O Estado glutão

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O Estado glutão
O Estado glutão
JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN
No começo do século passado, o economista austríaco Joseph Schumpeter argüiu que a
intermediação financeira fornecida pelo sistema bancário e pelo mercado de capitais tinha
um papel relevante na produção da inovação tecnológica e no crescimento econômico. A
tese de Schumpeter não teve uma aceitação unânime, e outros economistas, como Joan
Robinson, uma das herdeiras intelectuais de Keynes, argumentaram que o tamanho do
sistema financeiro era uma conseqüência do desenvolvimento e que a intermediação não
tinha um papel importante para o crescimento.
Como em outras controvérsias em economia, o progresso recente na metodologia
empírica das ciências sociais, assim como a construção de melhores bases de dados,
ajudou a esclarecer o debate. A literatura econômica, a partir da década de 90, deu razão
a Schumpeter.
Uma das maneiras pelas quais se mede o tamanho do sistema financeiro de um país é a
quantidade de crédito disponível ao setor privado como proporção do PIB. Há muito
pouco financiamento concedido a pessoas e empresas no Brasil. Nos últimos dez anos, o
crédito ao setor privado ficou, em média, em 35% do PIB. Em comparação, essa
proporção foi de 85% na Coréia e de 62% no Chile.
É verdade que a nossa taxa de poupança é pequena e, como conseqüência, o crédito
doméstico é menor do que em outros países. No entanto o crédito disponível para o setor
privado no Brasil, mesmo como proporção da poupança doméstica, é pequeno. Enquanto
no Chile o crédito doméstico disponível para pessoas e empresas é igual a três vezes a
taxa anual de poupança, no Brasil é apenas duas vezes.
Entre as causas da falta de crédito para o setor privado no Brasil, está um ambiente legal
que tradicionalmente puniu o credor. O debate sobre as leis e decisões judiciárias no
Brasil tem sido focalizado num aparente dilema entre justiça social ou respeito aos
contratos. Esse debate ignora as conseqüências acidentais de medidas que aparentemente
visam à justiça social.
Nos Estados Unidos, o comprador de um imóvel consegue hoje financiar 80% do preço
do imóvel por 30 anos a uma taxa de juros fixa de 6,3% ao ano, o que excede por menos
de 2% o que o governo americano paga em seus títulos de dez anos. Em contrapartida, o
processo de despejo de um comprador inadimplente custa pouco e é extremamente
rápido.
No Brasil, a insistência em "proteger" o comprador resultou na quase ausência de um
mercado de hipoteca. Aos mais abastados, resta a possibilidade de poupar para comprar
um imóvel. Aos mais pobres, alugar para sempre ou a favelização. De modo geral, o
nosso ambiente legal pune a intermediação financeira e deprime o crédito para pessoas e
empresas.
Mas talvez a razão mais importante da escassez de crédito para o setor privado é o
incrível apetite do Estado. Os brasileiros possuem em suas mãos uma grande massa de
ativos emitidos pelo setor público, notadamente a dívida mobiliária do governo federal, o
resultado de muitos anos de déficits e dos esqueletos que apareceram por causa de
compromissos assumidos pelos governos e que não foram reconhecidos quando
ocorreram.
Como o déficit nominal continua existindo, a demanda por crédito do setor público não
está caindo. A receita para aumentar o acesso ao crédito para empresas e pessoas é cortar
a taxa Selic, mas também diminuir as despesas correntes dos nossos governos. Com uma
taxa de juros real em torno de 13% ao ano e despesas correntes que excedem 30% do
PIB, isso não deveria ser difícil. Só assim haverá o financiamento necessário para que o
setor privado possa gerar o crescimento sustentado.