Renato, o Menino que era Rato

Transcrição

Renato, o Menino que era Rato
RENATO, O MENINO QUE ERA RATO
Gregory Haertel
Personagens:
Ator 1 : Renato
Ator 2 : Monstro, Sorriso
Atriz : Mãe, Mulher, Tia Cinira, Fada
Cena 1 – ‘É ou Não É?’
(Mãe entra com Renato. Ela canta uma música de ninar. Mãe dá um beijo em Renato e
sai. Renato está sozinho. Alguns barulhos estranhos começam. Renato se assusta. Uma voz, vindo de
algum lugar do palco, mas sem que se veja quem a produz,, ecoa ‘ééééééééééééééé’. Quando Renato se vira é
que o público percebe, pela primeira vez, que Renato é um rato. A voz repete ‘ééééééééé’).
Renato: Quem tá aí?
Monstro: Ééééééééééé.
Renato: Papai?
(Renato se levanta e começa a procurar quem está produzindo aquele som)
Renato: Quem tá aí?
Monstro: Ééééééééé’.
(Renato continua procurando. Está com medo. Atrás de um objeto ele encontra o
Monstro. O Monstro assusta Renato. Renato fecha os olhos e o público percebe que o Monstro também está
com medo. O Monstro fala ‘ééééééééé’. Renato encara o Monstro. O Monstro faz uma transição do
‘ééééééééé’, que é para ser assustador, para um frágil e sucinto ‘é ou não é’, que será o refrão dele durante
toda a peça. Sempre que o Monstro estiver com medo ou inseguro ele falará este ‘é ou não é’)
Monstro: É ou não é? Tu não tens medo de mim?
Renato (ainda com um pouco de medo): É pra eu ter?
Monstro: Eu sou feio, não sou?
Renato: É.
Monstro: É ou não é?
Renato: É.
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Monstro: É ou não é?
Renato: É.
Monstro: Eu não tava perguntando. É que quando eu fico nervoso eu solto
esse ‘é ou não é’.
Renato: ‘É ou não é’?
Monstro: É.
Renato: E por quê?
Monstro: Sei lá.
(barulho)
Monstro (assustado): É ou não é?
Renato: Tu tas com medo, né?
Monstro: Eu? Que bobo.
(barulho)
Monstro: É ou não é?
(Renato ri)
Renato: Acho que era a minha mãe.
Monstro: Ela é sempre assim?
Renato: Assim como?
Monstro: Barulhenta.
Renato: Não. Nestes últimos dias ela não ta muito bem.
Monstro: Tu também estás estranho. Tás meio cinza... E essas orelhas.
Esse rabo. Tu tas parecendo um rato.
Renato: Tu também achas? Pensei que só eu tivesse notado.
Monstro: Sério? Tu tás igual a um rato. Se alguém te visse embaixo de uma
mesa ele correria atrás de ti com uma vassoura.
Renato (triste): Eu não era um rato. Eu não quero mais ser um rato. Eu era
um menino igual a qualquer um. Igual àquele ali, ó? Igual àquele outro.
Monstro: O que é que aconteceu?
Renato: Não sei. Acordei assim. Só a mamãe tava em casa.
Monstro: E o teu pai?
Renato: Não sei. Eu não consigo entender...
Monstro: Posso chegar mais perto?
(Monstro se aproxima. Renato recua)
Renato: Tu não vais me machucar mesmo? Eu to com um pouco de medo.
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Monstro: Eu não vou te machucar. Eu te prometo. (pausa) Me conta: o que
é que tu fazes quando tu ficas com medo?
Renato: Quando eu fico com medo eu me escondo.
Cena 2 – Eu Não Consigo Tocar em Ti
Monstro (Monstro chega bem perto): Posso tocar o teu rosto? (Renato recua um
pouco quando o Monstro quase toca em seu rosto) É difícil viver assim: ninguém me deixa chegar
perto.
Renato (aproxima-se do Monstro, com pena, e tenta tocar nele): Desculpa, eu não
consigo. (Renato tira a mão) Eu não sei porquê, mas eu não consigo tocar em ti.
Cena 3 – A Mãe
Mãe (de longe, com carinho): Renato? (o Monstro se esconde. Mãe entra e olha para o
filho) Deixa eu te ver. Como é que tu tás, meu filho?
Renato (desviando o rosto): Eu não sei. Eu...
Mãe: Tanta coisa, né? A gente tá junto. Sempre junto, tá, meu amor (consola
o filho). Olha pra mim. (Renato tenta virar o rosto) Olha pra mim, meu amor.
Renato (envergonhado – ele não quer que a mãe perceba que ele é um rato): Eu não
sei como é que eu fiquei assim. O meu rosto...
Mãe: Tá inchado, né?
Renato: Não. É que...
Mãe: Vai ali no banheiro e lava o rosto. A mamãe também lavou. A gente
se sente melhor depois.
Renato: Mesmo?
Mãe: Passa uma água. E depois sai um pouquinho desse teu quarto. Isso
não te faz bem. (ela se levanta)
Renato: Bença, mãe.
Mãe: Deus te abençoe, meu filho.
(Monstro volta)
Monstro: Aquela é a tua mãe?
Renato: É. Normalmente ela ria bastante e usava umas roupas coloridas.
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Monstro: Eu ouvi ela te pedir pra sair um pouquinho do quarto. Tu nunca
sais?
Renato: Antes eu saía. Eu ia pra escola e via a minha professora e os meus
amiguinhos. (pausa) Tu sabias que aqui na frente de casa tem um jardim que é lindo? Eu
brincava ali todas as tardes. E jogava futebol. Mas agora que eu virei um rato eu não
consigo mais sair. Eu não quero mais ser um rato. Eu quero voltar a ser o Renato. Por que
será que eu virei um rato? O que é que eu tenho que fazer pra voltar a ser um menino?
Cena 4 – Esfregar, Ensaboar
(Renato presta atenção na imagem de um sapo que tem no seu quarto. Olha fixamente.
Enquanto ele presta atenção na imagem, entra uma mulher em cena. O Monstro se esconde, mas continua
em cena e pode ser visto por todos. Fala ‘é ou não é’. A Mulher traz um balde e uma esponja. Vem vestida
como se fosse um sapo)
Mulher: És tu que queres voltar a ser um menino?
Renato: U-hum.
Mulher: Deixa eu ver (examina Renato). Tas meio sujinho, né? O rosto ta
cinza. Pra tu voltares a ser um menino a gente tem que te limpar bem. Jogar uma água
neste rosto, passar uma bucha em tudo por aí, esfregar com esfregão, ensaboar com sabão,
tirar a craca da pele e tirar o choro da cara. Daí tu voltas a ser um menino.
Renato: Prometes?
Mulher: Lógico. Só menino limpinho é que é menino de verdade. (estende o
balde para o Monstro, que acha que não é visto) Ei, segura isso aqui um pouquinho pra mim. (O
Monstro não se mexe) Ei, ô feioso, segura só um pouquinho. Ajuda aí, vai. (O Monstro espia e vê
que a mulher está olhando para si. Leva um susto. Fala ‘é ou não é’ e tenta se esconder melhor, mas
novamente sem sucesso. Mulher fala para Renato): Quem é esse aí?
Renato: Ele apareceu aqui esses dias... É gente boa.
Mulher: Gente boa? Não parece. E ele também ta precisando de um trato,
né? (Monstro se encolhe todo) Mas vamos deixar pra outra hora. A prioridade agora é esse rato,
que depois dessa limpeza voltará a ser um menino. Mãos à obra. (começa a esfregar o rosto de
Renato com força)
Renato: Ai.
Mulher: Agüenta um pouquinho que já tá quase pronto.
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(Mulher esfrega muito o Renato. Renato reclama, sente dores).
Mulher (ainda sem olhar para Renato): Olha lá. Olha lá. Tchã tchã tchã tchã.
(Renato continua igual a antes. A Mulher fica sem jeito)
Renato: E aí? To igual àquele menino ali? To igual àquele outro?
Mulher (sem jeito, guardando as coisas): U-hum.
Renato: Eu não sou mais um rato?
Mulher: Ã-ã (nega).
Renato: Oba. Obrigado... (pausa. Olha para a mulher sem saber como chamá-la)
dona rã. Vou confessar que eu não tava acreditando nisso. Que eu tava achando que só
lavar o rosto bem lavadinho não fazia da gente um menino. Porque eu já vi menino que era
menino mesmo e tava bem sujo, bem sujinho, mas mesmo assim era menino. E eu já vi um
monte de coisa limpa que não era menino nenhum. Mas foi só lavar o rosto que eu voltei a
ser menino, né? É só lavar bem lavadinho, né? É só a gente ficar limpo que a gente volta a
ser menino...
(Mulher sai)
Cena 5 – Tu ainda és um Rato
Renato: Olha só. Eu voltei a ser um menino. (pausa. Observa o seu corpo)
Estranho, eu ainda não me sinto um menino. Ô, É ou Não É. Cadê tu? Vem aqui.
(O Monstro se aproxima)
Renato (para o Monstro): Que legal, né? Eu voltei a ser um menino.
Monstro (com pena de Renato): É.
Renato: E olha só. É bem fácil. É só lavar direitinho. A Mulher falou:
esfregar com esfregão, ensaboar com sabão. A gente pode passar por aí e tirar a sujeira do
mundo inteiro que tudo volta a ser menino. Tu já pensaste: a gente limpava os postes e os
postes viravam um menino. A gente lavava uma barata e ela virava um menino. A gente
jogava água num gambá e o gambá virava um menino. A gente pegava um rato e...
Monstro: Tu ainda és um rato.
Renato: Não sou.
Monstro: É sim.
Renato: Não sou.
Monstro: É sim.
Renato (agressivo): Não sou.
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Monstro (com medo): É ou não é?
Renato: A mulher falou que eu voltei a ser um menino.
Monstro: Aquela mulher mentiu.
Renato: Ela era legal.
Monstro: Tem gente que mente porque tem medo de contar a verdade. Às
vezes as coisas são tão difíceis que até a gente mente pra gente mesmo...
Renato: O meu rosto ta doendo por causa do esfregão.
Monstro: E tu continuas sendo um rato.
(barulho)
Monstro: É ou não é? Me ajuda. Me esconde.
Renato: Como é que é o teu nome?
Monstro: Anda, me esconde.
(barulho)
Renato: Me conta o teu nome.
(Renato ajuda o Monstro a se esconder)
Renato (fala baixinho pro Monstro): Como é que é o teu nome?
Monstro: Ócpotoptus.
Renato: Quê?
Monstro: Ninguém sabe falar o meu nome.
(barulho)
Monstro: É ou não é?
Renato: Oquipópus?
Monstro: Ócpotoptus. Vai (pedindo pra esconder).
(Mãe entra. Vai até Renato)
Cena 6 – O teu Pai foi Viajar
Mãe: Ta tudo bem, meu amor? Me desculpa se eu não to aqui pertinho de ti
o tempo todo, ta?, mas é que as coisas tão bem difíceis pra mamãe também (pausa. A mãe
está emocionada. Renato fica tentando articular ócpotoptus baixinho, sem conseguir) Que que foi, meu
filho?
Renato: Nada, não.
Mãe: Tem umas amigas da mamãe lá embaixo. Eu contei pra elas que já faz
uns dias que tu não sais do quarto. Queres que elas subam pra te ver?
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Renato: Não. Elas não podem me ver assim.
Mãe (observa o rosto do Renato): O teu rosto tá bem limpinho.
Renato: Mãe, eu sou um rato!.
Mãe (dá uma risadinha): Um rato? Que fofo. Se tu foste um rato tu serias o
rato mais bonito do mundo.
Renato: Mas eu sou um rato. Olha.
Mãe: Ta bom, querido.
Renato: Olha aqui. As minhas orelhas. O meu rabo. Eu virei um rato.
Mãe: Querido...
Renato: Eu sou um rato, mãe.
Mãe (sem acreditar, mas consolando): Ta bom, meu ratinho. Logo logo tu vais
ficar melhor. Agora eu tenho que descer um pouquinho, mas assim que der eu volto.
Renato: E o papai? (Mãe estava saindo, mas volta. Não fala nada. Abraça o filho)
Amanhã ele volta?
Mãe: Não, meu amor. Amanhã, não. (pausa) Meu amor, tenta sair um
pouquinho. Tenta colocar um sorriso no rosto. Eu te prometo que logo as coisas vão
melhorar.
(Mãe sai e apaga a luz. Renato continua tentando articular ócpotoptus)
Renato (chamando o Monstro): Ô, Póc-póc? Ô, Póc-póc?
(O Monstro não aparece. Renato fica angustiado procurando o Monstro. Fica triste)
Renato: Quando eu era um menino eu nunca ficava sozinho. Póc-póc?
Póc-póc? Eu preciso de ti. De um amigo. Póc-póc? Póc-póc? Fica aqui comigo. Eu não
quero ficar sozinho. A mamãe disse que era pra eu sorrir. Será que se eu começar a rir eu
volto a ser um menino?
(Renato observa o palhaço no painel do quarto. Entra um homem todo iluminado,
espalhafatoso, dançando)
Cena 7 – Sorriso
Sorriso (tudo nele é muito ‘pra cima’, muito ‘over’): Oi!!!!
Renato: Quem que tu és?
Sorriso: Eu sou o Sorriso!!! O homem mais feliz do mundo!!!
Renato: E eu sou um rato.
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Sorriso (cantando): Tu és um rato, mas e daí? A gente ri e ele se esconde no
sapato.
Renato: Mas eu era um menino.
Sorriso (cantando): Era um menino, mas não é mais. Porque deixou a alegria
para trás.
Renato: Mas a mamãe ta triste. E o papai não veio mais me ver.
Sorriso (cantando): A mãe ta triste. A mãe só chora. Ta com saudade do
papai que foi embora.
Renato: Pára. Assim parece que tu tas debochando dela.
Sorriso (cantando): Eu não debocho, eu sou feliz. Viver sorrindo é o que eu
sempre quis. Nada é triste. Nada é ruim. A vida sempre é bonita para mim. Se morre bicho.
Se morre gente. O importante é que eu sempre to contente. (carrega Renato pra dançar.
Continua cantando. Renato ri um pouco, mas depois se cansa)
Renato: Chega. Chega. Tu tas ficando bem chato.
Sorriso (cantando e forçando Renato a se mexer, a dançar): Eu não sou chato. Eu
vivo rindo. E eu te acho um menino muito lindo.
Renato: Não dá pra ser assim, ô... coisa. Tem dia que a gente quer ficar
mais quietinho. Tem dia que é de sol, e é legal, mas tem dia que é de chuva.
Sorriso (cantando): Se aqui chove, eu pinto um sol, e o penduro no varal
com o lençol.
Renato (que está sendo forçado, pelo Sorriso, a dançar): Pára. Eu quero ficar
sentado.
Sorriso (cantando): Sentado não. E nem deitado. A gente só pode sorrir com
um gingado.
Renato: Mas eu não quero dançar agora.
Sorriso (cantando): Sempre é hora pra se dançar. Vamos fazer esta tristeza
acabar.
Renato: A tristeza não ta saindo. E eu ainda por cima to ficando com dor
de cabeça.
Sorriso (cantando e empurrando Renato para que dance): Nem aspirina. Nem chá
da vó. O que melhora é pular até dar nó.
Renato (fugindo do Sorriso e sendo perseguido por ele): Chega, seu chato. Vai
embora. Eu quero voltar a ser um menino, mas não assim. Ficar o tempo inteiro rindo não
vai fazer de mim um menino.
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Sorriso (cantando): Então ta bom, to indo embora. Mas te prometo que eu
volto em outra hora.
Renato: Não precisa.
Sorriso (cantando): Mas volto, sim, que sou querido. Para ficar cantando isso
em teu ouvido.
Renato: Por favor, vai embora.
Sorriso (cantando): Ta bom, to indo, cantando assim, porque eu sei que você
gosta de mim. (faz de conta que vai)
Renato: Ufa.
Sorriso (cantando): Pensei em ir, mas to contigo. Quero deixar nesse teu
rosto um sorriso.
Renato: Meu Deus! Que insuportável! Vai embora!
Sorriso (saindo e cantando): Agora eu vou, e de verdade. Porque eu quero que
de mim tenhas saudade.
Renato: Vai. Vai. Vai. (o Sorriso já saiu. Fala para o público): Às vezes a gente
gosta de ficar mais quietinho, né? De ficar olhando pro nada, de escutar uns passarinhos.
Às vezes a gente não ta com saco pra nada, né? Dá vontade de esperar o dia passar pra
chegar o outro.
Sorriso (entrando de mansinho e cantando): Que coisa boa, que coisa linda. E to
trazendo alegria nessa vinda.
Renato: Sai daqui, sua praga.
Sorriso (saindo): Tu me machucas, me queres mal. Mas tu ainda és feliz e és
legal. (Sai cantando, no mesmo ritmo) Lálá-lálálá Lálá-lálálá Lálálálá Lálálálá Lálálálálá. Eu to
sorrindo. Eu sou feliz. Viver contente é o que eu sempre quis.
Cena 8 – Tristeza e Tia Cinira
Renato: Tem problema a gente às vezes ficar triste? Por que é que a gente
não pode de vez em quando sentir falta de alguma coisa, sentir medo, sentir saudade? E
tem vezes que a gente quer brincar e rir e correr. Não dá pra ser de um jeito só. É a mesma
coisa que vestir azul todos os dias. O único azul que devia ser sempre igual é o azul do céu.
A gente devia ser igual à aquarela. (silêncio. Renato está sozinho e triste. Procura algumas coisas pra
fazer mas começa e logo pára, como se qualquer coisa o incomodasse. Passa a batucar em algum lugar e o
barulho lembra Póc-póc. Começa a bater ‘Póc-póc’ mais forte no objeto e, gradativamente, passa também a
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chamar – inicialmente falando, depois gritando – Póc-póc. Tia Cinira entra e acende a luz. Renato está
batucando e gritando Póc-póc)
Tia Cinira: Que é que foi, Renato?
Renato: Oi, tia Cinira.
Tia Cinira: Que é que tu tas gritando assim?
Renato: Assim como?
Tia Cinira: Assim, oras. Assim como tu tavas gritando.
Renato: Eu tava gritando?
Tia Cinira: Tava.
Renato: Mesmo?
Tia Cinira: Não te faz de bobo. Tu achas que a tia é o quê? Eu sei que tu
não tás bem, mas isso não me impede de brigar contigo, se for necessário.
Monstro: É ou não é?
(Renato sorri por saber que o Monstro ainda está ali)
Renato: Póc-póc?
Tia Cinira: Póc-póc, o quê, ô? Ta debochando da tia?
Renato: Desculpa, tia.
Tia Cinira: Pede desculpa e beija a mão da tia. Não é porque aconteceram
essas coisas que a vida vai ser diferente. Anda, beija a mão da tia.
Renato (beijando a mão da tia e espiando pra ver se encontra o Monstro): Desculpa,
tia.
Tia Cinira: Te comporta, hein? Vou ficar de olho. Eu tenho que descer pra
ficar com a tua mãe. Se tu quiseres eu peço pra alguém ficar aqui contigo.
Renato: Não precisa, tia Cinira. Eu to bem.
Tia Cinira: E eu quero te ver saindo desse quarto. Vai ali ver a luz do dia.
Tomar um ar. Vai te fazer bem
Renato: Ta bom, tia.
Tia Cinira: Te levanta e dá um abraço na tia. (Renato abraça a tia) A tia gosta
muito de ti. Tchau.
(Tia Cinira sai).
Cena 9 – É Ruim ser Rato?
(O Monstro aparece)
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Monstro: Desculpa. Eu fiquei com medo dela.
Renato: A tia Cinira é assim, meio grossa, mas é legal. (pausa) Fiquei
ensaiando o teu nome, mas não teve jeito. Posso te chamar de Póc-póc?
Monstro: Podes, sim. Mas um dia, quando tudo isso passar, tu vais
conseguir falar o meu nome. (pausa) Ócpotoptus.
Renato: Ócpipópus.
Monstro: E um dia tu vais conseguir encostar em mim.
Renato (tenta encostar no monstro, mas desiste): Eu ainda não consigo.
(pausa)
Monstro: Tas melhor?
Renato: Eu ainda sou um rato, né?
Monstro (confirmando): A-hã.
Renato: Como é que eu virei um rato? Outro dia eu tava jogando futebol,
comendo bolo de cenoura, tomando refrigerante e agora eu to assim. Como é que tudo
pode mudar de uma hora pra outra?
Monstro: As coisas mudam. A gente tem que ser forte pra aceitar. (pausa) É
muito ruim ser rato?
Renato: É. Quando a gente é um rato, a gente só quer saber de se esconder.
Eu acho que eu nunca vou me acostumar a ser um rato. Porque eu era o Renato, um
menino que não era um rato. E agora eu sou um rato. E eu queria voltar a ser um menino.
O que é que eu tenho que fazer pra voltar a ser um menino? A minha mãe me disse pra
lavar o rosto e pra tentar sorrir, mas isso não tá funcionando. Eu continuo sendo um rato.
Me ajuda, o que é que eu tenho que fazer pra voltar a ser um menino?
Monstro: Vamos ver... O que é que um menino faz que um rato não faz?
Renato: Come.
Monstro: Um rato também come.
Renato: Deixa eu ver... Anda.
Monstro: E pra que é que servem as patas do rato?
Renato: E xixi? Um rato não faz xixi.
Monstro: Faz.
Renato: Mesmo?
Monstro: Mesmo.
Renato: Mas se for rata mulher não faz.
Monstro: Lógico que faz.
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Renato: Como assim? Por onde se ela não tem pipi?
Monstro: Pelo ... (faz alguns gestos querendo se explicar, mas desiste) Deixa pra lá.
Mas faz sim. Rata também faz xixi.
Renato: Já sei. Fala. Um rato não fala.
Monstro: Não?
Renato: Fala?
Monstro: Tu não tas falando?
Renato: Mas eu sou um menino.
Monstro: Que agora é um rato. Que continua falando.
Renato: Peraí. Um rato tem medo. Um menino não tem medo. E eu to
com tanto medo. Eu to com medo de encostar em ti. Eu to com medo de sair do quarto.
Eu to com medo de não conseguir falar o teu nome. (pausa) Eu to com medo de nunca
mais ver o meu pai.(pausa longa) Por que eu não vi mais o meu pai?
Monstro: Posso chamar alguém?
Renato: O meu pai?
Monstro: Não. Uma amiga.
Renato: Ela é legal?
Monstro: É. É a pessoa mais legal do mundo.
Renato: Então pode.
(Fada entra).
Cena 10 – Traz o Meu Pai de Volta
Renato: Ela é igual à minha mãe!
Monstro: Explica pra ela.
Renato (para a Fada): Eu era um menino. Mas o papai não voltou. Daí eu
virei um rato. E a minha mãe disse que era pra eu lavar o rosto e veio aquele sapo ali (aponta
pro mural) e lavou o meu rosto mas eu continuei sendo um rato. Daí a minha mãe voltou e
disse que tinha umas amigas dela ali que queriam me ver e disse que era pra eu sorrir mas
quando eu pensei em sorrir veio um sorriso igual aquele ali (aponta pro mural) e eu achei ele
muito chato e eu vi que só ficar rindo também não ia me fazer voltar a ser um menino. E
daí que tá aqui comigo o Óquipopópus que eu gosto muito mas ele também não me ajudou
a voltar a ser o Renato. (pausa longa) E eu to com medo de tudo. E eu não quero mais ter
medo. (pausa) Tu podes trazer o meu pai de volta?
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Fada: Eu queria poder. Mas isso ninguém consegue.
Renato: E por quê?
Fada: Porque as pessoas têm que seguir o caminho delas. Elas ficam com a
gente, mas chega uma hora que elas têm que ir embora.
Renato: O Oquipopópto não, né? Ele vai ficar pra sempre comigo (abraça o
Monstro).
Monstro: Renato, tu tás encostando em mim (Renato olha o que está fazendo e
abraça o Monstro com mais força).
Fada: Ele também tem que ir.
Renato: E por que que eu to com medo disso? Por que que quando tu falas
assim eu sinto um aperto tão grande aqui?
Fada: Porque quando a gente não consegue entender uma coisa, aquilo fica
machucando dentro da gente.
Renato: E eu vou conseguir entender isso tudo que tá acontecendo?
Fada: Tu vais entender que tem coisas na vida que a gente tem que aceitar.
Renato: O meu pai não vai mais voltar, né?
Fada: Não. Ele não vai mais voltar. Mas tu vais te lembrar dele sempre.
Monstro: Agora eu tenho que ir.
Renato: Tens que ir mesmo? Tem alguma coisa que eu posso fazer pra que
tu fiques?
Fada: Renato, tu não podes fazer nada. O Ócpotóptus tem que ir embora.
Monstro (para Renato): Tu vais te lembrar de mim?
Renato: Vou. Sempre.
Monstro: A gente fez tanta coisa junto, né?
Renato: É.
Monstro: E foi tão legal.
Renato: Foi, sim.
Fada: Renato, o que é que tu querias?
Renato: Eu queria deixar de ser rato.
Fada: Quando o Monstro aí e eu sairmos tu vais ter medo de ficar sozinho?
Renato: Eu vou sentir saudades. Mas acho que eu não vou ter medo.
Monstro (para Renato): Eu quero te mostrar uma coisa.
Renato: Ali fora?
Monstro: A-hã. Tu já podes sair da toca.
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(Monstro e Renato passeiam por entre os painéis. Monstro fala para Renato: ‘A gente
não precisa ter medo. Tas vendo? A gente não precisa ter medo’. A Fada fica sozinha em cena)
(Monstro e Renato voltam.)
Monstro: Viu? Tu vais ficar bem. Não é?
Renato (sem muita convicção): É.
Monstro (perguntando): É ou não é?
Renato (um pouco mais firme): É.
Monstro: É ou não é?
Renato (entendendo e rindo): É. É, sim.
Monstro: Então é tua vez. E agora tu vais sozinho.
Renato: Ali atrás?
Monstro: U-hum.
Renato: Sozinho?
Monstro: U-hum.
Renato: Eu não sei se eu consigo.
Monstro: Consegues, sim, Renato. Consegues, sim.
Fada: Eu posso cantar uma música pra ti.
(Fada enquanto canta, fica dançando sozinha. Renato caminha entre os painéis. Fada
sai. Renato volta).
Renato: Cadê a Fada?
Monstro: Ela saiu.
Renato: Ela era legal. (para o Monstro) Eu vou sentir saudades de ti. E eu
vou sentir saudades do papai. Mas eu não tenho mais medo. Eu não tenho mais medo de
saber que a gente não vai mais se ver. E eu nem tenho mais medo de ir ali atrás.
Monstro: Eu sei.
Renato: Eu fui ali atrás sozinho. Nem era tão ruim assim.
Monstro: Viu?
Renato: Um rato tem muito medo, né?
Monstro: U-hum.
Renato: Eu não tenho mais medo.
(Monstro sorri)
Renato: Posso ir de novo?
Monstro: Pode.
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(Renato passeia novamente entre os painéis, muito mais confiante. Enquanto passeia, tira
os adereços que o caracterizavam como um rato)
Renato: Tem um monte de cores ali. E o céu ta bem azul. E tem umas
crianças jogando futebol. E o jardim ta verde. E tem um monte de árvores.
Monstro: Olha pra ti. (Renato percebe que não é mais um rato)
Renato: Eu não sou mais um rato!!! Ócpotoptus, eu voltei a ser o Renato!
Monstro (dando-se conta de que Renato acertou o seu nome): Como?
Renato: Eu não sou mais um rato.
Monstro: Como é que tu me chamaste?
Renato: Ócpotopus.
(Monstro abraça Renato)
Monstro: Agora eu tenho que ir.
Renato: Eu sei. Podes ir. Eu vou ficar bem. (pausa) Eu vou sentir saudades
de ti.
Monstro: Eu também vou sentir saudades de ti, Renato. Se algum dia tu
ficares com medo, olha pro teu quarto e lembra de mim.
(Mãe entra, mas não vê o Monstro. Monstro sai lentamente)
Cena 11 – Final
Mãe (para Renato): A mamãe te ama. E tudo vai ficar bem. Amanhã a gente
acorda e toma um café da manhã gostoso e depois tu vais pra escola porque aquela
professora de quem tu tanto gostas já ligou aqui perguntando por ti. E depois tu podes
jogar futebol com os teus amigos. Que tal?
Renato: (balança a cabeça afirmativamente) Mãe, eu sou um menino.
Mãe: Eu sei, meu amor.
Renato (olhando para o Monstro, que está saindo): Eu nunca vou conseguir
entender porque o papai teve que ir. E eu sei que ele nunca vai voltar. Mas eu sempre vou
amar muito ele. Porque as coisas são assim, né?
Mãe: É.
Renato (se despedindo do Monstro): É ou não é?
Mãe: É, meu amor. As coisas são assim. A gente tem que aceitar.
Renato: É ou não é?
Mãe: É, meu amor. As coisas são assim.
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Renato: E eu to bem, porque eu sou um menino. E é legal ser um menino
de novo.
FIM
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