1909: A Belle Époque. Uma tarde de primavera em Paris

Transcrição

1909: A Belle Époque. Uma tarde de primavera em Paris
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 110/5, jan./jun. 2011
Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto | e-mail: [email protected]
ESTRANHO GIRASSOL AMARELO
1909: A Belle Époque. Uma tarde de primavera em Paris. Uma
pequena mesa posta para o chá. Nela se amontoam uma pilha de
xícaras, todas vazias; e se encontram sentados Rennée e Pierre,
senhores, aos 88 anos, vestidos de acordo com a alta costura da
época, portando-se com glamour decadente.
xícaras.
O barulho de uma sineta. O cuco canta. Ouve-se o tilintar de
Rennée: O vi passar!
Pierre: Quem?
Rennée: O bonde.
Pierre: Sim! Os expressos estão hoje a todo vapor!
Rennée: Não só hoje.
Pierre: Sim! Os expressos estão sempre a todo vapor.
Reneée: Sim! A todo vapor.
Pierre:(Após longa pausa) Confesso que hoje me surpreendi!
Rennée: Não menos que eu.
Pierre: Era apenas a sombra.
Rennée: Não me parecia...
Pierre: Sempre lhe pareceu! Por entre as frestas...
Rennée: Ao sol!
Pierre: Ah! ...Sempre soubemos que as pétalas não resistiriam à
forte intensidade!
Rennée: Sim! Assim aconselhei colocar o vaso no sereno... o
orvalho!
Pierre: Foi a senhora quem bateu à porta?
110
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 110/5, jan./jun. 2011
Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto | e-mail: [email protected]
Rennée: Por mais difícil que pareça, e ingênuo...
Pierre: ...desceu cada degrau de mármore de sua casa, girou os
gonzos...
Rennée: ...sentia o verniz de meus sapatos sussurrar para que
não me atrevesse...
Pierre: Mas ainda sim...
Rennée: Verdade! Adentrei esse velho prédio da frente, que
tanto contrasta com a púrpura cor do meu! Descobri que os tijolos
aparentes eram apenas vistos por mim!
Pierre: Loucura!
Rennée: Loucuras de mim mesma!
Pierre: Ou de... Esqueça. Lembrei-me de um jovem, mas impossível
de conhecermos! Até lá já teremos...
Rennée: ...pedalado tanto que os pneumáticos estarão gastos a
ponto de... A todo vapor!
Pirre: Mas, e então?
Rennée:
segundos...
Eu
sempre
soube!
Bati
à
porta.
Esperei
alguns
Pierre: Contados a dedo! Suponho!
Rennée: O tempo não passou!
Pierre: Tenho certeza que naqueles instantes não!
abriu!
Rennée: Foram trinta e poucos segundos, e uma nova fresta se
Pierre: Eu sempre mencionei! Vá! Esperam apenas um sinal!
Rennée: Pierre! Ele nem ao menos...
Pierre: Os olhos de lince, seu estranho jeito familiar de coisas
indizíveis, surgindo por entre os tantos vitrais aos quais conseguia
enxergar!
Rennée: Eram dúbias as perspectivas sob a luz dos olhos meus!
Pierre: Mas, a senhora disse?
111
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 110/5, jan./jun. 2011
Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto | e-mail: [email protected]
Rennée: Como alguém que... A todo vapor...
Pierre: Sempre disse que por entre a tinta, os tijolos estavam
a revelar...
Rennée: Sempre disse!
Pierre:(após longa pausa) Estranho e familiar...
Rennée: Sim! Na imensidão de mim mesma. A sombra de mim
mesma. Estranho e familiar!
Pierre: Estranho Girassol amarelo!
Rennée:(como quem confessao maior triunfo de sua vida) Ele
sorriu! É tudo que não posso dizer!
xícaras.
O cuco canta. O barulho de uma sineta. Ouve-se o tilintar de
Rennée: Expresso!
Pierre: E com vapor!
Rennée: Não só hoje.
Pierre: Sim! Não só!
Rennée: si...bemol.
Pierre: São apenas partituras.
Rennée: E como não saber.
Pierre: Os passos seguem os ponteiros.
Rennée: É o compasso!
Pierre: O ritmo!
Rennée: A métrica.
Pierre: Dentre todas as claves...
Rennée: Preferimos a de sol à...
Pierre: Sim! São os passos. Não escuta?
Rennée: Às vezes parece-me que o despertar das flores exala
notas musicais. Será possível?
112
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 110/5, jan./jun. 2011
Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto | e-mail: [email protected]
Pierre: E o que não é possível? O invisível tornou-se real...são
os tempos...
Rennée: Os expressos a todo vapor!
Pierre: Por um momento parece-me que estamos atangenciar.
Rennée: Estamos sempre apenas em um ponto de intersecção.
(pausa longa) Elas estão chegando!
Pierre:(como quem explica à parte ao público) São senhoras,
todas muito respeitosas. Trajam indumentárias de nosso tempo. O
tempo. O nosso. Será o mesmo?
Rennée: Andei, em meus devaneios, sentindo o pulsar.
vêm.
Pierre: Os ponteiros não podem ser. Talvez os passos. Elas já
Rennée: Pierre! Não gosto de seu tom. Esse tom pastel.
Pierre: Elas já vem!
Rennée: Os pulsos, Pierre!
Pierre: São apenas as notas musicais em desordenada harmonia.
Rennée:(furiosa) Não! (longa pausa) (mais serena) São os sons
desordenados desse violino! São as repetições dessa caixinha de música!
São os ponteiros inexistentes desse velho cuco! São os sons metáicos
das xícaras... O líquido a derramar! O barulho do vapor...Expressos!
Pierre: O bonde passou!
Rennée:(aliviada) Me perdi. Mil vezes em mim mesma.
Pierre:(calmamente) A senhora estava aqui, a olhar pela janela,
como quem observa um carrossel. Um carrossel encantado a girar, tal
como os pneumáticos de minha bicicleta. Trazia comigo o velho vaso
com o girassol amarelo. Aquele a quem a senhora mesma fez questão
de ir buscar no vizinho que mora em frente a sua janela. A janela: a
única fresta aberta, porque a porta está nesse momento emperrada. O
cuco cantou. Tomamos chá. E nessa inércia os expressos estão a todo
vapor. São incômodos porque as engrenagens podem até emperrar, mas
113
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 110/5, jan./jun. 2011
Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto | e-mail: [email protected]
os ponteiros não cessam. Estão a pulsar. O lado direito a pulsar
contamina seu oposto. O tempo fica marcado. O tempo passou.
Levante-se, ouça a regência.São pássaros de papel a cantar (loga
respiração). Ar.
sineta.
Ouve-se o tilintar de xícaras. O cuco canta. O barulho de uma
Rennée: Cuidado! O vapor!
Pierre: (H)Ora! É apenas o ar ressaltando a vermelhidão de
nossas faces!
Rennée: Dilatando os poros! Tudo isso me assusta!
Pierre: O ar?
Renné: Respirar.
Pierre: Ora! São apenas contrações e expansões!
Rennée: Expandir significa ir até a lua.
Pierre: Um dia seremos capazes...
Rennée: Se nem o imperador...
Pierre: ...de fazermos chá menos amargos! (pausa) O açucar é
cristalino?
Rennée: Como uma dúbia perspectiva que fere as leis da
proporção.
Pierre:
cronológicos.
Designam-se
(longa
pausa)
ísmos,
O
simultaneamente o chá inexistente)
e
último
ultrapassam
gole.
Rennée: Nem ao menos servem xícaras com chá!
os
(ambas
limites
engolem
Pierre:(após longa pausa) Rouge, como os seus (referindo-se aos
sapatos). Cintilantes...
114
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 110/5, jan./jun. 2011
Autor: Lucas de Carvalho Larcher Pinto | e-mail: [email protected]
Rennée: Que me importam? Se apenas servem para ficarmos
inertes. São tantos. Tantas perspectivas, escalas, formas, contornos,
cores...
Pierre: Como um desenho na curvatura do céu!
Rennée:(pausa) Eu não me atreveria!
Pierre: Deveria.
Rennée: Lembra de quando...
Pierre: Atravessou a rua e bateu à porta para buscar o velho
girassol amarelo...
Rennée: Velho?
Pierre: O cuco cantou. As xícaras...
Rennée: Eu sei!
Pierre: Parece um velho modo absurdo...
Rennée: ...de eu me explicar a mim mesma.
Pierre: A mim mesma...(pausa repentina)
O cuco canta.
115