Três Poemas da Saudade (Poemas, 1943)

Transcrição

Três Poemas da Saudade (Poemas, 1943)
JOSÉ DE MESQUITA
José de Mesquita
Do Instituto Histórico e da Academia
Mattogrossense de Letras
Três Poemas
da Saudade
José Barnabé de Mesquita
(*10/03/1892 †22/06/1961)
Cuiabá - Mato Grosso
Biblioteca Virtual José de Mesquita
http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm
CUIABÁ
Escolas Profissionais Salesianas
1943
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TRES POEMAS DA SAUDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ÍNDICE
I - Flores de lágrimas sobre uma flor...
II - EXUMAÇÃO
III - O POEMA DA AUSENTE
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De Donana mais Viva ainda
depois de morta.
José de Mesquita
1 – 5 - 1943
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TRES POEMAS DA SAUDADE
JOSÉ DE MESQUITA
I
Flores de lágrimas sobre uma flor...
Exprimem estes três poemas, três estados
emocionais, oriundos do sentimento paterno,
filial e conjugal, ferido por três golpes dolorosos,
reuni-os, como si reunisse — si é isso possível —
pedaços duma alma lacerada, retalhos, ainda
sangrando, de um coração partido...
(Recordação de meu Filho, Antonio Herculano)
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TRES POEMAS DA SAUDADE
AGORA que já te não vejo é que sinto o quanto me era
agradável te ver e lastimo o tempo dispêndido, que poderia ter
utilizado junto de ti. Quando, porém, pensaria que tão rápida
fosse tua passagem pelo mundo? Um mês apenas, trinta dias,
dum trinta a outro, durou a tua vida. De 30 de dezembro de
1926 a 30 de janeiro de 1927 — do penúltimo dia de um ano
que morria ao começo do outro ano que nascia... Na nossa
alma, entretanto, viveste e vives ainda como si houvesses vivido
um século de intensidade.
NADA aproxima, auna e funde a gente, pelo espírito, como as
duras horas de sofrimento passadas juntos. Ó como são
efêmeras as ligações que o gozo, a volúpia ou as conveniências
estabelecem! E como são duradouras as afeições que têm a
cimentá-las a dor de uma perda irreparável, sentida em comum!
ESTOU a ver a hora precisa em que deixaste a vida terrena.
Tua pobre Mãe fôra deitar-se um pouco, exausta da luta de
várias noites mal dormidas. Após o batismo, que se efetuou às
vinte e três horas e quinze, continuaste no colo da tua tia e
madrinha, em que desde cedo te conservavas. Entraste a ofegar
ligeiramente, mais curta a respiraçãosinha, a boca húmida
entreaberta, semicerrados os olhos. O resto, já não bulia. Com
pouco, tudo se foi serenando, na grande pacificação. O médico,
teu tio e padrinho, toma-te o pulso, que já fugia. Busca-te o
latejar da carótida, falhando. Ouve o bater do coração, já num
lento apagar de motor.
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JOSÉ DE MESQUITA
A maquinasinha parava. Adormeciam-lhe todas as peças, sem a
alma, que se ausentava, rumo ao Céu donde viera. Momentos
infinitos, que valem milênios de ansiedade e de dor! O médico
retira a mão de sobre o teu peito, olha-nos e me diz, a mim,
inclinado, quasi de joelhos, atrás da rede: — Morreu! E eu
beijo, longamente, aquele cadáver, que fôra um lindo sonho,
tão depressa acabado...
APALPO-TE a testa, fria, fria, as mãositas cruzadas, na grande
prece derradeira... deito-me ao teu lado, na grande cama de
casados, onde te colocaram. O travesseiro em que repousaste a
cabeça, e que conservo, como urna relíquia, era também frio, de
gelo. Que sensação impressionante a desse frio da morte, que
até hoje, até agora, ainda sinto nas minhas mãos e nos meus
lábios!
MORRESTE, Antonio, quasi oito anos depois, á mesma hora
que Agenor, cinco minutos para meia noite. Com a diferença
que, quando o teu irmão se foi, eu tinha ido repousar um pouco
e não vi a sua decolagem para a Eternidade, e somente o
carinho materno o assistiu no transe supremo. Contigo, foi
justamente o contrário, e assim o quis a Providência, sempre
certa em suas determinações, pois, si naquela ocasião eu me
encontrava doente e nervoso, agora tua Mãe, convalescendo
apenas de grave moléstia, não deveria presenciar tão dura cena.
Deus assim faz tudo pela melhor e até ao nos ferir, é ainda com
a mão de Pai que castiga e prova.
TENHO a impressão de que sofri mais com a tua do que com a
morte do Agenor e da Yvette, tua irmãzinha que ficou no Rio.
Será assim mesmo? Talvez não. O padecer é igual, mas eu é
que já me encontro mais fraco, mais cansado, menos capaz de
reagir contra a dor...
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TRES POEMAS DA SAUDADE
JOSÉ DE MESQUITA
O quarto onde passaste os últimos quinze dias — metade da tua
existência — está cheio, povoado de recordações. Aqui, a rede
onde me deito, é donde te evolaste. Ali, no nosso leito de casal,
te revejo a cada instante, como era costume ficares, no meio,
cercado de travesseiros, as perninhas cruzadas, dormindo
calmamente. No pau-da-cama, pendurada, ainda, a tua chupeta.
Por aqui, por ali, peças do teu enxovalzinho, de que bem pouca
coisa chegaste a usar... No ar, esse vago aroma, trescalando a
alfazema e sabão de cheiro, à hora do teu banho. E sobre o
criado-mudo, no armarinho da parede, pelo escritório, por toda
a parte, remédios, cataplasmas, ampolas vazias, algodão, todo
esse arsenal de artigos da luta contra a morte, inútil, perdido,
impotente, a atestar a falência dos recursos humanos, quando
não os socorre a medicina do alto, a vontade de Deus!
buscou. Yvette, ao contrário, teve o fadário de, nascendo onde
morreste, ir morrer na casa dos que te viram nascer. A vida tem
desses caprichos desconcertantes, semelhanças ou antinomias
de destinos que se completam...
ANTONIO HERCULANO... Nome sonoro, belo, cheio de
evocações e esperanças! Quanto fazia antever de glórias,
aspirações, anseios de futuro! E tão pequenino te foste, mas o
teu nome, grande como a nossa Saudade, ficará cantando dentro
da nossa alma, para todo o sempre, o ritmo dos sonhos que nos
fizeste sonhar!
— “ELE volta. Ele vai voltar” ... diz todos os dias a Lourdes, a
irmãzinha que parece mais perto de ti, pela idade, e que parece
mais vivamente lembrar-se do Desaparecido. Ai de nós! porém,
ele não voltará. Nós, sim, é que iremos, mais cedo ou mais
tarde, para onde ele foi.
Ó nunca me esquecerei a hora em que aqui chegaste. Foi já ao
escurecerzinho. Na alegria de que todos te cercamos, qualquer
coisa me apertou o coração, mordido de secreto pressentimento.
Essa noite já não dormiste. Era o começo do mal. Pobrezinho!
Duas semanas justas viveste em nosso lar. Vidinha tão curta,
mas tão pontilhada de episódios, como para mais ao vivo se
gravar em nossa memória.
LÁ dormes, na plácida mansão da Piedade, na “ outra casa” da
nossa gente, na casa definitiva, junto dos nossos que lá
repousam. São já seis pessoas — a família de lá vai
aumentando, quasi já iguala à daqui de fora. De sete filhos, três
Deus nos levou. Tributo um pouco pesado, mas, ainda assim,
abençôo-lhe a mão que me magoa, pois outros sofrem mais e
quem sabe? eu mereceria
sofrer muito mais ainda! Bendito seja o Senhor que, embora
para ma tirar, me deu esta alegria de possuir-te por uns dias!
FOSTE o único que não nasceu em nossa casa. Tiveste a vida
repartida, por igual, em dois períodos curtos, de uma quinzena
cada um: o primeiro, na casa dos teus avós, onde nasceste; o
outro, aqui, donde Deus te
UMA circunstância a notar, no dia em que te foste, foi a
extraordinária profusão de flores, principalmente rosas, que
deram para cobrir-te todo o caixãozinho, e formar inúmeros
ramos, coroas enormes e lindas. Á hora do saimento, cada
menina, cada moça levava um ramo de rosas. Dir-se-ia que a
Natureza timbrou, em época de chuvas e invernia como é esta,
em dar uma enchente floral, uma inundação primaveril de
beleza e viço, para o dia em que feneceu a flor de nossa casa.
Por uma flor que se foi para dentro da terra, quantas
desabrocharam, sobre a terra, naquele dia!
(30-1-1927)
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TRES POEMAS DA SAUDADE
JOSÉ DE MESQUITA
II
EU vi a realidade humana, a triste, pungente, desoladora
realidade. Para os que fazem confinar a vida na simples
materialidade, que vai do abrir ao fechar os olhos neste mundo,
a realidade suprema é aquilo que vi, sob a terra, naquela cena
dolorosa que me foi dado presenciar.
EXUMAÇÃO
(Á memória de minha Mãe, Maria de Cerqueira
Mesquita)
SOL a pino. Dia lindo, vernal, maravilhoso. Nas alturas da
Piedade, esplanada magnífica donde, como dum belveder
admirável, os mortos nos contemplam. Nós dois — eu e um
velho amigo, um amigo querido, dos bons e dos maus dias — e
dois coveiros, que trabalhavam na tarefa melancólica de pedir á
terra o deposito que lhe fôra confiado. Primeiro a enxada,
escavando, cortando fundo o ventre maternal da terra — ventre
donde tudo sai e para onde tudo volta. Atingida a profundidade
dos sete palmos — limite último de todas as grandezas e
aspirações humanas — já era com uma simples colher de
pedreiro e, por fim, á mão, que vagarosamente, ia sendo feito o
serviço... Garimpagem estranha, macabro lavrar de urna gleba
onde se plantara um corpo e donde se vai colher, anos após, um
punhado de ossos e de cinzas...
EIS-NOS chegados ao fim da triste e piedosa tarefa. De tudo o
que tu foste, ó minha Mãe, na tua objetividade, na tua
materialidade, resta isso que aí está nessa urna, grande demais
para acolher-te. (Não fôras tu, como foste, tão dadivosa, liberal
e magnânima, que converteste a tua casa em “Casa de S.
Francisco” ,
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TRES POEMAS DA SAUDADE
como costumavas dizer...) Alguns ossos, que mais parecem
raízes, que já vão tomando formas vegetais, escuros,
filamentados, de aspecto quasi irreconhecível. E o mais, terra,
humo, pó, tirante a cinza, urna terra um pouco mais escura que
a da terra, uma terra que foi vida, que foi forma humana, que
foi um rosto, que sorria e chorava, que foi umas mãos que se
ergueram para me abençoar e me guiar os passos, que foi um
colo macio em que me recostei, que foi uns joelhos a cujo
contacto aprendi a rezar, terra que foi a minha nascente, o elo
que me liga às gerações que nos precederam e donde bebi o
leite que nutre, o amor que dá vida e a fé suprema que
conforta... E agora, eis a que se reduz tudo isso — à terra, à
poeira, a alguns ossos irreconhecíveis e à urna pouca de cinza...
nada mais...
FRANCISCO DE BORJA, ante o cadáver de Izabel, não teria
tido maior nem mais funda comoção, pos to houvesse decidido
aquele momento da sua vida e do seu destino. A minha emoção
tem por que ser muito maior. Ele via a sua imperatriz, eu vejo a
minha Mãe. Via ele um corpo inanimado, mas ainda na sua
forma humana, guardando, na antecâmara da Morte, os restos
do esplendor da Beleza, prestes a decompor-se, mas ainda
composta. Eu, ao invés, o que vejo não é sombra do que foi, em
nada me evoca o que era, conquanto, com clareza espantosa e
impressionante, esteja a me dizer o que, em breve, serei. Borja
comoveu-se por ver que as majestades e as grandezas da terra
se acabam na podridão e no inânime do cara data vermibus. A
mim me estatela e quasi me sidéra o contemplar estes despojos,
este “quasi nada” em que nem aspectos humanos lobrigo e que
foi, entretanto, não há muito, uma criatura, boa, sofredora, terna
e desvelada, aquela que me deu o ser, que me educou na escola
incomparável da fé e do sofrimento, que foi a sua própria vida,
a sua dolorosa peregrinação de cinqüenta a-
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JOSÉ DE MESQUITA
nos por este vale de prantos... Onde Borja via o esplendor da
realeza, apagado na opacidade do cadáver, eu — ai de mim!
vejo toda beleza espiritual do amor materno, a feição mística de
uma doce mártir, dos mais dolorosos martírios, convertida em
pó escuro, na cinza em que, no rigor da expressão, todos nos
converteremos um dia. Et in pulvis reverteris. . .
AQUELE recanto de cemitério, em pleno sol quasi merídio, foi
para mim, no transe augusto daquela hora, como que uma
escarpa do Infinito... Aquela chaga enorme aberta na terra-mãe,
para dali tirar a minha mãe feita terra, foi uma viva, incurável,
profunda chaga no meu coração, chaga que sinto perene e que
não mais se cicatrizará. Aquela exumação, que Deus me
permitiu assistisse, quinze anos após haver-te entregue à terra,
foi um exumar a mim mesmo, foi um recompor o meu passado
morto e já puros despojos do que fui... Porque nós não somos
jamais o que já fomos. Cada dia não se parece com o dia que
foi nem com o que há de vir. Ninguém é hoje o que foi ontem,
nem o que será no dia de amanhã. Mas, um dia, todos seremos
iguais, dessa única igualdade niveladora, dessa fraternidade
suprema — superior a todas as doutrinas falaciosas — que é a
dos corpos dormindo sob o limo pacífico o grande sono
libertador...
QUINZE anos quasi que te foste. Eu tinha, então, trinta anos...
A vida vai assim dobrando suas etapas, alongando seus termos,
fincando mais longe os seus marcos. E me recordo quando eu
tinha a frescura e a primaveril beleza dos meus primeiros anos e
tu, nas tuas vestes de viúva, moça ainda, me apareces, como
uma visão «feita só de perdão, só de ternura» ... e, mais tarde,
me vejo, quando tinha 15 anos, nas vésperas de deixar-te,
adolescente e sonhador, e os conselhos
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TRES POEMAS DA SAUDADE
JOSÉ DE MESQUITA
que me davas ali na “ salinha de santo” e aquele último abraço
cheio de todo o calor humano do maior dos amores... e mais
tarde, ao regressar, já te achando doente, combalida, e o drama
daqueles últimos anos de padecimentos, desfechado na tua
partida, em noite tenebrosa, evolando-se-te o espírito, como o
de Jesus, no meio do fragor dos raios e do rumor dos trovões...
AI DE NÓS, ai de mim, si tudo fosse o que ali vi, naquelas
relíquias do que foste, ó minha pobre Mãe! Ai de mim, ai de
nós todos, si, acima da matéria, não sentíssemos fulgir,
resplandecente e eterno o espírito, que sobrevive e que, na
nossa crença, há de vir, no dia da ressurreição da carne, juntarse ao que foi o seu corpo natural, para a glória ou para o castigo
eterno!
VOLVE para junto dos teus, de que estavas, por circunstâncias
do momento, apartada. Durmam, na paz do Senhor, os teus
restos perto dos do teu companheiro da mocidade, dos teus
netinhos queridos, dois dos quais te precederam na grande
viagem e sentindo ao teu lado a presença das tuas amigas,
talvez das maiores amigas que ti vestes e que ali repousam no
mesmo leito. E possa eu volver para o pé de ti ao teu regaço
amado donde procedo, no seio da terra, mãe comum e amorosa,
que tudo nos dá, embora nos tome depois a ilusão das
aparências e das formas passageiras. Dorme em paz na nossa
casa e que ao chegar ali, onde todos nos encontraremos, não
me desconheças, não tenhas porquê me repudiar, que eu seja o
filho que educaste na religião da bondade que cria e do amor
que purifica, para que, juntos aos teus, os meus ossos possam
ainda, um dia, «palpitar de amor dentro da terra...»
(27 - 10 - 1936).
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III
O POEMA DA AUSENTE
Da tua dor faze um poema (Goethe).
(Na morte de minha Esposa, Donana,
Ana Jacintha de Mesquita)
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TRES POEMAS DA SAUDADE
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II
FOI numa noite suave de abril, tépida e luminosa, que eu te
trouxe para esta casa, que ficou sendo tua, e de que agora te
afastas, deixando-a imersa nas trevas do luto mais pesado, e
desde aquela noite até esta manhã, cada dia e cada hora que
corria, eu sentia, na tua presença, a alma viva e jocunda do
nosso lar...
I
E ao cabo de três dias te vimos ausentar-te para sempre de
nós... Partiste nessa clara manhã, em que maio alvorecia, como
si o céu, mais belo e mais radioso, se abrisse para te receber,
coroada pelas palmas da Crença, da Resignação e do Martírio.
TODA a noite fora de luta e luta brava... Tu, porém, levaste até
o fim aquela confiança simples, que foi o mais lindo apanágio
da tua alma: confiante na vida que te iludiu, esperavas, já nos
últimos momentos, a volta da saúde, fosse por um milagre, com
que Deus podia, mas não quis, premiar a tua Fé...
OSTENTAVAS, na veste cândida, nas flores da grinalda, no
véu virginal, as primícias do coração reservadas ao teu eleito...
e tão confiante e simples, no róseo abrir da tua adolescência,
trazias-me, na tua alma e no teu coração, o jardim misterioso de
que brotariam as flores e os frutos, hoje amadurecidos, do
nosso amor.
BEM diferente o teu regresso, bem outra te vejo voltar e, no
entretanto, a mesma! Em vez das alvas flores de outrora, são
rosas, rosas e mais rosas — o roseiral de sangue, em que se
esvaiu a tua vida... a te encobrirem toda, e sobre as vestes
escuras, o véu azul, cor dessa saudade, que se conforta com as
esperanças do céu...
SIMPLES, confiante e boa — si defeito te pudessem argüir,
seria o de seres boa demais... — te agarravas à vida, que para ti
éramos nós, e ainda sinto as tuas mãos geladas premendo as
minhas, num transporte a que davas outro sentido, mas que —
ai de mim! — bem percebia ser o do extremo vale...
VAIS para junto dos nossos, que se foram... pais, filhos,
queridos mortos-vivos e ficamos nós, vivos-mortos, privados do
teu carinho, da tua assistência e do teu zelo, que se afadigou em
extremos, enquanto te pulsava o coração...
ESSAS mãos, que ao pé do Altar se cruzaram com as minhas, e
cruzadas ficaram, no correr de longos vinte e sete anos, pais
nem uma só vez, em momentos de alegria ou em dias de
angústia, deixaram de se estender, confortadoras, amparando a
minha perplexidade, a minha fraqueza, o meu desvario...
ESSE coração que se esfalfou por nós... que viveu da minha
vida, exultou com as minhas vitórias nas liças do Bem e do
Direito e que sangrava, por primeiro, de cada vez que contra o
meu se desferiam as punhaladas da injustiça e da calúnia... —
coração de esposa,
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TRES POEMAS DA SAUDADE
JOSÉ DE MESQUITA
mas, acima de tudo, coração de mãe, que me soubeste ser, pois
no amor materno está a suprema finalidade e dignificação da
mulher.
IV
III
MÃOS piedosas te acabam de levar... E, sozinho, neste mixto
de viuvez e de orfandade, penso em ti. .. Não acreditavas neste
desfecho, esperaste, até o fim, a intervenção do Sobrenatural,
que viesse salvar-te, como já uma vez te salvara, mas, na tua
conformidade cristã, não recusaste o cálice da amargura e nem
uma vez, a tua boca, que se abria, dia e noite, para a prece, se
maculou, de leve sequer, com as palavras da acrimônia e da
revolta...
“ NÃO agüento, filho! “ — foi só o que, nos instantes mais
atrozes dessa agonia lenta de três dias e noites, que encerrou os
teus longos três anos de suplício, disseste, num gemido... mas o
Perfeito — Homem que era, sendo Deus — teve também, no
seu Horto, palavras semelhantes, confessando a fragilidade da
carne, que vestira por nosso amor, bem que, para te servir de
exemplo, se curvasse ante a Soberana Vontade...
PARTISTE murmurando o nome de Jesus, entrelaçado ao meu
— a jaculatória dos teus Amores celeste e humano — que
selou, para todo o sempre, os teus lábios... e ainda sinto a
pressão das tuas mãos, de que, há dias,o calor da vida
desertara... e ouço a tua voz que, de tão forte, debílima se
fizera, a sussurrar os nomes bem queridos... e vejo e verei, sem
dúvida, para sempre, o teu coração a palpitar
desordenadamente, com violência estranha, porque era o que
tinhas de mais resistente, o órgão da Bondade e do Amor...
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CONFIASTE na vida e ela te traiu... esperaste na ciência, que
tudo fez pelas mãos fraternas, cuja dedicação não teve limites
nem reservas... mas a Ciência, com todos os recursos possíveis
que se envidaram, também se mostrou ineficiente... Acreditaste
que o nosso desvelo te pudesse salvar, mas toda a cadeia de
afetos, que te cercava, quebrou-se diante da força superior do
Destino ou, melhor, da Suprema Lei.
SOMENTE não te faltou Aquele que nunca falta, que nunca
nos abandona, mesmo quando nós o abandonamos, o Único, o
Verdadeiro, o Amigo, que quatro dias antes descera ao teu seio,
sublime maná, que te iria fortalecer no rude combate... e que, a
esta hora, deve engrinaldar o teu martírio com os louros da
imortalidade...
FOI ÊLE, o Bom Jesus, quem te levou... à hora mesma em
que, no seu altar, a Hóstia Santa se erguia para o Sacrifício, tu
consumavas o grande sacrifício da tua vida... porque a verdade
é que tu querias ficar conosco, (e com que ânsia se apegavam as
tuas mãos às minhas, como si fossem um salva vidas no
naufrágio...) mas te foste, resignada e confiante, para que se
cumprisse em ti a palavra eterna «porém não se faça a minha
vontade, sinão a Tua.»
E com Ele, o nosso Divino Patrono, veio buscar-te a sua Mãe, e
tua, a Virgem do Perpétuo Socorro, a quem exoravas nas tuas
mudas angustias, no teu longo e discreto padecer, horas e horas,
calada e sozinha, desfiando as contas do teu Rosário, em que
havia quasi só mistérios dolorosos, que apenas Deus e eu — um
pouco — lograrmos conhecer...
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TRES POEMAS DA SAUDADE
E assim te foste, ó doce Ausente, presente sempre no culto
doloroso da nossa Saudade, que vai queimando as fibras
d’alma, como aquele incenso que perfumava a tua câmara
mortuária, erigida justamente onde fôra outrora o ninho feliz do
nosso epitalámio...
E te foste, mas ficaste e ficarás sempre, na lembrança de
quantos te conheceram e estimaram, simples, confiante,
resignada e boa... e viverás principalmente nesta dulia intima
que te devotamos, e que só morrerá conosco, por que decorre
da tua bondade, reflexo da Bondade Divina, a única força a
que tudo vence, a tua Força, Força com que se vence a vida e
se consegue vencer a própria Morte!
(1 – 5 – 1942)
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