Púrpura Retiforme dos Membros Inferiores: um diagnóstico

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Púrpura Retiforme dos Membros Inferiores: um diagnóstico
CASOS CLÍNICOS
CUIDADOS INTERMÉDIOS
EM PERSPECTIVA
Púrpura Retiforme dos Membros Inferiores: um diagnóstico
diferencial raro
Vital Da Silva Domingues1, Sandrine Carvalho2, Ana Luísa Rego3, Filipe Nery3, 4
Interna Complementar, Serviço de Medicina Interna do CHP - HSA
2
Interna de Dermatologia, Serviço de Dermatologia, CHP - HSA
3
Assistente Hospitalar, Serviço de Cuidados Intensivos 1 - Unidade Intermédia Médico-Cirúrgica, CHP - HSA
1
Autor correspondente: Largo Prof. Abel Salazar S/N 4099-001 Porto
4
ABSTRACT
Introduction . Across all medical specialties, retiform
purple, by the extent of its differential diagnoses,
presents as a diagnostic challenge. Coumarininduced skin necrosis (CISN) is a rare condition with
an unclear mechanism and well-identified risk factors,
which has a spectrum of disease ranging from indolent
to catastrophic, involving tissue necrosis.
Clinical Case . We report a case of a 82 yearsold woman, chronically immunosuppressed due to
rheumatoid arthritis, with cardiovascular risk and
permanent atrial fibrillation, under oral hypocoagulation
for the last 3 months. She was admitted at the
Intermediate Care Unit with acral cyanosis with several
weeks of duration with contralateral involvement and
low respiratory tract infection. The macroscopic aspect
of the lesions raised the suspicion of CISN and skin
biopsies were done. Given to its characteristics, the
relationship between coumarin introduction and
lesions development and histology, acenocoumarol
was suspended and a favorable response obtained
with involution of the lesions.
Discussion . Reticulated purple is common to
several entities being an important dermatological
sign in hospitalized patients, typically caused by
microvascular occlusion. In suspected cases of CISN,
as in many other dermatological problems, a detailed
clinical history and skin biopsy are essential for
establishing the diagnosis and proper treatment.
Keywords . Retiform purple, coumarin-induced skin
necrosis
|
[email protected]
RESUMO
Introdução . Transversal a todas as especialidades
médicas, a púrpura retiforme (PR), pela extensão
dos seus diagnósticos diferenciais, apresenta-se
como um desafio diagnóstico. A necrose associada
aos cumarínicos (NC) é uma entidade rara e de
mecanismo pouco claro, mas com factores de risco
bem identificados, tendo um espectro de doença
que varia do indolente ao catastrófico, envolvendo a
necrose dos tecidos.
Caso Clínico . Apresentamos o caso de uma mulher
de 82 anos, cronicamente imunossuprimida devido
a artrite reumatóide, com risco cardiovascular e
fibrilação auricular permanente, sob hipocoagulação
oral nos últimos 3 meses. Admitida na Unidade
de Cuidados Intermédios por cianose acral com
semanas de evolução com envolvimento contralateral;
e infecção respiratória baixa. O aspecto macroscópico
das lesões cutâneas levantaram a possibilidade de
NC, sendo efectuadas biópsias de pele. Tendo em
conta as suas características, a relação entre o tempo
de introdução do cumarínico e o desenvolvimento das
lesões e a histologia, o acenocumarol foi suspenso,
obtendo-se uma resposta favorável com involução das
lesões.
Discussão . A PR é comum a várias entidades e
um sinal dermatológico importante nos doentes
hospitalizados, causada tipicamente por oclusões
microvasculares. Nos casos de suspeita de NC, como
em muitas outras afecções cutâneas, uma história
clínica detalhada e a biópsia revelam-se fundamentais
para o diagnóstico e tratamento adequados.
Palavras-chave . Púrpura retiforme, necrose cutânea;
cumarínicos
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INTRODUÇÃO
A púrpura (hemorragia na pele ou mucosas) é
classicamente caracterizada pelo seu tamanho
(petéquias ≤4mm, púrpura macular 5-9mm e
equimoses ≥1cm), por ser uma lesão palpável e pela
possibilidade da presença de um padrão livedóide. O
padrão retiforme repercute a anatomia da vasculatura
para a derme e tecido subcutâneo, evidenciando-se
aquando da oclusão desses vasos, hemorragia e/ou
isquemia subsequentes.[1]
Transversal a todas as especialidades médicas,
a púrpura retiforme (PR), pela extensão dos seus
diagnósticos diferenciais, apresenta-se como um
desafio diagnóstico. A necrose aos cumarínicos é
uma situação rara (0,01-0,1% em doentes medicados
com esta classe de fármacos), que se pode manifestar
como PR.[1] A Necrose associada aos cumarínicos
(NC) foi originalmente descrita em 1934 como
tromboflebite migrans disseminada e só em 1954 se
relacionou com o tratamento com cumarínicos.[2, 3]
O seu mecanismo é pouco claro e parece justificarse por um estado de hipercoagulabilidade transitória
secundária à introdução da terapêutica, compliance
intermitente, alteração do metabolismo do fármaco por
disfunção hepática ou interacção com outras drogas,
nomeadamente antibioterapia de largo espectro que
reduz a flora intestinal.[4, 5] Outros autores referem
como mecanismos um efeito tóxico directo e uma
deficiência hereditária da proteína C.[6]
A incidência da NC é superior aquando da introdução
dos cumarínicos, nos primeiros dez dias, havendo
casos descritos até aos 15 anos após a sua introdução.
[1] A obesidade, sexo feminino, período perimenopausa
e antecedentes de tromboembolismo pulmonar,
trombose venosa profunda, acidente vascular cerebral
ou síndrome coronário agudo surgem como os
factores de risco mais vezes identificados.[1] A razão
pela predominância feminina persiste pouco clara
(9:1).[1] A NC acomete tipicamente áreas adiposas,
nomeadamente mamas, nádegas, abdómen e ancas,
e maioritariamente unilateral (vs 30% bilateral).[1]
Manifesta-se com parestesias, sensação de pressão,
dor intensa, eritema, edema e efeito “casca de laranja”,
evoluindo com petéquias, bolhas hemorrágicas
e placas de necrose desenvolvida (full-blown). A
necrose, extravasão eritrocitária para a derme e
tecidos subcutâneos e microtrombose capilar, nas
vénulas e nas pequenas veias, poupando as arteríolas
são os achados histológicos mais típicos.[7]
O tratamento deste problema consiste primariamente
na suspensão dos cumarínicos e hipocoagulação
com heparina, prevenindo um estado transitório de
hipercoagubilidade causado pelos níveis normais de
factores IX e X e depressão dos níveis de proteína
C. Em certos casos poderá haver necessidade de
reverter a hipocoagulação com vitamina K, plasma
fresco e/ou utilização de prostaciclina podendo, em
casos extremos, haver necessidade de amputação
do membro.[7] A prostaciclina parece conduzir a
uma melhoria clínica e histológica, havendo contudo
necessidade de mais estudos.[8] A ocorrência de NC
não inviabiliza a re-introdução do cumarínico, desde
que em doses baixas e incrementos sucessivos de
varfarina (por exemplo, 0.5-1mg/dia).[7] Na presença
de bolhas hemorrágicas não existe evidência que as
várias terapêuticas melhorem o resultado final.[9]
CASO CLÍNICO
Mulher de 82 anos, caucasiana, viúva e doméstica,
multípara, sem história pregressa de abortamentos,
com risco vascular/ síndrome metabólica (idade,
estado pós-menopausa, hipertensão arterial essencial,
dislipidemia mista e obesidade), cronicamente
imunossuprimida com prednisolona (7.5mg/dia) e
metotrexato (15mg/semana) por artrite reumatoide.
Apresentava também cardiopatia hipertensiva com
insuficiência cardíaca habitualmente em classe II-III
(NYHA) e fibrilação auricular permanente. Três meses
antes da actual admissão hospitalar, efectuado o
diagnóstico de acidente vascular cerebral isquémico
cardioembólico submetida a trombólise e sem défices
neurológicos sequelares, iniciando a partir dessa data
anticoagulação oral com acenocumarol, com níveis de
INR adequados nos meses subsequentes.
Recorreu ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar
do Porto – Hospital Sto António por coloração azulada
do hálux direito com diminuição da temperatura
local sugestivo de cianose, com várias semanas
de evolução, com progressão para os restantes
dedos do pé direito e envolvimento contralateral nos
três dias anteriores à sua admissão. Apresentava
concomitantemente tosse produtiva com secreções
brônquicas mucopurulentas com dias de evolução,
negando febre ou dor torácica, e que havia motivado a
introdução de amoxicilina-clavulanato no ambulatório
três dias antes. À admissão apresentava-se com
critérios de sépsis grave com ponto partida respiratório
e disfunções de órgão associadas: cardiovascular
(hipotensão), respiratória (insuficiência respiratória
hipoxémica grave) e hematológica (trombocitopenia),
bem como púrpura com necrose digital bilateral.
Apresentava edema pré-tibial bilateral e púrpura acral
dos pés, com dor à palpação e extensão ao terço
inferior da perna direita. Verificava-se algum grau de
epidermólise com vesículas e bolhas de conteúdo
hemático, pés frios com pulsos pediosos e tibiais
posteriores palpáveis.
O estudo complementar revelou leucocitose
(13920cel/µL), neutrofilia (12240cel/µL), linfopenia
(950cel/µL), trombocitopenia (64000plaq/µL), proteína
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Apresentava um estudo funcional das proteína C e S
normal de 109 e 130%, respectivamente. Apresentava
insuficiência respiratória hipoxémica (tipo 1) com
paO2/FiO2=228 e lactatos normais (1.9mmol/L). O raio
X de tórax evidenciava opacidade da base esquerda.
Iniciou tratamento com meropenem e azitromicina,
com progressiva melhoria das disfunções, motivando
abordagem do problema secundário. Obtiveramse biópsias cutâneas da lesão e da área marginal
púrpurica, excluindo áreas de necrose. A histologia
revelou uma oclusão parcial (mais raramente total)
dos capilares perivasculares superficiais e arteríolas
do plexo profundo por trombos de fibrina (figura 3
e 4). Simultaneamente existia exuberante edema e
extravasamento de eritrócitos de toda a derme e parte
da hipoderme.
Figura 1 e 2. | Púrpura acral dos pés, com epidermólise: vesículas e
bolhas de conteúdo hemático.
C reactiva elevada (131mg/dL), anemia normocítica
e normocrómica (Hb=8.9g/dL), velocidade de
sedimentação de 43mm/h e um INR inicial de 12,
que diminui para 4 após tratamento com 10mg
vitamina K IV. Não havia disfunção renal, nem
alterações do ionograma, perfil hepático ou lipídico.
O estudo microbiológico (hemoculturas, uroculturas
e secreções brônquicas) foi negativo, tal como o
estudo imunológico (anticorpos anticardiolipina,
β2glicoproteína, anticitoplasma dos neutrófilos, factor
reumatóide, anticitrulina lipídico e crioglobulinemia).
Figuras 3 e 4 | Histologia da pele com fibrina intravascular corada de
rosa. Histologia da peça demonstrando atrofia da epiderme, edema
intersticial e trombos fibrina intravasculares.
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Dados os achados macro e microscópicos da lesão e a
relação temporal entre a introdução do acenocumarol
e o aparecimento das lesões, o diagnóstico de NC
foi estabelecido, pelo que se manteve suspenso o
cumarínico desde a admissão hospitalar, iniciando
no curso do internamento hipocoagulação com
heparina de baixo peso molecular, tendo-se obtido
uma resposta clínica favorável com diminuição da
progressão das lesões e eventual involução das
mesmas. Todavia, o quadro clínico da doente agravou
com desenvolvimento de síndroma de dificuldade
respiratória do adulto e disfunção renal, acabando por
falecer.
DISCUSSÃO
A PR é comum a várias entidades, nomeadamente
à síndrome antifosfolipídea (SAF), coagulação
intravascular disseminada (CID), purpura trombótica
trombocitopénica (PTT), crioglobulinemia, doenças
embólicas, vasculites, infecções, necrose induzida
pela heparina e NC.
O caso apresentado mostra lesões cutâneas de PR
numa mulher com risco conhecido (história prévia de
AVC, obesidade, o género, sob hipocoagulação oral
com cumarínicos).
A abordagem da PR pode ser efectuada por grupos
(alterações intravasculares ou da própria parede
vascular). No caso referido, o estudo dirigido levou à
exclusão de várias causas de PR, nomeadamente a
SAF (pela ausência de critérios clínicos e analíticos),
crioglobulinemia, défice de proteína C e de doenças
de depósitos intravasculares de proteínas e embólicas
pela ausência de alterações compatíveis na histologia.
A biópsia permitiu ainda a exclusão de alterações
da parede vascular, designadamente vasculites,
calcifilaxia e infecções oportunistas.
fármacos altamente ligados à albumina, sendo que
pode haver competição por essa ligação, resultando
num estado transitório de desequilíbrio procoagulanteanticoagulante, tal como reportado por Cameron et
al.[10]
Em 5% da população geral e 20-60% dos pacientes
com tromboses venosas profundas está documentada
uma resistência à proteína C activada.[11] Porém, a
função normal das proteínas C e S da doente em causa
não o corrobora. Actualmente persiste a discussão
relativamente ao rastreio da deficiência da proteína C
e/ou S, quer seja hereditária ou adquirida, antes da
introdução dos dicumarínicos. Chan et al advogam
que não terá benefício custo-eficácia ou prognóstico,
visto que, dada a raridade da situação, a maioria dos
doentes com documentação dessas deficiências não
progridem para NC.[1]
Em conclusão, a PR é um sinal dermatológico importante
nos doentes hospitalizados, causada tipicamente por
oclusões microvasculares. Nos casos de suspeita
de NC, como em muitas outras afecções cutâneas,
uma história clínica detalhada e a biópsia revelamse fundamentais para o diagnóstico. A avaliação
inicial deve incluir um hemograma com esfregaço,
estudo da coagulação, perfil hepático e função renal.
Caso se suspeite de infecção, deverão ser colhidas
hemoculturas e amostra do tecido para cultura.
Todo e qualquer caso deve ser complementado com
testes adicionais conforme a suspeita clínica. O caso
apresentado realça vários aspectos importantes desta
condição já por si rara: necrose após longo tempo de
terapêutica, alteração dos níveis de hipocoagulação
em estados inflamatórios e uma relação com estados
transitórios de hipercoaguabilidade.
O resultado da biópsia deixou duas possibilidades
diagnósticas em aberto, a CID e a NC. A favor
da primeira hipótese, a existência de um quadro
séptico e trombocitopenia com um Tempo Parcial de
Tromboplastina elevado (reserve-se o facto de ter
um INR>10); contudo a existência de hemoculturas
estéreis, esfregaço normal e o tempo de instalação
prolongado nãocoadjuvava ao diagnóstico. A suportar
a NC, e como dados positivos, de referir a clínica (dor
e bolhas), biótipo (obesa), ferida asséptica e o tempo
de instalação relativamente à introdução do fármaco.
Com a suspensão do acenocumarol e o início da
hipocoagulação com heparina não fraccionada
verificou-se uma resposta favorável com diminuição
da progressão da extensão das lesões, permitindo
afirmar o diagnóstico.
Alguns autores hipotetizam ainda interacções
medicamentosas pelo facto dos cumarínicos serem
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