Discurso do P

Transcrição

Discurso do P
Discurso do P. Geral, Peter-Hans Kolvenbach
aos leigos de espiritualidade inaciana
(Santiago do Chile: 01 de maio de 2006)
Com muita alegria venho a este encontro com vocês, leigos de espiritualidade
inaciana, porque sinto que estamos unidos como pessoas, por experiências, afetos, obras e
projetos comuns.
Com efeito, muitos de vocês são parentes e amigos de jesuítas, ajudam-nos em nossas
obras ou nós colaboramos nas de vocês. Foram ou são alunos e alunas de colégios jesuítas e
de outros colégios inacianos fundados por vocês, onde os jesuítas colaboramos. Também
trabalhamos juntos, servindo ao Senhor em muitas paróquias e capelas e em outras tantas
instituições.
Vocês pertencem a associações leigas que a Companhia há muito apóia e acompanha,
como são a Comunidade de Vida Cristã (CVX), a Associação de Antigos Alunos e o
Apostolado da Oração com o Movimento Eucarístico Juvenil (MEJ). Estão também aqui os
diversos voluntariados de maior ou menor explicitação inaciana, entre os que desejo destacar
“Techo para Chile” e “En Todo Amar y Servir”. Como serviço de difusão e apoio a esta
extensa rede de pessoas e iniciativas, alguns de vocês criaram a rede denominada “Laicos
Ignacianos”. Peço desculpas por não nomear todos os outros grupos onde trabalhamos juntos
- são muito numerosos - e peço-lhes que se dêem por nomeados.
Graças a esta vontade de nos relacionarmos e trabalharmos juntos, vocês e nós
pudemos levar adiante outros projetos de grande alcance, como a Universidade Alberto
Hurtado, os Centros de Espiritualidade e a revista Mensaje. Juntos pudemos potencializar o
´Hogar de Cristo´, que se estende por todo o país e ultrapassa hoje suas fronteiras, servindo
aos mais pobres. Também vimos florescer obras novas de forte marca leiga, como a
´Fundación Trabajo para un Hermano´, várias fundações educacionais em setores de
pobreza, colégios inacianos em setores emergentes, a associação Fé e Alegria.
O que nos mantém unidos neste bosque frondoso de pessoas e de obras é, nada mais,
nada menos, que o vinculo da caridade, que Deus Pai derrama em nossos corações. Somos
seus filhos em seu Filho Jesus Cristo, que é o princípio e fundamento de nossas vidas, e que
nos chama a colaborar com Ele para que todos sejamos e vivamos de verdade como irmãos.
Esta unidade gratuita e substancial se reforça pelo fato de que vivemos uma forma
particular de ser cristãos, que nos vem de Inácio do Loyola e que chamamos espiritualidade
inaciana.
Florescer de espiritualidades
Vivemos em uma época na qual florescem as espiritualidades, tanto as antigas
(beneditina, franciscana, dominicana, inaciana...), como as mais recentes (Charles de
Foucauld, Opus Dei, Schönstatt e muitas outras), com a particularidade de que numerosos
cristãos leigos as compartilham junto com sacerdotes, religiosos e religiosas. As
espiritualidades particulares não são o substantivo do nosso ser crente, mas sim, uma ajuda
importante para que sejamos melhores cristãos, para nos capacitar mais a amar a Deus e
encontrá-lo em todas as pessoas e situações em que nos toca viver e para servir ao mundo em
seus intentos por ser mais livre, com a liberdade que Cristo quer nos dar.
Esta diversidade de espiritualidades, dentro da unidade cristã, é sinal de vitalidade. No
fundo é sinal da inesgotável criatividade e laboriosidade do Espírito de Cristo para vivificar
Discurso leigos
2
sua Igreja e responder às necessidades de determinados tempos e circunstâncias. Deveriam ser
motivo de regozijo para todos. Hão de ser vividas sem concorrências nem exclusões doentias.
Hoje em dia fazem-nos falta que os movimentos leigos dialoguem mais entre si e se animem a
celebrar em comum sua diversidade carismática. Assim resplandecerá melhor a unidade da
Igreja e se potencializará seu dinamismo evangelizador “para que o mundo creia” (Jo 17, 21).
A espiritualidade inaciana
Nós, inacianos, procedemos de Cristo e somos dEle. Mas Cristo quis que ao mesmo
tempo procedamos de Inácio, cuja vida, refletida nos Exercícios Espirituais, marcou-nos até
muito profundamente, para melhor conhecer, amar e servir a nosso Senhor em tudo e em
todos.
Muitos de vocês têm feito os Exercícios, e aos que ainda não os têm feito – penso em
Exercícios sérios, dedicando-lhes o tempo necessário – os convido a fazê-los, como o melhor
presente que lhes posso desejar. Pela experiência dos Exercícios sabemos como o
conhecimento e o amor a Cristo se vão incorporando em nós com as contemplações de sua
vida e os colóquios que fazemos com Ele, “como um amigo fala a outro amigo” (EE 54). À
medida que Cristo se arraiga mais em nosso coração, compreendemos melhor o famoso
MAGIS inaciano, que não consiste em cerrar os punhos, nem em delírios de grandeza, mas
em abrir-nos confiantemente, e com discernimento espiritual, às graças abundantes que Deus
quer nos dar, “para que sintamos a sua santíssima vontade e a cumpramos inteiramente” (final
de muitas cartas de Inácio). Em uma palavra, é o jogo dialético entre o “dai-me o vosso amor
e a vossa graça que isto me basta” e em oferecermo-nos por inteiro - “todo nosso ter e
possuir” - para trabalharmos com Cristo na obra do reinado de seu Pai.
Estas experiências profundas são as que de verdade nos constituem como “inacianos”.
Para ser inaciano não é indispensável nem basta ter estudado em um de nossos colégios. Nem
se reduz o inaciano a uma categoria sociológica que expressa uma sensibilidade social ou uma
corrente sócio-eclesial. É algo muito mais profundo, que tem a ver, acima de tudo, com Cristo
e em tornarmo-nos mais cristãos, quer dizer, melhores discípulos e servidores de Cristo em
sua Igreja.
À força de contemplar Cristo e o mundo, e perguntar-se ´que fiz por Cristo, que faço
por Cristo e que devo fazer por Cristo´ (EE 53 e 109), Inácio se impregnou de Cristo e nos
deixou seu caminho para que também nós nos impregnemos d´Ele e assim ajudemos o
próximo a conseguir o fim para que foi criado.
Padre Hurtado, caminho para os inacianos de hoje
Já desde o tempo de colégio, Alberto Hurtado fez seu o caminho de Inácio. Depois,
como estudante universitário, a pedagogia dos Exercícios levou-o a ser um leigo irradiante e o
conduziu à Companhia de Jesus e à santidade. Alberto Hurtado é santo, santo jesuíta e santo
chileno, porque seguindo o caminho espiritual de Santo Inácio, tornou-se outro Cristo, um
Cristo para quem o Chile estava sempre no horizonte de todos seus carinhos e cuidados. E por
haver-se tornado realmente um santo local, a Igreja o propõe como santo universal.
Em sua recente encíclica Deus é amor, o Papa Bento nos recorda que os santos trazem
luz e energia ao presente porque são homens e mulheres de fé, esperança e amor (40). Depois
de morrer eles, totalmente em Deus, continuam muito ativos em nosso mundo, sem se
afastarem de nós, mas tornando-se ainda mais próximos às nossas vozes e necessidades (42).
Isto me motiva a compartilhar com vocês alguns pensamentos sobre a graça que Santo
Alberto Hurtado significa tanto para vocês, cristãos leigos de formação inaciana, como para
nós, jesuítas, e para nossa mútua colaboração na missão de Cristo no futuro.
Alberto, como Inácio, também se perguntou sempre ´o que faria Cristo em meu
lugar?´, e ele se impregnou totalmente de Cristo, tornou-se um reflexo dEle. Sua vida toda,
suas palavras e realizações apontam para Cristo e para que O demos a conhecer a um mundo,
Discurso leigos
3
a um Chile, que anseia por Ele sem saber que Ele é a resposta a todos seus desejos e
necessidades.
A busca de Deus Pai
O Padre Hurtado vive em constante busca de Deus Pai e nos diz que o primeiro que
temos que fazer é buscá-Lo porque sem Ele não podemos viver, já que Ele nos buscou
primeiro e pôs em nós esse desejo insaciável de estar com Ele para sempre. Convida-nos a nos
deixarmos maravilhar pela incomensurável grandeza de Seu mistério, por Sua providência
infalível e por Seu amor e misericórdia infinitas. E que nunca percamos de vista o céu, a
alegria sem fim da casa paterna, o encontro final no Deus de todos e de tudo.
Tenhamos pois sempre presente suas palavras: A alma humana não pode viver sem
Deus. Busca-o espontaneamente… E quando o tem encontrado, sua vida descansa como em
uma rocha inabalável; seu espírito repousa na Paternidade Divina, como a criança nos
braços de sua mãe .1
Com sua encíclica Deus é amor o Papa nos convida a voltar para o cerne do cristão, ao
que importa mais que meus próprios sentimentos religiosos ou o cumprimento de certas
práticas que eu mesmo me tenha imposto. A vida e a mensagem libertadora de Santo Alberto
nos levam à fonte do amor, que é Deus Pai.
Jesus Cristo, o caminho
Diante dos individualismos espiritualistas de hoje (“o que eu sinto”, “meu próprio
sentir”), o Padre Hurtado nos faz olhar para o Cristo bem concreto: o do Presépio, o das
multidões, o dos leprosos, o dos pecadores, o do Calvário e do túmulo, o que ressuscita em
seu corpo, o da Igreja santa e ao mesmo tempo pecadora, o que se nos dá na Eucaristia. Ele é
o único caminho para o Pai, nosso companheiro e amigo de caminhada, o modelo de nossa
santificação, e não há outro. A busca de Deus se resolve em Jesus Cristo, que realiza a paixão
divina pelo homem e leva a humanidade para Deus.
Temos que viver com Ele e como Ele, contemplar Seus traços nos evangelhos e
reconhecê-Lo no próximo. Que o nosso coração se abrase de tanto contemplar a Sua pessoa e
o Seu projeto. Como Ele dizia: ´Amar uma pessoa é fazer o que ela quer´. Que nos tornemos
loucos, ´malucos´ por Ele e por suas coisas. Ele é a cabeça e nós formamos o Seu corpo, o
Cristo completo. Ele derrama em nós o Espírito Santo, que nos acende o amor e nos envia em
missão a ajudar a todos com a verdade do evangelho. Assim nosso mundo se vai cristificando.
Este amor a Jesus Cristo se alimenta especialmente da Eucaristia. Depois da
comunhão, permanecermos fiéis à grande transformação que se operou de nós. Viver o nosso
dia como Cristo, ser Cristo para nós e para outros: Isso é comungar! Esta maravilhosa
presença de Cristo em nosso meio deveria revolucionar a nossa vida…2
O Cristo total: amor apostólico, solidariedade e sentido social
A contemplação inaciana do “Chamado do Rei Eterno” Alberto Hurtado a faz na ótica
do Corpo Místico. O amor a Cristo deve ser ao Cristo total: Ao procurar Cristo é preciso
buscá-lo por completo... Quem aceita a encarnação tem que aceitá-la com todas as suas
conseqüências e estender seu dom não só a Jesus Cristo, mas também ao seu Corpo
Místico...cujos membros somos ou estamos chamados a sê-lo os homens, sem restrição de
raças, qualidades naturais, dinheiro, simpatias 3.
Daqui brota para Alberto Hurtado o amor apostólico. Suas palavras purificam-nos do
pensamento, hoje tão em voga, de que não é preciso nos preocuparmos em evangelizar os
1
La búsqueda de Dios (=BD), Santiago (2005), 125s.
Archivo Alberto Hurtado, carpeta 50, documento 22.
3
Humanismo Social (=HS), Santiago (1974) p 226.
2
Discurso leigos
4
outros, porque Deus de alguma maneira se prontifica a salvar a todos: Entre os desejos mais
queridos de Cristo está o de amarmos os nossos irmãos com o mesmo amor que Ele
demonstrou por eles. Por isso, a minha vida cristã, há de estar plena de zelo apostólico, do
desejo de ajudar os outros, de dar mais alegria, de tornar este mundo mais feliz 4.
Para Santo Alberto é evidente que o apostolado é coisa de amor: anunciamos a Boa
Notícia aos outros, porque a felicidade de possuí-la arde em nós e queremos que muitos
outros a recebam e a desfrutem e a alimentem por uma intensa vida interior.
Estar em Cristo funda uma misteriosa solidariedade: ...todos somos solidários... há
entre nós, os que formamos "a família de Deus", vínculos muito mais íntimos que os de
camaradagem, de amizade, de laços de família... somos participantes de todos os bens e
sofremos as conseqüências, ao menos negativamente, de todos nossos males. Estamos
assistidos por preces invisíveis, rodeados da graça que não merecemos, a não ser a que nos
têm alcançado nossos irmãos 5.
Esta solidariedade impele ao sentido social, que imprime traços muito únicos ao amor
cristão: é grande, como o desejo de Cristo; é real e se traduz em obras e serviços escondidos
em cada esquina da agitação diária; situa-se dentro da Igreja e busca aprender de sua doutrina;
valoriza forte e decididamente a justiça e rechaça a superficialidade e o luxo; leva à
moderação da riqueza, à sobriedade de vida e ao hábito do trabalho contínuo; possui os bens
não como próprios, mas como serviço dos demais; atua em favor dos pobres e impulsiona a
moldar a ordem social nacional e internacional segundo os critérios de Cristo, conduz à
oração social cuja melhor forma é o Pai-Nosso 6.
O Cristo total, Cristo em nossos irmãos homens e mulheres, Cristo especialmente nos
pobres, até dizer "o pobre é Cristo". Esta é a espiritualidade que subjaz a toda a obra do P.
Hurtado. Este é o legado que nos deixa, e que vocês estão chamados a tornar próprio para que
continuem fazendo o bem.
Olhar o mundo e “estar em dia”
Assombra em Alberto Hurtado o seu contínuo esforço por olhar o mundo. É um olhar
próximo e muito ativo. É o olhar da Trindade na contemplação da encarnação. É o mundo das
´Duas Bandeiras´, o campo de batalha aonde Cristo o envia a ganhar amigos para o seu
Senhor 7. É algo muito de Inácio que pede que quem envia em missão “considere muito... para
que se faça sempre o que é para o maior serviço divino e bem universal” 8.
Daqui procede o seu empenho por ´estar em dia´. Por isso, entra em campo, toma
contato, lê, estuda, se insere, conversa com especialistas e escreve diagnósticos da realidade,
que os renova e aprofunda a cada dois anos. Seus livros A crise sacerdotal no Chile (1936), É
o Chile um país católico? (1941), Humanismo Social (1947) são reflexo deste esforço de
olhar o mundo e “estar em dia”.
Suas análises são realistas, apoiadas o mais possível em dados bem comprovados, sem
impressões vagas ou subjetivas. Partem de um ´a priori´ favorável às novas situações, tratando
de buscar o lado positivo no que acontece e no que o outro diz. Revelam uma pessoa que
possui um juízo crítico inteligente e matizado, separando o importante do que não o é.
Aparece muito livre, franco e humilde para expor seu próprio parecer. Tem um olhar sempre
esperançoso, que busca e propõe soluções eficazes, sem nada de lamentos destrutivos nem de
desqualificações ofensivas (62, 59, 1-2).
4
Archivo AH, 52, 12, 7.
HS, 31-32.
6
HS 32, 33, 120, 139, 89ss, 209, 199, 206, 268ss, 287-288.
7
EE 146.
8
Constituições da Companhia de Jesus, n. 618.
5
Discurso leigos
5
Sua visão do mundo moderno
Sua visão do mundo dos anos 50, o pós-guerra marcado pelo reconhecimento público
dos campos de extermínio, é estremecedora: Tanto poder e tanta técnica para terminar com
cinqüenta milhões de mortos! E, por reação, quem é capaz de fazê-lo se lança numa festa
permanente de sensações fortes, viagens exóticas e lugares de diversão!
E, no entanto, o homem moderno tem a alma triste, profundamente triste, sente-se
sozinho e busca se entorpecer para não pensar. Sente-se dirigido por forças estranhas que o
despersonalizam, humilhado em seu anonimato, diminuído pelo abismo entre a sua
capacidade real e o que a fantasia lhe permite sonhar, rebaixado, porque sequer tem algo
próprio que dizer, mas só repete o que diz “a sua imprensa”, “o seu rádio”, “o seu grupo”.
O P. Hurtado se pergunta pela causa profunda desta tristeza e solidão. Em sua resposta
vão saindo múltiplos temas: Os grandes ídolos de nosso tempo são o dinheiro, a saúde, o
prazer, a comodidade: o que serve ao homem... O critério da eficácia, o rendimento, a
utilidade, fundamenta os juízos de valor. Não se compreende o ato gratuito, desinteressado,
do que nada há que esperar economicamente. Toda a vida moderna é febre de ação: ação
lucrativa ou ação de diversão... tudo é mover-se, mover-se, até chegar rendido a dormir para
esquecer e não ter um momento para estar a sós consigo mesmo? Acaso não se tem um medo
horrível da solidão? Do que eu conversaria comigo mesmo? 9.
Mas a razão de fundo é que temos deixado Deus fora de nossas vidas e instituições,
temos construído uma sociedade sem Deus. Uma sociedade que, apesar de ter olhos, não vê os
resplendores de sua presença no universo e no fundo do coração humano, porque está
deslumbrada por outros sinais muito menores, porém mais imediatos. E quando se pensa em
Deus, é para fazer dEle um meio para o nosso serviço: pedimos-Lhe contas, julgamos Seus
atos, e nos queixamos quando não satisfaz nossos caprichos. Deus em si mesmo parece não
nos interessar 10.
O que nos diria hoje o Padre Hurtado
Peçamos agora ao Padre Hurtado que nos ajude a situar-nos ante os desafios do
presente. “O que nos dizem sua vida, suas palavras e seu exemplo que nos possam servir para
ver o que Cristo quer de nós?”. Perguntamos-lhe, na sua dupla qualidade de santo chileno, que
nos quer muito particularmente, e de especialista em enfrentar os desafios dos tempos.
Olhar a realidade
O primeiro que nos diz é que olhemos a realidade, que não lhe tenhamos medo, que a
enfrentemos, que “estejamos em dia”. Olhá-la desde perspectivas amplas, com estudo
rigoroso e metódico, oxalá interdisciplinar. Um dos frutos importantes da colaboração de
vocês, leigos, conosco, jesuítas, é precisamente que podemos somar forças para conhecer bem
os problemas do momento presente e buscar caminhos de solução. Mas não se trata somente
de olhar a realidade. Hurtado repetia a frase: “não para admirar, mas para realizar”. O assunto
é ajudar a melhorá-la.
Um mundo distinto do dele
Santo Alberto nos diz que o mundo de hoje não é o mesmo que o seu. Mudou em
aspectos importantes. Suas alegrias e esperanças, suas misérias e tristezas, embora conservem
semelhanças, são muito distintas das dos anos 50.
Com isto aponta para a globalização econômica e mediática, para o ocaso das grandes
utopias, para a reafirmação da plena autonomia da pessoa e a sua recusa a sujeitar-se a
sabedorias antigas. Estamos no individualismo e na “cultura nômade”, que percorre o mundo
9
BD 123 e 209.
BD 121 e 122.
10
Discurso leigos
6
em busca do sol que mais esquenta. Diminui o poder do estado-nação e imperam os interesses
dos donos dos grandes capitais, que controlam os lucros e o poder. Em conseqüência, aumenta
a desigualdade e os 10% mais ricos ficam com a metade do bolo. A massificação do consumo
(cartão de crédito!) leva os cidadãos a viverem num estresse doentio, inseguros pelo
endividamento e pela delinqüência, que é o bumerangue de uma publicidade que promove um
consumismo desenfreado.
A lealdade à pátria e aos colegas de trabalho fica subordinada aos interesses pessoais,
e as pessoas se identificam mediante outros referentes: o status econômico, o lugar de
residência, o colégio e a universidade, o clube de futebol, um pouco de religião, algum
voluntariado ou uma determinada instituição de beneficência.
O gozo do momento presente, o ´carpe diem´ atrai toda a atenção. Há fascinação pelo
novo, pelo atraente, pelo que é notícia; mas há muito pouca sensibilidade ao permanente e que
constrói futuro, a projetar-se em coisas de maior alento. Isto provoca a sensação de
desenraizamento, desorientação, insegurança, falta de sentido. Desaparecem os pontos de
referência, os chãos firmes e as vontades capazes de associar-se para obras grandes. Para
manter as pessoas distraídas promovem-se eventos de todo tipo e a televisão faz-nos viver em
uma contínua ciranda, o “pão e circo” dos imperadores romanos. Estamos repletos de meios,
mas faltam-nos os fins. E quando se fala de um retorno à ética, ela não é procurada em função
de valores transcendentes para todos, mas sim do bem-estar para uns poucos.
Estes fatores repercutem na Igreja Católica. Sempre existiram estilos e maneiras
distintas de entender e viver a fé. Mas o que caracteriza a situação intra-eclesial de hoje é um
certo espírito de grupos concorrentes, com pouca ou nenhuma vontade real de dialogar entre
si. As Igrejas pentecostais aumentam em número de membros, mas não em unidade e coesão.
A raiz católica da América Latina cede à pluralidade de ofertas religiosas de outras origens,
como a Nova Era e outros grupos inspirados nas religiões do Oriente.
Sobram motivos para estarmos preocupados. Há gente muito abalada e triste pela
desunião dos fiéis, pela brecha entre o que a Igreja ensina e o que o povo vive, pelas extremas
diferenças de nível de vida entre ricos e pobres que atentam contra a Igreja-comunhão, pela
deserção dos sacramentos, pelos escândalos de pedofilia.
Por isso mesmo, remar todos juntos
Este quadro sombrio pode desencorajar alguns. Outros se sentirão mais estimulados a
responder a estes desafios. Está claro que os inacianos não somos uma espécie de Superhomem que basta a si mesmo para dar ao mundo a solução de todos seus problemas... embora
a alguns lhes custe deixar de crer nisto!
Inácio, sem ironia, chama a Companhia “a mínima” e quer que o nosso “sentir em
Igreja” se expresse em remar com todos os que fazem com que a Igreja avance, sob os que
guiam a barca de Pedro. Junto com reconhecer nossas contribuições, temos que compreender
que os inacianos constituem só uma porção muito pequena da Igreja, e que a força da parte se
valida pelo trabalho do todo. E não só colaborar com a Igreja, mas também com todos os que
de mil maneiras promovem o bem e a justiça.
Nisto o Padre Hurtado foi realmente grande. Colocou-se ao serviço do Ministério de
Educação e dos Bispos, colaborou com os leigos e com os religiosos, foi muito da Companhia
de Jesus, mas, ao mesmo tempo, muito próximo servidor do clero diocesano e religioso. As
pessoas sentiam que podiam contar com ele, porque não se deixava aprisionar em grupos
estreitos.
Insistir no fundamental: o todo “família e educação”
A partir da sua própria experiência de vida familiar, Alberto nos diz que cuidemos do
lar e da família mais ampla. Para ele o fundamental é que: tudo o que se fizer passar pela
Discurso leigos
7
alma da criança...vai ficar ali profundamente gravado e vai ser causa de orientação de vida
totalmente diferente 11 .
Esse grande pedagogo que ele foi, especializado nas linhas mais ricas da educação,
convida-nos a renovar os colégios e a acreditar nos alunos. Se os ajudarmos a cultivar seus
interesses atuais, estaremos formando o homem do amanhã.
O Padre Hurtado advertia que nos adolescentes e nos jovens dos anos 30 aos 50 havia,
em relação aos anos anteriores, uma baixa no espírito de sacrifício, no sentido do esforço, na
noção de responsabilidade...Aspiram a uma vida de fim de semana...com o máximo de prazer
e o mínimo de esforço 12.
Isto pode servir de consolo aos pais e educadores de hoje. Mas acolhamos com força e
muita esperança seu pedido para que ajudemos os jovens a fortalecerem a sua vontade,
convidando-os a fazerem as coisas bem, à abnegação, à responsabilidade, à pontualidade, ao
sacrifício e ao compromisso. Esperamos, em uma palavra, que sejam jovens que aspirem à
santidade, com um sentido heróico de sua fé, que arrastem atrás de si a seus contemporâneos
para fazerem nascer uma nova civilização 13.
O sentido social e o sentido do pobre
O Padre Hurtado viveu marcado por um vivo sentido social, que o movia a interessarse pelos outros, ajudá-los, cuidar e promover os interesses comuns. Não se contenta em aliviar
algumas necessidades. Procura levar a moral até a raiz mesma das estruturas sociais e
políticas. Crítico de seu tempo, lamenta que os católicos chilenos tenham preferido às vezes o
caminho mais fácil e aparentemente menos exposto de preencher as lacunas da justiça por
uma ampla caridade; mas esquecendo-se de confiar no povo para que ele se empenhe em sua
própria redenção (Sindicalismo 520).
É certo que ele hoje sentiria saudades ao escutar as pessoas que crêem que, graças à
macro-economia e às modernizações do país, já não há grandes necessidades sociais nem
obrigação de preocupar-se com o sentido social e com os pobres. Ele não vê desta maneira.
Os salários ainda são baixos e precários, as deficiências da educação geram e mantêm as
desigualdades sociais, o desemprego juvenil e profissional em algumas regiões do país é forte,
um inveterado classismo social privilegia dar trabalho a pessoas provenientes de seus mesmos
setores, o acesso à saúde é muito desigual. Tudo isto contribui para manter um setor
importante da população na pobreza dura. Escutemo-lo falar sobre o sentido do pobre: Ter
devoção a qualquer santo não custa nada, são tão tranqüilos, sua vida é bonita. Mas um
pobre é tão molesto... Dedicar-lhes uma devoção carinhosa, confesso que é difícil (47, 26).
Aos membros da Comunidade de Vida Cristã (CVX)
Alberto Hurtado quer recordar-lhes hoje algo que para ele foi muito querido e
importante: a sua pertença à Congregação Mariana. Ingressou nela aos 11 anos e foi
congregado ativo durante 12 anos, até entrar na Companhia. A Congregação do colégio e a de
universitários foi seu caminho para conhecer e amar mais a Cristo, viver a Eucaristia, fazer os
Exercícios inacianos, discernir sua vocação de jesuíta, abrir-se ao mundo, vibrar com a justiça
social, tornar-se apóstolo, catequizar a juventude e visitar os pobres.
Em sua experiência de congregado daquele tempo já se advertia de modo incipiente a
nota de comunidade mundial da atual CVX. Alberto, como Presidente do ramo universitário,
contribuiu para isto organizando o “Primeiro Congresso Pan-americano das Congregações
Marianas” (setembro de 1921), que foi um dos passos para formar a Confederação Mundial de
“Puntos de educación”, en Obras completas, Santiago (2001) 283.
Ibid. 343.
13
Ibid. 366.
11
12
Discurso leigos
8
Congregações Marianas (1954), que mais tarde se transformou na atual Comunidade Mundial
de Vida Cristã (1982).
A Congregação o marcou de tal maneira – dirá em confidência a um amigo - que mais
tarde todo seu trabalho com jovens na Ação Católica foi seguir o modelo de formação e
apostolado aprendido na Congregação Mariana.
Por isso o Padre Hurtado pede com vigor aos membros da Comunidade de Vida Cristã
que conheçam melhor o tesouro que possuem, que continuem sendo fiéis à sua missão
apostólica e que tomem maior consciência da importância de convidar e convocar outros a
percorrerem o caminho CVX. E aos jesuítas, reforçando os decretos de tantas Congregações
Gerais, pede-nos outro tanto.
Palavras finais: um desafio
Quero terminar minhas palavras expondo a todos vocês um desafio, no meu papel de
Superior Geral da Companhia de Jesus, Assistente Eclesiástico da CVX mundial e, de uma
forma que não saberia explicar em detalhe, responsável para que se mantenha e difunda na
Igreja o valor autêntico do ser inaciano.
Vocês têm o Padre Hurtado como uma enorme graça para a Igreja de hoje. Por isso,
convido vocês, inacianos, que acolham, cultivem e façam render 50, 70, 100% esta graça.
Nisto vocês, chilenos, têm que tomar a dianteira. Contamos com isso!
No que estou pensando? Há anos, leigos e jesuítas estamos sonhando em promover
uma ampla rede apostólica, que vincule todos os inacianos e nos ajude a tirar o maior proveito
do nosso carisma, em nos coordenarmos melhor e assumirmos missões apostólicas de mais
envergadura, potencializando-nos uns com outros.
Concorreriam para esta rede tanto pessoas individuais como as associações inacianas
que já existem. Está claro que a adesão a esta rede seria livre e voluntária. A função de
promover esta rede deveria ser tarefa principalmente das próprias associações inacianas que já
existem.
Compreendo bem que o que lhes proponho é um desafio muito grande. Vocês e eu
sabemos que é bonito que leigos e jesuítas trabalhemos juntos, mas isso não é fácil.
Precisamos nos converter de hábitos de protagonismo, individualismo, passividade, rotina,
mau uso do tempo de que dispomos. Precisamos procurar novas formas de organização, de
exercício da autoridade e do poder, de acesso e uso dos recursos. É urgente que também não
nos invada essa segregação social que se instalou em nossa sociedade. Teremos também que
equilibrar as legítimas tensões entre os que procuram mais visibilidade e os que preferem o
perfil baixo; entre os que se detêm na formação e os que querem ir rápido à ação; entre os que
favorecem as obras apostólicas comuns e os que pensam que cada um tem que se santificar
em sua casa e em seu trabalho particular. É preciso conversar com altura, franqueza e
esperança sobre tudo isto.
Para superar estas dificuldades, não nos esqueçamos de que o nosso grande título de
colaboração é o de sermos colaboradores de Deus, que é o que nos dá o desejo e a energia
para colaborarmos e fazermos crescer o semeado (1Cor 3, 5-9). Ponham-se em Suas mãos
através dos Exercícios Espirituais feitos com profundidade, e que se prolonguem na oração
cotidiana, na vida sacramental e na proximidade com os necessitados. É a maneira inaciana de
preparar-se para colaborar com a obra salvadora de Deus.
Meu pedido a vocês é que se unam e se ponham a trabalhar para continuar tecendo
essa rede apostólica inaciana. Vocês já têm avançado muito. Continuem construindo-a. Não
esperem que outros lhes digam como fazê-lo. Procurem vocês mesmos. O que falta são feitos.
Como dizia o Padre Hurtado, idéias e projetos são “não para admirar, mas para realizar”. Vão
em frente: vocês vão fazer muito bem e os jesuítas vamos lhes agradecer.

Documentos relacionados