Março

Transcrição

Março
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ANO 0
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Nº 1
TIRAGEM:
um Presente
Para voCÊ
C
20 000 EXEMPLARES
rumo À imPlosão da
euroPa de maastriCht?
arlos Magno, Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler
– o sonho da união da Europa pela força nasceu das
cinzas do Império Romano e atravessou a história,
da Idade Média à Segunda Guerra Mundial. O
nazismo, o nacionalismo descontrolado, a guerra
devastadora transformaram o sonho em horror. A
resposta ao horror foi o projeto de união da Europa
pelo consenso: Comunidade Europeia, hoje União
Europeia. O drama do euro ameaça destruir esse
projeto, aperfeiçoado durante toda a segunda metade
do século passado.
Uma “Alemanha europeia” no centro de uma
Europa democrática – o projeto europeu tinha o
objetivo de evitar o ressurgimento de uma Alemanha
expansionista em busca de uma “Europa alemã”. No
começo, a Alemanha cedeu sua primazia na indústria
siderúrgica. Mais tarde, renunciou à soberania sobre
Agravamento da crise do euro leva cada vez mais jovens e trabalhadores
a sua moeda. Ironicamente, duas décadas depois do
às ruas de Roma (foto) e das principais capitais europeias
Tratado de Maastricht, a crise do euro deixa entrever
o cenário inesperado de uma “Alemanha europeia” na liderança de uma “Europa alemã”.
A unidade da Europa extraiu sua legitimidade original das circunstâncias criadas pela Guerra Fria. No início, a Comunidade
Europeia aparecia como um escudo das liberdades erguido à frente de uma ameaçadora União Soviética. Quatro décadas depois,
na hora da queda do Muro de Berlim, a União Europeia apareceu como o leito democrático aberto à adesão das nações do
antigo bloco soviético. A fonte da legitimidade transferiu-se, contudo, da política para a economia. Desde Maastricht, Europa
significa uma promessa de prosperidade para todos. A crise do euro é, sobretudo, a crise dessa promessa.
Vejas as matérias nas págs. 6 a 9
main street versus Wall street
B
Nosso jornal completa duas
décadas de existência.
Para comemorar, a partir
de abril vamos enviar aos
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melhores textos publicados
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■
arack Obama ligou o motor de sua campanha pela reeleição falando em
justiça, equidade e oportunidade. No rastro da mais profunda recessão desde
a Segunda Guerra Mundial, o presidente se apresenta como o guerreiro dos
“homens comuns” contra os privilégios da plutocracia das finanças. Main Street
versus Wall Street, a rua do comércio contra a rua dos bancos – o tema de Obama
tem ressonâncias e tradição na história política americana. Mais que isso, ele é
uma ferramenta no combate para ocupar o centro do palco político.
Tudo conspira contra a reeleição de Obama – exceto os rivais republicanos.
Sob o influxo da corrente radical do Tea Party, o Partido Republicano oferece um
espetáculo inédito de radicalismo que mistura bandeiras econômicas ultraliberais,
gritos xenófobos de nativismo e discursos cristãos fundamentalistas. Os extremistas
do Tea Party podem não passar no teste das eleições primárias, mas seus cânticos de
guerra serão lembrados até novembro. Nisso residem as esperanças do presidente.
Págs. 4 e 5
A VIDA NAS REDES SOCIAIS
Fotos: Reprodução
l Editorial – Em Cuba,
Raúl Castro reafirma o
dogma do partido único.
Pág. 3
l A persistência da ditadura
de Assad evidencia a singularidade do regime.
Pág. 3
l Disputa pelas Malvinas
reativa tensões entre Buenos Aires e Londres.
Pág. 10
l o Meio e o Homem
– Golfo Pérsico, núcleo
da geopolítica mundial
do petróleo.
Pág. 11
l Há cem anos, Amundsen
e Scott pisaram no Polo
Sul.
Pág. 12
MARÇO/01
© Mario Laporta/AFP
E mais...
■
17º Concurso Nacional
de Redação­ de
Mundo e H&C – 2012
Escreva e se inscreva!!!
1. História e objetivo do concurso
O
Concurso de Redação nasceu, em 1996, com o
objetivo de estimular o hábito de ler, escrever, estudar e
refletir. O desenvolvimento contínuo e prazeroso dessas
habilidades é de suma importância, no mundo contemporâneo, para o processo de formação de cidadãos críticos e
bem informados, capazes de se expressar de modo claro,
criativo e inteligente. Mas, para que o concurso tenha
êxito, é essencial a colaboração dos professores, especialmente os da área de Comunicação e Expressão.
2. Tema da redação
Uns pelos outros
A eclosão da Primavera Árabe, no final de 2010, recolocou
de forma dramática um debate que percorreu o mundo e
dividiu opiniões nas esferas da política internacional, das
ciências humanas e mesmo da filosofia: a humanidade
estaria ameaçada por um “choque de civilizações”, que
teria, como os principais polos antagônicos o “Ocidente”,
de um lado, e o Islã, do outro. Para os advogados da
teoria do “choque”, a Primavera Árabe está destinada ao
fracasso, pois o Islã seria incompatível com a democracia.
Para os seus adversários, não há nenhum “choque”,
pois sequer existem “civilizações” como agrupamentos
homogêneos e puros, e por isso a Primavera Árabe pode
encontrar qualquer destino. Baseando-se nos trechos
expostos em seguida e nos seus conhecimentos, faça
uma dissertação sobre o tema.
“N ós devemos viver em harmonia não apenas com o
conselho militar, mas com todas as facções egípcias.
Haverá reconciliação entre os três poderes: o Parlamento,
o governo e o conselho militar governante. A Irmandade
Muçulmana não quer o monopólio do poder.”
(Mohammed Badie, principal líder da Irmandade
Muçulmana no Egito, organização amplamente
vitoriosa nas primeiras eleições após a queda do ditador
Hosni Mubarak)
“N ão tínhamos partido e democracia na Líbia. A
primeira coisa que queremos fazer é praticar. A visão da
Irmandade é de que a política é parte do Islã e o Islã é
parte da política. Para nós, nossa religião é um modo de
vida, não apenas algo que expressamos nas mesquitas.”
(Amin Belhach, representante da Irmandade
Muçulmana na Líbia e integrante do Conselho
Nacional de Transição, logo após a queda do ditador
Muammar Kadafi)
E X P E D I E N T E
PANGEA – Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Nelson Bacic Olic (Cartografia)
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Rezende
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
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"Infelizmente não foi possível localizar os autores de
todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem."
“Sim, com muito esforço e tempo, os muçulmanos
poderão ser tão democráticos quanto os ocidentais. Mas
nesse momento, são os menos democráticos dos povos e
o movimento islâmico apresenta um enorme obstáculo à
participação política. No Egito, como em qualquer outro
lugar, meu otimismo teórico, em outras palavras, está
temperado com um pessimismo baseado nas realidades
presentes e futuras.”
título Ateísmo no Islã. Parece absurdo, uma contradição
em termos. Mas não é. Ele estava se referindo ao Islã
como cultura, como civilização, onde havia – como,
de resto, há em todos lugares – ateus e movimentos
ateístas. Era um título válido para um estudo legítimo.
É muito difícil para nós, no Ocidente, entender isso e
analisar todas as suas implicações.”
(Daniel Pipes, jornalista norte-americano especialista
em Oriente Médio, ao comentar as transformações
provocadas pela Primavera Árabe)
(Bernard Lewis, orientalista britânico, criador
do conceito de “choque de civilizações” e um dos
principais apoiadores da invasão do Iraque pelos
Estados Unidos, em 2003)
“Durante
um debate interno com seus assessores
o presidente Eisenhower observou que – e eu cito
literalmente – ‘há uma campanha de ódio contra nós
no Oriente Médio, não organizado pelos governos, mas
pelo povo. O Conselho de Segurança Nacional discutiu
essa questão e concluiu que sim, e a razão para tanto é
a percepção de que os Estados Unidos apoiam governos
que impedem a democracia e o desenvolvimento por
estarem interessados no petróleo. É difícil alguém se
opor a essa percepção porque ela é verdadeira. Deve ser
verdadeira. Nós temos que apoiar governos corruptos e
brutais porque queremos controlar o petróleo do Oriente
Médio, e é verdade que isso provoca uma campanha de
ódio contra nós.’”
(Noam Chomsky, professor e ativista político norteamericano, ao comentar papéis secretos do governo
Eisenhower, liberados para consulta em 2002)
“No mundo islâmico, desde o início, o Islã fornecia a
base primária da identidade e do pertencimento a uma
comunidade. Nós pensamos numa nação subdividida
em religiões. Eles pensam numa religião subdividida em
nações. É a definição por excelência, a mais básica. (...)
Um professor egípcio escreveu um livro com o curioso
A
“ personificação de entidades imensas qualificadas
como ‘Ocidente’ e ‘Islã’ é reafirmada de maneira
irresponsável. Problemas de tremenda complexidade
como identidade e cultura são tratados como cartoons,
em que Popeye e Brutus, cada um representando
um lado, se espancam mutuamente, sem piedade.
Certamente, nem Samuel Huntington nem Bernard
Lewis dedicaram muito tempo às dinâmicas internas
e à pluralidade existentes em qualquer civilização, ou
ao fato de que os grandes debates contemporâneos
sobre cultura referem-se à definição ou interpretação
de cada cultura, ou ainda à indesejável possibilidade
de que é necessária uma grande dose de demagogia e
pura ignorância para alguém arvorar-se intérprete de
um sistema religioso ou de toda uma civilização.”
(Edward Said, intelectual palestino naturalizado
norte-americano, criador do conceito crítico de
“Orientalismo”, falecido em 2003)
ATENÇÃO
Em nossa próxima edição, publicaremos
as normas do concurso
2012 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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Cuba e os direitos
Dilma Rousseff
desembarcou em
penúltimo dia de janeiro.
antes,
dias
um
visto
O Brasil
de
blogueira cubana dissidente
que pretendia participar do
Bahia,
Cuba
no
concedera,
entrada
para
a
Yoani Sánchez,
lançamento, na
de um documentário sobre a liberdade
de imprensa em
Cuba e em Honduras. Contudo,
o gesto brasileiro circunscreveu-se à emissão
do visto.
A presidente nem sequer respondeu a
uma solicitação da blogueira por um encontro
H avana. O assessor de política externa
M arco Aurélio Garcia afirmou que a obtenção
em
da indispensável autorização cubana de viagem
Yoani”. A dissidente não
obteve a autorização, na sua 19ª tentativa.
A visita de Rousseff coincidiu com a realizaera
“um
Q
problema de
que expressariam interesses “estrangeiros” é mais
munista
Co Cubano (PCC), que debateu a continuidade das reformas no país. O discurso de R aúl Castro
perante a conferência dissolveu as parcas expectativas existentes. Castro reafirmou, para surpresa de
ninguém, que as reformas não alterariam em nada
o sistema unipartidário cubano. Porém, avançando
um pouco além, o ditador explicou que o PCC é a
representação única da nação cubana, pois outros
partidos ou correntes políticas seriam, inevitavelmente, expressões dos interesses estrangeiros operando dentro de Cuba.
No passado, regimes de partido único do
“socialismo real” justificavam-se com o argumento
grave, pois abre caminho para definir qualquer
atitude de contestação política como ato de
guerra ou espionagem. Cuba engaja-se em reformas
econômicas que implicam a demissão de centenas
de milhares de funcionários empregados pelo
Estado. Quando o regime recusa autorização
de viagem para Yoani, uma cidadã contra a qual
não pesam processos judiciais, está violando o
direito de ir e vir, consagrado pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de todos
os cubanos. Quando Castro identifica o PCC
à nação cubana, está dizendo que protestos
contra as demissões em massa poderão ser
de que outros partidos expressariam os interesses
classificados como gestos de traição à pátria. A s
das “elites” ou da “burguesia”. A firmar, entretanto,
duas atitudes devem merecer um mesmo repúdio.
Para onde vai a Síria?
O mosaico etno-religioso da Síria
Área
predominantemente
sunita com presença
de minorias cristãs
e xiitas
T
U
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Áreas de
povoamento curdo
Área de
povoamento druso
Colinas de Golã
(área anexada por
Israel em 1967)
Áreas de
povoamento curdo
fora da Síria
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Área
predominantemente
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MEDITERRÂNEO
alauíta
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Rio T
uase um ano e meio após o início da
Primavera Árabe – a sucessão de revoltas
contra regimes autoritários no mundo
árabe – e depois da queda de ditadores
que se mantinham por décadas no poder,
na Tunísia, no Egito e na Líbia, a “bola
da vez” é a Síria.
Localizada no Oriente Médio, a Síria
faz fronteiras com Turquia, Iraque, Jordânia, Líbano e Israel – e com todos eles o
país teve ou ainda tem atritos geopolíticos.
Com o Iraque, por exemplo, existem rivalidades históricas mal resolvidas; com a
Turquia, há litígios em relação à definição
de fronteiras e uso dos recursos hídricos do
rio Eufrates, sem contar os vários conflitos
com Israel.
A Síria possui cerca de 21 milhões de
habitantes e a grande maioria deles, cerca
de 90%, é de origem árabe e segue o Islã.
Essa aparente homogeneidade, no entanto,
esconde um caleidoscópio muito complexo
de minorias. A principal delas é a dos alauítas, uma vertente mística xiita considerada
herética pela maioria dos muçulmanos sunitas sírios e que, desde o início da década de
1970, detém o poder no país. Cristãos e curdos formam outras significativas minorias.
Os curdos, que não são árabes, perfazem
cerca de 6% da população e vivem também
em países vizinhos, como a Turquia e o Iraque (veja o mapa).
O atual território sírio já fez parte dos
impérios Persa, Macedônico, Romano e
Árabe. De 1516 a 1918 ficou sob o domínio
do Império Turco-Otomano. Com a derrota otomana na Primeira Guerra Mundial, a
área da antiga província otomana da Grande
Síria – que envolvia os atuais Síria, Líbano,
ção de uma aguardada conferência do Partido
A
Rio
Eu
fra
tes
Damasco
IRAQUE
ISRAEL
Palestina, Jordânia e parte do Iraque – foi
desmembrada. A Liga das Nações, antecessora da ONU, definiu que a região passaria
à administração da Grã-Bretanha e da França, na condição de mandatos. As fronteiras
foram definidas pelo Tratado de San Remo
(1920), que confirmava o Acordo Sykes-Picot (1916), um acerto secreto franco-britânico articulado durante a guerra de partilha
da região.
Nesse contexto, a Síria ficou sob o controle francês até 1946, quando se tornou
independente. Sob o impacto das doutrinas do pan-arabismo e do socialismo árabe, e na moldura do conflito árabe-israelense, a Síria viveu, durante o quarto de século seguinte, forte instabilidade interna.
Em 1970, um militar, Hafez al-Assad, pai
do atual dirigente sírio, assumiu o poder
na condição de representante da minoria
alauíta. Os alauítas, cerca de 12% da po-
JORDÂNIA
0
100 km
pulação, foram catapultados da condição
de minoria excluída à de grupo social dominante no país. Sob o impulso do regime
de Assad, os postos de comando das forças
armadas e o alto funcionalismo público
foram reservados aos alauítas Com a morte de Hafez, em 2000, o poder passou a
seu filho Bashar al-Assad.
A violência que devasta a Síria desde
2011 parece não encontrar solução no
curto prazo. Embora a oposição venha
se fortalecendo, ela ainda é fraca militarmente para tomar o poder. O plano elaborado pela Liga Árabe, de renúncia de
Assad em favor de seu vice, que presidiria
um governo de transição, foi rejeitado pelo
regime. As complicadas relações etno-religiosas internas dificultam uma saída
negociada. O estamento alauíta dirigente
não luta apenas por seus privilégios, mas
também para evitar a marginalização e
as perseguições anteriores a 1970. Além
disso, outras minorias, como os cristãos e
os drusos, além de determinados setores
da elite sunita, se beneficiam de benesses
do governo e não estão preparadas para
romper com Assad.
Israel e Irã observam a crise com preocupação. Israel e Síria são rivais geopolíticos, ainda mais após a ocupação israelense
das Colinas de Golã, em 1967. Contudo,
mais que o previsível regime de Assad, Israel teme uma Síria governada pela maioria sunita. O Irã xiita, por outro lado, tem
na Síria seu único aliado regional e um
intermediário crucial no fornecimento de
ajuda financeira e material ao Hezbollah
libanês e ao Hamas palestino.
Diferentemente do que ocorreu na
Líbia, parece pouco provável que países
ocidentais levem adiante uma intervenção no país. Não há consenso entre os
membros do Conselho de Segurança da
ONU, pois Rússia e China se recusam a
abandonar o regime de Assad. A Rússia é
a principal fornecedora de armas para a
Síria – que, por seu lado, permite o uso
do porto de Tartus pela marinha russa,
assegurando a Moscou sua única base naval no Mediterrâneo.
Estados Unidos e União Europeia alinharam-se com a Liga Árabe na exigência
de renúncia do ditador. Contudo, embora
discutam opções diplomáticas e mesmo
militares, não parecem dispostos a encarar
uma nova aventura intervencionista, muito mais difícil que a operação na Líbia,
num momento de grave crise econômica
nos dois lados do Atlântico Norte.
MARÇO 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Estados unidos
s republicanos “se transformaram num bando selvagem, louco, do qual emanam noções excêntricas e irresponsáveis que os colocam à margem da corrente principal da política americana.” O diagnóstico não emanou
de um democrata, mas do analista conservador Michael
Medved, simpático ao Partido Republicano. Ele prestou atenção nos debates entre os pré-candidatos republicanos que disputaram as eleições primárias de Iowa,
em janeiro, e se assustou com a natureza extremista dos
discursos de todos, com a solitária excessão do ex-governador de Massachusetts Mitt Romney. O fenômeno
que se manifestou na primária de abertura do calendário
eleitoral republicano é a difusão das teses do Movimento
Tea Party nas bases do Partido Republicano.
O Tea Party não é exatamente uma corrente republicana, mas uma rede informal e mais ou menos heterogênea que contesta a linha “moderada” ou “conciliadora”
da direção partidária. O nome do movimento evoca o
célebre protesto de colonos de Massachusetts que, em
1773, lançaram ao mar cargas de chá de navios ancorados na Baía de Boston. Aquele evento assinalou a radicalização da resistência das Treze Colônias contra os tributos britânicos sobre as importações americanas, acelerando a marcha da Revolução Americana. Taxed Enough
Already, ou “já taxados em demasia”: alguns arautos do
movimento converteram a palavra Tea num acrônimo
da bandeira principal dos republicanos radicais, que se
unem por uma drástica redução dos impostos nos Estados Unidos.
Um “Estado mínimo” – essa ideia está no núcleo
da articulação dos republicanos radicais. Quando falou
em “noções excêntricas e irresponsáveis”, Medved tinha
como alvo central o pré-candidato Ron Paul, deputado
pelo Texas, que organizou sua campanha em torno da
proposta de abolição do Banco Central e da ideia de
“anulação”, um suposto direito dos estados de rejeitar
leis federais das quais discordam. Paul não é o típico
representante do Tea Party. Isolacionista radical, pacifista
extremado, ele prega a retirada de tropas americanas
de todos os teatros de conflito no exterior e, de modo
geral, a ruptura dos Estados Unidos com as instituições
multilaterais e com os tratados que formam o arcabouço
do sistema de Estados. Tais propostas “excêntricas”
atraíram para sua campanha uma coleção heterogênea
de apoiadores, que se estende num amplo arco e abrange
tanto jovens “libertários” quanto fanáticos antissemitas
adeptos das teorias conspiratórias sobre os atentados de
11 de setembro de 2001.
O atípico Paul, contudo, reproduz a sentença dogmática do Tea Party, que se revolta contra a existência
de um conjunto de leis federais destinadas a assegurar
liberdades e direitos sociais para todos os cidadãos.
Newt Gingrich, outro pré-candidato radical, ex-líder
republicano na Câmara durante parte do governo do
democrata Bill Clinton (1993-2001), propõe a eliminação de diversos órgãos federais com atribuições ligadas
A Bíblia, o porte de armas, um corte drástico de impostos. A utopia regressiva dos
republicanos radicais pretende reinventar a nação de colonos cristãos anterior ao
desenvolvimento da moderna sociedade de massas
Embora,
aparentemente,
o moderado
conservador
Mitt Romney
tenha a
preferência
da maioria
do Partido
Republicano,
o radical
Tea Party
deixou marcas
indeléveis
© Gage Skidmore
O
Tea Party rompe o equilíbrio
do Partido R epublicano
à educação, à saúde e à previdência social. Além disso,
ele sugeriu transferir para comissões municipais a prerrogativa de decidir sobre o destino dos imigrantes, uma
ideia que provocaria deportações em massa em cidades e
estados governados por conservadores.
O nativismo, isto é, a ideia de que a nação americana
decorre de uma ligação de “sangue” entre o povo e a
terra, também forma algo como um consenso no Tea
Party. Michele Bachmann, deputada por Minesota, précandidata que desistiu da postulação após as primárias de
Iowa, insistiu no projeto xenófobo de erguer uma cerca
impenetrável ao longo de toda a extensão da fronteira
entre Estados Unidos e México, enquanto o governador
do Texas Rick Perry prometia uma guerra contra a
imigração ilegal na qual empregaria drones (aeronaves
não tripuladas) e deslocaria milhares de tropas para
selar a fronteira meridional. Contudo, o traço mais
distintivo dos radicais republicanos não está exatamente
no nativismo, mas na combinação de ultraliberalismo
econômico (o “Estado mínimo”) com fundamentalismo
cristão.
A Bíblia numa mão, um rifle na outra, a declaração
de renda no lixo – eis a fórmula política que sintetiza
o Tea Party. O pré-candidato que melhor representa o
programa tríplice talvez seja Rick Santorum, ex-senador
pelo estado de Pensilvânia. O eixo da campanha de
Santorum foi expresso no estandarte “Fé, Família e
Liberdade” e seus discursos converteram os palanques
eleitorais em púlpitos de uma pregação que, se levada
a cabo, suprimiria o caráter laico, secular, do Estado
americano. Os extremistas republicanos tocam a música
da liberdade de religião mas, sem maiores rodeios,
explicam que o cristianismo é o alicerce dos Estados
Unidos. Não por acaso, eles são a fonte da “notícia”
segundo a qual Barack Obama seria um fiel muçulmano
vestido na pele de cordeiro de cristão.
A revolta do Tea Party exprime uma visão sobre a
história americana. Na cabeça dos radicais republicanos,
a nação entrou em declínio quando se configurou a
moderna sociedade democrática de massas. O Estado
federal afirmou sua primazia com Abraham Lincoln
e a derrota sulista na Guerra de Secessão (1861-1865).
Os direitos sociais começaram a ser reconhecidos com
Franklin Roosevelt e o New Deal, na década de 1930.
A igualdade política dos cidadãos foi consolidada com
Lyndon Johnson e a Lei de Direitos Civis, de 1964. De
certo modo, a utopia política do Tea Party é a restauração
da nação original de colonos, não “contaminada” por
esses eventos da modernidade.
Os indícios apontam para um desgastante triunfo de
Romney, o conservador moderado preferido pela direção
republicana, contra os postulantes radicais. Mas, mesmo
se não ocorrer uma surpresa chocante, o discurso do Tea
Party já imprimiu suas marcas no Partido Republicano
e na eventual campanha de Romney contra Obama.
Talvez essa marca represente a tábua de salvação para
o presidente em busca da reeleição (veja a matéria na
pág. 5). Mas, certamente, ela escancara as instabilidades
fundamentais que desafiam o conjunto do sistema
político bipartidário dos Estados Unidos.
2012 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
estados unidos
Obama define o “contrato justo” como
oucos notaram, mas a linha da campanha de Barack
Obama por uma difícil, incerta reeleição foi traçada no
final de 2011, em Osawatomie, uma cidadezinha perdida no interior do estado de Kansas. A escolha não foi
casual. Na mesma cidade, no longínquo 1910, o republicano Theodore Roosevelt pronunciara o mais radical
discurso de sua carreira, de ruptura com seu sucessor
também republicano William Howard Taft e com a direção do partido. O tema de Roosevelt foi o “contrato
justo” (square deal): um ataque contra os privilégios da
plutocracia empresarial e um compromisso com a defesa
dos interesses da classe média. Obama citou o square
deal, vestindo a armadura de guerreiro dos pequenos
cujos sonhos se dissolvem no ácido da injustiça e da desigualdade. Será esse o tema permanente do presidente,
até a abertura das urnas, em 6 de novembro.
Obama toca num nervo exposto da sociedade
americana. Main Street, a rua de comércio, contra Wall
Street, a rua das finanças: o tema do conflito entre os
“homens comuns” e a aristocracia do dinheiro percorre
a política dos Estados Unidos desde os tempos de
Thomas Jefferson, o fundador do Partido Democrático
Republicano, ancestral dos dois grandes partidos atuais.
A tradição “populista” na história americana não se
confunde nem com o populismo latino-americano, um
discurso de caudilhos, nem com a social-democracia
europeia, um discurso lastreado na ideia dos interesses
dos trabalhadores industriais.
No populismo latino-americano, a salvação do povo
depende do triunfo de um caudilho que se insurge
contra as instituições da “democracia elitista”. Nos
Estados Unidos, o guerreiro dos “homens comuns”
não contesta o sistema de separação de poderes da
democracia americana, mas o que seria a sua deturpação
em benefício dos ricos e poderosos. Na narrativa da
social-democracia europeia, sob a influência mais ou
menos distante do marxismo, o imperativo encontra-se
na defesa de direitos coletivos de uma classe social. Nos
Estados Unidos, pelo contrário, o campeão de Main
Street fala para indivíduos solitários, atomizados, não
para uma classe social.
No século XIX, em sua obra célebre A democracia
na América, o francês Alexis de Tocqueville registrou
que em nenhum outro país se encontraria o “desprezo”
devotado nos Estados Unidos pela “teoria da permanente
igualdade de propriedade”. De fato, o “sonho americano”
é um elogio à prosperidade. Contudo, mesmo assim,
o tema de Main Street contra Wall Street serviu a
diferentes lideranças políticas americanas – em especial,
a um outro Roosevelt, o democrata Franklin Delano,
que reconstituiu seu partido falando aos milhões de
desesperançados colhidos pela tempestade da Grande
Depressão.
Há semelhanças entre a conjuntura atual e a dos
anos 1930 – e a aposta de Obama na sua incerta aventura da reeleição está ancorada nesse paralelo, que pode
Main Street contra Wall Street – um velho tema da política dos Estados Unidos ressurge
na hora da crise do “sonho americano”
Participação dos 1% mais ricos
na renda total nos EUA (%)
25
20
15
10
5
0
1913
1930
1950
1970
1990
2009
FONTE: The Economist, 21 de janeiro de 2012, p. 14
© Don Emmert/AFP
P
eixo de sua campanha
Em Wall Street (Nova York), jovens
protestam contra a acumulação de riqueza
propiciada pelo capital financeiro
ser expresso nas estatísticas de distribuição da renda
nacional. Na hora do crash da Bolsa de Nova York, em
1929, o 1% mais rico da população americana apropriava-se de quase um quarto da renda total. Tal proporção
reduziu-se quase continuamente, ao longo do
New Deal e do pós-guerra, e chegou a ser
inferior a 10% no início da década de 1970.
Depois, com o governo de Ronald Reagan
(1980-1987), voltou a se elevar, retornando
aos níveis de 1929 pouco antes da quebra do
Lehman Brothers, em 2008 (veja o gráfico).
A desigualdade extrema, junto com o desemprego e a redução dos salários reais da classe
média e dos trabalhadores, forma um veneno
letal, que esvazia de sentido o “sonho americano”. No fim das contas, quando se refere
ao “contrato justo”, Obama não promete a
igualdade, mas a restauração das oportunidades de ascensão social.
No cálculo do presidente, um lugar crucial
é ocupado pela radicalização dos republicanos.
O Tea Party propõe diminuir ainda mais
os impostos cobrados dos mais ricos e reequilibrar o
orçamento por meio, exclusivamente, de uma estratégia
de cortes impiedosos de gastos sociais públicos (veja a
matéria na pág. 4). Mitt Romney, o provável candidato
republicano, não se confunde com as propostas mais
extremadas do Tea Party, mas está comprometido com a
política republicana de redução de tributos – e, além disso,
é um milionário que fez fortuna no mercado financeiro.
Obama enxerga nessas circunstâncias a oportunidade de
tomar conta do centro do espectro político, recuperando
o voto dos eleitores independentes que foram decisivos
para o seu triunfo de 2008.
Os pré-candidatos republicanos, sem exceção, apresentam-se como herdeiros de Ronald Reagan, o presidente que apontava o Estado como “o problema”. Obama não escolheu uma, mas duas figuras do passado
como fontes de inspiração. Os dois Roosevelt, um de
cada partido, fizeram do “contrato justo” a sua bandeira política. Ao evocá-los, o presidente tenta marcar seus
adversários republicanos como incorrigíveis extremistas:
doutrinários a serviço dos privilégios de poucos.
Warren Buffett, o homem mais rico dos Estados
Unidos, entrou de fato na campanha de Obama com
um texto já famoso no qual declara que seus tributos
são, em termos relativos, menores que aqueles de seus
funcionários. Romney teve que admitir encontrar-se em
situação similar à de Buffett, como reflexo das reduções
promovidas por George W. Bush nos impostos sobre
a renda e sobre ganhos financeiros. A campanha do
Partido Democrata assegura que a diminuição da dívida
pública americana será obtida por meio de módicos
cortes de despesas e de aumentos de impostos apenas
para os 1% mais ricos. O discurso circunda a verdade
fria e dura dos números da dívida pública, mas tem tudo
para se converter em poderosa ferramenta eleitoral.
MARÇO 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
União Europeia
Poder
da
A lemanha
cau
o final de janeiro, os líderes da União
Europeia (UE) reunidos em Bruxelas
chegaram a um acordo para a criação do
Mecanismo de Estabilização Financeira
(MEF), uma tentativa de blindar a Europa contra a crise econômica da zona
do euro. A instituição terá um aporte
de 500 bilhões de euros para enfrentar a
turbulência causada pelo crescimento do
endividamento de países como Grécia,
Irlanda, Portugal, Espanha e Itália.
Mas o novo fundo não poderá absorver os 250 bilhões de euros do atual
Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), criado em 2010 e que será
extinto para dar lugar ao MEF. A fusão
dos dois fundos era defendida pelos governos da França, Itália e da Espanha,
mas a ideia sofreu forte oposição da
chanceler alemã Angela Merkel. Não é
preciso conhecer relações internacionais
para saber quem prevaleceu.
A oposição alemã se deveu, entre outras coisas, ao fato de a UE ter se recusado
a apoiar uma proposta de Berlim de fazer
uma intervenção formal na Grécia, criando o cargo de comissário extraordinário
para supervisionar as contas do país. Até
os líderes mais subservientes à Alemanha
consideraram a proposta abusiva. Merkel,
então, melou a fusão dos fundos e exigiu
medidas rigorosas para o resgate de países endividados. Restou aos chefes de Estado e de governo europeus criar o MEF
e estabelecer regras estritas para o novo
Pacto de Estabilidade, que prevê a obrigação constitucional dos países da UE de
reduzir o déficit público ao limite de 3%
do PIB. Só a Grã-Bretanha e a República
Tcheca ficaram fora do acordo.
Assim, a Alemanha impõe sua vontade
à União Europeia, deixando a França,
que se imaginava sua principal parceira,
no papel de simples coadjuvante. “É a
dame quem toma as decisões e, depois, o
presidente francês dá uma conferência de
imprensa para as explicar”, teria dito o expremiê italiano Romano Prodi. Por conta
disso, alguns já estão chamando Merkel de
“chanceler de ferro”, comparando-a tanto ao
seu distante antecessor Otto Von Bismarck
(1862-1890) quanto à britânica Margaret
Thatcher (veja a matéria na pág 8).
Ironicamente, os alemães conquis-
(M artin Wolf, editorialista do Financial Times )
N
taram essa posição de liderança nos
destinos da Europa por meio da união
monetária, concebida inicialmente pelo
presidente francês François Mitterrand
(1981-1995) para conter o poder da Alemanha depois da reunificação, em 1990.
“Abdicar do marco alemão em troca de
um euro estável foi uma das concessões
que abriu caminho à unificação alemã”,
lembra Peer Steinbruck, ex-presidente do
Partido Social Democrata (SPD) (veja a
matéria na pág. 7). Mas, posteriormente, a moeda única se tornaria o principal
instrumento de hegemonia alemã sobre a
Zona do Euro.
Como aconteceu isso? De acordo com
o analista Ian Bremmer, com a moeda comum a robustez da Alemanha ficou atrelada
às fraquezas da Zona do Euro. A Alemanha
é a única, entre as principais economias do
mundo, a exportar mais de 50% do seu PIB
– os EUA, por exemplo, exportam 10%. “A
moeda única compartilhada é significativamente mais desvalorizada do que poderia
ser uma moeda exclusiva da Alemanha.
As exportações alemãs são assim subsidiadas, fazendo-as internacionalmente muito
mais competitivas”, escreveu Bremmer no
Financial Times. Dessa maneira, o euro
impede que outros países europeus possam competir com a Alemanha pelo único
meio que seria viável, a desvalorização de
suas moedas.
Para estimular essa alta taxa de expor-
Divulgação
O debate interno alemão parte (...) do pressuposto de que todos os membros da Zona do Euro devem ser como
a A lemanha. No entanto, só a A lemanha pode ser a A lemanha – uma economia com disciplina orçamentária,
baixa demanda interna e um elevado excedente de exportações – porque nenhum outro país o é . Curiosamente, o
atual modelo econômico do país viola o princípio de universalidade do mais emblemático dos filósofos alemães,
Immanuel K ant.
© Steinmeije/AFP
Cláudio Camargo
Especial para Mundo
A Alemanha de Angela Merkel está no centro
da crise que ameaça a Zona do Euro, 20 anos
após a assinatura de Maastricht (à esq.)
tações, a Alemanha reduziu impostos das
empresas, cortou direitos trabalhistas, diminuiu salários reais e transferiu parte de
sua produção para os novos países-membros da UE, do antigo bloco soviético (Polônia, Hungria e República Tcheca, principalmente), onde os custos de produção
são bem menores do que os dos alemães.
“Não constitui surpresa que o balanço de
pagamentos da Alemanha tenha passado
de um pequeno déficit para o segundo
maior superávit do mundo desde que o
país adotou a moeda única, em 1999”, diz
Bremmer. Também não foi por acaso que,
enquanto o desemprego da Zona do Euro
atingiu 10,4% em dezembro, na Alemanha ele tenha ficado em 6,7%.
A posição dura que Merkel tem adotado em relação aos países devedores decorre da segurança que a Alemanha sente de
poder fazer a recuperação fiscal europeia
em seus próprios termos. “A Alemanha
pagará o preço que for necessário para estar no comando”, diz Bremmer. Mas essa
postura também tem a ver com o humor
do eleitorado alemão, que não quer que
seu país arque com a recuperação de nações “perdulárias”, como a Grécia.
O problema é que o governo alemão
imagina que os outros países da Zona
do Euro têm a mesma capacidade que a
Alemanha de enfrentar a crise, ignorando as graves consequências sociais que
as políticas de austeridade estão causan-
do em nações com economias menos
desenvolvidas. Tanto que Merkel não
deu ouvidos ao premiê italiano Mario
Monti, um tecnocrata afinado com as
diretrizes ortodoxas do Banco Central
Europeu, que disse que a Alemanha precisa fazer mais no sentido de ajudar os
seus parceiros da União Europeia, caso
não queira correr o risco de presenciar
uma reação de cidadãos frustrados com
as medidas de austeridade (veja o Diário de Viagem, na pág. 9).
Essa postura intransigente da chanceler alemã já começa a gerar ressentimentos e a alimentar fantasmas do passado
em relação à posição da Alemanha na
Europa. “Há uma crescente preocupação
com a hegemonia alemã”, disse o veterano ex-chanceler social-democrata Helmut
Schmidt. “Se nos deixarmos seduzir pela
tomada de um papel de liderança na Europa, nossos vizinhos se colocarão contra
nós”, completou. Já o jornal alemão Süddeutsche Zeitung diz que o governo de seu
país não deveria “confundir firmeza com
a arrogância do poder no que diz respeito
à crise do euro, já que esse poder é bastante real, e ele está provocando medo”.
Cláudio Camargo é jornalista e
sociólogo
2012 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
ausa temor na
H
Europa
Maastricht e o espectro da “Europa alemã”
á duas décadas, em 7 de fevereiro de 1992, os doze países integrantes da Comunidade
Econômica Europeia (CEE) assinaram o Tratado da União Europeia (UE), na cidade
holandesa de Maastricht, lançando as bases para o que hoje conhecemos como a
Zona do Euro (veja o mapa). A mudança no nome de “comunidade” para “união”,
mais do que uma mera vontade dos membros da Comunidade, representava um
avanço concreto no sentido de consolidar a organização, ao estabelecer como meta
a criação de três “pilares” básicos: moeda única, mercado, política externa e defesa
comuns e a cooperação policial e judiciária em matéria penal. O tratado foi assinado,
mas nem tudo foram flores. Os britânicos, por exemplo, impuseram uma cláusula
que lhes conferia o direito de permanecer fora da União Econômica e Monetária
(veja a matéria na pág. 8).
O governo britânico denunciava o espectro de uma “Europa germânica”. A
caracterização, mesmo que não se concordasse com ela, tinha o mérito de apontar
para um fato ineludível: a criação da União Europeia só poderia acontecer como
resultado do processo histórico que desembocou na queda do Muro de Berlim (em 9
de novembro de 1989) e na Reunificação alemã (3 de outubro de 1990). Os destinos
da UE estavam, desde a sua origem, vinculados aos destinos da Alemanha.
Para entender a equação, é preciso fazer um breve passeio pela história da
Europa, começando pelo Império Romano, herdeiro ele mesmo da tradição
cultural grega. Durante seis séculos, entre 146 a.C. e 476 d.C, os romanos,
através de campanhas militares, conquistaram e mantiveram um amplo domínio
sobre aquilo que hoje conhecemos como Europa mediterrânea e ocidental. Após
a desagregação do império, graças aos ataques dos “bárbaros” (os povos não
romanos) a união continental foi perseguida pela via da conquista militar e em
oposição ao expansionismo islâmico, já instalado na Andaluzia.
Carlos Martel derrotou, em 732, uma ofensiva islâmica em Poitiers, na batalha
que, para muitos historiadores, evitou que toda a Europa caísse sob domínio muçulmano. Carlos Magno (742–814), neto de Martel, conseguiu, por meios militares, conferir uma certa unidade geopolítica às regiões da Europa centro-ocidental
sob seu controle, lançando as bases do Sacro Império Romano-Germânico. Dois
séculos depois, as Cruzadas contra o Islã, convocadas pelo papa Urbano II com
o objetivo de “reconquistar Jerusalém”, contribuíram para sedimentar uma certa
identidade europeia com base na cristandade e no poder político e simbólico da
Igreja Católica. A expulsão dos mouros da Península Ibérica, em 1492, pelos reis
A Zona do Euro
ISLÂNDIA
Países da Zona do Euro
Países da Zona do Euro em
séria crise econômica (PIIGS)
Países que eventualmente
poderão se juntar
à Zona do Euro
NORUEGA
Países não integrantes da UE
POLÔNIA BELARUS
ALEMANHA
FRANÇA
OCEANO
ATLÂNTICO
PORTUGAL
ESPANHA
ITÁLIA
MAR MEDITERRÂNEO
Á
R Ú S S I A
MAR
SUÉCIA
DO
NORTE DIN.
IRLANDA GRÃBRETANHA
Países que optaram em
ficar fora da Zona do Euro
FINLÂNDIA
F
R
I
C
A
UCRÂNIA
HUNGRIA
ROMÊNIA
MAR NEGRO
SÉRVIA
BULGÁRIA
GRÉCIA
TURQUIA
SÍRIA
católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela consolidou a identidade entre
“Europa” e “cristandade”.
Bem mais tarde, no início do século XIX, coube à França napoleônica perseguir
a unificação europeia. O Império napoleônico durou menos de vinte anos, mas em
seu apogeu subordinou amplas áreas do continente. As guerras contra Napoleão
ensejaram sucessivas coligações de Estados sob a liderança da Grã-Bretanha, a grande
superpotência do século XIX. O Congresso de Viena (1814-1815), articulado pelo
austríaco Klemens Metternich, reconfigurou as fronteiras políticas do continente e
estabilizou o sistema político-diplomático da Europa pós-napoleônica, baseado na
tentativa de restauração das monarquias absolutistas que haviam sido varridas do
mapa pela maré revolucionária napoleônica.
Esse sistema caracterizava-se por um equilíbrio multipolar envolvendo
as cinco mais importantes potências europeias da época – Grã-Bretanha, França,
Prússia, Áustria e Rússia. A aliança dessas potências tinha como objetivo evitar
que qualquer uma delas pudesse sobrepujar as demais, estabelecendo a hegemonia
continental. Havia um cuidado particular com a vocação expansionista do Estado
prussiano: a unificação da Alemanha sob a liderança da Prússia em pleno coração da
Europa poderia, facilmente, romper o equilíbrio. Foi, precisamente, o que começou
a acontecer, em 1871, com o surgimento da Alemanha sob Otto Von Bismarck.
O crescimento do poderio econômico e militar da Alemanha, que acabaria
transformando-a na primeira potência europeia na virada do século, associado às
tensões e disputas entre alemães e franceses e entre alemães e russos, culminou
na Primeira Guerra Mundial. O conflito destruiu o sistema erguido um século
antes em Viena e, politicamente, inaugurou o século XX. Ao final da guerra, o
mapa da Europa se achava mais fragmentado do que nunca. No vácuo aberto
pelo desaparecimento dos impérios Alemão, Russo, Otomano e Áustro-Húngaro
surgiram inúmeros novos Estados.
A última tentativa de unificação geopolítica da Europa através da força militar
aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 1942, auge da
expansão da Alemanha nazista, apenas Grã-Bretanha e União Soviética resistiam
a Hitler. A ideia da união continental através da integração econômica e política
nasceu dos escombros da guerra geral. No contexto bipolar da Guerra Fria, definido
pela partição do continente nas esferas de influência dos Estados Unidos e da
União Soviética, a unificação teria que permanecer limitada à Europa Ocidental.
A criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, por
iniciativa conjunta da Alemanha Ocidental e França deflagrou esse projeto, que
desembocaria no Tratado de Roma (1957), fonte da Comunidade Europeia e,
portanto, da atual UE.
Durante toda a Guerra Fria, o Muro de Berlim era a representação material da
impossibilidade de uma unidade efetiva da Europa, assim como a divisão da Alemanha
era a condição do equilíbrio do terror estabelecido entre as superpotências. A queda
do muro abriu uma avenida para a retomada do projeto, mas também permitiu a
reunificação da Alemanha e, com ela, o ressurgimento de todos os fantasmas criados
pela história. Para o governo conservador britânico, a reunificação germânica era
sinônimo de catástrofe. Mas Londres não poderia simplesmente rejeitar o Tratado
de Maastricht, numa época em que o fim do bloco soviético e o da própria União
Soviética pareciam anunciar um futuro brilhante para a humanidade.
Ironicamente, por vias tortuosas, os piores pesadelos britânicos sobre a catástrofe
europeia acabaram se tornando realidade, não pelo surgimento de uma Alemanha
superpoderosa e opressora, mas por uma crise que ameaça implodir o euro e o
próprio projeto de unificação da Europa. A Alemanha parece hoje a liderança
incontestável da UE. Contudo, na hipótese de implosão da moeda comum, a
tormenta arrastaria consigo a própria potência germânica.
MARÇO 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
União europeia
A moeda e a política
á muitas divisões (dentro da União Europeia). Há a
divisão entre os países que pertencem à Zona do Euro
e os que não pertencem. Há a divisão entre os países
fortes e os fracos, com estes pedindo ajuda financeira.
Temos a profunda rivalidade entre França e Alemanha.
A Alemanha é a força econômica da Europa, e a França
deseja desempenhar um papel similar. Não tem o poder
econômico, então luta para manter-se no topo como
força política. Por isso, vemos Nicolas Sarkozy ecoar
constantemente as opiniões de Angela Merkel . Pode
parecer uma parceria, mas é rivalidade: os franceses não
querem ficar atrás dos alemães. Num mosaico de visões
tão díspares, não haveria consenso.”
A avaliação de Norman Lamont, publicada em entrevista à revista Época, oferece um bom resumo dos obstáculos que impedem que a União Europeia consiga de fato
exercer um governo econômico centralizado europeu.
Lamont era ministro das Finanças da Grã-Bretanha no
gabinete do primeiro-ministro conservador John Major,
que manteve o país fora do acordo monetário que criou a
moeda única, estabelecido pelo Tratado de Maastricht.
O tratado impunha parâmetros econômicos e financeiros (principalmente, patamares de inflação e dívida
pública em relação ao PIB) que determinado país deveria
alcançar, se quisesse ser admitido como membro. À época, Major qualificou o acordo monetário como um ato de
“suicídio político”. Em 1993, Londres tirou a Grã-Bretanha de um mecanismo de controle cambial criado em
1979 com o objetivo de estabilizar as moedas europeias.
Major suspeitava que a unificação europeia levaria à “germanização da Europa” (veja a matéria na pág. 7).
Herdeiros diretos da revolução liberal promovida
por Margaret Thatcher, Major e Lamont temiam que a
criação de uma moeda única implicaria um sério golpe
na soberania nacional dos países-membros. E estavam
certos sobre esse ponto: por mais que os discursos, à
época, falassem em “colaboração entre países-irmãos”,
o fato é que as economias mais fortes (em particular, a
alemã e a francesa) acabariam por ditar as condições de
funcionamento da moeda e do mercado. Para compreender
isso, basta imaginar qual país teria mais peso na hora
de determinar políticas monetárias para controlar uma
eventual moeda única adotada por Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai, no âmbito do Mercosul.
Além do mais, mecanismos transnacionais de
controle de moeda implicam ingerência direta na
maneira como cada país regula o funcionamento de sua
própria economia. Primeiro, porque cada país signatário
do acordo não pode mais emitir moeda, já que essa passa
a ser controlada por um Tesouro central europeu. É isso
que impede, por exemplo, Grécia, Portugal e Espanha
de imprimir dinheiro para pagar suas dívidas. Ou
mesmo de emitir títulos da dívida pública para vender
no mercado: a emissão de títulos públicos de dívida, isto
é, papéis garantidos pelo governo, é apenas uma forma
“disfarçada” de imprimir papel-moeda.
Além disso, um governo de convicções fortemente
liberais poderia ser obrigado a elevar os impostos “den-
© Filippo Monteforte/AFP
“H
Atrás da união monetária da Europa, escondem-se as diferenças políticas, sociais,
econômicas e culturais que separam as nações europeias. A crise do euro evidencia os limites
do projeto de unidade supranacional
Manifestações de jovens, trabalhadores e imigrantes na Itália (foto acima) e outros países da Zona
do Euro evidenciam o fato de que a Europa está muito mais para uma “panela de pressão” do que
um espaço uniforme e homogêneo
tro de casa”, por imposição de medidas fiscais aprovadas
no âmbito da união monetária. A questão dos impostos
é absolutamente vital para definir a natureza de um governo. Em um dos polos extremos, estão os liberais, que
acreditam que impostos cada vez menores estimulam o
funcionamento da economia, por liberar capital para investimentos, criação de empregos etc.; no outro extremo,
os social-democratas creem ser função do Estado “corrigir” as distorções e injustiças sociais provocadas pelo
funcionamento do mercado, e por isso recomendam o
uso de uma pesada carga de impostos para investir em
educação, saúde e infraestrutura públicas. Hoje, nos Estados Unidos, esta é a principal questão enfrentada pelos
candidatos à presidência do país (veja as matérias nas
págs. 4 e 5).
Novamente, Lamont resume bem a percepção
dos liberais britânicos: “A Grã-Bretanha sempre viu o
projeto da União Europeia com desconfiança. Éramos
e somos o maior setor bancário e financeiro da Europa.
Na ocasião, havia a intenção de criar impostos para
o setor. A Grã-Bretanha teria de pagar tributos em
excesso, algo desproporcional. Não víamos por que
deveríamos ser taxados para financiar a Zona do Euro,
da qual não tiraríamos vantagens. Acreditávamos num
bloco econômico, mas não num bloco político. Os
outros países sempre estiveram interessados em criar
uma utópica união política.”
Na outra ponta do espectro ideológico ficam as
poderosas centrais sindicais, os partidos socialistas
e social-democratas, as ONGs e grupos de pressão
formados por trabalhadores da indústria, do setor de
serviços e do funcionalismo público que não querem
perder suas garantias trabalhistas e sociais. Não por acaso,
na França, a segunda maior economia da Zona do Euro,
aconteceram as mais importantes manifestações e greves
contra reformas econômicas de cunho liberal formuladas
pela cúpula da União Europeia. São esses setores também
que mais resistiram à integração de seus respectivos países,
manifestando-se nas ruas ou em plebiscitos e consultas
nacionais, como foram os casos da rejeição à Constituição
Europeia, pela França e Holanda, em 2005, e o da
Irlanda, ao rejeitar o Tratado de Lisboa (que substituiu a
Constituição Europeia), em 2008 (decisão revertida por
um segundo referendo, no ano seguinte).
A Zona do Euro mais se assemelha, portanto, a uma
imensa panela de pressão, cujos ingredientes são realidades culturais, econômicas e financeiras completamente
distintas. Países como Grécia, Portugal, Espanha e Itália
só podem manter o euro como moeda à custa de políticas
de ajuste recessivo. Isso significa que, do ponto de vista da
economia, faliu o Tratado de Maastricht.
Contudo, decretar o fim da moeda implicaria uma
catástrofe de grandes dimensões. Hoje, centenas de
milhões de europeus têm suas economias de vida, suas
dívidas, seus bens de capital e seus investimentos em
euro. O fim da moeda causaria uma crise semelhante
à que afundou a Argentina, em 2001, quando foi
decretado o fim da paridade entre o peso e o dólar. No
fim, provavelmente destruiria junto o projeto político de
unidade da Europa que nasceu como resposta à Segunda
Guerra Mundial.
2012 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
Mauro Tagliaferri
Especial para Mundo
Portugal em tempos de rifas
canção nem havia sido lançada em
CD. O grupo Deolinda a interpretava
pelas primeiras vezes em shows na cidade
do Porto, no norte do país. Alguns fãs
gravaram com seus celulares e publicaram
no YouTube. Em uma semana, tornou-se
fenômeno.
O início da canção diz: “Sou da geração
sem remuneração / E não me incomoda esta
condição / Que parva que eu sou! / Porque
isto está mal e vai continuar / Já é uma sorte
eu poder estagiar / Que parva que eu sou! / E
fico a pensar / Que mundo tão parvo / Onde
para ser escravo é preciso estudar”, expressa,
sem rodeios, a frustração dos jovens adultos
portugueses. Embora com boa formação
escolar, essa geração sobrevive de estágios
e trabalhos provisórios, insuficientes para
manter a própria casa, comprar um carro,
casar, ter filhos...
Antes mesmo de a canção virar hino
de protesto, o mercado financeiro já percebia que uma economia estagnada há uma
década, que não gerava empregos
para os jovens e sobrecarregava o
Estado com subsídios e gastos cada
vez maiores, estava fadada a não pagar suas dívidas. Movidas por pavor
(a Grécia e a Irlanda já haviam ido
para o buraco), realismo e especulação, as instituições internacionais
elevaram as taxas de juros sobre os
empréstimos que financiavam o
governo, os bancos e as empresas
de Portugal. Em março de 2011, o
primeiro-ministro José Sócrates, do
Partido Socialista, se demitiu. Em
abril, Portugal pediu socorro financeiro ao FMI e à União Europeia.
Ao longo de oito meses, 39,6
bilhões de euros já haviam sido
transferidos ao país, mas crescem as
apostas de que a ajuda prometida,
um total de 78 bilhões, não será
suficiente para equilibrar as contas
públicas. Uma televisão portuguesa,
a TVI, flagrou recentemente o ministro
das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble,
dizendo ao homólogo português Vítor
Gaspar que seu país está disponível para
negociar “ajustes” ao programa de resgate
financeiro concedido a Portugal.
Estima-se que, em 2012, a economia
portuguesa encolherá mais de 3%. A
taxa de desemprego, já um recorde, tende
a subir. No fim do ano passado, ela estava
em 13,6% da população ativa, a quarta
mais alta da Zona do Euro, atrás de
Espanha, Grécia e Irlanda. Em números
conservadores, havia 754 mil pessoas sem
trabalho. Alguns economistas acreditam
que os desempregados já sejam mais de
um milhão, numa população de cerca
de 11 milhões. Entre os mais jovens, dos
18 aos 25 anos, as portas do mercado de
trabalho se fecharam para um em cada
três portugueses. Imigrar para o Brasil
tornou-se uma opção para centenas de
milhares de portugueses.
Mesmo quem tem trabalho está mais
pobre. As medidas aprovadas pelo governo do novo primeiro-ministro, Pedro
Passos Coelho, do Partido Social Democrata, seguem a cartilha recessiva ditada
pela Alemanha para a Europa: aumento
de tributos e corte de gastos públicos. A
elevação do imposto sobre mercadorias
e serviços tornou tudo mais caro. Uma
Quatro feriados, dois civis e dois
religiosos, ainda não definidos, serão
extintos. Na última hora, o primeiroministro cancelou a tolerância de ponto
no Carnaval. Houve reclamação geral.
Ao reagir, Passos Coelho declarou que os
portugueses precisam ser menos “piegas”.
A afirmação recebeu críticas de todos os
setores da sociedade, embora, no contexto do
discurso do dirigente, tenha sido um apelo
à competitividade, um dos pontos fracos de
Portugal. Na Europa, os portugueses estão
entre os que mais trabalham, em número
de horas, e entre os que menos produzem,
em termos de riqueza.
A competitividade é uma questão chave, num momento em que o único motor
da economia portuguesa, as exportações,
começa a fraquejar. Se, em janeiro de
2011, o país exportou 20% mais que em
janeiro de 2010, em dezembro de 2011
esse número era apenas 4,4% superior ao
de dezembro do ano anterior. Culpa, prin-
Imersos no caos provocado pela crise, portugueses enfrentam a falta de
perspectivas sociais e um horizonte político repleto de dúvidas
parcela dos funcionários públicos ficará
sem o décimo-terceiro e o salário de férias durante dois anos. Há menos recursos, inclusive, para a saúde e a educação.
Numa tentativa de enxugar a máquina
pública, o governo estuda fechar algumas
câmaras municipais e tribunais.
cipalmente, da queda das compras feitas
por Espanha, Alemanha e França, os três
maiores parceiros comerciais de Portugal.
No mercado interno, há pouca esperança. De acordo com o Banco Central,
2011 se encerrou com 670 mil famílias
inadimplentes. Destas, 140 mil tinham
© Patricia de Melo Moreira/AFP
A
e marmitas
dívidas no financiamento de imóveis.
Entre particulares e empresas, as dívidas com o setor bancário chegam aos
11,4 milhões de euros. Não houve banco
que tenha fechado 2011 no azul. Casas
e apartamentos estão sendo retomados
pelos bancos por falta de pagamento. E,
para se livrar desses imóveis, as instituições os revendem por preços abaixo dos
praticados no mercado. As imobiliárias
estão em pânico e o setor da construção
civil estagnou.
Jornais e televisões acompanham de
perto histórias como a do desempregado
João Fontinha, que decidiu rifar a própria
casa, nos Açores, por não conseguir pagar
as prestações mensais de 400 euros.
Fontinha precisa vender 20 mil rifas de
cinco euros cada para cobrir os 100 mil
euros que deve ao banco. Caso contrário,
perderá não só o imóvel, como a casa da
mãe dele, dada em garantia na penhora.
Virou moda levar marmita para o
trabalho. A refeição é mais saudável e, principalmente, mais barata.
Várias hortas comunitárias foram
reativadas em Lisboa. E os mercadinhos de bairro ganharam terreno
em relação aos hipermercados porque tiraram da gaveta o caderno de
fiado.
A “adaptação” dos portugueses
aos tempos difíceis, porém, revela
uma certa ilusão de que, um dia,
tudo voltará a ser como antes. O
governo vê a crise sob o prisma
do calendário eleitoral: toma as
medidas mais duras agora, de uma
vez, no início do mandato, para que
a economia comece a se recuperar
dentro de três anos, na época das
próximas eleições legislativas.
Mas, ao contrário, se tudo voltar
a ser como antes no fim da crise, os
sacrifícios não terão servido para
nada. O debate sobre qual país
os portugueses querem construir depois
do caos é, por enquanto, marginal. No
caso de Portugal, esta é a crise dentro da
crise.
Mauro Tagliaferri, jornalista,
trabalhou na Folha de S.Paulo,
Rede Globo e SBT. Há três anos, é
correspondente da Rede Record em
Lisboa
MARÇO 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
malvinas
A rgentina relembra a derrota
exigindo negociações
á trinta anos, em abril de 1982, confrontados com
a implosão do seu regime, os militares no poder na
Argentina apelaram para o nacionalismo invadindo as
ilhas Malvinas, as Falklands, sob bandeira britânica e há
muito reclamadas pelos argentinos. Em junho daquele
ano, com tropas inglesas despachadas por Margaret
Thatcher já donas da situação, os generais argentinos não
sabiam mais o que fazer. “Não viemos aqui para rendernos”, disse, a 2 de junho, um dos generais, enviado a
Nova York com a tarefa de negociar uma “solução
honrosa” no Conselho de Segurança da ONU.
Mas já estava selado o colapso de uma aventura. Três
dias de discussões mostraram que só seria aceito um
cessar-fogo equivalente a uma rendição sem condições. A
guerra retomou seu curso sangrento, depois de alguns dias
de paralisia, sem que os generais argentinos conseguissem
mascarar a derrota com dois itens indispensáveis e não
obtidos: um cessar-fogo sem a imagem de humilhação e o
compromisso de que o estatuto geopolítico das Malvinas
não voltaria a ser de colônia bitânica.
Embora com a relutância
de aliados, França e Japão se
abstendo no Conselho de Segurança, a Grã-Bretanha se
manteve firme na decisão de
recuperar as ilhas. O Conselho de Segurança fechou-se
às pretensões argentinas e os
generais voltaram a Buenos
Aires de mãos vazias e com
uma indisfarçável sensação
de isolamento.
O papa João Paulo II,
com viagem marcada, não
daria um jeito? Procurando
mostrar vitalidade, os argentinos ainda atacaram barcaças de desembarque, matando muitos britânicos. Com
isso, precipitaram o ataque
final à capital das Malvinas,
ainda em suas mãos. O papa, em sua visita pastoral, talvez pudesse suavizar uma rendição, a essa altura inevitável. Em mensagem a ele, no entanto, o general Leopoldo
Galtieri, o ditador, ainda falou em “retirada de ambos os
lados das tropas em combate”, sem aguardar o que viria
no âmbito do sermão papal. João Paulo II respondeu com
um discurso que mencionava o “sofrimento dos argentinos que não sabem onde estão seus entes queridos” e os
muitos milhares de “desaparecidos”, na realidade assassinados em nome da “segurança nacional” sem que se soubesse onde foram parar seus corpos martirizados.
A Guerra das Malvinas, há três décadas, precipitou o colapso da ditadura argentina.
Mas o tema da soberania sobre as ilhas do Atlântico Sul ressurge no discurso da Argentina
de Cristina Kirchner
Antes de partir com destino à capital argentina, o
papa recebera o apelo de 133 parentes de “desaparecidos”
para que tratasse disto com os generais no poder. O
arremate papal foi mais amplo. “Guerras são absurdos”,
disse João Paulo II ainda em Buenos Aires.
Sobre a das Malvinas, não faltaram depoimentos e livros. Um deles, de um coronel reformado, fala da improvisação, desatino e incompetência militar “dos generais
que nos jogaram numa tresloucada aventura no Atlântico
Sul”. De sua posição, chamada de “Ganso Verde”, o coronel testemunhou o desastre e ofereceu informações esclarecedoras, como a de que contava, como comandante
de pelotão, com 45% de recrutas analfabetos e recém-incorporados. Correu mundo a notícia, documentada com
fotos, do general que comandou as tropas de invasão se
exibindo em companhia de sua secretária, em passeios
pela ilha de carro. O coronel de “Ganso Verde” confessou-se “sem cartografia da área onde teve de combater”.
Soldados argentinos ocupam a base militar
britânica em Puerto Argentino (Port
Stanley), no início da Guerra das Malvinas,
em abril de 1982
Não faltaram brutalidades, como o afundamento com
muitas mortes do cruzador argentino Belgrano, que estava fora da área de combate – um evento submetido a
inquérito secreto do ministério da Defesa britânico, cujas
conclusões não se conhece até hoje.
© Daniel Garcia/AFP
H
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
Os argentinos parecem acreditar num futuro
favorável a eles. Na Politique Étrangère, da França, o
argentino Angel Telito diz que a guerra no Atlântico Sul
ultrapassará “os limites do século e se projetará no futuro,
indefinidamente” como um litígio entre “novas e velhas
potências”. Telito fala disto como “fator determinante
do futuro envolvimento de toda América Latina” em
favor das pretensões argentinas. Lord Carrington, exministro do Exterior britânico, afirmou que “cedo ou
tarde teremos de discutir com a Argentina o futuro das
Malvinas”. Pode ser verdade, mas fatos recentes não
estimulam tal previsão.
Há pouco, o governo britânico enviou carta ao secretário-geral da ONU excluindo qualquer possibilidade de diálogo com a Argentina envolvendo a soberania
das Malvinas. “Não pode haver e não haverá negociação
até o dia em que os habitantes das Falklands o desejarem”, diz a carta. A existência de reservas petrolíferas
nas águas do arquipélago torna tudo ainda mais difícil. “Não queremos ser colonizados pela Argentina”, já
declarou um porta-voz dos
cerca de 3 mil habitantes do
arquipélago. A carta reitera
que a soberania britânica
data de 1764 e que o arquipélago “nunca pertenceu à
província argentina da Terra
do Fogo”.
O nome Falklands foi
dado em 1690, em homenagem ao Visconde de
Falkland, uma cidade na
Escócia. O nome Malvinas, com data de 1764,
deriva do francês Les Malouines, referência à cidade
francesa de Saint Malo. Na
nova erupção do tema das
Malvinas, está em pauta o
papel confuso dos Estados
Unidos. Primeiro, irritaram
britânicos e argentinos com seu “neutralismo”. Depois
irritaram somente os britânicos, dizendo-se favoráveis a negociações. No fim, só os argentinos ficaram
furiosos com a notícia de que Washington projetaria
instalar uma base nas Malvinas, intenção revelada no
artigo na Politique Étrangère. O arquipélago é uma posição estratégica de alto valor para o controle militar
do Atlântico Sul. A instalação de uma base americana
simbolizaria mais uma passagem do bastão, de Londres para Washington.
2012 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
10
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
Golfo Pérsico, geografia
e geopolítica
A
s pressões cada vez maiores da
comunidade internacional sobre o Irã
em relação ao projeto nuclear que o país
desenvolve fez com que o governo de
Teerã ameaçasse criar obstáculos para
a travessia de navios petroleiros pelo
Estreito de Ormuz, a única saída do
Golfo Pérsico para o Oceano Índico.
O Golfo Pérsico é um braço de mar
quase fechado que se estende desde o
estuário do Chatt al-Arab, canal fluvial
resultante da junção dos rios Tigre
e Eufrates, ao norte, até o Estreito de
Ormuz, onde as águas do golfo se
conectam com as do Oceano Índico.
Situado num dos pontos nevrálgicos da
região do Oriente Médio, o Golfo Pérsico
banha os territórios de oito países: Irã,
Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Barein,
Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã
(veja o mapa).
Durante muito tempo os arredores
do golfo se constituíram numa área
pobre, árida e despovoada, frequentada
por piratas e traficantes. Todavia, ao
longo do século XX, a região passou a
ter elevada importância estratégica, pois
tanto nos territórios continentais como
nos espaços marítimos sob controle dos
Estados ribeirinhos se concentra parcela
importante da produção mundial de
petróleo e de gás natural. Na esfera
direta do golfo estão aproximadamente
60% das reservas do “ouro negro” e
40% das de gás. Pelo Estreito de Ormuz
passam cerca de 40% do petróleo
comercializado no mundo.
As porções norte e leste do golfo são
ocupadas por um único Estado, o Irã, e
o restante da orla marítima pelos demais
países. Culturalmente, a região do golfo
é também uma área de contato entre as
civilizações persa – representada pelo Irã
– e árabe, que engloba os demais países.
Por conta disso, o golfo é polêmico
até no nome. Muitos especialistas,
especialmente franceses, defendem que
o nome correto dele deveria ser Golfo
Arabo-Pérsico e não Golfo Pérsico. Nos
AFEGANISTÃO
A
região
do
Golfo
Pérsico
IRÃ
IRAQUE
KUWAIT
Go
lfo
BAREIN
ARÁBIA SAUDITA
Países com litoral no Golfo Pérsico
Regiões produtoras de petróleo/gás
Rota dos
navios
petroleiros
CATAR
Pé
rs
Estreito
de Ormuz
ic
PAQUISTÃO
o
EMIRADOS
ÁRABES
UNIDOS
OMÃ
MAR
ARÁBICO
1 para o Extremo Oriente
2 para o canal de Suez
e Cabo (África do Sul)
Atlas escolares utilizados em países do
mundo árabe ele aparece com o nome de
Golfo Arábico.
Na virada do século XIX para o século XX, aproveitando-se da decadência
do Império Turco-Otomano e tentando
conter o avanço da influência do Império Russo sobre a Pérsia, a Grã-Bretanha
firmou acordos políticos e territoriais
com várias lideranças árabes na margem
ocidental do Golfo. Algumas décadas
depois, tal estratégia resultou na fragmentação geopolítica da área onde hoje
se encontram o Kuwait, o Catar, Barein,
o sultanato de Omã, os sete emirados que
formam os Emirados Árabes Unidos e a
Arábia Saudita.
O Iraque foi uma entidade geopolítica
“inventada” pelos britânicos – tanto que,
no início do século XX, corria nos meios
diplomáticos britânicos a versão de que as
fronteiras do Iraque teriam sido traçadas
“num belo domingo de sol em Londres”.
Essas fronteiras, arbitrárias e artificiais,
se tornaram mais tarde focos de tensão e
de conflitos. Entre as causas da Guerra
Irã-Iraque (1980-1988), encontrava-se a
questão da retificação da fronteira comum
entre os dois países na região do Chatt alArab. Uma das justificativas do Iraque para
a invasão do Kuwait, em 1990, foi a de que
este último país constituía um produto do
imperialismo britânico – e deveria ser, na
realidade, uma província iraquiana.
200 km
Os países do Golfo Pérsico exibem
grandes discrepâncias no que se refere
à extensão territorial, à demografia e
à economia. O de maior superfície é a
árida Arábia Saudita, com pouco mais de
2 milhões de km2, enquanto o pequeno
Barein possui área de apenas 700 km2.
O mais populoso dos países é o Irã,
com cerca de 75 milhões de habitantes;
no outro extremo encontra-se o Barein,
com pouco mais de 800 mil. A maior ou
menor presença e exploração de petróleo
e gás se traduz por fortes disparidades
econômicas.
A imensa maioria da população de
todos os países do Golfo professa o islamismo, mas com importantes diferenciações sectárias. No Irã e no Iraque, a
maioria é formada por xiitas. No Irã, a
proporção de xiitas é de cerca 90%, enquanto os xiitas iraquianos representam
aproximadamente 60% da população
total do país. Ironicamente, desde a derrubada da ditadura sunita de Saddam
Hussein pelos americanos, cresce a influência do Irã entre a maioria xiita do
Iraque. Nos demais Estados da região,
os sunitas são majoritários, mas existem
minorias xiitas. A convivência entre sunitas e xiitas, especialmente no Iraque,
tem sido quase sempre conflituosa. No
Barein, a Primavera Árabe assumiu os
contornos de uma revolta xiita contra a
monarquia sunita.
O cenário, porém, é ainda mais
complexo, pois a exploração do petróleo e do gás atraiu para a região levas de
imigrantes dos países árabes vizinhos
e, também, do sul e sudeste da Ásia.
Indianos, paquistaneses e filipinos formam, por esse motivo, parcela significativa dos trabalhadores engajados nas
economias do Golfo Pérsico.
Como reflexo da diversidade histórica, política e cultural, a região do
golfo é palco inúmeras disputas geopolíticas. Há tensões de caráter religioso
e étnico, como as que envolvem o Irã
persa e xiita e os países árabes vizinhos,
dominantemente sunitas. Há, também,
tensões derivadas das diferenças entre
os regimes políticos. Iraque e Irã são
repúblicas, enquanto os demais países
são monarquias. O Irã, uma monarquia
pró-ocidental até 1979, converteu-se
em república islâmica dirigida pela elite
teocrática xiita. No Iraque, uma república nacionalista e autoritária anti-ocidental foi substituída, como resultado
da invasão americana de 2003, por uma
instável república parlamentarista que
se equilibra em acordos entre xiitas, sunitas e curdos.
Contudo, a principal raiz das instabilidades políticas regionais encontra-se
nas excepcionais riquezas energéticas do
subsolo. O “Golfo do petróleo” experimentou três grandes conflitos recentes,
com repercussões em escala mundial. A
Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a Guerra do Golfo (1990-1991) e a Guerra do
Iraque (2003) destruíram uma arquitetura de poder regional baseada na
rivalidade entre Irã e Iraque. Daqueles
terremotos, emergiu um Irã mais forte,
com ambições de exercitar sua influência em toda a região. A tensão latente,
potencialmente explosiva, sobre o programa nuclear iraniano evidencia o desconforto de Washington com as ambições de Teerã.
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
antártica
Há cem anos, a última grande aventura
conquista do Polo Sul faz parte de um momento histórico conhecido como o Período Heroico das
Explorações Antártidas, que se estende dos finais de
1890 até finais de 1920, coincidindo parcialmente
com a Primeira Guerra Mundial, no ápice das narrativas nacionalistas ocidentais. O continente antártico
se tornou o principal objetivo das explorações científico-geográficas de vários países. Sucederam-se dezesseis expedições relevantes, organizadas sob a bandeira
de oito países, que pretendiam reclamar a soberania
sobre partes do continente.
Os heróis da corrida decisiva, que percorreriam aproximadamente 3 mil km foram o explorador norueguês
Roald Engelbregt Gravning Amundsen (1872-1928),
líder da primeira expedição a atingir o Polo Sul, em 14
de dezembro de 1911, e o oficial da marinha britânica
Robert Falcon Scott (1868-1912), que alcançou o Polo
Sul logo depois, em 17 de janeiro de 1912. Amundsen
triunfou, mas Scott ficou com as láureas do martírio.
O norueguês constituiu uma equipe de nove
exploradores, com as habilidades e competências
necessárias para ajudá-lo a conquistar seu único objetivo:
alcançar a latitude de 90º S antes de qualquer outro
homem. Eles partiram da Noruega em 10 de agosto de
1910. Do outro lado, a expedição Terra Nova, de Scott,
composta por 16 oficias e cientistas e nove marinheiros,
proclamou metas diversas, que se estendiam da renovação
da identidade imperial britânica até a investigação
científica. Scott, contudo, também almejava, acima de
tudo, a primazia no Polo Sul.
O veleiro tipo escuna Fram, de Amundsen, ancorou na
Baía das Baleias (78º 41’ S), no Mar de Ross, no continente
antártico, em meados de janeiro de 1911. A baía ficava
96 km mais próxima do Polo Sul que a Ilha Ross, lugar
escolhido como ponto de ataque por Scott. No início de
fevereiro, os homens de Amundsen construíram a base
Framheim e avistaram o Terra Nova, baleeiro de Scott.
Entre fevereiro e agosto de 1911, enquanto se
instalava a escuridão do inverno austral, o meticuloso
Amundsen testou todo o equipamento e cumpriu a
tarefa vital de distribuir estrategicamente 4,5 toneladas
de provisões por diversos depósitos (o primeiro a 80º S),
em diferentes latitudes, no rumo do Polo. Por segurança
afixaram-se bandeiras de sinalização em cada depósito,
ao longo de uma extensa linha traçada no mapa e
percorrida no terreno. Graças à obsessão de Amundsen
pelo planejamento, sua expedição encontrou todos os
O feito de Amundsen e Scott, os rivais pioneiros do Polo Sul, assumiu proporções de uma
história trágica, cultuada até hoje por leitores de todo mundo. No centenário, museus de
ciência de vários países organizam exposições que celebram a corrida à Antártida
© NOAA Photo Library
A
Renato Mendes, de Lisboa
Especial para Mundo
O explorador Roald Amundsen chega ao
Polo Sul, em dezembro de 2011
depósitos, quer no ataque ao Polo, quer no regresso a
base Framheim.
Uma primeira tentativa de ataque ao Polo, em
setembro, foi frustrada pelas temperaturas extremas, que circundaram os 57 ºC negativos. A marcha efetiva começou em 20 de outubro, pouco antes
do equinócio de primavera. A expedição viajava em
quatro trenós, puxados por 52 cães. Após cinco dias,
Amundsen tinha 240 km de vantagem sobre Scott.
Viajava de cinco a seis horas por dia, com intervalos
de uma hora para descanso dos animais. Em 8 de
dezembro, a equipe norueguesa passou pelo ponto
extremo sul atingido por outro lendário explorador,
Ernest Schakleton (1874-1922) e Amundsen registrou em seu diário: “88º 23’ ficou para trás; estamos
mais ao sul do que qualquer ser humano já esteve.
Nenhum outro momento em toda a viagem me afetou como este.”
Serviço
Na vasta literatura sobre a aventura do Polo, destacam-se algumas obras indispensáveis:
l The South Pole, de Roald Amundsen, cuja edição original foi publicada em 1913.
l The heart of the Antartic: The Farthest South Expedition (1907-1909), o relato da expedição de Ernest Shackleton.
l Scott, Shackleton and Amundsen – Ambition and Tragedy in the Antartic, de David Thomson (2002).
l Race for the South Pole: The Expedition Diaries of Scott and Amundsen, de Roland Huntford (2010).
O triunfo veio a 14 de dezembro, quando Amundsen
e seus homens atingiram o Polo Sul geográfico da Terra,
com apenas 17 cães vivos. O plano era aquele mesmo:
os demais cães, extenuados, haviam sido sacrificados
e devorados por homens e cães remanescentes. Como
os instrumentos não eram capazes de indicar a exata
localização do Polo, Amundsen enviou três de seus
homens para três direções distintas, por 20 quilômetros,
para ter a certeza de que pelo menos um deles alcançaria
o ponto invisível de encontro de todos os meridianos.
Amundsen fez uma tenda no lugar de seu triunfo, Polheim, “o mais próximo do Polo, quanto foi humanamente possível, com os instrumentos à nossa disposição”, e
nomeou uma parte do planalto em homenagem ao seu rei
Haakon VII. Dentro da Polheim, colocou um hexágono,
um altímetro, botas de pele de rena, luvas e uma carta
destinada a Scott na qual pedia que o feito fosse divulgado, na hipótese de que sua expedição perecesse durante a
jornada de regresso. A hipótese macabra não se concretizou: Amundsen e seus homens regressaram em segurança
e, do porto de Hobart, na ilha australiana da Tasmânia,
em 7 de março de 1912, o norueguês transmitiu a notícia
histórica, com exclusividade, para o The New York Times
e para o londrino Daily Chronicle.
Scott organizou uma expedição maior, mais imponente e muito menos eficaz que a de Amundsen. Além
de cães, o inglês levou também pôneis siberianos e tratores para o gelo, opções que se revelariam desastrosas:
os pôneis morreram em pouco tempo e as máquinas,
nunca antes testadas naquelas condições, quebraram rapidamente.
A expedição britânica partiu a 1 de novembro, dez
dias depois da de Amundsen, e alcançou o Polo Sul em
17 de janeiro de 1912, com mais de um mês de atraso
em relação ao rival, após uma jornada de sofrimentos
indizíveis. Na paisagem gelada, avistaram Polheim,
a tenda de Amundsen. Scott registrou em seu diário:
“Bem, agora temos que dar as costas às nossas ambições
e com sentimento de dor teremos que nos arrastar por
800 milhas – adeus aos devaneios!” Seus homens,
extenuados fisicamente, feridos e esfaimados, nunca
sairiam da Antártida.
A viagem de regresso, de 1,3 mil km pontilhados por
tempestades de neve, terminou a apenas 17 km de um
depósito de combustíveis e alimentos. Todos os homens
morreram de frio, fome e exaustão. Em sua tenda, nas nove
noites derradeiras, enquanto as tempestades uivavam do
lado de fora, Scott escreveu diversas cartas de adeus. Sua
última entrada no diário tinha a data de 29 de março:
“Devemos viver até o fim, mas estamos ficando cada vez
mais fracos e o fim não parece estar distante. É pena, mas
não posso mais escrever.”
Renato Mendes é jornalista
2012 MARÇO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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