Somos Um - Jorge Camargo

Transcrição

Somos Um - Jorge Camargo
Transcrição do livro lançado em 2008 pela Grapho Editores Associados. Conteúdo
completo disponibilizado gratuitamente em http://www.jorgecamargo.com.br.
Todos os direitos reservados. © Jorge G. Camargo Filho
Editor: Jonathas Carvalho Batista
Revisão e diagramação: Ana Paula Spolon
Arte da capa (reproduzida no CD): Daniel Brito (Brito Design)
ISBN: 978-85-99019-14-6
À minha mãe Vanira (in memoriam), cujas
lições de vida me ajudaram a ser quem sou
Às minhas filhas, Ana Beatriz e Verônica,
cujo amor, carinho e doces travessuras me
ajudam a me tornar quem eu quero ser
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente a ajuda do Jonathas, meu editor, por acreditar no
projeto desde o início e por ter investido tempo, recursos e energia para que ele se
tornasse realidade. Um forte abraço fraternal não expressaria toda a minha
gratidão. Nem dois. Nem três!
Agradeço muitíssimo também ao Cezar Elbert, parceiro de outras
empreitadas, que se prontificou de imediato a arranjar e produzir as canções que
também são parte deste projeto, bem como também às participações especiais no
disco: Bianca Toledo, Fernando Merlino, Gerson Borges, Thiago Rosa e Tiago
Vianna.
Minha enorme gratidão à minha mulher, Ana Paula, pelo incentivo
incessante e pela revisão, competentíssima, de todo o texto.
Minha profunda gratidão a todos que, através do meu site e de outros meios
de comunicação, me incentivaram durante todo o processo de preparação deste
livro, originalmente publicado no formato de livro-CD. Agradeço em particular a
Ronaldo Perini, Sérgio Viriato, Osmar Ludovico, Kátia e Lúcia Cabral e todos os
companheiros da Fraternidade de Emaús.
O conteúdo deste livro complementa o CD Somos Um, relançado em 2011.
PREFÁCIO
Quando meu querido amigo Jorge mencionou a idéia deste livro, em um de
nossos almoços longos e prazerosos em São Paulo, todos à mesa ficamos
encantados, com razão. O projeto que o Jorge planejava realizar exigia mais que
um escritor. Demandava alguém que pudesse ser um mediador entre céu e terra,
um menestrel e um acadêmico, um homem do futuro, que pudesse evocar o
passado: Jorge Camargo era esse homem.
Quase todos nós estamos cientes de que falta algo em nosso cristianismo
protestante atual, aquele algo de difícil compreensão e cuja ausência nos faz sentir
tão incompletos e partir em todas as direções a fim de matar a nossa fome: mística.
O relativismo, a ciência, o racionalismo, o ceticismo e a religião a retiraram do
nosso meio.
Protestantes, sem perceber que a nossa herança mística se perdeu, andam
por aí, procurando satisfação no estudo da Bíblia – esperando realização através do
conhecimento da Palavra, sem conhecer a Deus. Temos como legado conhecer
mais sobre Deus. Mas estamos deixando, no entanto, de conhecer o próprio Deus.
A igreja moderna está sofrendo de um desequilíbrio que é conseqüência do
divórcio dos nossos pais espirituais – a Palavra e o Espírito. Nossa família espiritual
recebeu um golpe fatal com este grande divórcio. Como em todos os divórcios, a
solidariedade e a lealdade dos filhos acabam se esgarçando. Nos dias de hoje,
precisamos urgentemente que nossos ‘pais’ se reconciliem. “Eu plantei, Apolo
regou, mas Deus é quem fez crescer” e é essa combinação o elo perdido. Somos
plantados pela Palavra e regados pelos místicos. Deus, que é Palavra e Espírito, faz
crescer.
Quando Jorge nos contou seu sonho de escrever um livro falando sobre os
místicos, contou-nos mais do que um livro, relatou-nos um romance. Seus olhos
brilhavam – “quero contar a história dos místicos, mas de um modo novo e
diferente”. Como São João da Cruz aprovaria: “a fim de chegar onde conhecesses, tu
deves ir por um caminho que não conhecesses”.
Jorge Camargo, como ninguém, é qualificado para ser o nosso guia nessa
peregrinação. Ele é exemplo de um tempo maravilhoso, quando a Palavra e o
Espírito viviam em harmonia nos homens. Eu muitas vezes fui às lágrimas sob o
peso da Presença de Deus, sentimento que Jorge é capaz de produzir pela ponta de
seus dedos, usando seus instrumentos. Vocês o conhecem como compositor, e
estou certo de que irão apreciá-lo como escritor.
O livro é um tipo de Hall da Fama de Hebreus 11. Jorge homenageia a vida e
o legado de alguns dos grandes místicos da história. Ele não teria tempo se tentasse
contar em detalhes a história de todos eles. Por ora, basta que nos ofereça cartões
postais poéticos de alguns desses personagens cujas vidas foram de algum modo
entrelaçadas à sua. Irineu, Agostinho, Pseudo-Dionísio, Anselmo da Cantuária,
Francisco de Assis, João da Cruz, Teresa de Ávila e meu preferido, pessoalmente,
Thomas Merton, compõem essa seleção de pensadores místicos, que juntos com as
canções inspiradas por seus escritos fornecem ao leitor um vislumbre da sensível
odisséia que só pode ser vista através do olhar único da fé mística.
PAUL ANDERSON-WALSH
PG DIP EM TEOLOGIA
DIRETOR DO THE GRACE P ROJECT
LONDRES, INVERNO DE 2008
INTRODUÇÃO
Tempos atrás, um grande músico e compositor, conhecido de longa data,
pediu-me uma letra. Eu raramente escrevo letras para melodias já prontas. Quando
faço uma canção, na maioria das vezes tudo vem junto, letra e música, ou então a
letra vem primeiro em forma de poema e eu depois “corro atrás” da melodia e da
harmonia, até que juntas elas se transformem numa unidade. No entanto, pedido
de amigo a gente não recusa. Desdobra-se por atender.
No caso de “Coração”, tive de garimpar por entre a melodia rica de meu
amigo compositor. Eis o que apanhei:
Coração,
Hangar de todo riso e dor
Praça de onde sai
A voz do mundo
Caldeirão
Onde se cruzam ódio e amor
Na mistura requentada
Em fogo purificador
Quem porventura te conhece
Te convence, te desnuda
A ponto de enxergar
Teus caminhos de além mar
Labirintos e porões
Desencontros, medo e fé?
Ah, coração,
Quem és?
Esta letra descreve com propriedade a viagem que esta obra propõe. Por
muitos motivos valeu a pena tê-la escrito. Ela me ajudou e tem me ajudado a
entender quem sou. Só por isso já teria valido.
*****
Somos um está longe de ser um livro de biografias. Minha intenção ao
escrevê-lo foi mesclar várias avenidas, intersectá-las, a exemplo dos muitos
cruzamentos que se dão na nossa própria vida, de gostos, sensações, percepções e
discernimentos.
A proposta é trafegar por entre a vida e a obra de alguns personagens de
destaque na história do pensamento, aquilo que eles produziram em mim e o
resultado dessa combinação: canções inspiradas em suas vidas e obras.
Os capítulos correspondentes a cada personagem, individualmente, estão
dispostos em ordem cronológica (mas não é preciso seguir esta ordem para ler o
livro – pode-se lê-lo de trás para adiante, ou como bem se quiser). Neles falo um
pouco de suas trajetórias e busco encontrar em pensamentos e atos distantes da
minha realidade conexões com o meu momento e a minha realidade.
A tarefa não é de todo árdua, uma vez que, a despeito do tempo que nos
separa, as nossas leituras do mundo, em certos momentos, coincidem - e aí é como
se tudo fosse parte de um mesmo tempo: vida, idéias, sentimentos, esperanças,
temores, transcendência, fé.
Os personagens são Irineu de Lião, Agostinho de Hipona, Pseudo-Dionísio,
Anselmo da Cantuária, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, João da Cruz e
Thomas Merton.
Espero que as narrativas entrelaçadas de suas vidas com a minha possam
inspirar seu coração, como têm inspirado o meu.
IRINEU
O AMOR É MAIS
É preciso mais que conhecer
Conhecer me ajuda a ser melhor
Mas não é capaz de transformar
Meu incorrigível coração
Minha alma quer sobrevoar
Seus montes e vales, rio e mar
O seu mais fundo interior
Rumo à sua própria perfeição
Conhecimento é precioso
Tem seu espaço, sua força, seu valor
Contudo está longe de ser tudo
Pois sobre tudo reina o amor
O amor é mais precioso,
O amor tem mais espaço
O amor é mais que força,
O amor tem mais valor
Irineu é considerado o maior teólogo do século II, juntamente com Teófilo
de Antioquia e Justino.
Como defensor incansável da fé cristã contra as muitas doutrinas que a
ameaçavam, escreveu vasta obra literária.
O local de seu nascimento é incerto. Talvez tenha sido Esmirna, na Ásia
Menor, entre os anos 130 e 135 d. C.
Dois de seus escritos conferem à sua biografia muita importância como líder
religioso do cristianismo nascente: Demonstração da Pregação e Contra as Heresias.
Sua formação espiritual é atribuída a Policarpo (70 – 160 d. C.), ordenado
bispo pelo próprio São João Evangelista, também conhecido como o “discípulo do
amor”, amor que ele enaltece como poucos autores nos textos sagrados,
“Meus amados amigos, continuemos amando uns aos outros, uma
vez que o amor vem de Deus.
Todo aquele que ama é nascido de Deus e experimenta um
relacionamento com ele”.
“A pessoa que se recusa a amar não sabe nada sobre Deus, porque
Deus é amor – de modo que você não pode conhecê-lo se não amar.”
“Ninguém jamais viu a Deus. Se amamos uns aos outros, no
entanto, Deus habita no nosso íntimo, e o seu amor se torna
completo em nós – amor perfeito!”
(Trechos da Primeira Carta do apóstolo João, tradução livre da Paráfrase
“The Message”, de Eugene Peterson)
*****
Renato Russo foi o poeta de sua geração, a geração pós-utopia. Os anos de
chumbo da ditadura haviam acabado, as lutas pela redemocratização haviam
alcançado seu objetivo e a queda do muro de Berlim havia decretado o fim do
sonho socialista.
Restava a Russo e a outros que vieram a se tornar ícones da música
brasileira de seu tempo cantar sobre os conflitos com os pais, a incerteza em relação
ao futuro, as dificuldades de relacionamento.
Surpreendendo seus críticos literários por sua capacidade de expressar por
meio de sua poesia as crises, anseios, solidão e revolta da juventude brasileira pós64, Renato, juntamente com Cazuza, entre outros poucos, provou que havia vida
inteligente no rock nacional.
Desafiando o óbvio e revelando capacidade autocrítica, vitalidade,
inconformismo e reflexão, as canções de Russo retrataram o mundo desses muitos
jovens de classe média entre fim dos anos de 1970 e início de 1980.
Na tentativa de encontrar sentido e significado para a existência, Renato,
talvez em uma de suas canções mais emblemáticas, “Monte Castelo”, cantou o
mais sublime de todos os temas: o amor, que nela é apresentado como a motivação
maior, a mais importante de todas as coisas - não apenas uma solução, uma
equação, uma esperança para o futuro, mas o fundamento, o alicerce da vida
presente.
Renato tem em sua língua natal uma ferramenta, um veículo de expressão
de seus mais profundos anseios e sentimentos e usa então dois textos clássicos sobre
o assunto, fundindo-os numa mesma canção.
Um deles é o “Soneto no 11” de Luis Vaz de Camões, o maior poeta da
língua portuguesa, registrado em sua obra-prima, os Lusíadas,
Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor.
O outro, de Paulo de Tarso, apóstolo de Cristo, é um hino ao amor, em sua
primeira carta endereçada aos cristãos da cidade grega de Corinto, capítulo XIII.
“Se eu falasse com eloqüência humana e êxtase angelical, mas não
amasse, não seria nada, senão o rangido de um portão enferrujado.
Se eu falasse a Palavra de Deus com poder, revelando todos os seus
mistérios e deixasse tudo claro como a luz do dia, e tivesse a fé que
diz a uma montanha ‘salte’ e ela saltasse, mas não amasse, eu não
seria nada...
... o amor nunca desiste.
O amor se importa mais com os outros que consigo mesmo.
O amor não quer aquilo que não tem.
O amor não se exibe,
Não se acha melhor que os outros,
Não se impõe sobre os outros,
Não é sempre “eu primeiro”,
Não perde as estribeiras,
Não guarda registros dos pecados dos outros,
Não se alegra quando outros rastejam,
Tem prazer no florescimento da verdade,
Suporta qualquer coisa,
Confia em Deus sempre,
Sempre procura o melhor,
Nunca olha pra trás,
Antes continua, até o fim...
... Sabemos apenas uma porção da verdade,
e aquilo que dizemos acerca de Deus é sempre incompleto.
... Quando eu era menino, no peito de minha mãe,
eu murmurava e arrulhava como qualquer menino.
Quando cresci, deixei de vez esses hábitos de menino.
Nós ainda não vemos as coisas com clareza.
Estamos enxergando com dificuldade no meio de uma neblina,
de uma névoa.
No entanto, não irá demorar até que o tempo abra e o sol brilhe
forte!
Então, veremos tudo, tudo tão claro como Deus nos vê,
conhecendo-o diretamente assim como ele nos conhece...”
(tradução livre da Paráfrase “The Message”, de Eugene Peterson)
*****
Irineu foi ardoroso defensor de sua fé. No entanto, o que mais me chamou
atenção em sua obra de defesa do cristianismo diante do surgimento de novas
idéias, contrárias à sua mensagem inicial, é como ele conclui um de seus tratados
literários, declarando que o amor, mais que o conhecimento, é capaz de levar a
alma do homem à perfeição.
Este é o tema da canção “O amor é mais”, inspirada nesse personagem e em
sua obra.
A canção do Renato me fez pensar como a mensagem de Irineu e o desejo
do mundo inteiro por amor se encontram e abraçam.
Fiquei, por fim, matutando qual seria, além da canção inspirada em Irineu, e
do hino ao amor do Renato, um texto, um poema, um episódio de minha vida que
pudesse traduzir o que entendo por amor.
Sei que a tarefa não é fácil. Escolhi, no entanto, um diálogo desses que
temos com os filhos antes de dormir, depois de um dia comum, cheio daquelas
coisas que teimam em nos tornar medíocres, em nos fazer passar pela vida como se
ela não tivesse qualquer sentido ou transcendência, até que esses diálogos surgem,
inesperados, e nos mostram que a vida é muito mais do que pensamos:
– Papai...!
– O que foi, filha?
– Estou com medo...
– Medo de quê?
– Dos monstros!
– Monstros?
– É... Eles estão aqui!
– Filhinha... Deixa eu te dizer uma coisa: onde existe amor não há lugar
para monstros. Os monstros têm medo do amor. O amor é maior que os monstros.
O amor é maior que tudo. E você é muito amada, minha flor.
– Quer dizer que onde não tem amor os monstros vêm?
– É querida, você disse uma grande verdade... Onde não há amor, nossos
monstros, nossas feras, nossos demônios, aparecem, entram e fazem moradas nos
cantinhos mais íntimos do nosso ser.
Àquela altura do meu discurso metafísico sobre as implicações do conflito
apocalíptico entre os monstros que habitam a imaginação fértil de minha filha
recém-adotada e o amor, meus olhos, encarando-a com toda ternura do mundo, se
encheram de lágrimas, enquanto os seus, verdes e límpidos como o mar de Natal,
sorriram pra mim ante a constatação de que o amor estava presente ali entre nós,
que os monstros haviam se dissipado todos - como fumaça - e que era hora de
dormir na mais profunda paz de criança.
Nosso breve tratado filosófico-teológico se encerrou num abraço apertado
(de ambos), molhado (por minhas lágrimas) e cheio desse mesmo amor de que
falamos.
“... estou absolutamente convencido de que coisa alguma – nada
vivo ou morto, angelical ou demoníaco, o hoje ou o amanhã, altura
ou profundidade, imaginável ou inimaginável – absolutamente nada
pode colocar-se entre nós e o AMOR...”
Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo VIII
(tradução livre da Paráfrase “The Message”, de Eugene Peterson)
AGOSTINHO
DESCANSO
Tu és grande ó Senhor
E digno de ser louvado
Grande é o teu poder
E todo o teu saber
Não tem limites
Feito à imagem de ti
Criado para louvar-te
O homem ser mortal
E que é refém do mal
Deseja amar-te
Tu não nos forjaste por acaso
Tu nos criaste para ti mesmo
E o nosso coração já não canta
O nosso coração não se encanta
O nosso coração não encontra descanso
Até que descanse em ti
Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste (atual Souk-Ahras, Argélia), de uma
família abastada, a 13 de novembro do ano 354, filho de Patrício, pai pagão e de
Mônica, uma cristã fervorosa que exerce sobre ele grande influência religiosa.
Em Cartago, onde seguiu para estudar, Agostinho adere ao maniqueísmo,
filosofia religiosa que dividia o mundo entre bem - ou Deus - e mal - o Diabo, e que
afirmava ainda que a matéria é intrinsecamente má e o espírito intrinsecamente
bom. Agostinho julga encontrar nesse dualismo maniqueísta a solução do problema
do mal e o sentido para a sua vida.
Ao terminar seus estudos, abre uma escola em Cartago, parte para Roma e
posteriormente para Milão.
Aos trinta e dois anos, afasta-se definitivamente do ensino, em 386 d. C., por
razões de saúde e também de ordem espiritual.
Ao final de um maduro exame crítico, Agostinho abandona o maniqueísmo
e abraça a filosofia neoplatônica que lhe ensinou, entre outras coisas, a
espiritualidade de Deus e a negatividade do mal.
Em setembro do mesmo ano, Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à
carreira e ao matrimônio. Retira-se durante alguns meses, em companhia da mãe,
do filho e de alguns discípulos, para as proximidades de Milão. Ali, aos trinta e três
anos, escreve seus diálogos filosóficos e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o
filho Adeodato e o amigo Alípio, é batizado por Santo Ambrósio.
Depois de sua conversão, Agostinho abandona Milão e, após a morte de sua
mãe, em Óstia, volta para Tagaste. Depois de vender todos os seus bens e distribuir
o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro. Ordenado padre em 391 e
consagrado bispo em 395, governa a igreja de Hipona (atual Annaba, Argélia) até a
morte, aos setenta e cinco anos de idade, morte esta que ocorre durante o assédio
da cidade pelos Vândalos, a 28 de agosto do ano 430.
De Agostinho muito poderia ser dito. Dentre outras coisas, que foi o
primeiro grande filósofo cristão, o último dos pensadores antigos e o primeiro dos
medievais, que inaugurou a literatura confessional, que seu livro Confissões tem no
mundo Medieval tanta importância quanto a que é dada à Odisséia ou à Divina
Comédia na Antiguidade Clássica.
Neste livro, escrito quando tinha 43 anos de idade, Agostinho narra sua vida
e revela a descoberta da intimidade, que poderia ser definida como alma ou
realidade espiritual, que não quer dizer necessariamente o não-material, mas a
realidade que é capaz de entrar em si mesma.
É de Agostinho a máxima que diz, “não vá fora, entra em ti mesmo: no
homem interior habita a verdade”.
Sua grande constatação é a da interioridade. Essa entrada na intimidade, no
mais profundo de si mesmo, em confissão, é o tema de sua autobiografia e é
também o cerne de seu pensamento: a descoberta da própria intimidade, que
começa com ele e que se torna uma aquisição de todos nós.
Quando penso em Agostinho e em mim mesmo, portanto, uma palavra vem
à mente: sede. Desde os primeiros anos de vida, Agostinho revela um anseio
profundo, uma busca incessante por sentido e significado, a busca que é, por fim, a
que todos empreendemos.
Impossível também não relacionar seu anseio à letra do Djavan na canção
“Seduzir”:
“Vou andar, vou voar
pra ver o mundo,
nem que eu bebesse o mar
encheria o que eu tenho de fundo”
Vejo Agostinho como um parceiro, um companheiro de jornada que em
muitos momentos diz coisas que eu não consigo dizer, que expressa em linguagem
profunda e poética minha inquietação diante das muitas perguntas sem resposta
que me povoam a alma.
Por isso, considero-o um amigo. Afinal, um amigo é aquele que nos canta
ao ouvido a nossa própria melodia, a melodia que nos identifica (que nos revela ao
mundo e que por muitas vezes esquecemos ao longo do caminho) e que só amigos
de verdade também conhecem e podem cantarolá-la, a fim de que retomemos o
tom da vida.
*****
Assisti ao DVD Agostinho, uma produção italiana de 1972, dirigida por
Roberto Rosselini.
O filme é a biografia desse grande filósofo e teólogo de origem africana,
particularmente a partir de sua ordenação como bispo.
A cena mais interessante do filme pra mim é quando, reunidos como igreja,
os líderes decidem indicá-lo para o cargo. Ao perceber que seria aclamado,
Agostinho tenta sair do salão sem ser notado. É contido pelos que estão mais
próximos e, ao ouvir seu nome, declara em alto e bom som que não merece ser
indicado, afinal, foi um péssimo exemplo para sua piedosa mãe Mônica, e para a
mulher com quem teve um filho, Adeodato.
Membros da comunidade, um a um, rebateram os argumentos do nobre
líder fazendo-o lembrar que eles também possuíam uma lista interminável de atos e
pensamentos que os desabonavam, inclusive de estar ali, e que Agostinho era quem
os encorajara à caminhada, apesar deles mesmos e de seus muitos pecados.
Relutante, ele aceita o encargo de liderá-los.
E a história se encarrega de escrever seu nome entre os grandes homens que
este mundo conheceu.
*****
“Descanso” é inspirada na célebre frase de Agostinho na introdução de seu
livro Confissões, que diz: “o meu coração não encontra descanso até que descanse
em ti”.
PSEUDO-DIONÍSIO
AREOPAGITA
MISTÉRIO
Quem tem todos os nomes
E ao mesmo tempo nome algum
Que em tudo põe limites
E cujo limite é nenhum
Quem vai além da oposição
Entre o que tem e não tem fim
Que sai em direção a tudo
E permanece em seu jardim
Acima de todo o saber
De todo o crer, toda razão
Além de toda a compreensão
De todo esforço sério
De toda a investigação
Eis que habita em nós,
Eis que habita em nós
Mistério
Tentar saber seu nome
É navegar na imensidão
Do mar que está dentro de si
É mergulhar no coração
E ao mesmo tempo se deixar
Sair além do próprio eu
Render-se por inteiro àquele
Que a alma insiste em chamar “Deus”
Acima de todo o saber
De todo o crer, toda razão
Além de toda a compreensão
De todo esforço sério
De toda a investigação
Eis que habita em nós,
Eis que habita em nós
Mistério
Em outubro de 2004, à mesa, almoçávamos eu, Parag, jovem doutorando
paquistanês e Bindú, professora, também jovem e brilhante doutoranda, residente
no interior da Índia.
O local do nosso almoço multinacional era a universidade de Uppsala,
Suécia, sede de um congresso do qual participávamos.
Após quase uma hora de conversa leve e agradável, Bindú conduz o
conteúdo dos diálogos a águas mais profundas.
─ Não creio nos milhares de deuses de meu país, embora eu mesma me sinta
radicalmente hindu. Na verdade, não creio em nenhuma instituição religiosa. Mas
creio, sim, em um grande mistério que a todos nos envolve e me rendo
humildemente à grandeza e à riqueza desse mistério…
Depois de uma pausa de poucos segundos, volto a ouvir o ruído suave dos
talheres tocando os pratos depois de terem abastecido bocas abertas, um pouco
mais abertas do que de costume, no ritual quase mecânico de recepção do alimento.
Talvez mais abertas ainda, como a alma nobre de Bindú.
*****
O caminho é o da zona norte de Paris. Conto os minutos até chegar ali.
Na manhã preguiçosa de domingo do alto verão parisiense, na saída da
estação de metrô mais próxima, a visão é cosmopolita: no mercado a céu aberto,
um retrato da típica mistura de raças e línguas, cores e tons, tão comum às
periferias discriminadas e esquecidas no fundo do quintal de um canto qualquer das
grandes metrópoles do mundo.
Mais alguns quarteirões, uma tomada à esquerda e eis que surge, imponente,
um enorme santuário.
A visão interior de seus arcos góticos é impressionante: eles são como
bocarras escancaradas, prontas para me engolir – eu, insignificante criatura – e
acomodar-me por entre suas gargantas sem fundo, imensas e aterradoras. O
percurso do gesto antropofágico, no entanto, ao contrário do que determina a lei da
gravidade, é para cima. Elas parecem ter sido feitas com o intuito de transportar
suas vítimas por um túnel extenso e escuro que as leve na direção do grande e
insondável mistério.
Mistério que a profundidade impressionante daqueles arcos múltiplos
convida-me a reverenciar.
A basílica, antiga e bela, palco das cerimônias de coroação dos monarcas
franceses e onde se encontram os túmulos de muitos deles, foi construída em honra
a São Dionísio, patrono da nação francesa.
A história desse personagem ilustre do cristianismo está cheia de detalhes
pitorescos. Durante muito tempo se creu que ele teria sido Dionísio, discípulo de
Paulo, convertido por ocasião da famosa pregação do apóstolo no Areópago em
Atenas, registrada no livro de Atos dos Apóstolos. Da Grécia, Dionísio teria
partido para a França, onde se tornou um grande líder, e sido decapitado no Monte
dos Mártires (Montmartre). Após sua execução teria tido seu próprio tronco
erguido com a ajuda de anjos. Caminhando, teria levado a própria cabeça nos
braços por duas milhas até o local onde tombou e foi sepultado, no terreno onde foi
erguida a basílica, em honra a Saint-Denis.
O tempo tratou de mostrar que o personagem reverenciado poderia ter sido
outra pessoa, outro Dionísio.
Um conjunto de textos sagrados de grande influência na Idade Média
também foi atribuído a Dionísio, o Areopagita.
O conteúdo deles, no entanto, demonstra conceitos que surgiram bem
depois do primeiro século e que, portanto, não poderiam ter sido escritos por um
cristão daquele período. Eles têm sido, desde então, atribuídos a um monge sírio,
também de nome Dionísio, do século VI.
Eu não vou me aventurar a fazer teologia. Não sou teólogo. Mas, a exemplo
de muita gente, vivo, penso, repenso, sonho e volto a refletir sobre a vida cotidiana
e sobre coisas que estão além de mim e do meu tempo. Pondero sobre a beleza que
enxergo nas artes, na infinita variedade e diversidade da natureza, na complexidade
e sensibilidade de homens e de mulheres sobre quem leio, ouço falar e com quem
convivo. E isso tudo me faz pensar em Deus. Logo, me faz fazer teologia. E assim,
do pensamento em Deus às reflexões de Dionísio, depois de constatado o fato de
que ele não era o discípulo cristão do primeiro século, mas sim outro do início do
VI (quem se importa?), é um pulo.
Em Dos Nomes Divinos, Dionísio afirma que Deus não pode ser expresso em
palavras. Eu então olho ao meu redor e me pergunto sobre as milhares de placas de
igreja dependuradas por toda parte, em grandes e pequenas cidades, algumas delas
alardeando, por meio de definições claras, todos os atributos divinos, suas
estratégias de ação no mundo, seus sentimentos e pensamentos, definidos e
fechados, racionais e objetivos.
Diante delas, a literatura de Dionísio me consola.
Alguém perdido nos corredores empoeirados da história em uma época em
que Deus era o centro de tudo, para o bem e para o mal, pensa a seu respeito com
reverência – não o respeito por medo, mas pela constatação de uma grandeza
indescritível (por qualquer forma de linguagem humana) e que nos convida, diante
da visão ainda que pálida e difusa do grande Mistério, a olhar para a vida com a
mesma reverência e o mesmo respeito daqueles que, diante das muitas
representações do divino, se apavoram. Só que sem medo.
E o nobre líder e eu nos conectamos. Tempo e espaço não são obstáculos ao
nosso diálogo. Tornamo-nos amigos de jornada, companheiros de ignorância,
parceiros no desconhecimento, colaboradores mútuos na coragem e no
encantamento diante da beleza desse Mistério.
*****
“Mistério” é inspirada em trechos da obra do Pseudo-Dionísio Areopagita,
Dos nomes divinos
ANSELMO
MONOLOGION
Bem absoluto
Em cuja bondade
Os bens relativos
Todos tomam parte
Inefável, insondável
Em quem creio
Auto-sustentável
Ser a quem os seres
Contingentes todos
Lhe devem o serem
Simplesmente, tão somente
Um consigo
Minhas lembranças de escola são doces.
O colégio Paulo Setúbal, na vila Santa Maria, zona norte de São Paulo, foi
onde iniciei meus estudos e concluí o primeiro grau.
Minha primeira professora, Cecília Marina, era uma linda jovem, paciente e
dedicada.
Foi um bom começo de vida acadêmica.
Falando em vida acadêmica, meu pai não completou a quarta série. Minha
mãe apenas completou a quinta e foi minha grande incentivadora nos estudos.
Lembro-me de certa ocasião, quando tentou retomar a escola e se inscreveu
em um curso de atualização que requeria exames preliminares.
No dia de um desses exames, por um motivo que não lembro, ela acabou
impossibilitada de ir ao local determinado e em meio a muitas lágrimas enterrou de
vez o sonho de ir mais longe como estudante.
Sua imaginação, fértil e rica, e sua memória para números, informações e
histórias - principalmente histórias – eram, no entanto, prodigiosas.
Enquanto morei com meus pais, quase todos os dias, ao chegar em casa,
ouvia de dona Vanira narrativas de filmes com riqueza de detalhes. Ela tinha
enorme prazer em reproduzir em palavras as sensações e sentimentos que as
películas imprimiam em seu coração sonhador.
Ouvia também por muitas vezes a epopéia de sua viagem (a única dela ao
exterior) a Portugal aos dezessete anos, com meu avô, onde ficaram por seis meses.
Até hoje me pego imaginando detalhes do barco, as festas a bordo, a
chegada em Lisboa, a comunhão da família, regada a petiscos e vinho.
Costumo pensar e dizer que a sua paixão por histórias semeou em mim o
amor pela poesia, a linguagem da imaginação e, portanto, a linguagem artística por
excelência.
*****
Nascido em Aosta, no norte da Itália em 1033, filho de um nobre lombardo,
o personagem deste capítulo, Anselmo, ainda jovem, decidiu deixar a casa de seus
pais e viajar até a França, estabelecendo-se na Normandia. O lugar onde se fixou é
hoje conhecido como Le-Bec-Hellouin.
Hellouin foi um cavaleiro normando que tanto se interessou pelo
cristianismo que transformou sua propriedade em um monastério. O monastério se
chamava Le Bec e em pouco tempo se transformou num centro de ensino e de fé.
Foi nesse monastério que Anselmo chegou, atraído pela reputação de seu abade à
época, Lanfranc, e se tornou um monge beneditino.
*****
Minha avó Olga também teve um papel preponderante em minha formação
artística e espiritual, se é que posso dizer assim.
Filha de imigrantes italianos, nascida em Campinas no ano de 1902,
trabalhou ainda jovem nas fábricas de tecido recém-instaladas no bairro do Brás,
tradicional reduto da colônia italiana em São Paulo.
Sua história de vida é pontuada por tragédias: até os trinta e poucos anos
teve dez filhos. Oito morreram antes de completar dois anos. Viúva, casou-se com
um comerciante português, João Marques, com quem teve uma única filha, minha
mãe.
Devido a dificuldades financeiras, passou a morar conosco quando eu ainda
era bem garoto.
Apesar do amargor da vida, da enfermidade nas pernas que limitava seus
movimentos, vez por outra eu a ouvia cantarolando uma canção de infância,
“Mamma, son tanto felice
perché ritorno da te...”
Esta talvez seja uma de minhas primeiras memórias musicais.
Minha avó apegou-se muito à fé em seus últimos anos de vida. Na casa de
apenas um quarto onde moramos por anos, eu e ela repartíamos a sala. Sou
testemunha de suas orações sussurradas, suas lágrimas de dor e de esperança, de
seus pensamentos verbalizados ora a mim, ora ao vento.
Seu apego às coisas espirituais por certo semeou em minha alma um desejo
de conhecer e ir fundo na busca que penso ser a de todos nós.
*****
Em 1066 Guilherme o conquistador invadiu a Inglaterra e começou a
instalar os normandos em postos importantes por todo o país. Guilherme convidou
Lanfranc para vir à Inglaterra e se tornar o arcebispo da Cantuária.
Anselmo se tornou abade em substituição a Lanfranc e permaneceu nesse
posto por quinze anos. Quando em visita à Inglaterra, foi ordenado bispo da
Cantuária pelo rei Guilherme II, em 1093.
Ele morreu em 1109 aos setenta e cinco anos, depois de um período de
quinze anos que testemunharam uma grande tensão entre a igreja inglesa e os reis
normandos.
Na verdade, Anselmo esteve mais fora que dentro da Inglaterra durante o
período, uma vez que foi muitas vezes enviado ao exílio por Guilherme II e
Henrique I.
*****
De meu primeiro ano na escola, a lembrança mais vívida é a do sinal
tocando forte, da correria rumo ao pátio e ao caminho que dava acesso ao portão
de saída, um corredor largo e aberto, de onde se podia avistar a rua.
Dali meus olhos procuravam pelos de meu pai, que me aguardava na
calçada e me recebia com um beijo discreto e um abraço, sem muitas palavras,
como sempre foi de seu feitio.
*****
Anselmo iniciou o movimento conhecido como escolasticismo e que atingiu
seu auge no século XIII. O escolasticismo recebeu este nome por conta de sua
associação com as escolas monásticas e catedrais nos séculos XII e XIII. Estas
escolas, a partir dos séculos XIII e XIV, se desenvolveram e se transformaram em
universidades como as de Paris e Oxford.
*****
Graças a Anselmo e a uma longa viagem de gentes pelo tempo e pelo
espaço, eu tive o Paulo Setúbal pra estudar.
De Paris e Oxford para a periferia de São Paulo muitas águas rolaram
debaixo da ponte. Séculos de história e tradição.
E é fascinante pensar que estejamos, de algum modo, ligados - na fé, no
conhecimento, na experiência e na vida.
*****
O Monologion, provavelmente primeira obra de Anselmo, foi escrito em Le
Bec no ano de 1076, em resposta ao clamor dos estudantes, que desejavam um
público maior para o pensamento de seu mentor. É o texto que inspira a canção,
homônima.
FRANCISCO
FALE DE AMOR
Fale de amor
No espelho d’água de seus olhos
Abra os portais do seu abraço
Se for preciso, use palavras
Fale de amor
Trocando os sons pelo silêncio
Tornando voz em gesto e ato
Se for preciso, use palavras
Proclame a vida
Em seu singelo esplendor
Cantando ao vento
A música do seu amor
Fale de amor
Livre de amarras e de pesos
Com suas lágrimas, sorrisos,
Se for preciso, use palavras
O sol, a lua e as estrelas
Mulheres, homens e animais
Irmanados na riqueza
Suprema que é viver em paz
Proclamem a vida
Em seu singelo esplendor
Cantando ao vento
A música do seu amor
A música entrou definitivamente em minha vida quando eu tinha doze anos.
Minha tia Mariinha, carinhosamente chamada por todos na família de Inha, foi
minha madrinha de batismo e me presenteou, em meu aniversário, com um violão
vermelho Giannini, de cordas de aço. Nos primeiros minutos de contato eu e o
violão não nos entendemos muito bem: quebrei duas das cordas tentando afiná-lo.
Durante meses ele ficou largado em cima do guarda-roupa, ocupando
espaço e juntando pó. No ano seguinte, o Cláudio, vizinho e amigo de muitos anos,
indicou-me uma professora de violão, a dona Vivi. Com ela aprendi os primeiros
acordes e formei meu primeiro repertório.
Hoje, quando revejo na mente como um filme a imagem da dona Vivi e o
seu violão, sempre afinado e de som doce e refinado, ao mesmo tempo em que
percebo suas limitações, reconheço o quanto ela era capaz de passar adiante o que
sabia.
Ainda espero encontrar dona Vivi para dizer muito obrigado por ter
plantado em mim a boa semente do amor à música e hoje poder dizer, citando
Caetano Veloso, “como é bom poder tocar um instrumento”.
Lembro-me com detalhes da primeira aula e da primeira canção que levei
para casa, “O Vira” do grupo sensação da época, os Secos e Molhados. Depois de
meses de encontros semanais na sala da casa de dona Vivi, meu caderno estava
repleto de canções com ritmos variados, todas padronizadas e escritas com a
famosa caneta Bic: as letras em azul, as cifras e a indicação do ritmo em vermelho.
Cláudio e Walter, o “Pezão”, eram originalmente os meus parceiros de
futebol, embora nenhum dos três levasse muito jeito para a coisa. A falta de
habilidade com a bola, no entanto, já não nos incomodava. Havíamos agora nos
tornado parceiros na música. Éramos os três alunos de dona Vivi.
Encontrávamo-nos regularmente para compartilhar nossas canções e as
dificuldades no aprendizado de novos acordes, particularmente com a “pestana”,
posição que exige o uso do dedo indicador inteiro estendido sobre as casas do
violão, servindo de apoio aos outros dedos na formação do acorde, e que é o terror
de todos os iniciantes no instrumento.
Pouco tempo depois, conhecemos a Valéria, nossa colega de escola, uma
garota comunicativa e simpática que também tocava e que nos convidou para
juntos “trocarmos figurinhas” musicais em sua casa. Aquele primeiro encontro
determinou o rumo que minha vida tomaria nos anos seguintes.
Da reunião inicial, onde pela primeira vez ouvi um disco do grupo
Vencedores por Cristo, marcamos de nos ver novamente, dessa vez na igreja que
Valéria freqüentava, um templo espaçoso em um bairro antigo e tradicional da
cidade, que em suas atividades reservava uma sala para adolescentes, aos domingos
à tarde.
O som das guitarras era envolvente e o senso de comunidade que o ambiente
suscitava era acolhedor. Dezenas de meninos e meninas reunidos em um espaço
apertado, cantando a plenos pulmões, mãos unidas na canção final, sorrisos e
abraços de boas vindas - essas coisas todas me marcaram profundamente e me
fizeram querer ser parte de tudo aquilo.
Poucas semanas depois eu já empunhava uma das guitarras no encontro
semanal dos adolescentes. Em meses, apresentava minhas primeiras composições
nos cultos dominicais noturnos, para centenas de pessoas. Minha vocação se
manifestara de forma clara e límpida.
Quatro anos se passaram. Meu querido Rubens (àquela altura, novo amigo),
observando meu trabalho como músico, intérprete e compositor naquela
comunidade, apresentou-me a alguns membros dos Vencedores, uma organização
religiosa e artística que recrutava jovens de várias comunidades cristãs do país,
oferecendo treinamento em diversas áreas que incluíam, entre outras, a música. Os
jovens selecionados formavam um grupo musical (cujo nome era Vencedores,
seguido do número da equipe) que recebia apoio da organização e viajava para uma
determinada região do Brasil visitando igrejas, hospitais, prisões, praças públicas,
canais de rádio e TV, colocando em prática os ensinamentos adquiridos durante a
fase de treinamento. Ao final da viagem, eram “devolvidos” às suas comunidades
numa noite de celebração, quando um relatório era dado sobre as atividades da
equipe.
O sustento da organização vinha, entre outras fontes, da gravação de discos.
Os músicos que deles participavam eram os jovens que nas equipes se destacavam
por suas habilidades musicais e emprestavam seu talento ao grupo. Participei de
várias dessas gravações até começar a produzir meus próprios discos, no final da
década de 1980.
O trabalho com Vencedores me abriu portas, janelas e horizontes. Nas
muitas viagens que fiz com as equipes visitei as mais variadas comunidades cristãs,
como variadas foram as regiões deste país, com seus inúmeros sotaques, estilos,
influências e ambigüidades, nas quais cheguei.
No dia a dia do trabalho musical conheci músicos, intérpretes e
compositores fantásticos, entre os quais Sérgio Pimenta, Nelson Bomilcar e muitos
outros. Passei também a ter contato com a obra de muitos artistas de outros países,
como o inglês Graham Kendrick e os americanos Keith Green, Phil Keaggy,
Michael Card e John Michael Talbot, estes dois últimos com uma história
interessante, que me liga a Francisco.
Michael Card, de formação protestante, é conhecido nos Estados Unidos e
em outras partes do mundo como um compositor de música cristã de conteúdo
sólido, inspirada nas Escrituras e de compromisso com a reflexão. John Michael
Talbot é líder de uma comunidade - The Brothers and Sisters of Charity at Little Portion
Hermitage - e o intérprete e compositor católico mais difundido nos Estados Unidos.
Amigos de longa data, em 1996 eles produziram um disco juntos, Brother to
Brother (De Irmão para Irmão). A obra recebeu várias críticas dos setores mais
conservadores (tanto católicos quanto protestantes) por insinuar uma relação
ecumênica entre Card e Talbot. E pensar que muitos dos críticos, senão todos,
talvez não tenham tido a oportunidade e a disposição de ouvir o resultado final da
produção, de rara beleza e encantamento!
Sempre admirei as obras de Talbot e Card, cada um dentro de sua tradição.
Michael por produzir álbuns temáticos, que revelam a dedicação à pesquisa e um
autêntico mergulho nos temas abordados. John por sua busca às raízes de sua fé,
lançando mão da obra e da vida de vários personagens da história do cristianismo
para transformá-los em melodia, harmonia e ritmo. Uma de suas canções é
intitulada “Lady Poverty” (Senhora Pobreza) e inspirada em Francisco:
“Lady Poverty,
Enter my door
Give me the riches
Of my Lord”
“Senhora Pobreza,
Entre em minha porta,
Dê-me as riquezas
De meu Senhor”
Ao ouvi-la, a conexão foi imediata com a vida e a obra do grande líder
cristão nascido no século XII na cidade italiana de Assis, de família nobre e que,
tendo se convertido enquanto prisioneiro de guerra, anos depois criou uma ordem
religiosa que leva seu nome, a dos Franciscanos.
Por muitos tido como louco, Francisco levou às últimas conseqüências seu
compromisso de fé. Despojou-se de todas as riquezas e viveu o resto de sua vida
dedicado aos pobres e marginalizados. Enfrentou conflitos com o poder religioso de
sua época, mas resistiu às pressões sem violência, no que me lembra Ghandi e
Martin Luther King.
Ele por certo teria dificuldade de estar filiado a alguma entidade religiosa de
destaque no mundo atual. Suas idéias de que Cristo teria sido um mendigo, sua
insistência em chamar a pobreza de sua senhora e de amá-la a tal ponto de, ao ver
alguém mais pobre que ele, sentir ciúmes, fazem de Francisco um cidadão em
descompasso com o nosso tempo, mas desesperadamente necessário.
Em dias de exaltação a líderes religiosos personalistas, surpreende a resposta
de Francisco quando indagado pelo bispo de Óstia acerca da possibilidade de que
seus frades fossem elevados à condição de bispos e prelados e que fossem mais
respeitados por conta de seu ensinamento e exemplo. Francisco respondeu,
“senhor, meus frades são chamados menores para que não tenham a pretensão de
serem maiores”.
É célebre o amor de Francisco pelos animais, platéia de muitas de suas
pregações. Ele tirava os vermes do caminho, temeroso de que fossem esmagados
pelos transeuntes. Servia às abelhas com mel e vinho para que não morressem de
frio. A todos os animais chamava irmãos.
Uma existência assim tão radicalmente entregue ao sabor do amor à vida, às
pessoas e à natureza é como uma canção.
Original e única.
Inspiradora e bela.
Como as canções que, para mim, são Card, Cláudio, Pimenta, Talbot,
Walter, Bomilcar, Keaggy, Valéria, Green, Rubens, Inha e Vivi.
*****
“Fale de Amor”, que fiz sobre Francisco, é inspirada em uma frase a ele
atribuída: “Prega o evangelho. Se for preciso, use palavras.”
Trata-se de uma bela citação, muito franciscana em sua essência, mas que
não é literalmente de Francisco. O pensamento é seu. A frase, no entanto, não se
encontra em nenhum de seus escritos ou biografias a seu respeito.
TERESA
TUDO PASSA
Nada te turbe
Pois tudo passa
A paciência
Tudo alcança
Nada te espante
Quem tem a Deus,
Quem tem a Deus,
Nada lhe falta
Nada lhe falta
Só Deus é o bastante
Minhas primeiras reminiscências relacionadas à espiritualidade transportamme a uma sala pequena, cheia de meninos e meninas entediados.
Filho de pais católicos não-praticantes, fui batizado ainda em meu primeiro
ano de vida e depois só ia à igreja em ocasiões especiais.
Por volta dos dez anos, informaram-me que eu devia fazer a primeira
comunhão. Para isso, precisava assistir a algumas aulas sobre religião.
O “seu” Adão, responsável pelo curso intensivo a ser aplicado ao bando
irrequieto de pré-adolescentes que eu integrava, era um homem na casa dos 50, de
pele morena, cabelos grossos e grisalhos, com um dos olhos esbugalhado, o que
conferia à sua expressão facial certo aspecto enigmático, quase assustador.
De paletó e sapatos surrados, ele parecia um homem sofrido, maltratado
pela vida, atormentado, que encontrara no tempo e no esforço dedicados à
instrução religiosa algum alívio para seus tormentos e crises interiores.
Os livros-base eram pequenos, com pouco texto e algumas imagens que
davam asas à nossa imaginação ainda infantil. Cristo na cruz, a virgem Maria, o
diabo e o primeiro casal de humanos envergonhado diante da nudez um do outro,
depois de haverem pecado.
Pecado e a necessidade de confissão.
Aquilo me aterrorizou.
Soube que no dia que antecedia a missa da primeira comunhão, eu precisava
confessar, pela primeira vez, meus pecados ao padre. Quase não dormi na noite
anterior. Tamanha foi minha aversão à idéia de confessar-me que acabei
cometendo um pecado quase imperdoável: faltei à confissão e no domingo pela
manhã apareci cínica e descaradamente à missa da comunhão primeira, sob os
auspícios de um Deus gracioso, sobre quem custei anos para ouvir a respeito e que,
vira e mexe me pergunto se realmente conheço.
Escrevo essas lembranças não para fazer qualquer crítica à igreja como
instituição. Ela já as tem recebido ao longo de sua história, ora merecida, ora
injustamente.
Minha trajetória no meio protestante também não dá margem a avaliações
diferentes em relação ao mundo religioso.
O que me levou a narrar essas primeiras experiências com a religião foi o
contato com a vida e a obra de Teresa.
Teresa, a exemplo de João da Cruz, coloca Deus, que estava lá em cima, no
centro do coração humano. Talvez nunca um santo ou santa tenha se mostrado tão
"gente" como Teresa d'Ávila, ou Teresa de Jesus, nome que assumiu
posteriormente.
Certa vez lhe perguntaram: “Em que situação encontro Deus? Onde o
encontro?”. Teresa respondeu: “cuando gallinas, gallinas; cuando ayuno, ayuno”.
Quando comermos galinhas, que as comamos com prazer. Ao jejuarmos, jejuemos
com seriedade. Ou seja, tudo o que fizermos, façamos radicalmente, por inteiro.
Agir assim, segundo Teresa, é estar em Deus.
Nascida no dia 28 de março de 1515, Teresa foi educada junto com os
irmãos dentro do exemplo e dos princípios cristãos. Aos sete anos, tentou fugir de
casa e peregrinar ao Oriente para ser martirizada pelos mouros, no que foi
impedida. A leitura da vida dos santos mártires teve sobre ela uma força tão
magnética e inexplicável, que se não fossem os parentes terem-na encontrado por
acaso, teria fugido, levando consigo o irmão Roderico.
*****
Este meu livro-CD tem oito personagens e apenas uma do sexo feminino.
Trata-se de uma injustiça. As mulheres em nada deixam a desejar em se tratando de
intelectualidade, muito menos de sensibilidade e espiritualidade.
Ao ler sobre Teresa, outra personagem bateu insistentemente à porta de
minhas lembranças: Aimee Semple McPherson.
Nascida no Canadá no fim do século XIX (1890) e falecida em 1944, Aimee
tornou-se uma grande líder religiosa e é mundialmente conhecida por ter sido a
primeira mulher na história a pregar um sermão no rádio, em 1921. Acompanhada
por sua mãe (!), foi a primeira mulher a atravessar os Estados Unidos guiando seu
próprio veículo.
Na denominação protestante que fundou, Aimee também ficou famosa por
introduzir o jazz nos cultos dominicais. O famoso ator Anthony Quinn – estrela de
clássicos como Zorba o Grego, tocava saxofone na orquestra do Angelus Temple
(erigido por Aimee) quando adolescente, além de trabalhar como intérprete,
traduzindo os sermões de Aimee para a comunidade mexicana.
*****
Consta que aos dezesseis anos a atração de Teresa pelas vaidades humanas
teria se tornado muito acentuada. O pai então a enviou para o colégio das
agostinianas, em Ávila. Uma doença grave a faz regressar. Nesse período, pela
primeira vez, Teresa passou por experiências espirituais místicas.
Atormentada, aos vinte anos decidiu tornar-se religiosa, no que foi impedida
pelo pai. Como na infância, resolveu fugir, desta vez com sucesso, indo para o
Convento Carmelita da Encarnação, em Ávila. Um ano depois, contraiu outra
doença grave - quase fatal - e novamente teve visões e conversas com Deus. Teresa,
então, concluiu que devia converter-se de verdade e empregou todas as forças do
coração em sua definitiva vivência da religião, tomando para si o nome de Teresa
de Jesus.
Iniciou então o seu grande trabalho de reformista. Pequena e sempre
adoentada, ninguém entendia como conseguia subir e descer montanhas, deslocarse pelos caminhos mais ermos e inacessíveis, de convento em convento, por toda a
Espanha. Em 1560, teve a inspiração de um novo Carmelo, sob as regras originais.
Dois anos depois, fundou o primeiro Convento das Carmelitas Descalças da
Regra Primitiva de São José em Ávila, onde foi morar. Em 1576, no entanto,
enfrentou dificuldades muito sérias dentro da Ordem. Em razão disso, recolheu-se
em um dos conventos e acreditou que sua obra não teria continuidade. Obteve, no
entanto, o apoio do rei Felipe II e conseguiu dar seqüência ao seu trabalho.
A pedido de seus superiores registrou toda a sua vida atribulada em livros
como O caminho da perfeição, As moradas e A autobiografia entre outros.
Morreu no dia 4 de outubro de 1582, aos sessenta e sete anos, no Convento
de Alba de Torres, Espanha.
Na ocasião, tinha reformado dezenas de conventos e fundado mais trinta e
dois, de carmelitas descalças, sendo dezessete femininos e quinze masculinos.
Em 1970 foi proclamada doutora da Igreja, a primeira mulher a obter tal
título.
Teresa de Ávila é considerada um dos maiores gênios que a humanidade já
produziu. Mesmo ateus e livres-pensadores enaltecem sua inteligência viva e
arguta, a força persuasiva de seus argumentos, seu estilo vivo e atraente e seu
profundo bom senso.
*****
O texto “Nada Te Turbe...”, de Teresa, me lembra o estilo de linguagem do
Salmo 42, “Por que estás abatida ó minh´alma?”, o da conversa do salmista consigo
mesmo, indagando à sua própria alma a razão de seu abatimento. Quando eu o li,
tive a mesma sensação. É como se ela dissesse a si mesma: alma minha, tudo
passa... a paciência tudo alcança... nada te espante.
E, a exemplo do salmo, que diz “espera em Deus pois ainda o louvarei”,
Teresa conclui dizendo, “quem tem a Deus nada lhe falta”. O referido texto é tema
da canção “Tudo Passa”.
*****
Das lições que aprendi com Teresa, talvez a que mais me toque seja a de sua
intensa humanidade. Quando adolescente, jogou xadrez e leu romances de
cavalaria. Encarada com reservas pela Inquisição, que leu suas obras e a
considerava "desobediente contumaz", Teresa jamais se considerou santa. Ao falar
de suas experiências místicas, sempre observava: "Como se há de entender isto, não
o sei; justamente este não-entender é que me causa grande alegria".
Teresa traz do céu o Deus da Idade Média e no auge da Renascença o
instala no coração humano, rompendo com a espiritualidade vertical e penitencial
de seu tempo. Sua espiritualidade exala amor, liberdade e paixão:
Esta divina prisão / de amor na qual eu vivo / faz de Deus meu cativo / e
livre meu coração; / e causa em mim tal paixão / ver a Deus meu prisioneiro / que
morro por não morrer.
*****
De Aimee, fica também a lição da humanidade. Ao fim de uma vida cheia
de êxtases espirituais e dissabores terrenos, Aimee deixa como legado a fundação
de uma comunidade cristã com comunidades-filhas espalhadas por todo o mundo.
Foi numa delas que entrei, convidado pela Valéria, naquela tarde ensolarada
de domingo.
JOÃO DA CRUZ
ALÉM DO JARDIM
Onde você se escondeu
Não sei mais onde buscar
Já lhe procurei no céu,
Nas profundezas do mar
Onde você se ocultou
Bem longe do meu olhar
A alegria me deixou,
Solidão me faz chorar... chorei
Nos vãos da desilusão
Nos corredores da dor
Nas notas vãs do cifrão
Nos muitos tipos de amor
Talvez a luz seja ver
Bem mais além do jardim
Só posso encontrar você
Se olhar bem dentro de mim
Minhas primeiras memórias musicais se confundem com as minhas
primeiras percepções da existência. Eu me vejo no quarto - que transformava em
sala de TV - da casa ampla e arejada de minha infância nos arredores de Osasco,
cantando a plenos pulmões os primeiros sucessos de Roberto Carlos, empunhando
um paliteiro de plástico vazio e sem tampa que, aliado ao cabo da enceradeira,
formava aquilo que eu supunha ser um microfone, no estilo usado pelo grande
ídolo da época.
Anos depois, uma memória musical ainda mais vívida: as várias classes de
alunos no Paulo Setúbal perfiladas, mão estendida junto ao peito, entoavam o Hino
Nacional Brasileiro.
Mas eu me emocionava mesmo era com o Hino à Bandeira, cantado apenas
em ocasiões especiais:
Salve lindo pendão da esperança
Salve símbolo augusto da paz
Tua nobre presença à lembrança
Da grandeza da pátria nos traz...
Recebe o afeto que se encerra
Em nosso peito juvenil
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil!
Algumas das palavras do hino me eram desconhecidas, mas a beleza da
melodia e a arquitetura do poema, com sua métrica perfeita e suas rimas ricas e
exatas, não exigiam compreensão, apenas disposição para viajar nele e saboreá-lo.
Seu autor foi Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), natural
do Rio de Janeiro.
Ainda muito jovem, aos 15 anos, Bilac iniciou o curso de medicina, que não
concluiu. Foi ser advogado. Também desistiu. Como jornalista dedicado escreveu,
por muitos anos, crônicas e artigos para vários jornais. Dedicou-se também, como
patriota que foi, a causas cívicas, à educação e a produzir poemas infantis e livros
didáticos.
Seu funeral foi acompanhado por uma multidão de admiradores. Olavo
Bilac havia se tornado o mais popular poeta parnasiano do Brasil. Recebeu o título
de príncipe dos poetas brasileiros.
Só por conta do título, que não foi privilégio apenas seu, tornei-me fã de
Bilac.
Sou um apaixonado por poesia, acho que já deu pra notar.
Quando primeiro comecei a rabiscar minhas canções, no entanto, percebi o
quanto estava longe de ser poeta.
O tempo, por sua vez, como um autêntico cupido, encarregou-se de
aproximar-me de minha paixão.
Minhas primeiras melodias tinham como letras adaptações de temas e de
textos bíblicos. Mais adiante, alguns parceiros mais experientes e competentes
emprestaram seus talentos para juntos escrevermos melodia e letra.
E foi assim, até que pelos idos dos anos de 1990, trabalhando em uma
instituição bancária, descobri uma biblioteca repleta de livros de poesia dos grandes
nomes de nossa literatura, que podiam ir e vir, pelas agências, pelo malote. Pronto:
semana sim, semana não, eu tinha um novo livro nas minhas mãos e podia
mergulhar nas águas profundas da imaginação e das novas descobertas.
Depois
de
alguns
meses
de
leitura,
comecei
a
escrever
poesia
compulsivamente. Nos guardanapos dos restaurantes, no trem do metrô, no ponto
de ônibus.
Desde então, atrevo-me não a chamar-me de poeta, mas a dizer que minhas
canções têm poesia.
E, como para todo aprendiz de poeta que se preze, João da Cruz (15421591), agraciado com o título de Patrono dos Poetas Espanhóis, é nome obrigatório
em minha prateleira. De novo: eu dedicaria minha admiração e respeito perenes a
João, só pelo título que lhe foi concedido.
Ele, no entanto, foi muito mais que um célebre poeta.
Sua vida dedicada à fé e seus escritos repletos de poesia da mais alta
qualidade e de um conteúdo belo e perturbador têm influenciado milhares de
pessoas em todo o mundo. Na Índia e no Oriente ele é conhecido como “iogue por
excelência”. Entre os jovens rebeldes e a geração dos angustiados existenciais, ele é
visto como um caminho de superação do relativo. Os monges o procuram como o
mestre que, com competência, aponta o caminho para o mergulho no eterno.
Líderes de várias religiões encontram nele uma referência, uma sabedoria que
explica os muitos fenômenos do espírito humano, que se aventura em busca da
transcendência.
Experimentei recentemente um exemplo claro da influência de João da Cruz
sobre a cultura espanhola. Convidado por minha mulher, fomos almoçar com o
Prof. Horácio Capel, geógrafo espanhol em visita a São Paulo.
Natural de Málaga, professor na universidade de Barcelona, orientador de
mais de 80 teses de doutorado e licenciatura, doutor honoris causa por duas
universidades e autor de mais de 300 publicações, o Prof. Capel mostrou-se uma
pessoa de rara doçura e sensibilidade.
No meio de nossa conversa, mencionei minha paixão pela obra de João da
Cruz. Para minha surpresa, o renomado professor citou de cor um de seus versos
mais conhecidos,
¿Adónde te escondiste,
Amado, y me dejaste con gemido?
Como el ciervo huiste,
habiéndome herido;
salí tras ti clamando, y eras ido.
No exemplo de vida de João, observa-se a síntese ideal entre contemplação e
atividade, vida interior e vida exterior. João é um místico e um poeta que fala de
teologia.
João, a exemplo de Teresa, destaca em sua obra o interior da alma como
sendo o lugar de encontro entre aquele que busca e Aquele que se faz conhecer. Em
oposição ao êxtase, em João valoriza-se o ênstase, o entrar dentro de si, despojar-se
de si cada vez mais e, nesse despojamento, conseguir-se a total liberdade do corpo e
a completa nudez do espírito.
É como a imagem da janela e do sol. Deus é como o sol, que se dá a todos
indistintamente. Cada um de nós, por sua vez, é como uma janela. Alguns possuem
uma cortina muito grossa que não permite que o sol entre. Uns têm a janela suja,
outros a janela empoeirada. Outros ainda têm na janela uns vãos que permitem ao
sol entrar só aos pedaços. Limpar a janela não muda a sua natureza. Na janela que
está limpa, no entanto, o sol entra com plena liberdade, de modo que ao olhar em
sua direção só vemos a luz do sol. A janela já não importa mais.
João da Cruz pertence àquele grupo de homens que, ultrapassando as
fronteiras do tempo e da religião, tornaram-se patrimônio da humanidade. E
permanecem simples poetas, cujas poesias são citadas de cor, por anônimos, em
mesas de restaurante. Maravilhosos poetas. Como Bilac.
THOMAS MERTON
A ESCURIDÃO ME BASTA
É quase meia-noite, estou te esperando
Na escuridão, no grande silêncio
Lamento todos os meus pecados
Abarrotado por meus pensamentos
Quero ser nada para a minha luz
Lançar-me todo em tua direção
Em fé provar tua glória e tua paz
Tua claridade é minha escuridão
E a escuridão me basta
A escuridão me basta
Se eu te imaginar estarei errado
Se te compreender estarei enganado
Consciente é certo que te conheço
Isso é muito pouco, e eu serei louco
Gerson e eu não nos conhecemos há muito.
Certas amizades, no entanto, não carecem da chancela do tempo. Como
poeta e músico que é, Gerson talvez entenda como poucos as nuances da minha
alma. Por isso, nossos diálogos, independentemente do teor, são sempre
prazerosos, profundos e produtivos.
Quando ouvi sua canção “Confissões” pela primeira vez, pensei comigo
mesmo: esta é uma daquelas composições que Tunai descreveu tão bem em seu
clássico gravado por Milton Nascimento, “Certas Canções”:
Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece:
Como não fui eu que fiz?
“Confissões” eu considero parte de minha trilha sonora pessoal, uma
descrição sensível de mim mesmo e de meus anseios mais profundos. Ela diz assim:
Há uma fome no meu coração
Como se fosse uma África
Que precisando de muito, mas muito pão
Só encontrasse migalhas no chão
Como se fosse um motor
Sem combustível
Uma batalha interior,
Armagedom invisível
Há um navio ancorado no caís
Da minha alma exilada
Que tendo leme, marujos,
Tripulação
Ergue as velas e parte –
Eu não!
Foi Gerson quem me apresentou Thomas Merton.
Na companhia de outros amigos, Gerson e eu conversávamos num bar, a
meio caminho da casa de todos, onde marcamos de nos encontrar para afogar as
mágoas, partilhar dos sonhos e inquietações e para encontrar tempo, no corre-corre
das selvas de pedra em que vivemos, de estar juntos.
A certa altura da conversa, quando mais à vontade para expressar os
sentimentos mais contidos, eu derramei o coração em forma de dúvidas e
questionamentos sobre o significado de minha fé e a veracidade de valores por
tanto tempo acalentados e o Gerson, com a doçura que lhe é peculiar, perguntoume, “já ouviu falar do Merton?”
Em poucas palavras, ele introduziu-me ao mundo de Merton e a novos
níveis de consolo, alento, esperança e mistério.
*****
Thomas Merton é o mais “jovem” personagem deste livro. Nascido em 1915
na cidade de Prades, na França, de mãe norte-americana e pai neo-zelandês, foi
educado na Europa e ainda jovem mudou-se para os Estados Unidos.
Em 1935 Merton matriculou-se na Universidade de Colúmbia, onde recebeu
seu bacharelado e seu mestrado em inglês. Ali, foi profundamente influenciado pelo
poeta e estudioso Mark Van Doren, que se tornou seu mentor.
Enquanto ainda era estudante, Merton iniciou uma promissora carreira de
escritor, produzindo romances, ensaios, resenhas e poesias, por uma década. Pouco
do que ele escreveu naqueles anos foi publicado. Depois de seu mestrado, ele
aceitou um emprego de professor no Saint Bonaventure College, no interior do
Estado de Nova York, e iniciou seu doutorado.
Apesar de ter sido um anglicano nominal na infância, a religião não havia
sido importante na juventude de Merton. Ele passou por um processo de conversão
gradual que o levou ao batismo na Igreja Católica Romana e ao desejo de tornar-se
um sacerdote.
Durante a Semana Santa de 1941, em visita à Abadia de Nossa Senhora do
Gethsemani, um mosteiro trapista nas cercanias da cidade de Louisville, Merton
sentiu-se tocado pela piedade e disciplina do lugar.
Os monges dormiam em um dormitório sem aquecimento, se dedicavam ao
duro trabalho agrícola e mantinham uma rígida dieta vegetariana. Suas vidas
pareciam ser completamente dedicadas à oração e à penitência.
Merton ficara tão impressionado que, após retornar a Bonaventure, fez um
requerimento para ser aceito pelo mosteiro, o que aconteceu no outono daquele
mesmo ano. Ele doou seus poucos pertences à caridade, queimou alguns de seus
manuscritos e deixou outros com os amigos. Foi para Gethsemani com a intenção
de abandonar sua velha vida por completo e acreditava que sua carreira como
escritor havia acabado, porque a partir de então
estava dedicando-se
completamente à oração.
Logo após sua entrada no mosteiro, no entanto, ele recebeu como
incumbência várias atividades que envolviam a escrita. A primeira delas foi
preparar sua autobiografia, uma tarefa que inicialmente ele não quis realizar. Por
pura obediência, ele por fim aceitou o desafio.
Quando o livro foi publicado, no outono de 1948, com o título de The Seven
Storey Mountain (A Montanha dos Sete Patamares), tornou-se um best-seller, com
600.000 cópias vendidas nos primeiros doze meses. Desde então, ele tem sido
reeditado ininterruptamente.
O sucesso fenomenal de sua autobiografia quase agostiniana o transformou
em uma celebridade e Merton passou a ser reconhecido pelo público como uma
autoridade popular em espiritualidade.
Ao contrário do que se poderia esperar, seus vinte e sete anos passados em
Gethsemani produziram um religioso voltado para as questões políticas, por muitos
chamado de “a consciência dos movimentos pela paz nos anos (19)60”. Merton foi
também defensor veemente dos movimentos em prol dos direitos civis e da nãoviolência, que ele intitulava “os grandes exemplos da fé cristã em ação na história
social dos Estados Unidos”.
Nos últimos anos de sua vida, Merton interessou-se pelas religiões asiáticas,
particularmente pelo zen-budismo e pela promoção do diálogo entre oriente e
ocidente. Foi durante uma viagem para uma conferência sobre o diálogo monástico
entre o leste e o oeste que Merton morreu, no dia 10 de dezembro de 1968, vítima
de um choque elétrico.
É de Merton o texto que considero o mais belo dentre todos os selecionados
para este livro. “Tu Não És Como Te Tenho Imaginado” é base para a canção “A
Escuridão Me Basta”.
*****
Penso que tinha três ou quatro anos, não sei bem ao certo.
O que me lembro com clareza é de uma rua, caminho de casa.
Éramos apenas eu e meu pai andando juntos.
Às vezes ele me colocava sobres seus ombros largos e corria a passos
firmes, incitando o vento a roçar mais forte minha pele.
A sensação que eu tinha é que era tarde da noite.
A rua estava deserta.
Como companheiros, tínhamos apenas os postes e suas luzes amenas
apontando o rumo do lar.
Já de volta ao chão, vejo no rosto moreno de meu pai um olhar
maroto, de quem quer brincar, aprontar uma travessura.
Sem aviso, ele passa a correr como um raio e em segundos parece
sumir por entre as brumas da noite.
Senti naqueles instantes pela primeira vez meu coração pulsar mais
forte, o sangue circular veloz por minhas veias e medo, muito medo.
Medo de estar só, medo da escuridão, medo de não chegar em casa.
E gritei. Gritei com todas as minhas forças, as lágrimas correndo
grossas sobre a minha face.
Foram alguns poucos segundos. Para mim, o primeiro contato com o
desconhecido.
Logo pude ver meu pai de volta, estampando em seu rosto um sorriso
aberto, quase que uma gargalhada.
E senti seu abraço forte, seguro, protetor.
Já não me importava mais a distância, o tempo, a escuridão, a rua
deserta.
Sua presença era tudo.
*****
O Gérson entendeu o meu medo, meu medo de secar, mesmo se a vida, de
repente, resolvesse desabrochar. E me deu um precioso mimo – apresentando-me
Merton.
EPÍLOGO
A busca a que me referi tantas vezes neste livro, que percorre as ruas e
avenidas de obras e de pessoas tão especiais, ainda não cessou. Muitos são os meus
momentos de noite escura, de silêncio incômodo, de dor aguda e persistente.
Há, no entanto, entre as muitas incertezas, dúvidas e inquietações, o
sentimento de uma Presença ao meu lado.
Lembro-me da saga dos judeus. Outrora escravos no Egito, são conduzidos
por Moisés rumo à Terra Prometida. De dia, no meio do deserto, estão
acompanhados de uma coluna de nuvem que os cobre e refresca o ar, protegendoos do calor claudicante. À noite, são protegidos por uma coluna de fogo que
ilumina o caminho e aquece o ar, livrando-os do frio impiedoso.
Em ambas as situações, eles não estão sós. Sem entender por completo a
dimensão de sua libertação, o povo segue seu destino, amparado por esta Presença.
É assim que eu vejo cada um dos personagens sobre os quais discorro neste
livro. Como pessoas marcadas pelo mergulho no desconhecido e pela companhia
onipresente da Presença que elas exaltam e a quem amam.
E é como me vejo, sob o impacto da visão de meus pés que apenas tocam as
ondas arrebentadas de um mar imenso e inexplorado, também acompanhado por
essa Presença doce e acalentadora, que insiste em sussurrar-me ao ouvido palavras
de amor, que me alimentam e que não me deixam desistir. Que está ao meu lado,
como se fôssemos um.
“Acima de todo saber, de todo crer, toda razão,
Além de toda compreensão, de todo esforço sério,
De toda investigação
Eis que habita em nós...
Mistério...”