Parecer pipeline - Luís Roberto Barroso

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Parecer pipeline - Luís Roberto Barroso
Luís Roberto Barroso
AÇÃO RESCISÓRIA E PROPRIEDADE INDUSTRIAL. ACÓRDÃO QUE
RECONHECE PATENTE PIPELINE NOS TERMOS DO ART. 230 DA LEI Nº
9.279/96. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL1
Ementa. 1. Não cabe ação rescisória, por violação a literal
disposição de lei (CPC, art. 485, V), para revisão de sentença
que haja adotado interpretação conciliável com o teor do
dispositivo legal, ainda que a jurisprudência tenha
posteriormente consolidado orientação diversa daquela
acolhida pela decisão rescindenda. Súmula nº 343/STF. 2. O
mesmo raciocínio incide nos casos em que se alega violação
a comando constitucional, sendo certo que: (i) a mera
invocação da Carta como argumento de reforço não
caracteriza aplicação direta da Constituição pela decisão
rescindenda; e (ii) o cabimento da rescisória nesses casos
depende de manifestação definitiva e inequívoca do STF
sobre o dispositivo constitucional controvertido. 3.
Descabimento da ação rescisória na hipótese, tendo em vista
que: (i) o acórdão rescindendo se limitou a aplicar
dispositivos da legislação ordinária; e (ii) inexiste
jurisprudência consolidada no STF sobre a matéria. 4.
Quanto ao mérito da ação rescisória, não se verifica a
alegada violação ao art. 5º, XXIX, da Constituição: ao
disciplinar o sistema pipeline, o legislador brasileiro
transitou validamente pelo espaço de conformação de que
dispõe na matéria, não havendo que se falar em
inconstitucionalidade.
I. CONSULTA
Parte I
Nota doutrinária: segurança jurídica e ação rescisória
1
O presente estudo foi elaborado com a colaboração de Ana Paula de Barcellos, Professora Adjunta
de Direito Constitucional da UERJ, universidade pela qual é Mestre e Doutora em Direito Público.
Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Doutor e Livre-Docente pela UERJ
Mestre em Direito pela Yale Law School
Luís Roberto Barroso
II. A
SEGURANÇA JURÍDICA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL E O
CARÁTER EXCEPCIONAL DA RESCISÃO DE DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO.
III. SENTIDO E ALCANCE DA HIPÓTESE DE CABIMENTO DE RESCISÓRIA PREVISTA NO ART.
485, V, DO CPC.
III.1. O conceito de “violação a literal disposição de lei”:
a) Diferentes possibilidades interpretativas admitidas dentro dos limites do texto
normativo não configuram violação a literal disposição de lei.
b) A Súmula nº 343 do STF.
III.2. Uma observação: quando a disposição de lei violada em sua literalidade é um
dispositivo constitucional:
a) A violação a literal disposição constitucional.
b) A controvérsia sobre a não aplicação da Súmula nº 343.
Parte II
Aplicação dos conceitos à hipótese. Constitucionalidade do sistema pipeline
IV. O ACÓRDÃO RESCINDENDO: INTERPRETAÇÃO DE DISPOSIÇÕES INFRACONSTITUCIONAIS.
INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL NA HIPÓTESE.
V. CONSTITUIÇÃO, LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA E VALORAÇÕES POLÍTICAS
V.1. A liberdade de conformação do legislador democrático.
V.2. Os artigos 230 e 231 da Lei nº 9.279/96: o sistema pipeline instituído pelo
legislador brasileiro.
VI. DIRETRIZES
INEXISTÊNCIA
CONSTITUCIONAIS
EM
MATÉRIA
DE VIOLAÇÃO AO ART.
RAZOABILIDADE
DE
5º, XXIX
PROPRIEDADE
DA
INDUSTRIAL.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
DO SISTEMA PIPELINE DENTRO DO ESPAÇO LEGÍTIMO DE OPÇÕES DO
LEGISLADOR BRASILEIRO.
VII.
CONCLUSÃO
2
Luís Roberto Barroso
I. CONSULTA
1.
Trata-se de consulta aduzida pela Compania “A” acerca de ação
rescisória ajuizada pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), com
fundamento no artigo 485, V, do CPC, a fim de rescindir acórdão proferido pela 5a Turma
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região na Apelação em Mandado de Segurança nº
“X”.
2.
O referido acórdão rescindendo fixou interpretação para o § 4º do
art. 230 da Lei nº 9.279/96 (LPI)2 segundo a qual a patente pipeline deve vigorar no Brasil
pelo mesmo prazo remanescente de sua vigência no país em que originalmente concedida,
observado o limite máximo de 20 (vinte) anos previsto pelo art. 40 do mesmo diploma
legal3. Em sede rescisória, o INPI defende, em suma, que essa interpretação viola a
literalidade dos arts. 40 e 230, § 4º, da LPI, cuja interpretação adequada, a seu ver, levaria
à conclusão de que as patentes pipeline devem sempre vigorar pelo prazo de 20 (vinte)
anos contados do primeiro depósito no exterior. Note-se que a interpretação do art. 230, §
4º do CPC é ainda relativamente controversa em sede jurisprudencial4, e em especial no
âmbito do TRF da 2ª Região. Esse, porém, não é o tema do presente parecer.
3.
A consulente reporta que, no curso da referida ação rescisória, a
Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas
Especialidades – ABIFINA teve o seu ingresso admitido na condição de amicus curiae.
Ao ingressar no feito, a ABIFINA, também com fundamento no inciso V, do art. 485 do
CPC, passou a argumentar que o v. acórdão rescindendo violaria a literalidade de normas
2
LPI, art. 230, § 4º: “Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo
remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do
depósito no Brasil e limitado ao prazo previsto no art. 40, não se aplicando o disposto no seu
parágrafo único”.
3
LPI, art. 40, caput: “A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de
utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito”.
4
No âmbito do STJ, e.g., só existem duas decisões sobre o tema, ambas proferidas pela 3ª Turma
daquele Tribunal Superior, sendo que cada qual adota um dos entendimentos acima referidos: DJ 08
fev.2010, REsp 1.145.637/RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS);
e DJ 28 jun.2004, REsp 445.712/RJ, Rel. Min. Castro Filho.
3
Luís Roberto Barroso
e princípios constitucionais – em especial do art. 5º, XXIX, da Constituição da Federal5 –
na medida em que o próprio sistema pipeline seria inconstitucional. O argumento da
ABIFINA, em resumo, é o de que as patentes pipeline contrariam o art. 5º, XXIX da
Constituição ao permitir a revalidação de patente estrangeira em detrimento do requisito
da novidade. Esse requisito, segundo o raciocínio da ABIFINA, seria o único apto a
garantir o “desenvolvimento tecnológico e econômico do País”, nos termos do dispositivo
constitucional citado.
4.
O presente parecer, a pedido da consulente, versa sobre a
manifestação da ABIFINA.. Indaga-se, em suma, se o argumento utilizado pela
Associação autoriza o cabimento da ação rescisória proposta. A resposta, já se pode
adiantar, é negativa. Do exame do material fornecido pela consulente e da interpretação
do sistema constitucional e legal pertinentes, não é plausível ou consistente afirmar que o
acórdão rescindendo tenha violado qualquer literal disposição constitucional. Como
conseqüência, a ação rescisória não é cabível. As razões que conduzem a essa conclusão
serão expostas na seqüência, de acordo com o roteiro inicial apresentado .
Parte I
Nota doutrinária: segurança jurídica e ação rescisória
II. A
SEGURANÇA JURÍDICA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL E O
CARÁTER EXCEPCIONAL DA RESCISÃO DE DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO.
5.
O tema suscitado pelo consulente envolve, como se viu, a
desconstituição de uma decisão transitada em julgado. A interpretação do tema, portanto,
deve reger-se pelo princípio da segurança jurídica, mandamento que se irradia por todo o
sistema e projeta-se em regras diversas6. Para os fins aqui relevantes, merece destaque sua
5
CF, art. 5º XXIX: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua
utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de
empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País”.
6
O conhecimento convencional, de longa data, situa a segurança – e, no seu âmbito, a segurança
jurídica – como um dos fundamentos do Estado e do direito, ao lado da justiça e, mais recentemente,
4
Luís Roberto Barroso
especificação na garantia constitucional da proteção à coisa julgada7. A coisa julgada tem
por escopo assegurar a estabilidade do ato estatal que soluciona um litígio, imunizando os
efeitos da decisão, no âmbito do processo (coisa julgada formal) e, sobretudo, fora do
processo, isto é: aqueles efeitos que atingem as partes em suas relações (coisa julgada
material)8.
6.
Como é corrente, a proteção da coisa julgada é a materialização, sob
a forma de uma regra explícita, do princípio da segurança jurídica, em cujo âmbito se
resguardam a estabilidade das relações jurídicas, a previsibilidade das condutas e a certeza
jurídica que se estabelece acerca de situações anteriormente controvertidas9. De fato, o
fim da situação litigiosa e o restabelecimento da paz social são valores relevantes para a
sociedade e para o Estado, e em seu nome se impede a reabertura da discussão, mesmo
diante da alegada injustiça da decisão10. Daí porque, no Brasil, a coisa julgada, de longa
do bem-estar social. As teorias democráticas acerca da origem e justificação do Estado, de base
contratualista, assentam-se sobre uma cláusula comutativa: recebe-se em segurança aquilo que se
concede em liberdade. No seu desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, a expressão segurança
jurídica passou a designar um conjunto abrangente de idéias e conteúdos, que incluem (i) a
existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da
legalidade; (ii) a confiança nos atos do Poder Público, que deverão reger-se pela boa-fé e pela
razoabilidade; (iii) a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na
anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em
face da lei nova; (iv) a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os
que devem ser suportados; e (v) a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômicas
para situações idênticas ou próximas.
7
Constituição Federal, art. 5º, XXXVI: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito
e a coisa julgada”.
8
Cândido Rangel Dinamarco, Relativizar a coisa julgada material, Revista de Processo 109:34-8,
2003: “A distinção entre coisa julgada material e formal consiste, portanto, em que a) a primeira é a
imunidade dos efeitos da sentença, que os acompanha na vida das pessoas ainda depois de extinto o
processo, impedindo qualquer ato estatal, processual ou não, que venha a negá-los; enquanto que b)
a coisa julgada formal é fenômeno interno ao processo e refere-se à sentença como ato processual,
imunizada contra qualquer substituição por outra”.
9
Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, A segurança jurídica na era da velocidade e do
pragmatismo. In: Temas de direito constitucional, t. I, 2002.
10
Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. V, 1997, p. 100: “A atribuição de
coisa julgada põe acima da ordem jurídica, das regras jurídicas, o interesse social de paz, de fim à
discussão, mesmo se foi injusta a decisão”; e José Carlos Barbosa Moreira, Considerações sobre a
chamada “relativização” da coisa julgada material, Revista Forense 377:48-50, 2005: “Há, porém, um
momento, em que à preocupação de fazer justiça se sobrepõe a de não deixar que o litígio se
eternize. Desse momento em diante, impede a lei que se prossiga na investigação; e, se foi julgado o
mérito (= foi composta a lide), proíbe que, em qualquer processo futuro, se ressuscite o assunto. (...)
Ressalvadas as hipóteses legalmente contempladas, com a coisa julgada material chegou-se a um
point of no return. Cortaram-se as pontes, queimaram-se as naves; é impraticável o regresso. Não se
vai ao extremo bíblico de ameaçar com a transformação em estátua de sal quem pretender olhar para
trás; mas adverte-se que nada do que se puder avistar, nessa mirada retrospectiva, será eficazmente
utilizável como aríete contra a muralha erguida. Foi com tal objetivo que se inventou a coisa julgada
5
Luís Roberto Barroso
data, deixou de ser apenas um instituto de direito processual para adquirir status
constitucional11.
7.
As idéias a seguir expostas levam em conta as premissas acima. O
texto constitucional admite a possibilidade de rescisão de decisões transitadas em
julgado12, mas esta será sempre uma medida de caráter excepcional, a ser interpretada de
modo estrito13. Uma linha de interpretação das normas existentes que banalizasse a
garantia da coisa julgada seria certamente incompatível com o princípio constitucional
fundamental da segurança jurídica.
III. SENTIDO
E ALCANCE DA HIPÓTESE DE CABIMENTO DE RESCISÓRIA PREVISTA NO
ART. 485, V, DO CPC.
III.1. Diferentes possibilidades interpretativas admitidas dentro dos limites do texto
normativo não configuram violação a literal disposição de lei.
8.
A questão trazida pela consulente envolve o cabimento de ação
rescisória proposta com fundamento no art. 485, V, do Código de Processo Civil. Essa é a
material; e, se ela não servir para isso, a rigor nenhuma serventia terá. (...) O interesse na
preservação da res iudicata ultrapassa, contudo, o círculo das pessoas diretamente envolvidas. A
estabilidade das decisões é condição essencial para que possam os jurisdicionados confiar na
seriedade e na eficiência do funcionamento da máquina judicial. Todos precisam saber que, se um
dia houverem de recorrer a ela, seu pronunciamento terá algo mais que o fugidio perfil das nuvens.
Sem essa confiança, crescerá fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus
próprios meios à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causará à
tranqüilidade social”.
11
A primeira Constituição a consagrar expressamente a proteção à coisa julgada foi a de 1934, em
seu artigo 113, 3: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o acto jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Salvo por variação ortográfica, foi repetida em todas as Constituições que se seguiram, inclusive a de
1988.
12
Constituição Federal, arts. 102, I, j; 105, I; e 108, I, b.
13
A doutrina, no particular, é pacífica, como se colhe em José Carlos Barbosa Moreira, Eficácia da
sentença e autoridade da coisa julgada. In: Temas de direito processual (terceira série), 1984, p. 102:
“Formada a res iudicata, a sentença se torna normalmente imutável, e apenas por exceção poderá
ainda cair, em casos de suma gravidade, taxativamente arrolados”. V. tb. Ada Pellegrini Grinover,
Ação rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional, Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política 17:51, 1996; Humberto Theodoro Júnior, A ação rescisória e o
problema da superveniência do julgamento da questão constitucional, Revista de Processo 79:165,
1995; Maria Conceição Alves Dinamarco, Ação rescisória, 2004, p. 135 e ss..
6
Luís Roberto Barroso
dicção do dispositivo:
“Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser
rescindida quando:
(...)
V – violar literal disposição de lei;(...)”.
9.
É preciso, portanto, definir o sentido e o alcance da expressão legal –
“violar literal disposição de lei” – para que se possa, em seguida, examinar o acórdão
rescindendo e verificar se o mesmo teria ou não incorrido nessa espécie de vício. Antes,
porém, será útil fazer uma rápida observação acerca da estrutura de julgamento da ação
rescisória e do juízo de admissibilidade ou cabimento dessa espécie de demanda.
10.
Os processualistas destacam que três juízos diversos estão
envolvidos no julgamento de uma ação rescisória. Em primeiro lugar, tem-se o juízo de
admissibilidade da própria ação, no qual se vai apurar se a alegação do autor enquadra-se
com a mínima consistência em alguma das hipóteses legais que admitem a rescisão. Caso
a ação seja admitida, passa-se ao juízo rescindente (iudicium rescindens), no qual se vai
decidir se a coisa julgada deve ou não ser desconstituída. Uma vez que se decida por sua
desconstituição, poderá ser necessário um terceiro juízo14: o chamado juízo rescisório
(iudicium rescissorium). Neste último momento, o órgão jurisdicional reexaminará a
matéria de fundo discutida na ação original15.
11.
O que importa destacar aqui é a distinção entre o juízo de
admissibilidade e o juízo rescindente. Naturalmente, não basta ao autor da demanda
afirmar genericamente que, e.g., a decisão rescindenda violou literal disposição de lei para
que a ação seja cabível e possa prosseguir. É preciso que a argumentação do autor conte
14
Mesmo desconstituída a coisa julgada, nem sempre haverá necessidade de reapreciar a matéria de
fundo, como acontece, e.g., quando a decisão desconstituída havia violado coisa julgada anterior,
uma das hipóteses de rescisão nos termos do art. 485, IV, do CPC.
15
De acordo com o art. 488 do Código de Processo Civil, na petição inicial o autor deve “cumular ao
pedido de rescisão, se for o caso, o de novo julgamento da causa”. V. também o art. 494 do Código
de Processo Civil. Na doutrina, ver, entre outros, José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao
Código de Processo Civil, vol. V, 2003, p. 204 e ss.; José Rogério Cruz e Tucci, A causa petendi na
ação rescisória, Revista Forense 339, 1997; Sérgio Sahione Fadel, A ação rescisória no novo Código
de Processo Civil, s. d., p. 33-5; Rosalina P. C. R. Pereira, O art. 485, V, do Código de Processo Civil,
Revista de Processo 86:119, 1997.
7
Luís Roberto Barroso
com uma aparência de bom direito (fumus boni iuris) e seja minimamente verossímel.
Desse modo, no juízo de admissibilidade, cabe ao magistrado apreciar, em cognição
sumária, se a narrativa do autor efetivamente se enquadra em uma das hipóteses legais de
rescindibilidade.
12.
Esse é um aspecto da maior relevância. A pendência de uma ação
rescisória não é indiferente para o réu, beneficiário da coisa julgada que se deseja
rescindir. A jurisprudência tem inclusive admitido a concessão de efeito suspensivo a
ações rescisórias para o fim de sustar a execução da decisão rescindenda em casos
excepcionais16. Bastasse a alegação do autor para o conhecimento da ação rescisória, sua
propositura se transformaria facilmente em um meio adicional e corriqueiro de eternizar
as discussões judiciais, já que apenas após o trânsito em julgado da decisão proferida na
ação rescisória a questão teria sido encerrada. E, a rigor, nada impediria a propositura de
nova ação rescisória, agora contra a decisão da primeira rescisória, e assim
sucessivamente17.
13.
Pois bem. Tendo em conta os limites da questão trazida à consulta, o
que cabe verificar é se o argumento exposto pela ABIFINA na ação rescisória – de que o
acórdão rescindendo teria violado a literalidade do art. 5º, XXIX, da Constituição – é
razoavelmente consistente. Para isso, é necessário delinear o sentido e o alcance da
hipótese de rescindibilidade prevista no art. 485, V, do CPC, que é o que se passa a fazer.
a) O conceito de “violação a literal disposição de lei”.
14.
Admite-se a rescisão de decisão transitada em julgado, como já
referido, quando a decisão rescindenda haja violado literal disposição de lei. Mas qual o
16
A despeito do que dispõe o art. 489 do CPC (“A ação rescisória não suspende a execução da
sentença rescindenda”). As referências que se seguem são alguns exemplos de decisões nas quais
se conferiu efeito suspensivo à rescisória: STF, DJ 15 mar.2002, Pet. 2487/SP, Rel. Min. Carlos
Velloso; STF, DJ 21 jun.2002, AR 1685/DF, Rel. Min. Ellen Gracie; STF, DJ 5 set.2003, Ação Cautelar
23-8/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; e STF, DJ 25 jun.2004, AR-MC 1699/DF, Rel. Min. Marco Aurélio,
Rel. para acórdão Min. Joaquim Barbosa.
17
A ilustração não é ad terrorem. Uma pesquisa na jurisprudência dos tribunais superiores revela a
existência de casos nos quais foram propostas diversas ações rescisórias sucessivas.
8
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sentido que se deve atribuir a essa expressão? A resposta à questão é simples e, a rigor,
pacífica na doutrina e na jurisprudência.
15.
Entende-se que a violação a literal disposição de lei, prevista no art.
485, V, do CPC, descreve hipótese na qual a decisão rescindenda tenha adotado
interpretação inconciliável com o teor do texto legislativo ou, em outros termos, quando o
entendimento que transitou em julgado não possa ser reconduzido a qualquer das
possibilidades de sentido que o texto admite. Não caberá ação rescisória pelo fato de se ter
proferido uma decisão pretensamente contrária a uma das normas comportadas pelo texto
legal. Diferentes decisões, fundadas em múltiplas interpretações a que se abre o
dispositivo aplicável, embora divergentes entre si, são com ele compatíveis18. Apenas
decisões incompatíveis com o texto autorizam a propositura de rescisória.
16.
Mesmo porque, e o ponto já se tornou corrente, o texto legislado, ou
o enunciado normativo, não se confunde com a norma, que é o produto final da
interpretação levada a cabo pelo Judiciário19. Em primeiro lugar, é freqüente que o próprio
18
Tal constatação tem a adesão do próprio Hans Kelsen, que em sua celebrada Teoria pura do
direito – uma das obras de maior significação no século que se encerrou – escreveu (1979, p. 46670): “A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia
fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada) e que a ‘justeza’
(correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. (...) A interpretação de uma lei não
deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente
a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor,
se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito. (...) Na
aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de
conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do
Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação
cognoscitiva”.
19
A doutrina mais moderna tem traçado uma distinção entre enunciado normativo e norma, baseada
na premissa de que não há interpretação em abstrato. Enunciado normativo é o texto, o relato contido
no dispositivo constitucional ou legal. Norma, por sua vez, é o produto da aplicação do enunciado a
uma determinada situação, isto é, a concretização do enunciado. De um mesmo enunciado é possível
extrair diversas normas. Por exemplo: do enunciado do art. 5º, LXIII da Constituição – o preso tem
direito de permanecer calado – extraem-se normas diversas, inclusive as que asseguram o direito à
não auto-incriminação ao interrogado em geral (STF, DJ 14 dez.2001, HC 80949/RJ, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence) e até ao depoente em CPI (STF, DJ 16 fev.2001, HC 79812/SP, Rel. Min. Celso
de Mello) . Sobre o tema, v. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 270 e ss.;
Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, Revista da Faculdade de Direito da
UFRGS, Edição especial comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da República Federal da
Alemanha, 1999, p. 45 e ss.; Riccardo Guastini, Distinguendo. Studi di teoria e metateoria del diritto,
1996, p. 82-3; Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2003, p. 13; e Ana Paula de Barcellos,
Ponderação, racionalidade e prestação jurisdicional, 2005.
9
Luís Roberto Barroso
texto legal, abstratamente considerado, admita múltiplas interpretações20. Ademais, o
magistrado terá de considerar igualmente, além do texto, as circunstâncias específicas do
caso. Da conjugação desses elementos, ao fim do processo interpretativo, é que terá
origem a norma, apta a solucionar a lide. Assim, não é incomum que normas diversas
possam ser construídas com fundamento em um mesmo enunciado21.
17.
Feita a digressão, volte-se ao ponto. A ação rescisória será cabível
quando a decisão rescindenda tenha violado o texto do enunciado normativo, sua
literalidade, mas não quando tenha aplicado uma das normas que podem ser extraídas do
texto legal. Note-se um aspecto importante da questão. Embora o intérprete esteja longe
de ser um aplicador mecânico da lei, em um Estado democrático de direito o texto é, ao
mesmo tempo, o objeto inicial e o limite do processo interpretativo22. Nesse ambiente, a
ação rescisória não se presta a “melhorar” a decisão original, substituindo a norma ali
acolhida por outra que se considere mais adequada; para isso existe amplíssimo sistema
recursal23. Sua função é apenas garantir que a interpretação jurídica respeite os limites
semânticos do texto legislado24.
20
O próprio direito positivo reconhece essa evidência ao positivar figuras como a “declaração de
inconstitucionalidade sem redução do texto” (Leis nº 9.868/99 e n° 9.962/99). Por meio dessa técnica,
como se sabe, considera-se inválida uma das normas comportadas pelo texto, mas o enunciado em
si permanece válido, preservando-se as demais normas que dele se extraem.
21
Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 17: “O
que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as
normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo. (...) O
conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de
possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky].”
22
Já foram superados os excessos propiciados por correntes como a tópica e a nova retórica. Para
estas, o “problema” a ser resolvido possuía prioridade sobre a norma e o sistema. O fundamental era
que o magistrado chegasse à solução mais razoável para o caso, mesmo que tal solução não
pudesse ser extraída dos padrões gerais e abstratos estabelecidos nos textos legais. Hoje,
diferentemente, a solução razoável é buscada dentro dos limites abertos pelo direito positivo. V.
Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 1999; Konrad Hesse, Elementos de
direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 64; Ernest-Wolfgang Böckenförde,
Los métodos de interpretación constitucional – Inventario y crítica. In: Escritos sobre derechos
fundamentales, 1993; Thomas da Rosa Bustamante, Sobre o conceito de norma e a função dos
enunciados empíricos na argumentação jurídica segundo Friedrich Müller e Robert Alexy, Revista de
Direito Constitucional e Internacional 43, 2003.
23
Como ressalta o STF, DJ 22 mar.2002, AR 1213/SP, Rel. Min. Néri da Silveira, a rescisória não é
“instrumento hábil à eventual uniformização de jurisprudência ou reparação de tratamento diverso,
que outros julgados sobre a espécie hajam conferido a outras partes”.
24
Teresa Arruda Alvim Wambier, Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito
direito e de ação rescisória, 2001, p. 283 e ss.
10
Luís Roberto Barroso
18.
Pois bem. O que se acaba de descrever é unanimemente reproduzido
pela jurisprudência ao examinar o cabimento de ações rescisórias, como se pode ver dos
trechos de acórdãos transcritos abaixo:
“A ofensa a literal disposição de lei deve traduzir frontal
contrariedade ao dispositivo”.25
“Para ser julgado procedente, o pedido rescindendo deduzido em
ação rescisória fulcrada no inc. V do art. 485 do CPC depende,
necessariamente, da existência de violação, pelo v. acórdão
rescindendo, a literal disposição de lei. A afronta deve ser direta –
contra a literalidade da norma jurídica – e não deduzível a partir de
interpretações possíveis, restritivas ou extensivas, ou mesmo
integração analógica”.26
“Ação rescisória: via impugnativa angusta. Para que a ação
rescisória fundada no art. 485, V, do CPC, prospere é necessário
que a interpretação dada pelo "decisum" rescindendo seja de tal
modo aberrante, que viole o dispositivo legal em sua literalidade.
Se, ao contrario, o acórdão rescindendo elege uma dentre as
interpretações cabíveis, ainda que não seja a melhor, a ação
rescisória não merece vingar, sob pena de tornar-se 'recurso'
ordinário com prazo de 'interposição' de dois anos. Precedente do
STJ: AR n. 208/RJ. Precedentes do STF: RE n. 50.046 e ERE n.
78.314/RJ”.27
“A ação rescisória só se justifica ‘quando a lei tida por ofendida o
foi em sua literalidade’, o que não ocorre quando o acórdão
rescindendo, dentre as interpretações cabíveis, elege uma delas e a
interpretação eleita não destoa da literalidade do texto de lei”.28
“É necessário que a interpretação conferida pela decisão
rescindenda seja de tal forma extravagante que infrinja o preceito
legal em sua literalidade. A injustiça da decisão ou a má apreciação
da prova não justificam o iudicium rescindens”.29
25
STF, DJ 27 mar.1987, AR 1066/MG, Rel. Min. Francisco Rezek. Na mesma linha, v., dentre outros,
STF, DJ 22 set.2006, AR 1470/PI, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Min. Ellen Gracie.
26
STJ, DJ 17 fev.2003, AR 720/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi.
27
STJ, DJ 5out.1996, REsp 9086/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel. No mesmo sentido, dentre muitos
outros, STJ, DJ 23 out.2004, AR 2779/DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini; STJ, DJ 19 dez.2003, AR
464/RJ, Rel. Min. Barroso Monteiro; e STJ, DJ 1°fev.1999 , REsp 168836, Rel. Min. Adhemar Maciel.
28
STJ, DJ 3 nov.1998, AgRg no AG 171750/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter.
29
STJ, DJ 23 nov.1998, AR 624/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca.
11
Luís Roberto Barroso
19.
Na linha do que se acaba de expor, portanto, a ação rescisória só será
cabível se o acórdão rescindendo houver adotado interpretação que viole a literalidade de
algum dispositivo legal. E o conceito de violação literal se completa ainda com um
elemento adicional, consagrado pelo Supremo Tribunal Federal no verbete nº 343 da
Súmula da jurisprudência dominante, objeto de análise a seguir.
b) A Súmula nº 343 do STF.
20.
O enunciado da súmula da jurisprudência dominante do STF nº 343
tem a seguinte dicção:
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei,
quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de
interpretação controvertida nos tribunais”.30
21.
Nos termos da súmula, se a decisão rescindenda foi proferida em
ocasião na qual havia controvérsia acerca da interpretação de dispositivo de lei, acolhendo
uma das teses então discutidas, o fato de, posteriormente, o entendimento sobre a matéria
pacificar-se em sentido diverso não autoriza a propositura da rescisória31. A lógica da
súmula decorre do que se expôs acima acerca da violação à literalidade do texto legal.
Com efeito, se diferentes Tribunais divergiam acerca da interpretação adequada de
determinado dispositivo legal, nenhum dos entendimentos então em disputa pode ser
razoavelmente descrito como uma violação literal, óbvia ou grosseira ao texto da lei,
30
Essa compreensão norteou também a edição, por outros tribunais, de súmulas com teor
semelhante. Foi o caso, por exemplo, do antigo TFR. De acordo com a Súmula 134, “não cabe ação
rescisória por violação de literal disposição de lei se, ao tempo em que foi prolatada a sentença
rescindenda, a interpretação era controvertida nos Tribunais, embora posteriormente se tenha fixado
favoravelmente à pretensão do autor”. No mesmo sentido, a Súmula 3 do 1° TASP, pela qual
“descabe ajuizamento de ação rescisória quando fundado em nova interpretação do texto legal”.
31
Cabe observar apenas que é necessário haver divergência jurisprudencial séria quanto à
interpretação da norma, conforme a lição de José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de
Processo Civil, vol. V, 1999, p. 130: “não parece razoável afastar a incidência do art. 485, n° V, só
porque dois ou três acórdãos infelizes, ao arrepio do entendimento preponderante, hajam adotado
interpretação absurda, manifestamente contrária ao sentido da norma”.
12
Luís Roberto Barroso
mesmo que um deles tenha se consolidado como dominante em momento posterior32.
22.
A rigor, portanto, o conteúdo da súmula pode ser extraído da
distinção já referida entre interpretação que viola a literalidade do texto e interpretações
diversas mas compatíveis com o texto legal, sendo que apenas a primeira autoriza o
cabimento de ação rescisória. A particularidade da súmula está em fixar que, mesmo na
hipótese de a jurisprudência haver se pacificado em determinado sentido, as decisões
proferidas quando ainda havia divergência sobre o tema não se tornam por isso
rescindíveis.
III.2. Uma observação: quando a disposição de lei violada em sua literalidade é um
dispositivo constitucional.
23.
O presente parecer, como já se referiu, solicita o exame do
cabimento da ação rescisória em questão sob o enfoque das alegações apresentadas pelo
amicus curiae admitido nos autos, ou seja: a ABIFINA. Dentre outras digressões de cunho
principiológico e econômico, a ABIFINA sustenta o cabimento da ação rescisória, em
resumo, por conta da violação literal a uma disposição constitucional, o art. 5º, XXIX.
Assim, parece importante fazer um breve registro teórico acerca do cabimento de ação
rescisória quando a disposição que se alega violada é uma disposição constitucional.
a) A violação a literal disposição constitucional.
24.
A doutrina é pacífica em registrar que a referência a “disposição
legal” contida no art. 485, V, do CPC inclui, dentre outras espécies normativas, a própria
Constituição. Assim, do mesmo modo como se passa com a lei, caberá ação rescisória
quando a decisão rescindenda haja violado a literalidade de disposição constitucional.
Tudo o que foi exposto acima acerca do sentido a ser atribuído à expressão “violação a
32
Embora não tenha sido este o tema trazido à consulta, é fácil concluir, tendo em conta o que se
acaba de expor, que a ação rescisória em questão também não se mostra cabível em razão da
alegada violação aos arts. 40 e 230, § 4º da LPI, já que a interpretação conjunta desses dispositivos,
como se anotou, era, e ainda é, controvertida em sede jurisprudencial.
13
Luís Roberto Barroso
literal disposição de lei” aplica-se igualmente à Constituição. Ou seja: não cabe rescisória
quando a decisão rescindenda houver interpretado determinado dispositivo constitucional
em sentido diverso daquele que se acha mais adequado, porém ainda compatível com o
texto da Carta. Também aqui, apenas a violação à literalidade da Constituição autoriza a
rescisão.
25.
Algumas particularidades das normas constitucionais, no entanto,
exigem observações específicas. A primeira delas diz respeito às formas de aplicação das
normas constitucionais e a definição de qual ou quais delas pode(m) acarretar violação
direta do texto constitucional para os fins de se autorizar o cabimento de rescisória com
fundamento no art. 485, V, do CPC. De forma bastante simples, os dispositivos
constitucionais podem ser aplicados de duas formas distintas: direta ou indiretamente.
Aplica-se a Constituição diretamente quando determinada pretensão se funda em
dispositivo de seu texto, como por exemplo um pedido de imunidade tributária (art. 150,
VI, b), de aposentadoria (art. 40, § 1º, I) ou de preservação do direito de privacidade (art.
5º, X).
26.
De outra parte, aplica-se a Constituição indiretamente, como
parâmetro de validade do restante da ordem jurídica ou com o propósito de definir o
sentido e alcance das normas infraconstitucionais. Como já se tornou corrente afirmar,
toda interpretação jurídica é, em certo sentido, também interpretação constitucional33, já
que nenhum ato jurídico pode contrariar os termos da Constituição e todas as normas do
sistema devem ser interpretadas de acordo com os princípios constitucionais. Não é difícil
intuir que somente em situações excepcionais uma decisão que aplique a Constituição
indiretamente produzirá uma violação direta ao texto da Carta, como exigido pelo art. 485,
V, do Código de Processo Civil. Nesses casos, em geral, a questão se circunscreverá à
interpretação da lei ou do ato examinado de forma direta pela decisão judicial.
33
Luis Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004, p. XVIII; Paulo
Ricardo Schier, Filtragem constitucional - Construindo uma nova dogmática jurídica, 1999; Daniel
Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2003; Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição,
direitos fundamentais e direito privado, 2003; Ingo Wolfgang Sarlet, Direitos fundamentais e direito
privado: Algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
In: A Constituição concretizada: Construindo pontes entre o público e o privado, 2000; Gustavo
Tepedino (coord.), A parte geral do novo Código Civil - Estudos na perspectiva civil-constitucional,
2002; Luiz Edson Fachin, Repensando os fundamentos do direito civil, 1998; e Judith Costa Martins
(org.), A reconstrução do direito privado, 2002.
14
Luís Roberto Barroso
27.
Aliás, essa dupla forma de aplicação dos dispositivos constitucionais
é que levou o Supremo Tribunal Federal a distinguir, para fins de cabimento de recursos
extraordinários, entre violação direta e indireta à Constituição. Na linha do entendimento
do STF, o recurso extraordinário só será cabível quando nele se discute a violação direta
de algum dispositivo constitucional, e não a mera interpretação de lei34. É certo, no
entanto, que há hipóteses específicas em que a discussão acerca da interpretação da lei –
violação indireta na classificação do STF – pode chegar a afetar essencialmente
disposições constitucionais, como, e.g., quando se decide acerca da constitucionalidade ou
inconstitucionalidade de um ato normativo ou quando se desrespeita elemento nuclear de
princípio constitucional. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aqui.
28.
Em suma, as disposições constitucionais podem ser aplicadas
diretamente – como fundamento de determinada pretensão – ou indiretamente – como
parâmetro de validade e de sentido das normas infraconstitucionais em geral. As decisões
que aplicam a Constituição de forma indireta têm como objeto imediato de seu exame a
interpretação da lei; assim, nessas hipóteses, apenas em situações excepcionais se poderá
falar de violação direta ao texto da Constituição como exigido pelo art. 485, V, do CPC.
Em geral, se houver violação à literal disposição de alguma espécie normativa, ela será da
própria lei, e não da Constituição.
b) A controvérsia sobre a não aplicação da Súmula nº 343.
29.
Uma segunda observação que deve ser feita nesse passo envolve a
aplicação da Súmula nº 343, referida acima, às hipóteses em que se discute a violação à
literalidade de dispositivo constitucional. Com efeito, é possível localizar na
34
V., e.g., STF, DJ 29 fev.2008, RE-ED 548111/RS, Rel. Min. Cezar Peluso: “Indeferimento de pedido
de ação rescisória. Interpretação do art. 485, IV e V, do CPC, à luz da prova. Ofensa constitucional só
indireta. Agravo regimental não provido. Não cabe recurso extraordinário que teria por objeto
alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, de inobservância de
normas infraconstitucionais, seria apenas indireta à Constituição da República, como a de ordem
processual sobre admissibilidade de ação rescisória”. Na mesma linha, v. STF, DJ 24 jun.2005, AIAgR 519089/RS, Rel. Min. Eros Grau; e STF, DJ 06 jun.2008, AI-AgR 627090/MG, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski.
15
Luís Roberto Barroso
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal algumas decisões entendendo que a súmula
não se aplicaria nessas circunstâncias35. De acordo com essa tese, se a decisão rescindenda
foi proferida quando a interpretação do texto constitucional era controvertida, mas veio a
pacificar-se entendimento em sentido diverso, a ação rescisória poderá ser admitida. O
fundamento invocado para a não aplicação da súmula seria a preservação da supremacia
da Constituição e da máxima efetividade das normas constitucionais. Há alguma
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também nesse sentido, à qual se fará
referência adiante.
30.
Pois bem. Ainda que se admita como correta a tese, para argumentar,
é preciso definir o que deve ser considerado entendimento pacificado para o fim de,
deixando-se de aplicar a súmula, admitir-se a ação rescisória. Parece natural que só haverá
entendimento pacificado sobre a interpretação de dispositivo constitucional após
manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, mesmo porque a ele cabe,
precisamente, a “guarda da Constituição” (CF, art. 102, caput). É bem de ver, no entanto,
que o STF tem múltiplas competências e profere decisões em diferentes tipos de ações e
recursos. Que espécie de manifestação tornaria pacífica a interpretação de dispositivo
constitucional e, a fortiori, autorizaria a propositura de ações rescisórias contra decisões
transitadas em julgado e que tenham adotado interpretação diversa?
31.
Afigura-se intuitivo que apenas se deve admitir a ação rescisória se o
STF tiver dirimido a controvérsia jurisprudencial por meio de uma decisão definitiva, apta
a pacificar a questão36. É o caso, por exemplo, do pronunciamento em sede de controle
35
STF, DJ 10 fev.1984, RE 101114/SP, Rel. Min. Rafael Mayer: “A Súmula n. 343 tem aplicação
quando se trata de texto legal de interpretação controvertida nos tribunais, não, porém, de Texto
Constitucional”. No mesmo sentido: STF, RE 103880/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 22.fev.1985
(não publicado); DJ 14 nov.2002, RE 235794 AgR/SC, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJ 30
set.2008, RE-AgR 382960/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes; STF, DJ 15mai.2009, AR 1409/SC, Rel. Min.
Ellen Gracie; STF, DJ 26 jun.2009, RE-AgR 500043/GO, Rel. Min. Cármen Lúcia; e STF, DJ 02
mai.2008, RE-ED 328812/AM, Rel. Min. Gilmar Mendes: “Ação Rescisória. Matéria constitucional.
Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias
divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição
e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à
literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação
controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal”. Na doutrina, v.
Teori Albino Zavascki, Ação rescisória em matéria constitucional, Revista de Direito Renovar 27,
2003.
36
Nesse sentido, v. Humberto Theodoro Júnior, A ação rescisória e o problema da superveniência do
julgamento da questão constitucional, Revista de Processo 79:165, 1995; Ada Pellegrini Grinover,
16
Luís Roberto Barroso
abstrato de constitucionalidade37, ao qual se reconhece eficácia erga omnes e efeitos
vinculantes38. Não custa sublinhar que a rescisória é remédio excepcional, mesmo quando
se trate de tema constitucional, e não pode ser transformada em (mais um) instrumento de
revisão ou uniformização da jurisprudência. Para esse fim, repita-se, está disponível todo
o amplo sistema recursal vigente no país. Se a questão é constitucional e o STF ainda não
pacificou o tema de forma tranqüila e cabal, não há razão para desconstituir as decisões
anteriores39.
32.
O raciocínio que se acaba de expor corresponde à posição que tem
prevalecido nas decisões proferidas sobre o tema pelo Superior Tribunal de Justiça, como
se pode ver do acórdão abaixo:
“1. ‘Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei,
quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de
interpretação controvertida nos tribunais.’ (Súmula 343 do STF).
2. Um dos pilares da segurança jurídica é exatamente o respeito à
coisa julgada. Deveras, a eliminação da Lei inconstitucional, em
geral, deve obedecer os princípios que regulam a vigência das Leis,
impedindo-as de retroagir.
Ação rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional, Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política 17:53, 1996; e José Carlos Barbosa Moreira, Inconstitucionalidade
irregularmente declarada por via incidental. Coisa julgada. Ação rescisória não proposta. Irrelevância
de julgamentos posteriores do Supremo Tribunal Federal. In: Direito aplicado II (Pareceres), 2000, p.
237-9.
37
Desde que, evidentemente, o STF atribua à decisão proferida em sede de controle abstrato efeitos
retroativos, e não apenas prospectivos, como admite o art. 27 da Lei nº 9.868/99.
38
Decisão proferida em sede de controle abstrato envolve, por evidente, a discussão acerca da
validade de lei ou ato normativo em face da Constituição, que então estará sendo aplicada
indiretamente. Por isso mesmo, parte da doutrina entende que só haverá impacto direto sobre a
Constituição quando a lei tenha sido considera constitucional pela decisão rescindenda e,
posteriormente, o STF a declare inconstitucional. Isso porque, quando a decisão considerou a lei
inconstitucional – vindo ela a ser declarada válida pelo STF – a violação atingiu apenas a lei, e não a
Constituição. Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada
inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: Carlos Valder do Nascimento
(Coord.), Coisa julgada inconstitucional, 2002, p. 123 e ss.. Note-se que a decisão será
potencialmente definitiva pois, como regra, o STF não está impedido de modificar o seu próprio
entendimento.
39
Figure-se até um exemplo hipotético, mas não improvável. Imagine-se que uma das Turmas do
STF decida em determinado sentido e, com fundamento nesse acórdão, admita-se ação rescisória
que vem a desconstituir decisão transitada em julgado interpretando a Constituição em sentido
diverso. Posteriormente, no entanto, a mesma questão é submetida ao Plenário do STF, que decide
no mesmo sentido da decisão já rescindida. Nesse quadro, ter-se-ia admitido a desconstituição de
decisão cujos fundamentos eram os mesmos que viriam a se tornar definitivos na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, com prejuízo, ao mesmo tempo, para a segurança jurídica, a justiça e a
supremacia constitucional: uma síntese do pior dos mundos.
17
Luís Roberto Barroso
3. Desta sorte, salvo manifestação expressa nos acórdãos das ações
de declaração de inconstitucionalidade, em controle concentrado,
as decisões judiciais anteriores não podem ficar à mercê de
rescisórias, sob o fundamento de terem sido proferidas com base em
Lei inconstitucional.
4. Posicionamento diverso implica em violar dois institutos
preservados pela Constituição; um instrumental e outro substancial:
a saber, a coisa julgada e a segurança jurídica.
5. Aliás, não é por outra razão que a Lei 9.868/99, que regula a
declaração de inconstitucionalidade, reclama termo a quo dos
efeitos da decisão, expressamente consignados no acórdão,
consoante o disposto no artigo 27 da referida Lei.
6. A não incidência do enunciado da Súmula nº 343/STF deve
ocorrer apenas na hipótese em que o Supremo Tribunal Federal
declarar a inconstitucionalidade da lei aplicada pelo acórdão
rescindendo. Decisão de acordo com o mais recente entendimento
firmado pela Primeira Seção do STJ (AgRg na AR nº 2.912, Rel.
Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10.12.2003).
7. A ratio essendi da Súmula 343 aplica-se in casu, por isso que, se
à época do julgado, a Lei estava em vigor, sem qualquer eiva de
inconstitucionalidade, em prol do princípio da segurança jurídica
prometida pela Constituição Federal, não se pode entrever violação
àquela pelo acórdão que a prestigiou.
8. Recurso especial provido (CPC, art. 557, §1º-A)”.40
33.
Em suma: assim como se passa com qualquer lei, caberá ação
rescisória contra decisão transitada em julgado que tenha violado literal disposição do
texto constitucional, nos termos do art. 485, V, do CPC. Também aqui a expressão
violação a literal disposição de lei significa a adoção de interpretação inconciliável com o
texto constitucional, e não o acolhimento de uma das interpretações possíveis que do texto
podem ser extraídas. As particularidades que envolvem a ação rescisória, quando se cuide
de violação do texto constitucional, são duas.
34.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre violação direta e
indireta da Constituição. O fato de o juiz ou o tribunal, na aplicação de uma lei ordinária,
invocar uma norma constitucional em reforço de seu raciocínio argumentativo não
caracteriza aplicação direta da Constituição, mas sim da lei. Nesse caso, se violação literal
40
STJ, DJ 9 fev.2004, AgRg na AR 2798/CE, Rel. Min. Luiz Fux. No mesmo sentido, também da
relatoria do Ministro Luiz Fux: DJ 25 ago.2004, AgReg em AR 1684/RS e DJ 25 out.2004, AgReg em
AR 3105/AL. Há, entretanto, decisões em sentido diverso, valendo referir a seguinte: STJ, DJ
6out.2003, REsp 531813/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki.
18
Luís Roberto Barroso
houver, será da norma infraconstitucional.
35.
Em segundo lugar, é fato que existem decisões no sentido da não
aplicabilidade da Súmula nº 343 do STF às hipóteses em que o dispositivo violado integre
o texto constitucional. Por esse ponto de vista, se o STF consolidar determinado
entendimento sobre a interpretação da Constituição, caberá ação rescisória ainda que a
decisão rescindenda haja sido proferida quando a matéria era controvertida. Seja como
for, a súmula em questão só poderá ser afastada quando o STF haja manifestado seu
entendimento por decisão definitiva que de forma inequívoca pacifique a questão.
Parte II
Aplicação dos conceitos à hipótese. Constitucionalidade do sistema pipeline.
IV.
O
ACÓRDÃO
INFRACONSTITUCIONAIS.
RESCINDENDO:
INEXISTÊNCIA
INTERPRETAÇÃO
DE
VIOLAÇÃO
A
DE
DISPOSIÇÕES
LITERAL
DISPOSIÇÃO
CONSTITUCIONAL NA HIPÓTESE.
36.
Encerrada a exposição teórica indispensável, cabe agora aplicar os
elementos identificados acima ao caso descrito pela consulente. Nesse contexto, é preciso,
antes de mais nada, examinar o acórdão rescindendo. O acórdão rescindendo foi proferido
por maioria, tendo restado vencido o relator originário do feito. Transcreve-se a seguir o
conteúdo do voto vencedor:
“O voto do Doutor GUILHERME CALMON negava provimento ao
recurso e eu pedi vista. (...) Anotei que, exatamente o § 4º do art.
230 da Lei 9.279, de 1996, garante o prazo remanescente quanto ao
concedido no exterior – a sentença de fls. 116/119 –, assim estou
dando provimento ao recurso, que é uma apelação da parte autora,
para considerar aquele resíduo, tal como constante das razões,
pedindo vênia ao eminente Relator. (...) Assim sendo, dou
provimento ao recurso. É como voto”. (reticências no original)
37.
Embora tenha restado vencido, a transcrição da ementa do voto do
relator originário também parece relevante para os fins deste estudo:
19
Luís Roberto Barroso
“DIREITO ADMINISTRATIVO. PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
PATENTE PIPELINE. ART. 230 E PARÁGRAFO 4º DA LEI
9.279/96. CONTAGEM DO PRAZO DE VALIDADE DA PATENTE
A SER FEITA A PARTIR DO PRIMEIRO DEPÓSITO NO
EXTERIOR.
1 - A previsão constante no artigo 230, da Lei nº 9.279/96,
permitindo a concessão de patente conhecida como pipeline, deve
ser considerada especial forma de proteção patentária e, exatamente
por força de determinadas circunstâncias, foi condicionada a
critérios e regras específicas. Os bens e processos mencionados no
referido dispositivo não eram patenteáveis de acordo com a
sistemática anterior ao advento da recente Lei de Propriedade
Industrial, daí a disciplina específica dada à matéria na nova
legislação.
2 - Não obstante, na sistemática adotada pela Lei n. 9.279/96, é
imperioso que se observe o disposto no § 1º, do artigo 230, além do
que dispõe o artigo 40, que limita o prazo da patente de invenção em
vinte anos, que deverá ser computado da data do primeiro depósito,
em se tratando de pipeline. Assim, ainda que o prazo de validade da
patente no exterior ultrapasse o estatuído no artigo 40 c/c artigo
230, § 1º, deve prevalecer a regra limitadora.
3 - No caso em questão, as datas dos depósitos originais dos dois
pedidos que deram origem às patentes ora sub examen foram em
21.07.1989 e 19.01.1993, do que decorre que a fixação das
respectivas datas de expiração em 21.07.2009 e 19.01.2013 se deu
em perfeito atendimento do que gravado no § 4º do art. 230 da Lei
de Propriedade Industrial.
4 - A regra constante do § 1º, do artigo 230, da Lei de Propriedade
Industrial, não exige que relativamente ao depósito do primeiro
pedido haja necessidade de verificação quanto à concessão da
patente, mesmo porque é a partir do primeiro depósito que deixa de
existir a novidade relativamente ao bem ou processo patenteável.
Ou seja: a circunstância da impetrante haver abandonado os
primeiros pedidos de patente não autoriza que somente seja
considerada a data do depósito do pedido que posteriormente foi
convertido em patente.
5 - Apelação conhecida, mas improvida”.
38.
Da leitura do v. acórdão rescindendo é possível extrair uma
conclusão singela, mas de extrema relevância: a decisão em momento algum examinou a
constitucionalidade do sistema pipeline, tendo se restringido a definir a interpretação
adequada do art. 230, §§ 1º e 4º da Lei nº 9.279/96. Do voto vencido, aliás, é possível
extrair a seguinte passagem: “A questão controvertida é puramente de interpretação da
legislação em vigor em matéria de propriedade industrial, conforme será feito”. Em
20
Luís Roberto Barroso
outros termos: o acórdão se limitou a definir o prazo de validade de determinada patente
pipeline à luz de normas infraconstitucionais, sem cogitar em passagem alguma da
validade da própria patente pipeline em questão, e nem muito menos da
constitucionalidade do conjunto de dispositivos legais que permitiu sua concessão.
39.
Nesse contexto, o argumento de que o acórdão em questão teria
violado a literalidade do art. 5º, XXIX, da Constituição, o que em tese seria capaz de
afastar a aplicação da Súmula nº 343 do STF, sequer corresponde à realidade. O acórdão
limitou-se a produzir uma interpretação da ordem infraconstitucional, não havendo que se
cogitar de questão constitucional na hipótese41. E ainda que se pudesse afirmar que, ao
decidir acerca do prazo de validade de determinada patente pipeline, o acórdão teria
tacitamente decidido pela constitucionalidade da própria pipeline, a hipótese igualmente
não se qualificaria como questão constitucional para os fins previstos no art. 485, V, do
CPC. O ponto não é complexo.
40.
Como referido, quando a Constituição é aplicada de forma indireta,
como parâmetro de validade ou vetor de interpretação da ordem infraconstitucional,
apenas em situações excepcionais – como quando há declaração de inconstitucionalidade
da lei – se poderá falar de questão constitucional, para o fim de admitir-se o cabimento de
ação rescisória e, a fortiori, afastar-se a incidência da Súmula nº 343. Caso contrário, e já
se destacou o ponto, qualquer decisão poderia ser qualificada como questão
constitucional, já que toda interpretação jurídica envolve, ainda que indiretamente, a
interpretação da Constituição. Essa espécie de lógica levaria à conclusão de que toda e
qualquer disputa acerca de patentes afetaria à literalidade do art. 5º, XXIX da
Constituição, o que, por natural, não faria sentido.
41.
Seja como for, a discussão é, de fato, irrelevante na hipótese, já que
inexiste manifestação do Supremo Tribunal Federal, muito menos em sede de controle
abstrato de constitucionalidade, sobre a constitucionalidade do sistema pipeline em geral
41
STF, DJ 13 nov.2009, AR 1581/RS, Rel. Min. Marco Aurélio: “Ação rescisória - Violência à
literalidade da lei. A conclusão sobre a ofensa à literalidade da lei pressupõe a adoção de
entendimento explícito sobre o que nela se contém”.
21
Luís Roberto Barroso
e/ou do art. 230, e seu § 4º, da Lei nº 9.279/96 em especial42. Assim, discutir se a
interpretação do art. 230, § 4º da lei configura ou não uma questão constitucional direta,
para o fim de afastar a incidência da Súmula nº 343, não aproveita à ação em questão. O
Supremo Tribunal Federal sequer se manifestou sobre o tema e muito menos pacificou
jurisprudência em sentido oposto ao acolhido pelo acórdão rescindendo, de modo que não
há qualquer fundamento para o cabimento da rescisória na hipótese.
42.
Em suma: o que importa, para efeito de avaliação do cabimento da
ação rescisória, é verificar se a decisão rescindenda violou “literal disposição de lei”. E
não há violação a literal disposição constitucional quando o acórdão se limita a proceder à
interpretação de normas infraconstitucionais. De toda sorte, ainda que o acórdão tivesse
discutido e declarado a constitucionalidade do sistema pipeline, o fato é que inexiste
jurisprudência pacificada sobre o tema, mesmo porque o Supremo Tribunal Federal sequer
se manifestou sobre ele até o momento. A ação rescisória, portanto, é claramente incabível
sob o fundamento constitucional.
43.
Sem prejuízo do que se acaba de expor, a consulente solicita que,
para fins de argumentação, se considere que o v. acórdão rescindendo tenha de fato se
pronunciado de forma expressa pela constitucionalidade do art. 230, e seus parágrafos, da
LPI – dispositivo que fundamentou a concessão da patente pipeline em questão. E, nesse
cenário imaginário, indaga se poderia restar caracterizada a alegada violação à literal
disposição do art. 5º, XXIX, da Constituição Federal. A resposta, mais uma vez é
negativa. Isso porque, como se viu, também aqui a expressão violação a literal disposição
de lei significa a adoção de interpretação inconciliável com o texto constitucional, e não o
acolhimento de uma das interpretações possíveis que do texto possa ser extraída. E a
verdade é que o sistema pipeline nada tem de inconstitucional, como se demonstrará na
sequência. Confira-se.
42
Foi recentemente proposta pelo Procurador Geral da República, junto ao STF, ação direta de
inconstitucionalidade para questionar a constitucionalidade do sistema pipeline (composto pelos arts.
230 e 231 da LPI). Trata-se da ADIn nº 4234, relatada pela Minª. Carmen Lúcia. A referida ADIn,
porém, encontra-se pendente de julgamento, sendo certo que não há em seus autos, nem mesmo em
sede liminar, qualquer pronunciamento do STF sobre a constitucionalidade dos dispositivos
impugnados.
22
Luís Roberto Barroso
V. CONSTITUIÇÃO, LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA E VALORAÇÕES POLÍTICAS
V.1. A liberdade de conformação do legislador democrático
44.
Ao ingressar nos autos da ação, a ABIFINA apresentou arrazoado
sustentando a inconstitucionalidade do art. 230 da LPI, que integra o sistema pipeline, sob
o argumento de que as opções legislativas na matéria seriam inválidas à luz dos requisitos
de “desenvolvimento tecnológico e econômico do País”, contidos no art. 5º, XXIX, da
Constituição. Em reforço de sua argumentação, a ABIFINA faz referência ainda a outros
princípios constitucionais variados, como dignidade da pessoa humana (art. 1º da CF),
justiça social e função social da propriedade (art. 170, caput e II), e promoção do
planejamento familiar (art. 226, § 7º)43. O tema, portanto, envolve a convivência de
princípios e fins constitucionais – bem como de diferentes concepções acerca da melhor
forma de promover cada um deles –, a ponderação realizada pelo Poder Legislativo e os
limites da revisão judicial em tais hipóteses. O exame dessas questões exige uma
brevíssima observação sobre a Constituição e os dois papéis que lhe cabe desempenhar.
45.
Como se sabe, compete à Constituição, em primeiro lugar, veicular
consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do
regime democrático, que não podem ser afetados por maiorias políticas ocasionais44 (ou
exigem para isso um procedimento especialmente complexo45). Esses consensos
43
Note-se que os princípios constitucionais referidos são utilizados pela ABIFINA apenas em reforço
de sua argumentação, não sendo propriamente apontados como violados pelo v. acórdão
rescindendo. Sua abordagem no presente estudo, por essa mesma razão, é dispensável e, quando
muito, se apresentará de forma pontual e acessória.
44
Landelino Lavilla, Constitucionalidad y legalidad. Jurisdiccion constitucional y poder legislativo. In:
Antonio Lopes Pina (org.), División de poderes e interpretación – Hacia una teoría de la praxia
constitucional, 1997, p. 58-72; Tomás de la Quadra, Antonio La Pergola, Antonio Hernández Gil,
Jorge Rodríguez-Zapata, Gustavo Zagrevelsky, Francisco P. Bonifacio, Erhardo Denninger e Conrado
Hesse, Métodos y criterios de interpretación de la constitución. In: Antonio Lopes Pina (org.), División
de poderes e interpretación – Hacia una teoría de la praxia constitucional, 1997, p. 134; e Franciso
Fernández Segado, La teoría jurídica de los derechos fundamentales en la Constitución Española de
1978 y en su interpretación por el Tribunal Constitucional, Revista de Informação Legislativa 121:77,
1994: “(...) los derechos son, simultáneamente, la conditio sine qua non del Estado constitucional
democrático”.
45
Isto é: o processo legislativo próprio das emendas à Constituição. No Brasil, o tema é objeto do art.
60 da Lei Fundamental.
23
Luís Roberto Barroso
elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e
históricas de cada país46, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a
organização dos poderes constituídos47 e a fixação de determinados fins de natureza
política ou valorativa.
46.
pluralismo
Em segundo lugar, cabe à Constituição garantir o espaço próprio do
político,
assegurando
o
funcionamento
adequado
dos
mecanismos
democráticos. A participação popular, os meios de comunicação social, a opinião pública,
as demandas dos grupos de pressão e dos movimentos sociais imprimem à política e à
legislação uma dinâmica própria e exigem representatividade e legitimidade corrente do
poder. Há um conjunto de decisões que não podem ser subtraídas dos órgãos eleitos pelo
povo a cada momento histórico. A Constituição não pode, não deve, nem tem a pretensão
de suprimir a deliberação legislativa majoritária.
47.
As noções expostas até aqui correspondem não apenas ao
conhecimento convencional na matéria, sob a ótica da teoria constitucional e da teoria
democrática, como foram igualmente abrigadas pelo direito constitucional positivo
brasileiro. De fato, na Constituição de 1988, determinadas decisões políticas fundamentais
do constituinte originário são intangíveis (art. 60, § 4º) e, mesmo em relação aos temas
que estão fora dessa lista de intangibilidade, estabeleceu-se um procedimento legislativo
especial para a alteração dos dispositivos constitucionais (art. 60). De outra parte, o texto
faz expressa opção pelo princípio democrático e majoritário (art. 1º, caput, e parágrafo
único), define como princípio fundamental o pluralismo político (art. 1º, V) e distribui
competências pelos órgãos do Poder (Título IV, art. 44 e ss.). Há um claro equilíbrio entre
constitucionalismo e democracia, que não pode, e nem deve, ser rompido pelo intérprete
constitucional.
46
V. J. J. Gomes Canotilho, Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um
constitucionalismo moralmente reflexivo, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 15:717, 1996.
47
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 16: “Qualquer sociedade na qual a
garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem
Constituição”.
24
Luís Roberto Barroso
48.
Até
porque,
longe
de
serem
conceitos
antagônicos,
constitucionalismo e democracia são fenômenos que se complementam e se apóiam
mutuamente no Estado contemporâneo. Ambas se destinam, em última análise, a prover
justiça e segurança jurídica. Por meio do equilíbrio entre Constituição e deliberação
majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias
e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a
solução das demandas do dia-a-dia, a cargo dos poderes políticos eleitos pelo povo. Esse
equilíbrio será especialmente relevante na interpretação dos princípios constitucionais. O
ponto merece um registro próprio.
49.
Como é corrente, a Constituição formula, sob a forma de princípios,
opções políticas, metas a serem alcançadas e valores a serem preservados e promovidos,
mas, em geral, não escolhe quais os meios que devem ser empregados para atingir esses
fins; mesmo porque, freqüentemente, meios variados podem ser adotados para alcançar o
mesmo objetivo48. Ademais, em uma sociedade plural, não é apenas previsível, mas
também natural, que haja opiniões diversas acerca da melhor forma de fazer conviver
princípios constitucionais diferentes, sobretudo quando eles incidem sobre realidades
complexas e pretendem a realização de fins cuja promoção pode envolver meios variados.
Junte-se a isso que, afora outras sutilezas teóricas49, uma das particularidades das normasprincípios (em oposição às normas-regras) é a abstração de seu enunciado, o que acaba
por gerar certa vagueza de conteúdo50. Essa característica acaba por admitir uma expansão
quase indefinida de sentido do princípio51, de tal modo que, ao menos do ponto de vista
lingüístico, comportamentos variados podem se abrigar sob sua proteção.
48
Sobre as normas programáticas, v. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de
suas normas, 2000, p. 116 e ss..
49
V., dentre outros, Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2003.
50
J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 1997, p. 1034-5; e Ruy
Samuel Espíndola, Conceito de princípios constitucionais, 1999.
51
Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, 1997, p. 86: “Princípios são normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes. Por isso, são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser
cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das
possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito do juridicamente possível é determinado
pelos princípios e regras opostas” (tradução livre).
25
Luís Roberto Barroso
50.
A questão que se coloca a partir da constatação que se acaba de
enunciar é, então, a seguinte: quem deve decidir entre as diferentes opiniões existentes
sobre a matéria? Em uma sociedade democrática, não há dúvida de que essa definição se
encontra no espaço próprio da deliberação política e caberá, como regra, ao Legislativo e,
na esfera de sua competência, ao Executivo. Seria incompatível com o sistema
constitucional, que tem por princípios fundamentais o pluralismo político e a ordem
democrática (CF, art. 1º, V, e parágrafo único52), subtrair do Legislativo a definição das
políticas públicas específicas que irão realizar os fins constitucionais, para transferi-la ao
Poder Judiciário.
51.
Isso não significa, é bem de ver, que as normas constitucionais que
veiculam esses fins não disponham de eficácia alguma. Ao contrário, a doutrina tem
desenvolvido modalidades específicas de eficácia jurídica53 para essas situações. São
exemplos dessas modalidades a eficácia negativa – pela qual se consideram inválidas
normas ou atos que disponham de forma contrária ao fim estabelecido pela Constituição –
e a interpretativa – que impõe, dentre as interpretações possíveis de uma norma existente,
a opção por aquela que melhor realize a meta constitucional54.
52.
O Judiciário, por certo, está autorizado a invalidar opções
legislativas manifestamente incompatíveis com a Constituição. Nada obstante, entre
diferentes soluções razoáveis – tendo em vista a pluralidade de opiniões possíveis sobre
determinado assunto dentro da sociedade –, a prioridade na escolha compete ao legislador
democrático. Ao Poder Judiciário caberá apenas declarar a nulidade de medidas
evidentemente desproporcionais; e o emprego dos três testes associados à exigência da
52
CF/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (...) V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
53
Também se a postulação direta em juízo de condutas que integrem o núcleo essencial dos
princípios – sem as quais perde sentido o enunciado em questão. Para além desse marco,
multiplicam-se os meios disponíveis para a concretização do preceito e diante dessa indefinição, a
escolha legítima caberá ao legislador, eleito pelo povo. Sobre o tema, v. Ana Paula de Barcellos, A
eficácia jurídica das normas constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2006.
54
V. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2000, p. 116 e ss.;
e Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica das normas constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana, 2002, p. 59 e ss..
26
Luís Roberto Barroso
proporcionalidade – consagrados pela doutrina e jurisprudência – será uma ferramenta
lógica importante na identificação de opções caprichosas e irrazoáveis55. Se o instrumento
escolhido pela lei não é apto a atingir o fim perseguido (adequação); ou se a medida não é
necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado
(necessidade/vedação do excesso); ou, por fim, se o que se perde com a medida é de
maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito), o
Judiciário poderá intervir para invalidar a decisão tomada pelos demais Poderes56.
53.
Em resumo: a Constituição não ocupa, e nem pode pretender ocupar,
todos os espaços jurídicos dentro do Estado, sob pena de asfixiar o exercício democrático
dos povos em cada momento histórico. Respeitadas as regras constitucionais e dentro do
espaço de sentido possível dos princípios constitucionais, o Legislativo está livre para
fazer as escolhas que lhe pareçam melhores e mais consistentes com os anseios da
população que o elegeu. Trata-se do que parte da doutrina denomina de autonomia da
função legislativa57 ou liberdade de conformação do legislador58. A disputa política entre
55
A idéia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no
direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O
princípio foi desenvolvido, como próprio do sistema do common law, através de precedentes
sucessivos, sem maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de
proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas
conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado. De parte isto, deve-se
registrar que o princípio, nos Estados Unidos, foi antes de tudo um instrumento de direito
constitucional, funcionando como um critério de aferição da constitucionalidade de determinadas leis.
Já na Alemanha, o conceito evoluiu a partir do direito administrativo, como mecanismo de controle
dos atos do Executivo. Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e outro abrigam
os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição
aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos
próximos o suficiente para serem intercambiáveis. Este é o ponto de vista que tenho sustentado
a
desde a 1 . edição de meu Interpretação e aplicação da Constituição, que é de 1995. No sentido do
texto, v. por todos Fábio Corrêa Souza de Oliveira, Por uma teoria dos princípios. O princípio
constitucional da razoabilidade, 2003, p. 81 ss. É certo, no entanto, que a linguagem é uma
convenção. E se nada impede que se atribuam significados diversos à mesma palavra, com muito
mais razão será possível fazê-lo em relação a vocábulos distintos. Basta, para tanto, qualificar
previamente a acepção com que se está empregando um determinado termo. É o que faz, por
exemplo, Humberto Ávila (Teoria dos princípios, 2003), que explicita conceitos diversos para
proporcionalidade e razoabilidade. Ainda na mesma temática, Luís Virgílio Afonso da Silva (O
proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais 798:23, 2002) investe grande energia procurando
demonstrar que os termos não são sinônimos e critica severamente a jurisprudência do STF na
matéria.
56
Além dessa possibilidade, por natural, o Judiciário sempre poderá invalidar decisões legislativas
que violem de forma direta regra constitucional específica ou o núcleo de princípio constitucional, no
exercício regular do controle de constitucionalidade.
57
José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976,
1998, p. 307 e ss..
58
J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 1991, p. 740.
27
Luís Roberto Barroso
diferentes visões alternativas e plausíveis acerca de como dar desenvolvimento concreto a
um princípio constitucional é própria do pluralismo democrático. A absorção institucional
dos conflitos pelas diversas instâncias de mediação, com a conseqüente superação da
força bruta, dá o toque de civilidade ao modelo.
54.
Nesse contexto, parece certo que cabe ao Legislativo e ao Executivo,
cada qual no âmbito de suas competências, decidir qual a melhor forma, em cada
momento histórico, de equilibrar e desenvolver os princípios e fins envolvidos na proteção
da propriedade industrial, e das patentes em especial. Dentre as várias opções razoáveis,
não cabe ao intérprete eleger aquela que lhe parece melhor – tendo em conta suas
concepções pessoais acerca da matéria – como a única compatível com a Constituição. Do
ponto de vista jurídico, portanto, cabe apenas verificar se, além de respeitar as regras
constitucionais, a escolha dos Poderes competentes é razoável em face dos princípios
relevantes e das diferentes concepções sobre a matéria. Em outras palavras, deve-se
verificar, à luz das disposições constitucionais relevantes, a razoabilidade do sistema
pipeline instituído pelo legislador brasileiro. É isso que se fará na sequência, não sem
antes descrever brevemente esse mesmo sistema.
V.2. Os artigos 230 e 231 da Lei nº 9.279/96: o sistema pipeline instituído pelo
legislador brasileiro
55.
Quando o Brasil assinou o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), encontrava-se em tramitação
no Senado Federal o Projeto de Lei n° 115/93, oriundo da Câmara dos Deputados, que
veiculava proposta de uma nova lei de patentes, destinada a substituir o antigo Código da
Propriedade Industrial (Lei n° 5.772/71). Com a entrada em vigor do tratado, o relator do
projeto na Comissão de Constituição e Justiça, Senador Ney Suassuna, requereu uma
extensão do prazo para a entrega de seu relatório a fim de adequar a proposta às
disposições do TRIPS. Seguiram-se, então, intensos debates no âmbito do Congresso
Nacional acerca de alguns aspectos da disciplina da propriedade industrial, de modo que o
novo diploma foi aprovado e promulgado apenas três anos mais tarde (Lei n° 9.279/96).
28
Luís Roberto Barroso
56.
Uma das inovações mais significativas da nova lei foi a
patenteabilidade das substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos
químicos, com destaque para biotecnologia, medicamentos e produtos alimentícios. Nos
termos da legislação anterior, tais matérias não poderiam ser objeto de proteção
patentária59, opção política que gerava uma série de atritos para o Brasil na ordem
internacional. Como se sabe, o avanço tecnológico nessa área exige investimentos
particularmente elevados, tanto pela complexidade inerente à pesquisa, quanto pelos
longos períodos de testes necessários antes que uma invenção possa ser explorada
comercialmente. A recusa do Brasil em conceder proteção patentária ao setor transformou
o país em ambiente de risco, dificultando ou retardando o fornecimento regular de certos
produtos ao mercado brasileiro.
57.
Além de passar a admitir a concessão de patentes para esse tipo de
invenção, o legislador brasileiro optou por instituir também um regime transitório,
destinado a vigorar pelo prazo de um ano contado da publicação da lei. Nesse período,
seria possível conferir proteção a inventos já divulgados, desde que atendida uma série de
requisitos. Mecanismo similar foi previsto em diversos países e ficou mundialmente
conhecido como patente pipeline60. O traço particular dessa figura era a flexibilização de
um dos requisitos tradicionais para a concessão de uma patente: a novidade61, isto é, a
exigência de que o pedido de patente diga respeito a invenção ainda não levada ao
conhecimento público62.
58.
Na linha do direito brasileiro, duas eram as hipóteses abrangidas pelo
sistema pipeline. A primeira delas encontra-se no art. 230 da Lei 9.279/96 e era aplicável
59
Lei nº 5.772/71, art. 9º. “Não são privilegiáveis: (...) c) as substâncias, matérias, misturas ou
produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, bem como os
respectivos processos de obtenção ou modificação”.
60
O sistema tem por objetivo proteger os produtos já pesquisados, desenvolvidos, mas ainda não
comercializados. Por isso a adoção do termo pipeline, em inglês, no tubo, pronto para produção. V.
Lucas Rocha Furtado, Sistema de Propriedade Industrial no direito brasileiro;comentários a nova
legsilação sobre marcas e patentes – Lei 9279, de 14 de maio de 1996, 1996, p. 81.
61
Lei nº 9.279/96, art. 8º: “É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade,
atividade inventiva e aplicação industrial” (negrito acrescentado).
62
O conceito de divulgação, nesse contexto, envolve uma série de sutilezas cuja enunciação é
desnecessária à compreensão do objeto deste parecer.
29
Luís Roberto Barroso
a pessoas que, antes da publicação desse diploma, houvessem depositado um pedido de
patente no exterior relativo a substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou
processos químicos. A proteção no Brasil valeria pelo tempo remanescente do regime de
exclusividade decorrente da patente estrangeira63, contado a partir da data de depósito no
Brasil e limitado ao máximo de vinte anos64. Essa é a figura da patente pipeline
propriamente dita.
59.
Para a admissibilidade do pedido, exigiu-se (i) que tais pessoas
tivessem proteção assegurada por tratado ou convenção em vigor no Brasil; e (ii) que o
objeto da patente não tivesse sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do
titular ou por terceiro com seu consentimento, nem tivessem sido realizados, por terceiros,
no Brasil, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido ou da
patente. Lembre-se que quando essas patentes foram originalmente requeridas no exterior
não era possível ao depositante efetuar pedido semelhante no Brasil, já que para o direito
brasileiro tais matérias não eram patenteáveis. O objetivo do dispositivo era, observadas
as condições descritas como item (ii) acima, permitir a validação do privilégio concedido
no exterior, seja a brasileiros, seja a estrangeiros protegidos por ato internacional. Esta a
dicção do art. 230, que define a hipótese:
“Art. 230. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às
substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos
químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos
alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer
espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou
modificação, por quem tenha proteção garantida em tratado ou
convenção em vigor no Brasil, ficando assegurada a data do
primeiro depósito no exterior, desde que seu objeto não tenha sido
colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou
por terceiro com seu consentimento, nem tenham sido realizados,
por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a
exploração do objeto do pedido ou da patente.
63
Lei n° 9.279/96, art. 230, § 4º. “Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo
remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do
depósito no Brasil e limitado ao prazo previsto no art. 40, não se aplicando o disposto no seu
parágrafo único”.
64
Lei n° 9.279/96, art. 40, caput. “A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de
modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito”.
30
Luís Roberto Barroso
§ 1º O depósito deverá ser feito dentro do prazo de 1 (um) ano
contado da publicação desta Lei, e deverá indicar a data do
primeiro depósito no exterior.
§ 2º O pedido de patente depositado com base neste artigo será
automaticamente publicado, sendo facultado a qualquer interessado
manifestar-se, no prazo de 90 (noventa) dias, quanto ao atendimento
do disposto no caput deste artigo.
§ 3º Respeitados os arts. 10 e 18 desta Lei, e uma vez atendidas as
condições estabelecidas neste artigo e comprovada a concessão da
patente no país onde foi depositado o primeiro pedido, será
concedida a patente no Brasil, tal como concedida no país de
origem.
§ 4º Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o
prazo remanescente de proteção no país onde foi depositado o
primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado
ao prazo previsto no art. 40, não se aplicando o disposto no seu
parágrafo único.
§ 5º O depositante que tiver pedido de patente em andamento,
relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou
processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos
alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer
espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou
modificação, poderá apresentar novo pedido, no prazo e condições
estabelecidos neste artigo, juntando prova de desistência do pedido
em andamento.
§ 6º Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, ao pedido
depositado e à patente concedida com base neste artigo”.
60.
A segunda hipótese é a regulada no art. 231 da Lei 9.279/96 e ficou
conhecida como “pipeline de nacional”. Esse mecanismo destinava-se a conferir proteção
adicional aos inventores brasileiros ou domiciliados no Brasil que tivessem divulgado
suas invenções, insuscetíveis de proteção no regime da lei anterior, por mecanismo
diverso do depósito formal de um pedido de patente no exterior (e.g., pela publicação em
revistas científicas especializadas, etc.). A proteção patentária prevista pelo art. 231
exigia, igualmente, que o objeto da patente – nada obstante já divulgado – não tivesse sido
colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu
consentimento, nem tivessem sido realizados, por terceiros, no Brasil, sérios e efetivos
preparativos para a exploração do objeto do pedido ou da patente. Confira-se o artigo:
“Art. 231. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às
matérias de que trata o artigo anterior, por nacional ou pessoa
domiciliada no País, ficando assegurada a data de divulgação do
31
Luís Roberto Barroso
invento, desde que seu objeto não tenha sido colocado em qualquer
mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu
consentimento, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País,
sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do
pedido.
§ 1º O depósito deverá ser feito dentro do prazo de 1 (um) ano
contado da publicação desta Lei.
§ 2º O pedido de patente depositado com base neste artigo será
processado nos termos desta Lei.
§ 3º Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o
prazo remanescente de proteção de 20 (vinte) anos contado da data
da divulgação do invento, a partir do depósito no Brasil.
§ 4º O depositante que tiver pedido de patente em andamento,
relativo às matérias de que trata o artigo anterior, poderá
apresentar novo pedido, no prazo e condições estabelecidos neste
artigo, juntando prova de desistência do pedido em andamento”.
61.
Nessa segunda hipótese, como não havia patente a revalidar – já que
não existia proteção patentária para tais matérias no Brasil –, caberia ao INPI verificar o
cumprimento dos requisitos de patenteabilidade contidos na lei brasileira. Flexibilizou-se,
porém, o requisito da novidade, admitindo-se a concessão da patente ainda que tenha
havido certo grau de divulgação do invento. Em qualquer caso, porém, nada obstante a
divulgação, a lei apenas admitiu a concessão de patente pipeline nos casos em que a
divulgação ainda não tivesse produzido qualquer efeito prático significativo. Como
referido, tanto no caso do art. 230, como no do art. 231, a mera realização de preparativos
sérios para a exploração do invento por parte de terceiro tornaria impossível a concessão
da proteção patentária.
62.
Uma
última
informação
relevante,
que
bem
demonstra
a
transitoriedade do sistema: em ambos os casos, o pedido de patente pipeline deveria ser
depositado no prazo máximo de um ano contado da publicação da Lei nº 9.279/96, ou
seja: até 15 de maio de 1997 (art. 230, § 1º e 231, § 1º). Resumido o chamado sistema
pipeline dos arts. 230 e 231 da Lei nº 9.279/96, cabe agora lançar os olhos sobre o sistema
constitucional aplicável à matéria, tendo em conta os argumentos desenvolvidos pela
ABIFINA no contexto da ação rescisória identificada acima, na qual se pretende
questionar a validade das opções legislativas que se acaba de descrever.
VI. DIRETRIZES
INEXISTÊNCIA
CONSTITUCIONAIS EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
DE VIOLAÇÃO AO ART.
5º, XXIX
DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
32
Luís Roberto Barroso
RAZOABILIDADE
DO SISTEMA PIPELINE DENTRO DO ESPAÇO LEGÍTIMO DE OPÇÕES DO
LEGISLADOR BRASILEIRO.
63.
A proteção à propriedade industrial constou nas declarações de
direitos de todas as constituições brasileiras, com exceção da de 1937, que apenas atribuía
à União competência para legislar sobre privilégios de invento. Na Constituição de 1988,
o tema é tratado no art. 5º, XXIX, que tem a seguinte redação:
“XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais
privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às
criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de
empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse
social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;”.
64.
Nos termos da Constituição, até por conta de sua inserção no rol do
art. 5º, a proteção patentária – na realidade o privilégio temporário por ela concedido –
constitui uma modalidade do direito de propriedade e veicula um direito individual65. A
Constituição reconhece o valor do invento industrial como uma manifestação da liberdade
criativa humana, na mesma linha da proteção dos direitos autorais66. Como todos os
direitos de propriedade, também o privilégio patentário está associado a uma função
social67, desdobrada pelo próprio dispositivo constitucional em dois aspectos interligados:
o desenvolvimento tecnológico e econômico do País e o interesse social.
65.
De forma geral, já se tornou pacífico que a proteção patentária – nos
vários contornos que ela pode assumir – é um eficiente meio de estimular a invenção e a
divulgação dos inventos68, atividades vitais para o desenvolvimento econômico e
65
Gustavo José Ferreira Barbosa, A introdução no nosso ordenamento jurídico do requisito da
atividade inventiva como condição legal para a concessão de uma patente de invenção, Revista
Forense 339:89: “Indubitavelmente, aquele que, pelo seu esforço e sua genialidade, concebe uma
coisa nova que, pela sua utilidade, vá trazer benefício à coletividade, deve poder fruir de alguma
forma de sua criação”.
66
CF/88: “Art. 5º (...): XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou
reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;”.
67
CF/88: “Art. 5º (...): XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a
sua função social;”.
68
Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição Federal de 1988, v. II, 1989, p. 145: “Um dos
fatores mais importantes para o crescimento econômico da nação é o desenvolvimento tecnológico.
Com efeito, é a constante criação e descoberta que permitem não só a produção de artefatos com
33
Luís Roberto Barroso
tecnológico de qualquer país69. Quanto ao interesse social, a doutrina identifica dois
vetores principais, que são harmonizados justamente pela disciplina da proteção patentária
e, sobretudo, pela temporariedade do privilégio70. Em primeiro lugar, o interesse social
milita em favor da divulgação do invento e sua incorporação ao estado da técnica, com a
disseminação dos benefícios a ele associados, o que afinal só se materializa através da
proteção patentária. Em segundo lugar, porém, o interesse público identifica-se com o fim
do monopólio patentário, de modo a estabelecer a livre concorrência – e obter os
benefícios dela decorrentes – também em relação a esse novo bem criado pela imaginação
humana.
66.
Assim, observadas as diretrizes gerais que se acaba de resumir71,
cabe ao legislador definir os contornos e a disciplina do regime patentário. Dentre muitos
outros aspectos, cabe ao Legislativo decidir, e.g., quais os requisitos necessários para a
concessão da patente, qual o sentido, a extensão e o prazo do privilégio. O constituinte, na
realidade, limitou-se a determinar que aos inventores seja concedido algum tipo de
privilégio temporário, de modo a promover o interesse social e o desenvolvimento
econômico e tecnológico do País, deixando ao legislador ordinário um grande espaço de
conformação na matéria. Dentre as muitas fórmulas capazes de realizar esse fim e aptas a
utilidades absolutamente insuspeitadas no passado, como também a produção de artigos já
conhecidos, por métodos menos custosos e menos laboriosos. Tudo isto colabora para o aumento do
nível de vida do povo e conseqüentemente do estágio de desenvolvimento econômico da nação. (...)
Nada disto poderia ser feito se não fosse assegurado ao detentor do invento um privilégio de
exploração econômica, com exclusividade, durante certo lapso de tempo”.
69
A Constituição abriu capítulo específico sobre o tema - Capítulo IV do Título III: “Da Ciência e
Tecnologia”, composto dos arts. 218 e 219. O art. 218, § 5º igualmente trata do assunto, nos
seguintes termos: “É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita
orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnologia”.
70
V. João da Gama Cerqueira, Tratado de propriedade industrial, v. I, 1982, p. 464: “A lei positiva
considera o direito do inventor como uma propriedade temporária e resolúvel, garantida pela
concessão da patente, que assegura ao inventor o direito de explorar a invenção, de modo exclusivo,
durante certo prazo, considerado suficiente para lhe permitir que retire de sua criação os proveitos
materiais que possa proporcionar. Findo esse prazo, a invenção cai no domínio público, podendo,
desde então, ser livremente usada e explorada. Assim se conciliam, de modo justo e eqüitativo, os
direitos do inventor sobre a sua obra e os interesses da coletividade relativos à utilização das
invenções”. No mesmo sentido, v. Douglas Gabriel Domingues, A propriedade industrial na
Constituição Federal de 1988, Revista Forense 304:76, 1988; e John H. Jackson, William J. Davey,
Alan O. Sykes, Jr., Legal Problems of International Economic Relations, 2002, p. 922.
71
Note-se que os elementos constitucionais, além de delimitarem o espaço de atuação do legislador,
apresentam também uma função interpretativa, já que o sistema legal instituído deverá ser
interpretado à sua luz. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da
Constituição, 2004, p. 378 e ss..
34
Luís Roberto Barroso
regular esse direito, compete ao legislador brasileiro a decisão por uma ou algumas delas.
A invalidade de determinada opção legislativa nesse particular dependerá da
demonstração de que, ao invés de promover os fins constitucionais, a lei é claramente
prejudicial à concretização de tais metas. Não basta, é evidente, que alguém – que pensa
de forma diversa daquela que prevaleceu no debate democrático – faça essa afirmação72. É
preciso que haja amplo consenso nesse sentido, de preferência com suporte em dados
técnicos e estatísticos.
67.
Pois bem. Como já registrado, o argumento veiculado nos autos da
ação rescisória em questão pela ABIFINA visualiza no sistema pipeline a violação de um
dos fins particularmente associados ao tema e referidos no art. 5º, XXIX da Constituição:
o desenvolvimento econômico e tecnológico do País73. Sustenta-se, basicamente, que a
mitigação do requisito da novidade, que subjaz à patente pipeline tanto na forma prevista
no art. 230 quanto na descrita pelo art. 231, seria inconstitucional por incompatibilidade
com o princípio do “desenvolvimento econômico e tecnológico do País”. O argumento,
porém, não apresenta consistência. As opções do legislador sobre a matéria veiculam
72
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio da dignidade
da pessoa humana, 2002, pp. 7-8: “A confusão entre opiniões, discursos políticos ou ideológicos, de
um lado, e conclusões jurídicas, de outro, tem, como se sabe, o poder de esvaziar o direito de suas
propriedades específicas. O efeito progressivo desse equívoco é o oposto do que o voluntarismo
jurídico pretende: em vez de transformar tudo, inclusive suas opiniões, em direito, é o direito como um
todo que vai perdendo suas características e se transformando em apenas mais uma opinião. Esta
circunstância é particularmente ameaçadora no campo do direito constitucional, a tanto custo alçado
ao status de jurídico”.
73
Nesse ponto, convém referir a opinião do professor Clèmerson Merlin Clève, expressa em artigo
conjunto com Melina Breckenfeld Reck, no qual afirmam que a não-patenteabilidade das substâncias,
matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos, tal como contida na legislação
brasileira anterior, era incompatível com o art. 5º, XXIX da Constituição de 1988. Para eles, o regime
de patente pipeline teria vindo apenas reparar parcialmente o anterior estado de
inconstitucionalidade. Confira-se: “Com efeito, a mera proibição de patenteabilidade de produtos
farmacêuticos e químicos, adotada pela lei de 1971, importava o sacrifício total do direito do inventor,
da indústria, bem como da promoção da pesquisa científica e técnica, não realizando um adequado
balanceamento dos bens e afrontando, assim, o disposto no artigo 5º, XXIX, daí sua
incompatibilidade com a Constituição de 1988. (...) De outra parte, a Lei 9.279/96, ao não manter a
proibição da legislação anterior, atendeu ao disposto no artigo 5º, XXIX, da Constituição. Quanto ao
pipeline, haveria de ser compreendido como mecanismo excepcional e temporário utilizado para
compensar os inventores que, no contexto da legislação anterior, estavam proibidos, não obstante os
termos da Constituição, de privilegiar seus inventos. Daí a razão de assumir um regime jurídico
especial, temporário quanto ao prazo para o pedido dependente quanto à sua natureza e tempo de
vigência. Tratar-se-ia, portanto, de uma patente de revalidação, confirmação ou importação,
extraordinária e transitoriamente admitida. É patente abnormal que não se confunde com a patente
normal ou convencional”. (Clèmerson Merlin Clève e Melina Breckenfeld Reck, A repercussão, no
regime da patente pipeline, da declaração de nulidade do privilégio originário, Revista da Associação
Brasileira da Propriedade Intelectual 66:26, 2003).
35
Luís Roberto Barroso
opções legítimas dentro do espaço de conformação que lhe é reservado pela Constituição,
sendo perfeitamente compatíveis com os princípios constitucionais em questão.
Aprofunde-se a questão.
68.
A proteção patentária apenas é concedida a inventos que apresentem
novidade por uma razão que beira o truísmo. Se o invento já se integrou ao estado da
técnica e a sociedade já frui os benefícios a ele associados, não há sentido algum em
conceder ao seu titular um privilégio monopolístico. A proteção patentária tem por
objetivo estimular o inventor a divulgar seu invento e a dar-lhe uma aplicação industrial,
capaz de beneficiar a comunidade. Trata-se aqui de harmonizar, como já referido, a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico com o interesse social em suas
duas vertentes: em primeiro lugar, na divulgação do invento e em sua incorporação ao
estado da técnica e, em segundo lugar, no término do privilégio patentário.
69.
É exatamente tendo em conta esses elementos que o sentido e o
alcance do conceito de novidade são definidos pela lei74, tal como acontece com a maior
parte dos elementos que compõem o regime de proteção à propriedade industrial. Nem
sempre será proveitoso para o desenvolvimento tecnológico e econômico e para o
interesse social a adoção de um critério radical e absoluto de novidade. Um exemplo
ilustra o ponto.
70.
A mera divulgação de uma pesquisa, e.g., em uma revista acadêmica,
não é capaz de produzir o resultado social desejado, isto é: a incorporação da novidade no
estado da técnica de modo a beneficiar a sociedade com uma aplicação industrial. Mais
que isso, a troca de informações e experiências entre pesquisadores em determinadas fases
do trabalho científico pode ser vital para que se chegue a um invento dotado de maior
74
Gabriel Di Blasi, Mario Soerensen Garcia e Paulo Parente M. Mendes, A propriedade Industrial,
2000, p. 124: “É importante ressaltar que a novidade é um conceito de caráter legislativo, isto é, está
diretamente ligado à publicação ou divulgação da invenção ou do modelo de utilidade, de acordo com
os pré-requisitos das legislações nacionais e internacionais de propriedade industrial”. No mesmo
sentido, José Joaquim Gomes Canotilho e Vera Lúcia Raposo, A questão da constitucionalidade das
patentes ‘pipeline’ à luz da Constituição Federal brasileira de 1988, 2008, p. 102-3: “Como se disse, a
Constituição Federal de 1988 não impõe o requisito da novidade como condição de protecção da
propriedade industrial, deixando uma decisão sobre o se e o como do seu acolhimento ao legislador
brasileiro. Este, quer em matéria de propriedade industrial, quer no âmbito dos cultivares, adoptou
diferentes concretizações do conceito de novidade, de acordo com as suas opções de política
pública”.
36
Luís Roberto Barroso
utilidade social. Descaracterizar a novidade em tais hipóteses simplesmente bloquearia
qualquer proveito, seja para o interesse social, seja para o desenvolvimento econômico e
tecnológico, pois não se chegaria a qualquer invento proveitoso para a coletividade. Nessa
linha, aliás, é que a Lei n° 9.279/96 disciplina o chamado “período de graça”, igualmente
reconhecido por diversos outros países. Trata-se de um prazo de doze meses para que o
inventor requeira a patente do invento já divulgado – patentes ordinárias, note-se, fora do
sistema pipeline –, seja por ele mesmo, seja por terceiros com base em informações por
ele fornecidas75-76.
71.
Pois bem: lógica similar orientou o legislador na disciplina do
sistema pipeline, sobretudo tendo em conta a necessidade de organizar a transição de um
regime que não concedia o privilégio patentário para outro que passava a reconhecer tal
direito. Como se viu, a lei estabeleceu dois requisitos comuns para a concessão da patente
pipeline, seja na hipótese do art. 230, seja na do art. 231: (i) o produto não poderia ter sido
colocado em nenhum mercado por iniciativa direta do titular ou com o consentimento
deste; e (ii) o invento não poderia estar em vias de ser explorado no Brasil. A mera
realização de preparativos sérios para a exploração por parte de terceiro tornaria
impossível a concessão da patente pipeline.
72.
Ou seja: o legislador vedou a concessão da patente nos casos em que
a invenção já estivesse efetivamente sendo aplicada em benefício da sociedade ou
estivesse em vias de sê-lo, impedindo que o acesso do público ao invento fosse dificultado
ou retardado. O interesse social na livre e ampla exploração das invenções foi, como se
75
Lei n° 9.279/96, art. 12: “Não será considerada co mo estado da técnica a divulgação de invenção
ou modelo de utilidade, quando ocorrida durante os 12 (doze) meses que precederem a data de
depósito ou a da prioridade do pedido de patente, se promovida: I - pelo inventor; II - pelo Instituto
Nacional da Propriedade Industrial - INPI, através de publicação oficial do pedido de patente
depositado sem o consentimento do inventor, baseado em informações deste obtidas ou em
decorrência de atos por ele realizados; ou III - por terceiros, com base em informações obtidas direta
ou indiretamente do inventor ou em decorrência de atos por este realizados”. O inciso II foi idealizado
para os casos em que o requerente não seja o inventor legítimo. Nessa situação, a divulgação do
pedido, realizada pelo próprio INPI, não afastará o requisito da novidade desde que o verdadeiro
autor da invenção ingresse com novo requerimento e prove a sua precedência.
76
Paulo Bessa, Pipeline e a Constituição: de que inconstitucionalidade falamos?, Revista da
Associação Brasileira de Propriedade Intelectual 87:54, 2007: “Através dessa medida, o legislador
reconheceu que a despeito de já ter ocorrido a divulgação da invenção antes do depósito do
respectivo pedido de patente, a concessão da patente ainda se justifica face ao interesse social e ao
desenvolvimento tecnológico e econômico do País (...)”.
37
Luís Roberto Barroso
vê, protegido. Protegeu-se também a expectativa legítima de eventuais terceiros de boa-fé
que estivessem se preparando para explorar a novidade, fiados na então inexistência de
privilégio patentário. Embora não se possa afirmar que o legislador estava obrigado a
observar tais precauções, é certo que elas afastam qualquer alegação de prejuízo ao
interesse social e/ou ao desenvolvimento tecnológico do país.
73.
Por outro lado, se não havia qualquer aplicação industrial do invento
– nem mesmo preparação para o seu desenvolvimento –, na realidade, nem o interesse
social havia sido atendido, em qualquer de suas vertentes, nem se havia obtido qualquer
incremento no desenvolvimento econômico e tecnológico do país até aquele momento.
Note-se que, embora integrem o mesmo gênero do direito intelectual, a propriedade
industrial se distingue dos direitos autorais exatamente porque uma de suas características
essenciais é a aplicabilidade econômica da produção da inteligência humana77.
74.
A finalidade da proteção patentária não se resume à simples
divulgação do invento, mas sim ao estímulo à sua efetiva exploração econômica78. Na
definição do art. 8º da Lei nº 9.279/96, só é “patenteável a invenção que atenda aos
requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial”. E a razão para tanto
parece bastante óbvia: sem que ocorra a efetiva exploração, não se terá alcançado
qualquer incremento no desenvolvimento econômico ou tecnológico do país79. Tanto
77
Por todos, v. Luiz Otávio Pimentel, Direito Industrial: as funções do direito de patentes, 1999, p.
126: "As diversas produções da inteligência humana e alguns institutos afins são denominadas
genericamente de propriedade imaterial ou intelectual, dividida em dois grandes grupos, no domínio
das artes e das ciências: a propriedade literária, científica e artística, abrangendo os direitos relativos
às produções intelectuais na literatura, ciência e artes; e no campo da indústria: a propriedade
industrial, abrangendo os direitos que têm por objeto as invenções e os desenhos e modelos
industriais, pertencentes ao campo industrial". É bem de ver, ainda com relação a tal distinção que o
proveito industrial ou comercial de uma invenção exclui a possibilidade de proteção de direito autoral,
conforme determina a Lei n° 9.610/98, art. 8º: “Não são objeto de proteção como direitos autorais de
que trata esta Lei: (...) VII - o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras”.
78
Ivan Bacellar Ahlert, Paulo de Bessa Antunes, Pipeline e a Constituição: de que
inconstitucionalidade falamos?, Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual 87:47,
2007: “Citando Nuno de Carvalho, Kelly Lissandra Bruch comenta: ‘O estabelecimento deste direito
de propriedade, que garante uma exclusividade sobre um bem intangível, possui três funções: o
incentivo à pesquisa e recompensa; a divulgação dos direitos e das tecnologias; e a transformação do
conhecimento tecnológico em objeto suscetível de troca (...)’”.
79
Ivan Bacellar Ahlert, Paulo de Bessa Antunes, Pipeline e a Constituição: de que
inconstitucionalidade falamos?, Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual 87:47,
2007: ”O pesquisador, ao recuperar o investimento realizado e com lucros, é incentivado a investir
novamente, gerando novas inovações passíveis de apropriação e incentivando a outros fazerem o
38
Luís Roberto Barroso
assim que uma das razões para a concessão de licença compulsória reside precisamente na
ausência de exploração econômica, e/ou na verificação de exploração insatisfatória, do
invento. Confira-se o parágrafo primeiro do art. 68 da Lei nº 9.279/96:
“Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada
compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma
abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico,
comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou
judicial.
§ 1º Ensejam, igualmente, licença compulsória:
I - a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por
falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda,
a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos
de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; ou
II - a comercialização que não satisfizer às necessidades do
mercado”.
75.
Nesse cenário, só uma conclusão parece possível: se as patentes
pipeline tinham lugar apenas quando ainda ausente qualquer aplicação industrial do
invento – ou mesmo preparação para o seu desenvolvimento no Brasil –, não há como se
falar em violação aos fins do art. 5º, XXIX da Constituição Federal. Trata-se de uma
opção legítima e razoável, formulada pela autoridade competente para tanto, a saber: o
Legislativo. Também no mérito (iudicium rescindens), portanto, não merece acolhimento
o argumento de violação à literal disposição constitucional veiculado pela ABIFINA nos
autos da ação rescisória em comento.
VII. CONCLUSÃO
76.
Ao final do estudo empreendido, é possível compendiar as principais
ideias desenvolvidas nas proposições objetivas que se seguem:
mesmo investimento. Isso, por fim, somente torna-se possível quando o conhecimento gerado pela
pesquisa efetivamente se transforma em bens mensuráveis, objetos passíveis de troca. (...)Portanto,
a inovação induz o incremento da atividade econômica de mãos dadas com o desenvolvimento
tecnológico, o que se traduz em benefícios sociais pela oferta constante de produtos mais avançados
e pelo incremento da atividade econômica. A patente como fator de estímulo à inovação é um
elemento chave nesse processo”. Os autores mencionam, ainda, o comentário de Robert Sherwood
sobre o trabalho do premio Nobel Robert Solow, para quem ”the injection of new technology into an
economy is the single most powerful factor for promoting growth” (Robert Solow, Intellectual Property
in the Western Hemisphere, 1997).
39
Luís Roberto Barroso
A) A preservação da coisa julgada é corolário essencial do
princípio constitucional da segurança jurídica, de modo que a rescisão de decisões
transitadas em julgado é sempre possibilidade excepcional, que deve ser interpretada de
forma estrita.
B) Nessa linha, será cabível ação rescisória por violação a literal
disposição de lei (CPC, art. 485, V) quando a decisão rescindenda haja adotado
interpretação inconciliável com o teor do dispositivo. Não cabe ação rescisória para rever
decisão que acolheu interpretação possível, considerando as possibilidades semânticas do
texto. Nos termos da Súmula nº 343 do STF, não se admite rescisória ainda que a
jurisprudência tenha consolidado entendimento diverso do acolhido pela decisão
rescindenda, proferida quando havia controvérsia sobre a questão.
C) Ação rescisória na qual se discuta violação a literal disposição
de comando constitucional rege-se pelas mesmas regras gerais resumidas acima,
merecendo registro que: (i) o fato de o juiz ou o tribunal, na aplicação de uma lei
ordinária, invocar uma norma constitucional em reforço de seu raciocínio argumentativo
não caracteriza aplicação direta da Constituição, mas sim da lei – se violação literal
houver, será da norma infraconstitucional; e, (ii) mesmo considerando a não incidência da
Súmula nº 343 nessa hipótese, para que se possa cogitar do cabimento de rescisória será
indispensável que haja manifestação definitiva e inequívoca do STF pacificando, em
determinado sentido, a interpretação do dispositivo constitucional controvertido.
D) O acórdão rescindendo objeto da consulta sequer discutiu a
constitucionalidade do art. 230 da LPI, que integra o chamado sistema pipeline. O
fundamento da decisão pode ser descrito como uma mera interpretação de normas
infraconstitucionais (arts. 40 e 230, § 4º da LPI). E não há violação a literal disposição
constitucional quando o acórdão se limita à interpretação de normas infraconstitucionais.
Ainda que o acórdão tivesse de fato declarado a constitucionalidade do sistema pipeline, o
fato é que inexiste jurisprudência pacificada sobre o tema, mesmo porque o Supremo
Tribunal Federal sequer se manifestou sobre ele até o momento. A ação rescisória,
40
Luís Roberto Barroso
portanto, é claramente incabível sob o fundamento constitucional.
E) Ainda que a questão do cabimento pudesse ser superada, a
alegada violação à literal disposição do art. 5º, XXIX, da Constituição não estaria
configurada. A Constituição, em seu catálogo de direitos fundamentais, determinou que
fosse instituído um sistema de proteção à propriedade industrial por meio da garantia de
privilégio temporário para o inventor (direito de patente, consagrado no art. 5º, XXIX).
Tal sistema é balizado por duas diretrizes gerais, que admitem diferentes formas de
realização: estímulo ao desenvolvimento tecnológico e atendimento ao interesse social.
F) Nos termos dos arts. 230 e 231 da Lei n° 9.279/96, a patente
pipeline seria concedida se (i) o produto não houvesse sido colocado em qualquer
mercado por iniciativa direta do titular ou com o consentimento deste, a despeito de já ter
havido divulgação teórica da descoberta; e se (ii) o produto não estivesse em vias de ser
explorado no Brasil. O legislador mitigou o requisito da novidade considerando que, sem
a efetiva exploração do invento, não se terá alcançado qualquer incremento no
desenvolvimento econômico ou tecnológico do país. O legislador transitou validamente
pelo espaço de conformação de que dispõe na matéria, não sendo possível identificar
qualquer inconstitucionalidade ou violação ao art. 5º, XXIX, da Constituição, na hipótese.
Rio de Janeiro, 10 de março de 2010
Luís Roberto Barroso
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