O Draconiano - O Nerd Escritor

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O Draconiano - O Nerd Escritor
O Draconiano
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urante muito tempo, após as unificações dos reinos dos homens,
todo o continente de Enthär passou por um período conturbado, com
inúmeras guerras de fronteiras.
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Os vários feudos do leste se uniram em estados, com o poder
centralizado nas mãos de um nobre mais forte, que se tornava rei. Nessa
época, anões e elfos se mantinham afastados e era raro vê-los fora de seus
reinos, Driev e Kendal.
Dentre os reinos recém-formados destacou-se Dracon, que adotou uma
postura austera e conquistou a amizade dos elfos. Dracon era uma grande ilha
no Mar do Leste, rica em minérios e em terras férteis. Isso despertou a cobiça
dos reinos vizinhos.
No continente, três grandes reinos emergiram. Silvarion ao sudeste,
governado pelo rei Eukarior; Swannpala, ao norte, unificado pelo duque
Kiromn, de Nordwil, o Sábio (já que era o mais erudito entre os nobres de
Enthär); e, ao leste, o último dos grandes reinos dos homens, Kalpang.
A guerra de centralização de Kalpang foi a mais longa, pois os feudos
eram fortes e suas alianças eram quebradas para formarem novas alianças. que por sua vez, logo eram quebradas.
Com a formação dos quatro reinos dos homens, logo várias guerras
fronteiriças foram travadas. Na ânsia de aumentar seus territórios, os
soberanos armavam seus exércitos e os enviavam rumo às conquistas.
Sendo o primeiro reino a se unificar, Dracon tinha um exército mais
sólido e poderoso, mas, apesar disso, o rei Cebalos não tinha ambições
territoriais. A costa da ilha era freqüentemente visitada pelos elfos de Kendal, desde antes da centralização. Esses estrangeiros ensinavam diversos ofícios
ao povo do litoral.
As visitas élficas passaram a ser mais freqüentes e, com a permissão de
Lorde Cebalos, Caldon, um dos elfos da linhagem real de Kendal, fundou uma
colônia ao sul de Dracon. Os elfos deram à colônia o nome de Argadal, que
significava Terra da Vigilância.
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Os minérios, - principalmente a prata e o ferro - de excepcional
qualidade logo criaram fama. Mercadores de Silvarion começaram a procurar
tais metais e voltavam do mar contando maravilhas sobre a Ilha. Tais histórias
instigaram o interesse de nobres gananciosos do continente, inclusive do
próprio rei Eukarior.
Foi assim que a primeira guerra de fronteira se iniciou no leste. Eukarior
e seus nobres ordenaram a construção de uma marinha de guerra grande o
suficiente para levar um imenso exército ao litoral de Dracon.
Nos estaleiros de Silvarion foram construídas grandes galés de três
mastros, que sustentavam belas velas triangulares. O maior destes navios era
Arkarior, o rei dos ventos. Era uma embarcação monumental de quarenta
curvos1 de comprimento e vinte remos de madeira de cedro. Nele navegava o
rei e seus mais leais guerreiros.
No ano de 245 da Aurora dos Homens, partiu do litoral de Silvarion a
primeira expedição belicosa rumo a Dracon. Eram doze embarcações, que
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Curvo é uma medida usada em Enthär e equivale à aproximadamente 1, 5 metro.
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levavam uma força de mais de dois mil homens, todos preparados para o
combate com lanças, escudos e espadas.
As naus aportaram ao norte da grande ilha, mas já no primeiro
confronto, o que se viu foi um massacre sem precedentes, onde Eukarior foi
morto. Sabendo dos planos do inimigo, o rei Cebalos concentrou suas forças e
emboscou as tropas invasoras com um contingente três vezes maior.
Outras incursões foram organizadas por Planarior, filho mais velho e
herdeiro do trono de Eukarior, porém, como a primeira, as demais tentativas
foram frustradas.
Planarior era ainda mais ambicioso do que seu pai e, percebendo que
seria impossível penetrar no reino de Dracon, voltou-se para o oeste e passou
a planejar um ataque a Swannpala.
No final do ano de 252, uma batalha sangrenta foi travada às margens
do rio Keld. Planarior chegou a atravessar a fronteira e submeter à cidade de
Reva a um cerco que durou um ano. Contudo, o rei Kiromn, de Swannpala, já
com idade avançada, liderou uma contra-ofensiva que expulsou as tropas de
Silvarion.
As animosidades continuaram durante meses, até que foi assinado um
pacto de não-agressão entre os dois reinos. O Tratado de Keld, como foi
chamado, durou até o ano de 275 da Aurora dos Homens, quando o rei Seydis,
filho de Kiromn, teve de defender suas fronteiras a leste, contra Silvarion e ao
oeste, contra Kalpang.
Lutando na frente oeste de batalha, o rei Seydis tombou e mais tarde,
ficou conhecido como Seydis, o Breve, pois foi o reinado mais curto da história
de Swannpala. Seu irmão Javik assumiu o cetro e conseguiu, em 276, a paz
com todas as fronteiras, através de um novo tratado. Javik se tornava o
“Pacificador” e tinha início a Era da Grande Paz.
Nesta época, as guerras nas fronteiras deram lugar às disputas
intestinas. Pequenas revoltas dos Lordes e tentativas de golpes se tornaram
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corriqueiras naquela época, mas o comércio entre os reinos se desenvolveu
rapidamente e garantiu a bonança.
Com a paz conquistada nestes tempos, os anões e elfos passaram a se
aventurar fora de seus reinos, mantinham negócios com os homens e até se
relacionavam com eles de forma amigável. Swannpala se tornou um reino
amigo de Driev e as relações entre o rei Kiromn II e a Casa Real dos anões se
estreitaram.
A paz entre os reinos de Enthär durou vários invernos, até a chegada
dos primeiros orks vindos do oeste. Durante anos e anos, os elfos de Kendal
barraram as incursões dos orks para preservar a Era da Paz, mesmo que nem
homens, nem anões soubessem das diversas batalhas travadas nas florestas
do sul.
Numerosos, os orks invadiam as matas élficas organizados em hordas
de até cem guerreiros. Esgueiravam-se na vegetação e atacavam em
emboscadas. Porém, os elfos estavam cada vez mais atentos e vigilantes.
Depois de diversos combates, um rei ork, de nome Nervuak, organizou
um imenso exército e unificou as diversas tribos orks do oeste.
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Em Kendal, a notícia chegou pela boca de Rino, o druida do Olmo, que
avisou ao rei Mormail das intenções malignas de Nervuak. O sábio rei élfico
convocou todos os guerreiros de Kendal e criou patrulhas de guardiões que
vigiavam a fronteira do reino.
O confronto de fato ocorreu no ano de 345, nas florestas do sul e,
embora mais organizados e em número maior, os orks foram expulsos de
Kendal, se instalando em Kalpang.
A partir daí, os enredos da Grande Guerra das Raças começaram a se
desenrolar. Os orks fundaram um reino a oeste de Kalpang e receberam ajuda
de um império até então desconhecido no oriente, o Império Raskhal.
As forças do Império Raskhal eram comandadas por um cavaleiro
tenebroso, de fala áspera e envolvente. Ele trazia no peito a Águia Negra,
símbolo de seu exército e brandia uma lâmina igualmente negra, a qual os
homens temiam. Diziam por toda a parte que, por onde ele passava, a
vegetação morria e os animais fugiam. Contavam também que, toda vez que
ele sacava sua lâmina escura, o sol se escondia e as trevas tomavam o lugar
da luz.
Na mesma época, a ainda jovem rainha Yowë de Dracon criou,
aconselhada pelos elfos, uma nova ordem de guerreiros guardiões: os
Draconianos. Eram doze cavaleiros insuperáveis em honra e habilidade.
Usavam armaduras negras, com um dragonete vermelho estampados no peito.
Suas armas eram forjadas pelos anões com o puro aço da grande ilha e seus
cavalos eram imponentes e, de longe, os mais fortes de toda Enthär.
O primeiro dos draconianos foi Raikar, o mais valente e sábio dos
guerreiros. A ele, além de liderar as tropas na batalha, cabia costurar uma
aliança que protegesse Enthär do inimigo crescente.
Raikar e sua hoste peregrinaram pelo continente, convencendo reis e
nobres a se unirem em uma só força para deter a Águia Negra do ocidente.
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Enfim, no Conselho de Nordwill, foi selada a Aliança de Enthär. Os elfos
de Kendal formaram a Barreira de Elbon, enquanto os anões de Driev, aliados
a Swannpala, atacaram o inimigo ao sul do Vaërn.
Apesar de todos os esforços, o estandarte da Águia Negra marchou
vitorioso, devastando tudo o que encontrava pela frente. Muito numerosos, os
orks invadiram Kalpang e fixaram bases às margens do Keld.
Com o apoio dos cavaleiros selvagens yushers e do exército regular do
império, as tropas do oeste atravessaram Driev e Swannpala, chegando a
Silvarion, onde todo o exército do leste havia se reagrupado, num recuo
estratégico.
Lutando lado a lado, elfos, anões e homens venceram e rechaçaram o
inimigo. A batalha de Silvarion envolveu centenas de milhares de guerreiros,
com duras baixas para ambos os lados, mas, por fim, a união dos reinos livres
de Enthär foi salva do julgo da sombra das asas da Águia Negra.
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uprest tinha por hábito sair ao entardecer para cortar alguma lenha.
O inverno não chegava a ser rigoroso como nas montanhas do
norte, mas era frio o bastante para gelar os ossos daquele velho
caçador-de-bruxas. Apesar do frio, o suor escorria pelo rosto de Ruprest
enquanto ele cortava, em tocos, as toras que havia juntado durante o outono.
A visão de Ruprest não era mais tão boa quanto antes, quando ele saía
pelo continente atrás de bruxas e feiticeiras. Porém, seu ouvido continuava
agudo. Nenhum som lhe passava despercebido e, após quatro anos vivendo na
floresta Linfor, os ruídos de esquilos e mochos lhe eram familiares.
Quando Ruprest estava quase terminando de cortar a lenha, um barulho
raro lhe tirou a atenção. Ele sabia que não provinha de nenhum animal, pois
era metálico, como o desembainhar de uma espada ou o choque casual de um
escudo a uma lóriga.
- Não adianta esconder-te, maldita! Mesmo se esgueirando, tu não
consegues enganar o velho Ruprest. - disse ele, com uma voz intimidante.
Nenhuma resposta veio da mata. Apesar disso, Ruprest não se abalou.
E segurando firmemente o cabo do seu machado, gritou:
- Mostre tua cara feia, Bruxa. Caso contrário, antes do cair da noite, tua
cabeça estará queimando em minha lareira! Se me enfrentares agora, prometote uma morte breve e sem dor, feiticeira.
- Não é uma bruxa que vem te atormentar, velho burro. - bradou uma
voz jovial, que vinha por de trás dos arbustos.
Ruprest prontamente reconheceu aquela voz e com uma mistura de
irritação com felicidade, retrucou:
- Patton, seu filho de uma leitoa gorda. Que os deuses amaldiçoem tua
alma e que todos os abutres devorem tua carcaça.
Saindo de dentro da mata, uma silhueta esguia soltou uma gargalhada e
partiu em direção ao velho caçador-de-bruxas.
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- Não mudaste nada, Patton. - disse Ruprest - Continuas um zombeteiro!
- E tu, mudaste tanto que agora parece uma uva-passa, com tantas
rugas. - retrucou o visitante.
Havia se passado algum tempo desde o último encontro entre Ruprest e
seu jovem amigo. Patton não tinha mais que dezenove invernos quando viu o
velho pela última vez. Os anos haviam sido duros com o rosto de Ruprest,
trazendo-lhe dezenas ou talvez centenas de rugas. Todavia, apesar de seus
quase cinqüenta anos, seu cabelo e barba continuavam ruivos.
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Patton, entretanto, estava mais forte e suas feições eram as de um
homem maduro. Seus cabelos negros não tinham mais o comprimento de
quando ele partira, mas eram longos o bastante para quase lhe tapar os olhos.
Apesar de mais adulto, ainda carregava o olhar cínico que lhe trouxera muita
confusão na infância.
- Parece que esqueceste de todas as regras de hospitalidade e de
cordialidade. - disse ele - Não vais me chamar para entrar em tua cabana e
tomar uma cerveja?
- Cabana uma ova, seu miserável. Eu moro em uma choupana, o que é
bem diferente. - respondeu o ruivo, indignado.
Ruprest tinha, há muito tempo, optado por viver na floresta, isolado e,
por isso, não recebia muitas visitas. Apesar de não admitir, sempre ficava
alegre quando era procurado por amigos.
Os dois recolheram a lenha e entraram na choupana de Ruprest. Um
lugar rústico, mas agradável, feito de madeira de álamo e com o teto forrado de
palha. Mesmo sem muito luxo, aquele parecia o lugar ideal para um guerreiro
descansar de suas aventuras.
A noite estava chegando e, em meio a conversas e lembranças, Patton
começou a falar sobre seu último emprego e de como era bem tratado por seu
suserano.
- Por que diabos, então, tu abandonaste teu posto de Senhor das
Armas? Perguntou o anfitrião, curioso com a falta de coerência do amigo.
- Problemas com a nobreza. - respondeu sarcasticamente Patton.
Ruprest insistiu:
- Que tipo de problemas, rapaz?
- Problemas do tipo que um marido não tolera, mesmo sendo um duque.
- retrucou Patton, já em tom de escárnio.
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- Não me digas que tu e a duquesa... - balbuciou o velho ruivo, sem
completar a frase e cada vez mais interessado na história.
- Lady Lavia tem vários encantos e o maior deles é a beleza de seu
nariz. Eu simplesmente não resisti àquela perfeição - explicou Patton.
- É verdade, o nariz de Lady Lavia é quase tão famoso quanto o ciúme
do duque de Locksun. - advertiu Ruprest. Mas se o duque esta a tua procura,
não é melhor partires de volta para o sul? O alcaide pode te reconhecer e botar
a guarda em teu encalço.
- Não te preocupes, meu velho. Em tempos de paz, as guardas das
pequenas cidades só comem e dormem. Creio que poucos fora de Locksun me
reconhecem como o Senhor das Armas.
Ruprest serviu hidromel ao amigo e os dois beberam e jogaram
conversa fora até quase o amanhecer. Muitas histórias foram contadas e
muitas risadas foram dadas até que, por fim, Ruprest apresentou uma rede
feita com um tecido churdo, na qual Patton poderia descansar de sua viagem.
Patton dormira pouco mais de três horas. A disciplina militar criara-lhe
hábitos difíceis de apagar e dormir pouco, com certeza era um destes.
Antes de Ruprest acordar, Patton já havia posto a mesa do desjejum,
colhido algumas frutas que o amigo cultivava no quintal e buscado água num
riacho que corria a pouco mais de três ceres2 da choupana de Ruprest.
- Acorda barba ruiva. Essa tua aposentadoria precoce te tornaste um
velho preguiçoso. Mais ainda do que já fora. - gritou Patton acordando seu
companheiro.
- Pelos deuses, garoto. Pareces um elfo, de tão chato. Pára de
matraquear e deixa-me dormir em paz. - pediu Ruprest, ainda sonado e
profundamente irritado.
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Um Cere equivale a 450 metros.
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De fato, Patton sabia ser chato quando queria. Durante alguns minutos,
uma infinidade de besteiras e xingamentos foram cuspidos nos ouvidos de
Ruprest.
- Não me deixas mesmo. - resmungou Ruprest, já se sentando à mesa.
- Fica feliz por eu não te acordar com a minha gaita. Aprendi a tocar
duas canções quase inteiras. - disse Patton com um falso orgulho - Da última
vez, dois gatos se mataram para não escutá-la - completou.
- Fizestes bem. Gatos são crias dos demônios. Sabes que, em noite
escura, eles se transformam em bruxas. - relatou gravemente Ruprest, tocando
um amuleto de madeira que trazia pendurado no pescoço, para protegê-lo do
mau agouro.
- Continuas com esses devaneios, velho. - recriminou Patton.
Ruprest cultivava crenças e superstições desde criança. Ele era da
oitava geração de uma família de caçadores de bruxa e, apesar de ter se
afastado de seu velho ofício, continuava a crer em certos fenômenos.
Os dois já conversavam há horas, sentados à mesa do café da manhã, e
os assuntos não se esgotavam. Ruprest gargalhava vertiginosamente enquanto
o amigo relatava suas aventuras e bebedeiras. Então, Ruprest revelou:
- Sabe Patton, tenho guardado uma cerveja pensando em ti, porque sei
que és um apreciador de bebidas. Eu mesmo a fiz.
Ruprest levantou-se e caminhou para fora da choupana. Patton o seguiu
e o velho pediu a ele que abrisse um alçapão na lateral da casa. O jovem fez o
que o amigo ordenou e viu que aquela era uma passagem para um modesto e
úmido porão.
- Deixe o alçapão aberto para que o sol ilumine o porão. - disse Ruprest,
já descendo os cinco degraus de escada que levavam ao fundo da pequena
câmara.
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O velho ruivo permaneceu dentro do porão por alguns segundos e voltou
trazendo um pequeno tonel de carvalho e duas grandes canecas. Havia muito
tempo que ele esperava a visita do amigo para poder mostrar-lhe sua
habilidade no preparo de cerveja.
- Eis aqui a cerveja dos deuses. Aposto que Hogan e Tarin3 devastariam
meio continente para provar desta. - atestou Ruprest.
- Não sejas tolo, caro Ruprest. Os deuses não tomam cerveja. Deuses
tomam apenas vinho e hidromel. - afirmou Patton.
Contrariado com o comentário do amigo, Ruprest encheu as duas
canecas e ofereceu uma ao hóspede, que bebeu como se provasse de uma
poção de druida.
- Diga-me garoto, o que achas?
- Ruprest, meu velho. Em nossas aventuras pelo continente, eu provei
cervejas de vários cervejeiros, umas doces, umas amargas. Algumas com um
sabor requintado, outras nem tanto. Porém esta tua cerveja... - fez uma
pequena pausa e continuou -... É a pior que eu já bebi em toda a minha vida! exclamou Patton.
A face de Ruprest enrubesceu de raiva com o deboche do rapaz. O
velho bufava como um porco do mato e por pouco não avançou rumo ao
pescoço de Patton.
- Seu filho de uma leitoa. - xingou Ruprest - Tu nasceste para beber
cerveja ork. - vociferou.
- Calma Ruprest. Calça tuas botas e vamos até a cidade de Gowern. Lá
eu te pagarei uma cerveja de verdade. - falou Patton com tom sarcástico.
Menos de vinte minutos depois, os dois estavam na estrada em direção
à cidade. A choupana de Ruprest ficava bem afastada. Ruprest escolheu a
floresta de Linfor, pois as lendas diziam que esta era habitada por felinos do
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Hogan e Tarin são os deuses da colheita e das festas, respectivamente.
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inferno. Poucos se aventuravam a adentrar a mata, mas o velho ruivo pretendia
eliminar cada uma das criaturas sinistras que assombravam a floresta. Durante
quatro invernos, procurou tais bestas, sem nada encontrar. Agora, começava a
suspeitar que as histórias que ouvira outrora eram infundadas.
Aquela estrada para a cidade não era muito movimentada durante o
inverno, pois uma nevasca não seria nada agradável para transeuntes. As
carroças e cavalos não se arriscavam a usar este caminho, preferiam dar uma
volta maior a atravessar a Ponte do Grito, a qual Patton se esquecera.
- Amaldiçoada seja minha memória. Esqueci completamente desta
ponte. - resmungou Patton.
- Continuas o mesmo maricas. Alto, forte e com medo das alturas. disse Ruprest debochando.
- Não é medo e sim receio. Sua pança aumentou ainda mais e se tu
atravessares esta ponte, ela certamente se partirá e eu terei que arriscar meu
pescoço para salvar-te. - falou Patton, tentando se explicar.
- Eu estou indo. Quando criares coragem, venha atrás. Se caíres, são só
trinta curvos de altura. - intimidou Ruprest.
Ruprest atravessou tranqüilamente a ponte e seguiu em frente pela
estrada. Patton, no entanto hesitou antes de dar o primeiro passo e, mesmo
com medo, atravessou a ponte. Se não o fizesse passaria por covarde e seu
orgulho nunca permitiria isso. Do outro lado da ponte, Ruprest esperava às
gargalhadas. Era o troco por toda a ladainha imposta por Patton desde as
primeiras horas do dia.
A ponte recebera aquele nome numa alusão aos berros dos que tinham
menos sorte em atravessá-la. As histórias contavam que, por diversas vezes,
uma ou duas tábuas traíram a segurança de viajantes que faziam a travessia. A
queda daquela altura era certamente fatal e despertava certo temor nos vilões
e forasteiros que a cruzavam.
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Na metade do dia, Patton e Ruprest já se aproximavam de Gowern. Nas
proximidades da cidade, a estrada circundava o Bravier, um pequeno lago
onde algumas propriedades criavam animais, lavravam a terra e abasteciam o
povoado, com carnes, laticínios e hortaliças.
O lago ia se estreitando e terminava num riacho de águas claras e
correnteza forte, chamado Braço de Prata, que desaguava no Mayda. Há
poucos ceres de Gowern, já se via, por entre a leve bruma, as primeiras casas
e os famosos moinhos de trigo da cidade do outro lado da margem do rio.
Alguns cavalos passavam por eles, entrando e saindo da cidade, e
Patton ficou impressionado com o crescimento daquele lugar. Gowern era um
burgo que se desenvolvera ao redor da torre de Lordee Colish, o alcaide.
Impulsionado pelo comércio na rota entre os ducados de Phalanx e Locksun, o
povoado já contava com mais de duas centenas de moradores e se tornara
parada obrigatória para os comerciantes do Vaërn, especialmente por ocasião
do inverno, quando era realizada uma grande festa para aquecer os ânimos de
estrangeiros e habitantes.
Os dois companheiros atravessaram uma ponte de pedra que cruzava o
braço de prata e adentraram o burgo.
A estalagem da cidade tinha triplicado de tamanho e agora, a pequena
taverna que se encontrava dentro dela se tornara um grande refeitório. Seu
dono era um velho amigo de Patton, seu nome era Stool e este sim, fazia uma
cerveja digna de reis. Stool se tornara um comerciante de sucesso com o
crescimento da cidade e agora nem ligava para o apelido dado por Patton anos
atrás, por vender queijos. "O Grande Queijo" era como todos o conheciam.
Grande não era exagero. Stool pesava mais que um grande javali e seu braço
era pesado o bastante para expulsar qualquer bêbado que não respeitasse as
leis da casa.
Patton e Ruprest seguiram em direção à estalagem e, ao entrarem,
foram recebidos por Stool.
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- Pelos diabos! É realmente Patton quem trazes aqui, Ruprest? perguntou Stool, já sabendo a resposta.
- Sou eu mesmo que volto, Grande Queijo. - respondeu Patton, abrindo
os braços.
Os dois se abraçaram e prontamente Stool serviu três canecas de
cerveja, ao mesmo tempo em que chamava sua esposa.
- Rina, Rina, venha ver quem voltou! Prepare a cevada, pois neste
inverno venderemos muita cerveja! - exclamou Stool, eufórico.
Longe deles espiava atentamente Ehrin, o empregado de Stool. Ele
lembrava vagamente de Patton, pois quando o aventureiro partira, o rapaz era
pouco mais que uma criança franzina de olhos fundos.
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Ehrin agora era quase um homem. Continuava magro, mas tinha um
vigor invejável. Lembrou-se de que Patton também era bastante magro e usava
cabelos compridos. E que voltara bem diferente.
- Ehrin. - gritou Stool - Venha até aqui e beba uma caneca conosco. Hoje
lhe permito.
- Este garoto é o mesmo que queria ser cavaleiro em Nordwil? - indagou
Patton.
- Sim senhor. E este ainda é o meu desejo. - retrucou o rapaz.
Patton passou metade da tarde contando suas bravatas a Stool e a
Ehrin. - o que fez com que Ruprest as ouvisse de novo - E por volta da quarta
hora saiu para dar uma volta pela cidade.
- Ruprest, hoje eu acho que vamos ter que passar a noite aqui na
cidade. Se a festa de inverno for tão boa quanto diz Stool, nós não teremos
condições de voltar pela Ponte do Grito. - advertiu Patton, dando uma
gargalhada.
- Então que venham as mulheres e que venham as cervejas! Vibrou
Ruprest, como há muito não fazia.
A noite caiu na cidade muito mais cedo do que acontecia no verão. Stool
providenciou uma acomodação na estalagem para Patton e Ruprest, que se
puseram a descansar algumas horas antes da festa. Enquanto Ruprest deitava,
Patton remexia sua mochila, procurando algo que encontrou após alguns
segundos.
- Ruprest. - chamou Patton - Conheces o lado norte do lago Vaërn? perguntou ele.
- Não. - respondeu - Mas para que queres saber? - completou em tom
desanimado.
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Patton mostrou um pergaminho que mostrava a localização de um antigo
entreposto, que ele acreditava ter sido abandonado com algum ouro. O
bastante para alguns meses de cerveja.
- Patton, não achas que estou um pouco velho para aventuras? perguntou Ruprest.
- Aposto que ainda consegues partir a cabeça de um Duhr Kazur4 com
tuas espadas e além do mais, a idade só existe dentro da nossa cabeça. disse Patton, tentando ser persuasivo.
- Diga isto a minha coluna. E, ainda assim, precisamos de um guia. insistiu Ruprest.
- Stool haverá de arranjar isto. - finalizou Patton.
Ruprest dormiu com a nítida impressão de que por mais que relutasse,
Patton não iria deixá-lo em paz enquanto não concordasse em partir com ele.
Na verdade, a idéia de uma nova aventura após anos de descanso começava a
lhe agradar.
Ao acordarem, Patton e Ruprest já ouviam o barulho da festa e, quando
desceram as escadas que levavam do quarto à taverna, constataram que pelo
menos metade da cidade estava na estalagem, Stool estava esfuziante com o
lucro que teria naquela noite.
- Patton, venha cá. - chamou ele - Quero mostrar-lhe alguém.
Patton atravessou a taverna com dificuldades por causa da multidão e
foi em direção ao balcão onde estava Stool, sua esposa Rina e uma menina de
seus quinze invernos.
- Reconheces esta garotinha? - questionou o estalajadeiro.
- Não me digas que esta é Thala, a tua filha. - disse Patton com ar de
espanto.
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Duhr Kazur é uma raça de trogloditas de mais de dois curvos de altura, que lutou aliada ao Império
Raskhal na Grande Guerra das Raças.
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- Se não quiseres, não direi, mas é ela mesma. - respondeu Rina.
Patton abraçou e levantou a menina, não acreditando que a pequena
Thala que ele vira criança, tinha virado uma moça de cabelos claros, seios
fartos e pele morena.
Thala não tinha os olhos azuis do pai e realmente parecia muito mais
com a mãe do que com Stool, mas alguma coisa nela lembrava muito o Grande
Queijo.
- Como tu crescestes pequenina! - exclamou Patton ainda abraçando-a.
A menina ficou vermelha de vergonha, pois se Ehrin pouco lembrava de
Patton, a menina tinha apenas vagas recordações de quando era quase uma
criança e Patton já bebia cerveja na taverna. Thala ficou ainda mais
enrubescida quando viu um vulto separando o abraço dos dois.
- Não se pode mais virar as costas. - disse gravemente um homem da
altura de Patton e com uma cara hostil.
Patton não teve tempo de começar uma frase, pois foi acertado por uma
patada no meio do nariz que o botou desacordado. Por alguns segundos,
Patton ficou como se estivesse embriagado. Quando finalmente acordou, o
rapaz viu o rosto da dona da estalagem:
- Desculpe a falta de polidez de meu genro, Patton. - pediu Rina - Ele é
realmente muito ciumento e não se controla quando o assunto é minha filha.
- E bate muito forte, diga-se de passagem. - falou Patton ainda
atordoado, passando a mão no nariz úmido de sangue.
- Toma, pegue uma caneca de cerveja e diverte-te. - incentivou Stool a
Patton.
- Diverte-te longe de minha mulher, forasteiro. - disse o guerreiro com
um olhar severo.
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O agressor era Varlens, um bárbaro vindo do norte que, há tempos, uma
nevasca prendera na cidade de Gowern. Sem ter aonde ir, ele pediu abrigo na
estalagem de Stool e disse que pagaria com seu trabalho. Stool aceitou sua
proposta, e em alguns dias, sua filha Thala já nutria um grande sentimento por
ele. Stool foi contra o relacionamento dos dois. Varlens era um bárbaro e Stool,
muito severo. O velho comerciante mudou de idéia depois de Varlens salvar
sua vida, afugentando um urso que o atacara numa caçada. O bárbaro, de
longos cabelos castanhos e cara carrancuda, apesar de muito nervoso, havia
provado seu valor e conquistado sua amizade.
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Patton aceitou o conselho de Stool e não foi tirar satisfações com
Varlens. Mas, como Ruprest suspeitava, o aventureiro não iria esquecer o soco
e, ainda que não desejasse uma briga, não iria deixar barata tal agressão.
Ehrin estava em serviço, mas não deixava de se divertir. Todas as
garotas da cidade eram unânimes quanto à simpatia dele e isso, em alguns
casos, fazia dele um bom partido.
Entre um atendimento e outro, o rapaz ia falar com três amigas de Thala
que estavam sempre juntas, ávidas por novidades: Alya, Kimry e Lisa.
As três sempre foram, desde crianças, muito unidas e freqüentemente
estavam na estalagem a conversar com Thala e Ehrin, que tinham
praticamente a mesma idade e se interessavam pelos mesmos assuntos.
De cima de uma escada, as três observavam o recém-chegado. Kimry e
Alya se entusiasmaram com o forasteiro e ficaram a especular de onde poderia
ter vindo um rapaz tão contagiante com sua alegria.
Ruprest e Patton, juntos, acumulavam mais de três dúzias de canecas
de cerveja e, se já gargalhavam no início da festa, agora não conseguiam se
manter em pé.
Com a taverna mais vazia, Ehrin e Stool tinham mais tempo de escutar
as lorotas de Ruprest, que já falava com a língua trançada.
Quase no final da festa, outra figura se juntou à mesa, era Varlens, que
chegava com mais uma caneca de cerveja para Patton, junto com um pedido,
meio desajeitado, de desculpas.
Patton levantou-se de sua cadeira e fitou os olhos do bárbaro.
- Não penses que sou um homem vingativo, só não gosto de apanhar
pelas costas. - disse Patton, calmamente.
Quando Varlens piscou o olho, um soco arrebentou seu nariz e junto
com o golpe, um pedido de desculpas que o bárbaro não chegou a ouvir.
23
O Draconiano
Todos que ainda estavam na taverna começaram a rir por ver o Bárbaro
zonzo. Apesar de se sentir humilhado e enfurecido, Varlens admitiu que estava
errado e não tentou revidar.
No final da noite, Ruprest e Patton seguiram para seus quartos,
completamente embriagados, quase sem conseguir subir os degraus da
escada. Sem falar uma só palavra, a dupla se deitou e dormiu em sono
pesado, até o dia raiar.
- Ruprest, acorda. - disse Patton - Se continuares a roncar desse jeito,
irás acordar toda a cidade.
- Toda não. - discordou Ruprest sonolento, - Só metade. A outra metade
não conseguiu dormir, aterrorizada com os teus roncos.
- Não me venhas com histórias, Ruprest. Todos sabem que eu não
ronco. - retrucou Patton, indignado.
Os dois continuaram a discutir enquanto se arrumavam para tomar o
café da manhã e só pararam quando desceram as escadas em direção a
taverna. Ao chegarem lá, Stool levou-os até a mesa onde tomava seu lanche
matinal.
- Vocês demoraram a acordar - disse Stool
- E eu teria dormido até mais tarde se não tivesse sido acordado
abruptamente por este filhote de elfo. - resmungou Ruprest.
- Não reclame, velho. Temos assuntos a tratar, ou te esqueces do
pergaminho? - disse Patton.
Patton mostrou a Stool o pergaminho e pediu ao amigo que lhe
conseguisse um guia para levá-los pelos caminhos do lado norte do lago, um
dos poucos lugares do lado leste do continente em que os dois aventureiros
não haviam se embrenhado.
24
O Draconiano
- Não sei realmente o que pensar Patton. Tenho um guia ideal para leválos ao norte do Vaërn, mas tu quebraste o nariz dele ontem à noite. Varlens
conhece bem aquela região, mas não sei se ele te levará até lá, depois da
briga.
Ruprest estava ainda meio indeciso, mas resolveu que talvez fosse
melhor acompanhar Patton e cuidar para que o amigo não se metesse em
confusões, como era costume. Afinal, fora esta a promessa feita a Raikar, pai
do rapaz, há muitos anos.
Stool se ausentou por alguns minutos e voltou ao lado de bárbaro.
Ambos sentaram-se à mesa e Varlens fitou os olhos de Patton, com um sorriso
amarelado.
- Stool me falou a respeito da tua proposta, forasteiro. Estou disposto a
levar-te até o norte do Vaërn, mas meus serviços têm um preço.
- E quanto cobras para nos levar até o lado norte do lago?- questionou
Ruprest.
- O que vocês irão fazer lá? Não existem cidades naquela área, muito
menos comércio. É um lugar de ruínas e dizem ser assombrado. - advertiu o
bárbaro.
- Nós sabemos que não existem cidades e não é atrás de comércio que
queremos ir. O que queremos está naquela região. Se podes nos levar, ótimo,
se não podes, arranjaremos outro guia. - discursou Patton irritado.
- Meu preço é bem razoável. Noventa moedas de cobre. - revelou
Varlens.
- Noventa moedas, bárbaro? Estás louco? Não queremos que nos leve
em tuas costas. Só precisamos de um guia. Nós pagaremos setenta moedas e
partiremos daqui a duas horas. - disse Ruprest.
- Está bem. Levarei os dois até aquela região por setenta moedas, ainda
que ache que é perda de tempo. - aceitou Varlens.
25
O Draconiano
Ao meio do dia, Varlens esperava pelos seus contratantes em frente à
estalagem. O Bárbaro vestia uma grossa pele de urso negro, presa por um
broche de ferro trabalhado. Examinava a lâmina do machado cuidadosamente,
procurando alguma falha no aço afiado.
Junto ao bárbaro estavam Thala, Ehrin e a bela Kimry, que se mostrava
ansiosa pela chegada de Patton. A todo o momento a menina ajeitava seu
cabelo loiro e sedoso. Queria estar atraente para quando o aventureiro
aparecesse.
Ruprest e Patton abriram a porta da estalagem de Stool e se
aproximaram de Varlens. Os olhos de Patton foram imediatamente atraídos
pelos de Kimry, que estavam brilhando. O rapaz ficou impressionado com a
beleza da jovem e sorriu gentilmente para ela.
Kimry sentiu seu coração palpitar e observou Patton de cima a baixo. Ele
estava com a barba rala por fazer e isso lhe dava certo charme. Usava uma
calça de couro branco e se cobria com uma bonita capa negra, alfinetada num
broche de prata tão polida que se podia quase contemplar o próprio reflexo.
Seus trajes lhe conferiam um ar fino e, ambos, capa e broche, haviam sido
dados de presente pela duquesa Lavia, de Locksun.
O aventureiro notou Ehrin ao lado da jovem e encontrou um modo
delicado de abordá-la sem parecer ousado demais.
- Essa bela jovem é tua companheira, rapaz?
Ehrin sorriu e tentou responder à pergunta de Patton, mas Kimry foi mais
rápida e se apressou em dar a resposta.
- Ainda não encontrei um companheiro. - disse ela - Pelo menos não até
agora. - continuou. Além do mais, eu não quero ser a companheira de um
taberneiro. - concluiu a jovem, deixando Ehrin irritado.
26
O Draconiano
- Mas Ehrin ainda é jovem e é esperto. Seria um bom lanceiro, ou até um
cavaleiro se treinasse para isso. E, devo te dizer que, apesar de todas as
mulheres desejarem desposar guerreiros, a verdade é que estes não são bons
companheiros. Partem para a guerra e deixam suas mulheres por meses. Por
anos até. Isso quando não encontram a morte na lâmina de uma espada
inimiga, fazedora de viúvas.
- Mesmo assim. - insistiu Kimry - Esperarei que meu guerreiro venha e
me leve para bem longe desta cidade
Com um sorriso cativante e extremamente lisonjeado pela objetividade
da jovem, Patton se aproximou de Kimry com os olhos fixos nos dela. Ruprest
se segurava para não gargalhar, pois muitas foram às vezes que ele assistira
ao amigo galantear belas jovens, - algumas realmente em tentativas
desastrosas - e sabia que, assim como a cerveja, as mulheres eram um ponto
vulnerável na personalidade do amigo.
Mas, naquele momento, Alya chegou correndo. E Patton ao desviar seu
olhar por um segundo, pareceu cair num feitiço. A simples visão daquela jovem
vindo em sua direção fez o aventureiro esquecer tudo a sua volta.
Alya era um ano mais nova que Kimry e apesar de bela, não tinha a
exuberância da amiga. Mas algo nela fez Patton estremecer e, de repente, ficar
acanhado e inseguro.
A jovem corria porque temia perder a partida do rapaz com quem tinha
sonhado na noite anterior. Ela tinha os sedosos cabelos castanhos presos
numa trança fina envolta na cabeça. Sua pele alva enrubesceu ao notar que
todos estavam a observá-la.
- Que magia é esta que abençoa todas as famílias deste burgo com
filhas tão belas. - disse Patton, fitando os olhos de Alya.
Kimry ficou irritada com a atenção dada por Patton a Alya, mas o rapaz
nem notou o aborrecimento. Patton parecia hipnotizado pelo jeito indefeso da
moça.
27
O Draconiano
- É melhor partirmos. - disse Ruprest, sentindo que alguma confusão
poderia começar com a chegada de Alya. Temos que passar em minha
choupana antes de seguir para o Vaërn e, se demorarmos demais, logo
estaremos caminhando sob a luz das estrelas.
Patton virou-se para o velho amigo com um olhar fulminante e
reprovador, mas concordou que deveriam partir. Varlens despediu-se de Thala
com um beijo e o trio partiu rumo à expedição sugerida por Patton. Ehrin
desejou juntar-se ao grupo, mas teve medo de receber uma negativa como
resposta.
- Tome cuidado. - disse uma voz doce. Patton olhou para trás e viu que
era Alya quem falava. O coração bateu forte em seu peito, mas ele nada disse
e apenas acenou, despedindo-se com um largo sorriso.
28
O Draconiano
O
s três partiram a pé em direção à choupana de Ruprest, onde
pretendiam pernoitar antes de seguir para o norte do Vaërn. Varlens
não gostava muito de falar. Ele era do clã dos Águias Brancas, uma
das várias famílias belicosas dos bárbaros do norte, conhecida pela sua
compenetração e pelo laconismo.
A viagem seguia muda. Ruprest e Patton pareciam estar adotando o
estilo calado do bárbaro, mas ao chegarem à Ponte do Grito, Ruprest não fez
questão de segurar uma gargalhada.
- Aposto que tinhas esquecido da velha ponte de novo. - zombou
Ruprest.
- Isso não é problema. - rebateu Patton prontamente, tentando esconder
seu temor para não virar motivo de chacota na frente de um estranho - Deu de
ombros e completou:
- É apenas uma ponte.
Patton olhou para a ponte e, decidido tomou a dianteira sendo o primeiro
a começar a travessia. Porém recomendou:
- Um de cada vez. Esta ponte não é de toda segura. Talvez não agüente
tanto peso.
Ruprest arregalou os olhos pasmo com a atitude do amigo. Coçou a
cabeça não entendendo a decisão do rapaz e parou em frente à ponte.
29
O Draconiano
Patton lutava contra o medo e avançava na ponte, rezando para seus
deuses para logo vencer o traslado. A partir da metade do caminho, já não
conseguia nem olhar para frente. Só via seus pés ganhando terreno e
observava as tábuas, algumas mais podres, nas quais não ousava pisar.
- Olhe em frente, homem. Vai acabar caindo. - gritou Ruprest
preocupado.
Com algum receio, Patton olhou para frente e viu que, caminhando em
sua direção, vinha um ork de cabelos longos e embaraçados. Tinha os dentes
podres e um olhar hostil. Sua presença era incomum naquela região desde a
Grande Guerra das Raças. Ruprest tocou seu amuleto pendurado no pescoço
e segurou firme no cabo de sua espada.
- Dá meia volta e deixa-me passar. - gritou o ork, usando a língua geral
de Ënthar.
Em outra situação, Patton teria sacado sua espada e acabado com a
discussão, pois era notável seu ódio por aquela raça maligna. Mas a altura o
impediu de fazê-lo e então, ele tentou resolver a rusga diplomaticamente.
- Calma! - disse ele - Podemos passar os dois.
- Esta ponte é minha, eu sou o dono desta floresta. Eu mando em todos
ao meu redor. - gritava o ork insanamente, com uma gládio na mão,
interrompendo Patton.
- Só me faltava esta, um ork biruta e megalomaníaco. - disse Patton em
voz baixa, para si mesmo.
Apesar do medo da altura, Patton não se conteve. Sua voz possuía uma
ira aterradora.
- Dá a volta tu, filho de uma lagarta com um sapo boi. E ainda fique feliz
por eu não te jogar daqui de cima!
30
O Draconiano
O ork não se intimidou com a ordem de Patton, demonstrando uma
loucura singular em seus olhos e babando como um boi. Patton pensou em dar
a volta, mas seu orgulho o impedia.
De repente, num só golpe, o ork atingiu uma das cordas da ponte,
fazendo-a tombar para o lado, quase derrubando os dois.
- Ork estúpido! - gritou Patton desesperado, agarrando-se a uma das
tábuas para não cair.
Sem mais, nem menos, o ork soltou-se da ponte numa queda mortal e
gritando como um babuíno. O estrondo do impacto do ork com as pedras foi
abafado, mas alto o bastante para fazer o coração de Patton bater
aceleradamente. Sua face empalideceu.
Neste momento, sua raiva
ultrapassava o medo, e isso o fez pensar ainda mais na sua sorte. - ou falta
dela.
- Ork estúpido, Ork estúpido! - repetia ele com a respiração ofegante.
Ruprest não sabia se ria ou se ajudava o amigo. A segunda opção lhe
era mais indicada, mas não havia muito a fazer, portanto Ruprest deu uma
gargalhada e foi acompanhado por Varlens.
- Parem de rir e me tirem daqui. - gritou Patton.
Então, o ruivo e seu guia caminharam em direção à ponte. A
atravessaram pisando na corda que prendia as tábuas, ainda intacta. Com
cuidado seguravam nas tábuas para se equilibrarem. No meio do percurso,
resgataram o amigo apavorado e conseguiram chegar ao outro lado, sem
nenhum outro obstáculo.
- Agora sabes por que não gosto das alturas? - perguntou Patton a
Ruprest.
Ruprest riu vertiginosamente, zombando da falta de sorte do
companheiro. Mas, em seu íntimo, pensava qual tipo de feitiçaria teria trazido
um ork para as terras orientais, em tempos de harmonia em Ënthar.
31
O Draconiano
Os três seguiram viagem até a choupana de Ruprest, onde jantaram a
beira da lareira e descansaram, para seguir a jornada logo nas primeiras horas
da manhã.
Antes do amanhecer, os três estavam prontos para partir. Ruprest
desceu novamente ao porão onde guardava a cerveja. Desta vez, não foi pegar
bebida alguma, e sim, um baú onde guardava suas armas. Sentado em um
banco de madeira, ele desembalou duas espadas curtas, com lâminas de prata
crivadas de runas. Estavam em posse de sua família há séculos e já tinham
sorvido mais sangue do que ele próprio bebera vinho. Ruprest pegou também
um arco curto. Sua vista já não era mais a mesma e ele, na verdade, nunca
fora um exímio arqueiro. Mas uma arma de longo alcance poderia ser
necessária.
O trio partiu pela trilha que levava à estrada para o norte, ladeada de
vasta vegetação e onde, volta e meia, se deparavam com esquilos brancos que
saltavam de uma árvore para outra. Ao contrário do que acontecera no dia
anterior, a conversa fluía naturalmente, pois sabiam que a jornada seria longa e
que o colóquio atenuaria a distância.
- Veja este machado. - falou Varlens exibindo sua arma - Mandei fazê-lo
em Hexel, com o mais puro aço de Enthär. Ele corta mais do que a foice de
Gray5, o senhor da morte.
- Não te exibas Varlens. Já vi sabres que podiam mutilar até a alma de
um guerreiro. - disse Ruprest, segurando o cabo de uma de suas espadas.
Veja essas espadas que carrego em meu cinturão. Foram feitas em Kom-BarO, pelos anões de Driev. Estão com a minha família há longos anos e foram
presentes do Rei Kiltardan, o barba forte.
Patton ouvia a conversa passivamente. Sua espada longa não era da
melhor qualidade, porém ele acreditava que o segredo estava na habilidade do
guerreiro e não na arma que ele manipula. Embora conhecesse algumas
lâminas que, quando em combate, pareciam ter vida própria.
5
Gray era o Deus da Morte. Para os povos do Norte Gelado, era quem recebia as almas dos guerreiros
mortos em batalha.
32
O Draconiano
Após quatro horas de andanças na trilha da floresta, finalmente, os
aventureiros chegaram à estrada principal. A rota era movimentada durante
três estações. No inverno, porém poucos se aventuravam devido ao perigo das
nevadas.
Ruprest, fazendo uso de sua privilegiada audição, percebeu ao longe o
barulho de cavalos e rodas.
- Uma carroça se aproxima. - falou Ruprest
- Teu ouvido não falha meu velho. - concordou Patton.
Dito e feito. Em alguns segundos, a carroça se tornava visível. Ela
chegava por trás do trio, que parou e esperou sua passagem. Ao passo que a
carroça ia chegando a figura do condutor ia tomando formas. Sua baixa
estatura delatava que não era da raça dos homens.
- Um anão, talvez. - sugeriu.
- Não seja absurdo, bárbaro. Anões têm barba. Tanto os guerreiros,
quanto as esposas. Até as crianças anãs são barbadas. - retrucou Ruprest
zangado. Até com minha vista cansada vejo que não é um anão!
- Creio que deve ser um wobbler. - indicou Patton.
- Um wobbler com certeza. - concluiu Ruprest.
Varlens, intrigado, analisou o viajante que se aproximava e voltou-se
para os companheiros:
- Wobbler? Que diabos é um wobbler?
- Bárbaro ignorante! - balbuciou Ruprest - Um wobbler é um pequenino,
que os menos sábios teimam em chamar de anões sem barba. Mas eu posso
lhe atestar que esses pequenos não têm qualquer parentesco com os anões.
Tenho até dúvidas se é realmente uma raça, pois dizem que um wobbler pode
nascer filho de um homem e uma mulher.
33
O Draconiano
Quando a carroça parou, o grupo pode ter certeza de que o condutor era
realmente um wobbler, uma raça que, na verdade não se destacava em quase
nada. Ao contrário dos anões, que eram grandes ferreiros e guerreiros
imbatíveis, e dos elfos, cuja graça e a habilidade com os arcos encantavam as
florestas do sul.
- Bom dia, viajante. Meu nome é Lewis e trago toda sorte de produtos
para os senhores e suas mulheres. - disse o pequenino com um largo sorriso
no rosto.
- O que tens de barato, Pequenino? - perguntou Ruprest.
- Não me pergunte o que tenho de barato, meu caro amigo. Pergunte-me
o que tenho de especial. - falou o vendedor, mostrando uma gama de perfumes
e bijuterias que levava em as carroça.
Os três viajantes analisaram a mercadoria com curiosidade.
- Pago uma moeda de bronze neste teu colar de pedras, vendedor. disse Varlens, remexendo uma pequena sacola de couro amarrada à sua
cintura, onde guardava seu dinheiro.
- Sua amada ficará feliz com a escolha. É uma peça digna de uma
princesa. - falou Lewis efetuando o negócio.
O comerciante aceitou a proposta. Na verdade, aceitou com entusiasmo,
pois cada uma das jóias não custava nem metade do que os aventureiros lhe
propunham. Varlens guardou o colar que, mais tarde, daria à Thala.
O Pequenino já ia seguindo seu rumo quando Ruprest o indagou se
seria inoportuno dar a eles uma carona.
- Companhia é sempre bem vinda. Ainda mais no inverno, quando a
estrada fica infestada de feras e salteadores. - disse o vendedor, limpando o
banco da carroça, como se os convidasse a se sentarem.
Ruprest subiu na carroça seguido de Patton e de Varlens. Eles se
acomodaram e seguiram viagem com o mercador, o que poupou a eles um
34
O Draconiano
bom tempo de caminhada. Durante horas, Patton e Varlens ouviram as
histórias do pequenino, enquanto Ruprest descansava a velha carcaça.
Por três vezes a carroça parou para que o cavalo que a puxava pudesse
descansar. O animal parecia uma mistura dos cavalos Suhrd, do sul com os
Nordskog, da terra de Varlens. Já era muito velho e cansado, mas parecia
habituado com o trabalho de puxador.
- Sei de uma clareira não muito longe. - disse Lewis - Podemos passar a
noite lá sem sermos incomodados por ladrões.
- Se não me engano, essa clareira fica na trilha dos andarilhos. Não
seria prudente acamparmos lá. - disse Varlens.
O comerciante da raça dos pequenos não parecia amedrontado e
explicou:
- Aquela trilha foi abandonada por esses bandidos há anos. Desde que o
Duque Yubar, de Phalanx, organizou rondas periódicas por esta região.
Varlens acreditou em Lewis, o Pequenino, afinal o bárbaro já não ia para
essa região há algum tempo e a forte guarda de Phalanx obrigava esses
grupos de bandidos a estarem em freqüente mudança.
- Está certo. Então acamparemos na clareira. - disse Varlens.
Meia hora depois, o grupo chegava à clareira. Parecia o lugar ideal para
acamparem, pois além de sossegado, ali a água fluía de uma pequena fonte,
provavelmente construída por viajantes nos anos anteriores.
Ruprest deu uma volta ao redor da clareira para pegar alguns gravetos e
acender uma fogueira. Quando todos estavam acomodados, Lewis puxou de
sua mochila um pedaço de bolo e ofereceu aos novos amigos.
- Companheiros, provem esta guloseima. - ofereceu - Foi preparada hoje
de manhã pela melhor quituteira deste lado do continente. Chama-se Ilbordim e
é feito com aveia e mel.
35
O Draconiano
Os três estavam famintos e provaram do bolo com entusiasmo. Rina
cozinhava muito bem, mas este bolo era provavelmente o melhor que já tinham
comido nos últimos tempos.
- Realmente, Pequeno. - disse Ruprest - Este doce é uma delicia...
Meio zonzo, Ruprest não conseguiu terminar a frase. Seu corpo
começou a amolecer e seus olhos embaçarem como se ele tivesse ingerido o
pólen de uma flor-dos-duques. Varlens e Patton também sentiram o mesmo e
os três rapidamente desmaiaram.
Algum tempo se passou e quando acordaram, no outro dia, o doce
gostoso do bolo tinha dado lugar a um sabor amargo em suas bocas, como se
eles tivessem passado a madrugada inteira se embriagando.
- Parece que tomei uma bebedeira. - disse Patton ainda atordoado.
- Minhas moedas! - gritou Varlens - Onde estão minhas moedas?
- Ladrãozinho maldito! Aquele bolo devia ter alguma droga que nos fez
dormir. - disse Patton.
- Levou minhas moedas também, mas não conseguiu levar minhas
espadas. - disse Ruprest aliviado. E se tentou levá-las, deve ter uma bela
queimadura em suas mãos. O encanto nelas contido, nesse caso, age melhor
do que um bom cão de guarda.
O Pequeno tinha partido há horas elevado grande parte do equipamento
dos companheiros, sobretudo moedas e armas. Varlens era o mais irritado.
Além de suas moedas, o pequenino roubara também seu machado e o colar
que ele comprara para Thala. A idéia de ter sido ludibriado pelo ladino de
menos de um curvo de altura o deixava intimamente inconformado.
- Temos que tomar cuidado em dobro agora. O único armado aqui é
Ruprest, que ainda tem suas duas espadas. De resto, não temos mais moedas,
comida, nem armas. Só temos roupas e agasalhos - disse Patton gravemente,
certificando-se que sua capa ainda estava na mochila.
36
O Draconiano
- Bom, continuemos nossa jornada. Não há mais nada a fazer. - disse
Ruprest. O mais prudente seria voltarmos, mas sei que convencer-te será
impossível, Patton. Só me pergunto como, depois de uma vida inteira de
viagens e batalhas, nós fomos ludibriados por um traste destes.
Seguindo viagem, Varlens não conseguia tirar de sua mente e também
não suportava imaginar as risadas que o pequeno larápio deveria estar dando
por ter feito o bárbaro de tolo.
Quase no final da tarde, os três chegaram a um vilarejo, o que seria um
alívio, caso eles ainda tivessem as moedas.
- Parece que temos um tonel de vinho e não temos a caneca. - disse
Patton, fazendo alusão à situação.
- Então vamos beber direto no tonel. - disse Ruprest sorrindo.
O bárbaro não entendeu e perguntou:
- Como assim?
- Faça tudo que nós fizermos Varlens. - disse Patton - Não é a primeira
vez que eu e este velho nos encontramos nesta situação.
O vilarejo era diminuto. Algumas casas rústicas e uma taberna chamada
de Sol de Enthär, que parecia reunir todos os homens da vila.
Com ar arrogante, Patton entrou numa taberna seguido por Ruprest e
Varlens, igualmente “posudos”. No balcão, estava um baixinho com cara de
poucos amigos, vasta barba e bigode negro, que foi logo perguntando:
- Bom dia, viajantes. O que desejam comer ou beber em minha humilde
taverna?
- Traga-nos uma rodada de seu melhor vinho e mande assar um javali. ordenou Patton sem titubear.
Varlens tremeu quando ouviu Patton fazer o pedido e logo olhou ao
redor onde os fregueses os analisavam como se estivessem vendo orks. Os
37
O Draconiano
companheiros sentaram-se a uma mesa e foram prontamente atendidos pelo
taberneiro.
- Este é o meu melhor vinho. - disse o taberneiro
Ruprest deu um gole na caneca do vinho, degustou-o com ar de
aprovação e disse ao homem:
- Excelente meu caro. Se o javali estiver tão saboroso quanto o vinho,
pagaremos em dobro.
O taberneiro abriu um largo sorriso, mas, mais uma vez o bárbaro
Varlens engoliu em seco e suou frio, pois não sabia de onde os dois iriam tirar
dinheiro para pagar a refeição e as bebidas. Depois de três rodadas de vinho,
finalmente chegou o javali. O comerciante esperava ao lado da mesa o
comentário de Patton.
- Serás bem recompensado pelo teu empenho, taberneiro. - disse
Patton.
Um dia inteiro de caminhada havia deixado os companheiros viajantes
com fome e o javali, que estava realmente suculento não durou muito tempo na
mesa.
Enquanto comiam, Ruprest encarava um indivíduo sisudo, sem nenhum
cabelo na cabeça, mas com um vasto bigode negro que lhe cobria os lábios.
- Terceira mesa, do outro lado. - disse Ruprest a Patton, sem tirar os
olhos do careca.
Assim que ouviu o amigo, Patton se levantou, dirigiu-se ao balcão, pediu
educadamente mais uma rodada de vinho ao taberneiro e mandou que ele
somasse a conta, pois ele iria embora com seus companheiros.
- Pois não, meu senhor. Pode se sentar que eu levarei a conta a tua
mesa. - respondeu o taberneiro, feliz com o lucro que receberia dos viajantes.
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O Draconiano
Patton seguiu as instruções do comerciante, partindo em direção à
mesa, porém ao passar pela mesa do sujeito careca de rosto carrancudo, a
qual Ruprest fitava, ele dissimuladamente soltou um berro:
- Por que me olhas, cão leproso? Achas que sou teu pai? Não perca
tempo tentando descobrir, porque isto, nem tua mãe sabe!
O sujeito estava confuso com a atitude do forasteiro, mas irritado com a
ousadia, levantou-se e respondeu com o mesmo tom de voz:
- Deves ser louco ou muito burro para levantar a voz para Lorin, o
robusto!
Por alguns segundos, Patton pensou que o truque talvez não fosse a
melhor idéia, já que ao levantar, o homem careca parecia um gigante dos mais
fortes.
O taberneiro pulou por cima do balcão empunhando uma maça. Tentou
apaziguar a discussão e esfriar os ânimos dos fregueses:
- Vamos com calma, senhores. Nada de brigas no meu estabelecimento.
Este é um lugar de diversão e não quero confusão. Do contrário terei que tomar
medidas extremas!
- Vais desejar não ter acordado hoje, verme sarnento. - gritou Patton,
golpeando o rosto do careca.
Assim que a confusão começou, Ruprest, que assistia a tudo
atentamente, puxou uma cadeira e acertou a cabeça de outro freguês, fazendo
com que a confusão se generalizasse rapidamente pelo salão da taberna. Logo
se encontravam pouco menos que duas dezenas de homens brigando sem um
motivo plausível.
Varlens notou que o taberneiro estava pronto para golpear Patton com
sua maça e o agarrou pelos pés.
39
O Draconiano
- Solte-me seu bárbaro grotesco. - gritava o homem, enquanto Varlens o
girava freneticamente, acertando a outros adversários com a cabeça do
pequeno taberneiro, como se ele fosse um verdadeiro mangual.
Logo ninguém mais sabia em quem estava batendo, velhas rusgas
vieram à tona e aqueles que um dia tiveram algum desentendimento
aproveitaram para se vingar. Ruprest puxou Varlens pelo braço e disse em
meio à confusão:
- Vamos bárbaro. Já comemos e já bebemos, agora é a hora de
fugirmos.
- E Patton, onde está? Não podemos deixá-lo aqui. - falou Varlens.
- Se eu bem conheço aquele garoto, a esta hora ele deve estar bem
longe daqui.
Saindo da taberna, os dois correram por alguns ceres em direção à mata
que rodeava a vila, onde Patton os encontrou.
- Continuem correndo para dentro da mata. - disse Patton. - É mais
prudente, pois logo eles vão perceber que foram ludibriados e vão procurar por
nós pelos arredores da vila.
Os três correram sem olhar para trás, se embrenharam mata adentro e
após alguns minutos, o estômago de Ruprest estava tão embrulhado o quanto
podia ficar.
- Chega! - disse o velho. Eu preciso descansar, pois este javali parece
estar vivo dentro da minha barriga e logo vou botá-lo para fora.
- Vamos acampar aqui. Estes aldeões não vão se aventurar no meio da
mata para nos procurar por causa de um javali. - sugeriu Varlens.
A noite passou sem que nenhum aldeão os incomodasse. Ruprest,
entretanto, não conseguiu dormir, pois estava preocupado.
40
O Draconiano
Pela manhã, Patton e Varlens acordaram e viram que Ruprest já estava
de pé há algum tempo e, impaciente, esperava por eles.
- Fostes picado por uma cobra, Ruprest? - indagou Patton, estranhando
o breve despertar do companheiro.
- Se me demoro a despertar, tu reclamas. Se desperto com a aurora, tu
reclamas também. Que queres de mim, garoto chato? - indagou o velho.
Os três puseram-se a caminhar e em alguns minutos já estavam fora da
mata, de volta à sinuosa estrada que os levaria para Phalanx.
- Falta pouca coisa para chegarmos ao grande lago. - afirmou o bárbaro
- Quando chegarmos à cidade portuária, providenciarei montaria para
prosseguirmos rumo ao norte.
Curioso, Patton perguntou:
- Tu tens muitos amigos em Phalanx, Varlens?
- Conheço as pessoas certas que poderão nos auxiliar, apesar de há
muito não vê-los. Se os deuses nos ajudarem, conseguiremos fazer um acordo
e poderemos seguir a nossa jornada.
Embora fosse a estação fria, o sol estava forte, o que deixava os
viajantes mais dispostos a andar e fazendo com que dispensassem algumas
peças de suas indumentárias.
A estrada ia ficando um pouco mais estreita e em declive. Descia em
curvas, ladeada por um precipício de um lado e pela vegetação do outro. Perto
do meio do dia, Varlens apontou em direção ao precipício sem dizer nada.
Patton e Ruprest olharam para onde o bárbaro indicava e viram os muros que
cercavam a imensa cidade, à beira do lago Vaërn.
41
O Draconiano
P
halanx era uma cidade realmente esplendorosa, cercada por uma
muralha colossal de 10 curvos de altura e vigiada por 10 torres
incrustadas nos muros. Em cada uma delas tremulava a bandeira
branca, com o urso verde estampado.
- Bom dia, estrangeiros. - disse o soldado, vestindo uma lóriga prateada
coberta por uma túnica branca e verde, ele guardava a entrada da imensa
cidade.
- Bom dia. - respondeu um deles.
42
O Draconiano
- As regras da cidade são bem claras, - continuou o guarda - nada de
brigas, nada de roubos e nada de confusões. Caso não obedeçam as leis, a
guarda da cidade providenciará as punições que, aqui em Phalanx, são muito
severas.
- Nós estamos de passagem, senhor. - disse Ruprest - Viemos fazer
negócios e partiremos em seguida. - completou.
- Está bem, podem entrar. Mas, mesmo assim, evitem confusões. E se
mudarem de idéia e quiserem passar alguns dias, devem se cadastrar na
administração geral.
A cidade era muito grande, muito limpa e muito bem organizada. Seus
habitantes pareciam ser sérios e, em sua maioria, andavam para um lado e
para o outro sem parar, feito formigas atrás de melado. Poucos eram aqueles
que passeavam. Todos indicavam ter local e hora para chegar.
- Vamos para o mercado livre. Espero encontrar um amigo lá. - disse
Varlens.
O bárbaro foi guiando Patton e Ruprest em direção ao mercado. Pouco a
pouco, a cidade foi mudando de aspecto. O trio caminhava pela rua principal,
onde vários prédios oficiais ficavam. A via levava ao Palácio Vaërn, a suntuosa
sede do ducado e lar de Lordee Yubar, primo em primeiro grau do Rei Endor
de Swannpala. Ladeando o caminho, altas árvores trazidas do litoral faziam
uma sombra agradável. No meio da via passava um canal não muito estreito,
que desembocava no grande lago.
Quando os estrangeiros estavam se aproximando do palácio, Varlens
mandou que eles desviassem o caminho à esquerda e chamou a atenção para
que os companheiros olhassem para o farol do Vaërn, uma magnífica
construção de cem curvos de altura, famosa em toda Enthär.
- É realmente uma beleza! - admirou-se Patton.
O mercado se estendia por toda a via portuária e naquele lugar vendiase realmente de tudo. Quanto mais eles se aproximavam do porto, mais se
43
O Draconiano
viam estrangeiros e desorganização. Ferreiros de Hexel, herbanários de Pala e
mercadores de além mar, que traziam especiarias, temperos e animais
exóticos impregnando o ambiente com toda sorte de odores.
Varlens estava um bocado confuso, pois o mercado aumentara de
tamanho e ele não conseguia localizar seus contatos. Com tanta gente
chegando e partindo, era possível que seus amigos tivessem deixado a cidade.
Quando estava a ponto de perder as esperanças, sentiu um leve tapa em sua
nuca.
- Quem ousa estapear a cabeça de Varlens, dos Águias Brancas? gritou ele, olhando para um grupo de Arnitas6 que passava por ali.
- É só usar esta tua cabeça de pedra, bárbaro. - respondeu uma voz que
vinha de seu lado - Eu sou o único que pode lhe dar tapas impunemente. completou.
Varlens virou-se e viu um negro de sorriso largo e dentes mais branco
do que o leite de uma cabrita das montanhas do norte.
- Seu urubu sem asas. Quase criastes uma confusão. - disse Varlens
abraçando o amigo cor de ébano, vestido em uma túnica de seda branca.
- Que péssimos ventos o trazem aqui, grande Varlens? - disse o negro.
- Trabalho. - respondeu Varlens - Esses são meus contratantes. completou, apresentando Patton e Ruprest ao homem.
Os dois cumprimentaram o rapaz que fez uma longa reverência e se
anunciou:
- Eu sou Segundo, filho de Evertad e um grande amigo de Varlens.
Venham, vamos até a tenda de meu pai. Lá poderemos beber algo que aqueça
nossos ossos.
6
Arnitas é o povo do sul, que habita a região costeira do continente Austral.
44
O Draconiano
Pelo meio do mercado, os quatro andaram rumo à tenda do negro.
Evertad era um homem sisudo que gostava de botar medo nos amigos do filho.
Era uma boa pessoa, mas um negociante astuto. Ao ver o filho entrar em sua
tenda, falou em tom sério:
- Quem são estes vagabundos que trazes para minha tenda, filho? Já
lhe disse que não trabalhamos mais com escravos. Ainda mais com trastes
como estes!
- Não te lembras de mim, negro? - disse Varlens, sorrindo - Deves estar
caducando, se achas que Varlens é um escravo!
- Então o bárbaro resolveu dar as caras novamente - disse Evertad, sem
sorrir - Filho, dê água e rosca para eles. Mas não muito. E vocês? – continuou,
olhando para os viajantes - Sentem-se.
Segundo fez o que seu pai lhe ordenara e os visitantes sentaram-se ao
chão e serviram-se. Logo após, ele também se sentou. Bateu palmas e dois
negros imensos começaram a tocar um instrumento de sopro que, ao mesmo
tempo em que produzia um som melodioso, exalava um odor inebriante
provindo de cascas de maçã seca e canela. Evertad sentou-se em um monte
de almofadas de veludo negro e passou algumas horas conversando com
Varlens, enquanto Ruprest e Patton se divertiam com a desenvoltura de uma
dançarina de cabelos vermelhos e pele muito clara que dançava semi-nua ao
som da música executada pela dupla de gigantes de ébano, dentro da tenda.
- Queres uma desta, rapaz? - perguntou Evertad a Patton - Custam
setenta e cinco moedas de ouro. - completou.
- Então esta potranca vale mais que um cavalo? - perguntou Ruprest,
interessado nas curvas da dançarina.
- Tenha modos, velho. - falou Evertad - Esta potranca é uma de minhas
esposas.
- Sinto muito por meu companheiro. - desculpou-se Patton ao notar que
Ruprest estava sem fala e com a face rosada - Garanto que este velho só quis
45
O Draconiano
elogiar a formosura de sua esposa, sem pensar em ofendê-la com seu
comentário.
Varlens resolveu contar mais histórias para Evertad a fim de contornar o
mal entendido, o que fez o negro ficar mais calmo e até esquecer o incidente.
Em meio a anedotas e contos, Varlens explicou ao amigo a situação e
fez seu pedido:
- Evertad, temos de seguir nossa viagem e precisamos de cavalos.
- Cavalos! - exclamou o comerciante - Tenho dezenas de cavalos!
Cavalos de guerra, cavalos de briga, cavalos de corrida. Tenho cavalos de
todos os tipos e de todos os preços.
- Bem, como eu ia dizendo meu caro amigo, nós estávamos viajando
quando fomos assaltados. Precisamos seguir viagem e não temos dinheiro.
Mas se me deres um voto de confiança, poderemos pagar-lhe assim que
voltarmos. - disse o bárbaro.
Evertad fechou a cara, olhou para os olhos de Varlens com um ar
contrariado e disse:
- Tens muita coragem de entrar na tenda de um negociante como eu e
pedir-lhe que entregue mercadorias preciosas sem um justo pagamento.
- Evertad, não entrei na tenda de um comerciante. Entrei na casa de um
amigo e dou minha palavra de que o pagamento estará em suas mãos, assim
que nos for possível. - disse Varlens.
- E quando será possível? - perguntou desconfiado.
- Temos negócios a serem efetuados e tão logo recebermos a parte que
nos é reservada, traremos o seu pagamento!
- Está bem, levem três cavalos e cantis para o caso de se perderem e
ficarem sem água. Com Varlens como guia isso não seria nenhuma surpresa.
46
O Draconiano
Levem o que quiserem e eu estarei esperando o pagamento. Caso contrário,
você conhece as regras e sabe que elas vão além da amizade.
Segundo levou-os até uma outra tenda, onde se encontravam alguns
cavalos. Varlens analisou e escolheu três deles.
- Estes aqui estão descansados? - perguntou ele.
- Todos eles estão. Estão bem alimentados também. - respondeu
Segundo, acariciando a crina de um corcel branco.
Precisamos de armas também. - lembrou Patton.
Segundo dirigiu-se a um baú e pediu a eles que se aproximassem e
escolhessem que armas gostariam de levar. - apesar de serem poucas as
opções.
Havia pouco menos de dez adagas e cinco cimitarras dentro do móvel.
- Teu pai só tem destas espadas do sul? - indagou Patton.
- Estes sabres são muito bons. Experimente. - incentivou Segundo.
Patton, desanimado revirou o baú em busca da arma mais pesada.
Achou uma de lâmina larga, que se escondia por baixo das adagas, que era
uma arma de peso mais parecido com as que ele costumava usar.
- Vou ficar com essa aqui. - disse ele levantando o sabre - Prefiro
espadas mais pesadas.
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O Draconiano
Varlens pegou uma das cimitarras e se despediu de Segundo. Voltou à
outra tenda, agradeceu a Evertad pela confiança depositada e reiterou sua
promessa de voltar com o pagamento.
- Em menos de uma semana estaremos de volta. - previu ele.
Ruprest se despediu e agradeceu, mas antes de abandonar a tenda,
perguntou a Evertad:
- Tu sabes de algo sobre orks andando pelas terras do leste, Evertad?
Há dias aconteceu um incidente estranho que me deixou deveras preocupado.
- Não, ruivo, desde a Grande Guerra das Raças que não ouço qualquer
história desses imundos. Foram banidos daqui e tenho certeza de que nunca
mais voltarão.
Ruprest deu-se por satisfeito com a resposta do negro, mas em seu
íntimo ainda tinha a alma perturbada e o coração amargo com a presença
indesejada do ork.
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O Draconiano
Os três foram embora montados nos cavalos adhir, do sul, cedidos por
Evertad. Atravessaram a cidade e saíram pelo portão principal, seguindo a
estrada em direção ao norte.
Os cavalos partiram pela estrada levando os aventureiros até o
anoitecer, quando chegaram à trilha do bosque. Patton pegou o pergaminho
que guardava em sua bolsa e, pensando consigo mesmo, deu graça aos
deuses pelo fato de o Pequenino não ter se interessado por nada além de sua
arma e suas moedas.
O lugar era propício para um acampamento e, como sempre, Ruprest
pegara alguns gravetos para acender uma fogueira. Talvez por ser o mais
velho e sentir mais frio, todas as vezes que ele parava para acampar, a cena
se repetia.
- Parece que meu amigo está ficando velho. - disse Patton - Só pensas
em comer e se aquecer.
- Não é verdade. - respondeu Ruprest calmamente - Penso em mulheres
também. Só que no meio de um bosque é meio difícil se encontrar uma. A não
ser que seja uma bruxa e, neste caso, minhas lâminas iriam beber mais um
pouco de sangue maldito.
Varlens e Patton riram com a resposta do companheiro e se prepararam
para passar mais uma noite a céu aberto. O inverno ainda não tinha se
mostrado rigoroso de fato, mas, como sempre, a noite ao relento era gelada.
- Muito bem, a fogueira já esta acesa e estamos prontos para enfrentar o
frio. - disse Ruprest.
- Quem ficará de guarda? Estas terras são bastante inóspitas. - lembrou
o bárbaro.
- Eu ficarei. - falou Patton - No meio da noite eu acordo Varlens e ele fica
em meu lugar.
49
O Draconiano
Ruprest e Varlens dormiram enquanto Patton montava guarda e sentia a
leve brisa de inverno acariciar seu rosto e anunciar que o frio estava chegando.
Ainda que ele cochilasse eventualmente, o trio não chegava a ficar
desprotegido e, como combinado, no meio da noite o bárbaro do norte foi
acordado e seguiu seu turno até as primeiras horas da manhã.
50
O Draconiano
O
dia estava nascendo e os três viajantes já se preparavam para
partir. Segundo Varlens, as ruínas que Patton procurava estavam a
seis horas de cavalgada e, sendo assim, eles chegariam lá antes do
meio dia, se nada ocorresse durante o percurso.
O trio partiu cedo e atravessou o estreito caminho com ajuda do tempo,
que era agradável. O frio era ameno e o sol brilhava forte o bastante para
agraciar a pele dos viajantes com algum calor enquanto viajavam.
- Já estamos quase chegando. - disse Varlens depois de algumas
horas de percurso - Logo o bosque dará lugar a um campo de vegetação
rasteira, onde estão as ruínas que procuram.
Como afirmou o bárbaro, após alguns minutos, o bosque tornou-se
campo e no sopé de uma pequena colina se podia ver as ruínas indicadas no
pergaminho de Patton.
Ao que parecia, as ruínas deveriam ter sido em outra ocasião um
pequeno entreposto ou um ponto de guarda. Duas torres de cerca de quatro
curvos de altura permaneciam intactas, porém os muros se resumiam a uns
poucos pedaços de pedra.
- É aqui que tu esperas encontrar um tesouro, Patton? - questionou
Ruprest ao amigo.
- Não te esqueças que se voltarmos de mãos abanando, teremos de nos
entender com Evertad. E de antemão posso lhe avisar que isso não é nada
bom. - lembrou Varlens.
51
O Draconiano
Patton olhou paras as ruínas com um ar desapontado. Ele sabia que
não encontraria grande fortuna, mas não esperava encontrar um lugar tão
desolado e tão sem perspectivas.
- Isto aqui mais parece a toca de um Dhur Kazur. - zombou Ruprest.
Mais uma vez, Patton observou o local. Ele desceu de seu cavalo e
sentou-se em uma pedra. Em sua cabeça, só um pensamento se passava:
Onde estaria escondido um tesouro em meio àquele desmantelo?
- Desçam dos cavalos e procurem alguma passagem ou entrada.
Montados é que não acharão nada. - ordenou, levantando-se da pedra.
A ordem foi prontamente obedecida. Varlens e Ruprest desmontaram e
procuraram por algo diferente nas ruínas. Varlens buscava algo que indicasse
alguma passagem, porém, olhando para todos os lados o bárbaro só via mato
e pedras.
Mais acostumados a este tipo de procura, Patton e Ruprest entraram,
cada um em uma torre, onde poderiam observar tudo de um ponto mais alto.
Com estremo cuidado, Ruprest ganhou o topo da torre, subindo alguns lances
de uma escada estreita em forma de caracol. Ao chegar ao topo, o velho se
deparou com um esqueleto que, como se descansasse de uma caminhada, se
sentava encostado à parede da torre, trajado com o uniforme verde e branco
da guarda de Phalanx.
- Pareces cansado, meu caro. Teu rosto está abatido. - disse Ruprest
em voz baixa, zombando do esqueleto.
Do alto da torre, Ruprest podia ver toda a área da ruína e, recolhendo o
crânio do esqueleto, chamou Varlens, que visto daquela altura, parecia um
bêbado, perambulando sem direção.
- Encontrei teu pai, bárbaro. - gritou Ruprest exibindo o crânio do
esqueleto, querendo descontrair a busca.
52
O Draconiano
- Não, velho. Meu pai era um pouco mais magro. - retrucou Varlens com
uma gargalhada - Esta deve ser a tua primeira namorada. - completou.
Na outra torre, Patton olhava os dois companheiros, que pareciam
crianças discutindo em meio a risadas. Na torre onde procurava não foi
encontrado nada de anormal e decepcionado, sentou-se na pequena murada
do topo.
- Perdeste o medo das alturas, Patton? - perguntou Ruprest ao ver que o
companheiro se sentava à beira da construção.
- Esta torre não é alta o bastante para me deixar receoso. - respondeu
ele, balançando as pernas - Ter que encontrar Evertad de mãos vazias é mais
preocupante!
- Cuidado para um ork louco não te fazer cair. - gritou Varlens,
lembrando do episódio da ponte.
Subitamente Patton deu uma grande gargalhada e berrou:
- Não se mova Varlens, acho que encontrei o que viemos procurar!
Descendo tão rápido quanto suas pernas o permitiam, Patton chegou a
Varlens antes que ele entendesse o recado.
- Varlens, há uma porta sob esta pedra em que pisa.
Ruprest, do alto da torre, abriu um sorriso e fez um sinal de positivo para
Patton, que estava eufórico. Ele desceu para junto dos companheiros e
analisou a porta camuflada.
- Como iremos levantar esta pedra? Deve pesar mais de um aquito7. comentou Ruprest.
- Se não me engano, é só empurrarmos e ela deslizará em trilho, deve
haver algum mecanismo. - falou Patton, tentando mover a pedra.
7
Um aquito equivale a 450 kg.
53
O Draconiano
Vendo o esforço do aventureiro, Varlens se dispôs a ajudá-lo e ambos
moveram a pesada pedra que tapava a entrada de um salão oval.
Os três desceram alguns lances de escada e analisaram o salão em que
estavam entrando. A câmara possuía três portas: a que eles tinham
atravessado, uma na lateral e outra, logo à frente.
A escuridão impedia que os viajantes penetrassem em qualquer uma
das passagens com segurança. Assim, Ruprest voltou às ruínas e improvisou
uma tocha, enrolando um pano que tirara de sua bolsa num pedaço de madeira
e acendendo-a com duas pedras isqueiro que sempre levava consigo.
A tocha iluminou bem a área e o trio pôde notar que incrustados às
paredes estavam algumas tochas feitas de algum metal vermelho, bem
parecido com cobre. Então resolveram tentar acender as lanternas, pois a
tocha de Ruprest logo se apagaria.
- Varlens, veja se tem algum óleo naquela lanterna. - pediu Ruprest.
Varlens olhou, fez que sim com a cabeça e Ruprest, tocando sua tocha à
da parede iluminou ainda mais o salão.
A surpresa foi geral quando, uma a uma, as tochas foram se acendendo,
sem que o ruivo as tocasse.
- Magia! - exclamou Varlens.
- Magia não, bruxaria. Onde há bruxaria, há bruxas. - constatou Ruprest,
lançando a tocha no chão e desembainhando suas espadas de prata.
Patton deu um sorriso e disse:
- Vocês dois seguem pela porta da frente e eu sigo por esta lateral. Se
acharem algo de interessante, gritem bem alto que eu os alcançarei.
Após as instruções, Patton se foi seguindo seu caminho por um
corredor também iluminado por tochas. O corredor era decorado por algumas
54
O Draconiano
figuras abstratas esculpidas nas paredes, que o faziam acreditar na
possibilidade de Ruprest estar com a razão.
Ruprest e Varlens foram pela porta indicada por Patton. Seguindo o
outro corredor, eles chegaram a uma nova câmara, essa enfeitada com
adornos nas paredes e com uma estátua do deus Torak8, feita de mármore
negro ao centro.
A câmara tinha cinco curvos de largura por três de comprimento e
possuía dois vitrais que refletiam as luzes das tochas. À frente, uma porta
trancada não deixava a dupla continuar a exploração.
- A porta não abre, mas não é muito resistente. Vamos arrombá-la. sugeriu Varlens.
- Vamos usar a estátua de Torak como aríete. - disse Ruprest.
Os dois pegaram a estátua de pedra, que não media mais que um curvo
e a conduziram bruscamente contra a porta, que não demorou a tombar.
- Será que isto foi uma heresia? - perguntou Varlens.
- Não sei, mas a porta está aberta. Vamos entrar logo. - respondeu
Ruprest apressando-se.
Ultrapassando a porta caída, Ruprest e Varlens encontraram uma
escada de degraus largos. Ruprest sentiu seus ossos gelarem e teve um mau
pressentimento. Todas as tochas que eles encontravam no caminho pareciam
estar misticamente acesas e isso o deixava estarrecido.
Varlens desceu alguns degraus e chamou o companheiro que estava
apreensivo:
- Vamos descer logo. Prefiro enfrentar suas bruxas à ira de Evertad. Se
não encontrarmos nada, não teremos como pagá-lo e isso vai deixá-lo
extremamente furioso.
8
Torak era um deus pagão, abandonado pela raça dos homens antes da guerra das raças.
55
O Draconiano
Cerca de cinco minutos se passaram até que eles chegassem ao final da
escadaria e encontrassem um gigantesco jardim, quase trinta curvos a baixo de
um mirante.
- Pela foice de Gray! - exclamou Varlens, espantado com a beleza e a
magnitude do jardim.
- Se Patton estivesse aqui, ficaria paralisado de medo por causa da
altura. - disse Ruprest.
Os dois ficaram alguns segundos parados observando o jardim que,
apesar de aparentemente desabitado, parecia bem tratado.
- Como um jardim pode florescer num lugar subterrâneo onde a luz do
sol não consegue chegar? - questionou o bárbaro.
- Feitiçaria, meu caro. - disse o velho soturnamente.
- Olhe! Um elevador, como das grandes torres élficas. - disse Varlens,
apontando para uma plataforma presas a cordas envoltas em roldanas.
- E tu já estiveste nas terras élficas, Varlens? - perguntou Ruprest.
- Não, mas Stool me falou de lá. Ele disse que os elfos usam elevadores
como este nas cidades das árvores!
- Não sejas tolo, bárbaro. Os elfos não possuem esta engenharia e Stool
nunca saiu de Gowern. - repreendeu Ruprest com um olhar severo.
- Vamos descer logo. - disse Varlens.
- Sabes mexer nisto? - perguntou Ruprest.
- Sei, lógico! É só puxar a corda e a plataforma descerá. Stool me
ensinou o mecanismo. - insistiu o homem do norte.
56
O Draconiano
Apesar de temeroso, Ruprest resolveu confiar no bárbaro. Assim ambos
desceram e chegaram ao jardim, que era cortado por vielas feitas de pedra e
cercado por muretas baixas.
No alto de uma parede, podia-se ver uma queda d’água que saía de
dentro de uma grade cinqüenta curvos acima deles e caía num pequeno lago
artificial, repleto de peixes graúdos de várias cores. O lago se dividia em
canais, que ladeavam as paredes do jardim e irrigavam seus canteiros.
- Vou dar um mergulho. - disse Varlens, tirando suas roupas.
- Está, maluco bárbaro? Está frio demais para nadar. - criticou Ruprest,
sentando num dos inúmeros bancos de madeira espalhados no jardim.
Varlens pulou na água e banhou-se tranqüilamente, esquecendo por
alguns momentos o porquê deles estarem ali e como aquele jardim era
sobrenatural, crescendo sem a luz do dia e sem que aparentemente ninguém
cuidasse dele.
Quando Varlens já saía da água, algo estranho aconteceu: a queda
d'água cessou repentinamente.
- O que, diabos, aconteceu? - perguntou o bárbaro.
No alto, por entre as grades de onde fluía a água, um vulto apareceu,
intrigando Varlens, o observava atentamente, tentando reconhecer a figura que
se esgueirava a mais de cinqüenta curvos acima.
Ruprest, que não enxergava muito bem perguntou curioso:
- Tem alguém na grade? Será uma bruxa?
Varlens não deu atenção ao velho ruivo e continuou a olhar o vulto, que
logo desapareceu.
- Vamos bárbaro, se vista logo e vamos dar uma olhada neste jardim,
pelo visto não estamos sozinhos. - ordenou Ruprest.
57
O Draconiano
Os dois seguiram pelos caminhos do jardim, passando por árvores
repletas dos mais exóticos frutos, os quais eles não ousavam provar, e
cruzando o caminho de pequenos animais, como os encontrados nos bosques
na superfície. Depois de andar por alguns minutos, os dois acharam uma
espécie de coreto arruinado, cheio de pétalas de rosas que exalavam um odor
muito forte.
- Acho que estamos no paraíso dos deuses. - disse Varlens, sentindo a
fragrância que pairava pelo ar.
Ruprest não teve tempo de manifestar sua opinião, pois, ao abrir a boca,
foi interrompido por um grito longo seguido de um estrondo, que ele logo
imaginou ser de algo caindo na água.
Automaticamente, os dois deixaram aquele coreto florido, correndo em
direção ao pequeno lago com as armas em punho. Lá, as ondulações
mostravam que algo realmente havia caído e ainda estava no fundo.
- O que, ou quem pode ter caído? - indagou Varlens.
- Tu que tens a vista mais apurada pode me dizer. A grade lá em cima
está quebrada ou é impressão minha? - perguntou Ruprest.
- Tens razão, velho. Alguém caiu lá de cima, ou se jogou. - atestou o
bárbaro se preparando para o pior.
Algumas bolhas de ar começaram a se formar na superfície do lago e
uma sombra no fundo começava a emergir.
- Prepare-se para atacar. - gritou Ruprest.
Varlens preparou um golpe de seu sabre, mas desistiu ao reconhecer a
figura que chegava à tona.
- Ora, se não é Patton, o homem-peixe. - brincou Ruprest, ajudando o
amigo a sair da água.
58
O Draconiano
- Talvez seja o homem-pássaro, levando em conta a altura de onde ele
caiu. - corrigiu Varlens.
- Muito engraçados vocês dois! Viram o que acontece quando eu me
aventuro nas alturas? Depois me taxam de medroso ou coisa que o valha. reclamou Patton.
- Então eras tu que me olhavas lá de cima. - deduziu Varlens,
lembrando-se do vulto que avistara momentos antes do incidente.
- Sim. Eu puxei uma alavanca e a água parou de correr. Depois fui ver
para onde ia a água e me deparei com aquela grade, que por azar não
agüentou meu peso e nem minha curiosidade.
- O que mais encontraste Patton? - perguntou Ruprest.
- Nada de especial ou valioso. Começo a ficar temeroso e mesmo
decepcionado com estas ruínas.
- Mas veja o que nós encontramos - falou o bárbaro entusiasmado.
Patton seguiu os dois companheiros, maravilhado com a beleza do
jardim. Embora não tivessem tido chance de investigar o interior do coreto da
primeira vez, os aventureiros reviraram o local tão logo chegaram ali
novamente.
- Encontrei algo, Patton. Apesar de a minha vista estar cada vez mais
cansada, continuo astuto. - gabou-se Ruprest ao encontrar um alçapão.
- A mesma raposa de sempre, Ruprest. - elogiou Patton.
- Pare com esses lisonjeios e me ajude a abrir este alçapão, garoto.
O caçador-de-bruxas e seu amigo abriram a passagem que tinham
descoberto. A abertura possuía uma escada feita de cordas, que levava a um
nível inferior.
No final dela, os três se depararam com um corredor mal iluminado, que
possuía um fedor putrefiz e que era ladeado por celas. O odor das flores do
59
O Draconiano
coreto não ousava penetrar naquele recinto tomado por uma atmosfera fétida e
sombria. As celas eram habitadas por esqueletos e corpos em decomposição,
que trajavam armaduras das mais diversas origens e que eram a fonte do mau
cheiro daquela câmara.
Uma das celas, particularmente, parecia mais cheia do que as outras.
Um amontoado de cadáveres lotava o pequeno cubículo, deixando no ar um
fedor quase insuportável.
- Todos mortos. - afirmou Patton taxativo.
Um silêncio se manteve por alguns momentos até que um gemido, saído
da pilha de corpos quebrou de forma sinistra a quietude.
- Salvem-me! Tirem-me daqui. Pelos deuses, eu estou morrendo.
Ruprest puxou suas espadas e chutou a porta da cela, invadindo-a
agilmente e furando vários corpos.
- Morra criatura do demônio, morra. - gritava ele enfurecido.
Patton e Varlens, com dificuldade, acabaram por conter o velho que
gesticulava freneticamente.
- Tenha calma Ruprest, talvez seja apenas algum soldado vivo entre
esta pilha de mortos. - disse Patton.
- Balela! Um enviado do inferno é que esta aí! Deixem-me matá-lo e eu
provo a vocês. - gritou Ruprest.
Ruprest, apesar de não abandonar sua teoria, foi acalmado por Patton e
deixou que seus companheiros agissem. Os dois entraram na cela e
removeram os corpos até acharem o sobrevivente.
- Graças aos céus vocês me acharam. - murmurou o prisioneiro
moribundo.
O rapaz estava bastante ferido e com o aspecto horrível. Patton e
Varlens o ajudaram a levantar sob os olhos atentos do caçador-de-bruxas, que
60
O Draconiano
o olhando de cima a baixo, notou um machucado em seu abdome, que
provavelmente era resultado de uma mordida de uma fera. Pela aparência, o
rapaz tinha passado alguns dias ali, jogado em meio aos corpos de outros
guerreiros. Seus longos cabelos negros lhe cobriam as orelhas e boa parte do
rosto.
- Por favor, levem-me até a fonte. - pediu ele.
Patton não hesitou e colocando-o sobre seus ombros, seguiu o caminho
que levava ao jardim.
- Sim, a fonte. Jogue-me dentro da fonte. - pediu ele novamente ao
chegar às margens do pequeno lago.
- Jogar dentro do lago? - indagou Patton - Você só pode estar delirando.
- Não. Eu volto a pedir, jogue-me. Eu lhe suplico.
Mesmo não estando certo do que o rapaz pretendia, Patton jogou-o na
água. O corpo logo imergiu, ficando quase um minuto submerso até que as
bolhas de ar se formaram na superfície e o rapaz reapareceu.
- Veja Patton. Ele é um elfo, vamos afogá-lo. - gritou Ruprest, notando
as orelhas pontiagudas do rapaz.
O rapaz logo ficou lépido e se afastou do velho ruivo. Como por milagre,
ele havia se recuperado dos ferimentos.
- Meio-elfo, meu caro amigo. - disse o rapaz - Minha mãe era elfa, mas
meu pai era da raça dos homens, apesar de ser conhecido como "Amigo dos
Elfos".
Os três olharam espantados para o elfo, que parecia em melhor estado
do que eles próprios.
- Olhem! A mordida no abdome dele sumiu. Isso só pode ser bruxaria! exclamou Ruprest.
61
O Draconiano
- Estão assustados? Estas águas são mágicas, mas não é bruxaria. concluiu o meio-elfo.
- Então não foi por sorte que ao cair de tamanha altura, eu não me
machuquei. - disse Patton - De alguma forma, esta fonte tem o poder de curar
ferimentos.
O meio-elfo apertou a mão de Patton e sorriu se apresentando:
- Eu sou Faldan, de Kendal. Muito obrigado por me salvarem. No que for
preciso, os ajudarei. O mesmo para o senhor, de quem não sei o nome, mas
sei que não gosta dos meus parentes maternos.
Varlens logo o cumprimentou, se apresentando também. Porém, Ruprest
não gostou nada de encontrar um elfo, ainda que fosse apenas um meio-elfo.
Não que suas experiências com aquela raça não tenham sido agradáveis, mas
é que, como amigo dos anões, ele não confiava em nenhum indivíduo de
orelhas pontiagudas. E desde a Grande Guerra das Raças que um elfo não era
visto lutando ao lado de um anão.
- Eu sou Patton. Não ligue para nosso companheiro, ele é um amigo dos
anões e não nutre simpatia pelo povo de sua mãe.
- É um prazer conhecê-lo, mas nós temos de partir o mais rápido
possível. - disse o meio-elfo.
- Não! - exclamou Patton - Não sairemos daqui sem um tesouro.
- Por Elbon9! Foi o que disseram aqueles soldados que jaziam nas celas.
Eu era o guia deles. - avisou Faldan, preocupado - Agora estão todos mortos!
De repente, sem avisos, o solo começou a tremer. O abalo sísmico
aumentava sua intensidade à medida que a luz do jardim ia se esvaindo.
Patton e Varlens sacaram seus sabres novamente enquanto Ruprest se
preocupava em manter-se de pé. Faldan disparava um olhar aterrador para o
jardim, como se já soubesse o que acontecia.
9
Elbon é o nome do Deus dos Elfos, a quem eles se devotam e atribuem a criação de todo o mundo.
62
O Draconiano
- Pelos Infernos! Vai começar tudo de novo. - gritou ele.
- Tudo o que? - perguntou Varlens.
- Tudo aquilo! - gritou Faldan apontando para uma criatura bizarra que
corria na direção deles com uma velocidade incrível.
A criatura era uma quimera. Tinha uma cabeça de leão no centro, uma
de um pequeno dragão vermelho de um lado e uma de bode de longos chifres
do outro. Seu corpo era tão medonho quanto as cabeças, sendo na forma de
um leão, mas munido de asas de dragão.
Apesar de nenhum dos três companheiros ter enfrentado uma criatura
como aquela, todos eles já a conheciam de histórias e livros. Num ritmo
alucinado, o monstro ganhava terreno em direção ao grupo.
- Protejam-se! - gritou Patton, quando a quimera investiu contra eles.
63
O Draconiano
A fera se atirou contra Varlens, que caiu no chão sem poder se
defender. As garras da fera rasgaram a pele do bárbaro na altura do peito,
deixando um ferimento grave. Logo, todo o tronco de Varlens estava manchado
de sangue.
Ao perceber que a criatura caíra em cima do bárbaro, Patton desferiu um
forte golpe com sua espada, acertando a cabeça de bode e fazendo-a sangrar.
Em resposta ao golpe do aventureiro, a fera o atacou com o chifre. O ataque
não foi certeiro, mas foi o bastante para abrir a carne do jovem.
Ruprest pulou no dorso da quimera e fincou nela suas espadas
seculares, fazendo-a urrar de dor, num som grotesco que ecoava por todo o
jardim.
Faldan não tinha armas e não podia atacar a criatura, porém num
instante de coragem irracional, o meio-elfo se lançou na batalha de mãos
vazias.
- Não parem de bater. - gritou Patton desferindo um novo golpe, que
decapitou a cabeça de bode. Reunindo suas forças, Varlens lançou a criatura
para trás usando seus pés, como se fossem uma potente catapulta.
- Agora Patton, acerte a cabeça do meio. - gritou Faldan.
Patton, ouvindo a recomendação, golpeou o crânio leonino, ao mesmo
tempo em que Ruprest fincava mais uma vez suas espadas nas costas da
criatura.
- Animal dos infernos! - gritou Varlens, que rapidamente se levantara. A
fúria do bárbaro foi tanta que, ao golpear a fera, seu sabre se partiu.
Mesmo gravemente ferida, a quimera alçou vôo, batendo suas asas
vermelhas de dragão, tentando se esquivar da saraivada de golpes desferidos
pelo grupo de guerreiros. Entretanto, antes que ela ganhasse altura, Faldan a
agarrou pelas patas traseiras e a arremessou contra o solo.
- Aproveitem agora e liquidem o bicho. - gritou ele.
64
O Draconiano
Como uma chuva de aço e prata, a criatura foi sendo debelada a duros
golpes de lâminas, que não davam chance de um contra-ataque à fera.
Caída e já imóvel, a quimera dava seus últimos suspiros. Faldan ergueu
um banco de madeira que estava no jardim e o lançou na criatura com um ódio
descontrolado, até que Patton o conteve.
- Calma rapaz! A besta esta morta.
O meio-elfo parou de golpear a quimera e olhou para os três guerreiros.
Ele parecia transtornado, mas aos poucos foi se acalmando e voltando ao seu
estado normal.
- Perdi bons companheiros por causa desse animal e nunca pensei que
ele pudesse ser vencido, mas vocês lutam como eu nunca vi ninguém lutar.
Varlens e Patton se banharam na fonte e seus ferimentos se fecharam
quase que instantaneamente. Patton teve a boa idéia de encher seu cantil com
a água para que pudesse usá-la quando necessário.
- Esse demônio não deu nem para nós começarmos a suar. - bravateou
Ruprest, ajeitando seu cabelo que lhe caía aos olhos.
Assim que Ruprest terminou de falar, o que restava da luz do jardim se
extinguiu mais uma vez, deixando o grupo numa penumbra total.
Os aventureiros sentiram um frio que lhes corria a espinha e,
assustados, ouviram uma voz suave e singela, como o aroma das flores do
coreto, que vinha por de trás deles.
- Vejo que se mostraram dignos da recompensa. Venceram meu
guardião e chegaram aonde muitos tentaram, mas todos falharam.
Os quatro olharam para trás quase que ao mesmo tempo e se
depararam com a imagem de uma mulher de cabelos cor de mel e pele lívida,
como um copo de leite. Ela emanava um brilho intenso e era o único ponto
iluminado naquele instante.
65
O Draconiano
- Que tipo de bruxa é você, que nos encanta com sua beleza? Inquiriu
Ruprest, fascinado pela imagem.
- Não sou uma bruxa, aventureiro. Sou uma dríade e me chamo Naian.
Eu sou a senhora deste pequeno pedaço do paraíso. - falou a mulher, fixando
seus olhos azuis no velho caçador-de-bruxas - Eu cuido para que aventureiros
gananciosos, como vocês, não maculem este local.
Com um simples gesto, a dríade fez com que, de dentro do lago, se
erguesse um baú de madeira de olmo, adornado finamente em prata.
- Este não é um lugar para mortais e os destinos de todos os outros que
já entraram foram os mesmos: a morte. Mas esta arca contém a recompensa
para aqueles que demonstram coragem e valor, e isso vocês provaram,
salvando o elfo e enfrentando a quimera. - disse ela abrindo a tampa do baú.
- Cada um tem o direito de escolher um artefato. - avisou Naian - Não se
iludam com aparências. Tudo dentro deste baú tem a sua razão de existir. completou.
66
O Draconiano
A arca possuía uma grande variedade de objetos, desde espadas até
pedras preciosas. Era muito difícil optar por apenas um deles e após muito
escolherem, os companheiros se decidiram.
Ruprest viu algo que lhe agradou: um rubi do tamanho de um morango
graúdo, finamente lapidado que o fez lembrar do trabalho dedicado dos anões
de Driev e que poderia lhe render alguns meses de conforto e cerveja, além de
sanar as dívidas com o mercador Evertad.
Patton gostou de um arco curto e uma aljava que carregava duas flechas
com pontas douradas e uma escrita rúnica na haste. Pareciam de ótima
qualidade e poderiam ser necessárias, já que o arco de Ruprest fora roubado.
Sentindo falta de uma arma mais adequada ao seu estilo de combate,
Varlens escolheu uma espada longa, pois agora, com sua cimitarra partida, ele
estava desarmado.
Por ultimo, Faldan fez sua escolha. Com imensa simplicidade, o meioelfo segurou um falcão talhado grosseiramente em madeira e falou:
- É um trabalho esplendido, não acham?
Ao verem a escolha de Faldan, os três ficaram bastante surpresos. Entre
armas de excelente qualidade, pedras preciosas e até peças de ouro, o rapaz
optara pelo item, aparentemente, de menor valor.
- Vocês devem ir embora agora. Não voltem nem revelem os segredos
de meu jardim. Não quero que aventureiros venham importunar a paz e a
tranqüilidade de meu lar. - ordenou a dríade.
Ainda assim, permitirei que se banhem uma última vez nestas águas
para curarem seus ferimentos e deixarei que encham seus cantis com um
pouco dela.
Os aventureiros agradeceram a dádiva concedida pela dríade e se
banharam naquelas águas. Depois, Ruprest, Patton, Varlens e Faldan
regressaram, seguindo de volta o mesmo caminho que os levou ao jardim.
67
O Draconiano
Quando os quatro chegaram à superfície, perceberam que a claridade do dia
dera lugar ao crepúsculo vespertino, mesmo que, além das escadarias, a
sensação era de que pouco tempo havia se passado.
- Pensei que veria a luz do sol. - disse o meio-elfo recém-libertado - Me
parece que esta felicidade terá de ficar para amanhã.
- Nem hoje e, provavelmente nem amanhã. - disse Ruprest.
- Porque diz isto, senhor Ruprest?
- Meu nariz não falha. Ele está frio e meus ossos estão gelados. Embora
vocês não tenham percebido, o inverno está mais poderoso e uma nevasca
vem chegando. Amanhã será um dia branco!
Patton olhou para o céu, que estava límpido e cheio de estrelas, porém
não ousou duvidar das previsões do amigo, pois não foram poucas as vezes
que o caçador-de-bruxas acertara na previsão de tais fenômenos climáticos.
- Se o senhor tem tanta certeza, senhor Ruprest, então eu acredito. O
senhor parece ter grande experiência. - falou Faldan.
O ruivo bufou e enquanto montava em seu cavalo reclamou:
- Tenho muita experiência. Mas não sou tão velho quanto pensas, garoto
orelhudo. Por isso pare de me chamar de senhor.
Os três companheiros montaram em seus cavalos e assistiram Faldan
sentar-se em uma pedra e lamentar-se franzindo a testa e encolhendo os
ombros.
- Queres uma carona, elfo? - perguntou Varlens - Estamos indo para
Phalanx, a cidade portuária.
Faldan abriu um largo sorriso e subiu no cavalo do bárbaro, quando os
primeiro flocos de neve começavam a cair, gelados, sobre a cabeça dos
aventureiros.
68
O Draconiano
S
e seguirmos a estrada do bosque ainda hoje, não chegaremos antes de
a neve cobrir o caminho e provavelmente vamos congelar. - disse
Ruprest.
- É verdade. E se nós não morrermos de frio, certamente os cavalos
morrerão. São cavalos do sul, habituados ao clima seco e quente. Nosso
inverno é rigoroso demais para eles. - confirmou Patton.
- Que idéia tens em mente, ruivo? - perguntou Varlens.
- Um pouco antes de sairmos da estrada do bosque, eu notei que alguns
montes acompanham o caminho e em suas paredes estão abrigadas pequenas
cavernas. Podemos entrar em alguma dessas grutas e esperar a neve passar.
Varlens cerrou as sobrancelhas com ar de reprovação e argumentou:
- Nós entramos na caverna e viramos comida de urso. Será essa a tua
idéia?
Ruprest ficou mudo diante do argumento do bárbaro, mas foi defendido
por Faldan.
- Com licença. Desculpem a interrupção, mas, estamos no inverno,
portanto os ursos estão hibernando. Dormem como pedra nesta época e nada
pode acordá-los. Se encontrarmos algum urso, não vamos ter com o que nos
preocupar.
- O elfo tem razão. Vamos rápido para as cavernas. - concluiu Patton,
batendo os calcanhares na barriga de seu corcel.
69
O Draconiano
Os três cavalos seguiram levando os quatro viajantes pela estrada do
bosque. O frio aumentava e as roupas úmidas de Patton e Faldan começavam
a incomodá-los.
Entre um e outro espirro, o grupo começou a se embrenhar para dentro
do bosque, saindo da trilha e indo na direção das montanhas onde procurariam
abrigo.
- Como viste estas cavernas? - perguntou Patton, intrigado - Se
reclamas tanto de sua visão, ou da falta dela, como conseguiste enxergar tais
grutas?
- Eu estou ficando velho e tu sabes disso. Não enxergo mais como nos
tempos em que tu ainda montavas um pequeno pônei. Mas daí, a tu pensares
que já estou cego, é um pouco de exagero. Para uma velha raposa, mais vale
a perspicácia que a própria visão.
Os cavalos subiram um monte de dimensões diminutas com facilidade e
estacionaram à boca de uma caverna escura e úmida.
- Acenda uma tocha, Ruprest. - pediu Patton.
O velho ruivo pegou um toco de madeira e enrolou um trapo retirado de
sua mochila, repetindo o movimento feito nas ruínas. Faldan, utilizando um par
de pedras, acendeu a tocha de Ruprest que iluminou a caverna.
- Olhem! Como eu disse. Tem um urso lá dentro e esse é dos maiores. exclamou Varlens.
- É. Este é dos grandes mesmo! Completou Patton ao avistar o enorme
urso pardo que dormia no interior da gruta.
- Sem exageros, ele de pé deve ter pelo menos dois curvos de altura. comentou o meio-elfo.
- É grande, porém inofensivo. - disse Ruprest entrando na caverna com
a tocha na mão.
70
O Draconiano
Faldan o seguiu. Sem receio, nem cerimônia, foi puxando os cavalos
pelas rédeas e deixou Varlens e Patton mais à vontade para entrarem.
O rapaz de orelhas pontiagudas levou os três cavalos para o fundo da
caverna, voltou para perto de onde dormia o imenso urso e sentou-se em seu
dorso, dando-lhe um tapinha na orelha felpuda.
- Saia daí. - gritou Varlens - Vai acordar o bicho! Vamos encontrar outro
abrigo!
Ruprest soltou uma gargalhada, achando graça da preocupação do
bárbaro. Para deixar o temeroso guerreiro mais nervoso, puxou uma das
orelhas da fera.
- Olhe Faldan. Esta é maior que as tuas! - disse ele, ainda rindo.
- Podes puxar Patton. Não há perigo. Nesta época os ursos são como
estátuas. Só acordam por magia. - afirmou Faldan, tentando deixar os
companheiros mais à vontade.
Patton começava a esboçar um sorriso pela brincadeira dos amigos,
entretanto, num segundo puxão na orelha do urso, um urro absurdamente alto
atordoou a todos.
Em questão de segundos, a fera não só estava acordada, como já se
levantava, fazendo o meio elfo tombar ao chão sem saber o que fazer. Estava
pronta para atacar os invasores com suas potentes patas dianteiras.
71
O Draconiano
- Fujam. - gritou Patton, ajudando Faldan a levantar.
Todos estavam assustados e o grito de Patton nem fora percebido.
Apoiado nas patas traseiras, o animal tinha, como deduziu Faldan, cerca de
dois curvos de altura e em seus dentes podia se ver restos de carne
apodrecida, provavelmente de sua última refeição.
Quando o grupo parecia perdido e sem chance de reação, Varlens se
pôs na frente do urso e começou a gritar:
- Vá procurar outro lugar para dormir! Estou cansado de surpresas por
hoje!
O urso ficou estático por um ou dois segundos, tempo o bastante para
Ruprest ter presença de espírito e começar a golpeá-lo com a tocha acesa. A
fera deu alguns passos para trás, com medo do fogo e Varlens, gritando
ensandecido, se atirou contra o corpanzil do animal.
O urso perdeu o equilíbrio e caiu para trás, rolando monte abaixo. Ainda
assim, Varlens continuava a gritar, fora de si.
72
O Draconiano
Os viajantes observaram o bárbaro bufar como um animal irado e
balbuciar algumas palavras em sua língua nativa. Depois, mais calmo, virou-se
para o grupo e disse lentamente:
- Chega de surpresas por hoje.
Todos olharam para Varlens estupefatos. Nunca tinham visto nada
parecido com aquilo. Mesmo que o urso não fosse tão grande, tal atitude era
no mínimo inesperada, para não se dizer insensata.
- Não achas que fostes muito rude com o bicho? - zombou Patton,
certificando-se que o guia já estava em seu estado normal.
- Como tu és nervoso, bárbaro. Tens um temperamento bastante
oscilante. - disse Ruprest - Ainda bem que estás do nosso lado.
- Espero que nunca se zangues comigo. - comentou Faldan.
Patton se acomodou junto às paredes da caverna, enrolando-se em sua
capa. Logo seus companheiros fizeram o mesmo, se protegendo do frio,
enquanto a neve caía tão forte que não se enxergava nada do lado de fora.
A noite chegara rapidamente e Patton, que ainda estava com as roupas
molhadas, começava a se preocupar com a queda de temperatura.
- O pior de tudo é que não temos lenha para uma fogueira e, a essa
altura, os poucos gravetos que encontraríamos estariam úmidos e não nos
serviriam. - disse ele, desanimado.
Ruprest olhou para o amigo e deu uma risada, deixando o amigo sem
entender o porquê da sua tranqüilidade.
- Não és tu quem sempre reclama do frio, caro amigo? - perguntou
Patton, estranhando a reação do amigo - Por que rires?
O velho não respondeu, mas levantou-se, caminhou para perto de seu
cavalo e com uma das mãos abriu a bolsa presa à sela. Com a outra, tirou um
punhado de gravetos enrolados em roupas que ele trazia de reserva.
73
O Draconiano
- Meus ossos quase congelam durante as noites frias. Portanto, eu me
previno. - disse Ruprest, sorrindo - Mas, para você eu sou apenas um velho
que reclama do frio, não é mesmo? - completou sarcasticamente - Acenda a
fogueira e bote estas roupas secas, filho. - ordenou ele - Não quero ter que
levar um cadáver para Gowern e provocar lágrimas em uma ou duas meninas
que dariam um braço por um beijo teu.
Patton abriu um largo sorriso e trocou as roupas molhadas pelas secas,
mas percebeu que não era o único a ter as roupas úmidas. Faldan também
começava a sentir toda a severidade do clima.
- Não tens mais nada de bom nesta sacola, senhor Ruprest? Perguntou
ele.
- Achas que sou um guarda-roupas, senhor orelhas? - praguejou
Ruprest.
- Não sejas tão ranzinza, Ruivo. - repreendeu Varlens, estendendo uma
manta ao meio elfo.
- Obrigado! - agradeceu Faldan, se enrolando na coberta.
Como Ruprest havia pedido, Patton preparou a fogueira e logo teve
ajuda de Faldan, que mais uma vez mostrou-se muito habilidoso, acendendo o
fogo manuseando duas pedras isqueiro.
A nevasca estava cada vez mais forte e os quatro, já aquecidos com o
fogo aceso, olhavam para o exterior da caverna sem nada enxergar, pois na
sua entrada, uma cortina branca feita de neve caía incansavelmente.
A noite e um novo dia se passaram sem que a neve parasse. A fogueira
se extinguia e os aventureiros sentiam-se desconfortáveis e famintos.
A segunda noite dentro da caverna fora ainda pior, com o vento frio
invadindo o abrigo e deixando os ossos de Ruprest quase congelados. Porém,
ao amanhecer, Patton, sempre o primeiro a acordar, teve uma visão que o
animou novamente: o sol.
74
O Draconiano
Apesar da temperatura ainda estar muito baixa, a nevasca havia
cessado e o sol brilhava forte no céu claro e límpido do bosque.
Faldan levantou-se sem fazer barulho algum. Mover-se em silêncio era
uma de suas especialidades e ele pretendia não acordar Ruprest e o bárbaro.
- Vamos pegar alguma coisa para o desjejum. - convidou Faldan,
apanhando o arco de Patton.
Patton calçou suas botas, já secas, e saiu do abrigo na companhia do
meio elfo.
75
O Draconiano
- O senhor Ruprest parece não gostar muito da minha pessoa, não é
mesmo? - perguntou Faldan.
- Não é nada pessoal, Faldan. Ruprest, assim como seus ancestrais, é
amigo dos anões por gerações, por isso ele não simpatiza muito com o povo
élfico.
- Penso que ele vai esquecer esta rusga se eu trouxer uma refeição
digna de um rei. - arriscou Faldan.
- Tens razão, a barriga é a parte mais sensível daquele velho sacripanta.
Os dois andaram por alguns ceres a procura de uma presa que lhe
proporcionassem uma boa refeição, mas a neve, ainda alta, dificultava a
caminhada e escondia animais mais matreiros.
De longe, Faldan avistou uma raposa, que no inverno tinha a pelagem
branca como a neve. O animal era grande para a sua espécie e isso fazia dele
menos ágil que o normal.
Armando o arco, Faldan mirou e em seguida disparou uma das flechas
da aljava de Patton. A seta foi certeira, não dando chance para a presa.
Patton ficou boquiaberto com a perícia do meio elfo e com um largo
sorriso falou:
- Parece que vamos ter um banquete, meu amigo!
- Por isso me chamam Faldan Flecha Certeira!
O elfo sorriu e caminhou para perto do bicho que jazia sobre a neve,
deixando nela uma mancha escarlate. Depois olhou para trás, já puxando a
seta que atravessara a raposa facilmente.
- Nunca vi flecha tão boa! Mesmo as flechas élficas não são tão bem
manufaturadas! Deve haver alguma magia nesta seta!
Patton se aproximou e observou a flecha escolhida por ele dias antes,
em seu encontro com a dríade.
76
O Draconiano
- Devo lhe confessar que, realmente estas flechas são especiais, dê-me
o arco para que eu possa ter o prazer de experimentá-la. - pediu ele.
Cerca de meia hora depois, tanto Patton como Faldan tinham os braços
carregados de caça. Eram duas lebres, uma delas bem graúda, e a raposa nas
mãos de Patton, e um pequeno gamo, que seu companheiro levava apoiado
nas costas.
- É realmente um exacerbo de comida. - comentou Patton.
- Talvez, mas meu estômago está colado em minhas costas. Já nem me
lembro de minha última refeição.
Os dois voltaram à caverna levando o saldo da caça. Lá encontraram
Varlens, que estava impaciente se perguntando onde os dois tinham se metido.
- Veja bárbaro, nosso amigo é um excelente caçador. - disse Patton
mostrando o pequeno cervo nas costas do amigo.
O bárbaro arregalou os olhos e coçou o queixo, deixando transparecer
certo espanto com a quantidade de caça trazida pelos companheiros.
- É de se admirar mesmo! Num dia branco como este, a caça é difícil! ,
sentenciou Varlens, em voz alta o bastante para acordar Ruprest.
- Me deixem dormir um pouco, já que não tenho este privilégio durante
as noites. - resmungou o ruivo ainda sonolento.
- De que diabos estas falando, velho? - indagou Patton.
- Estou falando de seus roncos, ou seriam urros? Da próxima vez eu irei
dormir junto com os ursos, que fazem menos barulho que você.
- Não me venha com estas histórias de ronco novamente, seu
resmungão. Acenda o fogo e vamos assar logo esta carne que nosso amigo
elfo fez o favor de caçar.
- Amigo seu! Ruprest não tem amigos elfos, mesmo os meio elfos não
são dignos de confiança. Ou tu esqueces que foi o povo dele que roubou as
77
O Draconiano
Pedras de Mitrank10? Além do mais, minha lenha não é eterna e se tu não
percebeste, já acabou.
Faldan não gostou da observação feita por Ruprest sobre as pedras de
Mitrank, mas fez que não ouviu tal acusação para não deixar o ambiente tenso.
Ruprest levantou-se, enrolou sua capa em volta do pescoço e saiu da
caverna resmungando. Pouco tempo depois estava ele de volta com um
punhado de gravetos envoltos em sua capa.
- Foi o melhor que pude fazer. A neve umedeceu toda a lenha que havia
por aqui e, por enquanto, nós vamos ter que nos virar com isso. - falou Ruprest,
jogando a trouxa de lenha aos pés de Patton.
Faldan e Varlens então se puseram a preparar a fogueira, enquanto
Ruprest voltava a dormir e Patton despelava os animais, usando com
habilidade sua espada.
Com o fogo aceso, a carne foi sendo assada. As lebres e a raposa logo
ficaram prontas e foram pouco para saciar a fome dos quatro aventureiros. O
gamo por sua vez demorou mais tempo, pois foi cortado em pedaços muito
grandes e acabou digerido semi-cru, principalmente por Faldan, que devorou
mais da metade do animal.
- Como come este elfo! - exclamou Varlens, admirado.
Depois de uma sesta, os quatro viajantes recolheram suas coisas e se
prepararam para voltar à estrada a qual haviam abandonado dias antes.
O caminho por entre o bosque ainda estava coberto por uma fina
camada de neve misturada à lama, mas o céu estava claro, o que permitiu que
os companheiros seguissem seu caminho de volta para a casa. Montaram seus
cavalos e tomaram a estrada. Em algumas horas estariam na estrada do lago.
10
Pedras de Mitrank eram gemas muito preciosas para os anões, que após a guerra das raças
desapareceram misteriosamente. Os anões acusaram os elfos que romperam relações com os outros povos
nesta época, se resguardando em Kendal.
78
O Draconiano
- Viram? A viagem até que foi agradável. No final saímo-nos bem.
Temos como pagar Evertad com esta gema que Ruprest escolheu e cada um
de nós ainda ganhou um artefato! - falou Patton.
- Se você acha agradável dormir numa caverna gelada, enfrentar uma
Quimera e ser assaltado por um pequenino, então precisamos rever nossos
conceitos sobre agradabilidade! - retrucou o ruivo.
O grupo permaneceu a caminho de Phalanx por algumas horas,
conversando com o novo integrante sobre suas experiências em Enthär. Mas o
semblante de Faldan mudou de repente.
- Ouvi cavalos vindo para cá! - disse ele.
- Eu os ouvi também. Disse Ruprest, forçando a vista para ver se
identificava quem se aproximava.
Pouco a pouco um vulto foi tomando forma na pequena estrada do
bosque. Eram cinco cavaleiros que vinham na direção contrária à deles, em
galope. Pareciam soldados. Mas para Faldan, que gozava de uma visão
privilegiada, logo ficou claro. Eram orks.
- Preparem-se para o combate! São orks! Gritou o elfo, pulando do
cavalo de Varlens para não comprometer os movimentos do bárbaro.
Patton e seus amigos desembainharam suas armas ao mesmo tempo
em que os orks se aproximavam, girando manguais sobre suas cabeças e
gritando versos de guerra.
Os dois grupos se chocaram em combate mortal e a cada movimento
podia-se sentir um ódio mútuo. Ruprest defendia-se dos golpes com uma de
suas espadas, enquanto cortava a carne asquerosa dos orks com a outra.
Apesar da ferocidade das criaturas, o combate não se prolongou muito.
A cada golpe da nova espada de Varlens, uma parte de um ork se desfazia.
Faldan, mesmo ainda desarmado, pulou com extrema leveza sobre o dorso de
um deles, empunhando uma adaga que trazia em sua cintura, e perfurando sua
79
O Draconiano
malha metálica pelo flanco direito, sem dar chance de reação ao oponente.
Logo, todos os orks estavam mortos.
- Mais lento que uma codorna prenha. - disse Faldan ao se livrar do
corpo do ork e montar em seu cavalo.
- De onde estão vindo estes orks? - questionou Ruprest intrigado - Pensei que
tinham sido banidos para sempre de Enthär.
Os aventureiros desceram de suas montarias e analisaram os corpos
das criaturas. Os orks vestiam um uniforme negro onde um brasão alvo se
destacava. O escudo tinha a forma de uma águia bicéfala e se parecia bastante
com um símbolo que Ruprest queria esquecer.
- Conheces este brasão, ruivo? - percebeu Patton.
- Não exatamente. Mas ele se parece muito com o escudo da casa
imperial de Raskhal, a quem os orks se aliaram durante a Grande Guerra.
- Mas eles não foram derrotados há muitos anos?
- Talvez sejam apenas alguns remanescentes que ficaram vagando por
Enthär, pilhando e saqueando. Mas não gosto nada da presença de orks
nestas terras. Aquele na ponte do grito parecia solitário e perdido, mas esses
aqui possuem instrução militar.
Patton recolheu uma adaga e algumas moedas que os orks levavam
presas às suas cinturas. Com a faca, ele recortou um pedaço do uniforme das
criaturas que tinha o brasão em tamanho menor.
- Esta espada é ainda melhor que meu antigo machado, disse Varlens,
analisando sua nova lâmina e, desta vez, tendo a aprovação de Ruprest.
Faldan retirou a sela dos cavalos que serviam os orks e os libertou dos
arreios.
80
O Draconiano
- Estão livres do fardo de ter que carregarem aqueles seres malignos disse ele subindo em um deles e deixando que os outros quatro seguissem
sem carga.
Superado o incidente, os quatro seguiram sua jornada. O sol brilhou
durante todo o dia e o perigo de uma nova nevasca estava afastado. Quando
passavam poucas horas do meio do dia, o bosque dava lugar à estrada do
Lago Vaërn. O ânimo do grupo estava cada vez melhor, com a expectativa de
chegar a Gowern. Ruprest, especialmente, ansiava a hora de poder dormir em
uma cama de verdade e de tomar a boa cerveja de Stool.
A noite ainda não havia caído quando Faldan se pronunciou para relatar
algo que ele achava estranho:
- Vocês perceberam o número de rastros na estrada? Parece que um
batalhão passou por aqui.
- Talvez uma caravana bem grande tenha passado. Phalanx é uma
cidade de comércio e recebe vários visitantes - opinou Varlens.
- Não, bárbaro, o elfo tem razão! Estes rastros são diferentes - constatou
Ruprest estarrecido.
O meio-elfo já havia ganhado muito dinheiro trabalhando como
rastreador e Ruprest tinha bastante experiência para aceitar a hipótese do
bárbaro por isso, ambos continuaram intrigados.
Mais algum tempo de viagem se passou antes que Patton avistasse, ao
longe, uma imensa nuvem de fumaça negra.
- Vejam, ou Evertad está fazendo um grande assado, ou a cidade
portuária está em chamas!
Quanto mais se aproximavam de Phalanx, mais a cena ia se tornando
dramática. Um odor de carne queimada invadia as narinas dos aventureiros e
um estrondo cada vez mais potente fazia o solo tremer e criava um clima de
tensão no grupo.
81
O Draconiano
- Vamos deixar a estrada e nos embrenhar na vegetação. É mais
seguro. Pelo menos até termos certeza do que está acontecendo. - ordenou
Patton.
- Não há trilhas nesta parte. Podemos tentar passar por entre as árvores,
mas teremos que desmontar de nossos cavalos. - advertiu Varlens.
Mesmo assim, o grupo seguiu a sugestão de Patton e, mantendo
sempre uma distância segura da estrada, mantiveram sua trilha rumo a
Phalanx, guiando-se pela densa nuvem negra.
O breu agora já havia tomado o céu e dentro da mata, a luz do luar
quase não ousava penetrar por entre a vegetação. Os cavalos estavam
cansados, o frio aumentava com a noite e o barulho e a confusão aumentavam
a cada passo.
- Ainda não sei por que dou ouvidos à tua ladainha. Eu podia estar
confortável, descasando em minha choupana, bebendo hidromel ou um bom
vinho. - reclamou o velho caçador-de-bruxas, já exausto.
- Não resmungue velho, sei que teu sangue precisa de aventura e que
logo ia sentir falta desta vida.
As palavras de Patton não surtiram efeito no ruivo. Faldan continuou
preocupado e temia pelo pior, embora nenhum deles pudesse sequer imaginar
o que seria o pior.
Os quatro se esgueiraram sorrateiramente para bem perto da estrada.
Ao constatarem que estavam perto da cidade, escondendo-se atrás de
arbustos, postaram-se estrategicamente para poder observar o movimento. A
noite era clara, mas as labaredas de fogo que saíam de dentro da cidade
ofuscavam até o brilho das estrelas.
- Os deuses devem estar zangados com os homens. - comentou
Varlens.
82
O Draconiano
- Os deuses nada têm a ver com isto. - retrucou Ruprest, observando um
exército de orks que passava pela estrada.
Aquela visão encheu de medo o coração dos quatro aventureiros. O
sangue corria gelado em suas veias, fazendo com que seus corpos
permanecessem petrificados. Às margens do lago, centenas de cadáveres
jaziam empalados em imensas estacas de madeira. Eram soldados da guarda
de Phalanx, que tingiam de rubro as águas do Vaërn.
- Por Elbon! Tal atrocidade não poderia ser feita por nenhum exército de
Enthär. - disse Faldan, estupefato.
Além de orks, milhares de soldados da raça dos homens marchavam
orgulhosos em seus uniformes negros. Todos, orks e homens, ostentavam o
brasão da águia bicéfala no peito. Alguns, provavelmente guerreiroscomandantes, levavam o símbolo em suas capas igualmente negras.
83
O Draconiano
Nos portões da cidade, um cavaleiro montado em um enorme corcel
branco trajava uma brilhosa armadura, alva e dourada. E erguia sua espada
manchada de sangue, enquanto seus soldados gritavam em sua homenagem.
Os movimentos do cavaleiro eram os de um campeão: dominava a imensa
massa sem nenhuma dificuldade. Por onde ele desfilava com seu garanhão, as
hordas o saudavam com cornetas e o repique de tambores.
Os berros em coro fizeram Ruprest perceber o que realmente temia.
Eram homens do ocidente aliados aos orks. Ele não conseguia acreditar na
potência descomunal daquele exército e no número de orks, já que a grande
maioria havia sido morta na Grande Guerra das Raças. E os que sobraram não
tinham unidade o bastante para formar uma força tão grande num espaço
menor do que trinta anos.
- Malditos sejam! Como pudemos negligenciar tal perigo. Devíamos ter
perseguido cada ork e cada ocidental até acabar com todos eles enquanto
podíamos. Fomos ingênuos e nos tornamos displicentes com nossas vitórias
na Grande Guerra. Agora estamos pagando o preço da pior maneira.
- Vamos! Temos que voltar a Gowern o quanto antes. Se eles fizeram
isso com uma cidade poderosa como Phalanx, o que não farão com uma vila? disse Patton, preocupado.
Voltando às montarias, Patton e seus amigos partiram rapidamente rumo
à vila, com esperança de chegar a tempo e avisar a todos para fugirem.
Depois de dois dias de viagem floresta adentro, a esperança deu lugar à
desolação. Ao chegarem a Gowern, encontraram apenas ruínas, o que
despertou-lhes um sentimento de incapacidade e amargura. Ruprest,
principalmente, não pensava que viveria para ver tamanha destruição.
Varlens correu em seu cavalo em direção à estalagem de Stool. - e com
desespero nítido em sua voz gritava o nome de sua amada - Thala! Pelas
neves do norte, responda se estiver viva! Thala!
84
O Draconiano
Patton tentou segurar o bárbaro, para que ele não chamasse a atenção
de uma eventual tropa inimiga que estivesse por ali. Mas foi em vão. Nem com
a ajuda de Ruprest a raiva do bárbaro foi contida!
O cenário era de devastação. Centenas de pessoas mortas sobre os
escombros da vila ampliavam o clima de terror. Muitas das vítimas eram
conhecidas e seus rostos descreviam, com detalhes, a crueldade do massacre
imposto pelo exército inimigo.
Varlens seguia gritando o nome de Thala e revirava os destroços,
quando ouviu uma voz familiar chamar seu nome. Era a voz de Stool, que com
muita dificuldade se fazia escutar:
- Varlens! Varlens, aqui embaixo.
O bárbaro seguiu o grito de socorro e encontrou seu sogro ferido
mortalmente, sob uma viga de madeira. Stool tinha um grande corte na face,
que sangrava incessantemente. E falava com muito esforço.
- Onde estavas quando precisamos de você, Varlens? -disse o
estalajadeiro com tristeza no coração!
- Onde está Thala? Ela está viva? Argüiu o bárbaro aflito.
- Não tenho mais esperanças quanto a mim. Mas Thala e Rina estão em
fuga junto a Ehrin e Alya. Elas não sobreviverão sozinhas por muito tempo. O
mal está em todo lado e Ehrin é ótimo, mas não passa de uma criança.
Promete-me que cuidará delas, Varlens. É tudo o que te peço!
- Não temas por tua esposa e filha, Stool. Eu cuidarei delas com a minha
vida e lhe prometo que nada no mundo me impedirá de encontrá-las.
Stool fitou o amigo com seus grandes olhos azuis e pareceu estar mais
aliviado. Segurou o cabo de seu machado, que estava ao seu lado no chão, e
entregou a arma ao bárbaro.
- Pegue este machado que tanto me serviu. Siga para o leste. Elas não
devem estar longe. Depois disso, ele fechou os olhos, para nunca mais abrir.
85
O Draconiano
Patton e Ruprest fizeram uma pequena oração em silêncio pelo amigo
que morrera. Mas Faldan ainda estava apreensivo e pediu a Patton que lhe
emprestasse o arco, para que não ficasse desarmado.
- Vamos embora o quanto antes. - sugeriu Patton.
Os quatro montaram em seus cavalos e seguiram rapidamente para o
leste, como pedira Stool. A estrada levava a Locksun, onde Patton havia
servido como Mestre de Armas e, apesar de saber que sua volta àquela cidade
significaria encrenca, ele não hesitou em partir.
86
O Draconiano
P
atton, preciso lhe falar! , sussurrou Ruprest. - Apesar de não
simpatizar com este elfo, creio que seria prudente deixá-lo rastrear o
caminho. Devo admitir que ele seja muito bom nisso.
- E queres que eu peça a ele, certo? És mesmo um grande orgulhoso,
Ruprest. Admita. O rapaz é uma boa pessoa - provocou Patton, fazendo com
que o amigo enrubescesse a face e arqueasse as sobrancelhas.
Patton chamou Faldan para perto e transmitiu a mensagem. O meio-elfo
ficou feliz com a incumbência dada por Patton, pois gostava de mostrar a todos
os seus dotes de rastreador. Com ar determinado, partiu a frente do grupo e,
quando já estava bastante adiantado, saltou de sua montaria e analisou o solo.
- Vejo algumas marcas que devem ser delas. Seguem pela estrada
principal, mas estão muito confusas porque várias pessoas passaram por aqui
nestes últimos dias - constatou ele.
Varlens permanecia sisudo e muito quieto. A morte de Stool o
abalara bastante e ele não pensava em outra coisa a não ser Thala. Durante
algumas horas os cavalos galoparam pela estrada principal, mas em certo
ponto, Faldan percebeu que o rastro se desviava para uma trilha ao norte, que
era conhecida de Patton e Ruprest.
- Lembra-se deste caminho? , perguntou Ruprest, saudoso.
87
O Draconiano
- É claro que sim, Ruivo. Quase morremos fugindo daquele velho louco
da chácara!
- Será que ele ainda é vivo? Espero não ter problemas com ele
novamente!
Até a chegada da noite, este foi o único diálogo do grupo. Apesar de
Patton ter boas lembranças daquelas terras, o clima era tenebroso demais para
se recordar de coisas agradáveis. O propósito exclusivo dos aventureiros era
achar os sobreviventes do massacre de Gowern.
A noite caíra rapidamente sobre os quatro viajantes. Os cavalos,
debilitados pela longa jornada, já não agüentavam o ritmo da cavalgada. O
vento soprava frio e uivante quando uma casa foi avistada.
Apesar de grande, a casa era rústica e mal cuidada. A cerca viva que a
rodeava estava cheia de buracos e pela aparência, parecia abandonada havia
algum tempo.
- É a casa do velho. Se ele estiver vivo, temos que torcer para que não
nos reconheça - disse Ruprest.
- Ora, meu caro. E quem se esqueceria de nós? , retrucou Patton.
Cuidadosamente, os três foram se aproximando da casa. A preocupação
inicial de Ruprest era com os cães que guardavam a propriedade. Porém, eles
já ultrapassavam os limites da chácara e não tinham dado sinal de vida.
Patton se adiantou ao grupo e se anunciou batendo palmas e gritando Alguém em casa? Queremos abrigo por esta noite!
Imediatamente após Patton tentar fazer contato, dois cães de tamanho e
ferocidade assustadores surgiram por de trás da casa, latindo. O grupo se
surpreendeu e os cavalos empinaram com medo dos cachorros. Mas de
repente, um assobio fez com que os dois guardiões parassem imediatamente e
se sentassem sobre suas patas traseiras.
88
O Draconiano
- Quem invade as terras de Samgrun? , perguntou um velho saindo de
dentro da casa, apoiado num cajado de cedro.
- Apenas viajantes exaustos a procura de abrigo para passar a noite respondeu Patton.
O ancião se aproximou, andando com alguma dificuldade e os
companheiros puderam notar que seus olhos brancos já não enxergavam mais.
- Mais viajantes em minhas terras! O que acham que minha casa é? Por
acaso tenho cara de estalajadeiro? , esbravejou o cego.
89
O Draconiano
- Se puderes nos acolher por esta noite, ficaremos agradecidos.
Podemos pagar algum dinheiro pela estadia - disse Patton, chacoalhando a
pequena bolsa de moedas que pegara dos orks no caminho do bosque.
- Guarde seu dinheiro, aventureiro. Entrem logo. É melhor ter a
companhia de viajantes do que agüentar orks rondando meu pomar!
Ruprest abriu um largo sorriso ao ouvi-lo falar do pomar. Lembrou-se de
quando esteve naquela mesma chácara, anos antes e, como se fossem duas
crianças, ele e Patton roubaram as deliciosas ângaras do velho Samgrun.
- O senhor cultiva ângaras em seu pomar? , perguntou Ruprest,
dissimuladamente.
- Não sejas debochado, ruivo! Disse o velho, para espanto de todos ali. Sabes muito bem que cultivo as mais deliciosas ângaras de Swannpala. Ou
pensas que só porque estou cego não consigo reconhecer um velho ladrão de
frutas?
Por um momento o grupo se descontraiu, vendo o caçador-de-bruxas
ficar envergonhado diante da sagacidade do cego. Alguns até arriscaram um
sorriso.
- Vamos entrando, antes que eu mande meus cães lhes morderem os
fundilhos. Vamos e eu servirei uma refeição para vocês - apressou Sam,
puxando um dos dois guardiões pela coleira.
Amarrando os cavalos a uma trave de madeira, os quatro companheiros
puderam entrar e aproveitar a hospitalidade do anfitrião. Samgrun serviu-lhes
um bom vinho à mesa, com uma desenvoltura enorme para um cego.
Depois de beber sua caneca, Patton enxugou a boca na manga de sua
roupa e perguntou ao ancião:
- Disse que mais viajantes estiveram por aqui. O senhor poderia precisar
quem eram esses viajantes?
90
O Draconiano
- Sim. Não me lembro dos nomes, mas era uma senhora com as filhas.
Quem as escoltava era um rapaz ainda muito novo. Fugiam dos orks. Eu devia
ter adivinhado que algo de terrível estava por acontecer. Há muito tempo eu
não via orks em Enthär e ultimamente eles vinham rondando e espreitando os
arredores. Eu tentei avisar aos guardas, mas riram de mim. Quem acreditaria
em um velho? “Cego e louco”. é o que diziam. Pois bem, agora é tarde. Pelo
que disseram, o massacre foi tremendo, mas duvido que os duques dêem
ouvidos às notícias até que tenham orks marchando diante de suas portas.
Varlens demonstrou pela primeira vez estar aliviado. O simples fato de
saber que Thala estava viva abrandava o temor de seu coração.
- Muito bem, vamos descansar e ao raiar do sol seguiremos a trilha do
norte - falou o bárbaro, quebrando seu longo silêncio.
Todos concordaram, exceto Faldan, que esperava ansiosamente pela
refeição prometida por Samgrun e não conseguiria dormir sem antes forrar o
estômago.
Faldan comeu muito - como era seu costume - e foi dormir. Todos
estavam exauridos e descansaram a noite inteira, aproveitando a boa vontade
do cego ancião.
Logo ao primeiro raio de sol, os quatro levantaram-se e se despediram
de Samgrun.
- Obrigado pela estadia, Samgrun. Mas seria mais prudente se seguisse
conosco. Estas terras estão infestadas de orks e sabe-se lá o que eles podem
fazer com o senhor - recomendou Patton.
- Eles não têm nada o que me tirar. Minha vida já está pelo acaso e se
tentarem alguma coisa contra mim, terei um último prazer junto aos meus cães,
mandando para os infernos alguns orks, como fiz a muitos anos, na Grande
Guerra das Raças.
91
O Draconiano
Patton apertou a mão do velho e montou em seu cavalo. Os outros
seguiram seus movimentos e, na vez de Ruprest, Samgrun sorriu e estendeu
um cesto repleto de ângaras:
- Tome Ruprest, coma até se fartar. Assim não vai mais precisar agir
como um garoto, invadindo meu pomar para roubá-las.
Ruprest, realmente um grande apreciador daquela fruta, recebeu o cesto
e abraçou o cego, agradecendo-o pelo presente. Depois, também subiu em seu
cavalo e o grupo partiu para o norte.
O dia passou rápido e Varlens estava cada vez mais impaciente. O
entardecer se aproximava e Faldan esperava encontrá-las no início da noite, o
que não aconteceu.
- Onde estão? Tu dissestes que as encontraríamos antes do anoitecer.
Já é noite e ainda não há nem sinal delas. Começo a duvidar da tua
competência como rastreador. - reclamou um exaltado Varlens.
Faldan cerrou as sobrancelhas, descontente com o comentário do
bárbaro. Depois, olhou para frente e apontou para um fio de fumaça que se
elevava alguns ceres à frente.
- Calma bárbaro! Elas estão ali. - disse o meio-elfo.
Varlens golpeou seu cavalo com os calcanhares e se adiantou à frente
do grupo. Em segundos avistou Thala, sentada com sua mãe e seus amigos
em volta de uma fogueira.
Ao ver o bárbaro, a menina levantou-se e correu em sua direção.
Varlens saltou da garupa de sua montaria e abraçou Thala, levantando-a do
chão.
A surpresa do grupo foi grande ao ver o bárbaro Varlens chegar. Todos
estavam aliviados por enfim terem sido encontrados. Ehrin levantou-se e
ajudou Rina a se levantar. Alya também se apressou em pôr-se de pé, mas
92
O Draconiano
ficou um pouco frustrada ao perceber que Patton não acompanhava o
guerreiro.
- Que bom tê-lo em nossa companhia Varlens. - disse Ehrin, feliz por
poder dividir com alguém a responsabilidade de escoltar as mulheres.
Alguns minutos depois, na estrada, apareceram mais três cavaleiros.
Eram Patton, Ruprest e o desconhecido Faldan. Os três desmontaram. Patton
cumprimentou a todos e apresentou o novo companheiro.
O grupo ficou curioso com o meio-elfo. Não era comum a presença de
elfos ao norte de Enthär, mas a simpatia de Faldan suplantara o medo ou um
possível preconceito.
Apesar de ficar encantada com o elfo, Alya não tirava os olhos de
Patton. A menina ansiava por vê-lo e não escondia sua alegria ao reencontrálo.
Após a alegria do reencontro, o clima de descontração voltou a dar lugar
à tristeza. Varlens chamou Rina e Thala e noticiou a morte de Stool. As duas já
esperavam por isso, mas ainda tinham esperança de que o taberneiro
conseguisse se safar dos orks, e não seguraram suas lágrimas.
Ehrin não demonstrava emoção, apesar de que, por dentro, sentia
realmente a morte de seu patrão e amigo. Seu silêncio mostrava o respeito que
sentia por Stool e os que o conheciam melhor, sabiam que esse era seu modo
de reagir a dor. Ele não deixava transparecer seus sentimentos.
- Parabéns, garoto! Outro em teu lugar poderia tê-las deixado à própria
sorte. Mas tu fostes valente e honrastes a confiança que Stool depositou em ti.
- comentou Ruprest.
O rapaz agradeceu com um sorriso e todos se acomodariam em volta da
fogueira, mas Patton a apagou, para não chamar a atenção do inimigo.
O jovem aventureiro de cabelos negros se afastou da fogueira, puxou a
adaga que pegara de um dos orks e começou a esculpir um pequeno pedaço
93
O Draconiano
de madeira para se distrair. A noite avançava e as pessoas dormiam,
acalentadas por cobertas. O vento zunia sob a luz das estrelas. Patton
imaginava, encostado a uma árvore, qual seria o destino deles. Passou quase
uma hora com a dúvida martelando sua cabeça, até que ouviu passos. Mais
que ligeiro, o sentinela levantou-se segurando o cabo de sua espada, ainda
embainhada. Certificando-se de quem se aproximava, Patton relaxou. Era Alya
que se aproximava.
- Eu o incomodo sentando aqui com você? - perguntou a menina.
- Pelo contrário, sinto-me honrado em tê-la como companhia, Jade.
A bela garota de olhos tristes sentou-se a seu lado e por alguns
instantes não disse nada, parecendo estar hipnotizada pelo guerreiro. Então
Patton quebrou o silêncio:
- Onde estão seus pais?
A triste hesitação dos olhos de Alya fez com que Patton entendesse que
eles já não estavam entre os vivos. O coração do aventureiro ficou pequeno ao
ver a menina chorar e abraçou-a, juntando seu corpo ao dela. Durante algum
tempo os dois permaneceram ali sem nada dizer um para o outro. E Alya
desejou nunca sair dos braços daquele homem.
Quando se separaram Alya sentiu vergonha e não conseguia olhar para
o rapaz. Ele segurou levemente seu queixo, elevando seu rosto até que seus
olhos cruzassem o dele.
- Preste atenção no que vou lhe dizer. Eu sei que você sente muito a
perda de seus pais. Mas eu quero que saiba que você nunca estará sozinha
enquanto eu viver. Prometo que cuidarei de você. Haja o que houver.
De súbito, Alya levantou-se e voltou para perto do acampamento. Patton
deu um sorriso e voltou a vigiar a área. Algo nele mudara. O olhar de Alya o
cativara profundamente e ele começava a perceber que seu coração estava
sendo conquistado.
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O Draconiano
95
O Draconiano
P
ela manhã o grupo foi acordando. Beberam água, comeram algumas
ângaras e se reuniram para decidir o que fazer e para onde ir. O
Caminho em que estavam levava às Montanhas Volda, onde não
havia nenhuma vila ou cidade. Varlens deu sua opinião:
- Vamos retornar por esta trilha e seguir rumo ao leste, para Locksun. É
uma cidade grande e segura.
Ruprest olhou para Patton, lembrando-se do que ele relatara dias antes
em sua choupana. Se a história que o rapaz lhe contara fosse verdade, ele não
poderia voltar àquela cidade, ou então teria sérios problemas. O jovem
aventureiro, por sua vez, não parecia preocupado. E concordou:
- Varlens está certo. Além do que, precisamos avisar ao duque sobre o
perigo que correm. Mas vamos seguir por uma rota alternativa. A esta altura, a
estrada principal deve estar infestada de orks.
O grupo, agora com oito pessoas, recolheu o acampamento. Ehrin
aprontou a carroça em que seguiam e ajudou as mulheres a subirem e se
acomodarem. Ruprest e os outros também subiram em seus cavalos e
seguiram viagem, guiados por Patton.
A estrada era agradável e Faldan tentava animar as meninas cantando
canções élficas que aprendera em sua terra. O ritmo da viagem não era tão
acelerado quanto nos dias anteriores, o que permitia um maior entrosamento
no grupo.
96
O Draconiano
Os dias passavam tranqüilos e os viajantes não se sentiam tão tristes,
apenas exaustos. As mulheres, menos acostumadas a longas jornadas,
sentiam-se doloridas e a cada vez que a roda da carroça passava por um
buraco, se lamentavam. Patton, por sua vez, ainda estava confuso com a
ordem dos acontecimentos.
- Em quantos formavam o exército inimigo? - perguntou a Ehrin.
- Creio que um pouco mais de duas centenas, entre orks e homens.
- E quando atacaram?
- O primeiro ataque se deu dois dias após a partida de vocês. Mas eles
não haviam destruído nada ainda. Apenas cercaram a cidade e não deixavam
que ninguém saísse de casa.
- Então eles atacaram Gowern mesmo antes de tomarem Phalanx.
- Pior que isso. O inimigo sitiou toda área para que nenhuma informação
saísse das imediações. E então eles tomaram Phalanx em segredo, em apenas
quatro dias. - constatou Ruprest, analisando as informações passadas por
Ehrin.
A viagem continuou, mas agora Patton tentava se adiantar aos planos
do inimigo. Durante as noites, Ruprest acendia uma fogueira enquanto Faldan
caçava com o arco do amigo. Rina preparava a caça precariamente, como
podia. Mais de uma vez a comida não estava do agrado dos jovens, porém a
fome e a situação faziam com que eles comecem rapidamente tudo que lhes
era servido.
No terceiro dia passaram pela cidade de Walky, que não era nem
sombra do que fora outrora. O que era antes um próspero entreposto se
tornara uma pequena pousada para viajantes. Seus muros decadentes
mostravam o desleixo de seu governante para com a cidade.
Em Walky, o grupo almoçou e noticiou aos poucos habitantes a trágica
batalha e os últimos acontecimentos. As pessoas custavam a acreditar que
97
O Draconiano
Phalanx tinha caído e que nenhum mensageiro havia levado informações a
eles. Alguns ficavam preocupados, mas a maioria não dava atenção e
permanecia em sua rotina. Rina pediu para que eles pernoitassem na cidade
em alguma estalagem, mas Patton negou o pedido, alegando que aquela
cidade não era segura nem em tempos de paz. Era mais cauteloso seguir a
jornada e continuar dormindo na estrada.
Após o sexto dia na estrada, o ducado de Locksun se aproximava. Era
um lugar bonito. O mais bonito do norte de Swannpala. Pequenas propriedades
ladeavam a estrada onde se cultivavam várias frutas, sobretudo uvas e
morangos.
Patton, bastante familiarizado com a região, seguia despreocupado e,
em algumas ocasiões, se adiantava e voltava ao grupo com um punhado de
frutas. Porém, pouco antes de avistarem os muros da cidade, uma tropa da
guarda pretoriana de Locksun se aproximou, deixando o rapaz temeroso.
O líder da tropa se apresentou e fez uma série de perguntas ao grupo.
Ruprest chamava a atenção para si, pois não queria que os guardas notassem
a presença de Patton.
Os esforços do velho ruivo foram em vão. Entre perguntas e cochichos,
o rosto de Patton foi reconhecido por um soldado, que logo informou ao seu
superior.
- Então o antigo chefe das armas voltou para a cidade. Provavelmente
veio a procura de Lady Locksun. - disse o líder pretor.
Patton ficou sem reação e logo lanças apontavam para o seu peito. Rina
se surpreendeu ao ver o amigo sendo rendido e Alya não entendia o que o
aventureiro poderia ter feito de tão grave para ser procurado pela guarda de
Locksun.
Varlens e Faldan entregaram suas armas enquanto Ruprest e Patton as
tiveram arrancadas de seus cinturões. Os guardas cercaram os viajantes e os
conduziram em direção aos portões da cidade.
98
O Draconiano
- Eu retornei por um motivo muito mais grave. Tenho sérias notícias que
devem ser levadas ao duque o quanto antes. - disse Patton, com uma voz
calma, mas ao mesmo tempo enfática.
- Sim. Provavelmente vem a Locksun atrás de mais algum presente da
duquesa. - disse o pretor - Não devia ter voltado rapaz. Se os deuses lhe
deram a oportunidade de escapar, deveria ter se metido em alguma toca e
sumido para sempre. Mas já que foi estúpido o bastante para voltar, ganharei
alguns pontos com o duque, levando-o numa bandeja.
O pretor mandou que um de seus guardas se adiantasse e levasse a
notícia da captura ao duque. E seguiu escoltando os prisioneiros.
Quando chegaram, Ehrin e as mulheres ficaram surpreendidos com a
magnitude dos muros da cidade. Eram muralhas quase tão grandes quanto as
de Phalanx, porém mais bem trabalhadas e suas torres, mais robustas. Na
maior delas tremulava o imenso estandarte branco, com uma cabeça de lobo
estampada em negro. Os portões de ferro se abriram e eles viram que uma
pequena multidão se aglomerava para ver Patton, havia sido uma figura
querida na cidade, passar rendido pela guarda. Da janela das casas rústicas do
ducado, as pessoas olhavam a passagem da comitiva.
A opinião da população se dividia quanto ao caráter de Patton. Apesar
de ser uma figura carismática, o incidente com Lady Lavia fez com que muitas
pessoas não vissem o rapaz com bons olhos.
Às portas do palácio de Kalekadun11, que era a residência oficial do
Duque, uma dezena de soldados de sua guarda pessoal recebeu a custódia do
prisioneiro e o escoltaram para as masmorras.
Patton estava envergonhado e sentia-se culpado por fazer seus amigos
passarem por aquela situação tão constrangedora. O grupo foi levado por um
corredor úmido e pouco iluminado, que descia por uma rampa não muito
íngreme, mas bastante escorregadia e cheia de limo e bolor.
11
Kalekadun significa Morada do Guerreiro num dialeto antigo do norte de Enthär.
99
O Draconiano
A certo ponto do corredor, o grupo foi separado de Patton e andando
menos de um minuto, os viajantes chegaram a uma câmara que abrigava
algumas celas, mas nenhum prisioneiro. Os guardas os separaram em duplas
e os trancaram no interior das jaulas, sem dizer uma só palavra.
Em outra câmara da masmorra, Patton foi acorrentado a uma parede de
pedras, com algemas pesadas e resistentes. O recinto era ainda mais úmido
que o resto da masmorra. Goteiras se formavam em várias partes do teto e a
iluminação era apenas uma pequena tocha. Ali, o rapaz esperou por mais de
uma hora até que alguém chegasse. Cansado, o prisioneiro baixou a cabeça e
refletiu, só a levantando momentos depois, quando ouviu passos de soldados
se aproximando.
- Então meu Senhor das Armas resolveu aparecer. Tua visita me agrada
quase tanto quanto irá me agradar a tua execução. - disse o Duque de
Locksun, ao entrar na câmara.
- Se eu soubesse que minha presença lhe traria tanta satisfação, teria
apressado minha volta. - respondeu Patton ironicamente, deixando o nobre
ainda mais furioso.
Após uma risada seca, o Duque desferiu um soco no rosto de Patton,
fazendo-o sangrar. Depois lhe fitou os olhos com ódio e disse:
- Continuas abusado, rapaz. Se me lembro bem, tua audácia sempre te
colocou em situações difíceis. - disse o nobre.
- E se me lembro bem, respondia calmamente o prisioneiro, a minha
audácia é uma qualidade que tua esposa aprecia muito...
O duque não esperou o fim da frase para golpear Patton novamente,
mas ele continuou a falar:
- Meu caro Lorde Byron, Duque de Locksun e segundo homem mais
poderoso de toda Swannpala. Será que não consegues enxergar o que paira a
frente de teus olhos? Tu és o maior culpado pelo que aconteceu entre mim e
Lady Lavia. Tu te preocupas por demais com os assuntos do reino, com tuas
100
O Draconiano
fronteiras e com o que o Rei pensa de ti, mas esqueces que tua mulher
também precisa de tua atenção. E mesmo assim, teu ducado corre um perigo
maior do que o teu casamento.
O nobre ficou ainda mais enfurecido, mas não agrediu Patton. Desta
vez, ele ordenou que seus guardas saíssem de dentro da câmara onde o
prisioneiro estava acorrentado.
- Tua mulher não me ama. - prosseguiu Patton após a saída dos
guardas - Ela apenas procurou em outro o que não encontrava mais em você.
Poderia ser qualquer outro, mas tive o azar de ser eu. E como sabes, tua
mulher é muito atraente e não consegui resistir.
Locksun virou-se em direção à porta, dando as costas para o prisioneiro.
As palavras do jovem faziam sentido, porém era impossível para ele encarar
que realmente negligenciara seu casamento em detrimento de seus afazeres
políticos.
- Um homem deve ter lealdade e obediência àqueles que o auxiliam. Tu
não eras nada antes de ingressar em meu exército, mas tornastes o Senhor
das Armas da segunda maior cidade de Swannpala, isso com menos de vinte
invernos. Mesmo assim, com o que me paga? Com traição. Levando minha
esposa para seus aposentos. Acha que posso relevar isto, seu miserável?
- O duque nunca me auxiliou por bondade. Se me tornei teu Chefe de
Armas é porque me destaquei e tu viste uma grande chance de transformar um
bando de trapalhões em um exército de verdade. Hoje eles têm disciplina e são
temidos em todo o reino. Aprenderam as técnicas do sul e não são mais uma
horda de guerreiros. Quanto à Lady Lavia, tudo o que posso fazer é pedir teu
perdão.
O Lorde saiu da câmara sem dirigir mais nenhuma palavra a Patton e
passou um bom tempo fora dali. Quando finalmente voltou, começou um novo
diálogo:
101
O Draconiano
- O que te fizeste voltar a Locksun? O que te fizeste voltar, sabendo que
aqui tu encontrarias a forca? Que mentiras ousa trazer para mim, dizendo que
Locksun corre perigo?
- Mesmo depois de tudo que aconteceu, eu ainda tenho muito apreço
por esta cidade e pelos seus cidadãos. Eu vim para avisá-lo que Locksun corre
perigo. E não só ela, como toda Swannpala - disse Patton taxativo.
- Não seja tolo. É claro que isso é um blefe. Não queres que eu acredite
neste despautério. - rebateu o nobre.
- Estou ciente de minha condição. A única coisa que te peço, é que
liberte meus amigos que nada tem a ver com meus erros e mande um enviado
a Phalanx para comprovar o que digo. Faça o que quiser comigo, mas não
condene todo o teu povo por não acreditar em mim.
O Duque de Locksun virou-se mais uma vez sem nada dizer, deixando o
prisioneiro sozinho novamente em seu cárcere frio e úmido.
Por algumas horas Patton ficou em dúvida sobre qual seria a decisão
tomada pelo duque sobre seu fim. Mas as dúvidas não se restringiam a esta. O
que aconteceria com seus companheiros? Qual seria o destino de Swannpala
se Locksun não acreditasse nele?
Tais questionamentos corroíam sua mente. Mas seu coração acelerou
quando ele ouviu novamente passos. Lentamente uma figura conhecida
penetrou na câmara. Era Lady Lavia.
- Então voltaste seu cafajeste! Disse ela sorrindo - sinto muito por ter
metido você nesta situação tão complicada.
- Se teu marido te veres me elogiando desta maneira, com certeza me
decapitará! Enfim, talvez faça isso de qualquer modo!
- Continuas o mesmo. - dando um beijo na face do prisioneiro - Meu
esposo já libertou teus amigos. As meninas pareciam assustadas com a
situação, sobretudo aquela de cabelos castanhos a quem chamam de Alya. Ela
102
O Draconiano
estava muito preocupada contigo. Provavelmente a pobrezinha se apaixonou
pelo aventureiro.
A expressão de Patton mudou quando a duquesa mencionou o nome da
menina.
- Ela está bem? - perguntou ele.
- Parece que alguém conseguiu mexer com o coração do aventureiro
conquistador também. Ela está bem e está sendo bem tratada. Agora devo me
apressar para que meu marido não me veja aqui. Isso só ira piorar tua
situação. Patton sorriu e Lady Lavia virou-se e saiu.
Alguns minutos depois, alguns guardas apareceram e soltaram as
correntes que prendiam Patton. Conduziram o prisioneiro para fora das
masmorras e seguiram para o salão principal do palácio.
O palácio lhe era bastante familiar e pouca coisa havia mudado desde
sua partida. Os quadros, os tapetes, os gigantescos candelabros e,
principalmente o odor de eucalipto. Continuava tudo igual, exceto pelo chefe
das armas, que outrora gozava de regalias e agora era levado escoltado como
um malfeitor.
Os guardas o levaram para uma sala oval onde Patton, em outros
tempos se reunia com seu suserano. Era a sala de guerra. Um salão
ornamentado com armaduras brilhantes e armas de haste penduradas nas
paredes, junto a escudos diversos.
Na sala, o Duque de Locksun aguardava sentado à cabeceira de uma
longa mesa, acompanhado de Ruprest e dois de seus conselheiros. Patton
sentou-se numa cadeira que estava reservada a ele e fitou os olhos do amigo
ruivo, como que se dissesse que estava bem.
- Podemos começar a reunião então - disse o nobre - Qual é a situação
atual, Rolin? - perguntou ele ao mais velho dos conselheiros.
103
O Draconiano
- Nosso batedor ao sul mandou um falcão mensageiro com informações
vitais. Ele disse que o exército inimigo agora ruma para o sul. Provavelmente
em direção a Nordwill. - relatou o conselheiro que, de tão gordo, mal cabia na
cadeira.
- Mas eles nunca conseguirão invadir Nordwill. É a cidade mais
poderosa de Enthär. Seu exército não irá sucumbir frente uma horda de orks. disse o duque.
- Sinto que esteja enganado, meu senhor. - disse Patton - Não se trata
de uma horda de orks. São homens e orks bem treinados e comandados por
um cavaleiro que parece ter saído dos infernos. - Qualquer exército que
consegue tomar uma cidade como Phalanx em quatro dias merece respeito. E
nada impede que reforços cheguem do Oeste e formem um contingente
insuperável. A força da águia negra ressurgiu para o nosso mal
Os ânimos mudaram de repente. A preocupação tomou conta de todos
ali e rapidamente as expressões eram severas.
- Precisamos nos organizar. Alguma opinião, Rolin? - perguntou
Locksun.
Patton retomou a palavra e começou a explanar suas idéias:
- Em primeiro lugar é preciso fortificar nossas fronteiras. Depois,
precisamos enviar uma mensagem para Nordwill. É provável que algum
batedor tenha conseguido furar o bloqueio inimigo, mas não podemos contar
com a sorte. Vamos esperar que o Rei estabeleça um plano de defesa. Estas
medidas devem ser tomadas o mais rápido possível.
- Patton, tu és um prisioneiro e eu me dirigi a Rolin, meu conselheiro.
Não penses que, por estares participando desta reunião, tu és novamente o
Senhor das Armas de Locksun.
Andrew, o conselheiro mais novo coçou seu cavanhaque e se levantou:
104
O Draconiano
- Vou enviar a guarda pretoriana para as fronteiras que estão
desguarnecidas e convocar voluntários entre o povo.
Locksun fez um sinal de consentimento com a cabeça e o jovem
conselheiro partiu.
- A reunião está encerrada. Saiam todos agora. - ordenou o nobre.
Todos se levantaram, mas Locksun continuou:
- Você, Patton, voltará à masmorra.
Patton saiu da sala de guerra e logo dois guardas o acompanharam
pelos corredores do palácio, rumo à masmorra.
Durante muitas horas, Patton ficou preso ali sem ouvir qualquer outro
barulho, senão o do pingar de gotas d’água. Suas roupas e sua bota estavam
úmidas, mas ele nem notara este detalhe. Seus pensamentos estavam longe
dali, perdidos em preocupações com a sua sorte e a de outros que dependiam
dele. Não só seus amigos corriam perigo, mas todo o reino poderia sucumbir
se os comandantes não traçassem a estratégia certa.
Patton recebera instrução militar desde seus primeiros anos de infância.
Ruprest cuidou para que quando chegassem os tempos difíceis, o rapaz
estivesse preparado. O que o velho caçador-de-bruxas não contava era que
esses tempos críticos chegassem tão cedo e abruptamente.
O prisioneiro estava distraído com seus temores quando ouviu o ranger
metálico da porta da masmorra se abrindo mais uma vez. Desta vez, o visitante
era uma figura mais enigmática.
Trajando uma túnica branca amarrada à cintura por uma cinta de couro,
um homem moreno, de olhar sábio e nariz proeminente fez uma saudação ao
prisioneiro.
105
O Draconiano
106
O Draconiano
- Ernandor. - disse Patton, reconhecendo o visitante.
- Quase poste tudo a perder, rapaz. Este teu espírito lascivo vai acabar
sendo a tua ruína. Queres acabar decapitado na frente do povo que deveria te
seguir?
- Não foi minha intenção, druida. Não imaginei que a situação chegaria a
este ponto.
- Pois bem. Verei o que posso fazer por ti junto ao duque. Mas terei de
revelar tua identidade e de quem tu és filho. - disse Ernandor, que apesar de
aparentar ser pouco mais velho do que Patton, carregava imensa sabedoria em
seus olhos.
- Se essa for a única saída, não guardarei mais segredo. Faça o que
achares melhor.
O homem saiu da prisão deixando Patton mais uma vez sozinho. Apesar
de mais aliviado com a visita de Ernandor, ele continuava perdido em seus
pensamentos e em suas preocupações. Ele sabia que Ernandor, o druida do
Carvalho, tinha bastante influência junto ao duque, mas também conhecia o
temperamento difícil do nobre.
A noite passou sem que a porta da masmorra se abrisse. A pequena
tocha que iluminava o recinto se apagara e o breu dominara toda a câmara. O
cheiro de mofo invadia o nariz de Patton, que já não agüentava o barulho
irritante das gotas se chocando com o assoalho.
Já era dia quando dois guardas entraram na prisão, mas Patton já não
sabia mais se, lá fora, era o sol ou as estrelas que brilhavam no céu.
- Levante-se e siga-nos. - disse um dos soldados, soltando o prisioneiro
de suas correntes.
Patton foi levado de volta ao palácio e seguiu escoltado até seu antigo
quarto. Quando chegou, percebeu que pouco havia mudado. Os móveis eram
107
O Draconiano
os mesmos e, com exceção de seus pertences, que não estavam mais ali, tudo
permanecera igual.
Outra noite ainda estava por chegar quando o aventureiro deitou-se na
cama e descansou como há muito tempo não fazia. Suas costas estavam
doloridas e o sono chegou rapidamente.
No outro dia cedo, Patton foi acordado pelo Duque de Locksun, que
invadira seu quarto sem cerimônia. O nobre estava acompanhado de Ernandor,
o druida.
- Parece que tu és um mal necessário nesses tempos conturbados. O
que fizeste não tem perdão, mas estou disposto a relevar todo o incidente com
minha esposa, pois se tu és mesmo o escolhido, filho de Raikar, não posso
sacrificar toda Enthär, indo contra as profecias.
- Fico aliviado em saber que o senhor duque entende que a situação é
grave e mais importante do que nossas rusgas. Só peço que confie em mim
pela minha habilidade e não pela força de uma epístola supersticiosa, sem um
fundo racional. - respondeu o rapaz.
- Patton, está escrito que o filho do primeiro lideraria as forças de Enthär
numa batalha final contra o Império da Águia Negra. Tu és o filho de Raikar, o
primeiro Draconiano e se isto não tivesse me sido dito por Ernandor, com
certeza eu custaria a acreditar. Entenda que este é o único motivo para eu
relevar a mancha em minha honra. Renegue tua missão e voltará
imediatamente às masmorras.
Patton baixou sua cabeça e ficou em silêncio.
- Apesar de tudo, rapaz, amo minha esposa e não vou me perdoar se
algo de ruim acontecer com ela. O que vou ordenar-lhe pode parecer um tanto
contraditório. Eu quero levá-la para um lugar seguro e Ernandor me aconselhou
deixar esta missão em suas mãos.
108
O Draconiano
Patton ficou surpreso e realmente confuso com a missão a ele
incumbida. Parecia um teste de confiança, ou então, por que o Lorde deixaria
seu cordeiro aos cuidados de um lobo?
- Senhor, acredito que seria mais útil aqui em Locksun, ajudando na
organização do exército. - disse ele timidamente.
- Não fique desconcertado. Ernandor irá com você para garantir que a
duquesa esteja a salvo. De orks e de aventureiros. Além do mais, um conselho
de um druida é sempre cheio de sabedoria. Não ouso ignorá-lo.
- Meu senhor. Neste caso, preciso pedir-te algo. - falou Patton, tentando
ser complacente - Quero levar aqueles que estavam sob minha proteção para
um lugar seguro. Estou sob um juramento e não posso abandoná-los.
- Pois bem, leve-os contigo. Se isso não interferir na tua missão, tens
minha autorização. - disse o nobre, dando as costas para os dois homens.
O Duque saiu do aposento tão rápido e decidido como havia entrado.
Então, Patton olhou para o druida que o observava calado por detrás de um par
de óculos e agradeceu:
- Obrigado, Ernandor. Estou em dívida contigo. Se precisares de
qualquer favor que esteja ao meu alcance, eu serei um homem feliz de poder
fazê-lo.
- Ele está sendo sincero, Patton. Sei disso. O Duque Byron dá muito
valor aos escritos e espera muito de você. É um bom homem. E quanto ao
favor, pague liderando as tropas de Swannpala à vitória.
- Está bem, seja como vocês decidirem. Só não podemos perder mais
tempo. Sabe-se lá o que o inimigo está fazendo a cada instante.
Alguns minutos após a saída do Duque, o jovem conselheiro Andrew
adentrou ao quarto. Ele parecia estar mais calmo do que durante a reunião,
mas foi conciso:
109
O Draconiano
- O Duque me incumbiu de levá-lo até a armoaria para que escolhesse
as armas que deseja levar.
Os três homens saíram do cômodo e seguiram pelos corredores. Num
dado momento, receberam a companhia de Ruprest, Faldan e Varlens, que
eram escoltados por outros dois guardas.
Ruprest abraçou o amigo:
- Graças aos deuses você está bem, garoto. - disse ele.
Faldan
e
Varlens também ficaram felizes em rever o companheiro e o cumprimentaram.
Patton apresentou-lhes o druida Ernandor e eles continuaram seu caminho.
A armoaria era um grande galpão onde eram guardadas as armas,
escudos e armaduras do exército do ducado. Lá estavam armazenados vários
tipos de espadas e lanças, além de vestes que variavam da lóriga até o gibão.
- Ruprest e Varlens terão suas armas devolvidas, como fora pedido. disse Andrew acenando para os guardas que os escoltavam.
Logo as espadas de prata de Ruprest foram devolvidas. Depois o arco
com as flechas rúnicas, o machado de Stool e a espada montante de Varlens
também vieram.
Analisando as ofertas, Varlens apanhou um elmo aberto e um cinturão
que carregava uma bainha grande o bastante para caber sua espada.
Ruprest escolheu um gibão de couro para proteger-lhe o tórax e nada
mais. Faldan que, como todos os elfos, não gostava de armaduras, pegou
apenas uma aljava repleta de flechas de ponta de metal e um punhado de
adagas, num total de sete.
Patton vestiu uma cota de metal, tecida de pequenos anéis e por cima
uma lóriga prateada com detalhes dourados. Recolheu um escudo negro
abaulado e uma espada que embainhou em sua cintura. Depois olhou para
onde ficavam as armas de haste e escolheu uma lança de cerca de dois curvos
de comprimento.
110
O Draconiano
- Não sabia que estavas habituado às armas de cavaleiro. - comentou
Varlens ao notar a escolha do companheiro.
- Há muitas coisas sobre Patton que tu nem imaginas, bárbaro. retrucou Ruprest demonstrando orgulho pelo rapaz.
Os aventureiros pareciam satisfeitos com as armas escolhidas, mas uma
dúvida ainda pairava no ar: que arma levar para o jovem Ehrin?
- Talvez uma espada curta. - sugeriu Varlens.
- Acho melhor uma espada longa. A espada curta não é de muita
utilidade numa batalha. - disse Patton, descuidadamente, deixando Ruprest
furioso.
- Quer dizer que minhas espadas centenárias não são eficazes num
combate? - disse o ruivo, indignado.
- Sinto se me expressei mal, Ruprest. Eu quero dizer que as espadas
curtas nas mãos de principiantes não são tão potentes. Já nas mãos de um
mestre como você, elas se tornam letais. Ruprest deu-se por satisfeito e pegou
uma espada longa de cabo de madeira para ser dada ao jovem.
O grupo saiu da armoaria e seguiu para uma sala, onde, em uma
enorme mesa, se reuniam Rina, Thala, Alya e Ehrin, que saboreavam uma
refeição.
Todos ficaram contentes ao verem que Patton estava bem, mas Alya em
especial. O coração da menina começou a bater forte e acelerado com a
aproximação do aventureiro. As armaduras e o escudo negro deixavam Patton
com um ar nobre de cavaleiro e isso a deixava ainda mais encantada.
- Graças aos deuses, nada de mal aconteceu contigo. - disse Rina,
abraçando o amigo.
Patton sentou-se à mesa ao lado de Alya e deu um beijo em sua face,
que logo corou:
111
O Draconiano
- Pensastes que seria fácil se livrar de mim? - murmurou ele ao ouvido
da menina, que encabulada acabou por derrubar a jarra de leite à mesa.
- A culpa foi toda minha. - disse Patton gentilmente, ajudando-a a secar
a mesa.
O grupo degustou a refeição e recebeu a companhia de Lady Lavia e o
Duque de Locksun.
- No final da tarde vocês partirão. - disse o nobre - Espero que tenham
apreciado a hospedagem, apesar de
alguns
inconvenientes.
Andrew
providenciará a montaria e os mantimentos para vocês, mas é melhor que
descansem agora.
- Sim, a jornada ainda será longa e não sabemos o que nos espera no
caminho. Todos devem estar descansados e bem alimentados. - sentenciou
Ernandor.
112
O Draconiano
P
ouco antes do crepúsculo, o grupo estava pronto para mais uma
jornada. Patton vestia a lóriga prateada com uma capa negra sobre os
ombros. Trazia na mão direita, sua lança e na esquerda o escudo.
Tinha os cabelos molhados, pois tomara um banho, o que há muito não fazia,
que o deixara relaxar.
113
O Draconiano
Todos estavam prontos. Rina, Thala e Alya também tinham se banhado
e usavam vestidos cedidos por Lady Lavia, para substituírem os velhos e
empoeirados que usaram na fuga de Gowern. Ehrin também vestia roupas
novas e Ruprest, Varlens e Faldan foram os últimos a chegar, mas usavam
ainda as mesmas vestes surradas.
O Duque de Locksun chegou escoltado por um grupo de soldados, em
companhia de sua duquesa. Lavia estava magnífica e vestia um bonito vestido
azul, com um generoso decote que valorizava seu lindo colo.
Após alguns minutos, uma dezena de cavalos vinha sendo trazida por
dois guardas e logo depois, uma pomposa carruagem, puxada por dois pares
de cavalos brancos surgiu conduzida por um cocheiro.
- As mulheres serão acomodadas na carruagem confortavelmente e
você e os outros poderão ir a cavalo. - disse o Duque a Patton.
- Nada de carruagens. Elas chamam muita atenção e estamos em fuga.
Ou te esqueces disto? - retrucou Patton.
- Mas as mulheres não podem montar a cavalo. Elas não agüentariam
nem duas horas de trote. - argumentou Locksun.
- Sei disso, Lordee. Traga uma carroça em bom estado e encha-a de
feno. Ficarão tão confortáveis quanto na carruagem e não chamaremos tanta
atenção. Se o inimigo souber que levamos uma duquesa, farão de tudo para
botar as mãos nela.
O duque fez um sinal com as mãos e logo o cocheiro voltava com uma
carroça aberta, cheia de feno, como Patton pedira, onde subiram as quatro
mulheres com os mantimentos para a viagem. A carruagem parecia-lhes mais
aconchegante, mas a carroça não chegava a ser desconfortável.
- Nada de guardas também. - continuou Patton.
114
O Draconiano
O nobre dispensou os soldados e os companheiros montaram nos
cavalos. Faldan subiu na carroça e se prontificou a ir guiando-a durante a
jornada.
- E Ernandor, por onde anda? - perguntou Ruprest.
- Aqui está um mapa da região por onde irão passar. O druida irá
encontrá-los num vilarejo a quatro horas de Locksun. Ele seguiu na frente para
preparar a estada de vocês. Disse que o lugar é seguro e que, quando vocês
chegarem, já terá providenciado tudo.
Lordee Byron subiu na carroça e despediu-se de sua esposa, desejando
boa viagem. Algumas lágrimas tomaram o rosto de Lady Lavia, mas o duque as
enxugou com o polegar e carinhosamente a beijou nos lábios.
A comitiva partiu, deixando os imensos muros da cidade para trás.
Todos esperavam que esta viagem fosse mais tranqüila do que a anterior, mas
as dúvidas pairavam tal qual uma nuvem negra num dia de sol.
A noite escura já se aproximava quando a estrada que seguia para o
norte entrou na floresta, chamada em Locksun de Floresta Auhin Daeur12.
Patton pediu que Faldan parasse a carroça e acendesse algumas tochas, para
que o caminho fosse iluminado.
Com as tochas acesas, o grupo continuou sua marcha. Apesar da
escuridão, o trajeto era agradável, exceto pelo frio. As mulheres se protegeram
com cobertores de lã, mas mesmo assim ainda rangiam os dentes. Mesmo
sem a neve, aquela era uma das noites mais frias do inverno.
Depois de quatro horas na estrada, conforme dissera o duque, um
vilarejo se aproximava. Era apenas um pequeno amontoado de casas
pequenas em volta de uma estalagem de nome Arvore de Hogan, onde se
podia ler em uma placa: “Há vagas para bons hóspedes”.
Na frente da estalagem estava o druida Ernandor, ao lado de um rapaz
que devia ter a mesma idade de Ehrin. Ele trajava uma capa verde musgo que
12
Auhin Daeur significava espírito branco, no antigo dialeto do norte de Enthär.
115
O Draconiano
cobria uma calça bege e uma jaqueta de tom pouco mais claro que a capa. O
druida parecia não estar com frio e usava apenas sua túnica branca.
- Venham. Providenciei acomodações quentes para todos. Prandy irá
levar os cavalos para o estábulo. - disse Ernandor.
Patton e seus companheiros entraram na estalagem e foram
apresentados ao seu dono, Paira Pé-de-Ganso. Um homem enorme, mas de
feições gentis e voz cordial.
- Bem vindos a minha estalagem. Espero que se sintam acolhidos por
esta noite. - disse ele.
Paira Pé-de-Ganso levou-os aos quartos reservados e tratou para que
nada faltasse. Depois de alojados, os integrantes da comitiva desceram para
fazer uma refeição e encontraram alguns moradores da cidade bebendo
cerveja. Todos olharam para aquele grande grupo de viajantes, mas os rostos
não eram hostis. Pelo contrário, pareciam felizes com o movimento.
- Sentem-se e meu sobrinho Prandy trará o jantar. - disse Paira aos
hóspedes.
Durante horas o grupo se divertiu e se alimentou, mas após algum
tempo o sono já alcançava a maior parte deles. Alya e Thala se despediram de
todos e foram dormir. Rina se juntou a elas no quarto alguns minutos depois.
Ernandor conversava com Faldan e ambos trocavam suas experiências com os
elfos, de quem o druida era muito amigo. Erhin prestava atenção na conversa,
mas Ruprest, cansado daquele tema, decidiu se recolher.
Em outra mesa, Patton e Lavia conversavam cordialmente. O
aventureiro pediu uma cerveja para ele e um licor de menta para a duquesa,
que não aceitou, apesar de ser sua bebida preferida.
- Paraste de beber, duquesa? - perguntou Patton.
- Meu estado não permite que eu beba - respondeu ela.
- Estado, mas que estado? Estás doente e não me falaste?
116
O Draconiano
- Não, Patton. Estou grávida e não é recomendado às gestantes
ingerirem bebidas alcoólicas.
Ao ouvir a resposta da duquesa, Patton ficou pálido e sem ação.
Todavia, ao notar a reação do aventureiro, Lady Lavia se explicou:
- Nada temas, Patton. Se pensas que o filho é teu, pode ficar calmo,
pois a criança tem o sangue de Byron e será o próximo Duque de Locksun.
Patton disfarçou e tentou se redimir, dizendo que não duvidara daquilo
nem por um minuto, mas a aflição do aventureiro fez a duquesa dar uma risada
que chamou a atenção dos amigos.
Lady Lavia se levantou e despediu-se de todos. Então Patton juntou-se à
mesa onde estavam seus companheiros.
- Do que tanto ria a duquesa? - indagou Faldan.
- Assuntos da nobreza, meu caro - respondeu Patton, bebendo de um só
gole toda a sua cerveja.
Alguns minutos depois, todos já apreciavam o conforto da estalagem.
Era uma noite gelada, mas as cobertas que Paira providenciara eram o
bastante para agasalhá-los.
A manhã seguinte chegou e o frio era maior. As janelas dos quartos da
estalagem estavam todas embaçadas. Sair da cama era uma missão quase tão
difícil quanto deter o exército inimigo.
- Pelos deuses, não me lembro de uma manhã tão fria. - resmungou
Ruprest.
- A neve já está caindo. - disse Faldan passando a mão no vidro da
janela para desembaçá-la.
Mesmo com a temperatura baixa, o sol brilhava ao leste e a comitiva
partia da estalagem de Paira. Ernandor providenciou algumas mantas extras
117
O Draconiano
para agasalharem as mulheres na carroça. Eram feitas de lã de carneiro que o
próprio Paira criava, em uma pequena fazenda ao sul da vila.
Debaixo de pequenos flocos de neve, o grupo partiu. A viagem durante o
dia era mais agradável, pois contemplava as belezas daquela região. Mesmo
no inverno, as folhas das árvores eram verdes e o odor exalado delas era doce
e agradável.
Quanto mais a caravana avançava, mais fechada era floresta e mais
estreita ficava a estrada. Alguns gamos atravessavam a via e logo sumiam na
vegetação.
Por quatro vezes o grupo parou. Patton decidia isso quando as mulheres
pareciam cansadas. A neve cessava e voltava, mas não chegava a incomodar.
A primeira noite foi a mais terrível. Se não havia nem sinal do inimigo, o
frio era forte o bastante para minar a resistência dos viajantes. Apesar de uma
fogueira acesa, todos preferiram ficar dentro da carroça, onde o feno, as
cobertas e o calor humano os mantinham mais aquecidos.
Mais um dia de viagem e a neve já não caía. O dia voltou a ser
aprazível. Os viajantes agradeceram aos deuses pela dádiva e, ao meio do dia,
o sol estava quente como há muito não se via num inverno.
- Meus ossos agradecem. - disse Ruprest - Estavam congelando com
aquele clima. Nem durante a nevasca o frio foi tão intenso.
- É verdade, meu velho. Mas parece que o tempo mudou. Espero que o
calor nos acompanhe até o lugar onde estamos indo. Aliás, para onde estamos
indo? - perguntou Patton, intrigado com o destino daquele grupo.
- Além da estrada. Onde só os filhos da floresta podem entrar. Tenho
amigos lá e nem Dracon é mais seguro em tempos de guerra. - disse Ernandor.
A caravana seguiu em frente por alguns dias, sem que nada de anormal
acontecesse. A estrada dera lugar a uma trilha, que por sua vez dera lugar à
floresta fechada, onde os raios de sol atravessavam as copas das árvores e
118
O Draconiano
iluminavam o caminho, freqüentemente cruzado por um ou outro pequeno
animal. Ali a carroça já não conseguia passar e então, as mulheres a trocaram
pelo lombo dos cavalos. O ritmo da jornada era lento, mas agradável, pois a
floresta emanava uma suave fragrância, que acalmava a todos.
Em certo ponto, Faldan e Ruprest ouviram algo que os fez hesitar.
- Ouves isto, elfo? - questionou o caçador-de-bruxas.
- Sim, vem longe, mas posso ouvir algo! - confirmou-lhe.
Com um gesto, Faldan pediu para que o grupo parasse onde estava.
Varlens e Ernandor ficaram com as mulheres, enquanto Patton, Ruprest, Ehrin
e Faldan avançaram para averiguar o que acontecia.
Ao se aproximarem do foco do barulho, os aventureiros desceram de
seus cavalos e seguiram espreitando pela mata. Faldan seguia na frente com
passos leves e sem fazer nenhum barulho. Os outros vinham um pouco atrás,
mas igualmente silenciosos.
Quanto mais andavam, mais alto ficava o som. Vozes ásperas e o que
parecia ser o relinche de um cavalo. Ao que se podia identificar, a língua falada
era estrangeira, mas o que era clamado, mais se parecia com grunhidos do
que com palavras.
- Vejam! Malditos, estão por todo lugar. - sussurrou Faldan, avistando
um grupo de orks que cercava um unicórnio ainda jovem.
Numa clareira, cerca de cinco orks vestidos em cotas metálicas e
armados com lanças laçavam a alva criatura com duas cordas e tentavam, com
muito esforço, jogar-lhe uma rede e subjugá-la. O animal era forte, mas parecia
estar cansado.
O grupo observava aflito, mas algo de inesperado aconteceu. Na
mochila de Faldan um súbito remexer o fez abandoná-la no chão. Os
companheiros acompanhavam atentamente o movimento dentro da mochila.
- O que tens aí, Faldan? - perguntou Patton, assustado.
119
O Draconiano
O meio-elfo se aproximou da sacola e abriu seu fecho. Para a surpresa
de todos, um falcão saiu de dentro da mochila, alçando um vôo direto em
direção aos orks.
O falcão desferiu um ataque violento a um dos orks, que largou sua
lança para se defender. Faldan seguiu o pássaro e puxou seu arco. Logo todos
os companheiros estavam envolvidos no combate contra os orks. Patton
deixara sua lança de lado e desembainhou sua espada. Os outros fizeram o
mesmo. Ehrin nunca havia entrado de fato em um combate e esperava por este
momento a vida inteira, mas agora se sentia estranho, sem saber o que fazer.
Sentiu o cheiro do próprio pavor sair de seu corpo, mas assim que um ork o
atacou, o medo pareceu abandoná-lo e a sensação da sua lâmina perfurando o
ventre do inimigo o deixou em êxtase.
Surpresos, os inimigos não ofereceram muita resistência. Apesar de
mais fortes do que os orks que eles encontraram anteriormente, não eram
oponentes à altura dos aventureiros. E logo foram mortos.
Quando o ultimo ork caiu sem vida sobre o solo da floresta, o falcão
pousou e transformou-se na estatueta de madeira que Faldan ganhara da
Dríade Naian, dias atrás.
- Vejam que belo presente o elfo ganhou da fada das ruínas. - disse
Patton.
Faldan recolheu o pássaro de madeira, mas parecia muito preocupado
com o unicórnio. Delicadamente, o elfo se aproximou e, na língua de Kendal,
acalmou a criatura. O unicórnio sentiu a bondade em Faldan e permitiu que ele
o tocasse. Era uma fêmea mais branca que a neve, que apesar da pouca
idade, era bem forte. O meio-elfo retirou as cordas que a prendiam e a afagou
novamente.
120
O Draconiano
Ehrin, que estava um pouco aturdido com os acontecimentos, partiu para
avisar ao resto do grupo que o perigo tinha passado e que eles podiam se
juntar novamente. Ernandor e os outros seguiram o rapaz e alcançaram a
clareira onde o combate havia se realizado.
As mulheres ficaram encantadas com a beleza e a magnitude do
unicórnio. Jade e Thala eram as mais deslumbradas e seus olhos brilhavam ao
ver seus suaves movimentos.
- Eu pensei que estas criaturas não existiam mais. - disse Ruprest.
- Seria bom se todos pensassem desta forma. - disse Ernandor, olhando
para os cadáveres dos orks que jaziam no solo. - Este deve ter se perdido dos
guardiões. - completou ele, passando a mão com delicadeza sobre a longa
crina do animal.
- Guardiões? - surpreendeu-se - Esta floresta reserva mais segredos do
que pensávamos. Veja o pássaro de madeira de Faldan, criou vida, atacou os
121
O Draconiano
orks e voltou a ser uma estatueta. Este unicórnio e ainda guardiões. Em que
lugar de magia nós viemos parar?
- É um lugar bastante diferente. Apesar disso, não sinto a presença de
bruxaria. É um lugar bom, mesmo que os orks já tenham maculado este solo. falou Ruprest.
- Esta é Auhin Daeur na língua antiga. Ken al Palari para os elfos e
Floresta dos Unicórnios, para os homens. - explicou Ernandor - Costumava ser
um lugar puro, no entanto a maldade já chegou até aqui. Mesmo assim coisas
maravilhosas ainda acontecem por estes rincões.
O druida acariciava o unicórnio quando esse se ouriçou de repente e
partiu em galope acelerado. Faldan, que estava ao seu lado, sacou seu arco
novamente, mas desta vez fora surpreendido. A toda volta, cerca de dez arcos
apontavam para o grupo. Pouco se podia ver dos arqueiros, que se escondiam
entre a mata, deixando apenas as flechas à vista.
Nem mesmo Ruprest ouvira a aproximação dos arqueiros. Patton,
apesar da boa visão, demorou a perceber que estavam cercados, mas
Ernandor, em voz alta e séria, bradou algumas palavras em uma linguagem
melodiosa.
Faldan fora o único a entender o que pronunciara o druida, mas sua
expressão continuava preocupada. A resposta foi breve, então Ernandor voltou
a falar, agora com a voz mais ríspida e enérgica. Desta forma, fazendo com
que os arqueiros se apresentassem ao grupo.
Eram altos e belos. Elfos de traços finos, mas com expressões severas,
diferentes dos elfos de Kendal, que apesar de belos, eram mais baixos e
franzinos. Estes eram os lendários elfos dourados, que as histórias contavam.
A linhagem mais pura da raça das florestas, que tinha o cabelo da cor do ouro
e os olhos da cor do céu.
- Seja bem-vindo, Ernandor do Carvalho. - disse o líder dos arqueiros,
em língua comum de Enthär - Sejam bem-vindos os amigos de Ernandor que
socorreram o unicórnio. Eu sou Drajha, o guardião.
122
O Draconiano
- Estes são alguns valorosos representantes da raça dos homens,
Drajha. Precisamos de uma pousada segura. Os tempos são tenebrosos
novamente. Como nós temíamos, os orks estão por toda parte, após décadas
do expurgo.
- Nós sabemos disto. A Rainha teme por Enthär e precisa saber sua
opinião, mestre Ernandor. Sigam-nos e terão abrigo em Palari Kadun, a
morada dos unicórnios.
Faldan ficou maravilhado em ver seus parentes mais nobres. Os elfos
dourados eram citados em toda Kendal, porém a grande maioria só os
conhecia das histórias dos antigos. Ruprest, no entanto, não gostou da idéia
de ter mais elfos como companhia.
A cada passo, a floresta se tornava mais exuberante e o frio parecia ter
ficado para trás. Logo, um grupo de unicórnios juntou-se ao grupo, para a
alegria de Jade e Thala, que continuavam admiradas com os animais.
Depois de caminharem por alguns minutos, a comitiva chegou a uma
cascata de seis curvos de altura, que jogava seu véu sobre um lago de águas
cristalinas, onde peixes vermelhos nadavam às centenas. Os elfos que
seguiam à frente avançaram pelo lago, até que a água ficasse na altura de
seus joelhos. Drajha, o líder do grupo, levou uma corneta à boca e a tocou.
O instrumento era feito do chifre de um almíscar, adornado com detalhes
em alpaca e que emitia um som majestoso, ressoando por toda a floresta.
Ao toque da corneta, as águas do lago se dividiram, formando um
caminho seco até a cascata. O grupo percorreu a trilha e parou novamente à
frente da queda d’água. Drajha tocou a corneta pela segunda vez e o véu que
caía límpido sobre o lago cessou, revelando a entrada de uma caverna.
Os unicórnios dispararam para dentro da caverna, sumindo no breu. Um
dos elfos dourados elevou uma tocha que, mesmo sem ser tocada por
nenhuma flama, emanou uma intensa luz branca, suficiente para iluminar toda
a área.
123
O Draconiano
Ao longe, era possível ver os unicórnios esperando ansiosos a chegada
do grupo. A uns quarenta passos da boca da gruta ficava uma porta enorme,
inteiramente entalhada em pedra mármore e ornamentada com desenhos de
folhas douradas.
Drajha, mais uma vez tocou sua corneta, mas desta vez, num clangor
mais duradouro e iminente. Logo a grande porta se abriu, deixando Patton e
seus companheiros sem fôlego, de tão deslumbrados. Antes de entrar, Ruprest
resmungou em voz baixa:
Elfos que vivem em cavernas, atrás de portas trabalhadas em pedra
mármore! Onde vamos parar?
124
O Draconiano
P
alari Kadun era o refúgio dos unicórnios. Um lugar mágico de beleza
ímpar. Além da porta de mármore branco, um imenso salão reservava
um luxo indescritível. O piso era todo trabalhado em granito claro, com
desenhos e runas élficas que contavam a história daquele povo desde sua
gênese. As paredes eram enfeitadas com tapeçaria e um olor de pinho pairava
no ar.
O saguão era ainda sustentado por pilastras sextavadas, finamente
construídas em mármore branco e adornadas com detalhes dourados, assim
como a grande porta pela qual haviam entrado.
Uma dúzia de elfos aguardava no salão. Todos vestidos em roupas
leves, variando em tons de verde. Um deles, o que aparentava maior idade,
tinha uma coruja branca no ombro esquerdo. Alto e robusto, sorriu ao ver o
grupo chegar.
- Bem vindos a Palari Kadun. É uma honra tê-los em nossa companhia.
Vejo que nos traz notícias, meu caro Alvarion. - disse ele, se dirigindo ao druida
Ernandor.
- Sim, Pandel. E as notícias que trago não são nada boas. O que
temíamos há muito tempo, finalmente aconteceu. Os orks estão de volta e ao
que tudo indica, os homens do oeste estão aliados a eles. Phalanx caiu e
Gowern foi massacrada. O Duque de Locksun foi informado por Patton e seus
companheiros, que me acompanharam nesta jornada. - respondeu o druida.
- A rainha irá vê-los agora. - acrescentou Fabrion, um outro elfo, mais
esguio e franzino que aguardava ao lado de Pandel.
125
O Draconiano
Patton e seus companheiros permaneciam calados, mesmo tendo
milhares de perguntas a fazer. A beleza do lugar os deixava atônitos e mesmo
Ruprest, que estava acostumado com o luxo dos palácios de Driev, ficara
admirado.
Um portal prateado se abrira por de trás dos elfos e por mais que a
magnitude do saguão tomasse a atenção dos companheiros, a visão que
tiveram era mais avassaladora e desconcertante do que qualquer outra: um
majestoso jardim, onde elfos e unicórnios passeavam descontraídos, se
revelou. Nada podia ser comparado àquele jardim. Patton se lembrou do jardim
onde estiveram dias atrás, mas nada era tão esplêndido. As cores pareciam ter
mais contraste e a sensação de paz dominava as almas dos viajantes. Ali, o
cheiro de eucalipto era ainda mais profundo e se misturava ao odor de flores
que brotavam em todos os cantos.
126
O Draconiano
Alguns elfos tocavam em cítaras e gaitas uma melodia harmoniosa e
agradável. Pandel andava a frente e era seguido pelos forasteiros. Muitos elfos
pararam o que faziam para observá-los.
Após andarem em silêncio por cerca de um cere, o grupo chegou a um
campo onde uma bela mulher agraciava o unicórnio que fora salvo pelos
estrangeiros.
Quando a comitiva se aproximou, a mulher virou-se. Tinha o cabelo
dourado como o sol da tarde e um rosto tão perfeito que todos se
surpreenderam ao perceber que não se tratava de uma elfa. Ao que parecia,
ela era da raça dos homens, mas sua formosura ultrapassava a beleza e graça
dos elfos. Com uma voz doce, ela saudou os recém-chegados:
- Sejam bem-vindos à Palari Kadun. Eu sou Thalien e sou imensamente
grata por terem salvado o unicórnio. Como eu já previa. Vocês são da comitiva
liderada pelo iluminado. Nós aguardávamos a sua chegada, Patton.
Todos olharam intrigados para Patton, mas o rapaz parecia tão surpreso
quanto seus companheiros.
- Sabia de nossa chegada? Perguntou ele.
- Sim, a floresta me disse que o escolhido estava a caminho. Precisamos
conversar Patton. Mas não agora.
Ruprest olhou para o amigo com um ar de cumplicidade. Pela expressão
do ruivo, os viajantes perceberam que, apesar de tudo, Patton escondia algo
de muito importante. Alguma coisa sobre seu passado que ele tentava
esconder ou esquecer.
- Mas depois da refeição. - continuou a linda mulher - Agora, vamos
cear. – convidou ela.
Um grupo de elfos conduziu Patton e seus companheiros a uma imensa
mesa em forma de ferradura, que se postava em baixo de árvores altivas e
robustas, no jardim.
127
O Draconiano
Thalien possuía um lugar de destaque e fez questão de que Patton
sentasse a seu lado, o que fez Alya se zangar. Uma elfa trouxe uma bacia com
água para que os viajantes pudessem lavar as mãos e o rosto.
Cerca de cinqüenta elfos estavam sentados à mesa e quando os
primeiros pratos foram chegando, a lua já brilhava branca no céu. Carne de
Faisão e cogumelos ao mel, pães recheados com creme de queijo de cabra e
muito vinho de uvas rubras faziam o cardápio do banquete.
Pandel e Fabrion sentaram-se perto de Faldan. Eles o olhavam com
certa curiosidade.
- De que família de elfos é você, Faldan? - perguntou Pandel.
Faldan acabou de mastigar um pedaço de pão e disse:
- Na verdade sou um meio-elfo. Minha mãe, Elaniel, era elfa de Kendal.
Meu pai, Galarrin, o Amigo dos elfos, era da raça dos homens. Por isso sou
mais alto do que os elfos de Kendal.
- É curioso! Os elfos de Kendal têm o cabelo escuro como o seu, mas
em sua maioria são mais baixos e franzinos que você. Por um momento pensei
que houvesse mais elfos dourados espalhados por Enthär. - disse Fabrion.
- Meu pai era alto e esbelto. Uma beleza quase élfica. Por isso me
pareço com a linhagem real. Tenho a graça e agilidade dos elfos e a
resistência dos homens. E posso comer muito mais que vocês. - disse Faldan
se empanturrando com as especialidades que serviam.
Ehrin conversava com outros elfos. Serger e seu irmão Macant, grandes
guerreiros e tão unidos como a pele e a carne. Em batalhas dos tempos
antigos, estavam sempre nas linhas de frente e o rapaz se maravilhava ao
ouvi-los contarem seus feitos de bravura.
Outro que gostava de contar vantagens era Aleyan, tão habilidoso
quanto arrogante. Gabava-se de que as élfas de Palari Kadun o achavam o
mais belo entre os elfos. Ernandor era seu amigo de longa data, mas
128
O Draconiano
reconhecia a personalidade pernóstica daquele elfo. Varlens logo se enfureceu
ao perceber que Thala dispensava alguma atenção para aquele elfo.
Enfim, depois de servida a sobremesa, um manjar delicioso que Faldan
fez questão de repetir inúmeras vezes, um silêncio profundo se fez. Do alto da
verde copa de uma árvore, uma ave alva, com cauda de penas longas como as
de um pavão, bateu suas asas e alçou vôo, pousando no centro das mesas. Os
elfos, calados, esperavam ansiosos por algo que os estrangeiros sequer
podiam imaginar.
A Rainha Thalien se levantou de seu assento e acenou como num sinal
de boas vindas. Em retribuição, o pássaro abriu suas longas asas e baixou
levemente a pequena cabeça. Logo após o gesto, a ave começou a cantar.
Seu canto não parecia com o de nenhum outro pássaro, mais parecia com o
canto de uma soprano que nunca desafina e muito menos se cansa.
A melodia invadia corpo e alma dos presentes. Irradiava ternura e ao
passo que os tons se tornavam mais agudos e longos, uma luminosidade
emanava do animal. Por fim, numa nota profunda, um clarão quase cegou aos
espectadores. O espetáculo pirotécnico produzido pelo pássaro faria inveja aos
fogos de artifício de Dracon e o som daquele canto deixaria com inveja o mais
talentoso dos bardos de Kendal.
Todos na mesa aplaudiram com entusiasmo. Alya estava arrepiada e
não conseguia segurar as lágrimas. Num gesto voluptuoso, a menina abraçou
a cintura de Patton e encostou sua cabeça ao peito do rapaz. O jovem
aventureiro retribuiu o abraço e afagou suavemente sua cabeça.
O pássaro mais uma vez alçou vôo e se perdeu em meio às árvores.
Thalien
encerrou
o
banquete
e
pediu
para
que
os
convidados
a
acompanhassem. A Rainha os levou para dentro de Palari Kadun, onde
ficavam os aposentos e a sala do trono.
Rina, Alya e Lavia ficaram num cômodo ao lado direito de um corredor.
Lá encontraram vestidos brancos de seda muito finas, quase transparentes em
cima das três grandes camas recém-arrumadas para recebê-las. Thala ficou
129
O Draconiano
em um quarto com o bárbaro Varlens e também encontrou um vestido em cima
da cama.
Patton e Ruprest dividiram um cômodo do lado esquerdo e também
receberam roupas, não de seda, mas de lã. Ernandor foi para o cômodo no
qual ele ocupava sempre que se hospedava no lar dos Elfos Dourados e um
outro foi dividido por Faldan e Ehrin. Todos foram agraciados com roupas
novas.
Patton se lavou e vestiu suas novas roupas. Como se soubesse que o
aventureiro estava pronto, Fabrion o chamou para ter uma conversa com a
Rainha Thalien. O rapaz logo se animou e seguiu o elfo de volta até o jardim
onde a bela dama o esperava em companhia apenas de alguns poucos
unicórnios.
Fabrion se retirou e os dois ficaram a sós. A rainha tinha um rosto jovem,
que parecia não ter completado vinte anos, mas seu olhar transbordava
sabedoria.
- Aproxime-se Patton, filho de Raikar. Não temas por minhas palavras,
pois elas nada dirão além do que tu já não sabes. Só te direi o que tu sabes e
foge.
- De nada fujo, minha rainha. Apenas não acredito em lendas e
superstições. Acredito na força do homem que luta com suas próprias mãos e
vence. Não em palavras do povo que buscam esperança em terceiros. - falou
ele, secamente.
- Acreditas na perseverança e na fibra de uma pessoa e eu te digo,
nunca deixe de acreditar nisto, pois a força de um homem não está em seus
músculos, mas em sua alma. Porém, algumas pessoas são tão especiais que
têm um destino reservado pelos deuses. Acredite, tu és especial e por isso,
outros o seguirão. Tu tens um papel na história de Enthär e não deve
negligenciá-lo.
- Meu papel é igual ao de outro soldado qualquer. Devo lutar no fronte
de batalha e ajudar a deter o inimigo. Assim como fez meu pai.
130
O Draconiano
- Teu pai não era um soldado. Raikar era um líder. Todos ouviam suas
palavras de sabedoria. Sua força estava em seus ensinamentos e, ao seu
modo, ele cumpriu sua missão. Sabia que sobre ele caía um duro fardo, mas
em nenhum momento recuou frente ao destino.
- Mas Raikar tinha minha mãe, que o amparava nos momentos difíceis.
Foi criado entre os cavaleiros e educado para suportar tal fardo. Eu, no
entanto, passei toda minha vida fugindo e o que aprendi, ou foi Ruprest quem
me ensinou, ou foram aprendidos nos raros encontros com a hoste de meu pai.
- Se Raikar tinha Lady Juwen, tu logo terás uma mulher que se mostrará
mais forte do que algum dia tu pensaste encontrar. E, acredite Patton, ela já te
ama e será tua companheira.
Os olhos de Patton brilharam, mas ele parecia confuso. Ele deu mais um
passo à frente e abaixou-se:
- Então eu rogo para que me responda. Serei capaz?
- Tu és capaz. - disse Thalien calmamente.
- Sou um homem, um guerreiro. - insistiu Patton.
- Não só um homem, mas um líder. Aquele para quem os deuses
reservaram uma tarefa difícil. Um fardo amargo.
- Ainda assim, apenas um homem. Se me cortares, acaso não
sangrarei? Ou se me traíres, não chorarei? Esperam do escolhido que ele
cuspa fogo nas legiões invasoras. Que mate dragões com a força de seu
pensamento. Eu não sou aquele que o povo espera.
- Em nenhum momento eu disse que tu eras um deus, um arauto, ou um
avatar. Disse que és especial entre os teus iguais. Um homem, um guerreiro,
mas mesmo assim, o escolhido para liderar os reinos do oriente contra os
exércitos do mal. Não digo que teu destino te levará às glórias e à vitória.
Talvez, o preço do teu carma seja a tua ruína. Mas se não aceitares tua
demanda, a única certeza que tenho é que elfos, homens e anões sucumbirão
131
O Draconiano
sobre o punho pesado do Oeste. E se viveres para ver o mundo, depois da
última batalha, irá sentar-se desolado e chorar ao notar que tudo e todos a
quem ama já se foram sem que tu ao menos tenhas tentado. Aí sim, sentirei
pena de ti, ao ver teu coração gelar e parar de bater, tornando-se uma rocha
inerte e sua alma se esvair, deixando-te desamparado.
Ao ouvir as palavras de Thalien, Patton ficou desnorteado. Aos olhos da
rainha, parecia uma criança perdida, sem amparo. Por algumas vezes desejou
chorar, mas seu orgulho era mais forte que as lágrimas. Ainda assim, a rainha
dourada falou mais uma vez:
132
O Draconiano
- Tua alma é livre para escolher. Mas siga teu coração, pois ele é valente
e virtuoso e te guiará à melhor escolha. Agora vá, durma e descanse. Amanhã
o sol nascerá quente e tu poderás botar teus pensamentos em dia.
133
O Draconiano
E
ra cedo quando Patton acordou, com batidas na porta de seu
aposento. Ele esfregou os olhos, levantou-se da cama e andou em
direção à porta. Novamente bateram. O rapaz se apressou, puxou a
tranca, abriu a porta e deparou-se com Ernandor.
- Patton, você precisa partir logo. A Rainha Dourada afirma ter tido um
mau presságio. Sonhou com a águia negra do ocidente usurpando os reinos
pacíficos de Enthär. E disse que sua presença à frente do exército de Locksun
é primordial para o desfecho desta batalha.
- Vou acordar Ruprest e partiremos o mais rápido possível - respondeu o
aventureiro.
- A Rainha os espera na sala do trono. Acordarei os outros.
Ernandor partiu e Patton fechou a porta. Ele olhou para o corpo obeso
do amigo que dormia profundamente. Pensou em como seria difícil acordá-lo,
mas para sua surpresa, de repente o ruivo se levantou em um só movimento.
Parecia ter sido picado por uma cobra ou algo do tipo.
- Temos que partir! Exclamou o caçador-de-bruxas, ainda com os olhos
fechados, mas já de pé.
- Que bicho te mordeu, meu amigo? - inquiriu Patton, com um largo
sorriso nos lábios.
- Tive uma visão. Precisamos partir antes que seja tarde. Sua presença
é necessária no fronte de batalha, rapaz - respondeu o velho.
134
O Draconiano
Patton ficou boquiaberto com as palavras do amigo. Pensou em dizer
algo, mas preferiu calar-se e se vestir. Ruprest se trocou rapidamente e em
alguns momentos, os dois já estavam nos corredores de Palari Kadun, rumo à
sala do trono, escoltados por Fabrion.
- Estais preparado para uma nova batalha, velho? Perguntou Patton,
franzindo a testa.
- Na verdade, nunca se está preparado para a guerra, mas, como dizem
os anões de Driev: Não espere por nada, esteja preparado para tudo. Existem
homens talhados para a guerra, como foi seu pai e como é você. Mas cada
batalha é diferente de todas as outras que já foram travadas antes. Teu pai
sempre me perguntava antes das batalhas se eu estava com medo. Eu sempre
menti. Dizia que não, mas ele sempre respondia sorrindo: “Se tu não estás,
então eu estou por nós dois.”
Os dois chegaram ao portal que dava acesso à sala do trono. Dois elfos
guardavam a passagem com lanças, mas ao notarem a presença de Patton e
Ruprest, abriram prontamente o portal.
Na sala do trono estavam Varlens, Ehrin e Faldan ao lado direito da
Rainha Dourada. Do outro lado, Ernandor e Pandel - todos com uma expressão
preocupada. Ruprest e Patton seguiram até perto da rainha e fizeram uma
reverência em sinal de respeito.
- Você precisa partir, Patton. A situação se agrava e é preciso costurar
uma aliança entre os Lordes de Nordwil. Todos são muito individualistas e
prepotentes. Eles precisam de um líder que os una no campo de batalha.
- Mas este é o papel do Rei, majestade. Ele deve liderar os Lordes de
Nordwil numa guerra contra o ocidente.
- O Rei está fraco e seu filho, numa missão em Dracon. Além do que,
seria impossível mover as tropas do sul para um confronto direto com o inimigo
no norte. As fronteiras do oeste ficariam desprotegidas e Nordwil poderia cair
em um só golpe. Não há tempo a perder.
135
O Draconiano
- Está certo, partiremos assim que me despedir de Alya. Creio que
Varlens também quer se despedir de Thala.
- Não - disse o bárbaro olhando para baixo. - Eu fiz um juramento para
Stool. Disse que cuidaria de Thala e Rina com a minha vida. Meu compromisso
não é com o povo do sul, meu dever é para com o meu grande amigo que não
está mais entre nós - continuou ele, olhando fixamente para Patton.
- Se tu pensas assim, não irei te recriminar. Não concordo, mas entendo
tua posição. Embora eu pense que tu poderia ser mais útil no fronte e que
Thala e Rina estarão a salvo aqui em Palari Kadun, não vou pedir-te que nos
acompanhe.
O bárbaro baixou mais uma vez a cabeça como se estivesse
envergonhado, mas manteve sua decisão. Faldan olhou para Patton e sorriu
com um ar de cumplicidade. Parecia ansioso para falar algo.
- Entre os demais, alguém irá conosco para a guerra? Perguntou Patton.
- Enfim a ação. Pode contar com o meu arco e a minha coragem respondeu rapidamente o elfo.
Patton deu um sorriso e viu a felicidade do elfo ao saber que iriam para
uma batalha. O rapaz notou que o entusiasmo do elfo se devia ao fato de que
os inimigos eram orks e o povo do oeste, inimigos seculares do povo de
Kendal.
Ehrin estava acanhado e não se pronunciou de pronto. - E você, garoto?
Quer se juntar a nós?- perguntou Ruprest, num tom calmo.
- Se o senhor me deixar ir, estarei às ordens para qualquer missão. Fico
feliz que tenham me chamado.
- Pois então iremos o mais rápido possível - tornou Ruprest.
Nesse momento, Aleyan e Serger entravam pelo portal, escoltando Rina,
Thala e Alya, que trazia a tristeza em seu rosto. A menina havia recebido a
notícia de que Patton iria partir e temia pela vida do rapaz. Ela abraçou Patton,
136
O Draconiano
mas não disse nem uma palavra. Então Patton a beijou com uma ternura que
ele mesmo desconhecia.
- Não te preocupes, Alya. Eu disse que te protegeria e farei isto.
Todos olhavam comovidos para o casal, mas Faldan fez com que, por
alguns instantes, as atenções se voltassem para ele. O elfo tirou o falcão de
madeira de sua sacola e ofereceu-o à Rainha. Thalien esticou o braço para
frente e para espanto de todos, o pássaro mais uma vez ganhou vida e bateu
suas asas, alçando vôo até os braços da Senhora dos Unicórnios.
- Aceite este presente, minha Senhora. Eu creio que ele será um
excelente guardião para seus unicórnios.
- E será, Faldan - disse ela com sua voz doce. O Falcão já mostrou seu
valor. Ou o valor estaria no coração daquele que o possuía?- continuou ela,
sorrindo.
Os aventureiros se despediram dos que ficavam e agradeceram a
generosidade da Rainha e a hospitalidade recebida naquele lugar.
- Vão e lutem com seus corações. Certamente essa não será a última
das batalhas em Enthär, mas seu resultado será o ponto decisivo para o
destino das raças que agora habitam este mundo. Por enquanto, os elfos
dourados permanecerão ocultos, mas estarão prontos para quando a grande
hora chegar. Que os deuses os abençoem.
Patton, Ruprest, Ehrin e Faldan foram conduzidos por Fabrion e Pandel
para a saída de Palari Kadun, onde quatro unicórnios e quatro cavalos estavam
prontos para levá-los de volta a Locksun.
- Vão e galopem na velocidade dos ventos. Os unicórnios os levarão até
saírem de Auhin Daeur e enquanto estiverem com eles, os cavalos não se
cansarão. Os unicórnios devem ficar ocultos. Mas até a estalagem de Paira,
eles não correm perigo.
137
O Draconiano
Os aventureiros seguiram viagem durante todo o dia e a noite caía
rapidamente na floresta. Os unicórnios corriam pelas trilhas da mata, mais
rápido do que qualquer garanhão de Swannpala. A força de suas patas só
podia ser comparada com a dos cavalos que serviam os Cavaleiros de Dracon.
Quando a noite chegou de fato, apenas Faldan conseguia enxergar o
caminho. Sua herança élfica o permitia ver tão bem de noite quanto de dia, e
ele logo tomou a dianteira do grupo.
Os unicórnios também pareciam enxergar em meio ao breu, mas
Ruprest, notando que em alguns trechos os galhos das árvores passavam
muito perto de sua cabeleira ruiva, pediu para que a viagem fosse interrompida
por alguns momentos, para que ele pudesse acender uma tocha.
Com a lanterna acesa, o caminho ficou bem mais visível. O grupo seguiu
rumo ao sul durante toda noite, parando eventualmente para trocar a tocha. O
galope dos unicórnios era macio e não cansava os aventureiros. Tampouco,
ficavam cansados os cavalos que os acompanhavam. Um encanto, emanado
pelas criaturas da floresta, os faziam galopar sem que a fadiga os alcançasse.
Quando finalmente o primeiro raio de sol brilhou por entre as árvores, a
floresta dos unicórnios havia chegado ao fim. A velocidade das montarias era
tão grande que com um dia de viagem os aventureiros já estavam próximos à
estalagem de Paira. Faldan desceu de sua montaria e pediu para que os outros
também o fizessem.
Todos desmontaram dos unicórnios e os liberaram para que voltassem
para dentro da floresta. Depois, montaram nos cavalos, que apesar de terem
cavalgado a noite inteira, estavam prontos para mais um dia inteiro de galope.
Os quatro passaram pela "Árvore de Hogan", estalagem de Paira, mas
não pararam. Seguiram rápidos, como fora pedido, e antes das oito horas da
manhã avistavam os majestosos muros de Locksun. Uma forte guarda cercava
a cidade, mas ao notarem a presença de Patton, os soldados abriram caminho
para que a comitiva passasse.
Patton seguiu direto para a sala de guerra, onde o duque esperava aflito.
138
O Draconiano
- Patton!!! Ainda bem que chegaste. Como está a Duquesa? Lavia está
bem?- perguntou ele.
- Se essa é tua preocupação, anime-se. Lady Lavia está em segurança.
Como disse Ernandor, nem em Dracon ela estaria tão protegida. Apesar de
que, se Ruprest estiver certo, Dracon logo será um lugar perigoso.
- O que soube no norte, que meus mensageiros ainda não me
informaram? , questionou o nobre.
Patton baixou os olhos e não disse mais nenhuma palavra. Depois fitou
o duque e perguntou sobre a movimentação das tropas.
- O Rei Endor recebeu nosso Falcão Mensageiro. Ele nos enviou uma
resposta e as notícias não são nada esperançosas. O Rei diz que suas tropas
estão seguindo para o sul do Vaërn, onde um exército do oeste marcha
rapidamente. As tropas de Nordwil irão se juntar com os pelotões de Salty. O
exército inimigo devastou Wallyng, em Kalpang e deverá cruzar o Rio Keld nos
próximos dias. Ele conta com a nossa resistência ao sul do Rio Mayda, nos
descampados centrais. Diz também que já enviou um pequeno contingente
para nos fortalecer e que mandou falcões para Ka e para Dracon, onde seu
filho, Enlor, está em missão diplomática.
- Como a Senhora Thalien nos advertiu. Espero que o Rei nos mande
pelo menos um milheiro de cavaleiros, e que eles cheguem logo - disse Patton.
Os olhos de Ruprest perderam o brilho e seu rosto se abateu. Pela
primeira vez, desde o dia em que encontraram os orks, ao norte do Vaërn, o
velho caçador-de-bruxas expôs abertamente seus pensamentos.
- Se eles invadiram Walling, ao sul e marcharam rumo ao Keld,
certamente querem neutralizar Nordwil. Mas minha experiência diz que o
objetivo do inimigo é Dracon. O símbolo do oeste mudou e, agora, a águia
negra tem duas cabeças. Mas o mal que controla este exército é o mesmo que
o controlava anos atrás.
139
O Draconiano
- Mas o inimigo foi destruído na Grande Guerra das Raças. O leste
triunfou sobre as raças cruéis do oeste - disse o duque.
Ruprest levantou-se e estava transtornado. Bateu com o punho cerrado
sobre a mesa de reuniões e fitou o nobre com um olhar furioso.
- Debelado - gritou ele, com uma voz firme. Mas não destruído. Muitos
orks foram mortos e os sobreviventes banidos. Nenhuma das criaturas
malignas do ocidente foi poupada do grande expurgo. Mas Lorde Gwilber, o
campeão do oeste, não padeceu. Seus joelhos não se curvaram nem perante
Raicar, o Primeiro Cavaleiro.
Quando o nome de Raicar foi citado por Ruprest, os olhos de Patton
brilharam e ele quis falar. Mas Ruprest o impediu, pois era um erudito dos
assuntos da Guerra, e ainda tinha muito o que expor.
- Mesmo com seus exércitos vencidos, Lorde Gwilber permaneceu de pé
e com sua lâmina negra. Feriu mortalmente dezenas de bons guerreiros. Na
verdade, o maldito só partiu para as terras ocidentais, quando foi confrontado
pelos Draconianos, todos os dez.
- Ainda assim, no caminho onde passou, espalhou o caos e a destruição.
E dizem: "onde seu corcel negro pisou, nem a grama voltou a crescer".
- Mas os povos do leste cantam sua vitória em canções históricas.
Homens, elfos e anões. Todos bravateiam a destruição do mal vindo do oeste comentou Andrew.
- Muitos bravateiam vitórias, mas não os anões de Driev, que sempre
sugeriram uma incursão às terras do oeste. Isto é, antes da traição dos elfos.
Mas trata-se de uma outra história.
- O que mais me aterroriza é saber que Gwilber é apenas um
comandante. O verdadeiro senhor do oeste nunca se revelou. Seus planos
foram frustrados uma vez, mas depois disso ele ainda triunfou, tramando a
morte de Raicar, através de seu assassino yusher, Suba Kane.
140
O Draconiano
- Então é Gwilber quem comanda este exército invasor?- questionou
Byron.
- Não. Em Phalanx vimos o comandante das tropas e ele não era o
Lâmina Negra. Era imponente e dominava muito bem a massa de selvagens,
mas não era grande como Gwilber.
- Outra pergunta me perturba a mente. Se o destino é Dracon, porque
não atravessaram a floresta dos lobos, partindo direto para o sul de Silvarion e
atravessando o canal de Solor? - indagou novamente o nobre.
- Os anões, meu caro. Sempre vigilantes e atentos às mudanças do
mundo - falou o ruivo com um sorriso orgulhoso - Driev, o reino dos anões, tem
uma aliança com o senhor daquelas terras. Eles mantêm vigilância constante
naquela floresta. Por sua vez, os lobos cinzentos servem aos anões como leais
montarias. Ali, meu senhor, nem mesmo o próprio Gwilber, no comando de dez
mil orks, ousaria passar. Do contrário sofreria a pior e mais dolorosa de suas
derrotas.
Ruprest respirou fundo e sentou-se novamente à mesa. Olhou para
Patton com um ar aprobativo. Patton retomou a palavra:
- De quantos soldados dispomos neste momento?
O Lorde olhou para o conselheiro Andrew e este se aproximou de
Patton.
- Se deixar-mos cinco centenas de soldados na cidade, para protegê-la,
teremos quinhentos cavaleiros, que já estão às margens do Mayda esperando
suas ordens, mais mil e quinhentos soldados de infantaria e trezentos
arqueiros, que nesse momento estão marchando para se encontrarem com os
cavaleiros. Devem chegar dentro de mais um dia.
- E a Guarda Pretora? Para onde foram mandados? Perguntou Ruprest.
- A Guarda permanece na cidade para manter a ordem - disse Andrew.
141
O Draconiano
- Então, além de seus deveres para com a ordem do ducado, eles
protegerão a cidade em um possível cerco. As cinco centenas de homens que
foram deixados aqui para a defesa irão para o Mayda, montados nos cavalos
da guarda. Assim chegarão o quanto antes ao encontro dos cavaleiros.
Locksun fez que sim com a cabeça e Andrew partiu para cumprir as
ordens. O clima estava tenso na cidade e o duque tinha um olhar melancólico.
Ele havia deixado de lado seu casamento para se dedicar aos assuntos do
reino. Mas agora, mesmo com tanto afinco, ele via que seu esforço tinha sido
em vão. Sentia-se culpado por ter sido pego desprevenido e por ter que
recorrer ao jovem Patton para organizar as defesas de Swannpala.
- Patton, apesar de nossas diferenças, eu confio na tua competência.
Portanto, tu serás reincorporado ao exército de Locksun como Senhor da
Guerra. Vamos esperar que as tropas se agrupem no pátio e passaremos em
revista às tropas.
Patton, Ruprest e Lorde Locksun saíram da sala da reunião. Locksun
pediu para que Patton ficasse a vontade para circular pelos corredores do
palácio e disse que iria descansar por alguns minutos.
O Lorde partiu e os dois companheiros foram ao encontro de Faldan e
Ehrin, que esperavam ansiosos para saberem das novidades.
Os quatro foram mais uma vez para armoaria e se prepararam para a
batalha. Faldan trocou o arco que usava. Desta vez, ele pegara um arco longo,
quase do seu tamanho, mas não abandonou sua aljava com flechas rúnicas.
Prendeu seu cabelo como um rabo de cavalo e colocou um elmo mais para que
este lhe tapasse as orelhas do que por segurança. Apesar de saber dos riscos
da guerra, o meio-elfo novamente não pegou armadura alguma.
Ruprest trocou o gibão de couro que vestia por uma malha de anéis e
uma couraça de metal, um conjunto de armaduras mais apropriado para a
batalha. Prendeu as madeixas ruivas, como Faldan e colocou um bacinete
prateado na cabeça.
142
O Draconiano
Patton se preocupou primeiro em armar Ehrin. O rapaz tinha ainda
pouco conhecimento em batalhas e o amigo mandou-o vestir apenas uma cota
de anéis, sem a couraça, pois ele ainda tinha o físico delgado e tal armadura
iria prejudicá-lo em sua movimentação em campo. Patton testou algumas
espadas, para ver qual delas estava mais balanceada e depois de algumas
tentativas escolheu uma de lâmina escura com o cabo trabalhado em madeira.
Ehrin pegou um escudo pentagonal e olhou para Patton buscando aprovação.
- Estás preparado para uma batalha - disse o Senhor da Guerra, com um
largo sorriso. Agora vamos ver como se porta na hora do choque com o
inimigo.
O rapaz agradeceu ao amigo e observou seus passos. Patton não trocou
suas arma, nem sua armadura. Continuava vestindo a lóriga prateada, mas deu
alguns passos até chegar a um armário. Abrindo as portas do armário, o
aventureiro retirou um uniforme negro que tinha, no peito, um brasão de uma
cabeça de lobo. Aquele era o brasão da cidade e o uniforme era o do Senhor
da Guerra do Ducado de Locksun. Patton o vestiu e todos perceberam que sua
postura mudara. Imponente dentro do uniforme, ele parecia muito mais um
nobre do que o próprio duque. Ruprest lembrou-se de seu amigo Raicar.
Pensou nos dias de glória dos cavaleiros de Dracon e nos anos de guerra em
que passou ao lado do Primeiro Cavaleiro.
Armados e paramentados, os quatro seguiram para o pátio, onde cinco
pelotões, de uma centena de homens cada, se concentravam. Ruprest, Faldan
e Ehrin ganharam uniformes do exército. Os uniformes tinham o brasão do
lobo, mas não eram inteiramente negros, como o de Patton. Tinham uma larga
listra amarela no meio do peito.
Quando Patton passou pelas tropas, os ânimos dos soldados pareciam
se elevar. Quase todos ali o conheciam e muitos o admiravam. Ao chegar ao
fim das fileiras, Patton se apresentou aos capitães e se posicionou para
esperar o Duque.
143
O Draconiano
Ruprest ficou ao seu lado, mas Ehrin e Faldan se postaram em meio às
fileiras. O sol estava forte, apesar do vento frio que fazia tremular as flâmulas
amarelo e negras que exibiam a marca do lobo.
Alguns minutos depois do Senhor da Guerra chegar, foi ouvido um
grande clangor que ecoou por toda a cidade. Eram as cornetas dos arautos
que anunciavam a chegada do Lorde Byron, Duque de Locksun.
O nobre fez o mesmo percurso que Patton fizera minutos antes. Porém,
enquanto Byron passava, rufos de tambores se repetiam atrás dele. Ele vinha
com seus dois conselheiros, Rolin e Andrew de um lado, e seu Comandante de
Campo, Janô, do outro.
144
O Draconiano
Patton viu Janô ao longe e se sentiu mais confiante, pois conhecia a
habilidade daquele guerreiro na arte da batalha. O comandante também não
tinha mais que trinta invernos, mas era experiente e sabia dominar as massas.
- Prontos para partir, Patton? Argüiu o duque.
- O quanto antes, meu Senhor. A espera neste sol quente só irá deixar
os soldados mais angustiados e apreensivos.
- Bem recomendado, jovem Patton. É bom saber que retornas à cidade
em tempos tão difíceis - disse Janô.
O Lorde deixou Andrew como administrador do ducado e os soldados
montaram nos cavalos da guarda pretora para partirem. Eram cavalos do norte,
montanheses do tipo Nordskog, conhecidos por sua pelagem abundante e
comparados em força com os grandes cavalos de guerra Suhrd, criados em
Dracon para servir os cavaleiros.
Partiram em fileiras, dois a dois. Na frente iam dois pares de cavaleiros,
seguidos do Duque e Janô. Logo atrás, vinham Patton e Ruprest. Faldan e
Ehrin seguiam juntos na terceira companhia, liderada por Yurgin, um capitão
esguio vindo de Phalanx que se estabelecera na cidade há anos e custava a
acreditar na tomada de sua cidade natal.
O exército alternava o galope e o trote pelas estradas do ducado. O Rio
Mayda era extenso, mas eles planejavam atravessá-lo perto de Ka, onde
deveriam somar forças com as tropas daquele ducado.
Quando a noite chegou, o Duque ordenou que fosse montado
acampamento e que fossem servidas comida e bebida aos soldados. Pão,
frutas e cerveja foram distribuídos entre os guerreiros, com a recomendação
severa de que não deveria haver desperdícios.
Faldan recebeu sua ração com um largo sorriso. Como era de costume,
estava faminto. - Se não quiseres as frutas, amigo Ehrin, pode dá-las a mim.
145
O Draconiano
Comerei de bom grado, para não haver desperdícios - disse o elfo, fazendo
Ehrin dar uma risada. O rapaz deu um pedaço de seu pão ao amigo e disse:
Tome, tu és maior. Precisa se alimentar mais.
Patton e Ruprest comeram e se juntaram ao duque e seus capitães na
tenda onde seria a reunião. Um dos capitães pediu autorização ao Senhor da
Guerra de Locksun para que fossem acesas fogueiras e ele rispidamente
negou-a.
- Nenhuma fogueira deverá ser acesa até que encontremos as tropas de
Ka. O inimigo já tem vantagens suficientes. Não precisam saber de nossa
localização.
O duque então iniciou a reunião dando as notícias que haviam chegado
de seus batedores. Ele cerrou as sobrancelhas e começou a falar:
- Dois de meus batedores chegaram do oeste e trazem informações
vitais. O primeiro vem da foz da ponte de Walky. Diz ele que o exército inimigo
ainda não atravessou o Mayda. A cavalaria e os arqueiros já estão ao sul, mas
a infantaria se demora em atravessar as máquinas de guerra e os
mantimentos. Construíram uma ponte mais larga com as árvores altas de
Linfor, mas são muitas carroças de comida e bebida e as torres para o cerco
são imensas.
- Está correto - perguntou o nobre, olhando para um dos batedores.
- Sim, senhor. E receio que superem nosso número atual de quatro para
um. A maioria e de orks e pequenos homens do oeste, porém entre os da
infantaria estão gigantes trogloditas da raça feroz dos Duhr Kazur, a qual eu só
conhecia por histórias de meu pai, que lutou na Grande Guerra das Raças.
- Tens certeza disto, soldado - argüiu Ruprest assustado. - Tens certeza
de que são gigantes e não os grandes homens do norte?
- Senhor, certeza absoluta, eu tenho de que não são homens do Norte,
pois estes chegam ao máximo de um curvo e meio de altura. Os gigantes de
146
O Draconiano
que falo têm facilmente dois curvos de altura. E parecem ainda mais altos,
quando estão perto dos cruéis yushers do oeste.
- Se ele diz que são na proporção de quatro para um e nós temos quase
três mil homens, isso quer dizer que são mais de doze milhares de soldados. ponderou o nobre, já estarrecido e desesperançado.
- Isso sem contar com as máquinas de guerra. Eles devem ter catapultas
poderosas e ainda contam com a força dos Duhr Kazur. - disse Janô,
desanimado - Só um milagre poderia impedir o avanço inimigo.
- Um milagre, ou uma estratégia bem aplicada. - retrucou Patton Lembrem-se que ainda vamos somar forças com as tropas de Ka, que devem
estar concentradas com pelo menos dois mil homens. E virão ainda, de
Nordwil, um contingente que não deverá ser menor do que mil homens. Mesmo
assim, a desvantagem será de dois para um e muitos de nossos homens,
apesar da disciplina, nunca entraram numa batalha. Serão massacrados pelos
ferozes yushers.
O duque virou-se para um segundo batedor, que esperava para relatar o
que vira na foz do Vaërn.
- Senhor, o que vi foi uma tropa de orks que estão patrulhando a floresta
Linfor. Varrem cada pedaço da mata atrás de espiões ou refugiados
escondidos. Acredito que não tenham me visto, mas me farejaram e sabem
que alguém esteve os observando.
- Bem, essa é a nossa realidade. Precisamos de algo que alegre os
ânimos dos soldados. Algo que os motive e faça-os lutar com uma vontade
insuperável. - opinou Patton - Então, me parece que não há mais nada a se
discutir por esta noite. Amanhã, antes de o sol raiar, o acampamento deverá
ser levantado para seguirmos rumo ao Mayda. Se me permite senhor, indicarei
um pelotão para tomar a vigilância durante a noite e me juntar aos meus
amigos.
147
O Draconiano
O duque deu permissão a Patton e este se retirou, sendo seguido por
Ruprest. Os capitães saíram da tenda e carregavam em suas caras o
semblante do desespero e da desesperança.
Os dois amigos seguiram por entre o acampamento até chegarem à
tenda onde estavam Faldan e Ehrin. Patton chamou o capitão e lhe ordenou
que destacasse dez de seus homens para montar guarda. Depois, sentou-se
ao lado de Faldan e comeu um pedaço de pão.
- Dias cinzentos estão por vir, meu caro elfo. Descanse bem essa noite.
Não sabemos quando iremos descansar de novo. - disse o aventureiro.
Os amigos conversaram por um tempo, mas logo adormeceram.
Dormiram pouco, pois antes da quinta hora, Patton se levantou e ordenou que
o arauto desse o toque da alvorada.
148
O Draconiano
O
acampamento foi desarmado rapidamente enquanto os primeiros
raios de sol começavam a despontar por entre as árvores. Em
menos de uma hora os cavalos já galopavam na estrada, rumo ao
Rio Mayda. O ritmo era o mais veloz possível e logo eles encontraram com os
soldados de infantaria, que marchavam na mesma direção.
Os mil e oitocentos guerreiros com o uniforme de Locksun marchavam
determinados, sem saber o destino que lhes aguardava. No primeiro pelotão
seguia a elite dos infantes. Todos armados com lanças e alabardas de dois
curvos de comprimento.
Quando o duque passou, o comandante da infantaria fez uma reverência
em sinal de respeito. O duque retribuiu o gesto e continuou sua marcha.
Logo se viu as margens do Rio Mayda. Lá, esperavam as cinco
centenas de cavaleiros de Locksun. Ao chegar, a tropa foi recebida com
entusiasmo pelos comandantes da cavalaria. Com o reforço inesperado, a
unidade montada ficava agora mais poderosa e o moral da tropa se elevara.
Pouco tempo se passou até que a infantaria chegasse à concentração
de tropas. O duque e Patton convocaram uma nova reunião e ficou decidido
que os soldados descansariam da marcha e, logo após, fariam uma refeição.
Depois, atravessariam o Mayda e seguiriam para o obelisco de Celemar, ponto
onde se encontrariam com as tropas de Ka.
149
O Draconiano
Enquanto o exército do ducado descansava, Faldan se divertia treinando
sua pontaria com seu arco. Suas flechas eram certeiras e logo uma pequena
multidão se juntou para ver sua habilidade. Todos, principalmente os arqueiros,
comentavam sobre a sua perícia e o comparavam aos elfos do sul. Entretanto,
ele era precavido e nunca revelava suas orelhas pontiagudas, mantendo
sempre o bacinete na cabeça.
Ao meio do dia foi servida uma refeição leve e, uma hora depois, o
acampamento já estava sendo desarmado. Ao todo dois mil e oitocentos
soldados atravessavam o rio Mayda e marchavam nos verdes campos do leste.
À frente seguia o estandarte e ao seu lado, um capitão levava uma dúzia de
enormes cães brancos de pelagem abundante e olhos claros. Eram cães do
norte, parentes dos grandes lobos das montanhas, símbolos do ducado de
Locksun. O dia passou, mas as fileiras não pararam até chegarem ao obelisco,
já em noite avançada.
Durante a noite o obelisco passava quase despercebido, mas Faldan
pôde contemplar o belíssimo legado dos artistas do passado. O colosso media
mais de dez curvos e era inteiramente talhado em pedra negra do sul.
Contrariando as previsões, as tropas do ducado de Ka ainda não haviam
chegado. Patton achou que algum imprevisto poderia ter atrasado a partida dos
soldados e sugeriu ao Lorde Locksun que acampassem ali. No dia seguinte,
mandariam um mensageiro à Ka e descobririam o por quê da demora.
Com o raiar do novo dia, Patton se levantou e ordenou que um
mensageiro fosse até a cidade de Ka e questionasse o atraso no envio das
tropas. Porém, esta missão não foi necessária, pois um cavaleiro vestindo o
uniforme azul celeste de Ka chegou ao acampamento, trazendo consigo uma
carta de Lorde Golthar, duque de Ka.
Logo Byron foi chamado e recebeu a carta. Conforme lia as palavras
escritas naquela mensagem, sua face ia tomando uma nova expressão, até
explodir em fúria.
150
O Draconiano
- Ao Lorde Byron, Duque de Locksun... - começou a ler em voz alta, para
que Patton e Janô ouvissem.
Caro Duque, Ka é uma cidade de comércio e não de guerra. Nossos
homens são marinheiros e não guerreiros. Portanto, tudo o que posso lhe
enviar são meus votos de boa sorte.
- Mentiras deste maldito! - praguejou o duque - Bem sei que este traidor
possui uma bela tropa de soldados treinados e tão disciplinados quanto os de
Locksun.
- Isso sem falar dos cavalos. - comentou Janô - Este ducado tem a fama
de possuir os melhores cavalos de Swannpala. Tanto que, uma vez a cada
ano, o duque envia uma manada destes para Nordwil para serem montados
pelos paladinos do Rei. Será uma perda.
- Não será. - disse Patton - Vamos até Ka falar pessoalmente com Lorde
Golthar. Sem essa ajuda, marcharemos como cordeiros para a boca dos lobos.
O nobre concordou com seu Senhor da Guerra e ordenou a Janô que
ficasse no comando das tropas, enquanto ele iria pessoalmente ao encontro de
Golthar.
Uma pequena comitiva foi formada e rapidamente partiu em sua missão
diplomática. Entre os membros da comitiva estavam Patton, Ruprest, um portaestandarte, carregando o emblema de Locksun, dois cavaleiros e o próprio
duque.
Ka não ficava longe do obelisco e, com cavalos descansados, eles não
demoraram a chegar. Nos burgos e nas pequenas propriedades agrícolas em
volta da cidade, não se via uma pessoa sequer. Até mesmo os animais tinham
sido recolhidos para dentro dos muros da cidade.
151
O Draconiano
Uma unidade, vestindo o uniforme azul celeste da cidade, veio ao
encontro deles. Vinham montados em belos cavalos Suhrd e estavam armados
com lanças longas de cavaleiro.
- Levem-me ao seu senhor. Preciso falar com ele com urgência, soldado.
- disse o Lorde.
- Ele o aguarda no muro da cidade, senhor. - respondeu o soldado,
dando meia volta.
A comitiva seguiu o caminho escoltada pela unidade de reconhecimento
de Ka. Chegaram à muralha e como havia dito o guarda, lá estava Lorde
Golthar, o duque de Ka, ao lado de três de seus conselheiros.
- Que ventos o trazem a minha cidade, Lorde Byron? Não recebeste a
minha mensagem?
- Recebi. É por causa dela que estou aqui. Reúna seus homens e envieos para o obelisco. Estamos atrasados. O inimigo já marcha pelos Campos de
Celemar.
- Parece que não leste direito o meu recado. Não há nenhuma unidade
disponível para esta batalha. Meus homens são poucos e não têm instrução
militar. Somos uma cidade pacífica e não belicosa.
- Viemos em uma missão desesperada, Lorde Golthar. Sem tua ajuda,
todo o reino e talvez, toda Enthär estará condenada ao julgo inimigo. Imploro a
ti que és nobre e leal ao teu Rei, que envie teus homens para o fronte.
- Tu vens me falar de lealdade para com meu Rei, mas onde está ele e
seus valentes paladinos, quando mais precisamos dele? Se mando meus
homens para uma batalha perdida, deixo minhas terras desprotegidas.
- O Rei enviou suas tropas para nos fortificar. Eles nos encontrarão em
alguns dias, nos Campos de Celemar.
- Balela. Byron, você é um tolo. Ele manda menos de mil homens para
que enfrentemos mais de dez mil selvagens. Isto é loucura.
152
O Draconiano
- O Rei tem suas tropas concentradas no sul, numa outra frente de
batalha. - gritou Patton - Se Nordwil cair, toda Swannpala cairá. Se não honra
teu Rei, honre aqueles que lutaram e morreram na Grande Guerra das Raças,
para que tu pudesses ter tuas terras.
- E quem és tu, língua afiada, que fala quando deves se calar? Vejo em
teu peito a cabeça do lobo de Locksun. No entanto, fala como se fosse o
próprio Rei.
Patton olhou para Byron e este esboçou dar uma resposta, mas
percebeu que, de repente as atenções se voltaram para a estrada atrás deles.
Então a pequena comitiva se virou para trás e viu que um cavaleiro vinha na
direção da cidade.
O Cavaleiro montava um belo corcel branco e trazia, ao seu lado, um
outro cavalo selado. Este era majestoso e negro. O guerreiro vinha imponente
e usava uma armadura escura, feita de metal. Em seu peito estava estampado
o Dragonete Alado, símbolo do Reino de Dracon. Sua pele era morena e
nenhum fio de cabelo crescia em sua cabeça.
153
O Draconiano
Ruprest forçou a vista, reconheceu o forasteiro e sorriu. Era Ázaro, o
Barba Bifurcada, um dos dez Draconianos. Em suas mãos estava uma espada
embainhada. Ele se intrometeu na discussão.
- Pois ele é Patton, Filho de Raikar, o primeiro entre os Draconianos. gritou ele em uma voz forte e altiva.
Patton analisou o cavaleiro e reconheceu-o também. Lembrou-se dos
anos de sua infância em que recebera daquele homem, instrução militar. A
barba continuava igual. Negra e bifurcada. Na testa, uma imensa cicatriz,
ganha numa das incontáveis batalhas em que lutou ao lado de Raikar.
- E mesmo que tu vivas a tua vida dez vezes, tu não terás uma fração da
nobreza deste rapaz. - continuou Ázaro.
- Vens com o emblema de Dracon e falas dos draconianos. Mas provas
o que diz? E eu lhe respondo: Não! Queres que eu envie minhas tropas para
uma batalha perdida. Ainda nas mãos de um garoto que me dizes, é filho de
Raikar.
- Dobre a tua língua, gordo insolente. Torno a dizer que, esse é Patton,
filho de Raikar. Preste tuas homenagens a ele, pois ele está acima de teus
títulos.
- Palavras fáceis de serem ditas, mas ainda assim, difíceis de serem
provadas. Agora vens me insultando e me ordenando que preste homenagens
a um garoto. Saiba cavaleiro, que estás no Ducado de Ka e aqui mando eu.
Exceto pelo rei, ninguém mais tem poderes sobre estas terras.
- Se não acreditas em minhas palavras, duque... - gritou mais uma vez
Ázaro - Preste então tuas homenagens à Lâmina de Askai, a herança do
Primeiro Draconiano.
E então, o cavaleiro de Dracon desembainhou a espada que trazia em
sua mão esquerda. E ela emitiu um brilho azul, tão intenso que os soldados de
Ka e a pequena comitiva tiveram que proteger seus olhos com as mãos.
154
O Draconiano
O duque de Ka ficou estarrecido e muito abalado. Aquela era realmente
a Lâmina de Askai e seus soldados olhavam para ela com admiração. Ázaro a
guardou na bainha novamente e se aproximou da comitiva. Ruprest tinha um
sorriso no rosto que há muito não se via. Era amigo do cavaleiro de longa data
e esperava por este dia ansioso.
Os dois se cumprimentaram a moda draconiana, segurando o antebraço
um o do outro. Teriam dado um abraço se estivessem desmontados, mas
Ázaro deu com os calcanhares na barriga do seu corcel e chegou perto de
Patton. Estendendo o braço, lhe entregou a arma mais celebrada de toda
Enthär: a Lâmina de Askai. Uma espada forjada em conjunto por anões e elfos
nas forjas de Kon Bar O e encantada por pelo menos quatro dos druidas das
florestas.
- Guardei essa lâmina por vinte e dois invernos. Agora ela retorna para o
seu verdadeiro dono, o herdeiro de Raikar. Ao seu portador está destinado unir
as raças de Enthär na última batalha.
Patton recebeu a espada e cumprimentou Ázaro à moda draconiana:
- Bom revê-lo, Barba Bifurcada. Parece que os anos foram mais
bondosos contigo do que com o velho Ruprest.
- E este é Tawan, o corcel que lhe servirá até que a guerra acabe. Ele é
da linhagem de Kaimanaw, que serviu seu pai até seus últimos dias. Não
encontrará um cavalo tão veloz e tão forte como este, mesmo que vague por
todo o continente.
Os guardas de Ka estavam indecisos com o fato ocorrido. Estava claro
que o que fora dito ali não era nenhuma mentira. Aquela era a Lâmina de Askai
e aquele era Patton, filho de Raikar. Mas o soberano daquelas terras voltou a
falar e foi taxativo:
- O que tinha a dizer, já foi dito. Agora vão embora e, se tiverem juízo,
voltem para seus lares e protejam suas famílias do alto dos muros de Locksun.
155
O Draconiano
- Se estas são suas últimas palavras, nós iremos para os Campos de
Celemar, honrar nossos postos e nossas famílias. - disse Patton, dando meia
volta e puxando Tawan pelos arreios.
A pequena comitiva foi embora sem, no entanto, conseguir êxito em sua
missão diplomática. Ainda assim, os corações daqueles guerreiros estavam
mais leves com a surpresa proporcionada pela chegada de Ázaro.
- Viestes sozinho, meu amigo? - perguntou Ruprest ao forasteiro.
- Não, ruivo. Vim às pressas, mas vim com vinte cavaleiros de Dracon.
Não é muito como reforço, mas estão dispostos a seguir Patton até as
fronteiras dos infernos. Eles nos esperam no acampamento. Fomos recebidos
pelo comandante Janô. Ele me informou das últimas notícias e da missão que
vocês haviam tomado para si.
- Receio que nossa desvantagem numérica seja demasiada para uma
vitória em Celemar. Eu contava com este reforço para podermos pelo menos
traçar uma estratégia. - disse Patton.
- Sim, você tem razão, Patton. Agora só nos resta esperar pelas tropas
de Nordwil e lutar até a morte contra o invasor. - concordou Ázaro.
A comitiva galopou mais uma vez pelo descampado e chegou ao
acampamento no obelisco antes do entardecer. Janô recebeu as notícias com
pesar e as tropas já comentavam em vozes sussurrantes sobre a traição do
Lorde de Ka.
Já com a chegada do crepúsculo vespertino, os soldados descansavam
para seguir viagem no início do outro dia. Os soldados conversavam e Patton
havia liberado as fogueiras e o rum. O clima era melancólico, mas um barulho
intenso tornou a atmosfera tensa. Faldan e Ehrin chegaram a galope. Estavam
patrulhando os arredores e vinham com notícias.
- Patton! - gritou o elfo - Cavaleiros vindos de Ka estão se aproximando.
Com certeza são mais de mil homens, mas não sei se vêm em paz ou não.
156
O Draconiano
Patton se armou e correu para fora do acampamento segurando uma
tocha. Ehrin foi ao seu lado com a espada desembainhada. O som dos cascos
golpeando o solo ficava cada vez mais alto. Faldan foi avisar a Ruprest e ao
duque, que junto com Janô e Ázaro, foram ao encontro de Patton.
- O que querem esses traidores? Será que além de se negarem a lutar
pelo rei, agora passam para o lado do inimigo? Se for isso, terão o devido
castigo. - refletiu o duque.
Ao longe já se via uma fileira incandescente percorrendo os campos.
Eram milhares e vinham, um a um, carregando tochas. Pareciam uma serpente
de fogo rastejando na noite. Uma salamandra pronta para o bote fatal. Mas ao
chegar, a tropa parou e seu capitão falou em alto e bom som:
- Cavalaria de Ka se apresentando às tropas de Locksun e prestando
homenagens a Patton, filho de Raikar. - o homem fez uma reverência e
continuou a falar - Estamos em mil e duzentos homens montados, senhor.
157
O Draconiano
- Então o Lorde Golthar resolveu não entrar para a história como um traidor e
enviou-os para a guerra. - deduziu Byron.
- Sinto que esta não seja a verdade, meu senhor. Somos rebeldes leais
ao rei Endor e à espada de Askai. Lorde Golthar foi rendido e está sobre a
custódia do exército de Ka. Nem todos puderam vir, pois alguns guardam a
cidade dos soldados leais ao duque, que poderiam retomar o poder e soltar o
Lorde. Espero que o rei entenda nossas atitudes contra um de seus nobres. A
rebelião foi a única forma de não deixarmos nossos irmãos sozinhos no campo
de batalha.
- O rei é justo e saberá recompensá-los. É triste saber que um nobre foi
deposto por sua guarda, mas neste caso, foi a ação mais sensata. Eu mesmo
recomendarei honras a vocês. - continuou o duque.
Patton
sorriu
e
mandou
que
os
soldados
descansassem
no
acampamento. Depois pediu ao duque para que reunisse os comandantes em
uma tenda para traçarem o estratagema da batalha.
Minutos depois, todos os comandantes estavam reunidos. Faldan foi
chamado para comandar os arqueiros e segundo os planos de Patton, eles
seriam parte primordial da batalha. Ruprest e Ázaro também estavam lá, pois a
experiência deles seria fundamental.
Muito foi discutido, principalmente sobre o inimigo. Suas estratégias,
movimentações e potência. Os soldados de Locksun e Ka eram extremamente
disciplinados e muito bem treinados, diferente do exército inimigo, que apesar
de estar bem organizado, era composto basicamente por selvagens.
Depois de muita discussão, Patton começou a explanar sua estratégia:
- Temos uma poderosa cavalaria e se a enviarmos na vanguarda, eles
provavelmente irão usar seus arqueiros contra ela. Mas se eles não detectarem
nossa cavalaria no campo de batalha, pensarão que só enviamos a infantaria.
- Sim, e qual a vantagem disso? Eles enviariam a cavalaria yusher sobre
nós e não teríamos chance alguma. - disse Janô.
158
O Draconiano
- Espere. Pense como o inimigo. O que farias se enfrentasse um exército
desguarnecido de cavalaria? Quem enviarias na vanguarda, comandante?
- Como te disse, Patton. Mandaria minha cavalaria e passaria por cima
deles. Seria uma batalha rápida e com o mínimo de perdas. Nenhuma parede
de escudos conseguiria agüentar o choque de milhares de yushers à cavalo. O
máximo que faríamos, seria tentar acertá-los com nossos arcos, o que não
seria suficiente para detê-los.
- Então, sabes que os yushers são excelentes cavaleiros e exímios
arqueiros, mas não usam armaduras. Contra a infantaria, certamente atacariam
com suas espadas do oeste e com seus machados, ficando vulneráveis aos
nossos arcos longos. Desde o momento em que atingirem nossa área de
alcance, seriam possíveis dois disparos. Pelo menos trezentos e cinqüenta ou
até quatrocentos cavaleiros tombariam.
- Mesmo assim, Patton. Eles têm cerca de três mil cavaleiros. Os outros
dois mil e quinhentos ou mais cavalgariam sobre nossa infantaria. Seria um
massacre. - comentou o duque.
- Mas logo após o segundo disparo dos arqueiros, nossa cavalaria
partiria em bloqueio ao inimigo. - afirmou Patton.
- Nossos cavalos são velozes, mas nenhum cavalo de Enthär
conseguiria chegar de um esconderijo até o fronte antes que o inimigo destrua
nossas fileiras. - observou o nobre - E lembre-se que estamos num campo
aberto. Não temos florestas para nos esconder. - completou.
- Por isso, a cavalaria
estará ali, logo atrás dos arqueiros. - disse
Patton.
- O que? E tu achas que o inimigo não vai nos enxergar? Usará de
feitiçaria, Patton? - questionou Ázaro, intrigado com o plano do rapaz.
- Não, Barba Bifurcada. Cavaremos um fosso. Não muito íngreme, mas
fundo o bastante para esconder nossos cavalos e não sermos detectados. Com
159
O Draconiano
um punhado de soldados postados a nossa frente, o inimigo não irá nos
enxergar.
- Cavar? Como tatus? - perguntou Ruprest.
- Como tatus. - respondeu Patton, sorrindo.
- Pode dar certo. - afirmou o ruivo, olhando para Ázaro.
- Como tatus - repetiu.
- Vai dar certo. - completou o rapaz - Isto é, se Faldan disser que é
possível derrubar quatrocentos cavaleiros num espaço de um quarto de ceres.
- Se os arqueiros fossem de minha terra, eu diria que derrubaríamos
novecentos. Mas eu garanto quatrocentos e cinqüenta cavaleiros tombados.
- E se no final não conseguirmos, deixaremos que invadam Nordwil e
botamos fogo na cidade. Ofereceremos a alma de todos aos deuses e será a
maior fogueira de orks de todos os tempos. - sugeriu o velho caçador-debruxas.
Uns olharam para os outros com um ar de desconfiança e fizeram um
breve silêncio. Finalmente o duque de Locksun se pronunciou:
- Mas o inimigo pode nos ver cavando o fosso e nossa estratégia vai por
água abaixo. É certo que eles têm espiões nos observando.
- Por isso partiremos esta noite. Faldan nos guiará na escuridão.
Teremos um dia e uma noite para realizar nosso plano. Destacaremos duas
unidades para patrulharem a área. A não ser por alguns pequenos bosques, o
terreno é descampado. Um espião inimigo será facilmente detectado.
- Então que os deuses nos ajudem nessa maluquice e que nossos
inimigos fechem os olhos para o nosso ardil. - disse Ázaro.
160
O Draconiano
U
m falcão mensageiro fora mandado naquela noite. Em suas asas,
voava uma mensagem para as tropas de Nordwil: “A Batalha será
daqui a dois dias, próximo ao lago Seiur. Contamos com sua força”.
Ázaro reuniu seus homens e os cavaleiros de Ka se uniram a ele. Logo o
comandante Janô reunia todas as pás e picaretas que estavam no
acampamento. O comandante permaneceu no local para comandar a infantaria
na marcha do outro dia.
Não demorou muito para que os mais de dois mil cavaleiros partissem
em meio ao breu, rumo ao local onde haviam decidido interceptar o inimigo.
Segundo as observações dos batedores, dias atrás, o inimigo marchava
lentamente devido ao volume de soldados e a dificuldade em transportar as
máquinas de guerra num terreno irregular. Mas, apesar disso, chegariam ao
lago Seiur em dois dias, no máximo.
Faldan seguia na frente, guiando os cavaleiros. Nenhuma tocha foi
acesa naquela noite e os cavalos se deslocavam acelerados. O ponto que seria
palco da batalha ficava a cento e cinqüenta ceres do obelisco e se
continuassem a cavalgar naquele ritmo, chegariam lá pouco depois do
amanhecer.
Patton estava preocupado com a divisão das tropas. Seu plano era
audacioso, porém arriscado. O aventureiro apostava que, mesmo se o inimigo
notasse o deslocamento da cavalaria, não tentaria um ataque direto contra a
infantaria, pois isso atrasaria seu destino, que era Nordwil.
161
O Draconiano
Mas essa era apenas uma das preocupações do rapaz. E se a infantaria
não chegasse a tempo? E se o falcão fosse interceptado pelo inimigo e as
tropas de Nordwil nunca soubessem onde seria a batalha? E se a
superioridade numérica fosse tão grande que mesmo com o ardil do fosso, a
batalha fosse um massacre?
Muitas dúvidas pairavam pela mente de Patton. Ele tentava a todo o
momento desviar sua atenção para coisas boas, como o doce sabor da boca
de Alya. Afinal, não adiantava tanta preocupação durante a cavalgada. Teria
ainda tempo o suficiente para reflexões quando chegasse.
Ruprest cavalgava ao lado de Ázaro e ambos permaneceram calados
por muito tempo. No entanto, Ázaro se pronunciou:
- Lembra muito o pai. - sussurrou ele olhando para Patton - Cuidaste
bem deste rapaz, meu velho. Ele cresceu forte e determinado. Será um líder,
com toda certeza.
- Sim, mas me deu muito trabalho. - comentou Ruprest - Mulherengo,
gozador e grande apreciador de cerveja. Quantas vezes bebeu tanto que mal
conseguia se lembrar da noite anterior? E por várias vezes fora motivo de
chacotas de pessoas sem metade de seu valor.
- E não era assim Raikar? Dado às farras e às mulheres. Mas quando foi
preciso, mostrou sua responsabilidade. Assim Patton fará também.
Poucas vezes a caravana parou e a cada pausa, pouco tempo era
perdido. O sol despontou ao leste e foi lentamente se erguendo. Os cavalos
estavam cansados, mas não diminuíam a velocidade e no meio da manhã
chegavam ao lago Seiur.
- Não há tempo para descansar, disse Patton. Não temos pás o
suficiente para todos cavarem. Então, dividiremos os soldados em três grupos.
Um grupo começará a escavar o fosso. Temos cerca de cem pás, cinqüenta
picaretas e usaremos as alabardas e os machados também. Outro grupo irá
cuidar dos cavalos e montar as tendas. O restante se organiza em unidades de
seis homens e patrulha toda a área. Faldan cuidará da vigilância.
162
O Draconiano
Os comandantes ouviram as ordens de Patton e as transmitiram para os
soldados. Cerca de quinhentos homens começaram os trabalhos de
escavação, a dois ceres do lago. Patton retirou sua armadura e se engajou no
trabalho. Conforme as suas recomendações, o buraco teria dois curvos de
profundidade por quatro de largura, para que a subida não fosse muito íngreme
para os cavalos.
O trabalho era árduo e a cada uma hora os homens eram substituídos
por aqueles que cuidavam dos cavalos. O dia se passou assim. A temperatura
estava agradável, mas o sol queimava forte a pele branca dos homens de
Locksun.
Patton cavava sem parar e lamentava que Janô não estivesse ali, pois
este sim tinha habilidade neste tipo de trabalho.
No final da tarde, um cavaleiro enviado por Faldan veio trazer uma
mensagem. Dizia ele que as tropas de Nordwil chegariam ao cair da noite.
Patton esperou e tão logo o sol se pôs, as fileiras do Rei Endor chegavam às
margens do lago.
Infelizmente, para Patton, eram soldados desmontados. Contavam em
mil e trezentos homens, divididos em três pelotões. Os arqueiros formavam em
duzentos, o que deixou Patton mais otimista. O segundo pelotão era o dos
Falcões do Rei, uma tropa de elite da infantaria, munida de armas de haste e
vestindo roupas negras e vermelhas. A última e mais numerosa das tropas era
a da infantaria convencional, que marchava em cinco filas, sob o repique de
tambores.
Quem estava no comando era Dars, um guerreiro experiente que havia
lutado nos campos do sul na Guerra das Raças. Baixo, mas forte, tinha uma
cabeça grande e pouco cabelo. O comandante olhou para o campo de
atividades e disse:
- O rei Endor nos enviou. - disse ele ao chegar - Estamos prontos para
nos engajar às tropas de Locksun.
163
O Draconiano
O duque o recebeu e pediu para que ele entrasse numa das tendas
armadas ali, para colocá-lo a par dos planos e da situação. Os soldados
esperaram por seu comandante por alguns minutos e quando ele saiu, deu
ordens para que todos descansassem por três horas e depois se revezassem
nas escavações.
A noite já tinha chegado quando Patton foi procurar Ruprest. O velho
conversava com o amigo Draconiano, quando o rapaz apareceu.
- Velhos amigos trazem velhas lembranças. - disse o rapaz - O que tanto
falam dois guerreiros das épocas antigas?
- Somos das épocas antigas e, no entanto, vamos participar de mais
uma batalha. Isso quer dizer, no mínimo, que somos sobreviventes. Mas na
realidade, nós somos o terror dos campos do leste. - bradou Ázaro, arrancando
uma gargalhada de Ruprest e Patton.
- Vocês são dois abutres que só fazem tagarelar. - respondeu Patton,
atormentando-os.
Ruprest e Ázaro deram mais uma gargalhada e viram o rapaz dar as
costas a eles e partir. Ruprest ficou observando Patton com orgulho e antes,
que se afastasse demais, perguntou:
- Aonde vais, seu buzarate? Sente-se aqui e beba uma caneca de um
bom rum, que este guerreiro trouxe do sul.
- Preciso tomar um ar e refletir. Em algumas horas estarei de volta. Não
se preocupem. Sei me cuidar. E como não existe taberna alguma nas
imediações, não corro o risco de me embriagar e me esquecer da batalha.
Patton seguiu andando pelo acampamento. Alguns homens ainda
trabalhavam no fosso e ele estava quase completo. O rapaz se dirigiu para a
área onde estava descansando Tawan, seu corcel.
O garanhão negro estava sem sela e repousava ao lado de outros
cavalos de comandantes. Destacava-se de todos os outros pelo tamanho e
164
O Draconiano
pelo porte. Patton chegou perto dele e o observou. Depois, lhe fez um agrado
na cabeça e disse:
- Amanhã será um grande dia, meu rapaz. Acho que estás mais
preparado para isso do que eu. Mas talvez, nem eu, nem você saiamos vivos
deste inferno.
O cavalo relinchou e bateu com a pata dianteira no solo. Patton fitou
seus olhos, que pareciam querer dizer alguma coisa. O aventureiro então
soltou a corda que o prendia e, mesmo sem sela, subiu em seu lombo.
Golpeou suavemente o animal com seus calcanhares e partiram numa
galopada desabalada, rumo ao sul.
Uma unidade de vigilância fez menção de parar o cavaleiro, mas hesitou
ao reconhecer o Senhor da Guerra de Locksun.
Tawan galopava em um ritmo alucinado, como se fugisse de algum
algoz. Seu pêlo escuro quase desaparecia na noite e seus cascos fortes e
furiosos faziam o solo tremer.
Patton cavalgou no dorso do cavalo por mais de dez ceres. Em sua
mente, sempre as mesmas dúvidas: estaria ele liderando milhares de homens
direto para a morte? Quanto mais pensava, mais Tawan corria. Os dois
cavalgaram ininterruptamente, até acharem uma dúzia de árvores que se
agrupavam em meio ao descampado.
Patton achou que era hora de voltar para o acampamento e puxou a
crina de Tawan para que ele fizesse o contorno. No entanto, o rapaz viu uma
luz fraca saindo do meio das árvores. Tawan se negou a dar a volta e
relinchou.
O aventureiro saltou do dorso do animal e, observando o brilho que
variava de intensidade, fez com que o animal se acalmasse.
O brilho foi aumentando lentamente e então Patton desembainhou sua
espada. Na mesma hora, sua lâmina irradiou um brilho azul. Ele fez com que
Tawan parasse ali e deu alguns passos para perto das árvores.
165
O Draconiano
Seus olhos pareciam estar hipnotizados por aquele cintilar. Passo a
passo, Patton foi se aproximando e seu rosto empalideceu ao notar a imagem
de Thalien, a Senhora dos Unicórnios.
- Pode guardar tua lâmina, Patton. Hoje ela não verterá sangue.
- Senhora? O que fazes aqui? Algo de ruim aconteceu a Alya?
- Não, Patton. É contigo que me preocupo. Amanhã será um dia de
batalha para você. Não só um embate entre dois exércitos, mas uma luta sua
para provar a si mesmo que é capaz de liderar e sair vencedor. O destino desta
guerra ninguém sabe, mas o que me preocupo é com o que o vento me disse
esta noite. – ela continuou - Temo pelo que pode acontecer com você, pois o
Lâmina Negra estará no campo de batalha. Ele virá atrás de ti. Quer certificarse de que tu não sairás vivo deste embate.
- Mas você deve evitá-lo, pois ainda não está pronto para enfrentá-lo.
Ele tentará te atrair até ele. Patton, você não pode confrontar tal poder. É cedo
para isso.
- Do jeito que falas, me parece que tu conheces ele mais do que
qualquer um. Mesmo Ruprest, que já o encarou de perto, não fala dele com
tanto medo. - disse Patton.
- A minha história e a dele estão unidas pelo passado. Se hoje sou a
Senhora dos Unicórnios, foi por conseqüência de seus atos. E se ele se tornou
o que é hoje, é por não ter me ouvido quando o chamei. Mas isso não importa
agora, vim apenas te informar do perigo que corres. Mantenha-se longe de
Lorde Gwilber e não se aflija, a ajuda chegará.
Patton viu a figura da bela mulher desaparecer lentamente. Tentou
perguntar sobre Alya, mas não conseguiu. Embainhou sua arma e voltou para
perto de Tawan. O cavalo estava ali estático, mas parecia não ter se assustado
com a aparição.
166
O Draconiano
O jovem Senhor da Guerra subiu em Tawan de um só pulo. O cavalo
prontamente o levou de volta ao acampamento. Patton se sentia mais leve
depois da aparição da Senhora dos Unicórnios.
Ao se aproximar do acampamento, Patton percebeu uma movimentação.
Uma pequena confusão se armara perto do fosso. Ruprest e Ázaro estavam de
pé e em volta deles alguns soldados observavam o campo a frente.
Quando Patton chegou, foi logo informado do que acontecera. A unidade
de vigilância em que Faldan estava tinha encontrado um espião ork e o próprio
elfo havia abatido o intruso.
Faldan estava puxando a carcaça do ork cravada de flechas e se
preparava para atear fogo. Muitos soldados gritavam e festejavam a mira
certeira do colega. Ehrin estava empolgado e foi contar a cena a Patton.
- Graças a Faldan, nosso ardil está a salvo do inimigo. O maldito ork
estava camuflado no meio do mato alto. Montava uma égua baia e observava
nossa unidade.
- Nós não havíamos avistado o espião, Patton. Mas Faldan o detectou e
galopou em sua direção, já com o arco em mãos. Ao perceber que Faldan ia
em sua direção, o ork tentou fugir. Golpeava o lombo de sua montaria com um
galho de árvore, mas Faldan foi ligeiro. Quando ele subia uma pequena colina
Faldan desceu de seu cavalo e soltou duas flechas de uma só vez, antes que o
alvo saísse de seu campo de visão.
- O ork caiu, mas ainda não estava morto e tentou subir na égua. Faldan
puxou mais uma flecha e o atingiu em cheio. Quando conseguimos alcançar
Faldan, o ork já estava morto.
Patton, que ouvia a tudo prestando atenção aos detalhes, deu um
sorriso para Ehrin e olhou o meio elfo, que gozava dos louros de sua façanha.
- Tens certeza que este estava só? Não havia nenhum outro inimigo com
ele? - indagou ele.
167
O Draconiano
- Procurei rastros, Patton. Só encontrei o dele e os nossos. Nada mais.
Nosso segredo está garantido para o dia da batalha. Mas eles estão perto
daqui. Amanhã será o dia, com certeza. Espero que nossa infantaria chegue e
rápido. - relatou o elfo.
Apesar da admiração, os soldados estavam intrigados como aquele
cavaleiro conseguia ter tão boa mira na escuridão. E ainda, conseguia procurar
rastros de cavalos durante a noite. Ázaro também estava curioso e já
desconfiava, contudo perguntou:
- Fico feliz em saber que temos um vigilante que até em noite escura
consegue acertar três flechas num ork em fuga. Mas diga-nos, rapaz. Qual o
teu segredo? Fostes criado em uma caverna escura e enxergas em meio ao
breu?
Ruprest fechou a cara ao se lembrar que o companheiro era da raça dos
elfos. Patton sorriu, mas não delatou o amigo, esperando que a revelação
fosse feita pelo próprio.
Faldan soltou o corpanzil do ork no chão e virou-se para o draconiano.
Todos que observavam estavam na expectativa de uma resposta do arqueiro e
Faldan finalmente retirou o bacinete de sua cabeça, deixando a mostra suas
orelhas pontiagudas.
Os soldados ficaram espantados, mas Ázaro, que já suspeitava, deu
uma gargalhada. O cavaleiro fitou o rapaz nos olhos e depois se virou para
Ruprest.
- Quer dizer que o amigo dos anões agora anda lado a lado com elfos? indagou com ar de deboche.
Ruprest deu as costas e resmungou algumas palavras, mas Ázaro
tornou a olhar para Faldan e parabenizou pelo bom trabalho. Os soldados que
estavam surpresos, agora eram só admiração. Muitos nunca haviam visto um
elfo, porém a maioria gostou de saber da procedência do arqueiro, pois era
notória a habilidade destes com o arco.
168
O Draconiano
- De volta ao trabalho. - berrou Patton - Agora que todos já conhecem o
capitão dos arqueiros, podem voltar a seus afazeres. Temos uma batalha
ferrenha amanhã. Precisamos que tudo esteja pronto antes do raiar do dia.
A rotina voltou ao acampamento e horas antes do amanhecer, o imenso
fosso estava pronto. Os cavalos estavam posicionados e os soldados puderam
descansar.
Nas primeiras horas do dia, Janô chegava liderando a infantaria. Foi
recebido por Locksun, que ordenou que seus soldados também descansassem
até a chegada dos mensageiros com a notícia de que a guerra era iminente.
O meio do dia chegou e uma refeição foi servida. O rum já havia sido
suspendido desde o raiar do dia. Somente água era servida para matar a sede.
O vento soprava forte e assobiava. Fazia os galhos das pequenas moitas se
envergarem e parecia trazer maus presságios. O sol brilhava alto, mas não
tinha a intensidade do dia anterior.
Era por volta da terceira hora quando um cavalo veio em galope veloz na
direção do acampamento. Era um mensageiro de Ka, que vinha trazer a notícia
que todos aguardavam, mas ninguém queria ouvir:
- Estão chegando. Avistei-os a dez ceres daqui. São muitos e seguem
em ritmo acelerado.
Um grande clangor de trombetas foi ouvido e todos sabiam o que aquele
sinal significava. Houve um grande alvoroço, mas logo os capitães controlaram
seus homens. Patton se levantou da cadeira onde polia sua espada e vestiu
sua armadura. Depois foi ao encontro de Ruprest.
O velho continuava conversando com Ázaro, mas ambos já estavam se
preparando para a batalha. Patton pediu que um dos soldados encontrasse
Faldan e Ehrin e os mandasse encontrá-los ali.
- É, meu caro... Mais uma batalha iremos travar. - disse Ruprest,
prendendo um protetor ao seu antebraço - Parece que as histórias se repetem.
Alguns personagens mudam, mas outros continuam os mesmos.
169
O Draconiano
- Nossas vidas inteiras foram assim, Ruprest. Guerras, batalhas,
disputas pelo poder. Hoje eu entendo porque Raikar decidiu se afastar e deixar
essa vida belicosa. Uma luta como esta faz sentido, mas o povo dos homens é
muito inconstante. Quando finalmente o mal é derrotado, ou afastado,
começam as disputas locais pelo poder. Sempre foi assim e eu temo que isso
nunca mude.
- Mas os sonhos são feitos de esperança. - disse Patton, intrometendose na conversa dos dois - E é por isso que vocês dois continuam lutando.
Ruprest e Ázaro concordaram e então Patton abraçou o velho ruivo. O
caçador-de-bruxas havia cuidado dele como um filho, no entanto, apesar da
diferença de idade, eles eram como irmãos. Ruprest sempre chamando sua
atenção e ele, sempre atormentando sua paciência.
Ehrin
e
Faldan
chegaram
naquele
momento
e
então
Ázaro
desembainhou sua espada e convocou os outros que fizessem o mesmo. O
pedido foi prontamente atendido e o Draconiano bradou:
- Irmãos em armas, vamos à vitória!
Os outros presentes repetiram o brado e seguiram Patton para onde as
tropas se reuniam. A cavalaria já estava a postos e a infantaria se posicionava
em concentração.
Ficou decidido que dois pelotões de quinhentos homens ficariam à frente
do grande fosso, para escondê-lo. Quem os liderava era o Próprio Duque de
Locksun. Outros quinhentos arqueiros ficariam a frente da infantaria, liderados
por Faldan. Ao todo, dois mil e duzentos cavaleiros esperavam dentro da
escavação e todos os demais soldados de infantaria estavam atrás da
cavalaria. Eram cinco pelotões, cada um contando com quatrocentos e vinte
guerreiros.
Patton, já montado em Tawan, foi à frente das fileiras e fez com que
fizessem silêncio. Todos estavam posicionados e, sacando sua espada, o
senhor da guerra começou a discursar.
170
O Draconiano
- Estão aqui por um ideal. Vamos aqui ser um dos focos da resistência
contra uma força invasora, que deseja o domínio total de nossas terras, de
nossas famílias e de nossas vidas. Se falharmos aqui, nada irá adiantar em
parte alguma. Temos uma missão e muitos contam com nosso êxito. Se
desapontarmos nossos irmãos do sul, seremos saqueados, escravizados e
provavelmente mortos.
- Não peço que sejam mais fortes do que podem ser. Não peço que não
sintam medo. Não peço que gostem do que vão fazer. A única coisa que peço
a todos vocês, é que lutem com a força de seus corações e dêem o melhor de
si nesta batalha! Irmãos em armas, vamos à vitória!
Os soldados, inflamados pelo discurso de Patton começaram a gritar.
Muitos gritavam o nome do Senhor da Guerra, mas a maioria bramava em
coro, berros de vitória.
O moral do exército havia se elevado, mas a tensão não abandonara o
campo de batalha. De repente um rufar de tambores foi ouvido ao longe. Era
um ritmo frenético e logo veio também o clangor de cornetas. A terra começou
a tremer quando as primeiras fileiras de orks começaram a aparecer.
Logo, todo o horizonte estava tomado por guerreiros ostentando o
estandarte da águia bicéfala. Vinham marchando e se concentrando. Primeiro
os infantes, depois a cavalaria. Eram três mil cavaleiros yushers, montados
com seus belos cavalos do oeste. Cavalos resistentes e de espírito forte. Os
yushers eram baixos, mas fortes. Muitos usavam cabelos longos, mas que
cresciam apenas do topo da cabeça e na nuca. A maior parte deles usava
longos bigodes e tinha a pele bronzeada pelo sol.
171
O Draconiano
Os orks usavam bacinetes negros feitos de ferro e corceletes de metal
cobertos pelo uniforme negro do oeste. Usavam escudos redondos, diferentes
dos pentagonais de Locksun. A maioria vinha a pé, pisando forte no chão verde
e gritando urros ininteligíveis para os homens do leste.
Na retaguarda vinham os Duhr Kazur. Imensos e extremamente fortes,
os gigantes puxavam quatro torres de cerco e três enormes catapultas. Eram
poucos, mas grandes o bastante para encher de medo os corações dos
guerreiros da resistência.
Na frente de batalha de Swannpala, somente alguns poucos cavalos
estavam fora do fosso, sobretudo os de oficiais, para não despertar suspeitas.
Patton, que levara Tawan para o fosso, observava a tudo desmontado. Ele
empunhava uma lança de cavaleiro de quase quatro curvos de comprimento e
calculava ao longe o tamanho das forças inimigas. Segundo seus prognósticos,
somavam mais de três mil cavaleiros e o dobro de infantes, além de milhares
de arqueiros que se abrigavam nas quatro torres de cerco.
172
O Draconiano
Com uma visão privilegiada, o senhor da guerra avistou o comandante
inimigo. Era o mesmo cavaleiro de armadura branca e dourada que havia
observado dias atrás, em Phalanx. Patton procurava sem sucesso localizar o
Lâmina Negra. As palavras de Thalien ecoavam em sua cabeça e o deixavam
um tanto curioso e ansioso também. Janô se juntou a ele e disse:
- Veja, Patton. Eles estão mandando uma comitiva. Devem ser
emissários ordenando nossa rendição.
- Avise ao duque! Vamos encontrá-los e mandá-los voltarem para o
buraco fedegoso de onde eles saíram. Nenhuma rendição será firmada aqui. disse Patton e depois cuspiu para o lado.
Janô fez o que Patton pedira e trouxe três cavalos para que fossem ao
encontro da comitiva. O próprio duque ia à frente do grupo, seguido por Patton
e o comandante.
A meio cere do grupo inimigo, Patton atestou que a comitiva dos
opositores também era formada por um trio, mas se espantou ao perceber que
o pequeno estandarte levado por um dos cavaleiros inimigos levava o brasão
do urso verde de Phalanx.
Chegando mais perto, Patton e seus aliados notaram o jogo maligno do
inimigo. Seus rostos empalideceram e as expressões, outrora decididas,
mudaram. Janô segurou no pomo de sua espada cuspiu para o lado e
praguejou:
- Pelos deuses, a maldade não tem fim!
Trotando em cavalos yushers, três figuras hediondas se aproximaram.
Eram homens de Phalanx que haviam sido espancados e sofrido toda sorte de
crueldades.
Os cavaleiros pareciam mulambos e estavam amarrados nos corcéis
para não caírem. Um deles havia sido despelado e era difícil para Patton e
seus amigos olharem para aquela figura.
173
O Draconiano
O porta-estandarte tinha o mastro amarrado em seu corpo e uma venda
sobre os olhos. Patton se aproximou e, com sua espada, cortou as cordas que
o prendiam ao estandarte. O rapaz colocou a mão em seu pescoço e atestou
que, apesar de mortalmente ferido, aquele cavaleiro ainda vivia. Então, mais
uma vez, ele usou sua lâmina, porém agora para cortar a venda que tapava-lhe
os olhos.
Para o horror da comitiva de Swannpala, o cair da venda revelou que os
dois olhos do porta-estandarte haviam sido arrancados.
O duque se aproximou de um dos cavaleiros moribundos e o
reconheceu o próprio Duque Yubar, de Phalanx. Ele se aproximou do nobre do
lago Vaërn e, como Patton, colocou a mão em sua garganta e garantiu:
- Está morto!
Janô não precisou fazer o mesmo com o terceiro cavaleiro para
constatar que este estava morto. Sua carne despelada já começava a entrar
em decomposição e atraía dezenas de moscas.
Os três de Swannpala desmontaram de seus cavalos e cortaram as
amarras que prendiam os cadáveres nos corcéis yushers. Recolheram os
corpos e os deitaram nas selas de bruços. Patton sugeriu que o duque e Janô
retirassem suas capas e cobrissem os corpos, para que a visão daquela
barbárie não baixasse o moral da tropa.
Patton e seus dois companheiros subiram novamente em seus cavalos e
voltaram para as linhas de Swannpala trazendo os três cavalos com suas
cargas sinistras.
Os corpos foram levados para trás das linhas, mas os soldados curiosos
não puderam ver o que acontecera. Patton desmontou. Juntou-se a Ruprest e
detalhou em voz baixa o que havia acontecido.
Ruprest se abaixou, apoiando-se no joelho esquerdo e olhou para o
horizonte, onde as fileiras inimigas se organizavam. Respirou profundamente e,
súbito, sacou suas espadas de prata e as fincou no solo até metade das
174
O Draconiano
lâminas. O velho olhou novamente para o inimigo e sentiu seu coração
acelerar. Não era medo, porque o medo típico dos momentos que precedem
uma batalha, havia lhe abandonado há tempos.
As fileiras inimigas se preparavam, mas a distância fazia com que
Ruprest não enxergasse tudo com nitidez o bastante para analisar a
movimentação. Ele percebeu os cavalos yusher tomandoa vanguarda e ficou
feliz, pois isso era sinal de que, provavelmente, estavam caindo no ardil de
Patton.
Ainda ajoelhado, Ruprest passou as mãos no chão, pegou um punhado
de terra e esfregou nas palmas. Depois puxou uma bandagem que estava
presa em sua couraça e a enrolou na mão direita. Segurou suas espadas e as
embainhou.
Quando se levantou, Ruprest foi abordado por um veterano do exército
de Locksun. O soldado era mais velho do que Ruprest e não lhe restavam
muitos dentes na boca, o que fazia com que sua fala fosse engraçada e
sibilante.
- Você é Ruprest? - perguntou o veterano, para surpresa do ruivo Ruprest, o campeão dos anões? - insistiu o velho.
- Quem quer saber? - retrucou Ruprest, cauteloso.
- Ruprest, o campeão dos anões. Herói da Guerra das raças. - continuou
o soldado - Lutei ao seu lado, senhor. Lutamos contra esses miseráveis na
fronteira de Kalpang. No “Massacre do Keld”.
- Não tivemos sorte naquela batalha. - disse Ruprest, tocando seu
amuleto supersticiosamente, para afastar o mau agouro.
- Muito azar, meu senhor. - concordou o veterano, mostrando seu braço
direito, que terminava precocemente no punho, mas mesmo assim, tinha um
broquel amarrado - Um machado ork, senhor. Mas era o braço ruim e ainda
posso ceifar algumas vidas com o esquerdo. - continuou ele, segurando o
pomo de sua espada embainhada.
175
O Draconiano
- Mas hoje teremos uma bela vitória, soldado. - previu Ruprest - Como
na batalha final. Vamos botá-los para correr.
- É uma honra lutar novamente ao seu lado.
- A honra é recíproca. Qual o seu nome, soldado?
- Karvo, senhor. Karvo, o maneta.
Ruprest deu um tapinha nas costas do companheiro e sabia que durante
o combate, teria um companheiro leal.
- Karvo, o incansável lhe cairia melhor, soldado.
- Parece que eles foram atraídos por nossa armadilha. Estão
posicionando os cavalos na dianteira. A essas alturas, o comandante inimigo já
deve estar cantando vitória. - disse Janô, entusiasmado.
- Faldan! - chamou Patton - Prepare-se para o ataque da cavalaria.
O elfo ouviu a ordem prontamente e deu um sinal para seus
comandados. No mesmo instante, todos os arqueiros, inclusive ele, retiraram
três flechas de suas aljavas. Duas delas foram fincadas no chão e as outras,
armadas nos arcos longos.
Do outro lado, a aproximadamente um cere de distância, os cavaleiros
selvagens berravam e levantavam suas armas para a tropa inimiga. Estavam
sem armadura, como Patton previra. Os arqueiros permaneciam imóveis
esperando por um sinal de Faldan.
Patton correu para o fosso e montou em Tawan, seu corcel negro.
Empunhou uma lança e fez uma oração em voz baixa, pedindo aos seus
antepassados que lhe ajudassem e aos deuses, para que não atrapalhassem.
O repique dos tambores aumentou a cadência e de repente cessaram. O
comandante inimigo deu um sinal com sua espada e a horda de cavaleiros
partiu em disparada contra as linhas de Swannpala. Os yushers eram
excelentes domadores de animais e montavam como ninguém. Seus cavalos
176
O Draconiano
não tinham sela e eles não precisavam das mãos para ter domínio total de
suas montarias.
Os belos corcéis eram baias ou brancos, mas possuíam a crina escura.
Eram selvagens como seus donos e eram fortes e velozes. Rapidamente foram
ganhando terreno, num ataque que seria fulminante.
Patton, de dentro do fosso, não enxergava nada, mas podia sentir a
vibração do solo produzido pelo golpear dos cascos dos cavalos yushes.
Tawan permanecia impassível e esperava a hora de atacar.
A cavalaria avançava rapidamente. Ao percorrerem o primeiro quarto de
cere, Faldan deu mais um sinal aos arqueiros. Esses por sua vez, elevaram
seus arcos armados.
Já haviam percorrido metade do caminho quando Faldan deu outro sinal,
fazendo com que seus homens escolhessem seus alvos e travassem mira.
- Flecha! - gritou ele.
E todos os arqueiros, inclusive ele, dispararam suas setas mortais contra
os yushers. Mais de trezentos cavaleiros tombaram. Algumas flechas atingiram
os cavalos, que mesmo feridos continuaram seu galope feroz.
Faldan acertara um cavaleiro no pescoço e percebeu sua queda.
Rapidamente puxou mais uma flecha e acertou outro, perfurando-lhe o olho
esquerdo.
- Flecha! - gritou ele mais uma vez.
Ele puxou sua terceira seta, enquanto os demais arqueiros disparavam a
segunda.
A nova saraivada de flechas foi mais mortal e quase quinhentos
cavaleiros foram atingidos. Nem todos caíram, mas os ferimentos iam deixá-los
debilitados para a batalha.
177
O Draconiano
O elfo ainda teve tempo de matar mais três cavaleiros antes que Patton
desse o sinal de ataque à cavalaria. Os arqueiros e a infantaria deram
passagem para os cavalos. Eram mais de dois mil soldados montados,
protegidos por armaduras e escudos, armados com longas lanças de mais de
três curvos de comprimento.
Os cavalos saíram do fosso sem dificuldade e atacaram a já debilitada
cavalaria inimiga. Os yushers tinham se limitado a pouco mais de dois mil e
agora estavam em desvantagem, pois não usavam armaduras e não contavam
com a surpresa preparada por Patton.
O choque das tropas foi brutal. As lanças do leste perfuravam os corpos
dos selvagens facilmente. As armas curtas dos yushers não eram páreas para
um ataque tão arquitetado. Quando as últimas fileiras dos inimigos
conseguiram se esquivar das lanças, a infantaria entrou em ação, auxiliando a
cavalaria.
Os Falcões do Rei foram os primeiros a chegarem com suas alabardas e
armas de haste. Os yushers iam tombando sem quase causar baixas ao
exército liderado por Patton.
Distante dali, o comandante inimigo observava ao ardil de dentro de seu
elmo branco. Parecia não se abalar com o truque e não deu ordem alguma ao
restante dos soldados.
Com a cavalaria inimiga dizimada, Patton levantou sua lança e deu um
berro sem nada falar. Seus soldados vibraram com ele e festejaram o sucesso
do ataque. O rapaz sabia que a batalha ainda estava longe de acabar e que o
destino era incerto.
Com um sinal de Patton, os cavaleiros partiram para um novo ataque. As
baixas tinham sido poucas, cerca de uma centena de homens do leste haviam
perecido. A infantaria se reuniu e começaram a marchar rumo ao inimigo.
Faldan montou um cavalo yushe e pegou uma lança de um cavaleiro
tombado. Ordenou que um capitão dos arqueiros comandasse seus homens e
cuidasse da retaguarda da infantaria e seguiu com Patton ao ataque.
178
O Draconiano
Mais uma vez a terra tremeu. Desta vez eram corcéis Nordskog e
Suhrds que atropelavam o mato verde dos Campos de Celemar. Tawan era o
mais veloz e o mais forte entre todos eles. Seus cascos com uma pelagem
abundante, se moviam mais rápido do que se podia acompanhar.
Quando estavam na metade do caminho, o comandante ocidental fez
um sinal com sua arma e um clangor de cornetas foi ouvido. Prontamente as
catapultas foram acionadas. Pedras imensas, pesando dois aquitos ou mais,
foram lançadas sobre as tropas do leste. A cada pedra que caía, cinco ou seis
soldados eram esmagados.
O conde de Locksun se assustou com o ataque. Janô gritava para que
não parassem, mas alguns cavalos assustados não obedeciam a seus
cavaleiros.
Logo a cavalaria saiu do campo de alcance das catapultas, mas o
massacre foi ainda maior quando a infantaria atravessou o campo. Ehrin, que
havia obtido êxito em seu primeiro confronto, agora via companheiros sendo
esmagados pelas imensas pedras. Ruprest corria alucinadamente incentivando
a infantaria. Ele empunhava suas duas espadas e gritava como um selvagem
em direção ao confronto.
As pedras caíam com velocidade incrível. Os trogloditas Duhr Kazur
carregavam as catapultas enquanto orks as manejavam.
Patton foi o primeiro a chegar às fileiras inimigas. Os orks esperavam
preparados para a carga, organizados numa poderosa parede de escudos, mas
o golpe foi tão brutal que nenhuma defesa seria possível. A lança do Senhor da
Guerra perfurara a couraça metálica de um ork, varando seu corpo por mais de
um curvo. O guerreiro levantou sua lança ainda varada no inimigo e fez com
que o sangue escuro e espesso da criatura escorresse por ela. Depois
abandonou a lança e sacou a Lâmina de Askai.
Um brilho azul radiou da espada e por um segundo os orks hesitaram.
Uma avalanche de cavalos e lanças caiu sobre os orks. A vanguarda da
179
O Draconiano
infantaria inimiga fora destruída pelas armas dos cavaleiros, mas ainda
restavam quinhentos orks a cavalo e mais de seis mil infantes.
A infantaria de Locksun tinha dificuldades em passar pela zona onde as
pedras da catapulta eram lançadas, mas enfim chegaram para auxiliar os
cavaleiros. Muitos morreram no caminho, esmagados pelos imensos mísseis.
Alguns ainda estavam vivos, mas não podiam mais lutar.
Patton e Ruprest ceifavam orks lado a lado e tentavam atravessar
aquele mar de guerreiros, para chegar às catapultas. As tropas inimigas
começavam sua reação. Os planos de Patton saíram perfeitamente como ele
previa, mas a superioridade numérica era absurda e as baixas produzidas
pelas catapultas foram de vital importância para as forças inimigas.
O cavaleiro branco acompanhava a tudo da retaguarda. Continuava
impassível, apenas sinalizando ordens para seus capitães. Patton o olhava
com fúria, enquanto descia sua lâmina sobre os orks.
Ázaro usava um machado de combate com maestria. Era um guerreiro
experiente, além de possuir uma grande habilidade em batalhas. Ele observava
a situação com preocupação. Os orks, cada vez mais ferozes, pareciam se
multiplicar. A cada ork morto, mais dois apareciam para o combate e as tropas
do leste iam se enfraquecendo.
Ruprest e Patton sentiam a mesma coisa. Podiam agüentar ali durante
horas, porém a vitória era incerta. Os soldados inimigos eram muitos e lutavam
movidos por um ódio que lhes aumentava a força.
Faldan, em cima do cavalo, atacava com agilidade e era o terror dos
orks. Suas adagas cortavam o vento e perfuravam os soldados. Ele estava
concentrado na batalha, mas de repente teve um presságio. Olhou para o norte
e viu uma imagem que afagou sua alma.
Do alto de uma pequena elevação ao lado do campo de batalha se ouviu
o toque de uma trombeta. O som ecoou por toda área durante um longo tempo.
O toque era tão alto e imponente que todos se viraram para o lugar de onde
vinha.
180
O Draconiano
Menos de um cere dali, duzentos cavaleiros encapuzados montados em
unicórnios esperavam em uma grande fileira, lado a lado. À frente deles, um
dos cavaleiros tocava uma trombeta feita de chifre e adornada em ouro. Seu
som era familiar aos aventureiros que outrora foram hospedes em Palari
Kadun.
O som cessou e Patton notou que o cavaleiro branco agora estava se
movimentando e parecia preocupado. Mais um cavaleiro se adiantou e todos,
ao mesmo tempo, retiraram seus capuzes.
À frente deles, estava Fabrion com seus grandes olhos azuis e a pele
alva feito a neve. A seu lado estava Ernandor, o único de pele morena em meio
a duas centenas de cavaleiros élficos. Estavam cobertos por capas brancas e
tinham na mão belos arcos longos. Na cintura, ainda levavam espadas de um
brilho intenso.
O Cavaleiro Branco, comandante das tropas do oeste ordenou um
ataque imediato aos recém chegados inimigos. Todos os orks montados
partiram para uma carga contra os elfos. Fabrion tocou novamente o chifre e os
cavaleiros armaram seus arcos com flechas prateadas.
Os orks galopavam rapidamente, mas nenhum conseguiu chegar ao
destino ordenado pelo mestre. Flechas às centenas foram disparadas, não
dando chances aos opositores. Faldan viu aquilo com orgulho e retirou o
bacinete da cabeça, revelando suas orelhas élficas.
Patton aproveitou a baixa do inimigo para atravessar a infantaria. Sem o
obstáculo dos cavaleiros orks, Ele e Ruprest lideraram uma ofensiva contra as
torres de cerco. Ao passar pelos infantes, os cavaleiros foram recebidos por
uma saraivada de flechas, vindas das torres. As bestas orks levaram a vida de
vários cavaleiros, mas eram lentas e difíceis de serem armadas.
Os cavaleiros élficos novamente armaram suas flechas prateadas e
atiraram contra as torres. Acertaram as paredes de três das quatro torres que
estavam ao alcance. Como que por algum encanto, as setas entraram em
combustão e as torres começaram a queimar rapidamente. Os orks tentavam
181
O Draconiano
sair de dentro das torres, mas o fogo as consumia muito depressa e a maioria
morreu queimada.
Logo vieram os Duhr Kazur. Vinham armados com grandes maças
forjadas pelos orks, que terminavam numa esfera cravejada de espetos. Faldan
acertou um com quatro flechas, mas foi necessário o golpe do machado de
Ázaro para que o gigante tombasse.
Ruprest confrontou um deles que corria em sua direção. Mesmo
barrigudo, o velho era ágil e toda vez que esquivava de um golpe do troglodita,
fincava-lhe uma de suas espadas de prata. Bastaram três estocadas com suas
lâminas centenárias para o duhr kazur tombar.
182
O Draconiano
Todavia, outros vieram. O ruivo chegou a lutar com três gigantes de uma
só vez. Teve a ajuda de Ehrin e o velho Karvo, que tombaram juntos um deles,
mas quando vieram mais guerreiros daquela raça, foi preciso que os cavaleiros
élficos o socorressem. Mais uma saraivada de flechas fez com que os
oponentes caíssem.
- Maldição! Salvo por elfos! - praguejou o caçador-de-bruxas.
Ázaro saltou de seu cavalo e pediu ajuda para outros que estavam ao
seu lado. Ele queria derrubar a última torre, que não havia sido lambida pelas
chamas, pois de lá saiam as últimas flechas orks que ameaçavam os
cavaleiros.
Ruprest correu na direção da torre e ajudou na tentativa. Do alto, um ork
armado com sua besta mirou no velho ruivo, que empurrava a torre com toda
sua força. Sem que o ruivo percebesse, o ork disparou, varando seu corpo na
altura do ombro. O guerreiro soltou um urro de dor, mas continuou empurrando
a torre até que esta foi ao chão.
Os orks dentro do engenho ficaram desesperados e então os homens do
leste caíram sobre eles. Ruprest era o mais furioso e, mesmo com um só braço
em condições, cortou e furou os orks como parias.
Patton lutava com um troglodita, quando um vento gelado soprou do
oeste. Ele continuou lutando até matar o adversário. Quando o gigante estava
caído no chão, algo fez o rapaz olhar para trás.
Não muito longe dali, montado num corcel negro, estava um cavaleiro
em uma armadura escura, com adornos dourados. O guerreiro emanava uma
aura de terror e muitos se afastaram dali. Sua capa revoava com o vento
gelado que soprava do oeste.
183
O Draconiano
- Lutai comigo. - disse o guerreiro, com uma voz fria e rouca, que vinha
de dentro de um elmo de topo chato.
Patton pensou nas palavras de Thalien, sobre sua sorte na batalha.
Porém, quando deu por si, já estava desembainhando novamente sua espada
e partindo para cima do inimigo.
O cavaleiro do leste sacou lentamente sua espada e ela tinha uma
lâmina negra. Tawan correu de encontro ao outro corcel, levando Patton, que já
preparava um golpe.
O primeiro choque das duas espadas radiou uma energia que foi sentida
em todo o campo de batalha e em toda região. Os dois se enfrentavam como
se fossem inimigos seculares. Havia ódio em cada golpe e o som do aço fazia
toda Enthär tremer.
Muitos observavam, mas ninguém pôde se intrometer naquele duelo.
Patton desferia seus ataques, mas o Lâmina Negra defendia a todos.
184
O Draconiano
O combate permaneceu equilibrado por algum tempo, mas num
descuido de Patton, o Lâmina Negra tirou-lhe a arma da mão. Patton caiu de
cima de Tawan e ficou indefeso, de joelhos. O Cavaleiro do Oeste virou-se
para o Cavaleiro Branco.
- Então é este o escolhido? Decepcionante! - disse ele com sua voz fria Não passa de um garoto prepotente.
O guerreiro olhou mais uma vez para o rapaz, desceu de seu corcel
negro e atravessou-o lentamente com sua espada de lâmina negra na altura do
peito. A lóriga de Patton foi perfurada com extrema facilidade e o sangue
escorria pelo metal brilhoso.
- Não é páreo para o campeão do oeste, meu senhor. - disse o cavaleiro
branco, com uma voz fina, mas igualmente tenebrosa - Mas parece que
subestimamos o poder do inimigo, Lorde Gwilber. Nossas tropas não durarão
muito no campo de batalha. A chegada dos elfos do norte parece ter virado a
sorte contra nós.
- Não importa. Já esperei por mais de um século. Posso esperar por
mais um. Logo nossas tropas ao oeste estarão com sua força total. Logo, a
queda do oriente e a redenção de Talbor serão inevitáveis.
Os dois reuniram a tropa de elite que os rodeava e partiram rumo ao
norte, deixando para trás Patton. O rapaz estava caído e sangrava muito.
Estava inconsciente. Seus olhos estavam fechados. Mas ele via cenas de
batalhas antigas em seus sonhos e em todas elas, via Gwilber, ceifando vidas
e espalhando o caos.
A batalha parecia estar chegando ao fim e muitos orks já batiam em
retirada. Patton ainda estava caído e ninguém chegava para ajudá-lo, até que
Faldan viu Tawan solto, sem seu cavaleiro.
O elfo correu para o local onde o combate havia sido travado.
Rapidamente percebeu o corpo de Patton estirado no chão e foi ao seu
encontro. O sangue escorria pela sua boca e o elfo começou a gritar por
socorro.
185
O Draconiano
Ruprest correu para perto de Patton e se desesperou ao ver o rosto
pálido do rapaz. O velho se sentia incapaz e que havia falhado com seu amigo
Raikar. Ele ainda tinha a flecha cravada no ombro, mas não se preocupava
com ela.
Os elfos dourados tinham cavalgado para o centro da batalha e, com
suas espadas empunhadas, combatiam os soldados remanescentes. Ernandor
estava entre eles, todavia desviou sua atenção do combate e notando o
desespero de Ruprest, cavalgou até o local.
- O que aconteceu? - inquiriu o druida - Quem o feriu?
Ruprest balbuciou algumas palavras, mas foi Faldan quem respondeu de
fato. Ele dizia não ter certeza, mas vira quando um cavaleiro, de armadura
sinistra, partia bradando sua lâmina negra.
- Então não podemos perder tempo. Nenhuma erva ou láudano que eu
preparar vai ser suficiente para curar este ferimento. - noticiou Ernandor
gravemente - Vamos ter que levá-lo a Palari Kadun o quanto antes.
- Ele não agüentaria a viagem. - disse Ruprest, com um nó na garganta Pereceria antes mesmo de chegar a Locksun.
- Não, Ruprest. Os unicórnios nos levarão e ele terá alguma chance. Se
ficar aqui, seu destino será a morte.
Ruprest fez que sim com a cabeça e olhou novamente para Patton. Seu
rosto estava gélido e o sangue não parava de correr. O ruivo retirou sua
armadura e Ernandor fez um curativo para tentar estancar o sangramento.
Ruprest lembrou-se de seu cantil e despejou toda água que ele havia coletado
na fonte da Dríade Nayan. Então, o meio elfo fez o mesmo e Ernandor sorriu. O
ferimento começou a borbulhar e espumar, mas o poder da Lâmina Negra era
maior e o ferimento não cicatrizou.
- Ele precisa ir. A água de Nayan ajudou, mas não foi eficaz o bastante. disse o Druida.
186
O Draconiano
Faldan levantou Patton e o colocou no lombo de um unicórnio.
- Leve-o para o norte. - disse Ernandor - Logo estarei lá, mas enquanto
isso, peça à Senhora dos Unicórnios que cuide dele.
O meio-elfo subiu na criatura alva e partiu, deixando Ruprest desolado.
O druida olhou para o velho ruivo e notou a seta fincada em seu ombro. Pediu
para que se abaixasse e quebrou a flecha, retirando primeiro a ponta de metal,
que saía pelo seu dorso e, depois, a parte de trás, que permanecia na parte
superior do ombro.
A dor foi grande e Ruprest dera um berro quase tão alto quanto os
clangores da corneta élfica. O caçador-de-bruxas apertou forte o cabo de sua
espada e amaldiçoou o druida. Mas Ernandor não deu atenção a ele e fez um
curativo, recomendando que ele ficasse fora da batalha.
Ruprest ignorou o conselho do druida e voltou para o combate. Pouco a
pouco, os orks iam sendo dizimados numa chuva de metal contra seus
corpanzis. Os que desistiam da luta e fugiam, eram perseguidos pelos
cavaleiros, que não tinham misericórdia por aquela raça vil.
Os trogloditas duhr kazur foram eliminados e as catapultas incendiadas.
Antes do breu da noite, todo o exército inimigo havia tombado. Ehrin tinha um
hematoma na parte posterior da perna, feito por uma maça inimiga, andando
com dificuldade. O jovem olhou a sua volta e viu Ázaro em cima de seu cavalo
branco. Perguntou a ele sobre Patton, Ruprest e Faldan e ficou triste ao tomar
conhecimento da sorte do amigo.
Com a mão segurando o braço ferido, Ruprest se aproximou lentamente
de Ehrin. Ele vinha cabisbaixo e seus cabelos tapavam-lhe o rosto. Suas
espadas estavam embainhadas e ele chutava algumas carcaças de orks
mortos.
- Uma vitória esplendorosa. - disse ele - Mas que preço nós pagamos?
Parece que o chão sumiu debaixo de meus pés. Estou me sentindo em débito
com Raikar.
187
O Draconiano
- Não sejas tolo, Ruprest. Tu cuidaste do garoto a vida inteira. Ele agora
é um homem e tu não podes se achar responsável por ele o resto da tua vida recriminou Ázaro.
Logo chegavam também o Lorde de Locksun e Janô, seu comandante.
Souberam do ferimento de Patton e sentiram por ele. O duque mandou que
seus homens enterrassem os corpos dos soldados mortos e que queimassem
as carcaças dos orks e yushers em uma grande fogueira. Ordenou que
descansassem antes de voltar para casa e liberou o rum e as fogueiras.
Mandou um falcão mensageiro à Nordwil para enviar as boas notícias e
mandou que preparassem um belo banquete para os capitães do leste.
Os elfos dourados partiram tão misteriosamente quanto chegaram, mas
deixaram Ernandor para que cuidasse dos feridos e acompanhasse Ruprest e
Ehrin para Palari Kadun, no dia seguinte.
Ázaro jantou com os comandantes e partiu para Dracon durante aquela
noite. Antes, porém, despediu-se do amigo de longa data.
- Espero notícias de Patton, Ruprest. Tenho certeza de que ele irá
sobreviver, pois seu destino é tomar a liderança dos Draconianos e nos
conduzir nesta guerra que está longe de terminar.
- Que os deuses te ouçam, Ázaro. Como você disse, esta guerra ainda
vai durar muito.
188
O Draconiano
O
s olhos lentamente se abriram. A visão estava turva e a luz fraca,
vinda de uma fresta nas cortinas de uma grande janela, mal
iluminava o ambiente. Patton avistou dois vultos de pé a sua frente.
Um maior, mais parrudo. O outro, menor e franzino. Levou suas mãos aos
olhos e esfregou-os tentando desembaçar a vista.
O jovem ouviu uma alegre voz feminina dando graças por ele ter
acordado. O odor suave de pinho o fazia perceber o lugar aconchegante onde
descansava. Quando a visão começou a voltar ao normal ele pode finalmente
reconhecer os dois vultos. Alya e Ruprest o observavam de perto e a menina
abaixou-se para dar um beijo nos lábios ainda febris do ferido.
- Se soubesse que os enfermos seriam tão bem tratados nesta casa,
não teria deixado que Ernandor me fizesse curativos em Celemar. - disse
Ruprest, demonstrando estar bem feliz com a recuperação do amigo.
Alya afagou o rosto de Patton suavemente e o rapaz retribuiu o carinho
com um sorriso. Seu tórax ainda doía bastante e estava envolto em bandagens
de algodão. Por baixo das faixas, Ernandor havia feito um curativo passando
um láudano à base de ervas deixado por Rino, o druida do Olmo.
- Há quanto tempo estou aqui inconsciente? E a batalha? Tivemos
sucesso? - questionou Patton com uma expressão austera.
- Calmo garoto! Primeiro você precisa alimentar seu corpo. Depois
Faldan lhe contará toda a história. Estivestes no bico do corvo, meu amigo. Por
189
O Draconiano
pouco esta menina não virou viúva mesmo antes de se casar. - disse Ruprest,
fitando Alya com um sorriso de cumplicidade estampado no rosto.
Patton também sorriu, mas Alya só respirou aliviada, como se saísse de
um pesadelo terrível. Ruprest caminhou até uma porta de madeira fechada, a
abriu e mandou que os outros entrassem. Faldan e Ehrin esperavam por
notícias no corredor, do lado de fora do aposento. Estavam impacientes e
ficaram alegres ao serem chamados por Ruprest. Numa mesa perto da janela
estava uma bandeja de prata, repleta de frutas frescas.
Faldan tinha marcas de ferimentos e exibia alguns curativos no braço e
no pescoço, que deixaram Patton curioso. O elfo pegou a bandeja de prata e
levou-a para Patton. Alya serviu um copo de água para ele, ajudando-lhe a
beber. Depois, ainda intrigado, perguntou:
- Onde ganhastes estes ferimentos? Parecem feitos por uma fera e não
pelas espadas yushers. E mesmo que tivessem garras e dentes afiados, duvido
que eles conseguissem te acertar um golpe sequer, quanto mais deixá-lo neste
estado.
- É uma longa história essa, Patton. Mas agora que estamos a salvo e
longe dos exércitos do oeste, acho que poderei contar-te-a toda. - respondeu
Faldan.
Ruprest pediu a Ehrin que fosse rapidamente até a sala do trono para
avisar à Rainha Thalien e ao druida Ernandor do despertar de Patton. O rapaz
saiu em disparada e logo voltou.
Logo atrás de Ehrin estava Ernandor. Tinha um rosto pálido e parecia
mais altivo e nobre do que antes. No entanto, ao entrar, despertou medo em
alguns, pois tinha o semblante sério e frio.
- Pregastes um susto em todos nós, Patton. E, embora eu saiba que não
é o momento mais propício para recriminar-te, tu sabes que este incidente
poderia ser evitado se você não fosse tão teimoso. - falou o druida
severamente, mas ao mesmo tempo com uma suavidade acalentadora na voz Teu coração é bom, mas duro e cheio de orgulho.
190
O Draconiano
- Sinto causar este transtorno a todos vocês. Alguma magia me
impulsionou no campo de batalha e foi mais forte do que eu poderia imaginar.
Quando vi o cavaleiro me desafiando fui tentado a me testar. - desculpou-se o
aventureiro.
- Não foi magia. O inimigo vê teu coração e sabe de tuas fraquezas. Se
te chamo a atenção, não é pelo transtorno, Patton. Nossos corações ficaram
pequenos, principalmente o de Alya. A sua morte seria como o fim de uma
esperança para todos nós. Mas eu conheço muito bem o inimigo e sei de suas
artimanhas. Você também deve conhecê-lo para estar preparado para quando
voltar a encontrá-lo.
- Mas o inimigo foi derrotado, Druida. Não haverá uma próxima vez. disse Alya com uma voz temerosa - Eles se foram, não é mesmo, Patton? continuou ela, procurando o respaldo do amado.
Um silêncio sinistro se fez no quarto e Patton baixou os olhos. Mas Alya
o abraçou com cuidado para que o ferimento não fosse tocado. Ruprest deu
uma pigarreada e olhando para os demais, começou a falar:
- Se quiseres, agora Faldan pode lhe contar sobre o que aconteceu a ti
durante estes nove dias em que ficaste aqui entre a vida e a morte. E Ernandor
poderá lhe dar as boas notícias vindas do sul.
Patton olhou para o meio elfo e se ajeitou na cama. Todos tomaram
seus lugares nas diversas cadeiras feitas de cedro que estavam ajeitadas em
círculo naquele quarto. Apesar de conhecerem aquela história, queriam ouví-la
mais uma vez, pois era, sem dúvida, emocionante.
Faldan prendeu seu cabelo e se preparou para narrar sua aventura.
Bebeu um copo de água, levantou-se e pôs-se a contar a história:
191
O Draconiano
- Como você deve se lembrar, o Cavaleiro Negro o desarmou no Campo
de Celemar e o atravessou com sua lâmina negra. Poucos dos nossos te viram
tombar e, mesmo os que viram, não tiveram coragem o bastante para se
aproximar, pois ainda temiam aquela figura aterrorizante.
- Eu estava em meio à batalha quando percebi Tawan sozinho sem seu
cavaleiro. Corri para o local e te achei ferido, estirado no chão. O sangue
manchava o uniforme de Locksun e saia por sua boca e seu tórax. Percebi que
a situação era grave.
- Logo Ruprest chegou. Ele ainda tinha uma flecha fincada em seu
ombro, mas parecia mais preocupado com seu ferimento do que com o dele
próprio. Seu rosto estava pálido e os olhos muito fundos. Parecia um cadáver.
- Ernandor também nos viu e ordenou que eu te levasse para o norte
montado em um unicórnio, pois o ferimento não poderia ser curado com a
medicina. Mesmo a água de cura de Nayan não foi o bastante para cessar o
sangramento. Segundo as palavras do nosso amigo druida, somente aqui, em
Palari Kadun o veneno da lâmina negra poderia ser combatido.
- Rapidamente eu montei no unicórnio e coloquei-o na minha frente. Era
um belíssimo animal, que só depois eu vim saber que era Auhin Cembor, Rei
dos Unicórnios, a mais veloz e forte montaria de Enthär. Não precisei dar
nenhum comando para que ele partisse rápido como um falcão, mas suave
como se seus cascos não tocassem o solo.
- A noite já tinha caído sobre nós e o unicórnio não parava nem por um
minuto. A escuridão era grande, até mesmo para mim, que tenho a visão
privilegiada. Uma névoa parecia tapar meus olhos. Não era algo natural. Eu
sentia que o mal nos seguia e seu corpo estava frio como a neve.
Ao ouvir este trecho da história Alya, segurou forte a mão de Patton
como se sentisse o que as palavras de Faldan narravam. O meio elfo
interrompeu a fala por um segundo para beber mais um gole de água e limpar
a garganta seca. Ehrin tinha os olhos vidrados nele e estava ansioso para que
ele prosseguisse.
192
O Draconiano
- A esta altura, as patas de Cembor golpeavam fortemente o solo de
Celemar, quebrando o silêncio da noite negra. O esforço por vencer o percurso
o mais veloz possível era notado em sua respiração pesada e o frio fazia suas
narinas exalarem fumaça.
- Se alguma viva alma nos observasse naquela busca incansável,
certamente adivinharia que se tratava de um espectro a passar pelo campo.
Cembor cortava o caminho de volta como uma flecha e, o som de seus cascos
em choque com a terra parecia com o dos tambores de mil exércitos.
- Bem, eu imaginei que havia um mal muito grande nos assolando. A
noite era escura, sem estrelas e sem lua. Um vento frio soprava do norte
quando senti um odor horrível invadindo minhas narinas. Algo como o cheiro de
carne podre que senti, durante dias dentro das ruínas, antes que vocês me
salvassem. A cada passo de Cembor, o frio aumentava e o odor ia se tornando
quase insuportável.
- Ao longe, avistei dois pontos vermelhos que brilhavam como um fogo
pálido de tochas há muito acesas. Prossegui. Ao me aproximar notei que eram
os olhos de uma criatura que as sombras da noite não me permitiam distinguir.
Puxei forte a crina de Cembor e te segurei junto a mim para que não caísses. O
vulto tinha a forma de um urso, mas era bem maior e fedia bem mais do que
cem cadáveres. Ele parecia nos esperar ali, sentado, apoiado sobre suas patas
traseiras, com seus olhos brilhantes nos observando.
O elfo contava a história e ninguém ali ousava interrompê-lo em
momento algum. Nos momentos de pausa, podia se ouvir perfeitamente a
respiração tensa dos demais. Ruprest segurava firme na empunhadura de sua
espada, imaginando a situação terrível passada pelos amigos. O velho ruivo já
tinha ouvido aquela trama duas vezes, mas seus nervos ficavam tensos a cada
vez que ela era recontada.
- Cembor se aproximou lentamente da direção do vulto, mas de repente
cessou bruscamente. O Rei dos Unicórnios empinou as duas patas dianteiras,
mas não nos derrubou. Eu, mais uma vez, segurei firme em sua crina e me
equilibrei.
193
O Draconiano
- Estávamos a poucos curvos da fera, suas formas já estavam bem mais
definidas, mas ainda assim não passavam de sombras no breu. Eu nunca
havia visto ou escutado falar de nada parecido em toda a minha vida e meu
sangue gelou ao ouvir aquela respiração compelida.
- Por alguns segundos eu e Cembor encaramos a criatura sem nada
fazer. Ela também permaneceu imóvel por algum tempo, como se nos
estudasse. Mas, de repente, como um trovão, a criatura se levantou sobre suas
patas traseiras e urrou. Urrou como que dominado por um ódio profundo e seu
berro ecoou por todo o campo, fazendo o chão tremer e o ar correr forte,
trazendo aquele odor indescritível para a nossa direção.
- O unicórnio deu um passo para trás e eu tive que proteger meu rosto
com um dos braços. Tive a sensação de que ele nos atacaria, mas ele ficou ali,
de pé a nossa frente, nos aterrorizando por mais alguns instantes.
- Me preparei para o pior. Sabia que o ataque era iminente e que não
tardaria. Pensei em desviar meu caminho e dar-lhe a volta. Porém, algo dentro
194
O Draconiano
de mim avisava que a fuga seria em vão. Então saquei o arco e armei uma
flecha.
- Cedo foi o inevitável. A criatura ficou mais uma vez apoiado nas quatro
patas e deu um passo a frente. Cembor não vacilou e se manteve imóvel.
Tenho certeza que, se montasse um cavalo naquela hora, o animal teria se
aterrorizado e teria sido nossa ruína, Patton.
- Tenho certeza que sim. - comentou Patton, interrompendo a narrativa Mas talvez não, se este cavalo fosse Tawan.
- Talvez. - concordou Faldan - Mas não tenho toda esta certeza. Tenho
que admitir que nunca senti um medo assim em minha vida e acredito que
seria assim com qualquer um, elfo ou anão.
Ruprest franziu a testa e lançou um olhar severo para o elfo, o
recriminando por citar o povo anão. Faldan deu um pequeno sorriso e bebeu
mais um gole de água.
- Bem, talvez um anão não sentisse todo esse medo, mas eu senti. E,
embora estivesse assustado, soltei minha flecha na direção da fera, numa
tentativa frustrada de feri-lo.
- A flecha se perdeu na escuridão e a criatura nem sequer se moveu.
Percebi então que teria que usar uma arma mais contundente contra aquela
besta, ou acabaria morto sem completar a missão a mim incumbida.
- Olhei para o seu corpo inerte a minha frente, Patton. Devo lhe atestar
que, em seu estado, um cadáver ganharia uma corrida. Você estava pálido
como mármore e sua respiração não passava de alguns suspiros. Cembor
relinchou e bateu com uma pata no chão, tentando intimidar o monstro. A
resposta foi outro urro grotesco como o primeiro.
- Segurei o punho de uma de minhas adagas e senti que não era a arma
ideal. Essa foi a hora em que vi em teu cinturão, a Lâmina Askai embainhada.
Hesitei em sacá-la por alguns instantes, mas puxei-a de uma só vez. Ela
195
O Draconiano
irradiou um brilho magnífico. A escuridão da noite dera lugar a uma penumbra
razoável, como se a lua estivesse alta e cheia.
- Antes a escuridão não tivesse nos deixado. A luz de tua espada
iluminou o local e finalmente revelou todo o horror daquela criatura. Era
realmente um ser feito de ossos e carne decomposta que exalava aquele fedor.
Tinha um crânio comprido de onde saiam uma fileira de chifres de vários
tamanhos que se estendiam até o meio do dorso. Em seu abdome quase não
se via carne, só os ossos das costelas que tornavam visíveis as suas vísceras
apodrecidas.
- Quando a criatura viu o brilho da espada, eu pude notar certo receio,
mas foi nesta hora que ela deu seu terceiro e mais poderoso urro. A fera
mostrou seus longos dentes, todos escuros e recheados de carne podre de
algum ser que virara alimento, mas eram fortes e afiados. Depois o monstro
correu para cima de nós.
- Cembor mais uma vez empinou, mas desta vez, num movimento mais
suave e majestoso. O unicórnio estava confiante com o brilho da Askai e
atacou o monstro com seu chifre. Eu aproveitei a proximidade da besta para
golpeá-la, mas ela se esquivou do ataque, num movimento incrivelmente ágil,
levando-se em conta o seu tamanho.
- A criatura tentou dar uma mordida em meu braço, mas eu defendi sua
investida com a espada e ele se feriu. Não possuía sangue, mas percebi sua
dor e mais uma vez investi contra ele. Desta vez o golpe acertou seu crânio e
ele teve de baixar. Cembor também o estocara com seu chifre e o golpeava
com suas patas.
- Os golpes tinham sido duros, mas a fera reagiu e com suas garras,
feriu gravemente Cembor. Olhei para o peito alvo do unicórnio. Vi bastante
sangue escorrendo ali e senti que era o momento de tomar uma decisão. Saltei
do unicórnio e mandei que ele te levasse para casa o mais rápido que ele
conseguisse.
196
O Draconiano
- A partir daí, o combate se desenvolveu de uma forma mais violenta e
cruel. Praticamente durante horas eu me esquivava dos fortes golpes da
criatura e esperava chances para um contra-ataque. Apesar de toda a minha
agilidade, esses momentos foram poucos, pois eu estava cada vez mais
cansado. Minhas pernas pareciam estar atadas a pedras e meu pescoço quase
não conseguia suportar o peso de minha cabeça. No entanto, a criatura parecia
não se abater e, mesmo que de raspão, seus golpes acabavam por me ferir.
- Tive o azar de me deixar ferir por uma patada da fera que me rasgou o
braço. Quase sucumbi, mas consegui me recuperar e atacá-lo novamente. Por
três vezes fui atingido por suas garras afiadas, mas com um golpe potente e
carregado de ódio, parti uma das patas da criatura. Gritei numa explosão de
fúria e senti pela primeira vez que realmente tinha uma chance de sair vitorioso
daquele embate. O monstro não conseguia mais se locomover com a agilidade
de antes e eu me aproveitei para saltar por sobre sua cabeça e cravar-lhe a
Lâmina de Askai no alto de seu crânio.
- Ele emitiu mais um grito, mas esse era diferente, denotava dor. Vi seus
olhos lentamente perderem o brilho vermelho e suas patas perderem as forças
até não agüentarem o peso daquela carcaça podre. A fera estava morta, se é
que algum dia ela esteve viva, mas eu estava completamente envolto numa
crosta de sangue e suor. Minhas pernas já não sustentavam meu corpo e
finquei a espada no chão para me firmar. Ajoelhei-me e tentei me manter ereto
apoiado ao guarda mão da espada, mas o esforço foi em vão. Tombei ali no
breu da noite e daqui por diante, esta história seria mais bem contada por
Ruprest, ou talvez Ernandor.
Um suspiro uníssono foi ouvido naquele quarto. Mesmo com a
temperatura agradável, os espectadores suavam ao acompanharem a narrativa
do meio elfo e ficavam tensos ao imaginar as cenas daquele combate.
- Bem, eu só tenho que agradecer-te por ter salvo a minha vida, Faldan.
Alegro-me de ver que estais recuperado deste encontro enfadonho. Esse é o
tipo de acontecimento que merece virar uma bela canção élfica, meu amigo. disse Patton.
197
O Draconiano
- Sim, mas esta história ainda não acabou. - disse Ruprest, limpando o
suor de sua testa com um lenço que guardava num bolso do colete que usava Se bem, que a parte mais tensa já passou, agora que sabemos que tu estás
bem.
- Realmente, meu amigo. Agora que Patton está se recuperando e você
está mais calmo, seria agradável ouvi-lo contar o resto desta história. - sugeriu
Ernandor.
Ruprest se levantou e ajeitou o cinto de couro marrom, onde levava suas
espadas centenárias. Pegou novamente o lenço, secou o suor que lhe escorria
pelo canto da boca e começou a relatar a seqüência de seu ponto de vista.
- Como o elfo disse, ficamos preocupados com o seu ferimento, Patton.
Ernandor me disse que você não sobreviveria àquele ferimento se
permanecesse ali. Então ele mandou que Faldan o trouxesse para cá, montado
naquele belo unicórnio.
- A batalha estava quase terminada. Tivemos uma vitória esplendorosa,
mas o custo fora alto. Milhares de baixas entre os soldados, além de você, que
até aquele momento não sabíamos se sobreviveria ou não.
- Ázaro partiu para Dracon. Nós enterramos nossos mortos com honras
e queimamos as carcaças malcheirosas de orks, duhr kazur e yushers.
Esperamos por notícias do sul por dois dias e quando o falcão mensageiro
chegou, os corações se elevaram. O Rei Endor sagrou-se vitorioso na frente de
batalha sul. A batalha lá se mostrou mais fácil do que em Celemar. Os anões
vieram mais uma vez em socorro do povo de Nordwil, liderados pelo Rei Owid
e seu filho Mandoon. Embora o próprio Rei Endor não estivesse à frente do
exército, pois não tinha condições para isso, a batalha foi breve, comandada
por seu sobrinho, Lorde Fya. O povo de Driev montado nos Grandes Lobos
mostrou para todos que, além de grandes ferreiros, são guerreiros vorazes.
- Logo que recebemos as boas novas partimos de volta para casa e o
Lorde Locksun ordenou que fossem feitas patrulhas de caça para aniquilarem
os inimigos que ainda estivessem em nosso solo.
198
O Draconiano
- Cavalgamos em ritmo lento, pois tanto cavalos como guerreiros
estavam exaustos. Os boatos sobre sua sorte eram cada vez maiores.
Capitães vinham perguntar sobre o seu estado, mas infelizmente nenhuma
resposta havia chegado de Palari Kadun. Após uma grande marcha, avistamos
ao longe um vulto de uma carcaça imensa.
- Devo salientar que se não tivesse visto de perto tal criatura, não
acreditaria nas palavras de Faldan. A criatura era realmente hedionda e
putrefiz. Estava jogada no solo, mas a grama abaixo dela estava queimada. Ao
lado, jazia o corpo do nosso companheiro elfo. Ao vê-lo, senti sua perda, pois
estava em situação pior do que quando o encontramos da primeira vez. Mas
Ernandor desceu de sua montaria e achou um sinal de vida em meio ao
sangue, lama e suor que o cobriam.
- Com ajuda de dois soldados, colocamos o rapaz numa das carroças de
mantimentos e o druida foi fazendo curativos. Em minha mente, só sentia que o
elfo falhara em sua missão de levá-lo para casa, porém Ernandor lembrou-me
que o unicórnio não tinha perecido e, certamente teria seguido na missão.
- Finalmente, após dias de viagem, estávamos chegando a Locksun.
Uma multidão foi nos receber com honrarias, mas nem eu nem Ernandor
tínhamos tempo a perder. O Duque entrou na cidade sob aplausos e brados de
glória, mas disse que logo viria buscar Lady Lavia. Ele prometeu que Faldan
seria cuidado de seus ferimentos e que tão logo se recuperasse, cederia um
cavalo para que viesse para cá. Despedimos-nos de Janô e cavalgamos o mais
rápido que as patas de nossas montarias podiam se movimentar.
- Quando chegamos à Floresta dos Unicórnios fomos interceptados por
Serger e Aleyan. Eles nos deram logo notícias de você. Disseram que o
unicórnio havia chegado lhe trazendo, dias atrás. Serger disse que sua febre
era alta, mas que a Rainha havia chamado Rino, o druida do Olmo, para cuidar
de você. Ernandor me garantiu que nas mãos de Rino, você estaria a salvo.
- Quando chegamos, você já estava nesta cama e Rino já havia partido,
pois nada mais poderia fazer e, ao que parece, tinha assuntos importantes a
tratar ao sul.
199
O Draconiano
- Faldan chegou aqui dois dias depois de nós, acompanhado do Duque,
que viera buscar sua esposa. E assim, você foi salvo do manto de Grey.
- É Ruprest. Seu amigo foi salvo por elfos. Não só uma vez, mas duas. E
isso você carregará por todos os dias de sua vida. - disse Faldan - E um elfo do
sul, como aqueles que os anões acusam de ladrões.
Por um momento, Ruprest se enfureceu. Seu rosto enrubesceu e sua
garganta engoliu a seco. Mas, mantendo a calma virou-se para Faldan e disse:
- Por terem salvado a vida daquele por quem tenho mais apreço nessa
vida e por não deixarem que eu faltasse com a minha palavra, dada a Raicar, a
quem prometi cuidar dele até o final da minha vida, estou grato até o dia de
minha morte. Estarei grato a ti, mesmo que me apunhales pelas costas, pois
conheço minhas qualidades e meus defeitos e sei que dentre estes últimos,
não consta a ingratidão. Porém, me sinto como um anão, pois em Driev cresci
e considero o povo de lá minha família. Pelo o que teu povo fez ao meu, não há
desculpas. Apesar de acreditar que entre o joio há trigo e saber que tu és digno
de confiança e de meu respeito.
O clima no quarto ficou pesado, mas apesar de tudo, o respeito entre os
dois era recíproco e a amizade por Patton os deixava mais unidos. Ernandor
interveio na conversa acalentada, mas parou de falar ao perceber a porta se
abrindo e uma claridade invadir o aposento, bela como a dos primeiros raios do
sol da manhã.
Era a majestosa Senhora de Palari Kadun, que viera visitar seu
hóspede. Ao seu lado estavam duas de suas damas élficas. Lindas elas eram,
mas eram ofuscadas pela beleza de sua senhora.
- Bom vê-lo acordado e disposto, Patton, filho de Raikar. Seus amigos
quase sucumbiram esperando por uma melhora sua. Ernandor foi sábio em
suas palavras te repreendendo, mas eu sei, mais do que ninguém, o quanto o
inimigo pode ser ardiloso. Sei também que tu não cometerás o mesmo erro
duas vezes. Não caminhará novamente por cima de seus próprios passos.
Enfim, não falarei mais de tristezas e mau agouros. Hoje é um dia de felicidade
200
O Draconiano
e os pássaros de Palari Kadun poderão voltar a cantar como antes. Os povos
do leste, Anões, Homens e Elfos poderão festejar mais uma vitória sobre o
oeste. Embora cedo seja a hora de voltarmos a nos enfrentar na última das
batalhas desta nova Guerra das raças.
201
O Draconiano
P
atton havia tomado sua decisão há dois meses e quatro já haviam se
passado desde sua chegada. Na tarde do dia do meio da primavera,
data em que os elfos realizavam a Festa de Elbon, o rapaz resolvera
desposar a jovem Alya e a comemoração marcou também o noivado do casal.
O velho caçador-de-bruxas de barba ruiva estava feliz pela união, mas se
zangou ao saber que o casamento seria celebrado numa cerimônia élfica.
Patton contornou a situação, prometendo ao amigo que tão logo fosse possível,
receberia a benção do Rei Owid e da Rainha Dol’o, no Palácio Real de Driev.
A jovem noiva estava ansiosa e disso ninguém tinha dúvida alguma, pois
não esconderia sua ansiedade mesmo que quisesse. Criara amizade por duas
elfas em especial, desde a partida de Thala e Rina, que seguiram para o norte
aos cuidados de Varlens. Flawin e Sinua se tornaram companhias constantes
de Alya naqueles tempos. Eram bem parecidas fisicamente e suas almas eram
de uma alegria selvagens.
Ambas era bem pequenas na altura, chegavam a ser menores do que
Alya, tinham olhos claros como o céu límpido do verão e cabelos cacheados da
cor do mel. Sinua tinha o corpo mais esguio e os seios fartos, mas era Flawin
quem possuía a face mais delicada. Patton gostava que sua amada tivesse a
companhia das duas elfas, pois elas a faziam esquecer das desventuras pela
qual haviam passado nos últimos tempos.
Todas as árvores de Palari Kadun estavam repletas de flores de muitas
cores, exalavam um cheiro maravilhoso e indescritível. Os pássaros cantavam
202
O Draconiano
mais forte agora e pareciam mais felizes. Não raro eram vistos elfos dourados
tocando suas harpas e flautas, cantando em coro com as aves.
Ao contrário de Ruprest, Ehrin e Faldan sentiam-se em casa e gozavam
da hospitalidade de seus anfitriões. Faldan se aprimorava na arte do arco e
Ehrin, curioso, aprendia tudo o que podia saber sobre aquele povo magnífico.
O velho Barba Ruiva, por sua vez, preferia a companhia de Ernandor à
dos elfos. Com ele, discutia sobre os dias vindouros e lembrava de feitos
heróicos do passado. Descobriram amigos em comum e através de muita troca
de conhecimentos, os dois tentavam entender os objetivos e a estratégia do
inimigo.
Quando o dia do casamento finalmente chegou, cinco meses haviam se
passado. Thalien não permitiu que Patton visse sua noiva neste dia. Desde as
primeiras horas da manhã, com o primeiro raio de sol, a rainha se encarregou
de preparar a noiva para a cerimônia.
Mesmo antes do desjejum, Alya era banhada por Flawin e Sinue numa
banheira de mármore branco, com água quente e pétalas de rosas brancas.
Depois do banho, Alya foi servida por outras elfas que traziam frutas e
mel para seu desjejum. Eram tantas mordomias que a menina chegava a
sentir-se constrangida. Sinue deixou-as por alguns minutos e logo voltou
trazendo o vestido da cerimônia que a própria rainha confeccionara. Era branco
e leve, quase transparente. Era preso por alças nos ombros e descia macio até
a altura de seus joelhos. Era um modelo que uma noiva só poderia usar ali em
Palari Kadun, onde a maldade não ousava entrar. Apesar de simples, era belo
e deixava a menina ainda mais graciosa.
A Rainha Thalien também havia feito uma bela grinalda, com as flores
mais bonitas e cheirosas de seu reino. Todas brancas como a neve e lívidas,
como se ainda estivessem presas em seus pés.
No jardim, Patton também ansiava pela noite, quando tomaria Alya para
si. Havia feito sua barba rala que, por desleixo, tinha deixado crescer por vários
dias. Tomou um belo banho e vestiu a roupa que Thalien lhe dera de presente.
203
O Draconiano
A calça, feita de um tecido grosso, era mais larga do que as que ele
habitualmente usava. O par de botas era de couro leve, mas muito bem
trabalhado. Vestiu a camisa de algodão branca que deixava parte de seu tórax
à mostra e dirigiu-se ao jardim, onde encontrou Erhin, Ruprest e Faldan.
Os quatro amigos sentaram-se e beberam algumas canecas da cerveja,
que Faldan e Serger buscaram na estalagem de Paira, Pé de Ganso. Por mais
que apreciasse um bom vinho, Patton não dispensaria uma boa cerveja em
hipótese alguma.
As brincadeiras eram inevitáveis, afinal de contas, ninguém acreditava
que com aquele temperamento intempestivo, Patton se casaria antes mesmo
de completar trinta anos.
Ruprest dizia em tom de zombaria que ainda havia tempo para desistir.
Faldan se prontificava a conseguir carona com os unicórnios e Erhin se
acabava de rir com as besteiras ditas pelos amigos.
O noivo, entretanto, se defendia dizendo que não podia perder a
oportunidade de se casar. Era difícil encontrar uma bela dama que se
dispusesse a casar com alguém como ele. Portanto, devia se apressar para
que a menina não percebesse a asneira que estava fazendo.
Todos riam muito e ao final da tarde, o Duque Byron de Locksun chegara
para fazer parte da festa. Ele vinha com sua esposa Lávia, que carregava o
herdeiro do ducado em seu ventre. Chegaram em uma carruagem, escoltados
por Janô e por meia dúzia de elfos que os esperavam perto da estrada.
- Demoramos a chegar porque viemos lentamente, devido ao estado da
duquesa. Além disso, a carruagem teve problemas para se locomover por entre
as árvores desta floresta - explicou o nobre.
Lady Lavia seguiu direto para um aposento reservado a ela e a Rainha
Dourada foi ao seu encontro. Thalien passou a mão graciosamente na barriga
proeminente da duquesa e disse que a criança era abençoada e seria grande
entre os nobres. Lavia ficou feliz e agradeceu a delicadeza.
204
O Draconiano
Outros convidados logo chegaram. Rino, do Olmo retornou e Patton ficou
feliz em conhecer o druida que lhe salvara a vida. Era ele da raça dos elfos do
sul e como tal, media pouco mais de um curvo. Perto dos altos elfos dourados,
o druida parecia uma pequena criança élfica.
Os elfos que moravam à oeste de Palari Kadun e guardavam aquela parte
da floresta também vieram. E trouxeram consigo presentes em prata e madeira
esculpida.
Nem todos os amigos estavam presentes. Alguns porque já haviam se ido
para outros reinos abençoados, outros porque estavam longe demais, mas a
maioria não poderia ir, já que Palari Kadun era um segredo para a maioria do
povo dos homens.
- Devo parar de beber cerveja se ainda penso em me casar. - disse
Patton, notando que a bebida já começava fazer efeito em seu equilíbrio - E
Alya nunca me perdoaria se estivesse embriagado até mesmo na noite de
nosso matrimônio.
- Dormiria fora do seu aposento na noite de núpcias. Se bem conheço
essa menina, ela seria capaz disso mesmo. - disse Ruprest, secando sua boca
com lenço.
O noivo pediu licença aos amigos e convidados que bebiam com ele e se
dirigiu ao seu aposento. Lavou as mãos, o rosto e sentou-se na cama. Pensou
em muitas coisas e tentou em vão lembrar-se de seu pai. Gostaria que ele
estivesse ali, com seu uniforme de Draconiano e que junto a ele estivesse
também sua mãe. Refletiu sobre como seria difícil a vida para ele e para Alya,
enquanto a Última Batalha não fosse travada.
Faldan bateu à porta e entrou. Olhou para o amigo e percebeu que ele
tinha os olhos úmidos e febris, mas não imaginava a causa da tristeza.
- Mas se hoje é um dia de alegria e festividades, por que verter uma
lágrima sozinho? - perguntou o meio-elfo.
205
O Draconiano
- Não seja tolo, rapaz. Sou Patton, filho de Raicar, o primeiro Draconiano.
Tu nunca verás uma lágrima sequer se esvaindo de meus olhos. - disse Patton,
sorrindo.
O meio-elfo deu uma gargalhada, percebendo a brincadeira de Patton. O
rapaz, por sua vez, levantou-se da cama e deu um abraço no amigo.
Agradeceu mais uma vez pelos feitos do companheiro e saíram.
O jardim já estava todo iluminado com tochas enormes e o chão estava
coberto por pétalas de rosas. Os elfos dourados e os convidados abriram
caminho quando viram Patton chegar. Ao fundo estava a Rainha Thalien e
quase todos os unicórnios. Um pequeno altar fora construído e Patton se
aproximou com um largo sorriso no rosto.
Alguns dos elfos tocavam uma melodia alegre com suas flautas, cítaras e
liras. Faldan se apoderara de um atabaque de madeira e acompanhava os
demais na música.
A lua estava cheia e parecia próxima, como se convidada para a festa.
Muito vinho era servido enquanto o noivo esperava a chegada de sua
prometida.
De repente, os tambores élficos começaram a serem tocados e o portal
de Palari Kadun começou a ser aberto. Pandel e Aleyan o faziam lentamente e
revelavam a bela Alya, graciosa como nem uma outra mortal fora em outras
eras. Estava montada em Auhin Cembor e usava em seu pescoço um pingente
do mais puro cristal que lhe fora dado de presente pelos elfos. À sua frente
estavam Sinue e Flawin, carregando um buquê cada. Os olhos de Patton
brilharam ao vê-la e a Rainha Thalien sorriu ao ver sua felicidade.
Cembor vinha andando lentamente. Atrás dele vinha Fabrion, tocando
uma gaita élfica que emitia os mais variados e belos sons. Alya não se mexeu
até que o unicórnio chegasse ao altar. As damas élficas se posicionaram ao
lado da Rainha e o unicórnio dobrou sua pata dianteira, abaixando-se como
numa reverência cortês.
206
O Draconiano
Dando um passo à frente, Patton segurou a mão de Alya e ela então
desceu de sua montaria. Sua mão estava trêmula, mas ao olhar para os olhos
de Patton, sentiu-se segura. Os dois se aproximaram da Senhora Dourada dos
Unicórnios, se entreolharam mais uma vez e esperaram que ela se
pronunciasse.
- Nesta noite, terei eu o privilégio de abençoar duas almas que se amam e
merecem toda a felicidade que Elbon possa proporcionar. Da Ilha do Sul partiu
ele e por caminhos tortuosos seguiu, estando perto da morte por várias vezes.
Mas assim quiseram os deuses e, ao norte, Patton encontrou a pequena Alya,
grande no coração e na alegria. Que hoje seja o primeiro dia de uma vida
inteira de felicidade e que todos os deuses abençoem esta união.
Quando a rainha parou de falar, a ave alva de calda de penas longas, que
cantara para os aventureiros em seu primeiro dia em Palari Kadun, ressurgiu
no alto de uma árvore. Bateu suavemente suas leves asas, alçou vôo e pousou
no altar.
Thalien o saudou, o pássaro retribuiu a reverência e começou a cantar.
Seu canto agudo hipnotizava a elfos e homens. Logo ele se incandesceu e
começou a brilhar fortemente. Súbito, a ave subiu ao céu e todas as chamas
das tochas se apagaram. No alto, só se via o pássaro todo iluminado e agora
nem a lua se mostrava.
Um suspiro uníssono foi ouvido no jardim e o pássaro entoou uma última
nota, a mais aguda de todas e explodiu em fogos brancos que nem elfos, nem
homens poderiam produzir. Os convidados, bem como os noivos ficaram
boquiabertos durante a exibição do pássaro. Por fim, ele subiu o mais alto que
ninguém mais podia vê-lo.
As tochas voltaram a se acender e muitos tinham lágrimas nos olhos,
mesmo sem perceberem. Patton olhou para Alya, tomou-a em seus braços e
beijou-a como se fosse a última vez, pois sabia que os dias vindouros seriam
terríveis.
207
O Draconiano
O Draconiano é um livro de Fernando Russell, escrito entre os anos de 1998 e 2008 e
tem como único objetivo trazer um pouco de lazer para os (assim como eu) afixionados em
histórias de fantasia. A arte do livro foi parcialmente produzida por Christiano Flexa e a
correção ortográfica foi gentilmente feita por Lúcio Nunes.
208

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