ao vírus do HIV e
passavam ou já haviam passado por tratamento. Sem preconceitos, Rogério e Weykman iniciaram a adoção em junho de
2014. O processo foi finalizado somente no começo de 2016 e hoje todas as crianças negativaram o HIV. O casal conta ter
percebido que, desde que a família aumentou, vez ou outra existem olhares de surpresa quando estão em lugares públicos.
“Estava na padaria do bairro em que morávamos, com minha filha mais velha. Ao indicá-la como minha filha, a atendente
olhou-a de cima a baixo e disse: ‘Não pode ser!’. Retruquei: ‘Ela é minha filha!’. A mulher respondeu novamente: ‘Não pode
ser, mesmo!’. Então perguntei se ela tinha filhos e indaguei: ‘Você tem completa certeza de que eles são seus?’”, lembra o
auditor.
Em família, Dalia e Eva / Foto: Simone Rodrigues
Rogério é um dos principais militantes pelos direitos das famílias homoafetivas e diretor da Associação Brasileira de
Famílias Homoafetivas, ABRAFH. Segundo o auditor, a principal preocupação da Associação é a aprovação do Estatuto da
Família. “Antes de ser aprovado, esse projeto já causou problemas até em nosso lar. Nossa filha mais velha, ao ver as
reportagens a respeito, me perguntou: ‘Pai, se nossa família não é família, nós vamos ter que voltar para o abrigo?’. Essa
pergunta, de uma criança de 12 anos, denota o mal que a irresponsabilidade e a desumanidade de alguns parlamentares já
estão causando.”
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As famílias acima estão retratadas no livro recém-lançado Nomes do amor: o amor que ousa dizer seu nome , da
fotógrafa Simone Rodrigues cujo prefácio é assinado por Jean Wyllys. A obra – inspirada no trabalho da fotógrafa sulafricana Zanele Muholi, que retrata lésbicas africanas – reúne 28 famílias brasileiras homoafetivas, com ou sem filhos,
biológicos ou adotados. O projeto nasceu em 2013, quando Simone sentiu incômodo diante da representação feita pela
mídia do público LGBT. “O gay é sempre o homem idealizado, com o corpo como objeto de desejo, e a mulher lésbica
sempre aparece junto de outra mulher, fruto de uma fantasia e fetiche masculino”, afirma Simone. “A importância de
mostrar o cotidiano das famílias homoafetivas é que boa parte do preconceito é impulsionado pela ignorância. A diversidade
sexual que existe no Brasil não pode viver sob os modelos ditados pelo universo hétero da sociedade conversadora, que
pensa o público LGBT como uma ameaça à família tradicional. Que tipo de ameaça essas pessoas podem oferecer?
Nenhuma. Elas estão vivenciando novas possibilidades de construir um núcleo familiar, tão legítimas quanto famílias hétero,
já que estão baseadas no afeto e no amor para construir uma vida comum.”
A falta de dados sobre as famílias homoafetivas também é outro problema constante para a questão no Brasil. As
últimas estatísticas datam de 2010, em pesquisa realizada pelo IBGE, que identificou sessenta mil casais homoafetivos no
país, a maioria formada por católicos (47,4%) e mulheres (53%). Contudo, a pesquisa não abordou, por exemplo, quantos
desses casais têm filhos.
Toni e David na companhia de Alyson, Jéssica e Filipe / Foto: Rafael Danielewicz
A distância que separa a vergonha do orgulho
Dos vários convites feitos às famílias para serem retratadas no livro, Simone relata que se surpreendeu com a
quantidade de recusas. “Precisava conhecer o porquê desses ‘não’. Descobri que muitas dessas famílias têm medo de se
assumirem e sofrerem retaliação, principalmente no trabalho. As pessoas que tinham emprego formal, por exemplo, tinham
medo de serem demitidas com a exposição do livro; as que eram autônomas, como médicos e vendedores, temiam perder
os clientes”, conta. “Elas acreditam que, em um espaço público mais amplo, elas não devam existir como ‘gays’ ou
‘lésbicas’.”
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O preconceito da sociedade também é um problema apontado por Berenice. “Todas as bandeiras das minorias que eu
abracei tiveram muitos seguidores, mas a dos homossexuais foi quase uma luta solitária. As pessoas ainda têm medo de se
manifestarem publicamente e de serem rotuladas como homossexuais”, afirma. “Elas não entendem que isso já é uma
forma de discriminação”. Para a jurista, é urgente transformar a homofobia em crime no Brasil. “A Justiça consegue
assegurar direitos, o que ela vem fazendo com desenvoltura e coragem, mas não consegue punir alguém por atos
homofóbicos. Para se combater essa verdadeira guerra que existe contra o público LGBT – a cada 28 horas se mata um
homossexual no Brasil – é necessária a existência de uma legislação adequada”, defende. Berenice explica que as propostas
de lei voltadas para o público LGBT começaram a surgir no país em 1995. “Mas temos um Legislativo absolutamente
covarde e até hoje não aprovamos nenhuma lei sobre o tema.”
A criminalização da homofobia está pautada no Estatuto da Diversidade Sexual, proposto por Berenice e pelas
Comissões da Diversidade Sexual das Seccionais e Subseções da OAB, em 2011. Até o momento, o documento não saiu do
papel. “De nada adianta apresentar propostas no Congresso se as coisas não forem adiante.” Ignorada pelo Congresso, a
jurista decidiu apresentar o Estatuto como iniciativa popular. “Eu achei que seria mais fácil ir pelo caminho de angariar
assinaturas, mas ainda assim é uma luta difícil, porque as pessoas não se sensibilizam pelo outro, não se colocam no lugar
do outro.” Berenice chegou a caminhar pelos parques de Porto Alegre, munida de um megafone, para difundir mais
rapidamente as ideias do Estatuto. Sem êxito. “Achei que seria mais rápido pela iniciativa popular, mas não é.”
LAÍS MODELLI é jornalista e escreve para esta publicação. Revista CULT, Abril de 2016.
Em São Paulo, boas notícias no combate ao crack (MIGUEL MARTINS)
A média de uso da droga entre os inscritos no De Braços Abertos cai 60%
Além do trabalho de varrição, os participantes desenvolvem atividades culturais, entre elas a publicação de um fanzine
OS FANZINES, revistas independentes editadas com poucos recursos, perderam espaço nos últimos anos por causa
do domínio crescente dos meios digitais. Na Cracolândia, Centro de São Paulo, o formato consagrado principalmente por fãs
de música resiste sob a batuta de moradores de rua e dependentes químicos da região.
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Com apoio do Projeto Oficinas, uma parceria do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos, os usuários lançaram recentemente a publicação mensal Pra Mim Não Passar em
Branco, com poemas e desenhos sobre suas experiências com o crack. Na primeira edição do fanzine, um relato anônimo
resume o peso da fissura sobre os dependentes. “A abstinência é muito mais letal e nociva que a própria doença ‘crack’.”
Tratamentos que exigem dos usuários a interrupção imediata do uso da droga têm se mostrado pouco eficientes.
Psicólogos e psiquiatras estimam que apenas 30% dos pacientes obtêm sucesso com terapias tradicionais. A redução
gradual do consumo por meio de ações que não se limitam a atacar o vício, mas buscam a reintegração social, tem colhido
resultados mais positivos. Criado em janeiro de 2014 pelo prefeito Fernando Haddad, o Programa De Braços Abertos tem
conseguido diminuir consideravelmente o consumo de crack de seus beneficiários ao oferecer moradia em hotéis,
oportunidades em frentes de trabalho e alimentação aos moradores de rua e frequentadores da Cracolândia.
Segundo uma pesquisa recente da Secretaria Municipal da Saúde, 88% dos beneficiários do De Braços Abertos afirmam
ter reduzido o consumo de crack desde o início do programa. O levantamento, realizado por assistentes sociais responsáveis
pelo acompanhamento dos 467 inscritos, indica que o número médio de pedras consumidas pelos beneficiários caiu de 42
por semana para 17, redução de 60%. Além disso, 84% garantem estar em tratamento de saúde contra a dependência,
embora a adesão não seja uma exigência do programa.
A atuação em frentes de trabalho como varrição de ruas, jardinagem e reciclagem, aliadas a atividades culturais como
a publicação do fanzine, tem trazido benefícios que superam os 568 reais recebidos mensalmente para cada inscrito.
Segundo a secretaria, apenas 5% dos beneficiários afirmam permanecer sob o efeito da droga o dia inteiro. Antes de o
programa ter início, 65% diziam estar sob essa condição. O ex-ministro Alexandre Padilha, atual secretário de Saúde da
prefeitura, comemora os resultados. “A região sempre sofreu com programas erráticos, intervenções de cunho autoritário e
a lógica da higienização. Agora, São Paulo se conecta a essa nova tendência de fugir da abordagem da ‘guerra às drogas’.”
Embora diversos pesquisadores e assistentes sociais elogiem o De Braços Abertos, ele ainda apresenta limitações.
Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental da Fiocruz, o sanitarista Paulo Amarante tem
defendido a adoção do modelo para outros municípios brasileiros em reuniões com a Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas. O pesquisador afirma que o programa deveria, porém, ampliar seu alcance para outros locais de São Paulo e
oferecer mais oportunidades de trabalho. “É preciso uma política de Estado que exija de empresas a contratação de
beneficiários.”
O psicólogo Thiago Calil, um dos responsáveis pelo Centro de Convivência É de Lei, local de assistência a usuários no
Centro de São Paulo, tem observado uma redução do consumo de crack pelos inscritos, mas critica o endurecimento das
ações de Segurança Pública. “Muitos que frequentam o fluxo de usuários e não aderiram ao programa são considerados
traficantes pela polícia.” Segundo Calil, uma ação de 2015 para conter o comércio de entorpecentes na região apreendeu 33
carroças, utilizadas por dependentes para catar objetos e entulhos para revenda. “Conheço vários carroceiros que não
vendem droga, apenas preferem se virar sozinhos. O indivíduo precisa ter liberdade para decidir se quer integrar ou não o
programa”.
Padilha afirma que a Guarda Civil Metropolitana tem sido estimulada a adotar uma abordagem mais humanizada.
“Temos uma cultura ainda muito autoritária, então é preciso um esforço permanente para modificá-la.” Embora defenda
ações policiais menos agressivas, o aumento da venda de drogas na região preocupa o secretário. “Há indícios claros da
revitalização da atividade do tráfico no local.” Outra deficiência do programa são os hotéis. Muitos não contam com
estrutura para os dependentes receberem ligações e visitas de familiares. Embora a pesquisa da secretaria tenha apontado
a retomada do contato com parentes por 52% dos inscritos, o objetivo é buscar opções de alojamento com áreas de
convivência para estimular a aproximação de familiares.
“Queremos locais mais apropriados para os usuários, especialmente para aqueles que têm filhos, cerca de 30 dos
inscritos”, afirma Padilha. Um dos objetivos da secretaria é também afastar os beneficiários do fluxo, ao buscar hotéis mais
distantes da Cracolândia para abrigá-los. Bem-sucedido até o momento, o programa pode não resistir a uma eventual troca
de comando na prefeitura. João Doria, pré-candidato do PSDB às eleições municipais deste ano, afirmou em janeiro que
pretende, se eleito, “erradicar” a Cracolândia com programas de internação compulsória. “Temos certeza de que essa visão
inovadora ainda está em disputa”, diz Padilha. “Quero ver se os críticos do programa conseguem propor alternativas que
reduzam o consumo do crack como o De Braços Abertos. Eles precisarão ir além de seus preconceitos e mostrar resultados.”
A discriminação, mais que a dependência química, segue como principal empecilho para a reintegração dos usuários.
“Eu luto para que tenha um canto para nossa tribo”, escreve um deles em uma das edições do Pra Mim Não Passar em
Branco. “O mundo é tão grande, será que não tem um pedacinho para nós?”
MIGUEL MARTINS é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista CARTA CAPITAL, Abril de 2016.
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Querida presidente Dilma (MARIA RITA KEHL)
QUERIDA presidente Dilma, escrevo após a triste votação na Câmara dos Deputados que autorizou a abertura do
processo de impeachment de seu mandato. Já me declarei publicamente contra o eventual (no momento, quase certo)
impedimento, motivado por argumentos duvidosos e conduzido por uma Câmara cujo presidente, Eduardo Cunha, é réu no
Supremo Tribunal Federal, sob acusação de corrupção e lavagem de dinheiro.
O que mais me entristeceu, presidente, foi sua declaração de que, depois de efetuado o golpe que pretende destituí-la
da Presidência, a senhora será uma "carta fora do baralho". Bem, fora desse baralho ensebado, feito de cartas marcadas, a
senhora estará, sim. Por conta de seus méritos, não de seus defeitos. O lugar que ocupará na história do país, porém, está
garantido, presidente Dilma, e será positivo. Não listarei as virtudes de seu governo, entre as quais o fato óbvio, não
reconhecido por seus detratores, de que, pela primeira vez "na história deste país", um governante não usou de seus
poderes de manipulação e chantagem para evitar a investigação de crimes envolvendo seu partido. Será que ninguém se
pergunta por que a Lava Jato, apesar de sua evidente falta de imparcialidade, nunca encontrou obstáculos durante seu
mandato?
O que a coloca definitivamente, a meu ver, como personagem fundamental na história do Brasil foi o fato de a senhora
ter sido responsável pela criação da Comissão Nacional da Verdade. Sei que a lei que instituiu a comissão foi votada pelo
Congresso Nacional, mas não somos ingênuos de pensar que os deputados e senadores fariam isso por conta própria. Foi
preciso que o país elegesse para presidente uma mulher corajosa, que militou contra a ditadura, foi presa e torturada (sem
delatar companheiros), para que se criasse, com muito atraso em relação aos outros países latino-americanos, uma
Comissão da Verdade no Brasil.
Antes tarde do que nunca. Em função dessa demora, todavia, a reação da sociedade brasileira à divulgação de nossos
trabalhos foi decepcionante. Foram poucas as manifestações públicas de apoio. Com exceção dos incansáveis grupos de
familiares dos mortos e desaparecidos, a sociedade não se mobilizou para exigir que o Estado brasileiro revelasse as
condições da morte e a localização dos corpos dos 243 desaparecidos políticos.
Assim, as Forças Armadas não se sentiram moralmente obrigadas a admitir a participação de agentes do Estado em
crimes de tortura, assassinatos e ocultação de cadáveres. Assistimos, consternados, à presença de alguns (poucos) jovens,
no mínimo ignorantes, a ostentar cartazes em favor de uma "intervenção militar" no país. Como se autoritarismo e
repressão fossem sinônimos de ordem e paz social, e não o contrário.
E agora, a provar que a história se repete como farsa, nos vemos diante da iminência de uma nova catástrofe: a
cassação de uma presidente séria, comprometida com o combate à corrupção, por uma Câmara comandada por um
deputado acusado de vários crimes e repudiado pela população. Talvez o pior não aconteça. Talvez o Brasil acorde durante
o julgamento no Senado e perceba a gravidade do que está por vir. Ou então assistiremos, estarrecidos, à repetição de um
golpe em nome da moralidade pública.
MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade. É autora de "Processos Primários" (Estação
Liberdade). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
Chefe da UTI (MIGUEL REALE JÚNIOR)
FOI LONGO o caminho até a admissão da acusação por crime de responsabilidade pela Câmara dos Deputados. Outra
longa estrada processual se apresenta à frente. Serão ainda mais três decisões a serem tomadas pelo plenário do Senado. A
primeira de recebimento da denúncia, ao examinar relatório a ser produzido por comissão especial composta por 1/3 do
Senado.
A decisão de recebimento da denúncia precisa ser adotada por maioria simples dos senadores. A partir de então, a
presidente é afastada temporariamente, pelo prazo de 180 dias. Segue-se uma fase de oferecimento de alegações por
escrito pelos denunciantes e pela acusada. Novo parecer é emitido pela comissão especial pela procedência ou
improcedência da acusação, submetida novamente ao plenário. Reconhecida a improcedência, o processo é arquivado.
Sendo procedente, os denunciantes oferecem libelo acusatório com rol de testemunhas, podendo a defesa também as
indicar.
Neste instante, o julgamento passa a ser presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. A aprovação final do
pedido com condenação da presidente exige maioria de 2/3 do Senado. Enquanto corre o processo, do outro lado da rua a
vida já muda. Michel Temer, presidente temporário, deve agir como um chefe de equipe de UTI, diante de um paciente
terminal, a exigir fortes doses de remédios, alguns amargos, para, com precisa transparência, impor rapidamente a redução
dos gastos, tomando poucas e boas medidas econômicas que reacendam a esperança e gerem confiança na retomada
paulatina da atividade industrial.
De outra parte, cabe à Câmara dos Deputados, que, com o impeachment, deu, de certo modo, voto de confiança a
Temer, prestar-lhe todo o apoio. À Polícia Federal, deve-se garantir os meios para a continuidade da apuração de corrupção,
pois, pelo que se ouve, fatos de ainda maior gravidade, envolvendo lideranças políticas, estão para surgir.
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Ao Supremo Tribunal Federal, por sua vez, para credibilidade da instituição, cabe se manter como Corte imparcial, sem
arroubos protetivos ao governo do PT, como alguns poucos ministros tentam ensaiar. À sociedade civil, por seus órgãos
representativos e pelos movimentos Vem Pra Rua e Brasil Livre, cumpre se manter alerta e cobrar a continuidade da luta
contra a corrupção e em favor da reforma política. Aos partidos de oposição, por seu turno, compete assumir a
responsabilidade de auxiliar Michel Temer neste instante delicadíssimo, no qual se exigem coragem e determinação para
salvar o doente terminal, apesar do barulho que arruaceiros farão na porta do hospital, chorosos de terem perdido as
benesses do exercício do poder que usufruíram por década e meia.
É hora, também, de compreensão, pois não é de um instante para o outro que se retira o doente do estado terminal
para lhe conceder alta. Toda dedicação e apoio precisará Temer, um presidente em situação limite, com a tarefa hercúlea
de recriar a confiança e libertar da doença o paciente com septicemia causada pela corrupção, pela mentira, pela
incompetência. Começam, por volta de 10 de maio, os cem dias de Temer, nos quais será desafiado a impor sua autoridade
e a indicar as diretrizes de dias mais seguros. Deve-se comemorar o fim de uma era nefasta, mas imensas dificuldades
estarão presentes.
Enquanto se inicia a reconstrução do país, no Senado continua o processo de impeachment. A renúncia neste instante
seria medida saudável, mas, se não suceder, o afastamento definitivo de Dilma será imposto por nossa Câmara Alta.
MIGUEL REALE JÚNIOR, 72, é advogado, escritor, professor titular de direito penal da USP. Foi ministro da Justiça (governo
FHC). É autor, com Hélio Bicudo e Janaina Paschoal, do pedido de impeachment votado na Câmara dos Deputados neste domingo
(17). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
A história do Brasil do PT (LUIZ FELIPE PONDÉ)
A "BATALHA do impeachment" é a ponta do iceberg de um problema maior, problema este que transcende em muito
o cenário mais imediato da crise política brasileira e que independe do destino do impeachment e de sua personagem
tragicômica Dilma.
Mesmo após o teatro do impeachment, a história do Brasil narrada pelo PT continuará a ser escrita e ensinada em sala
de aula. Seus filhos e netos continuarão a ser educados por professores que ensinarão esta história. Esta história foi criada
pelo PT e pelos grupos que orbitaram ao redor do processo que criou o PT ao longo e após a ditadura. Este processo
continuará a existir. A "inteligência" brasileira é escrava da esquerda e nada disso vai mudar em breve. Quem ousar nesse
mundo da "inteligência" romper com a esquerda, perde "networking".
Ao afirmar que a "história não perdoa as violências contra a democracia", José Eduardo Cardozo tem razão num
sentido muito preciso. O sentido verdadeiro da fala dos petistas sobre a história não perdoar os golpes contra a democracia
é que quem escreve os livros de história no Brasil, e quem ensina História em sala de aula, e quem discorre sobre política e
sociedade em sala de aula, contará a história que o PT está escrevendo. Se você não acredita no que digo é porque você é
mal informado.
O PT e associados são os únicos agentes na construção de uma cultura sobre o Brasil. Só a esquerda tem uma "teoria
do Brasil" e uma historiografia. Esta construção passa por uma sólida rede de pesquisadores (as vezes, mesmo financiada
por grandes bancos nacionais), professores universitários, professores e coordenadores de escolas, psicanalistas,
funcionários públicos qualificados, agentes culturais, artistas, jornalistas, cineastas, produtores de audiovisual, diretores e
atores de teatro, sindicatos, padres, afora, claro, os jovens que no futuro exercerão essas profissões. O domínio cultural
absoluto da esquerda no Brasil deverá durar, no mínimo, mais 50 anos.
Erra quem pensa que o PT desaparecerá. O do Lula, provavelmente, sim, mas o PT como "agenda socialista do Brasil"
só cresce. O materialismo dialético marxista, mesmo que aguado e vagabundo, com pitadas de Adorno, Foucault e
Bourdieu, continuará formando aqueles que produzem educação, arte e cultura no país. Basta ver a adesão da camada
"letrada" do país ao combate ao impeachment ao longo dos últimos meses. Ao lado dessa articulada rede de agentes
produtores de pensamento e ação política organizada, que caracteriza a esquerda brasileira, inexiste praticamente opção
"liberal" (não vou entrar muito no mérito do conceito aqui, nem usar termos malditos como "direita" que deixam a esquerda
com água na boca).
Nos últimos meses apareceram movimentos como o Vem Pra Rua e o MBL que parecem mais próximos de uma opção
liberal, a favor de um Brasil menos estatal e vitimista. Ser liberal significa crer mais no mercado (sem ter que achá-lo um
"deus") e menos em agentes públicos. Significa investir mais na autonomia econômica do sujeito e menos na dependência
dele para com paternalismos estatais. Iniciativas como fóruns da liberdade, todas muitos importantes para quem acha o
socialismo um atraso, são essencialmente incipientes. E a elite econômica brasileira é mesquinha quando se trata de
financiar o trabalho das ideias. Pensa como "merceeiro", como diria Marx. Quer que a esquerda acabe por um passe de
mágica.
O pensamento liberal no Brasil não tem raiz na camada intelectual, artística ou acadêmica. E sem essa raiz, ele será
uma coisa de domingo a tarde. A única saída é se as forças econômicas produtivas que acreditam na opção liberal
financiarem jovens dispostos a produzir uma teoria e uma historiografia do Brasil que rompa com a matriz marxista,
absolutamente hegemônica entre nós. Institutos liberais devem pagar jovens para que eles dediquem suas vidas a pensar o
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país. Sem isso, nada feito. Sem essa ação, não importa quantas Dilmas destruírem o Brasil, pois elas serão produzidas em
série. A nova Dilma está sentada ao lado da sua filha na escolinha.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
Já não se faz eletricidade como antigamente: o futuro da geração de
energia em grande e pequena escala (LUANA CARVALHO)
Conheça novas tecnologias que prometem reduzir o uso de fontes poluidoras para gerar energia
TODA produção de energia elétrica causa algum impacto ao meio ambiente. É inevitável. Por isso, a preocupação em
reduzir esses danos com tecnologias tem acelerado a busca por meios menos agressivos no setor energético. A Organização
das Nações Unidas (ONU) estima que a população mundial ultrapasse nove bilhões em 2050, sendo que a maior parte dessa
multidão vai viver em centros urbanos. Diante disto, a demanda global por eletricidade poderá crescer até 80%. O assunto é
cada vez mais discutido e o número de empreendimentos de geração de energia sustentável é crescente, de pesquisas
científicas a microsoluções. Mas será que uso das tecnologias sustentáveis para essa área é a solução para o futuro?
“O próprio cidadão tem que ser um consumidor eficiente, ele tem que conhecer e ter acesso às tecnologias eficientes” ,
comenta o professor do departamento de Energia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gilberto de Martino
Jannuzzi.
E apesar da recente evolução de pesquisas na área, ele lembra que o setor de tecnologias de energia ficou
praticamente estável nos últimos 40 anos, em um período onde se privilegiavam as fontes de geração centralizadas e de
grande porte, como refinarias, hidrelétricas e termelétricas.
“A parte emocionante disto tudo é que as coisas estão mudando. Claro que alguns países ainda estão atrasados, mas o
conteúdo de inovação que começou a surgir nos últimos 15 anos, muito em função de progressos científicos que tivemos na
área de equipamentos e telecomunicações, ajudou a acelerar esse processo”.
Januzzi ressalta ainda que países com melhor desempenho em eficiência energética, como o Reino Unido e a
Alemanha, estão no topo graças aos esforços nacionais para a criação de legislações e incentivos da população. Para ajudar
neste processo, o conceito de ‘smartcities’ (ou cidades inteligentes) já desenvolve um tipo de gestão energética dinâmica,
onde o consumidor pode controlar as luzes que estão acesas em sua casa através da internet, pode ligar e desligar
equipamentos, entre outros recursos. É a telecomunicação - também conhecida por internet das coisas - se fundindo com a
geração de energia.
“Muitas inovações vão ser importantes daqui para frente, como os equipamentos com pouca perda de energia e,
principalmente, tecnologias que permitem armazenar eletricidade, através das redes inteligentes” , complementa Jannuzi.
Conheça agora algumas das alternativas para geração de eletricidade - e que podem, no futuro, fazer parte do nosso
cotidiano.
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Sol e vento: soluções em grande escala
Ok, isso nem é tão novo assim. Mas ainda falta muito para conseguirmos utilizar a energia solar e eólica em grande
escala, o que pouparia nossos recursos hídricos para o abastecimento. Mas, enquanto isto não acontece, damos passos de
tartaruga (mas andamos) com a criação de um número expressivo de pequenas usinas fotovoltaicas instaladas em
residências, escolas, edifícios e comércios.
No Brasil, uma das vantagens de se produzir a própria energia é que é possível vender a eletricidade renovável
domiciliar para a rede pública - e receber uma graninha ou abatimento na conta por isso. O Ministério de Minas e Energia
(MME) estima que até 2024, cerca de 700 mil consumidores residenciais e comerciais instalem os painéis fotovoltaicos em
seus telhados. Atualmente, a energia solar contribui apenas com 0,2% da matriz energética.
Fusão nuclear para o futuro
Recentemente, cientistas da Alemanha deram um grande passo em relação às pesquisas de energia por fusão
nuclear. A máquina Wandelstein 7-X, capaz de gerar plasmas a uma temperatura mais alta que o interior do sol, obteve o
primeiro plasma de hélio, por um décimo de segundo. Parece pouco, mas esta é a aposta de muitos cientistas para uma
geração de energia segura, cujos estudos acontecem há pelo menos 30 anos. “A tecnologia aproveita a energia armazenada
no núcleo de um átomo. Então, essa energia é liberada quando dois átomos mais leves se fundem para formar um átomo
mais pesado”, explica o físico da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Artaxo.
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Em teoria, a fusão nuclear não gera isótopos radioativos, ao contrário da energia oriunda de usinas nucleares. Também
não há produção de rejeitos radioativos, conforme explica Artaxo. “É seguro e dá para produzir energia em larga escala,
mas a grande dificuldade ainda é desenvolver um reator de fusão nuclear que possa ter um funcionamento continuo e por
longo prazo. Se conseguirmos, esta é uma grande possibilidade para o futuro” .
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Movimentos que geram energia
O campo de futebol alimentado por energia cinética no Morro da Mineira, no Rio de Janeiro, foi inaugurado
oficialmente em setembro do ano passado pOR Pelé (Divulgação/Shell)
A energia utilizada na prática de um esporte, caminhadas ou danças, já pode ser aproveitava para gerar
eletricidade. Exemplo disto são as placas da empresa britânica Pavegen Systems, que desenvolveu um mecanismo para
produzir eletricidade através de ‘pisadas’. A maior instalação das placas geradoras de energia cinética humana está no
campo de futebol do Morro da Mineira, no Rio de Janeiro. Reconstruído pela Shell, a comunidade se tornou a primeira do
mundo a ter um espaço esportivo cujos movimentos dos jogadores geram luz.
De acordo com a gerente de comunicação corporativa da Shell Brasil, Simone Guimarães, o projeto é parte do
programa #makethefuture e visa inspirar jovens empreendedores a olhar para a ciência e engenharia como opções de
carreira, especialmente para desenvolver soluções energéticas para o futuro do planeta. E quanto maior o número de placas
e ‘pisadas’, mais energia é gerada. Por isso, a iniciativa também é desenvolvida em locais de grande tráfego de pedestres,
como o Aeroporto Heathrow, no Oeste de Londres, na Federation Square, em Melbourne, em Riverdale School, Nova York,
além de algumas estações de trens de Paris.
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Energia eólica humana
(Divulgação: AIRE)
É isso mesmo. Se cientistas afirmam que o corpo humano tem um grande potencial de geração eletricidade, o processo
de respiração não poderia ficar de fora das iniciativas. Foi pensando nisso que o designer brasileiro e especialista em
sustentabilidade, João Paulo Lammoglia, decidiu aproveitar a troca de gases para criar o AIRE. O aparelho funciona como
uma máscara que converte a energia eólica - fornecida pela respiração - em energia elétrica para recarregar pequenos
dispositivos eletrônicos. O projeto ainda não está disponível no mercado, mas já ganhou prêmios como o RedDotAward, a
maior competição de design a nível mundial. “O conceito por trás de AIRE é que o ser humano pode gerar sua própria
energia e contribuir para sustentabilidade do planeta. O projeto serve de fonte de inspiração para outras aplicações, como o
uso dessa tecnologia para geração de energia para pequenos aparelhos intracorporais, como os marcapassos” , explica o
carioca, mestre em desenho industrial pela Universidade de Eindhoven, na Holanda.
Gadgets
Imagine-se em um ambiente sem sinal de eletricidade para carregar o celular. Agora, visualize você carregando o
celular com o dedo ou colocando-o sob o sol. Apesar de ainda não serem tão utilizadas, pequenas baterias recarregáveis por
meio da luz solar ou movimentos já são vendidas no mercado. Assim como esse dispositivos solares, capazes de carregar
celulares, tablets, câmeras e outros equipamentos com a energia captada por pequenas placas fotovoltaicas, existem outras
invenções ainda mais ousadas, porém práticas e úteis, como as mochilas solares.
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As empresas Eclipse Solar Gear, do Texas, e a Birksun, da California, ambas dos Estados Unidos, são pioneiras no
desenvolvimento desses equipamentos e incentivam o uso desta alternativa. Os produtos são ideais para quem curte viajar
e fazer trilhas. Os preços não são tão inacesíveis e variam entre U$ 169 e U$ 250.
Mochila Solar
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Telhas solares
Telhados que já possuem painéis fotovoltaicos são uma das apostas para o futuro. Os custos para instalação das
pequenas usinas solares vêm sendo barateados nos últimos cinco anos, e para facilitar ainda mais, algumas empresas já
produzem as telhas solares. Recentemente, as empresas italianas Area Industrie Ceramiche e REM desenvolveram as telhas
‘Tegola Solare’. Elas são de cerâmica, mais leves que os modelos espaçosos, mantém a aparência de um telhado tradicional
e podem substituir, facilmente, os painéis solares. Segundo o fabricante, a inovação pode produzir cerca de 3 kw de energia
em uma área de 40 metros quadrados. Se a instalação for feita no telhado inteiro, daria para suprir as necessidades de toda
a residência.
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Carros elétricos
Os carros movidos a energia elétricas estão cada vez mais comum e a alternativa pode ser solução para o setor de
transportes público. Exemplos mais comuns são os carros fabricados pela Tesla Motors Inc., uma marca de automóveis
norte-americana, que desenvolve e vende veículos elétricos de alta performance. A empresa ganhou destaque depois de
produzir o primeiro carro desportivo totalmente movido a energia elétrica, o Tesla Roadster. Porém, só primeiro trimestre de
2013, a fabricante registrou lucro. Em algumas metrópoles do mundo, os ônibus elétricos já são bastante utilizados para
transporte coletivo urbano. Em São Paulo, por exemplo, os veículos já começaram a ser testados, com autonomia das
baterias de até 260 quilômetros. Conhece outras alternativas para gerar energia? Deixe nos comentários suas sugestões.
LUANA CARVALHO é Amazonense, jornalista com especialização em gestão de conteúdo. Em 2015 cobriu a reunião de líderes
mundiais em Nova York, onde Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram firmados. Web Magazine PAPO DE
HOMEM (http://papodehomem.com.br/), Abril de 2016.
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Mães são influenciadas pelo que acham que será o julgamento do
outro (ROSELY SAYÃO)
JÁ FAZ tempo, muito tempo, que as crianças passaram a ter uma vida semelhante à dos adultos: agendas lotadas,
compromissos sociais frequentes e exigências desmedidas, que passaram a provocar situações de estresse, tensão,
ansiedade, sintomas físicos de fundo emocional etc.
As crianças não mais vão a festas de colegas e amigos porque gostam deles: vão porque todos vão e porque sentem
que é um compromisso. Esse é um dos motivos que tem provocado, nessas festas, tantas confusões e brigas entre eles. As
crianças não mais estudam para aprender: fazem isso para ter altas notas, para saber realizar uma prova em um tempo
determinado, para "treinar" para futuros exames considerados fundamentais.
Em vez de brincar na piscina, aprendem a nadar estilos diversos; em vez de andar de bicicleta ou jogar bola, tênis de
mesa ou jogos de tabuleiros, são matriculados em cursos e aprendem a competir em vez de cooperar. Não é à toa que
tantas crianças têm sido medicadas, fazem tratamentos, sofrem com doenças psicossomáticas. Esse movimento de
pressionar as crianças até o limite -às vezes além dele- mereceu muitos estudos acadêmicos e investigações jornalísticas.
Um livro que falou diretamente aos pais a esse respeito e os alertou sobre os riscos dessa louca corrida para lugar nenhum
foi "Sob Pressão: Criança Nenhuma Merece Superpais", de autoria de Carl Honoré.
Já percebemos alguns efeitos de tantos estudos. Muitas escolas aumentaram o tempo do intervalo do ensino
fundamental; na educação infantil, diversas instituições têm adotado o brincar como metodologia e eliminado as apostilas
(?!) para as crianças; e muitas famílias têm diminuído a carga de compromissos dos filhos. Mas ainda é pouco. Entretanto,
hoje quero chamar a atenção para a louca corrida competitiva e extrema pressão a que muitas mães estão se submetendo.
E é importante lembrar, nessa questão, que a sociedade pressiona, mas as mães aceitam a pressão. Elas precisam se
libertar disso, em nome dos filhos. Muitas mulheres acreditam não mais ter a liberdade de escolher o tipo de festa de
aniversário que querem para os filhos, por exemplo. Mesmo que seja uma festa "alternativa", ela precisa ser perfeita ao
olhar do outro, ou melhor, das outras mães. E nunca é, concorda, caro leitor?
Diversas mães com quem conversei consideram exagerada a pressão que a escola coloca sobre os filhos, mas não
conseguem trocar de escola pela opinião de familiares e de pessoas de seu círculo social, mesmo percebendo com clareza os
prejuízos que isso acarreta às crianças. Até para escolher as atitudes formativas a serem tomadas com os filhos, das mais
simples às mais complexas, muitas mães são influenciadas -e quase sempre percebem isso- pelo que pressentem que será o
julgamento do outro.
Vamos liberar as mães para que façam as suas próprias escolhas? Cara mãe: você pode fazer a festa que desejar para
seus filhos, pode transferi-los de escola, caso perceba que eles não estão bem onde estão, pode tomar a atitude educativa
que quiser, se ela for respeitosa com a criança em sua etapa de vida. Educação familiar é isto: escolhas feitas considerando
as tradições do grupo, seus valores, seus princípios. Para as mulheres que têm filhos e que buscam a perfeição: vocês não
precisam jogar tanta energia fora, porque essa meta é inatingível!
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
A vergonha e o terror
(CONTARDO CALLIGARIS)
EM 1992, na votação do impeachment de Collor, suspendi o consultório e me instalei na frente da televisão. Na minha
lembrança, os pronunciamentos dos deputados de 1992 não foram muito melhores dos de domingo passado, mas dava para
tolerar tudo porque o espírito era diferente: havia no ar um gosto de liberdade conquistada.
Hoje, penso assim: caso uma votação desse tipo volte a acontecer, peço encarecidamente que o regulamento da
Câmera exija o voto sem pronunciamento: o deputado leu o relatório da Comissão Especial de impeachment, formou sua
opinião e anuncia: "voto sim" ou "voto não". Pronto.
Desta vez, só se salvou da depressão quem passou a tarde nas concentrações: exultaram ou choraram, mas pela boa
razão que ganharam ou perderam. Para os que encararam o espetáculo da votação na televisão, sobrou uma depressão que
ainda dura, tanto nos que perderam quanto nos que eram a favor do sim. É uma sensação de desamparo absoluto:
duvidando de quem nos governa, recorremos a quem nos representa. E, diante da tela de TV, surgiu a pergunta: são estes,
então, que nos representam?
O UOL fez a conta: dos 367 sim, apenas 16 falaram dos crimes que o voto deles queria castigar. O resto invocou sua
família, seu quintal eleitoral, a netinha que fazia aniversário, os filhos dormindo, o velho pai, deus, deus de novo (outro ou o
mesmo, tanto faz), posicionou-se contra a proposta de que crianças troquem de sexo, pelos moradores de rua ou por você
mamãe.
Em sua grandíssima maioria, os representantes invocavam seus afetos familiares e sua escolha religiosa na hora de
cumprir seu dever republicano. Essa confusão do privado com o público é a própria praga que alimenta a corrupção: a vida
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pública é parasitada por afetos privados que nem precisam ser escusos porque, "afinal", a família é o que mais importa aos
"homens de bem". Não é?
Tudo isso era triste. E chegou a vez do deputado Jair Bolsonaro, que disse: "Pela memória do coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff''. Ustra foi chefe do DOI-CODI de 1970 a 1974. Agitando o espantalho de um
sociopata torturador, Bolsonaro quis apavorar Dilma Rousseff, a torturada que resistiu à tortura.
Bolsonaro se confundiu. O grito do torturado já vale mais do que a palavra e o ato de qualquer torturador. E o silêncio
do torturado é a vitória final sobre o torturador. Ustra não ó o pavor de Dilma. Dilma é o pavor de Ustra. Bolsonaro deve ter
pensado que um bom número de deputados achariam graça. A única reação será a de Jean Wyllys? Noemi Jaffe tuitou:
Bolsonaro homenagear Ustra é como um neonazista homenagear Mengele, que torturou minha mãe.
No domingo, consternado pela explosão de afetos privados dos deputados, eu era indeciso entre a decepção com os
anos de PT e a perplexidade diante do que seria, como disse o ministro Barroso, a "alternativa". Não mudou nada. Mas sei
reconhecer o fascismo quando ele tenta falar alto. E essa é uma feiura contra a qual, desde pequeno, aprendi que é preciso
resistir.
Em 1947, Albert Kesselring, comandante das forças nazistas de ocupação na Itália, foi condenado à morte por crimes
de guerra. A sentença foi transformada em prisão perpétua. Em 1952, Kesselring, doente, saiu da prisão. Foi celebrado
como herói pelos neonazistas e declarou que ele tinha sido tão bom com os italianos que eles deveriam lhe erigir um
monumento. Piero Calamandrei, resistente, jurista, escritor, um dos fundadores do Partido de Ação (não comunista),
escreveu um poema, que dedico agora a Bolsonaro:
"Você o terá, camarada Kesselring, / o monumento que você pede de nós, italianos. / Mas com qual material será
construído, / isso a gente decidirá. / Não será com as pedras chamuscadas / das aldeias que foram supliciadas por teus
exterminadores. / Não será com a terra dos cemitérios / onde nossos jovens companheiros / descansam serenos. / Não será
com a neve inviolada das montanhas / que durante dois invernos te desafiaram. / Não será com a primavera destes vales /
que te viram fugir. / Mas será com o silêncio dos torturados, / mais duro que qualquer pedregulho; / será com a rocha deste
pacto / jurado entre homens livres / que voluntários se reuniram, / por dignidade e não por ódio, / decididos a redimir a
vergonha e o terror do mundo."
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016.
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