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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.744
É RAÇA OU ESPÉCIE? A ANATOMIA, A FISIOLOGIA E A CLASSIFICAÇÃO
ZOOLÓGICA NA AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII
Rafael Dias da Silva Campos (Graduando);
Christian Fausto Moraes dos Santos (docente, doutor);
Eulália Maria Aparecida Moraes (docente, doutora)
INTRODUÇÃO
A memória que possuímos do século XVIII é a de um período de Luzes, de reflexão,
onde a busca científica marcou definitivamente a forma de ver e de viver o mundo e onde a
filosofia solapou antigos paradigmas excludentes. Certamente o XVIII foi isso, mas não só.
Sua história esteve permeada de outras filosofias e perspectivas científicas que hoje podem ser
repensadas tendo em vista o conturbado contexto do momento.
Durante o século XVIII o mundo viu aflorar uma infinidade de discussões filosóficas
que se baseavam na visão européia de mundo e que açambarcou tanto o campo teológico,
quanto o laico. Naquele período, mesmo com uma crescente crítica contra a interferência do
religioso no mundo secular, este universo eivava a ciência com seus valores apriorísticos.
Essa contradição permitiu que ao mesmo tempo, pensadores criticassem interferências de um
campo em outro e ainda assim agradecessem a Deus, ou mesmo se valessem do velho
testamento para produzir seus conhecimentos. Seria dizer que o universo religioso era também
científico (vise-versa), e não enquanto objeto de análise, mas como elemento do
conhecimento.
É necessário ressaltar este ponto, pois a visão que acabamos construindo do século
XVIII foi a de um período de “ciência pura” sem a interferência religiosa, mas não foi assim,
muito pelo contrário: essa relação ambígua contribuiu, por exemplo, para a reafirmação de
valores raciais, que estudaremos profundamente mais à frente. A plêiade de cientistas
setecentistas não deixou de ressaltar a grandiosidade da obra divina na formação das rochas e
vegetação, na cristalização mineral etc., na diferenciação dos seres enfim.
Mas as revoluções científicas engendradas no período não conseguiram reverter
completamente o caráter social que se tinha antes. Deste modo, integrou-se ao Iluminismo
uma filosofia antiga que passava naquele momento por uma adaptação cristã a seus preceitos.
A Cadeia do Ser, como ficou conhecida, estava amplamente difundida no pensamento do
homem do século XVIII. Nomes como Buffon, Linnaeus1, Diderot, D’Alembert, Bonnet,
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Trembley, Rousseau, Thomson, Pope, Bolingbroke, Haller, Akenside, Kant, Herder, Addison,
King, Goldshimith, Charles White, Lambert, Schiller ou em séculos anteriores por John
Locke, Leibniz, Edward Tyson, todos partilhavam dos conceitos e quadro ideológico da teoria
da Cadeia do Ser.
Ela era uma teoria formacionista antes do evolucionismo de Darwin e Wallace; via
uma evolução contínua das espécies, uma evolução linear e unidirecional ascendente, ou seja,
do ser mais imperfeito se evoluiria numa única direção e sempre para o mais perfeito. Charles
White é bastante claro nestes termos, ele diz:
Ascending the line of gradation, we come at last to the white European; who being
most removed from the brute creation, may, on that account, be considered as the
most beautiful of the human race. No one will doubt his superiority in intellectual
powers; and I believe it will be found that his capacity is naturally superior also to
that of every other man2 (WHITE, 1799: 134-135).
Em outras palavras, o europeu seria o último e mais avançado ser na escala das
espécies terrenas, abaixo apenas dos anjos, arcanjos e afins. Percebamos, porém, que White
fala em homens no plural, pois havia diversas espécies parecidas com os humanos verdadeiros
(os europeus). O papel da ciência era, portanto, encontrar as mínimas características de cada
ser para classificá-los neste emaranhado de gradações. O conde de Buffon emitiu seu parecer
no conhecido Histoire Naturelle. Ele diz:
… on peut descendre par des degrés presqu’insensibles, de la créature la plus
parfaite jusqu’à la matière la plus informe, de l’animal le mieux organisé jusqu’au
minéral le plus brut […] ces nuances imperceptibles sont le grand œuvre de la
Nature…
Mais la Nature marche par des gradations inconnues, & par conséquent elle ne peut
pas se prêter totalement à ces divisions, puisqu’elle passe d’une espèce à une autre
espèce, & souvent d’un genre à un autre genre, par des nuances imperceptibles; de
sorte qu’il se trouve un grand nombre d’espèces moyennes & d’objets mi-partis
qu’on ne sçait où placer, & qui dérangent nécessairement le projet du système
général3… (Buffon, 1749: 12-13).
E não só os intelectuais, mas a teoria também era amplamente difundida no seio da
população comum. Keith Thomas analisou a tradição mitológica popular européia e concluiu
que “na avaliação popular o homem não era uma espécie tão distinta a ponto de não poder
cruzar com os animais” (THOMAS, 1988: 162).
Já Arthur Lovejoy relata a expressão
popular pelas palavras de uma senhora da alta sociedade em 1710 (LOVEJOY, 2005: 190).
Em resumo a Cadeia do Ser estava completamente difundida no período e seria praticamente
impossível a construção de alguma idéia científica sem se valer dela.
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Como a teoria propunha uma linha contínua na evolução das espécies, ela se pautava
na idéia de que não havia processo de adaptação ou, de outro modo, não se aceitava a idéia de
transformação das espécies4; o mundo teria sido criado por Deus que colocou cada ser em seu
devido lugar na escada evolutiva5. Querer repensar essa lógica seria ultrajante, posto que
rechaçaria os desígnios divinos e por conseguinte, ainda nesta linha, a igualdade era algo
relativo, pois cada qual em seu lugar, as diferenças deveriam ser valorizadas e defendidas,
mas não criticadas. A implicação, óbvia, desta perspectiva levava a uma razão conformista,
pois “procurar abandonar seu próprio lugar na sociedade é também ‘inverter as leis da
Ordem’. […] qualquer exigência de equidade é, em suma, ‘contrária à natureza’” (Ibdem:
205), para ser mais claro, seria contrariar os desígnios que Deus postulou para os seres. A
cadeia do ser presumia “que todos os outros seres criados existiam para o bem do homem”
(Ibdem: 185).
Tendo notado a inserção da teoria da Cadeia do Ser e seu preceito formacionista, é
preciso questionar: como se fazia ciência no período? Essa questão adquire relevo ainda maior
se nos lembrarmos que diversas destas áreas, que recebiam a alcunha de ciências naturais, são
hoje ciências independentes. Havia uma diferença fundamental quanto a nosso modelo de
ciência: as respostas não eram o ponto de chegada daqueles homens, mas sim o ponto de
partida de suas análises. Baseados em Deus, muitos naturalistas revelaram inovações,
apoiados pela idéia de superioridade branca descobriram, por exemplo, diversas
especificidades na anatomia humana, mas de todo modo a hipótese não existia, havia uma
certeza que precisava apenas ser validada, o fim já era conhecido, faltava somente o caminho
que os ligava. Deste modo, Lovejoy explica que
cada descoberta de uma nova forma poderia ser considerada não como o
descobrimento de uma fato adicional isolado na natureza, mas como um passo na
direção de se completar uma estrutura sistemática cujo plano geral era conhecido
antecipadamente, uma peça adicional da prova empírica da verdade do esquema de
coisas amplamente aceito e estimado. Assim, a teoria da Cadeia do Ser […] teve
sobre a história natural desse período um efeito um tanto similar ao que a tabela
periódica dos elementos e seus pesos atômicos têm tido sobre a pesquisa química no
último meio século (2005: 231-232).
Portanto, a ciência do período não se relaciona diametralmente com nossa idéia de
ciência, pois os valores sociais eram componentes fundamentais para a produção de seus
saberes. Em uma palavra, se hoje tentamos evitar tantas interferências, naquele período a
valorização contrariava nossa idéia de isonomia.
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No caso específico de um mundo que discutia sua origem, que não conseguia
compreender que tipo de animal eram uma baleia ou uma porífera (esponja) esses valores
cumpriam o papel de formar o saber, de permitir o conhecimento. Num universo animal
difuso, a resposta unidirecional e ascendente era algo tranqüilizador e reconfortante para os
europeus.
Das mais diversas áreas, entre a geografia e a fisiologia, passando pela filosofia, a
Cadeia do Ser era, portanto, utilizada seja para assegurar veracidade, refutar idéias ou
reafirmar certezas; enfim, era uma “verdade” usada para dizer outras “verdades”. Foi
Linnaeus no hoje clássico Systema Naturae quem criou uma escala de funções
morfofisiológicas permitindo enquadrar num mesmo grupo espécies aparentemente diferentes
(como os mamíferos baleia e morcego). Até hoje o sistema de Linnaeus é usado. Todavia, se
pensássemos que a Cadeia do Ser relacionava-se apenas com os seres da natureza seria um
problema menos grave, mas ela também pautou a compreensão das diferenças, que hoje
denominamos, interétnicas.
Distante de hoje que pensamos em uma espécie humana com diversas etnias, no século
XVIII os não europeus eram tidos como que espécies diferentes e inferiores. Jenyns afirma
que:
… Desse grau mais baixo do brutal hotentote [família de grupos étnicos existentes
na região sudoeste de África], a razão, com a assistência do conhecimento e da
ciência, avança, através dos vários estágios do entendimento humanos que se elevam
uns sobre os outros, ate que em um Bacon ou em um Newton alcançar seu ápice
(LOVEJOY, 2005:197).
Estes critérios tomavam quem não fosse europeu como um ser antropóide - uma
expressão tão vulgar no século XVIII que perdeu seu significado inicial ao longo dos anos e
que por isso não conseguimos notar suas conseqüências - ou seja, seres indeterminados entre
uma espécie e outra, essencialmente próximos dos seres brutos, mas que possuíam diversas
características fisiológicas que os aproximavam ao homo sapiens. Por isso são antropóides,
possuem fisiologia e anatomia humanóides, mas apresentariam debilidades.
Neste quadro científico, a busca por provas implicava procurar os chamados elos
perdidos, que ligariam uma espécie à sua imediatamente superior. O método analítico se
baseava na semelhança aos atributos do branco europeu e acabou conferindo lugar
privilegiado para a anatomia e a fisiologia, pois era por elas que se comprovaria a
proximidade quase imperceptível entre um ser inferior e seu imediato superior na escada
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evolucionária do ser. Não por coincidência, durante o século XVIII, assistiremos a um grande
avanço dos estudos da estrutura óssea do crânio, da face, nariz, olhos, cor da pele etc.
Na segunda metade do século XVIII surgem as concepções acerca da natureza da
América. O naturalista iluminista francês George-Louis Leclerc, o Conde de Buffon (17071788), juntamente com outros estudiosos que representavam uma tendência em vigor,
elaborou uma teoria baseada na inferioridade e imaturidade da natureza americana, se
preocupando com a relação do homem perante a natureza. Partindo do pressuposto de que o
europeu encontrava-se no topo dos seres terrenos na Cadeia do Ser, ele intentou compreender
o porquê desta imaturidade americana. Em linhas gerais sua resposta foi encontrada na
geografia aliada ao clima: o clima temperado europeu produziria um governo prospero,
avantajaria a inteligência e a saúde (MORAN, 1994) e, por inversão, afirmou que a
degenerescência era uma conseqüência dos climas tórridos. Outro nome relevante, o Barão de
Montesquieu (1679-1755), também chegou a ver no clima temperado mediterrâneo um agente
propiciador do regime democrático
Como podemos avaliar, no século XVIII, as ciências, principalmente aquelas voltadas
a análise da fisiologia e anatomia, passaram a ser vistas como importantes agentes de
transformação do mundo, inaugurando uma nova concepção secular. A natureza deixava de se
apresentar para simples contemplação, e sim, para conhecimento de domínio.
Mas a efervescência das conquistas iluministas que percorriam a Europa não passou
despercebida pelas Ciências Naturais portuguesas por muito tempo. Em 1764, sob a
administração centralizadora do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo
(1751-1777), projetaram-se algumas reformas na área da educação e cultura; não sem
dificuldades, diga-se de passagem, uma vez que dentro do despotismo esclarecido algumas
decisões poderiam colocar em risco o Estado absolutista – estas tentativas de resolver os
problemas do Estado, mas sem destruir o absolutismo, podem ser comprovadas pela
desarticulação das escolas jesuíticas no Brasil e Portugal. Não obstante as questões políticas
conservadoras, as reformas do ensino primário, secundário e universitário foram levadas a
efeito por Pombal6. Para a reforma Universitária de Coimbra, o primeiro-ministro do rei José
I, indicou um italiano, Domenico Vandelli, um doutor da Universidade de Pádua e
correspondente de Linnaeus.
Nesse mesmo período (1779), Alexandre Rodrigues Ferreira se formou com o grau de
doutor, sendo influenciado tanto pelo pensamento de Buffon, como de seu opositor Linnaeus;
uma mostra exemplar da miscelânea acadêmica do período, mas também do avanço técnicocientífico de Portugal. Membro das primeiras turmas que experimentaram as reformas
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iluministas, não podemos desprezar sua formação em Filosofia Natural, cujo programa incluía
Física, Química, Agricultura, História Natural, Farmácia, Cirurgia e Medicina, acrescentandose a estas o conhecimento de plantas nativas, cultura do anil, cochonilha, cacau e outros. Sua
vinda para o Brasil, além da prospecção científica de elos baseada na Cadeia do Ser, está
dentro de um contexto de política econômica de Portugal, em especial a política de
demarcação de limites geográficos.
Portanto, O reino português não era atrasado como nos fizeram crer os pensadores
iluministas da Inglaterra e França, principalmente. As questões religiosas que chegaram a
atrapalhar o saber no reino, não foram suficientes para paralisar a produção de conhecimento.
Podemos dizer que Portugal estava pari passu às pesquisas científicas do período; os estudos
filosófico-naturalistas de Alexandre Rodrigues Ferreira não nos deixa enganar.
Alexandre Rodrigues Ferreira foi filho deste novo Portugal, mais atento e sensível ao
restante da Europa e às suas colônias. Graças a esta idéia menos criticista quanto à história de
Portugal podemos notar como foi possível ao naturalista luso-brasileiro aderir à teoria da
Cadeia do Ser, complementando à ela as leis de Linnaeus e Buffon ao mesmo tempo. Se
Portugal fosse ilha de ignorância dificilmente seria possível haver no reino português um
luso-brasileiro que partilhasse de idéias difundidas na Europa. Provavelmente esse isolamento
português em relação às Ciências, só existiu naquela perspectiva historiográfica que não
privilegiou uma abordagem em História das Ciências, resta-nos saber que a relação científica
que Portugal atrelava com o restante do continente permitiu aos homens das letras partilhar
saberes, experiências etc.
METODOLOGIA
A idéia que possuíamos acerca das considerações científicas dos séculos XVIII e
posterior era de que havia diferenciações acerca do tom de pele, mas que em última instância
todos eram humanos. Até o momento não havíamos pensado que com tantas construções a
fim de diferir os europeus do restante das pessoas, poderiam os naturalistas relacionar o
negros e índios à outros segmentos que não humanos.
Neste sentido, buscamos compreender para além da imprecisão dos conceitos de raça e
espécie durante o século XVIII se, de fato, achavam que o índio (no caso específico da
Viagem Philosofica de Alexandre Rodrigues Ferreira) era ou não humano. Portanto, não
partimos da certeza de que os europeus creditavam aos não europeus um status inferior de
humanidade, ou mesmo que desacreditassem o status de humanidade. Examinamos a
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abrangência da teoria da Cadeia do Ser e como ela era percebida no período cotejando com as
teorias lineana e buffoniana e como que juntas conformaram o pensamento científico do
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira; qual era a idéia que faziam dos homens americanos
e assim, passamos para uma etapa de maior certeza, confirmando ou refutando questões
pontuais.
DISCUSSÃO
Apropriando-se do discurso acadêmico lineano para avaliar a vida nativa, Alexandre
se valeu da subdivisão racial dos seres para construir o indígena americano. Logo antes de
iniciar a classificação dos índios, que não por coincidência ou descuido estão ao lado de todos
os outros animais da América, ele diz:
Passo a inventariar os mamíferos que pertencem a esta primeira repartição do
viveiro da natureza. Seguindo a distribuição de Lineu quanto às classes […] tais são
as que estabeleceu para a referida classe dos mamíferos…” (FERREIRA, 1972: 128)
Nesse sentido é relevante observar que nosso naturalista realmente seguiu as divisões
de Linnaeus e acabou classificando o indígena como Homo americanus. Para ele, a grande
diferença dos homo ante o restante dos primatas e demais animais era a capacidade de
conhecimento de si mesmo. Mas isso não os incluía num mesmo grupo, pois os europeus
possuíam atributos negligenciados pelos americanos:
a sabedoria ligada à sua alma, a docilidade e o ensino, formam o caráter essencial de
sua espécie. A diversidade de sua cor, os diversos lugares em que habita, os seus
usos e faculdades corporais, indicam que, como em outros animais, também a sua
espécie apresenta variedades (Ibdem: 74).
E não diferente de Linnaeus, ele também incluiu valores morais como critério. Quanto
à religião, ele relatou:
A respeito da religião, é verdade que algumas tribos não têm nenhum conhecimento
de um ser supremo e nem praticam culto religioso. Isto naturalmente deve acontecer
ao homem constituído na infância da sociedade estando em semelhante estado as
potências intelectuais tão débeis, que não deixa distinguir-se dos outros animais.
(Ibdem: 94).
… o homem animal não percebe as coisas que são de Deus (Ibdem: 95).
O conceito de Alexandre Rodrigues, que mistura a biogeografia com as suas possíveis
conseqüências morais aliadas à taxonomia de Linnaeus, aproxima-o aqui de outro importante
naturalista revolucionário das Ciências Naturais, ou seja, o essencialista7 Buffon. Mais que
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Linnaeus, Buffon estudou a diversidade das raças humanas buscando as causas e para tanto
atribuiu-as ao clima, à alimentação e aos costumes8. Bem demonstra essa aproximação de
Alexandre Rodrigues à Buffon a memória que se chama Observações gerais e particulares
sobre a classe dos mamíferos no território dos Rios Amazonas, Negro e Madeira. Ora, se o
título diz que vai tratar de mamíferos específicos de uma determinada região do Brasil ele já
demonstra uma profunda influência de Buffon, sendo que para o autor da História Natural as
espécies assim o eram devido às interferências do clima e da geografia, essa modificação
quase sempre resultava em um processo de degeneração: pequenez do tamanho – “parece-me
que esses pequenos quadrúpedes […] sejam de uma raça inferior visto que em volume o
maior de todos daqui é a anta, e em ferocidade, a onça” (FERREIRA, 1972: 71), baixa
capacidade intelectual, poucos pêlos no corpo (sobretudo na face), indolência. A expressão
infância da sociedade remonta também claramente a esses valores. Em outra passagem
Alexandre Rodrigues é ainda mais pontual: “A América desde o seu princípio só produziu
animais pequenos em comparação com os do mundo antigo” (Ibdem: 73).
Apesar dos conflitos entre Linnaeus e Buffon, eles foram igualmente utilizados por
Alexandre Rodrigues, e na Viagem Philosophica os três se emaranham pela Cadeia do Ser a
fim de explicar as particularidades do Homo da Amazônia. Respaldando-se nas causas
arroladas por Buffon é que o naturalista passa a filosofar, mas sua interpretação da teoria
buffoniana apresenta grandes variações. Para ele, como também dizia Buffon, a Europa é toda
habitada por brancos, contudo na medida que se distancia do norte e dos países frios e
gradativamente se expõe ao calor do sol, pode-se observar que a pele humana torna-se aos
poucos trigueira/morena. Mas ele percebeu que havia diferentes incidências de calor. Assim
Ferreira concluiu que não só o calor, mas que também outros fatores afetavam a constituição
física:
para se determinar com exatidão a temperatura do clima em algumas partes do
Globo, não basta medir somente a sua distância ao Equador, mas também é
necessário examinar: 1º - a altura que estão sobre o nível do mar; 2º - a elevação das
montanhas em que se encontram situadas ou as suas vizinhas; 3º - a extensão do
país; 4º - a natureza do terreno; 5º - os ventos locais. (FERREIRA, 1972: 78).
Essas variações permitiram a percepção de Alexandre de que o Novo Mundo, mesmo
tendo sua maior parte abaixo da zona tórrida,
… ao invés de habitarem homens de cor preta à semelhança dos que habitam nas
regiões correspondentes da África, habitam índios que supostos não serem brancos
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como os europeus, também não são pretos como os africanos. São de uma cor de
cobre ou de castanha (Ibdem: 77).
Isso porque só existiriam negros onde “todas as circunstâncias concorrem para que
produzam um calor constante e excessivo” (Ibdem: 78) e que o calor no Novo Mundo não é
tão intenso quanto se poderia esperar de uma zona tórrida.
Quanto a Amazônia, cujas terras são baixas e onde há uma infinidade de rios, lagos e
matas, Alexandre Rodrigues chega a ponderar que os ventos que sopram na América no
sentido Leste-Oeste antes de chegarem a costa americana refrescaram-se no mar Atlântico se
tornando brandos. Conclui então, que
por esta razão o Brasil é um país fresco e temperado em relação às latitudes
correspondentes às da África, onde o calor deveria ter enfraquecido e moderado em
razão de sua posição e pelas causas mencionadas. (Ibdem: 79).
Toda essa descrição climática era a base dos critérios de classificação dele. Sua
preocupação era entender que tipos de homens poderiam ser os habitantes da América. Essa
preocupação explica porque Alexandre Rodrigues tenta classificar os índios usando a
sistemática lineana, mas, ao mesmo tempo, explica as diferenças existentes entre o nativo
americano e o caucasiano europeu a partir das teorias buffonianas de degeneração. As teorias
do período não estavam nem um pouco definidas e, ao longo de suas naturalistas memórias, o
vemos retificando idéias anteriores. Foi a partir da unção destes pressupostos que ele pôde
caracterizar mais um daqueles seres intermediários entre o homem e o macaco. Para Ferreira,
é a partir de caracteres anatômicos e fisiológicos, oriundos de influência climática e
geográfica, que se poderá proceder a uma identificação dos elos que faltam entre os primatas
inferiores e os Homo superiores. A escada que leva dos gorilas, orangotangos e chimpanzés
até o caucasiano europeu ainda tem alguns degraus faltando no século XVIII. E será nos
estudos do corpo humano, da teoria da Cadeia do Ser e das viagens exploratórias, que se
encontrarão os degraus (ou elos) que faltam.
A discrepância dos ameríndios ante o europeu impedia que apenas uma teoria global,
que tentava explicar tudo – como eram as de Linnaeus e Buffon – pudesse se consolidar como
a única explicação possível, tal qual o evolucionismo foi pelos primeiros cinqüenta anos e em
parte ainda o é. Seria preciso mesclar interpretações e análises de caso para definir cada ente
ao longo da Cadeia do Ser. O índio americano era uma destas dificuldades, e nosso naturalista
conseguiu enquadrá-los valendo-se dos critérios fisiológicos por ele encetados.
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Não raras vezes, se percebe uma humanização dos símios e subseqüente
animalização dos indígenas, como, por exemplo, quando ele diz que a razão dos índios não é
mais ilimitada nem mais previdente que o instinto dos animais (Ibdem: 87). Ao longo da
memória de zoologia ele vai descrevendo e classificando as diferenças dos índios ante os
europeus e a proximidade daqueles em relação aos negros e aos símios diferindo a cor
acastanhada ou cúprica; mas também a lisura e polidez da pele; a pequena quantidade de
pêlos; estatura medíocre; tronco reto e talhado; a cabeça normalmente arredondada, salvo os
casos de deformação voluntária; face larga e chata, afastando-se muito dos europeus; testa
pequena e estreita; olhos pequenos, mas perspicazes; orelhas grandes; nariz relativamente
plano, mas apurado; boca grande; sem barba; extremidades bem talhadas e musculosas, sendo
usadas para fins à semelhança de aves e congruente proporção dos membros.
Ao discutir um relato de que havia Homo caudatus na América - uma suposição que
Linnaeus chegou a conjecturar, mas que preferiu não incluir em seu Systema por não ter
certeza se era símio ou algum ser de tipo humanóide – Alexandre Rodrigues fica indeciso
quanto a veracidade do fato. Mas, apesar da incredulidade, ele se decidiu por definir que com
maior razão os coatá-tapuias [os tapuia com cauda] se distinguem da espécie dos demais
tapuias em parte, pela mistura com o sangue de mono, e por outra, a diferença da cauda
(Idem: 137). Ou seja, Alexandre Rodrigues admite a existência de fecundação cruzada entre
indígenas (coatá-tapuias) e macacos (mono), um fato que, por si só, já determinaria o grau de
proximidade entre estas duas espécies.
Mas porque ele pensou que o estudo morfológico dos índios deveria ser um estudo
zoológico, se a morfologia do europeu não era estudada pela zoologia? A resposta pode ser
desconcertante para os que procuram construir heróis imaculados: se os índios fossem tidos
como humanos, leia-se europeus, não haveria necessidade de descrevê-los com o fim de
classificá-los, já que o lugar dos caucasianos na escala do seres era por demais aceito.
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resultou de nossa pesquisa que os cientistas europeus do século XVIII entendiam os
índios e negros não como humanos inferiores, mas como seres quase humanos; logo ali,
alguns degraus/elos abaixo na Cadeia do Ser. A idéia comumente de um racismo quase
amainado recebe portanto um novo olhar, posto que todas as ações ante os negros e índios
acabavam por receber as justificativas científicas (ou seja, permeadas de neutralidade) de
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inferioridade dos não europeus. Cada qual em seu lugar, com os europeus no topo, a Cadeia
do Ser propiciou fortemente a defesa da hierarquia baseada no conhecimento científico.
Os homens setecentistas comuns não viviam em função dos saberes científicos, mas se
valiam deles para fundamentar suas motivações; da mesma forma que qualquer pessoa faz
com a política (não importando o grupo social à que pertença; pois que a Ciência, no século
XVIII, não se limitava a discussões de gabinete, museus ou jardins botânicos, ela ocupava a
pauta do homem público, tanto quanto a política ou religião.
A ciência, digamos claramente, é pensada em defesa de determinados interesses e, ao
mesmo tempo, pode construir a defesa de outros à medida que se tornam relevantes, e isso
não exclui os grupos sociais menos favorecidos.
Se valendo da escala da Cadeia do Ser, muitos naturalistas relutaram em apontar o
lugar intermediário (logo abaixo dos brancos) de negros e índios. Alexandre Rodrigues voltou
à América Portuguesa depois de concluir seus estudos em Coimbra e tentou comprovar que os
ameríndios eram inferiores ante os Homo europeus (seguindo portanto o sistema de
Linnaeus), mas se valeu também das idéias deterministas de Buffon afirmando que a condição
do homo da Amazônia se devia também aos costumes, ao clima, aos ventos etc (Ibdem: 78).
Ferreira conseguiu dessa forma concatenar dois aspectos importantes dos princípios
buffonianos e lineanos: de Buffon temos a teoria da degenerescência causada por conta do
clima quente e úmido do Novo Mundo. Buffon afirma que as mudanças nos seres sempre
ocorrem para pior. Ele defende que a postura do ameríndio, sempre de cócoras, sua condição
imberbe ou seu tamanho pouco avantajado são exemplos de como este é uma versão
degenerada do Europeu, afinal possuir barba, ser corpulento e nunca se postar de cócoras,
eram indícios de civilidade, logo superioridade. Buffon mesmo se vangloriava de ser um
homem de grande estatura; de Linnaeus, Ferreira nos possibilita encontrar e confirmar aquilo
que o sistemata sueco nunca pôde fazer, colocar os próprios olhos em um homem que,
dificilmente poderia se encaixar na espécie sapiens.
Pudemos concluir, quase num saber tautológico, que a ciência não é neutra e que,
justamente por isso, ela pode ser precioso instrumento de análise do historiador. Que a
História das Ciências pode ser primordial para levantarmos importantes questões que,
dificilmente teríamos com outra abordagem. O permear ideológico que orbita o saber em
ciência pode nos trazer novas evidências à compreensão de fenômenos marcantes do século
XVIII, como a escravidão que também se calcava num discurso auto-justificado a partir de
princípios científicos e, consequentemente éticos e morais. Logo, não é somente com a
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História Econômica ou Social que conseguiremos compreender questões como a da
escravidão.
Notas
1
Linnaeus forma latinizada do nome de Carls von Linné: Célebre naturalista Sueco nasceu em Rashul (província
de Smaland) em 23 de maio de 1707 e morreu em Upsala em 10 de janeiro de 1778. Aficionado pelos estudos da
botânica, criador da nomenclatura binária, ainda hoje constantemente consultada por botânicos e ou zoologistas;
sua obra Sistema Naturae (1735), classificação denominada de “natural”, pelo fato de basear-se nas
características morfológicas (formas corporais, dos órgãos, anatomia, características das células componentes,
etc.) e bioquímicas (químicas interna dos organismos) dos indivíduos vegetais e animais, agrupando as espécies
segundo as afinidades que apresentam. Ver: BLUND, Wilfrid. El Naturalista.
2
“Ascendendo a linha de gradação, chegamos finalmente ao branco europeu, ao qual, sendo o mais distante da
criação bruta, pode, por esse motivo, ser considerado como a mais bela das raças. Ninguém duvidará da
superioridade dos seus poderes intelectuais, e creio que se julgará que a sua capacidade é naturalmente superior
também à de todos os outros humanos”.
3
“Podemos descer pelos degraus quase insensíveis, da criatura mais perfeita até a matéria mais disforme, do
animal melhor organizado até o mineral mais bruto […] suas gradações (nuances) imperceptíveis são a grande
obra da natureza…
Mas a natureza caminha por gradações desconhecidas, e consequentemente ela não pode se prestar totalmente à
essas divisões, visto que ela passa de uma espécie à uma outra espécie, e freqüentemente de um gênero à outro,
por gradações imperceptíveis; de modo que se encontra um grande numero de espécies intermediárias e de
objetos meio partidos [metade em uma classe, metade em outra] que não sabemos onde pôr, e que atrapalham
necessariamente o projeto do sistema geral…”.
4
O fato de não aceitarem veementemente a transformação das espécies nos leva para uma anterioridade da teoria
evolucionista, pois a determinação desta postura era na verdade uma oposição cerrada à hipótese que já
começavam a surgir, antes mesmo do evolucionismo darwinista, de que havia transformação das espécies.
5
Lê-se na Encyclopedie de Diderot e D’Alembert, sob o verbete Bom (Bon): “Somente Deus conhece toda a
bondade que ele pôs nas suas obras, porque só ele é capaz de conhecer perfeitamente a justeza que brilha nas
suas obras, a relação mutua que se encontra entre elas, a harmonia que faz delas um todo regular e sabiamente
ordenado, onde ele põe estabelece a ordem para as conservar. A cadeia que atira e reúne todas as partes está
entre as mãos de deus e não entre as do homem” (op. cit.).
6
Intentava as reformas pombalinas fornecer um quadro político capaz de ativar todo o desenvolvimento que
permeava as comunidades científicas. É possível avaliar as intenções uma vez que se têm iniciativas, como: a
fundação do Real Colégio dos Nobres (1761), ou o convite aos professores estrangeiros para fazer parte da nova
Cátedra em substituição aos jesuítas, expulsos em 1759. A referida reforma passou a incluir uma Faculdade de
“Philosophia Natural”. Tal expressão, na diretriz da recém criada Faculdade, objetivava a introdução, em
Portugal, do ensino das ciências físicas e naturais, estes até então relegados à somenos importância, enquanto
estivera o ensino universitário conduzido pelos jesuítas. As disciplinas básicas que, com a reforma, passaram a
ser ministradas na Faculdade de Philosophia Natural de Coimbra, somaram o número de seis: física
experimental; química teórica e prática, história natural – com inclusão de zoologia, botânica e a mineralogia –,
lógica, ética e metafísica. Essas últimas herdadas da filosofia geral, que não fora ainda de todo eliminada. Com a
filosofia escolástica abolida, as ciências a substituíam.
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Essencialista: do Essencialismo; Doutrina médica antiga que considerava as doenças como independentes das
funções da vida animal.
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Em vários momentos, o conde Buffon se posiciona dentro da doutrina de Aristóteles, aliás, afirmava do alto de
sua arrogância que “Aristóteles pensava como ele” (GERBI; 1996). Com respeito ao clima e outras tantas coisas
disseminadas em estratos latitudinais do pólo norte ao equador, e em ordem inversa do equador até o pólo sul,
tratava-se de uma tradição fundamentada em Aristóteles, não muito longe da verdade revelada. Daí Cristóvão
Colombo afirmar, que não se surpreendia com o fato dos habitantes da Bahamas e Antilhas serem bronzeados,
porque da mesma cor eram também os guanchos (nas Ilhas Canárias) que viviam na mesma latitude. (CROSBY;
1993).
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REFERÊNCIAS
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http://encyclopedie.uchicago.edu/. Acesso em: 08/jun.
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WHITE, CHARLES. An Account of the Regular Gradation in Man, and in Different
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