1º LUGAR O Diário de Clarinda
Transcrição
1º LUGAR O Diário de Clarinda
1º LUGAR O Diário de Clarinda (ZELITO NUNES MAGALHÃES) Clarinda começou a gostar do mar ainda criança, quando o pai Jerônimo costumava a passear com ela na possante jangada por ele mesmo construída. Velejavam os dois, indo do Farol do Mucuripe até a Barra do Ceará, deleitandose com as paisagens que contrastavam com os mares bravios que enchiam tudo de graça e encantamento. Via-se naquele pinguinho de gente de apenas seis anos o jeito de quem tinha nascido fadada para a vida do mar, como o pai.enquanto a jangada singrava pelos verdes mares, ela parecia encantar-se com a imensidão daquele mundo feito d’água cujas ondas se desdobravam furiosamente ao seu olhar. Em certos momentos, dava a impressão de que ela conversava com as vagas e suas palavras pareciam brotar num tom de verdadeira intimidade. Os passeios marítimos começaram a escassear quando Clarinda passou a frequentar a escola. Porém, Jerônimo não tencionava que a menina perdesse o gosto pelo mar; também não saíam de sua cabecinha os momentos dos gostosos passeios que faziam. Assim, sempre que podiam, pai e filha eram vistos a navegar. Certo dia, a menina chegou a indagar-lhe: - Pai, quando eu crescer, você faz uma jangada pra mim? - Você num já tem esta?- respondeu Jerônimo carinhosamente. - Eu queria uma grande, bem grande assim... pra eu levar a minha professora e os meus amigos da escola- disse Clarinda. Aquelas palavras reforçaram mais ainda o orgulho do pai, por ver na filha que cada dia que passava, mais ela aumentava o seu gosto pelos passeios do mar. Acima de tudo, o velho começava a torcer para que a pequena tivesse uma vida promissora, a despeito da que ele levava como pescador que nada de melhor lhe oferecia. Jerônimo encarava tudo aquilo como a dizer: “se não tive a oportunidade de estudar, pelo menos tenho uma filha bem encaminhada para que não se crie ignorante como eu...”. Assim, Clarinda foi crescendo, enquanto ia progredindo nos estudos. Caminhava para os quinze anos, quando começou a adaptar-se aos costumes próprios das moçoilas de sua idade. Dentre esses, estava em voga o uso do “Diário” em cujas páginas elas transcreviam poemas dos grandes autores que lembravam a pessoa por quem começava a despertar os sentimentos de amor ou simpatia ou outras coisas de seu maior interesse. O primeiro registro feito por Clarinda em seu “Diário” foi a transcrição de uma notícia de jornal, guardado pelo pai, que narrava a odisséia de quatro jangadeiros que haviam partido de fortaleza com destino ao Rio de Janeiro, singrando 2.381 km de mar, quando ela ainda não era nascida. Um dos jangadeiros era Jerônimo. Por isso, além do registro no “Diário”, ela guardava o recorte com muito carinho. Clarinda exultou de alegria, quando certo dia recebeu um comunicado para exercer um emprego que pleiteara no Lloyd brasileiro, resultado da entrevista a que se submetera. No dia do embarque, não faltaram os beijos e abraços das pessoas mais íntimas do bairro. O último a abraçar foi Jerônimo, que a cobriu de beijos e recomendações. Não se esqueceu de botar na mala o “Diário” que registrava, dentre outras coisas, o ato de heroísmo do velho jangadeiro, que ela já tinha falado para a professora e outras colegas de escola. No dia seguinte, o navio de Clarinda levantou âncoras no porto e ao cabo de 45 dias, atracou no porto de Liverpool. Ali, chegou às suas mãos um folder ilustrativo que contava a história dos Beatles, o maior grupo de rock, filho da terra. Bastante cansada da viagem, Clarinda recolheu-se ao seu camarote logo após o jantar. Antes de dormir, ela registrou no “Diário” as primeiras impressões da viagem ao deixar as águas brasileiras. Depois de quase um mês de viagem, a embarcação de Clarinda atracou num porto grego. Foi quando começou a perceber que um homem corpulento, simpático, dono de uma farta cabeleira, aparentado beirar os sessenta, lançava sobre ela um olhar perscrutador. Ao cair da tarde do dia seguinte, um estafeta foi ao seu camarote e entregou-lhe luxuosa caixa encimado por um cartão com estes dizeres: “ Temis, com admiração”. Abrindo-a, a surpresa: um colar de pérolas. Receosa, pensou em devolver. A quem? Era uma joia caríssima para merecê-la tão humilde pessoa, a filha de pescador. Porém, desistindo do intento, encarou o presente como um gesto normal. Mas quem era Temis? Logo veio, a saber, pela boca do estafeta. Tratava-se do maior armador grego da região que atendia pelo nome de Temístocles. Naquela mesma tarde, o navio tinha de levantar âncoras, conduzindo quatrocentos turistas que desembarcariam na França, além da tripulação que se compunha de quarenta pessoas. Clarinda não se esqueceu de registrar no “Diário” a surpresa do presente. Chamada ao gabinete do armador foi que reconheceu Temístocles, que falou em português, porém com um sotaque arrastado. Sem mais delonga, declarou-se: estava visivelmente apaixonado por ela, acrescentando que não podia haver recusa. “Como sabe, um homem apaixonado é capaz de cometer qualquer loucura...”. E depois de uma reflexão: “Deve saber quantas pessoas estão no navio... Cabe a você decidir.” Diante de tais ameaças apavorantes, Clarinda chegou à conclusão que se encontrava realmente num beco sem saída. Passadas as horas, a brasileira havia escrito mais uma página em seu “Diário”: Fiz hoje uma boa ação: salvei de um naufrágio quatrocentos turistas e mais uma tripulação de quarenta pessoas.