a visão do outro e sobre o outro: chico buarque e a ditadura com a
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a visão do outro e sobre o outro: chico buarque e a ditadura com a
77 A VISÃO DO OUTRO E SOBRE O OUTRO: CHICO BUARQUE E A DITADURA COM A MÚSICA “APESAR DE VOCÊ” Marco Antonio Pupo Coelho – [email protected] Universidade Estadual de Londrina Prof.ª Dra. Márcia Elisa Teté Ramos – [email protected] Universidade Estadual de Londrina Resumo: Analisando o contexto histórico vivido pelos brasileiros e a produção cultural durante a Ditadura Militar brasileira, compreendida do período de 1964 até 1985, partindo da análise documental, busca-se estabelecer uma reflexão sobre o papel do outro e sobre o outro, e as leituras e apropriações dos militantes contra-ditadura. Compreende-se o “outro” como os questionadores do regime daquele momento, e que por esse motivo, tinham suas concepções e leituras dos fatos mais difíceis de serem divulgadas, dada a natureza daquele regime de governo. Utilizando como fonte histórica para o trabalho didático-pedagógico específico da história, a música “Apesar de você”, do cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, procura-se analisar a música como fonte histórica, portanto, considerando sua letra e melodia nas suas simbologias e entrelinhas. Palavras chave: ditadura, música, Chico Buarque. Esse trabalho refere-se às atividades do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, o PIBID, subprojeto de História Ensino Médio, coordenado pela Prof.ª Dra. Márcia Elisa Teté Ramos, e procura estabelecer uma relação entre o conhecimento teórico e o conhecimento empírico, através das aulas-oficina proposta por Isabel Barca (2004). No caso da aula-oficina em questão traçou-se um panorama das apropriações feitas pelos militantes contrários ao regime instaurado no Brasil em 1964, e como suas leituras e compreensões eram mais difíceis de propagar, dada a natureza do regime político. No período, estratégias eram utilizadas para “driblar” o Regime, manifestando opiniões contrárias ao mesmo. Destacamos determinada música como fonte para uso escolar, como representativa dentre as estratégias de confronto ao Regime. Utilizando a análise documental, partindo do conhecimento prévio dos alunos, temos aqui a ferramenta mediadora do processo de aprendizagem, criando assim um debate abrangendo o contexto político do Brasil durante o Regime Militar a partir da canção “Apesar de você”, de Chico Buarque. O objetivo é dar conta do que é o cerne do projeto PIBID: propor novas maneiras de aprendizagem e ensino da História, pautando-se na proposta da aulaoficina de Isabel Barca e buscando discutir/compreender a alteridade. Tendo sido lançada no ano 1970 após o regresso de Chico Buarque de seu autoexílio na Itália, a canção “Apesar de Você” ganhou popularidade na época e virou uma “mania nacional”, pois a crítica ao regime passou despercebida pelos censores do governo, que interpretaram na letra desse samba “uma briga de namorados”. É importante pensar não apenas na apropriação que o público fazia da música na época, mas também na atualidade, o que nos dará a dimensão sobre a formação do imaginário e da identidade brasileira sobre a Ditadura. Por isso, primeiramente nos interessamos em conversar com os alunos para saber o que pensavam sobre o período. Vimos que os alunos não demonstraram nenhum 78 pensamento conservador em relação ao Regime Militar, mas não sabiam muito do período. O uso da fonte em sala de aula é um ponto importante para o aprendizado histórico, contudo, não garante a construção de um pensamento crítico. No caso, o aluno precisa saber que a natureza do conhecimento histórico é multiperspectivada, ou seja, é plural e provisório, (BARCA, 2001, p. 30), mas isso não significa que nem toda versão histórica é válida. Não é o relativismo que orienta a noção de aprendizagem da história de forma crítica. A oficina que serviu como base para este trabalho foi realizada no Colégio de Aplicação, órgão suplementar da UEL, em uma turma do 3º ano do Ensino Médio. Deu-se a apresentação da canção apenas em áudio, e em seguida, a análise da letra e da melodia no contexto da Ditadura Militar. Partindo dessa premissa, passemos a análise da letra. Já no título da canção, o “você” aparece como opositor ao narrador. Esse “você” é identificado em um momento da música como o responsável pelo sofrimento do narrador “Quando chegar o momento/Esse meu sofrimento/Vou cobrar com juros, juro”. Além disso, a mensagem que a letra trás no nível narrativo expressa claramente o sentimento de descontentamento com a conjuntura da época, no entanto, carrega também a idealização de um futuro menos turbulento pautado na “reviravolta” dos acontecimentos. Já na primeira estrofe da canção, o narrador lança um olhar sobre o momento histórico sombrio que acometia o Brasil no ano de sua composição, 1970, destacando a falta de liberdade de expressão, o governo antidemocrático, a censura: “Hoje você é quem manda / Falou tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar / O perdão”. Porém, na segunda estrofe, um lampejo de esperança de um tempo melhor com o “apesar de você”, pois apesar de todas as sombras do presente, o amanhã será de “enorme euforia” e indaga ao repressor “onde vai se esconder” e “como vai proibir” as mudanças em curso. Aqui se apresenta a fala de vitória daqueles que eram oprimidos, expressada através de metáforas como “jardim florescer”, “dia raiar”, “amanhã renascer”,“ céu clarear”, além das expressões “sem lhe pedir licença” e “morrer de rir”, contrapondo expressões e metáforas iniciais dessa canção: “você é quem manda”, “falando de lado”, “olhando pro chão”, “toda a escuridão”, “grito contido”, “samba no escuro”. Agora, nesse segmento da letra, os repressores são obrigados a ver essa alegria toda de forma passiva, sem se manifestar: “você vai ter que ver / A manhã renascer”. E, nesse novo amanhã, o algoz “vai se dar mal”. Existe na letra uma acentuada espécie de sede vingança, e a promessa de se cobrar por toda a dor que se sofreu: “vou cobrar com juros, juro” / “você vai pagar e é dobrado”. Vale ressaltar que o aluno desta faixa etária se interessa pela análise crítica da fonte, de “ver o que há nas entrelinhas”. Bem como se interessa pela música, elemento fundamental de seu universo cultural. Desta forma a aula-oficina não apenas construiu o conhecimento histórico crítico sobre aquele momento histórico, mas fez com que o aluno associasse “canções de protesto” com músicas que nos dias atuais também questionam a realidade. Esta relação entre passado e presente implica em dar condições que o aluno saiba que a historiografia se move conforme problematizações do presente. Que olhar para a Ditadura Militar tem um significado para nós hoje, haja vista os movimentos que aconteceram no Brasil em junho deste ano. O interesse do aluno também se deve ao fato de que esta relação passado- 79 presente faz sentido para a “vida prática” do aluno, ou seja, está articulada com as experiências/vivências deste sujeito. Nos dias de hoje, [a história] tem o compromisso de identificar, descrever, compreender e explicar a alteridade, não para desfazê-la ou anulá-la, mas para proclamar o direito de sua existência e o necessário respeito que a ela devemos devotar. A história, como formadora de subjetividades, é um saber e uma prática inseparável de discussões éticas e políticas. O ensino e a escrita da história implicam sempre a tomada de posição política... (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p. 33). Vale ressaltar aqui que a produção musical e cultural brasileira trás diversos exemplos de músicas com mensagens de protesto, como a música “Deus lhe pague” (1971) do mesmo compositor. Podemos observar na letra um certo desespero dos cidadãos, dada a falta de liberdade e excesso de controle dos militares, expressada na necessidade de se ter autorização para qualquer coisa (“a concessão pra sorrir” / por me deixar respirar, por me deixar existir”), pois através da linguagem metafórica empregada nas canções é que se fazia a crítica a opressão exercida pelo Estado. Mais próximo ainda do universo cultural do aluno, canções recentes como “Que país é este?” (1978) composta por Renato Russo, mas que só foi lançada no ano 1987, pois segundo o texto que acompanha o encarte do álbum: "Que país é este" nunca foi gravada porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é possível se fazer a mesma pergunta do título." (RUSSO, 1987) Essa canção tornou-se um sucesso no Brasil, tendo sido a música mais tocada no Brasil no ano de seu lançamento, e devido a forte crítica que permeia toda a canção, foi apropriada pelos jovens que participaram das manifestações de junho de 2013 na construção de uma identidade coletiva sedenta por mudanças no cenário político nacional. Concluindo, entendemos que a canção registra a história sobre um ponto de vista subjetivo, através das percepções e sentimentos, e por isso, é na recepção do público que se exerce a prática de significação e compreensão da mensagem. Esse registro por meio dos sentidos e das sensações aproxima o relato das experiências do receptor, que, por tabela, os recorda ou os vivência (mesmo não tendo deles participado). Por meio das canções de Chico Buarque, verificamos como os desejos e os sentimentos de uma identidade coletiva e censurada estavam expressos nessas canções. É mister destacar essa capacidade de resistência, nem sempre explícita, mas que se faz sempre necessária, e que pode ser manifestada pelos vários produtos artísticos e culturais. Nesse caso específico, as canções de Chico Buarque de Hollanda se tornaram o canal de expressão de uma identidade subterrânea que assumiu uma forma de resistência à Ditadura Militar, refletindo, nas ações e nos movimentos históricos, todo seu dinamismo e pluralidade. Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida et. al. Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012 80 BARCA, Isabel. (2001) Concepções de adolescentes sobre múltiplas explicações em História. In: BARCA, Isabel (Org.). Perspectivas em Educação Histórica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Centro de educação e Psicologia, Universidade do Minho. 2001. BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In BARCA, Isabel (Org.). Para uma educação de qualidade. Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga: Centro de Investigação em Educação (CIED)/ Instituto de Educação e Psicologia/Universidade do Minho. 2004. BUARQUE, Chico. Chico 50 anos – O Político. Rio de Janeiro: PolyGram/Philips, 1994. 1 CD (46 min). Faixas 2, 14. RUSSO, Renato. Que país é este?. Disponível em < http://legiaourbana.com.br/html/discografia/album-que-pais-e-este.html > Acesso em 14/10/2013.