Março
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■ ANO 0 ■ Nº 1 TIRAGEM: um Presente Para voCÊ C 20 000 EXEMPLARES rumo À imPlosão da euroPa de maastriCht? arlos Magno, Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler – o sonho da união da Europa pela força nasceu das cinzas do Império Romano e atravessou a história, da Idade Média à Segunda Guerra Mundial. O nazismo, o nacionalismo descontrolado, a guerra devastadora transformaram o sonho em horror. A resposta ao horror foi o projeto de união da Europa pelo consenso: Comunidade Europeia, hoje União Europeia. O drama do euro ameaça destruir esse projeto, aperfeiçoado durante toda a segunda metade do século passado. Uma “Alemanha europeia” no centro de uma Europa democrática – o projeto europeu tinha o objetivo de evitar o ressurgimento de uma Alemanha expansionista em busca de uma “Europa alemã”. No começo, a Alemanha cedeu sua primazia na indústria siderúrgica. Mais tarde, renunciou à soberania sobre Agravamento da crise do euro leva cada vez mais jovens e trabalhadores a sua moeda. Ironicamente, duas décadas depois do às ruas de Roma (foto) e das principais capitais europeias Tratado de Maastricht, a crise do euro deixa entrever o cenário inesperado de uma “Alemanha europeia” na liderança de uma “Europa alemã”. A unidade da Europa extraiu sua legitimidade original das circunstâncias criadas pela Guerra Fria. No início, a Comunidade Europeia aparecia como um escudo das liberdades erguido à frente de uma ameaçadora União Soviética. Quatro décadas depois, na hora da queda do Muro de Berlim, a União Europeia apareceu como o leito democrático aberto à adesão das nações do antigo bloco soviético. A fonte da legitimidade transferiu-se, contudo, da política para a economia. Desde Maastricht, Europa significa uma promessa de prosperidade para todos. A crise do euro é, sobretudo, a crise dessa promessa. Vejas as matérias nas págs. 6 a 9 main street versus Wall street B Nosso jornal completa duas décadas de existência. Para comemorar, a partir de abril vamos enviar aos nossos assinantes, quinzenalmente, por e-mail, os melhores textos publicados ao longo de nossa história. Se você ainda não recebe a nossa newsletter e comunicados por e-mail, por favor se inscreva. Envie um e-mail para: [email protected] ■ arack Obama ligou o motor de sua campanha pela reeleição falando em justiça, equidade e oportunidade. No rastro da mais profunda recessão desde a Segunda Guerra Mundial, o presidente se apresenta como o guerreiro dos “homens comuns” contra os privilégios da plutocracia das finanças. Main Street versus Wall Street, a rua do comércio contra a rua dos bancos – o tema de Obama tem ressonâncias e tradição na história política americana. Mais que isso, ele é uma ferramenta no combate para ocupar o centro do palco político. Tudo conspira contra a reeleição de Obama – exceto os rivais republicanos. Sob o influxo da corrente radical do Tea Party, o Partido Republicano oferece um espetáculo inédito de radicalismo que mistura bandeiras econômicas ultraliberais, gritos xenófobos de nativismo e discursos cristãos fundamentalistas. Os extremistas do Tea Party podem não passar no teste das eleições primárias, mas seus cânticos de guerra serão lembrados até novembro. Nisso residem as esperanças do presidente. Págs. 4 e 5 A VIDA NAS REDES SOCIAIS Fotos: Reprodução l Editorial – Em Cuba, Raúl Castro reafirma o dogma do partido único. Pág. 3 l A persistência da ditadura de Assad evidencia a singularidade do regime. Pág. 3 l Disputa pelas Malvinas reativa tensões entre Buenos Aires e Londres. Pág. 10 l o Meio e o Homem – Golfo Pérsico, núcleo da geopolítica mundial do petróleo. Pág. 11 l Há cem anos, Amundsen e Scott pisaram no Polo Sul. Pág. 12 MARÇO/01 © Mario Laporta/AFP E mais... ■ 17º Concurso Nacional de Redação de Mundo e H&C – 2012 Escreva e se inscreva!!! 1. História e objetivo do concurso O Concurso de Redação nasceu, em 1996, com o objetivo de estimular o hábito de ler, escrever, estudar e refletir. O desenvolvimento contínuo e prazeroso dessas habilidades é de suma importância, no mundo contemporâneo, para o processo de formação de cidadãos críticos e bem informados, capazes de se expressar de modo claro, criativo e inteligente. Mas, para que o concurso tenha êxito, é essencial a colaboração dos professores, especialmente os da área de Comunicação e Expressão. 2. Tema da redação Uns pelos outros A eclosão da Primavera Árabe, no final de 2010, recolocou de forma dramática um debate que percorreu o mundo e dividiu opiniões nas esferas da política internacional, das ciências humanas e mesmo da filosofia: a humanidade estaria ameaçada por um “choque de civilizações”, que teria, como os principais polos antagônicos o “Ocidente”, de um lado, e o Islã, do outro. Para os advogados da teoria do “choque”, a Primavera Árabe está destinada ao fracasso, pois o Islã seria incompatível com a democracia. Para os seus adversários, não há nenhum “choque”, pois sequer existem “civilizações” como agrupamentos homogêneos e puros, e por isso a Primavera Árabe pode encontrar qualquer destino. Baseando-se nos trechos expostos em seguida e nos seus conhecimentos, faça uma dissertação sobre o tema. “N ós devemos viver em harmonia não apenas com o conselho militar, mas com todas as facções egípcias. Haverá reconciliação entre os três poderes: o Parlamento, o governo e o conselho militar governante. A Irmandade Muçulmana não quer o monopólio do poder.” (Mohammed Badie, principal líder da Irmandade Muçulmana no Egito, organização amplamente vitoriosa nas primeiras eleições após a queda do ditador Hosni Mubarak) “N ão tínhamos partido e democracia na Líbia. A primeira coisa que queremos fazer é praticar. A visão da Irmandade é de que a política é parte do Islã e o Islã é parte da política. Para nós, nossa religião é um modo de vida, não apenas algo que expressamos nas mesquitas.” (Amin Belhach, representante da Irmandade Muçulmana na Líbia e integrante do Conselho Nacional de Transição, logo após a queda do ditador Muammar Kadafi) E X P E D I E N T E PANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia) Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Jaqueline Rezende Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo – SP. CEP 05591-000. Fones: (011) 3726.4069 / 3726.2564 Fax: (011) 3726.4069 – E-mail: [email protected] Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900 Fone: (011) 3283.0340. www.clubemundo.com.br "Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem." “Sim, com muito esforço e tempo, os muçulmanos poderão ser tão democráticos quanto os ocidentais. Mas nesse momento, são os menos democráticos dos povos e o movimento islâmico apresenta um enorme obstáculo à participação política. No Egito, como em qualquer outro lugar, meu otimismo teórico, em outras palavras, está temperado com um pessimismo baseado nas realidades presentes e futuras.” título Ateísmo no Islã. Parece absurdo, uma contradição em termos. Mas não é. Ele estava se referindo ao Islã como cultura, como civilização, onde havia – como, de resto, há em todos lugares – ateus e movimentos ateístas. Era um título válido para um estudo legítimo. É muito difícil para nós, no Ocidente, entender isso e analisar todas as suas implicações.” (Daniel Pipes, jornalista norte-americano especialista em Oriente Médio, ao comentar as transformações provocadas pela Primavera Árabe) (Bernard Lewis, orientalista britânico, criador do conceito de “choque de civilizações” e um dos principais apoiadores da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003) “Durante um debate interno com seus assessores o presidente Eisenhower observou que – e eu cito literalmente – ‘há uma campanha de ódio contra nós no Oriente Médio, não organizado pelos governos, mas pelo povo. O Conselho de Segurança Nacional discutiu essa questão e concluiu que sim, e a razão para tanto é a percepção de que os Estados Unidos apoiam governos que impedem a democracia e o desenvolvimento por estarem interessados no petróleo. É difícil alguém se opor a essa percepção porque ela é verdadeira. Deve ser verdadeira. Nós temos que apoiar governos corruptos e brutais porque queremos controlar o petróleo do Oriente Médio, e é verdade que isso provoca uma campanha de ódio contra nós.’” (Noam Chomsky, professor e ativista político norteamericano, ao comentar papéis secretos do governo Eisenhower, liberados para consulta em 2002) “No mundo islâmico, desde o início, o Islã fornecia a base primária da identidade e do pertencimento a uma comunidade. Nós pensamos numa nação subdividida em religiões. Eles pensam numa religião subdividida em nações. É a definição por excelência, a mais básica. (...) Um professor egípcio escreveu um livro com o curioso A “ personificação de entidades imensas qualificadas como ‘Ocidente’ e ‘Islã’ é reafirmada de maneira irresponsável. Problemas de tremenda complexidade como identidade e cultura são tratados como cartoons, em que Popeye e Brutus, cada um representando um lado, se espancam mutuamente, sem piedade. Certamente, nem Samuel Huntington nem Bernard Lewis dedicaram muito tempo às dinâmicas internas e à pluralidade existentes em qualquer civilização, ou ao fato de que os grandes debates contemporâneos sobre cultura referem-se à definição ou interpretação de cada cultura, ou ainda à indesejável possibilidade de que é necessária uma grande dose de demagogia e pura ignorância para alguém arvorar-se intérprete de um sistema religioso ou de toda uma civilização.” (Edward Said, intelectual palestino naturalizado norte-americano, criador do conceito crítico de “Orientalismo”, falecido em 2003) ATENÇÃO Em nossa próxima edição, publicaremos as normas do concurso 2012 MARÇO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A E D I T O R I A L Cuba e os direitos Dilma Rousseff desembarcou em penúltimo dia de janeiro. antes, dias um visto O Brasil de blogueira cubana dissidente que pretendia participar do Bahia, Cuba no concedera, entrada para a Yoani Sánchez, lançamento, na de um documentário sobre a liberdade de imprensa em Cuba e em Honduras. Contudo, o gesto brasileiro circunscreveu-se à emissão do visto. A presidente nem sequer respondeu a uma solicitação da blogueira por um encontro H avana. O assessor de política externa M arco Aurélio Garcia afirmou que a obtenção em da indispensável autorização cubana de viagem Yoani”. A dissidente não obteve a autorização, na sua 19ª tentativa. A visita de Rousseff coincidiu com a realizaera “um Q problema de que expressariam interesses “estrangeiros” é mais munista Co Cubano (PCC), que debateu a continuidade das reformas no país. O discurso de R aúl Castro perante a conferência dissolveu as parcas expectativas existentes. Castro reafirmou, para surpresa de ninguém, que as reformas não alterariam em nada o sistema unipartidário cubano. Porém, avançando um pouco além, o ditador explicou que o PCC é a representação única da nação cubana, pois outros partidos ou correntes políticas seriam, inevitavelmente, expressões dos interesses estrangeiros operando dentro de Cuba. No passado, regimes de partido único do “socialismo real” justificavam-se com o argumento grave, pois abre caminho para definir qualquer atitude de contestação política como ato de guerra ou espionagem. Cuba engaja-se em reformas econômicas que implicam a demissão de centenas de milhares de funcionários empregados pelo Estado. Quando o regime recusa autorização de viagem para Yoani, uma cidadã contra a qual não pesam processos judiciais, está violando o direito de ir e vir, consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de todos os cubanos. Quando Castro identifica o PCC à nação cubana, está dizendo que protestos contra as demissões em massa poderão ser de que outros partidos expressariam os interesses classificados como gestos de traição à pátria. A s das “elites” ou da “burguesia”. A firmar, entretanto, duas atitudes devem merecer um mesmo repúdio. Para onde vai a Síria? O mosaico etno-religioso da Síria Área predominantemente sunita com presença de minorias cristãs e xiitas T U R Áreas de povoamento curdo Área de povoamento druso Colinas de Golã (área anexada por Israel em 1967) Áreas de povoamento curdo fora da Síria CHIPRE LÍBANO U I A Alepo Hama Homs S Í R I igre Área predominantemente MAR MEDITERRÂNEO alauíta Q Rio T uase um ano e meio após o início da Primavera Árabe – a sucessão de revoltas contra regimes autoritários no mundo árabe – e depois da queda de ditadores que se mantinham por décadas no poder, na Tunísia, no Egito e na Líbia, a “bola da vez” é a Síria. Localizada no Oriente Médio, a Síria faz fronteiras com Turquia, Iraque, Jordânia, Líbano e Israel – e com todos eles o país teve ou ainda tem atritos geopolíticos. Com o Iraque, por exemplo, existem rivalidades históricas mal resolvidas; com a Turquia, há litígios em relação à definição de fronteiras e uso dos recursos hídricos do rio Eufrates, sem contar os vários conflitos com Israel. A Síria possui cerca de 21 milhões de habitantes e a grande maioria deles, cerca de 90%, é de origem árabe e segue o Islã. Essa aparente homogeneidade, no entanto, esconde um caleidoscópio muito complexo de minorias. A principal delas é a dos alauítas, uma vertente mística xiita considerada herética pela maioria dos muçulmanos sunitas sírios e que, desde o início da década de 1970, detém o poder no país. Cristãos e curdos formam outras significativas minorias. Os curdos, que não são árabes, perfazem cerca de 6% da população e vivem também em países vizinhos, como a Turquia e o Iraque (veja o mapa). O atual território sírio já fez parte dos impérios Persa, Macedônico, Romano e Árabe. De 1516 a 1918 ficou sob o domínio do Império Turco-Otomano. Com a derrota otomana na Primeira Guerra Mundial, a área da antiga província otomana da Grande Síria – que envolvia os atuais Síria, Líbano, ção de uma aguardada conferência do Partido A Rio Eu fra tes Damasco IRAQUE ISRAEL Palestina, Jordânia e parte do Iraque – foi desmembrada. A Liga das Nações, antecessora da ONU, definiu que a região passaria à administração da Grã-Bretanha e da França, na condição de mandatos. As fronteiras foram definidas pelo Tratado de San Remo (1920), que confirmava o Acordo Sykes-Picot (1916), um acerto secreto franco-britânico articulado durante a guerra de partilha da região. Nesse contexto, a Síria ficou sob o controle francês até 1946, quando se tornou independente. Sob o impacto das doutrinas do pan-arabismo e do socialismo árabe, e na moldura do conflito árabe-israelense, a Síria viveu, durante o quarto de século seguinte, forte instabilidade interna. Em 1970, um militar, Hafez al-Assad, pai do atual dirigente sírio, assumiu o poder na condição de representante da minoria alauíta. Os alauítas, cerca de 12% da po- JORDÂNIA 0 100 km pulação, foram catapultados da condição de minoria excluída à de grupo social dominante no país. Sob o impulso do regime de Assad, os postos de comando das forças armadas e o alto funcionalismo público foram reservados aos alauítas Com a morte de Hafez, em 2000, o poder passou a seu filho Bashar al-Assad. A violência que devasta a Síria desde 2011 parece não encontrar solução no curto prazo. Embora a oposição venha se fortalecendo, ela ainda é fraca militarmente para tomar o poder. O plano elaborado pela Liga Árabe, de renúncia de Assad em favor de seu vice, que presidiria um governo de transição, foi rejeitado pelo regime. As complicadas relações etno-religiosas internas dificultam uma saída negociada. O estamento alauíta dirigente não luta apenas por seus privilégios, mas também para evitar a marginalização e as perseguições anteriores a 1970. Além disso, outras minorias, como os cristãos e os drusos, além de determinados setores da elite sunita, se beneficiam de benesses do governo e não estão preparadas para romper com Assad. Israel e Irã observam a crise com preocupação. Israel e Síria são rivais geopolíticos, ainda mais após a ocupação israelense das Colinas de Golã, em 1967. Contudo, mais que o previsível regime de Assad, Israel teme uma Síria governada pela maioria sunita. O Irã xiita, por outro lado, tem na Síria seu único aliado regional e um intermediário crucial no fornecimento de ajuda financeira e material ao Hezbollah libanês e ao Hamas palestino. Diferentemente do que ocorreu na Líbia, parece pouco provável que países ocidentais levem adiante uma intervenção no país. Não há consenso entre os membros do Conselho de Segurança da ONU, pois Rússia e China se recusam a abandonar o regime de Assad. A Rússia é a principal fornecedora de armas para a Síria – que, por seu lado, permite o uso do porto de Tartus pela marinha russa, assegurando a Moscou sua única base naval no Mediterrâneo. Estados Unidos e União Europeia alinharam-se com a Liga Árabe na exigência de renúncia do ditador. Contudo, embora discutam opções diplomáticas e mesmo militares, não parecem dispostos a encarar uma nova aventura intervencionista, muito mais difícil que a operação na Líbia, num momento de grave crise econômica nos dois lados do Atlântico Norte. MARÇO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O Estados unidos s republicanos “se transformaram num bando selvagem, louco, do qual emanam noções excêntricas e irresponsáveis que os colocam à margem da corrente principal da política americana.” O diagnóstico não emanou de um democrata, mas do analista conservador Michael Medved, simpático ao Partido Republicano. Ele prestou atenção nos debates entre os pré-candidatos republicanos que disputaram as eleições primárias de Iowa, em janeiro, e se assustou com a natureza extremista dos discursos de todos, com a solitária excessão do ex-governador de Massachusetts Mitt Romney. O fenômeno que se manifestou na primária de abertura do calendário eleitoral republicano é a difusão das teses do Movimento Tea Party nas bases do Partido Republicano. O Tea Party não é exatamente uma corrente republicana, mas uma rede informal e mais ou menos heterogênea que contesta a linha “moderada” ou “conciliadora” da direção partidária. O nome do movimento evoca o célebre protesto de colonos de Massachusetts que, em 1773, lançaram ao mar cargas de chá de navios ancorados na Baía de Boston. Aquele evento assinalou a radicalização da resistência das Treze Colônias contra os tributos britânicos sobre as importações americanas, acelerando a marcha da Revolução Americana. Taxed Enough Already, ou “já taxados em demasia”: alguns arautos do movimento converteram a palavra Tea num acrônimo da bandeira principal dos republicanos radicais, que se unem por uma drástica redução dos impostos nos Estados Unidos. Um “Estado mínimo” – essa ideia está no núcleo da articulação dos republicanos radicais. Quando falou em “noções excêntricas e irresponsáveis”, Medved tinha como alvo central o pré-candidato Ron Paul, deputado pelo Texas, que organizou sua campanha em torno da proposta de abolição do Banco Central e da ideia de “anulação”, um suposto direito dos estados de rejeitar leis federais das quais discordam. Paul não é o típico representante do Tea Party. Isolacionista radical, pacifista extremado, ele prega a retirada de tropas americanas de todos os teatros de conflito no exterior e, de modo geral, a ruptura dos Estados Unidos com as instituições multilaterais e com os tratados que formam o arcabouço do sistema de Estados. Tais propostas “excêntricas” atraíram para sua campanha uma coleção heterogênea de apoiadores, que se estende num amplo arco e abrange tanto jovens “libertários” quanto fanáticos antissemitas adeptos das teorias conspiratórias sobre os atentados de 11 de setembro de 2001. O atípico Paul, contudo, reproduz a sentença dogmática do Tea Party, que se revolta contra a existência de um conjunto de leis federais destinadas a assegurar liberdades e direitos sociais para todos os cidadãos. Newt Gingrich, outro pré-candidato radical, ex-líder republicano na Câmara durante parte do governo do democrata Bill Clinton (1993-2001), propõe a eliminação de diversos órgãos federais com atribuições ligadas A Bíblia, o porte de armas, um corte drástico de impostos. A utopia regressiva dos republicanos radicais pretende reinventar a nação de colonos cristãos anterior ao desenvolvimento da moderna sociedade de massas Embora, aparentemente, o moderado conservador Mitt Romney tenha a preferência da maioria do Partido Republicano, o radical Tea Party deixou marcas indeléveis © Gage Skidmore O Tea Party rompe o equilíbrio do Partido R epublicano à educação, à saúde e à previdência social. Além disso, ele sugeriu transferir para comissões municipais a prerrogativa de decidir sobre o destino dos imigrantes, uma ideia que provocaria deportações em massa em cidades e estados governados por conservadores. O nativismo, isto é, a ideia de que a nação americana decorre de uma ligação de “sangue” entre o povo e a terra, também forma algo como um consenso no Tea Party. Michele Bachmann, deputada por Minesota, précandidata que desistiu da postulação após as primárias de Iowa, insistiu no projeto xenófobo de erguer uma cerca impenetrável ao longo de toda a extensão da fronteira entre Estados Unidos e México, enquanto o governador do Texas Rick Perry prometia uma guerra contra a imigração ilegal na qual empregaria drones (aeronaves não tripuladas) e deslocaria milhares de tropas para selar a fronteira meridional. Contudo, o traço mais distintivo dos radicais republicanos não está exatamente no nativismo, mas na combinação de ultraliberalismo econômico (o “Estado mínimo”) com fundamentalismo cristão. A Bíblia numa mão, um rifle na outra, a declaração de renda no lixo – eis a fórmula política que sintetiza o Tea Party. O pré-candidato que melhor representa o programa tríplice talvez seja Rick Santorum, ex-senador pelo estado de Pensilvânia. O eixo da campanha de Santorum foi expresso no estandarte “Fé, Família e Liberdade” e seus discursos converteram os palanques eleitorais em púlpitos de uma pregação que, se levada a cabo, suprimiria o caráter laico, secular, do Estado americano. Os extremistas republicanos tocam a música da liberdade de religião mas, sem maiores rodeios, explicam que o cristianismo é o alicerce dos Estados Unidos. Não por acaso, eles são a fonte da “notícia” segundo a qual Barack Obama seria um fiel muçulmano vestido na pele de cordeiro de cristão. A revolta do Tea Party exprime uma visão sobre a história americana. Na cabeça dos radicais republicanos, a nação entrou em declínio quando se configurou a moderna sociedade democrática de massas. O Estado federal afirmou sua primazia com Abraham Lincoln e a derrota sulista na Guerra de Secessão (1861-1865). Os direitos sociais começaram a ser reconhecidos com Franklin Roosevelt e o New Deal, na década de 1930. A igualdade política dos cidadãos foi consolidada com Lyndon Johnson e a Lei de Direitos Civis, de 1964. De certo modo, a utopia política do Tea Party é a restauração da nação original de colonos, não “contaminada” por esses eventos da modernidade. Os indícios apontam para um desgastante triunfo de Romney, o conservador moderado preferido pela direção republicana, contra os postulantes radicais. Mas, mesmo se não ocorrer uma surpresa chocante, o discurso do Tea Party já imprimiu suas marcas no Partido Republicano e na eventual campanha de Romney contra Obama. Talvez essa marca represente a tábua de salvação para o presidente em busca da reeleição (veja a matéria na pág. 5). Mas, certamente, ela escancara as instabilidades fundamentais que desafiam o conjunto do sistema político bipartidário dos Estados Unidos. 2012 MARÇO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A estados unidos Obama define o “contrato justo” como oucos notaram, mas a linha da campanha de Barack Obama por uma difícil, incerta reeleição foi traçada no final de 2011, em Osawatomie, uma cidadezinha perdida no interior do estado de Kansas. A escolha não foi casual. Na mesma cidade, no longínquo 1910, o republicano Theodore Roosevelt pronunciara o mais radical discurso de sua carreira, de ruptura com seu sucessor também republicano William Howard Taft e com a direção do partido. O tema de Roosevelt foi o “contrato justo” (square deal): um ataque contra os privilégios da plutocracia empresarial e um compromisso com a defesa dos interesses da classe média. Obama citou o square deal, vestindo a armadura de guerreiro dos pequenos cujos sonhos se dissolvem no ácido da injustiça e da desigualdade. Será esse o tema permanente do presidente, até a abertura das urnas, em 6 de novembro. Obama toca num nervo exposto da sociedade americana. Main Street, a rua de comércio, contra Wall Street, a rua das finanças: o tema do conflito entre os “homens comuns” e a aristocracia do dinheiro percorre a política dos Estados Unidos desde os tempos de Thomas Jefferson, o fundador do Partido Democrático Republicano, ancestral dos dois grandes partidos atuais. A tradição “populista” na história americana não se confunde nem com o populismo latino-americano, um discurso de caudilhos, nem com a social-democracia europeia, um discurso lastreado na ideia dos interesses dos trabalhadores industriais. No populismo latino-americano, a salvação do povo depende do triunfo de um caudilho que se insurge contra as instituições da “democracia elitista”. Nos Estados Unidos, o guerreiro dos “homens comuns” não contesta o sistema de separação de poderes da democracia americana, mas o que seria a sua deturpação em benefício dos ricos e poderosos. Na narrativa da social-democracia europeia, sob a influência mais ou menos distante do marxismo, o imperativo encontra-se na defesa de direitos coletivos de uma classe social. Nos Estados Unidos, pelo contrário, o campeão de Main Street fala para indivíduos solitários, atomizados, não para uma classe social. No século XIX, em sua obra célebre A democracia na América, o francês Alexis de Tocqueville registrou que em nenhum outro país se encontraria o “desprezo” devotado nos Estados Unidos pela “teoria da permanente igualdade de propriedade”. De fato, o “sonho americano” é um elogio à prosperidade. Contudo, mesmo assim, o tema de Main Street contra Wall Street serviu a diferentes lideranças políticas americanas – em especial, a um outro Roosevelt, o democrata Franklin Delano, que reconstituiu seu partido falando aos milhões de desesperançados colhidos pela tempestade da Grande Depressão. Há semelhanças entre a conjuntura atual e a dos anos 1930 – e a aposta de Obama na sua incerta aventura da reeleição está ancorada nesse paralelo, que pode Main Street contra Wall Street – um velho tema da política dos Estados Unidos ressurge na hora da crise do “sonho americano” Participação dos 1% mais ricos na renda total nos EUA (%) 25 20 15 10 5 0 1913 1930 1950 1970 1990 2009 FONTE: The Economist, 21 de janeiro de 2012, p. 14 © Don Emmert/AFP P eixo de sua campanha Em Wall Street (Nova York), jovens protestam contra a acumulação de riqueza propiciada pelo capital financeiro ser expresso nas estatísticas de distribuição da renda nacional. Na hora do crash da Bolsa de Nova York, em 1929, o 1% mais rico da população americana apropriava-se de quase um quarto da renda total. Tal proporção reduziu-se quase continuamente, ao longo do New Deal e do pós-guerra, e chegou a ser inferior a 10% no início da década de 1970. Depois, com o governo de Ronald Reagan (1980-1987), voltou a se elevar, retornando aos níveis de 1929 pouco antes da quebra do Lehman Brothers, em 2008 (veja o gráfico). A desigualdade extrema, junto com o desemprego e a redução dos salários reais da classe média e dos trabalhadores, forma um veneno letal, que esvazia de sentido o “sonho americano”. No fim das contas, quando se refere ao “contrato justo”, Obama não promete a igualdade, mas a restauração das oportunidades de ascensão social. No cálculo do presidente, um lugar crucial é ocupado pela radicalização dos republicanos. O Tea Party propõe diminuir ainda mais os impostos cobrados dos mais ricos e reequilibrar o orçamento por meio, exclusivamente, de uma estratégia de cortes impiedosos de gastos sociais públicos (veja a matéria na pág. 4). Mitt Romney, o provável candidato republicano, não se confunde com as propostas mais extremadas do Tea Party, mas está comprometido com a política republicana de redução de tributos – e, além disso, é um milionário que fez fortuna no mercado financeiro. Obama enxerga nessas circunstâncias a oportunidade de tomar conta do centro do espectro político, recuperando o voto dos eleitores independentes que foram decisivos para o seu triunfo de 2008. Os pré-candidatos republicanos, sem exceção, apresentam-se como herdeiros de Ronald Reagan, o presidente que apontava o Estado como “o problema”. Obama não escolheu uma, mas duas figuras do passado como fontes de inspiração. Os dois Roosevelt, um de cada partido, fizeram do “contrato justo” a sua bandeira política. Ao evocá-los, o presidente tenta marcar seus adversários republicanos como incorrigíveis extremistas: doutrinários a serviço dos privilégios de poucos. Warren Buffett, o homem mais rico dos Estados Unidos, entrou de fato na campanha de Obama com um texto já famoso no qual declara que seus tributos são, em termos relativos, menores que aqueles de seus funcionários. Romney teve que admitir encontrar-se em situação similar à de Buffett, como reflexo das reduções promovidas por George W. Bush nos impostos sobre a renda e sobre ganhos financeiros. A campanha do Partido Democrata assegura que a diminuição da dívida pública americana será obtida por meio de módicos cortes de despesas e de aumentos de impostos apenas para os 1% mais ricos. O discurso circunda a verdade fria e dura dos números da dívida pública, mas tem tudo para se converter em poderosa ferramenta eleitoral. MARÇO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O União Europeia Poder da A lemanha cau o final de janeiro, os líderes da União Europeia (UE) reunidos em Bruxelas chegaram a um acordo para a criação do Mecanismo de Estabilização Financeira (MEF), uma tentativa de blindar a Europa contra a crise econômica da zona do euro. A instituição terá um aporte de 500 bilhões de euros para enfrentar a turbulência causada pelo crescimento do endividamento de países como Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. Mas o novo fundo não poderá absorver os 250 bilhões de euros do atual Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), criado em 2010 e que será extinto para dar lugar ao MEF. A fusão dos dois fundos era defendida pelos governos da França, Itália e da Espanha, mas a ideia sofreu forte oposição da chanceler alemã Angela Merkel. Não é preciso conhecer relações internacionais para saber quem prevaleceu. A oposição alemã se deveu, entre outras coisas, ao fato de a UE ter se recusado a apoiar uma proposta de Berlim de fazer uma intervenção formal na Grécia, criando o cargo de comissário extraordinário para supervisionar as contas do país. Até os líderes mais subservientes à Alemanha consideraram a proposta abusiva. Merkel, então, melou a fusão dos fundos e exigiu medidas rigorosas para o resgate de países endividados. Restou aos chefes de Estado e de governo europeus criar o MEF e estabelecer regras estritas para o novo Pacto de Estabilidade, que prevê a obrigação constitucional dos países da UE de reduzir o déficit público ao limite de 3% do PIB. Só a Grã-Bretanha e a República Tcheca ficaram fora do acordo. Assim, a Alemanha impõe sua vontade à União Europeia, deixando a França, que se imaginava sua principal parceira, no papel de simples coadjuvante. “É a dame quem toma as decisões e, depois, o presidente francês dá uma conferência de imprensa para as explicar”, teria dito o expremiê italiano Romano Prodi. Por conta disso, alguns já estão chamando Merkel de “chanceler de ferro”, comparando-a tanto ao seu distante antecessor Otto Von Bismarck (1862-1890) quanto à britânica Margaret Thatcher (veja a matéria na pág 8). Ironicamente, os alemães conquis- (M artin Wolf, editorialista do Financial Times ) N taram essa posição de liderança nos destinos da Europa por meio da união monetária, concebida inicialmente pelo presidente francês François Mitterrand (1981-1995) para conter o poder da Alemanha depois da reunificação, em 1990. “Abdicar do marco alemão em troca de um euro estável foi uma das concessões que abriu caminho à unificação alemã”, lembra Peer Steinbruck, ex-presidente do Partido Social Democrata (SPD) (veja a matéria na pág. 7). Mas, posteriormente, a moeda única se tornaria o principal instrumento de hegemonia alemã sobre a Zona do Euro. Como aconteceu isso? De acordo com o analista Ian Bremmer, com a moeda comum a robustez da Alemanha ficou atrelada às fraquezas da Zona do Euro. A Alemanha é a única, entre as principais economias do mundo, a exportar mais de 50% do seu PIB – os EUA, por exemplo, exportam 10%. “A moeda única compartilhada é significativamente mais desvalorizada do que poderia ser uma moeda exclusiva da Alemanha. As exportações alemãs são assim subsidiadas, fazendo-as internacionalmente muito mais competitivas”, escreveu Bremmer no Financial Times. Dessa maneira, o euro impede que outros países europeus possam competir com a Alemanha pelo único meio que seria viável, a desvalorização de suas moedas. Para estimular essa alta taxa de expor- Divulgação O debate interno alemão parte (...) do pressuposto de que todos os membros da Zona do Euro devem ser como a A lemanha. No entanto, só a A lemanha pode ser a A lemanha – uma economia com disciplina orçamentária, baixa demanda interna e um elevado excedente de exportações – porque nenhum outro país o é . Curiosamente, o atual modelo econômico do país viola o princípio de universalidade do mais emblemático dos filósofos alemães, Immanuel K ant. © Steinmeije/AFP Cláudio Camargo Especial para Mundo A Alemanha de Angela Merkel está no centro da crise que ameaça a Zona do Euro, 20 anos após a assinatura de Maastricht (à esq.) tações, a Alemanha reduziu impostos das empresas, cortou direitos trabalhistas, diminuiu salários reais e transferiu parte de sua produção para os novos países-membros da UE, do antigo bloco soviético (Polônia, Hungria e República Tcheca, principalmente), onde os custos de produção são bem menores do que os dos alemães. “Não constitui surpresa que o balanço de pagamentos da Alemanha tenha passado de um pequeno déficit para o segundo maior superávit do mundo desde que o país adotou a moeda única, em 1999”, diz Bremmer. Também não foi por acaso que, enquanto o desemprego da Zona do Euro atingiu 10,4% em dezembro, na Alemanha ele tenha ficado em 6,7%. A posição dura que Merkel tem adotado em relação aos países devedores decorre da segurança que a Alemanha sente de poder fazer a recuperação fiscal europeia em seus próprios termos. “A Alemanha pagará o preço que for necessário para estar no comando”, diz Bremmer. Mas essa postura também tem a ver com o humor do eleitorado alemão, que não quer que seu país arque com a recuperação de nações “perdulárias”, como a Grécia. O problema é que o governo alemão imagina que os outros países da Zona do Euro têm a mesma capacidade que a Alemanha de enfrentar a crise, ignorando as graves consequências sociais que as políticas de austeridade estão causan- do em nações com economias menos desenvolvidas. Tanto que Merkel não deu ouvidos ao premiê italiano Mario Monti, um tecnocrata afinado com as diretrizes ortodoxas do Banco Central Europeu, que disse que a Alemanha precisa fazer mais no sentido de ajudar os seus parceiros da União Europeia, caso não queira correr o risco de presenciar uma reação de cidadãos frustrados com as medidas de austeridade (veja o Diário de Viagem, na pág. 9). Essa postura intransigente da chanceler alemã já começa a gerar ressentimentos e a alimentar fantasmas do passado em relação à posição da Alemanha na Europa. “Há uma crescente preocupação com a hegemonia alemã”, disse o veterano ex-chanceler social-democrata Helmut Schmidt. “Se nos deixarmos seduzir pela tomada de um papel de liderança na Europa, nossos vizinhos se colocarão contra nós”, completou. Já o jornal alemão Süddeutsche Zeitung diz que o governo de seu país não deveria “confundir firmeza com a arrogância do poder no que diz respeito à crise do euro, já que esse poder é bastante real, e ele está provocando medo”. Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo 2012 MARÇO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A ausa temor na H Europa Maastricht e o espectro da “Europa alemã” á duas décadas, em 7 de fevereiro de 1992, os doze países integrantes da Comunidade Econômica Europeia (CEE) assinaram o Tratado da União Europeia (UE), na cidade holandesa de Maastricht, lançando as bases para o que hoje conhecemos como a Zona do Euro (veja o mapa). A mudança no nome de “comunidade” para “união”, mais do que uma mera vontade dos membros da Comunidade, representava um avanço concreto no sentido de consolidar a organização, ao estabelecer como meta a criação de três “pilares” básicos: moeda única, mercado, política externa e defesa comuns e a cooperação policial e judiciária em matéria penal. O tratado foi assinado, mas nem tudo foram flores. Os britânicos, por exemplo, impuseram uma cláusula que lhes conferia o direito de permanecer fora da União Econômica e Monetária (veja a matéria na pág. 8). O governo britânico denunciava o espectro de uma “Europa germânica”. A caracterização, mesmo que não se concordasse com ela, tinha o mérito de apontar para um fato ineludível: a criação da União Europeia só poderia acontecer como resultado do processo histórico que desembocou na queda do Muro de Berlim (em 9 de novembro de 1989) e na Reunificação alemã (3 de outubro de 1990). Os destinos da UE estavam, desde a sua origem, vinculados aos destinos da Alemanha. Para entender a equação, é preciso fazer um breve passeio pela história da Europa, começando pelo Império Romano, herdeiro ele mesmo da tradição cultural grega. Durante seis séculos, entre 146 a.C. e 476 d.C, os romanos, através de campanhas militares, conquistaram e mantiveram um amplo domínio sobre aquilo que hoje conhecemos como Europa mediterrânea e ocidental. Após a desagregação do império, graças aos ataques dos “bárbaros” (os povos não romanos) a união continental foi perseguida pela via da conquista militar e em oposição ao expansionismo islâmico, já instalado na Andaluzia. Carlos Martel derrotou, em 732, uma ofensiva islâmica em Poitiers, na batalha que, para muitos historiadores, evitou que toda a Europa caísse sob domínio muçulmano. Carlos Magno (742–814), neto de Martel, conseguiu, por meios militares, conferir uma certa unidade geopolítica às regiões da Europa centro-ocidental sob seu controle, lançando as bases do Sacro Império Romano-Germânico. Dois séculos depois, as Cruzadas contra o Islã, convocadas pelo papa Urbano II com o objetivo de “reconquistar Jerusalém”, contribuíram para sedimentar uma certa identidade europeia com base na cristandade e no poder político e simbólico da Igreja Católica. A expulsão dos mouros da Península Ibérica, em 1492, pelos reis A Zona do Euro ISLÂNDIA Países da Zona do Euro Países da Zona do Euro em séria crise econômica (PIIGS) Países que eventualmente poderão se juntar à Zona do Euro NORUEGA Países não integrantes da UE POLÔNIA BELARUS ALEMANHA FRANÇA OCEANO ATLÂNTICO PORTUGAL ESPANHA ITÁLIA MAR MEDITERRÂNEO Á R Ú S S I A MAR SUÉCIA DO NORTE DIN. IRLANDA GRÃBRETANHA Países que optaram em ficar fora da Zona do Euro FINLÂNDIA F R I C A UCRÂNIA HUNGRIA ROMÊNIA MAR NEGRO SÉRVIA BULGÁRIA GRÉCIA TURQUIA SÍRIA católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela consolidou a identidade entre “Europa” e “cristandade”. Bem mais tarde, no início do século XIX, coube à França napoleônica perseguir a unificação europeia. O Império napoleônico durou menos de vinte anos, mas em seu apogeu subordinou amplas áreas do continente. As guerras contra Napoleão ensejaram sucessivas coligações de Estados sob a liderança da Grã-Bretanha, a grande superpotência do século XIX. O Congresso de Viena (1814-1815), articulado pelo austríaco Klemens Metternich, reconfigurou as fronteiras políticas do continente e estabilizou o sistema político-diplomático da Europa pós-napoleônica, baseado na tentativa de restauração das monarquias absolutistas que haviam sido varridas do mapa pela maré revolucionária napoleônica. Esse sistema caracterizava-se por um equilíbrio multipolar envolvendo as cinco mais importantes potências europeias da época – Grã-Bretanha, França, Prússia, Áustria e Rússia. A aliança dessas potências tinha como objetivo evitar que qualquer uma delas pudesse sobrepujar as demais, estabelecendo a hegemonia continental. Havia um cuidado particular com a vocação expansionista do Estado prussiano: a unificação da Alemanha sob a liderança da Prússia em pleno coração da Europa poderia, facilmente, romper o equilíbrio. Foi, precisamente, o que começou a acontecer, em 1871, com o surgimento da Alemanha sob Otto Von Bismarck. O crescimento do poderio econômico e militar da Alemanha, que acabaria transformando-a na primeira potência europeia na virada do século, associado às tensões e disputas entre alemães e franceses e entre alemães e russos, culminou na Primeira Guerra Mundial. O conflito destruiu o sistema erguido um século antes em Viena e, politicamente, inaugurou o século XX. Ao final da guerra, o mapa da Europa se achava mais fragmentado do que nunca. No vácuo aberto pelo desaparecimento dos impérios Alemão, Russo, Otomano e Áustro-Húngaro surgiram inúmeros novos Estados. A última tentativa de unificação geopolítica da Europa através da força militar aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 1942, auge da expansão da Alemanha nazista, apenas Grã-Bretanha e União Soviética resistiam a Hitler. A ideia da união continental através da integração econômica e política nasceu dos escombros da guerra geral. No contexto bipolar da Guerra Fria, definido pela partição do continente nas esferas de influência dos Estados Unidos e da União Soviética, a unificação teria que permanecer limitada à Europa Ocidental. A criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, por iniciativa conjunta da Alemanha Ocidental e França deflagrou esse projeto, que desembocaria no Tratado de Roma (1957), fonte da Comunidade Europeia e, portanto, da atual UE. Durante toda a Guerra Fria, o Muro de Berlim era a representação material da impossibilidade de uma unidade efetiva da Europa, assim como a divisão da Alemanha era a condição do equilíbrio do terror estabelecido entre as superpotências. A queda do muro abriu uma avenida para a retomada do projeto, mas também permitiu a reunificação da Alemanha e, com ela, o ressurgimento de todos os fantasmas criados pela história. Para o governo conservador britânico, a reunificação germânica era sinônimo de catástrofe. Mas Londres não poderia simplesmente rejeitar o Tratado de Maastricht, numa época em que o fim do bloco soviético e o da própria União Soviética pareciam anunciar um futuro brilhante para a humanidade. Ironicamente, por vias tortuosas, os piores pesadelos britânicos sobre a catástrofe europeia acabaram se tornando realidade, não pelo surgimento de uma Alemanha superpoderosa e opressora, mas por uma crise que ameaça implodir o euro e o próprio projeto de unificação da Europa. A Alemanha parece hoje a liderança incontestável da UE. Contudo, na hipótese de implosão da moeda comum, a tormenta arrastaria consigo a própria potência germânica. MARÇO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O União europeia A moeda e a política á muitas divisões (dentro da União Europeia). Há a divisão entre os países que pertencem à Zona do Euro e os que não pertencem. Há a divisão entre os países fortes e os fracos, com estes pedindo ajuda financeira. Temos a profunda rivalidade entre França e Alemanha. A Alemanha é a força econômica da Europa, e a França deseja desempenhar um papel similar. Não tem o poder econômico, então luta para manter-se no topo como força política. Por isso, vemos Nicolas Sarkozy ecoar constantemente as opiniões de Angela Merkel . Pode parecer uma parceria, mas é rivalidade: os franceses não querem ficar atrás dos alemães. Num mosaico de visões tão díspares, não haveria consenso.” A avaliação de Norman Lamont, publicada em entrevista à revista Época, oferece um bom resumo dos obstáculos que impedem que a União Europeia consiga de fato exercer um governo econômico centralizado europeu. Lamont era ministro das Finanças da Grã-Bretanha no gabinete do primeiro-ministro conservador John Major, que manteve o país fora do acordo monetário que criou a moeda única, estabelecido pelo Tratado de Maastricht. O tratado impunha parâmetros econômicos e financeiros (principalmente, patamares de inflação e dívida pública em relação ao PIB) que determinado país deveria alcançar, se quisesse ser admitido como membro. À época, Major qualificou o acordo monetário como um ato de “suicídio político”. Em 1993, Londres tirou a Grã-Bretanha de um mecanismo de controle cambial criado em 1979 com o objetivo de estabilizar as moedas europeias. Major suspeitava que a unificação europeia levaria à “germanização da Europa” (veja a matéria na pág. 7). Herdeiros diretos da revolução liberal promovida por Margaret Thatcher, Major e Lamont temiam que a criação de uma moeda única implicaria um sério golpe na soberania nacional dos países-membros. E estavam certos sobre esse ponto: por mais que os discursos, à época, falassem em “colaboração entre países-irmãos”, o fato é que as economias mais fortes (em particular, a alemã e a francesa) acabariam por ditar as condições de funcionamento da moeda e do mercado. Para compreender isso, basta imaginar qual país teria mais peso na hora de determinar políticas monetárias para controlar uma eventual moeda única adotada por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, no âmbito do Mercosul. Além do mais, mecanismos transnacionais de controle de moeda implicam ingerência direta na maneira como cada país regula o funcionamento de sua própria economia. Primeiro, porque cada país signatário do acordo não pode mais emitir moeda, já que essa passa a ser controlada por um Tesouro central europeu. É isso que impede, por exemplo, Grécia, Portugal e Espanha de imprimir dinheiro para pagar suas dívidas. Ou mesmo de emitir títulos da dívida pública para vender no mercado: a emissão de títulos públicos de dívida, isto é, papéis garantidos pelo governo, é apenas uma forma “disfarçada” de imprimir papel-moeda. Além disso, um governo de convicções fortemente liberais poderia ser obrigado a elevar os impostos “den- © Filippo Monteforte/AFP “H Atrás da união monetária da Europa, escondem-se as diferenças políticas, sociais, econômicas e culturais que separam as nações europeias. A crise do euro evidencia os limites do projeto de unidade supranacional Manifestações de jovens, trabalhadores e imigrantes na Itália (foto acima) e outros países da Zona do Euro evidenciam o fato de que a Europa está muito mais para uma “panela de pressão” do que um espaço uniforme e homogêneo tro de casa”, por imposição de medidas fiscais aprovadas no âmbito da união monetária. A questão dos impostos é absolutamente vital para definir a natureza de um governo. Em um dos polos extremos, estão os liberais, que acreditam que impostos cada vez menores estimulam o funcionamento da economia, por liberar capital para investimentos, criação de empregos etc.; no outro extremo, os social-democratas creem ser função do Estado “corrigir” as distorções e injustiças sociais provocadas pelo funcionamento do mercado, e por isso recomendam o uso de uma pesada carga de impostos para investir em educação, saúde e infraestrutura públicas. Hoje, nos Estados Unidos, esta é a principal questão enfrentada pelos candidatos à presidência do país (veja as matérias nas págs. 4 e 5). Novamente, Lamont resume bem a percepção dos liberais britânicos: “A Grã-Bretanha sempre viu o projeto da União Europeia com desconfiança. Éramos e somos o maior setor bancário e financeiro da Europa. Na ocasião, havia a intenção de criar impostos para o setor. A Grã-Bretanha teria de pagar tributos em excesso, algo desproporcional. Não víamos por que deveríamos ser taxados para financiar a Zona do Euro, da qual não tiraríamos vantagens. Acreditávamos num bloco econômico, mas não num bloco político. Os outros países sempre estiveram interessados em criar uma utópica união política.” Na outra ponta do espectro ideológico ficam as poderosas centrais sindicais, os partidos socialistas e social-democratas, as ONGs e grupos de pressão formados por trabalhadores da indústria, do setor de serviços e do funcionalismo público que não querem perder suas garantias trabalhistas e sociais. Não por acaso, na França, a segunda maior economia da Zona do Euro, aconteceram as mais importantes manifestações e greves contra reformas econômicas de cunho liberal formuladas pela cúpula da União Europeia. São esses setores também que mais resistiram à integração de seus respectivos países, manifestando-se nas ruas ou em plebiscitos e consultas nacionais, como foram os casos da rejeição à Constituição Europeia, pela França e Holanda, em 2005, e o da Irlanda, ao rejeitar o Tratado de Lisboa (que substituiu a Constituição Europeia), em 2008 (decisão revertida por um segundo referendo, no ano seguinte). A Zona do Euro mais se assemelha, portanto, a uma imensa panela de pressão, cujos ingredientes são realidades culturais, econômicas e financeiras completamente distintas. Países como Grécia, Portugal, Espanha e Itália só podem manter o euro como moeda à custa de políticas de ajuste recessivo. Isso significa que, do ponto de vista da economia, faliu o Tratado de Maastricht. Contudo, decretar o fim da moeda implicaria uma catástrofe de grandes dimensões. Hoje, centenas de milhões de europeus têm suas economias de vida, suas dívidas, seus bens de capital e seus investimentos em euro. O fim da moeda causaria uma crise semelhante à que afundou a Argentina, em 2001, quando foi decretado o fim da paridade entre o peso e o dólar. No fim, provavelmente destruiria junto o projeto político de unidade da Europa que nasceu como resposta à Segunda Guerra Mundial. 2012 MARÇO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A Mauro Tagliaferri Especial para Mundo Portugal em tempos de rifas canção nem havia sido lançada em CD. O grupo Deolinda a interpretava pelas primeiras vezes em shows na cidade do Porto, no norte do país. Alguns fãs gravaram com seus celulares e publicaram no YouTube. Em uma semana, tornou-se fenômeno. O início da canção diz: “Sou da geração sem remuneração / E não me incomoda esta condição / Que parva que eu sou! / Porque isto está mal e vai continuar / Já é uma sorte eu poder estagiar / Que parva que eu sou! / E fico a pensar / Que mundo tão parvo / Onde para ser escravo é preciso estudar”, expressa, sem rodeios, a frustração dos jovens adultos portugueses. Embora com boa formação escolar, essa geração sobrevive de estágios e trabalhos provisórios, insuficientes para manter a própria casa, comprar um carro, casar, ter filhos... Antes mesmo de a canção virar hino de protesto, o mercado financeiro já percebia que uma economia estagnada há uma década, que não gerava empregos para os jovens e sobrecarregava o Estado com subsídios e gastos cada vez maiores, estava fadada a não pagar suas dívidas. Movidas por pavor (a Grécia e a Irlanda já haviam ido para o buraco), realismo e especulação, as instituições internacionais elevaram as taxas de juros sobre os empréstimos que financiavam o governo, os bancos e as empresas de Portugal. Em março de 2011, o primeiro-ministro José Sócrates, do Partido Socialista, se demitiu. Em abril, Portugal pediu socorro financeiro ao FMI e à União Europeia. Ao longo de oito meses, 39,6 bilhões de euros já haviam sido transferidos ao país, mas crescem as apostas de que a ajuda prometida, um total de 78 bilhões, não será suficiente para equilibrar as contas públicas. Uma televisão portuguesa, a TVI, flagrou recentemente o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, dizendo ao homólogo português Vítor Gaspar que seu país está disponível para negociar “ajustes” ao programa de resgate financeiro concedido a Portugal. Estima-se que, em 2012, a economia portuguesa encolherá mais de 3%. A taxa de desemprego, já um recorde, tende a subir. No fim do ano passado, ela estava em 13,6% da população ativa, a quarta mais alta da Zona do Euro, atrás de Espanha, Grécia e Irlanda. Em números conservadores, havia 754 mil pessoas sem trabalho. Alguns economistas acreditam que os desempregados já sejam mais de um milhão, numa população de cerca de 11 milhões. Entre os mais jovens, dos 18 aos 25 anos, as portas do mercado de trabalho se fecharam para um em cada três portugueses. Imigrar para o Brasil tornou-se uma opção para centenas de milhares de portugueses. Mesmo quem tem trabalho está mais pobre. As medidas aprovadas pelo governo do novo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, do Partido Social Democrata, seguem a cartilha recessiva ditada pela Alemanha para a Europa: aumento de tributos e corte de gastos públicos. A elevação do imposto sobre mercadorias e serviços tornou tudo mais caro. Uma Quatro feriados, dois civis e dois religiosos, ainda não definidos, serão extintos. Na última hora, o primeiroministro cancelou a tolerância de ponto no Carnaval. Houve reclamação geral. Ao reagir, Passos Coelho declarou que os portugueses precisam ser menos “piegas”. A afirmação recebeu críticas de todos os setores da sociedade, embora, no contexto do discurso do dirigente, tenha sido um apelo à competitividade, um dos pontos fracos de Portugal. Na Europa, os portugueses estão entre os que mais trabalham, em número de horas, e entre os que menos produzem, em termos de riqueza. A competitividade é uma questão chave, num momento em que o único motor da economia portuguesa, as exportações, começa a fraquejar. Se, em janeiro de 2011, o país exportou 20% mais que em janeiro de 2010, em dezembro de 2011 esse número era apenas 4,4% superior ao de dezembro do ano anterior. Culpa, prin- Imersos no caos provocado pela crise, portugueses enfrentam a falta de perspectivas sociais e um horizonte político repleto de dúvidas parcela dos funcionários públicos ficará sem o décimo-terceiro e o salário de férias durante dois anos. Há menos recursos, inclusive, para a saúde e a educação. Numa tentativa de enxugar a máquina pública, o governo estuda fechar algumas câmaras municipais e tribunais. cipalmente, da queda das compras feitas por Espanha, Alemanha e França, os três maiores parceiros comerciais de Portugal. No mercado interno, há pouca esperança. De acordo com o Banco Central, 2011 se encerrou com 670 mil famílias inadimplentes. Destas, 140 mil tinham © Patricia de Melo Moreira/AFP A e marmitas dívidas no financiamento de imóveis. Entre particulares e empresas, as dívidas com o setor bancário chegam aos 11,4 milhões de euros. Não houve banco que tenha fechado 2011 no azul. Casas e apartamentos estão sendo retomados pelos bancos por falta de pagamento. E, para se livrar desses imóveis, as instituições os revendem por preços abaixo dos praticados no mercado. As imobiliárias estão em pânico e o setor da construção civil estagnou. Jornais e televisões acompanham de perto histórias como a do desempregado João Fontinha, que decidiu rifar a própria casa, nos Açores, por não conseguir pagar as prestações mensais de 400 euros. Fontinha precisa vender 20 mil rifas de cinco euros cada para cobrir os 100 mil euros que deve ao banco. Caso contrário, perderá não só o imóvel, como a casa da mãe dele, dada em garantia na penhora. Virou moda levar marmita para o trabalho. A refeição é mais saudável e, principalmente, mais barata. Várias hortas comunitárias foram reativadas em Lisboa. E os mercadinhos de bairro ganharam terreno em relação aos hipermercados porque tiraram da gaveta o caderno de fiado. A “adaptação” dos portugueses aos tempos difíceis, porém, revela uma certa ilusão de que, um dia, tudo voltará a ser como antes. O governo vê a crise sob o prisma do calendário eleitoral: toma as medidas mais duras agora, de uma vez, no início do mandato, para que a economia comece a se recuperar dentro de três anos, na época das próximas eleições legislativas. Mas, ao contrário, se tudo voltar a ser como antes no fim da crise, os sacrifícios não terão servido para nada. O debate sobre qual país os portugueses querem construir depois do caos é, por enquanto, marginal. No caso de Portugal, esta é a crise dentro da crise. Mauro Tagliaferri, jornalista, trabalhou na Folha de S.Paulo, Rede Globo e SBT. Há três anos, é correspondente da Rede Record em Lisboa MARÇO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O malvinas A rgentina relembra a derrota exigindo negociações á trinta anos, em abril de 1982, confrontados com a implosão do seu regime, os militares no poder na Argentina apelaram para o nacionalismo invadindo as ilhas Malvinas, as Falklands, sob bandeira britânica e há muito reclamadas pelos argentinos. Em junho daquele ano, com tropas inglesas despachadas por Margaret Thatcher já donas da situação, os generais argentinos não sabiam mais o que fazer. “Não viemos aqui para rendernos”, disse, a 2 de junho, um dos generais, enviado a Nova York com a tarefa de negociar uma “solução honrosa” no Conselho de Segurança da ONU. Mas já estava selado o colapso de uma aventura. Três dias de discussões mostraram que só seria aceito um cessar-fogo equivalente a uma rendição sem condições. A guerra retomou seu curso sangrento, depois de alguns dias de paralisia, sem que os generais argentinos conseguissem mascarar a derrota com dois itens indispensáveis e não obtidos: um cessar-fogo sem a imagem de humilhação e o compromisso de que o estatuto geopolítico das Malvinas não voltaria a ser de colônia bitânica. Embora com a relutância de aliados, França e Japão se abstendo no Conselho de Segurança, a Grã-Bretanha se manteve firme na decisão de recuperar as ilhas. O Conselho de Segurança fechou-se às pretensões argentinas e os generais voltaram a Buenos Aires de mãos vazias e com uma indisfarçável sensação de isolamento. O papa João Paulo II, com viagem marcada, não daria um jeito? Procurando mostrar vitalidade, os argentinos ainda atacaram barcaças de desembarque, matando muitos britânicos. Com isso, precipitaram o ataque final à capital das Malvinas, ainda em suas mãos. O papa, em sua visita pastoral, talvez pudesse suavizar uma rendição, a essa altura inevitável. Em mensagem a ele, no entanto, o general Leopoldo Galtieri, o ditador, ainda falou em “retirada de ambos os lados das tropas em combate”, sem aguardar o que viria no âmbito do sermão papal. João Paulo II respondeu com um discurso que mencionava o “sofrimento dos argentinos que não sabem onde estão seus entes queridos” e os muitos milhares de “desaparecidos”, na realidade assassinados em nome da “segurança nacional” sem que se soubesse onde foram parar seus corpos martirizados. A Guerra das Malvinas, há três décadas, precipitou o colapso da ditadura argentina. Mas o tema da soberania sobre as ilhas do Atlântico Sul ressurge no discurso da Argentina de Cristina Kirchner Antes de partir com destino à capital argentina, o papa recebera o apelo de 133 parentes de “desaparecidos” para que tratasse disto com os generais no poder. O arremate papal foi mais amplo. “Guerras são absurdos”, disse João Paulo II ainda em Buenos Aires. Sobre a das Malvinas, não faltaram depoimentos e livros. Um deles, de um coronel reformado, fala da improvisação, desatino e incompetência militar “dos generais que nos jogaram numa tresloucada aventura no Atlântico Sul”. De sua posição, chamada de “Ganso Verde”, o coronel testemunhou o desastre e ofereceu informações esclarecedoras, como a de que contava, como comandante de pelotão, com 45% de recrutas analfabetos e recém-incorporados. Correu mundo a notícia, documentada com fotos, do general que comandou as tropas de invasão se exibindo em companhia de sua secretária, em passeios pela ilha de carro. O coronel de “Ganso Verde” confessou-se “sem cartografia da área onde teve de combater”. Soldados argentinos ocupam a base militar britânica em Puerto Argentino (Port Stanley), no início da Guerra das Malvinas, em abril de 1982 Não faltaram brutalidades, como o afundamento com muitas mortes do cruzador argentino Belgrano, que estava fora da área de combate – um evento submetido a inquérito secreto do ministério da Defesa britânico, cujas conclusões não se conhece até hoje. © Daniel Garcia/AFP H Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores Os argentinos parecem acreditar num futuro favorável a eles. Na Politique Étrangère, da França, o argentino Angel Telito diz que a guerra no Atlântico Sul ultrapassará “os limites do século e se projetará no futuro, indefinidamente” como um litígio entre “novas e velhas potências”. Telito fala disto como “fator determinante do futuro envolvimento de toda América Latina” em favor das pretensões argentinas. Lord Carrington, exministro do Exterior britânico, afirmou que “cedo ou tarde teremos de discutir com a Argentina o futuro das Malvinas”. Pode ser verdade, mas fatos recentes não estimulam tal previsão. Há pouco, o governo britânico enviou carta ao secretário-geral da ONU excluindo qualquer possibilidade de diálogo com a Argentina envolvendo a soberania das Malvinas. “Não pode haver e não haverá negociação até o dia em que os habitantes das Falklands o desejarem”, diz a carta. A existência de reservas petrolíferas nas águas do arquipélago torna tudo ainda mais difícil. “Não queremos ser colonizados pela Argentina”, já declarou um porta-voz dos cerca de 3 mil habitantes do arquipélago. A carta reitera que a soberania britânica data de 1764 e que o arquipélago “nunca pertenceu à província argentina da Terra do Fogo”. O nome Falklands foi dado em 1690, em homenagem ao Visconde de Falkland, uma cidade na Escócia. O nome Malvinas, com data de 1764, deriva do francês Les Malouines, referência à cidade francesa de Saint Malo. Na nova erupção do tema das Malvinas, está em pauta o papel confuso dos Estados Unidos. Primeiro, irritaram britânicos e argentinos com seu “neutralismo”. Depois irritaram somente os britânicos, dizendo-se favoráveis a negociações. No fim, só os argentinos ficaram furiosos com a notícia de que Washington projetaria instalar uma base nas Malvinas, intenção revelada no artigo na Politique Étrangère. O arquipélago é uma posição estratégica de alto valor para o controle militar do Atlântico Sul. A instalação de uma base americana simbolizaria mais uma passagem do bastão, de Londres para Washington. 2012 MARÇO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 10 Nelson Bacic Olic Da Redação de Mundo Golfo Pérsico, geografia e geopolítica A s pressões cada vez maiores da comunidade internacional sobre o Irã em relação ao projeto nuclear que o país desenvolve fez com que o governo de Teerã ameaçasse criar obstáculos para a travessia de navios petroleiros pelo Estreito de Ormuz, a única saída do Golfo Pérsico para o Oceano Índico. O Golfo Pérsico é um braço de mar quase fechado que se estende desde o estuário do Chatt al-Arab, canal fluvial resultante da junção dos rios Tigre e Eufrates, ao norte, até o Estreito de Ormuz, onde as águas do golfo se conectam com as do Oceano Índico. Situado num dos pontos nevrálgicos da região do Oriente Médio, o Golfo Pérsico banha os territórios de oito países: Irã, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Barein, Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã (veja o mapa). Durante muito tempo os arredores do golfo se constituíram numa área pobre, árida e despovoada, frequentada por piratas e traficantes. Todavia, ao longo do século XX, a região passou a ter elevada importância estratégica, pois tanto nos territórios continentais como nos espaços marítimos sob controle dos Estados ribeirinhos se concentra parcela importante da produção mundial de petróleo e de gás natural. Na esfera direta do golfo estão aproximadamente 60% das reservas do “ouro negro” e 40% das de gás. Pelo Estreito de Ormuz passam cerca de 40% do petróleo comercializado no mundo. As porções norte e leste do golfo são ocupadas por um único Estado, o Irã, e o restante da orla marítima pelos demais países. Culturalmente, a região do golfo é também uma área de contato entre as civilizações persa – representada pelo Irã – e árabe, que engloba os demais países. Por conta disso, o golfo é polêmico até no nome. Muitos especialistas, especialmente franceses, defendem que o nome correto dele deveria ser Golfo Arabo-Pérsico e não Golfo Pérsico. Nos AFEGANISTÃO A região do Golfo Pérsico IRÃ IRAQUE KUWAIT Go lfo BAREIN ARÁBIA SAUDITA Países com litoral no Golfo Pérsico Regiões produtoras de petróleo/gás Rota dos navios petroleiros CATAR Pé rs Estreito de Ormuz ic PAQUISTÃO o EMIRADOS ÁRABES UNIDOS OMÃ MAR ARÁBICO 1 para o Extremo Oriente 2 para o canal de Suez e Cabo (África do Sul) Atlas escolares utilizados em países do mundo árabe ele aparece com o nome de Golfo Arábico. Na virada do século XIX para o século XX, aproveitando-se da decadência do Império Turco-Otomano e tentando conter o avanço da influência do Império Russo sobre a Pérsia, a Grã-Bretanha firmou acordos políticos e territoriais com várias lideranças árabes na margem ocidental do Golfo. Algumas décadas depois, tal estratégia resultou na fragmentação geopolítica da área onde hoje se encontram o Kuwait, o Catar, Barein, o sultanato de Omã, os sete emirados que formam os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita. O Iraque foi uma entidade geopolítica “inventada” pelos britânicos – tanto que, no início do século XX, corria nos meios diplomáticos britânicos a versão de que as fronteiras do Iraque teriam sido traçadas “num belo domingo de sol em Londres”. Essas fronteiras, arbitrárias e artificiais, se tornaram mais tarde focos de tensão e de conflitos. Entre as causas da Guerra Irã-Iraque (1980-1988), encontrava-se a questão da retificação da fronteira comum entre os dois países na região do Chatt alArab. Uma das justificativas do Iraque para a invasão do Kuwait, em 1990, foi a de que este último país constituía um produto do imperialismo britânico – e deveria ser, na realidade, uma província iraquiana. 200 km Os países do Golfo Pérsico exibem grandes discrepâncias no que se refere à extensão territorial, à demografia e à economia. O de maior superfície é a árida Arábia Saudita, com pouco mais de 2 milhões de km2, enquanto o pequeno Barein possui área de apenas 700 km2. O mais populoso dos países é o Irã, com cerca de 75 milhões de habitantes; no outro extremo encontra-se o Barein, com pouco mais de 800 mil. A maior ou menor presença e exploração de petróleo e gás se traduz por fortes disparidades econômicas. A imensa maioria da população de todos os países do Golfo professa o islamismo, mas com importantes diferenciações sectárias. No Irã e no Iraque, a maioria é formada por xiitas. No Irã, a proporção de xiitas é de cerca 90%, enquanto os xiitas iraquianos representam aproximadamente 60% da população total do país. Ironicamente, desde a derrubada da ditadura sunita de Saddam Hussein pelos americanos, cresce a influência do Irã entre a maioria xiita do Iraque. Nos demais Estados da região, os sunitas são majoritários, mas existem minorias xiitas. A convivência entre sunitas e xiitas, especialmente no Iraque, tem sido quase sempre conflituosa. No Barein, a Primavera Árabe assumiu os contornos de uma revolta xiita contra a monarquia sunita. O cenário, porém, é ainda mais complexo, pois a exploração do petróleo e do gás atraiu para a região levas de imigrantes dos países árabes vizinhos e, também, do sul e sudeste da Ásia. Indianos, paquistaneses e filipinos formam, por esse motivo, parcela significativa dos trabalhadores engajados nas economias do Golfo Pérsico. Como reflexo da diversidade histórica, política e cultural, a região do golfo é palco inúmeras disputas geopolíticas. Há tensões de caráter religioso e étnico, como as que envolvem o Irã persa e xiita e os países árabes vizinhos, dominantemente sunitas. Há, também, tensões derivadas das diferenças entre os regimes políticos. Iraque e Irã são repúblicas, enquanto os demais países são monarquias. O Irã, uma monarquia pró-ocidental até 1979, converteu-se em república islâmica dirigida pela elite teocrática xiita. No Iraque, uma república nacionalista e autoritária anti-ocidental foi substituída, como resultado da invasão americana de 2003, por uma instável república parlamentarista que se equilibra em acordos entre xiitas, sunitas e curdos. Contudo, a principal raiz das instabilidades políticas regionais encontra-se nas excepcionais riquezas energéticas do subsolo. O “Golfo do petróleo” experimentou três grandes conflitos recentes, com repercussões em escala mundial. A Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a Guerra do Golfo (1990-1991) e a Guerra do Iraque (2003) destruíram uma arquitetura de poder regional baseada na rivalidade entre Irã e Iraque. Daqueles terremotos, emergiu um Irã mais forte, com ambições de exercitar sua influência em toda a região. A tensão latente, potencialmente explosiva, sobre o programa nuclear iraniano evidencia o desconforto de Washington com as ambições de Teerã. MARÇO 2012 11 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O antártica Há cem anos, a última grande aventura conquista do Polo Sul faz parte de um momento histórico conhecido como o Período Heroico das Explorações Antártidas, que se estende dos finais de 1890 até finais de 1920, coincidindo parcialmente com a Primeira Guerra Mundial, no ápice das narrativas nacionalistas ocidentais. O continente antártico se tornou o principal objetivo das explorações científico-geográficas de vários países. Sucederam-se dezesseis expedições relevantes, organizadas sob a bandeira de oito países, que pretendiam reclamar a soberania sobre partes do continente. Os heróis da corrida decisiva, que percorreriam aproximadamente 3 mil km foram o explorador norueguês Roald Engelbregt Gravning Amundsen (1872-1928), líder da primeira expedição a atingir o Polo Sul, em 14 de dezembro de 1911, e o oficial da marinha britânica Robert Falcon Scott (1868-1912), que alcançou o Polo Sul logo depois, em 17 de janeiro de 1912. Amundsen triunfou, mas Scott ficou com as láureas do martírio. O norueguês constituiu uma equipe de nove exploradores, com as habilidades e competências necessárias para ajudá-lo a conquistar seu único objetivo: alcançar a latitude de 90º S antes de qualquer outro homem. Eles partiram da Noruega em 10 de agosto de 1910. Do outro lado, a expedição Terra Nova, de Scott, composta por 16 oficias e cientistas e nove marinheiros, proclamou metas diversas, que se estendiam da renovação da identidade imperial britânica até a investigação científica. Scott, contudo, também almejava, acima de tudo, a primazia no Polo Sul. O veleiro tipo escuna Fram, de Amundsen, ancorou na Baía das Baleias (78º 41’ S), no Mar de Ross, no continente antártico, em meados de janeiro de 1911. A baía ficava 96 km mais próxima do Polo Sul que a Ilha Ross, lugar escolhido como ponto de ataque por Scott. No início de fevereiro, os homens de Amundsen construíram a base Framheim e avistaram o Terra Nova, baleeiro de Scott. Entre fevereiro e agosto de 1911, enquanto se instalava a escuridão do inverno austral, o meticuloso Amundsen testou todo o equipamento e cumpriu a tarefa vital de distribuir estrategicamente 4,5 toneladas de provisões por diversos depósitos (o primeiro a 80º S), em diferentes latitudes, no rumo do Polo. Por segurança afixaram-se bandeiras de sinalização em cada depósito, ao longo de uma extensa linha traçada no mapa e percorrida no terreno. Graças à obsessão de Amundsen pelo planejamento, sua expedição encontrou todos os O feito de Amundsen e Scott, os rivais pioneiros do Polo Sul, assumiu proporções de uma história trágica, cultuada até hoje por leitores de todo mundo. No centenário, museus de ciência de vários países organizam exposições que celebram a corrida à Antártida © NOAA Photo Library A Renato Mendes, de Lisboa Especial para Mundo O explorador Roald Amundsen chega ao Polo Sul, em dezembro de 2011 depósitos, quer no ataque ao Polo, quer no regresso a base Framheim. Uma primeira tentativa de ataque ao Polo, em setembro, foi frustrada pelas temperaturas extremas, que circundaram os 57 ºC negativos. A marcha efetiva começou em 20 de outubro, pouco antes do equinócio de primavera. A expedição viajava em quatro trenós, puxados por 52 cães. Após cinco dias, Amundsen tinha 240 km de vantagem sobre Scott. Viajava de cinco a seis horas por dia, com intervalos de uma hora para descanso dos animais. Em 8 de dezembro, a equipe norueguesa passou pelo ponto extremo sul atingido por outro lendário explorador, Ernest Schakleton (1874-1922) e Amundsen registrou em seu diário: “88º 23’ ficou para trás; estamos mais ao sul do que qualquer ser humano já esteve. Nenhum outro momento em toda a viagem me afetou como este.” Serviço Na vasta literatura sobre a aventura do Polo, destacam-se algumas obras indispensáveis: l The South Pole, de Roald Amundsen, cuja edição original foi publicada em 1913. l The heart of the Antartic: The Farthest South Expedition (1907-1909), o relato da expedição de Ernest Shackleton. l Scott, Shackleton and Amundsen – Ambition and Tragedy in the Antartic, de David Thomson (2002). l Race for the South Pole: The Expedition Diaries of Scott and Amundsen, de Roland Huntford (2010). O triunfo veio a 14 de dezembro, quando Amundsen e seus homens atingiram o Polo Sul geográfico da Terra, com apenas 17 cães vivos. O plano era aquele mesmo: os demais cães, extenuados, haviam sido sacrificados e devorados por homens e cães remanescentes. Como os instrumentos não eram capazes de indicar a exata localização do Polo, Amundsen enviou três de seus homens para três direções distintas, por 20 quilômetros, para ter a certeza de que pelo menos um deles alcançaria o ponto invisível de encontro de todos os meridianos. Amundsen fez uma tenda no lugar de seu triunfo, Polheim, “o mais próximo do Polo, quanto foi humanamente possível, com os instrumentos à nossa disposição”, e nomeou uma parte do planalto em homenagem ao seu rei Haakon VII. Dentro da Polheim, colocou um hexágono, um altímetro, botas de pele de rena, luvas e uma carta destinada a Scott na qual pedia que o feito fosse divulgado, na hipótese de que sua expedição perecesse durante a jornada de regresso. A hipótese macabra não se concretizou: Amundsen e seus homens regressaram em segurança e, do porto de Hobart, na ilha australiana da Tasmânia, em 7 de março de 1912, o norueguês transmitiu a notícia histórica, com exclusividade, para o The New York Times e para o londrino Daily Chronicle. Scott organizou uma expedição maior, mais imponente e muito menos eficaz que a de Amundsen. Além de cães, o inglês levou também pôneis siberianos e tratores para o gelo, opções que se revelariam desastrosas: os pôneis morreram em pouco tempo e as máquinas, nunca antes testadas naquelas condições, quebraram rapidamente. A expedição britânica partiu a 1 de novembro, dez dias depois da de Amundsen, e alcançou o Polo Sul em 17 de janeiro de 1912, com mais de um mês de atraso em relação ao rival, após uma jornada de sofrimentos indizíveis. Na paisagem gelada, avistaram Polheim, a tenda de Amundsen. Scott registrou em seu diário: “Bem, agora temos que dar as costas às nossas ambições e com sentimento de dor teremos que nos arrastar por 800 milhas – adeus aos devaneios!” Seus homens, extenuados fisicamente, feridos e esfaimados, nunca sairiam da Antártida. A viagem de regresso, de 1,3 mil km pontilhados por tempestades de neve, terminou a apenas 17 km de um depósito de combustíveis e alimentos. Todos os homens morreram de frio, fome e exaustão. Em sua tenda, nas nove noites derradeiras, enquanto as tempestades uivavam do lado de fora, Scott escreveu diversas cartas de adeus. Sua última entrada no diário tinha a data de 29 de março: “Devemos viver até o fim, mas estamos ficando cada vez mais fracos e o fim não parece estar distante. É pena, mas não posso mais escrever.” Renato Mendes é jornalista 2012 MARÇO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 12