o processo criativo na tradução em o último voo do flamingo
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o processo criativo na tradução em o último voo do flamingo
PROFT em Revista ISBN 978-85-65097-00-0 O PROCESSO CRIATIVO NA TRADUÇÃO EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Vol. 2, Nº 1 Junho de 2012 Ana Paula de Macedo Licenciada em Letras – Português/Inglês Centro Universitário Nove de Julho RESUMO Este artigo visa analisar o processo criativo na tradução – do português de Moçambique para a língua inglesa - da obra literária moçambicana O último voo do flamingo, do autor Mia Couto, identificando as possíveis dificuldades na transposição das figuras de linguagem, em especial, neologismos, composição por aglutinação, além das expressões idiomáticas e dos dialetos moçambicanos. Dessa forma, este trabalho abordará os aspectos do ato tradutório, tais como a importância do tradutor na reconstrução de um texto hibrído e idiossincrático, não apenas em relação à cultura, política e contexto social do povo africano, mas, sobretudo, no que diz respeito à linguagem inventiva e excêntrica do texto de partida, exigindo do tradutor originalidade na coautoria do texto reescrito em outro idioma. Na obra em análise, veremos a habilidade do tradutor ao utilizar os mesmos recursos linguísticos usados pelo autor ao recriar o texto em uma língua não-românica Palavras-Chave: tradução, processo criativo, literatura moçambicana Ana Paula de Macedo Contato: [email protected] Proft em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo 1. INTRODUÇÃO A escolha do tema de nossa pesquisa se deu devido à excentricidade do texto, marcado por uma linguagem própria. O último voo do flamingo, do moçambicano Mia Couto, obra cuja tradução para o inglês analisamos aqui, apresenta dialetos, neologismos, jogos de palavras, cujas especificidades nos despertaram interesse em analisar o processo criativo e a originalidade na tradução. As peculiaridades do povo africano, em especial, de Moçambique, são descritas numa divertida e irônica narrativa. No enredo, é possível conhecer um pouco da história do país, pois o enredo fala da guerra civil que atingiu a população no período pós-colonial, fato que ocorreu entre os anos de 1992 a 1994. Além, é claro, dos costumes, das crenças, do misticismo e da prevaricação política que assola país. A obra gira em torno de misteriosas explosões de soldados das forças de paz da ONU. Um europeu é enviado para investigar as mortes, guiado por um tradutor local da imaginária Tizangara. O estrangeiro descobre uma terra marcada pelo sofrimento, mas sustentada pela crença e pela superstição. Durante a peregrinação do investigador em Tizangara, o leitor vai desvelando os segredos da obra, e, paralelamente, passeia pelas terras africanas num misto de realidade e fantasia. Diante da riqueza de informação e dos traços linguísticos marcantes, é interessante analisarmos o papel do tradutor como reinventor da obra. Mais do que traduzir a linguagem, o tradutor tem a difícil tarefa de traduzir o universo do povo moçambicano, a religiosidade que sustenta uma nação oprimida pela pobreza e marginalização, para um público com uma realidade tão distinta, o povo falante de língua inglesa, sem, com isso, perder a criatividade ao recriar o texto de partida. Neste trabalho, apresentaremos, primeiramente, uma contextualização da obra de Mia Couto, na qual a tradução para o inglês tomamos para análise aqui; em seguida, traremos brevemente a biografia do autor, Mia Couto, e do tradutor da obra, David Brookshaw. No segundo momento, abordaremos os recursos linguísticos utilizados pelo tradutor para traduzir os dialetos, expressões idiomáticas, nomes próprios e, por fim, os neologismos, característica principal do autor, em que veremos formação de palavra por derivação prefixal, sufixal e composição por aglutinação. 2. Contextualização da obra PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo A obra analisada, O último voo do flamingo, foi publicada em 2000, pela editora Companhia das Letras, no Brasil. Na ocasião, Moçambique comemorava os 25 anos de independência do país. Até 1975, Moçambique era província de Portugal, somente em 25.06.1975 o país torna-se independente. Porém, constantes guerras civis assolam a população que se vê sob a guarda da ONU, que envia soldados a fim de restabelecer a ordem. A soberania do povo moçambicano sempre a mercê de estrangeiros. É este cenário pós-colonial que serve como pano de fundo para o enredo que fala das transformações sociais, o racismo, a injustiça, o sentimento de inferioridade do cidadão moçambicano perante o estrangeiro, a crença e o misticismo que sustentam a nação com a esperança de dias melhores. O enredo se passa na imaginária cidade de Tizangara, local onde soldados da ONU misteriosamente explodem, restando somente a genitália e o capacete azul. Em meio a esses acontecimentos, um italiano, Massimo Risi, enviado pelas forças de paz chega a cidade para investigar as inexplicáveis explosões e acaba se envolvendo com as histórias enigmáticas do povo e as mazelas políticas de Moçambique. As investigações tornam-se cada vez mais contraditórias e fantasiosas à medida que interroga os estranhos moradores. Entre os cidadãos de Tizangara estão figuras fascinantes como, por exemplo, Estevão Jonas, o administrador corrupto; a prostituta Ana Deusqueira que representa todas as pessoas que não têm voz na sociedade e a sua marginalização; Temporina, a velha-moça, rosto de idosa e corpo juvenil, que rejuvenesce ao se sentir amada, entre outros personagens, que caracterizam não apenas o africano, mas todo o continente e sua desordem político-social. A obra confronta o bem e o mal, o real e o sobrenatural, a ciência e o misticismo. Repleta de simbolismo, o autor faz uma crítica desvelada ao europeu e ao “desgoverno” político, como diz o próprio escritor. 2.1. O autor Mia Couto nasceu em Beira, Moçambique, em 05 de julho de 1955, é biologo, ambientalista, jornalista, professor, contista, poeta e romancista, tem seus livros traduzidos e publicados em diversos idiomas: alemão, francês, espanhol, catalão, inglês e italiano. O autor recebeu vários prêmios dentre eles o prêmio União Latina de Literaturas Românicas em 2007, atribuído pela primeira vez a um escritor africano. O escritor é autêntico e criativo, desconstrói as palavras e recria a linguagem de modo que a crítica, o sarcasmo e a ironia se misturam ao realismo fantástico da narrativa. Nota-se que o caráter crítico da obra e o suspense que envolve a trama não comprometem a leveza da obra, PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo tampouco o bom humor com que os fatos são contados, ressaltando ainda mais a destreza e a sensibilidade do autor na composição de suas narrativas. 2.2. O tradutor David Brookshaw é escritor, tradutor e professor da Universidade de Bristol, em Londres, de Estudos luso-brasileiros, sua área de pesquisa abrange literatura portuguesa, africana e brasileira. O interesse de Brookshaw pelo idioma se deu após morar em Portugal, onde viveu durante três anos antes de ingressar na universidade. Nos anos 80, Mia publica seu primeiro livro, Vozes Anoitecidas, sendo esse o contato inicial de David com as obras do autor. Brookshaw conheceu Mia Couto em 1988, ocasião em que trabalhou com o autor em Moçambique, e desde então tem se dedicado à tradução dos livros do escritor. Tendo apresentado essas considerações acerca do enredo, autor e tradutor, passemos agora para análise linguística: expressões, dialetos e nomes próprios. 3. Considerações sobre o processo tradutório A tradução nada mais é que a concepção de um novo texto, em que, muitas vezes, notase uma perda ou prejuízo em relação ao “original”, pois a reprodução de sentido do texto-base fica comprometida não apenas pelos aspectos linguísticos, mas por diversos fatores; culturais, políticos e sociais. Por essa razão, o processo tradutório requer do profissional um conhecimento mais aprofundado sobre o texto de partida, já que não se trata de um processo mecânico, mas sim de algo muito mais complexo que exige conhecimento. Ou seja, traduzir não é apenas substituir palavras de uma língua por palavras de outra, pois essas não possuem significados isolados e estáveis, traduzir é considerar o contexto no qual a obra está inserida. O tradutor trabalha com a imprevisibilidade da língua, que pode apresentar uma palavra com vários sentidos ou compilar várias ideias em uma única palavra. Diante dos obstáculos linguísticos, o papel do tradutor torna-se decisivo para a compreensão do texto. Apesar disso, PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo percebe-se uma marginalização da profissão, que muitas vezes diminui a participação do tradutor na composição da obra como se esse fosse um copiador ou imitador, quando a sua atuação dentro do processo tradutório é autônoma e independente. (…) qualquer texto, por pertencer à linguagem, pode ser lido sem a “aprovação” de seu autor, que pode apenas “visitar” seu texto, como um convidado, e não como um pai soberano e controlador dos destinos de sua criação. O autor passa a ser, portanto, mais um elemento que utilizamos para construir uma interpretação coerente do texto. (…) O foco interpretativo é transferido do texto, como receptáculo da intenção “original” do autor, para o intérprete, o leitor, ou o tradutor. Isso não significa, absolutamente, que devemos ignorar ou desconsiderar o que sabemos a respeito de um autor e de seu universo quando lemos ou traduzimos um texto. Significa que, mesmo que tivermos como único objetivo o resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse autor e de suas intenções. (Rosemary Arrojo 2002, 40-41.) Dessa forma, se pensarmos no tradutor como um coautor, temos que considerar o lado criativo do profissional, sua capacidade criadora, sua identidade e expressiva participação no texto, tornando-o fluido e compreensível para o leitor. (…) a expectativa de que não seja apenas invisível e inconspícuo, mas de que possa também colocar-se na pele, no lugar e no tempo do autor que traduz, sem deixar de ser ele mesmo e sem violentar a sintaxe e a fluidez de sua língua, de seu tempo e de sua cultura. (Rosemary Arrojo 1993, 73.) A criatividade está presente em todo o processo tradutório, seja pela assertividade na escolha dos termos linguísticos, seja pela própria criação de jogos de palavras no outro idioma conforme mostraremos neste trabalho - o fato é que tais inferências nos mostram o quão minucioso é ato tradutório e o sujeito que está por trás dele. Veremos a seguir alguns exemplos de abordagem criativa da linguagem, bem como, a transposição do contexto cultural e político, do qual o tradutor, David Brookshaw, utiliza-se dentro do processo tradutório. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo 3.1. Expressões idiomáticas e dialetos na obra O último voo do Flamingo – considerações acerca de sua tradução para a língua inglesa A seguir veremos como se deu o processo tradutório das expressões, dialetos e jogos de palavras tão utilizados pelo autor. Neste primeiro momento, observaremos a tradução dos dialetos do português moçambicano com palavra/expressão equivalente no inglês. Tabela 1 - Equivalência Juntámos juras, sagrados xicuembos: que eu We made promisses, sanctified by spells: that lhe iria visitar no momento em que ela se I would visit her the moment she was taking estivesse despedindo de viver. (pág. 48) leave of life. (pág. 31) O italiano ainda estava zuezuado. (pág. 103) The italian was still in a daze. (pág. 81) Txarra! Estava pensar era uma chamada de serviço. E com taxa de urgência (pág. 28) What a pity! I thought I'd been called out on job. And with extras for express service É interessante observarmos que os dialetos destacados: xicuembos = feitiço, zuezuado = tontura e txarra! = caramba!; foram traduzidos conforme glossário disponível no original. Vale a pena ressaltar a escolha da expressão “what a pity!” para traduzir o termo “txarra!”, que pode ser intepretado como uma reação de surpresa, susto ou admiração. Embora seja perfeitamente compreensível para o leitor, escolhas como essa evidenciam o sujeito tradutor, seu universo, suas preferências, sua visão e modo interpretativo. Nos próximos exemplos, temos algumas situações em que o tradutor optou por manter a palavra de origem sem dar a ela um sentido na língua de chegada. Tabela 1.1 – Preservação da palavra de origem PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo Eu lhe fiz o likaho de cágado para lhe prote- I made a tortoise likaho to protect you (pág. ger (pág. 155) 125) Meu pai acorria e mandava: - kufa mbalame My father ran up and ordered: - Kufa (pág. 187) mbalame (pág. 148) E ele, conforme agora lembrava, foi ter nyan- And he now recalled going to the nyanga, ga, que ele chamava de “colega”, para dar whom he referred to as a colleague, in order destino às partes do zambiano. (pág. 123) to lay the zambian's private parts in their final resting place. (pág. 98) In an act of sudden decisiveness, Temporina Em súbita decisão, Temporina enrolou uma wrapped a capulana over her skirt... (pág. capulana sobre a saia... (pág. 144) 116) Sendo o tradutor um estudioso, profundo conhecedor da língua portuguesa e da cultura africana, profissional que já viveu em Moçambique e amigo do autor, seria leviano dizer que a não-tradução de alguns dialetos ocorreu por desconhecimento. Podemos afirmar que trata-se de uma escolha do tradutor por algumas razões. No caso dos termos “kufa mbalame” e “nyanga”, a obra original traz o significado do dialeto no glossário, especificado pelo próprio escritor. Quanto ao termo “likaho”, presente em várias partes do texto, o autor explica, após várias aparições da palavra no início do livro, o seu sentido no capítulo 13 (pág. 146): “Disse que havia feitiços chamados likaho”. O tradutor mantém a palavra sem fazer uso de nota de rodapé ou qualquer outra explicação para o leitor. Por fim, o termo “capulana”1 , também presente em quase toda a obra, não consta no glossário da obra, tampouco é explicado pelo autor, trata-se de uma peça do vestuário feminino tipicamente moçambicana na qual as mulheres utilizam como saia, tendo o tradutor vivido no país, a preservação da palavra pode ser entendida como uma opção, 1 Capulana: origem tsonga) é o nome que se dá, em Moçambique, a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas mulheres para cingir o corpo, fazendo as vezes de saia, podendo ainda cobrir o tronco e a cabeça. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Capulana , acessado em 19.03.2012 PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo para manter as características regionalistas da língua próprias desse povo. Nesse sentido, vejamos as considerações feitas pelo próprio tradutor da obra: I never did a translation without consulting the author. My queries usually centered on what he meant exactly by a particular sentence that I found unclear or ambiguous, and occasionally the meanings of local terms with which I was unfamiliar (although increasingly, use of the internet has made it much easier to establish the names of local flora and fauna). (David Brookshaw, 2008, 92). Como o próprio tradutor relata no comentário acima, suas traduções são feitas por meio da interação com o autor, principalmente, no que diz respeito a nomes nos quais ele não está familiarizado, possui alguma ambiguidade ou mesmo de nomes da fauna e flora local. A partir disso, notamos um trabalho minucioso de estudo da língua de partida e especialmente com o público-alvo, para que o texto seja inteligível. 3.2. Expressões idiomáticas As expressões idiomáticas são inerentes a qualquer idioma, pois fazem parte do sistema linguístico e cultural de um povo. Dessa forma, apresenta uma imprevisibilidade de tradução, pois a tradução literal nem sempre é possível, justamente pelo sentido conotativo atribuído ao termo, e não propriamente pela soma de significados individuais de cada palavra. Essa idiomaticidade pode ser compensada por alguma expressão de igual efeito na língua de chegada por outra que seja equivalente ou pelo jogo criativo de palavras utilizado pelo tradutor. Vejamos os exemplos: Tabela 2 – Expressões O homem ficou com a boca na nuca (pág. 58) The man was dumbfounded (pág. 40) Chupanga tinha um novelo na garganta, custou-lhe desatar a conversa (pág. 104) PROFT em Revista Chupanga had a ball of wool in his throat, Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo and he found it difficult to unravel his speech (pág. 81) Não havia sinal dele, apenas dicências, istosaquilos (pág. 52) There was no sign of him, only sayings, rumours, this and that. (pág. 37) No primeiro exemplo, na expressão “boca na nuca”, o tradutor recorre ao adjetivo “dumbfounded”, que se ajusta perfeitamente ao texto e à ideia de perplexidade que se quer passar. No segundo caso, o tradutor opta pela tradução literal de “novelo na garganta”, “ball of wool in his throat”, em vez da expressão equivalente “lump in my throat”, apesar da literalidade o sentido permanece inalterado. O último exemplo reproduz o sentido de “istos-aquilos” pelo termo equivalente “this and that”. Percebe-se que o efeito semântico é preservado por meio de palavras e expressões sem qualquer prejuízo de entendimento. O tradutor foi bem-sucedido em suas escolhas, algumas criativas, outras mais triviais, porém assertivas no que diz respeito ao entendimento. 3.3. Os nomes próprios na tradução A tradução de nomes próprios não é comum dentro do ato tradutório, exceto nos casos em que há uma forma na língua em que se está traduzindo, por exemplo, Brazil. Sendo assim, pode-se traduzir nomes de países, cidades e personalidades como é o caso do nome que os Papas recebem ao serem nomeados. Nos textos literários os nomes não são traduzidos, entretanto alguns nomes podem representar ou passar uma mensagem, o que pode levar a uma possível tradução. Em The last flight of the flamingo, David Brookshaw mantém os nomes próprios do livro de partida. A excentricidade do enredo e da linguagem também está presente na composição dos nomes dos personagens. Para exemplificar, podemos citar o personagem do velho Sulplício, assim como a própria etimologia da palavra sugere, o velho é um personagem marcado pelo sofrimento, pelas memórias e lembranças dos tempos de opressão do período colonial. Um outro personagem interessante de se destacar é a velha-moça, Temporina, que tem o rosto de uma PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo anciã e o exuberante e atraente corpo de uma jovem. O próprio nome da personagem remete à ideia de tempo, já que essa com o passar do tempo vai rejuvenescendo. Apesar dos nomes comunicarem características dos personagens, o tradutor opta por manter tais como no livro de partida. Contudo, o nome da prostituta, Ana Deusqueira, recebe uma versão em inglês, Anna Godwilling. Provavelmente, a tradução tenha ocorrido pela forma lexical e morfológica do nome Deusqueira, composto pelo fonema -qu-, que poderia causar alguma dificuldade para o leitor/falante de língua inglesa. 4. NEOLOGISMOS 4.1. Derivações prefixais e sufixais na neologia Considerando que o texto de partida apresenta não apenas o português, língua oficial do autor, mas, principalmente, características linguísticas próprias, línguas locais coexistentes na obra, observaremos o papel do tradutor em relação à legibilidade do texto. Tal legibilidade não se refere aos aspectos linguísticos, mas àquele que se pretende atingir, o leitor. Mia Couto mostra um grande conhecimento gramatical ao, como ele mesmo diz, “brincriar” com as palavras. Muitos de seus neologismos seguem uma estrutura lógica, levando-se em consideração o processo de formação de palavras. Dessa forma, o autor trabalha, entre outras coisas, com a inserção de afixos: prefixação e sufixação. Alguns neologismos presentes na obra exigem ainda mais habilidade e destreza no processo de criação por parte do tradutor. Vejamos abaixo alguns exemplos de derivação prefixal, sufixal e parassintética: Tabela 3 – Derivações sufixais e prefixais Com esta outra, porém, com a tal inominada But with this other nameless woman – the mulher esse mau-olhado parece não ter ca- curse threatened to get out of control (pag. bimento. (pag. 92) PROFT em Revista 70) Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo Minha mãe chorava enquanto dormia na so- My mother wept while sleeping in the unlidão do leito desconjugal (pag 46) conjugal solitude of her bed (pag. 30) A vida, meu filho, é uma desilusionista. (pag Life, my son, is a disillusionist (pag. 31) 47) Nessa pequena amostra, verificamos que o tradutor utiliza recursos morfológicos paralelos aos utilizados no texto-base, ou seja, derivações que demandam habilidade e experiência linguística dentro do processo de criação. Em entrevista ao Institute of Translation & Interpreting, o próprio tradutor nos falar sobre sua experiência “in the sense that his Portuguese has its idiosyncrasies, you develop equivalent or approximate idiosyncrasies in English” (ITI Bulletin, July - August, 2005, 14). Em outras palavras, David Brookshaw nos fala que é preciso criar idiossincrasias equivalentes ou aproximadas na língua de chegada. Especificamente, nos exemplos: desconjugal e desilusionista, que foram transpostos como: unconjugal e disillusionist, observamos que esses sofreram o mesmo processo morfológico de derivação. No trecho abaixo, ele comenta sobre as compensações que recuperam o que inicialmente parecia estar perdido, aproximando o máximo possível o texto de partida ao de chegada por meio do esforço criativo. 1(…) if the act of translation does involve loss, this does not necessarily mean that all is lost. It is the responsability of the translator to claw back through his or her creative endeavour, something that will keep the gap between the original and the new, translated version as narrow as possible. (Brookshaw, 2006: 59 e 2008). 1 (…) se o ato tradutório envolve perda, isso não significa necessariamente que tudo está perdido. É de responsabilidade do tradutor recuperar, por meio de seu esforço criativo, algo que mantenha a diferença entre o original e a nova versão traduzida o mais próximo possível. (tradução nossa) PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo Podemos elencar aqui dois pontos importantes na transposição de sentido para os exemplos mencionados: a criação e a interpretação. Rosemary Arrojo, em seu livro Oficina de Tradução, fala que a tradução é um processo de recriação ou transformação, ou seja, o ato tradutório não se restringe ao transporte de signos, embora isso aconteça frequentemente. Como podemos ver, nem sempre é possível transportar significados. O tradutor deve se apropriar do texto de partida e recriá-lo de modo que esse seja compreendido pelo leitor da língua-alvo, considerando as intenções do autor, possível somente com a sua indispensável intervenção. 4.2. Derivações e equivalências na tradução Em algumas situações, o tradutor consegue fazer uso dos recursos linguísticos da língua de chegada para passar a mesma ideia do texto de partida como vimos anteriormente2. Porém, nem sempre a estrutura da língua permitirá essa adaptação, seja por uma questão semântica, lexical e/ou morfológica, seja por escolha do próprio tradutor. Partindo do princípio que o tradutor deve ter liberdade e autonomia para optar por alternativas, que sejam inteligíveis, para driblar as barreiras linguísticas, veremos agora algumas adaptações feitas pelo tradutor ao verter alguns neologismos para o inglês: Tabela 3.1 - Neologismos … o peixe fica açucaroso (pág. 122) ... the fish tastes sweet (pág. 96) O italiano cabisbaixou-se e pediu desculpa The italian hung his head and apologised (pág. 122) (pág. 97) 2 Vide Tabela 3 – Derivações sufixais e prefixais: inominada, nameless; desconjugal, unconjugal; desilusionista, disillusionist. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo Era um homem que se entregava aos outros, He was a man who devoted his time to othcapaz de outroísmos (pág. 160) ers,he was capable of generosities (pág. 129) Despertou suado e sujo, o peito ainda resfolegando (pág. 58) He woke up sweating and dirty, his chest still heaving. (pág. 40) My eyes popped out like marbles. (pág. 70) Me berlindaram os olhos (92) The old woman coyly took a few steps round the foreigner. The she leaned flirtatiously Dengosa, a velha deu uns passos em redor do agaisnt the door of the room. (pág. 40) estrangeiro. Depois encostou-se, requebrosa, na porta do quarto (pág. 58) Mas o povo, em Tizangara, não se queria reconhecer amulatado (pág. 59) Mas ele apontava a distância e me repisava a advertência (pág. 52) But the people of Tizangara didn't want to acknowledge their mixture. (pág. 41/42) But he pointed into the distance and insisted on his warming (pág. 36) The italian was still in a daze. There, unhelped by distance, he was a very O italiano ainda estava zuezuado. Ali, no devulnerable soul. (pág. 81) samparo da lonjura, ele era uma pessoa muito atropelável. (pág. 103) PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo Destacamos anteriormente alguns neologismos formados a partir de anexação de afixos que, ao serem traduzidos, foram igualmente transpostos pelo mesmo processo de formação. Agora temos a tradução de palavras que sofrem o mesmo processo, porém foram traduzidas com palavras do léxico da língua inglesa, trabalhando com a equivalência no outro idioma. Dessa forma, nota-se que o tradutor optou por deixar o texto claro para o leitor, preocupando-se com o entendimento do texto, como é o caso de: açucaroso, atropelável, outroísmos e resfolegando; traduzidos como: tastes sweet, vulnerable, generosities, heaving; respectivamente. Ao tradutor, cabe a difícil tarefa de aproximar o texto vertido às reais intenções do autor, tornando-o perceptível para o público-alvo, porém sob a sua própria interpretação. A este respeito, Arrojo (op.cit.) afirma: É impossível resgatar integralmente as intenções e o universo do autor, exatamente porque essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido. (…) O autor passa a ser, portanto, mais um elemento que utilizamos para construir uma interpretação coerente do texto. (…) O foco interpretativo é transferido do texto, como receptáculo da intenção “original” do autor, para o intérprete, o leitor, ou o tradutor. (…) significa que, mesmo que tivermos como único objetivo o resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse autor e suas intenções. (Rosemary Arrojo 2000; 40-44). Ou seja, a tradução é um ato de investigação e interpretação no qual o tradutor tem a tarefa de aproximar o texto de chegada ao texto de partida, entretanto, sua totalidade jamais será atingida uma vez que não há termos estáveis, fixos na língua. Nas palavras de Arrojo: Em outras palavras, nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que considerarmos ser o texto original, àquilo que considerarmos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretaçãodo texto de partida, que será (…) sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos. (Rosemary Arrojo, 2000; 40-44). Dessa forma, não há como falar em uma tradução neutra, livre de interferências, pois o texto de chegada sempre será uma releitura do texto de partida. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo 4.3. Composição por aglutinação O último voo do flamingo é uma obra híbrida e idiossincrática, que apresenta uma pluralidade linguística, fruto da imaginação do autor que lida sabiamente com a língua, construindo e desconstruindo sentidos. Um dos recursos mais utilizados pelo autor é a composição por aglutinação. Tais formações não comprometem o entendimento do texto, mas, em um primeiro momento, pode provocar um certo estranhamento por parte do leitor. Embora, o tradutor, David Brookshaw, seja um profissional experiente, estudioso da cultura luso-brasileira e igualmente criativo, algumas construções tornam-se inviáveis na transposição, tendo assim, que ser adaptadas com vocábulos já existentes no idioma de chegada conforme veremos a seguir: Tabela 3.2 – Composição por aglutinação Transpirado, aguando-se pela pele, ia ge- He was sweating, leakingwater through evemendo, arfalhudo... (pág. 181) ry pore, groaning, full of gasps... (pág.145) Foi nesse instante: em vez de se vir, o tipo Then it happened: instead of coming, the felrebentou-se, todo estampifado. (pág. 181) low burst, with a huge bang. (pág. 145) Saltitava, cabritroteava (pág. 68) He jumped and leaped, goat like. (pág. 52) Desta vez, eu vinha quase sem mim, parecia This time, I was almost removed from myum desqualquerficado. (pág. 52) self, as if life had disqualified me. (pág. 37) Aquele vivente se tinha espatifurado sem vestígio. (pág. 181) PROFT em Revista The creature had burst into smithereens without leaving a trace. (pág. 145) Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo In the words of Chupanga, my father belonged to the nation of beasts, he was as No dizer de Chupanga, meu pai vivia em difficult as a threadworm, all artful and nação de bicho, era um tipo levado da broca, insinuating. (pág. 82) todo artimanhoso. (pág. 104) Em muitos momentos do texto, o autor faz uma condensação de significados por meio da fusão de vocábulos, somando sentido a eles, de modo que cada palavra carrega uma micromensagem. No quadro acima, temos, por exemplo, a palavra “desqualquerficado” para a expressão “desqualificado qualquer”, que intensifica a característica do personagem justamente pela carga semântica que os vocábulos trazem. Em inglês, o tradutor resolve a questão, utilizando-se do adjetivo “disqualified”, já existente no idioma; ainda que semanticamente não se tenha a mesma representação, o tradutor consegue manter a linearidade do texto. Vamos a outros exemplos: “arfalhudo”, junção de arfante (ofegante) com farfalhudo (ruidoso), e “cabritroteava”, fusão de cabrito e o passado do verbo trotear, no qual se tem a ideia de ser livre para correr e saltar como um cabrito. Os termos foram traduzidas por “full of grasps” e, no segundo caso, pela expressão “jumped and leaped, goat like”, respectivamente. Nas duas situações citadas, o tradutor busca o sentido que as palavras carregam, inferindo no texto e tornando-o inteligível. A esse respeito, Arrojo afirma: (...) algumas palavras “carregam” vários conceitos e outras têm que se juntar para conter apenas um. (…) o fundamental no processo de tradução é que todos os componentes significativos do original alcancem a língua-alvo, de tal forma que possam ser usados pelos receptores. (Rosemary Arrojo, 2002, 12). A autora Rosemary Arrojo, cita Nida, falando sobre o significado e o tradutor, comparando-os à carga e ao transportador. Ou seja, além de Nida, muitos acreditam que a tradução se resume a um mero transporte de cargas em que paralalemente temos o texto de partida e o texto de chegada, sendo o primeiro o original e o segundo a decodificação dele. A função do tradutor vai além do conceito de decodificador de signos, pois envolve estudo, pesquisa e imersão na obra, por essa razão, a tradução não pode ser trivializada, vista como algo menor, mas sim como um texto concebido a partir de outro. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Ana Paula de Macedo 3I suppose English is a very different type of language; it’s not a Latin language. (…) What I find is that sometimes responding to a particularly inventive use of language doesn’t work in English, so the translation might be a bit bland, but you try and compensate for that later on when Mia is using language perhaps fairly normally and you see a chance to be a bit inventive in English. So at least you’re translating the spirit of the text (…) and when you find a solution that you think is good then it makes your day! ( David Brookshaw, 2005, 11-12). Brookshaw, no trecho acima, fala que a obra traduzida pode ser um pouco sem graça, mas às vezes é possível ser criativo e passar o “espírito” do texto para o leitor, o que o deixa satisfeito quando essa compensação ocorre. A excetricidade linguística do autor e sua mente inventiva sempre serão uma barreira a mais a ser vencida, e, justamente, por isso, torna o processo de tradução desafiador para qualquer profissional. Conclusão Neste trabalho apresentei as diferenças linguísticas do português de Moçambique, os dialetos e as peculiaridades e excentricidade na construção da linguagem da qual o autor faz uso em quase toda a narrativa, mostrando que é possível para o tradutor recriar o texto por meio de sua própria imaginação e criatividade, tornando a obra traduzida interessante e inteligível para o leitor. Dessa forma, o tradutor aproxima o texto do leitor sem, contudo, descaracterizá-lo. As adaptações e recursos utilizados por Brookshaw demonstram sua preocupação pela fluidez do texto, recuperando as intenções do autor por meio de construções morfológicas semelhantes às utilizadas pelo autor, ou mesmo por meio de escolhas de termos ou expressões equivalentes na língua de chegada, ajustando os aspectos linguístico-culturais que envolvem o texto de forma que esse possa ser compreendido tanto no campo semântico quanto no campo cognitivo. 3 Acho que o inglês é um idioma muito diferente, não é uma língua latina. (...) O que eu acho é que às vezes responder a um uso particularmente inventivo de linguagem não funciona em Inglês, portanto, a tradução pode ser um pouco sem graça, mas você tenta compensar isso mais tarde, quando Mia usar a linguagem normal de forma regular, e você tiver a chance de ser um pouco criativo em Inglê s. Assim, pelo menos você estará traduzindo o espírito do texto (...) e quando você encontra uma solução que você acha que é boa, você ganha dia! (tradução nossa) PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 O Processo Criativo na Tradução em o Último Voo do Flamingo Eu, Ana Paula de Macedo, autorizo que meu artigo O Processo Criativo na Tradução em O Último Voo do Flamingo, realizado para a conclusão do curso de Tradução da UNINOVE em 2012, sob a orientação de Débora Spinelli, seja publicado na versão online da PROFT em Revista 2012. Estou ciente de que não receberei nenhum tipo de remuneração, nem terei qualquer tipo de despesas com a publicação do texto. Estou ciente, ainda, de que a veracidade das informações, autenticidade das citações e ineditismo do texto são de total e inteira responsabilidade minha enquanto autora do texto. Como citar: MACEDO, A.P. O PROCESSO CRIATIVO NA TRADUÇÃO EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO. PROFT em Revista: Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011, v. 2, n. 2, p. 190-208. jun. 2012. Referências ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 2002. 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