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LITERATURA
PORTUGUESA
MEDIEVAL
Prof. Augusto Sarmento-Pantoja
[email protected]
(91) 9164-2801
PARFOR - 1 Semestre de 2011 – Bloco 3 BARCARENA 2010
04 a 09 /07/2011
PRODUÇÃO LITERÁRIA MEDIEVAL
Texto PRAGA, Vaasco (de Sandin). “Quero-uos
eu, senhor, gran ben”. In: NUNES, José
1
Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássica, 1970. p. 151.1
Quero-uos eu, senhor, gran ben
e non ei al de nós se non muito mal,
si Deus mi perdon, pero direi-uos ũa ren:
todo uo-l‟eu cuid‟a soffrer
se m‟end‟ a morte non tolher.
E creede que a min é
este mal, que me vós leuar
fazedes, de mha morte par,
pero, senhor, per bõa fé,
todo uo-l‟eu cuid‟a ssoffrer,
se m‟end a morte non tolher.
E, pois por ben, que uos eu sei
querer, me fazedes assi
uiuer, tan mal dia nos vj!
pero verdade uos direi:
todo vo-l‟eu cuid‟a sofrer,
se m‟end‟ a morte non tolher. (CA 12 e CB 76)
Texto SOARES, Joan (Comesso). “Hũa donzela
quig‟ eu muy gran bem,”. In: NUNES,
2
José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed.
Lisboa: Clássica, 1970. p. 152.2
Hũa donzela quig‟ eu muy gran bem,
meus amigos, assi Deus me perdom,
e ora iá este meu coraçom
anda perdudo e fóra de sem
por hũa dona, se me ualha Deus,
que depois uiron estes olhos meus,
que mh-a semelha muy mays d‟outra rem.
Porque a donzela nũca verey,
meus amigos, emquãt‟ eu já uiuer,
por esso quer‟eu muy grã ben querer
a esta dona, ẽ que uos faley,
que me semelh‟ a dõzela que uy:
e a dona seruirey des aquy
pola donzela que eu muyt‟ amey!
Porque da dona sõ eu sabedor,
meus amigos, assi ueja prazer,
que a donzela en seu parecer
semelha muyt‟, e por ẽd‟ ey sabor
de a seruir, pero que he meu mal:
1
Natural da Galiza, segundo Nunes, floresceu no primeiro quartel do
século XIII. Restam dele 25 cantigas de amor e 4 de amigo.
2
Nobre da família dos Valadares, deve ter florescido entre os anos de
1210 e 1230. Figura nos cancioneiros apenas com cantares de amor.
serui-la-ey e nõ seruirey al,
por a donzela que foy mha senhor. (CB 80 e CA
377).
Texto TAVEIROOS, Pai Soarez de. “Como
morreu quen nunca bem”. In: NUNES, José
3
Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 15.3
Como morreu quen nunca ben
ouve da ren que mais amou
e quen viu quanto reçeou
d‟ela e foi morto por en,
Ay, mha senhor, assi moyr‟ eu!
Como morreu quen foy amar
quen lhe nunca quis ben fazer
e de que lhe fez Deus ueer
de que foy morto cõ pesar,
Ay, mha senhor, assi moyr‟ eu!
§
Com‟ome que ensandeçeu,
senhor, cõ gran pesar que uiu
e nõ foy ledo, nen dormiu
depois, mha senhor, e morreu,
Ay, mha senhor, assy moyr‟ eu!
Como morreu quen amou tal
dona que lhe nunca fez bem
e quen a um leuar a quen
a nõ ualia, nen a ual,
Ay, mha senhor, assy moir‟ eu! (CA 35 e CB 123)
Texto OSOIR‟EANNES. “Cuidei eu de meu coraçon”. In: NUNES, José Joaquim.
4
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 154.4
Cuidei eu de meu coraçon
que me non podesse forçar
(poys me sacara de prison)
de ir comego hi tornar,
e forçou-m’ ora nou’ amor
e forçou-me noua senhor,
e cuydo ca me quer matar!
3
Pertence este trovador à nobre família dos Velhos, a qual mais tarde
devia ilustrar ainda outro seu descendente, fr. Gonçalo Velho, o descobridor dos Açores; a sua atividade poética, que se manifestou em cantares de amor e de amigo, devia ser colocada nos primeiros decênios do
século XIII, parecendo até ainda poetou no século II. (J. J. Nunes)
4
Pertencente, segundo parece à família dos Marinhos, e filho de Joam
Frojaz, fazia este trovador parte de colegiada de Santiago, na qualidade
de cônego. Do seu testamento, feito em 1236, sabe-se que havia estudado em Paris. Dele só há versos de amor.
E, poys m’ assy desenparar
hũa senhor foy, des enton
e[u] cuidei ben per ren que non
podesse mays outra cobrar,
mais forçaron-mh os olhos meus
e o bon parecer dos seus
e o seu preç’ e hũu cantar.
Que lh’ oí, hu a uj estar
en cabelos, dizend’ um son.
Mal-dia non morri enton,
ante que tal coyta leuar
qual leuo! que non uj mayor
nunca, ond’ estou a pauor
de mort[e] ou de lh’o mostrar. (CB 13 e CA 323)
Texto SANCHEZ, D. Gil. “Tu, que ora uẽes de
Monte Mayor,”. In: NUNES, José
5
Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássica, 1970. p. 15.5
Tu, que ora uẽes de Monte Mayor,
tu, que ora uẽes de Monte Mayor
digas-me mandado de mha senhor,
digas-me mandado de mha senhor,
ca, se eu seu mandado
non ujr, trist‟e coytado
serey, e gram pecado
fará, se me non ual,
ca en tal ora nado
foy que, mao pecado,
amo-a endoado [em vão]
e nunca end‟óuuj al.
Tu, que ora uiste os olhos seus,
tu, que ora uiste os olhos seus,
digas-me mandado d‟ela por Deus,
digas-me mandado d‟ela por Deus,
ca, se eu seu mandado
non uyr, trist‟e coytado
serey, e gram pecado
fará, se me non ual,
5
NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássica, 1970. p. 405: “GIL PEREZ CONDE. Floresceu este trovador na
primeira metade do século XIII e foi um dos que tomaram parte na
conquista da Andaluzia, no reinado de Afonso X, em cuja corte esteve;
cultivou apenas a sátira, deixando-nos algumas cantigas de escárnio e de
mal-dizer.
D. GIL SANCHEZ. Filho de Sancho I e de sua amante predilecta, a
formosa D.
Maria Paez Ribeira, nasceu este trovador muito
provavelmente nos últimos anos do século XII, sendo assim um dos
primeiros que cantaram na língua portuguesa. Embora fosse clérigo e o
chus honrado.., que ouve na Espanha, na frase do autor do II Livro de
Linhagens, teve por amante uma fidalga das mais ilustres do reino, D.
Maria Garcês de Sonsa; é de crer que a esta dama, que vivia em
Montemor, seja dirigida a única poesia, por sinal bastante original na
forma, que dele nos resta. O Livro de Óbitos de Santa Cruz de Coimbra
dá-o como falecido a 14 de Setembro de 1236.”
ca en tal ora nado
foy que, mao pecado,
amo-a endoado
e nunca end‟óuuy al. (CB 22)
Texto CORPANCHO, Airas. “Desei‟ eu rnuit‟ a
ueer mha senhor,”. In: NUNES, José Joa6
quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:
Clássica, 1970. p. 154-5.6
Desei‟ eu rnuit‟ a ueer mha senhor,
e pero sei que, pois dant‟ela for,
non lh‟ ei a dizer ren
de com‟ oi‟ eu averia sabor
e lh‟ estaria ben.
Pola ueer moir‟ e pula seruir,
e pero sei que, pois m‟ant‟ela uir,
non lh‟ei a dizer ren
de com‟ oi‟ eu poderia guarir
e lh‟ estaria ben.
Se lh‟al disser, nõ me dirá de nõ,
mais da gran coita do meu coraçõ
nõ lh’ei a dizer rem
que lh’eu dirja en boa razon
e lh’ estaria ben.
Pero ei gran sabor de lhe falar,
quando a uejo, por lhe nõ pesar,
nõ lh’ei a dizer ren
de com’eu poderia led’ andar
e lh’ estaria ben. (CB 152 e CA 65)
Texto VELHO, Pero. “Quand‟ora for a mha senhor ueer,”. In: NUNES, José Joaquim.
7
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 155.
Quand’ora for a mha senhor ueer,
que me non quer leixar d’amor uiuer,
ay, Deus Senhor, se lh’ ousarei dizer:
Senhor fremosa, non poss’ eu guarir!
Eu, se ousar, direy, quando a uir:
Senhor fremosa, non poss’eu guarir.
Por quantas uezes m’ela fez chorar
con seus desejos [saudades dela], cuytan[do] d’andar,
quando a uir, direi-lhi, se ousar:
Senhor fremosa, nom poss’ eu guarir.
Eu, se ousar, direi, quando a uir:
Senhor fremosa, non poss’ eu guarir.
6
Trata-se de um jogral, segundo Michaëlis. Parece ter poetado antes
de D. Afonso III. Cantigas de amor e de amigo.
se non de nós, de que eu lá
Por quanta coyta por ela leuei
nunca desejos perderey,
e quant’afam sofri e endurei,
nen al nunca deseiarey
quando a uir, se ousar, lhi direi:
no mundo, se non uós, senhor.
Senhor fremosa, non poss’ eu guarir,
Eu, se ousar, direi, quando a uir:
Ou mha morte, poix me uós ben,
Senhor fremosa, non poss’ eu guarir. (CB 113 e CA 393)senhor, non queredes fazer,
ca non á no mund‟ outra ren
por que eu já possa perder
Texto MONIZ, Airas. “Pois mi non ual d‟eu
a coyta que eu por nós ey,
muyt‟amar”. In: NUNES, José Joase non por morrer, eu o sey,
8
quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed.
ou por min fazerdes nós ben,
Lisboa: Clássica, 1970. p. 156.
Pois mi non ual d‟eu muyt‟amar
a mha senhor, nen a seruir,
nem quam apost‟ eu sey negar
o amor que lh‟ey [e] a ‟ncobrir
a ela, que me faz perder,
[De modo] que mh-o non pode[n] entender,
lá eu chus [adv. = mais] no‟-na negarey,
vel saberam de quen tort‟ey. [torto = mal, inujustiça]
Da que á melhor semelhar
de quanta[s] no mund‟ome uir
e mays [mansa sabe falar]
das que home falar oyr,
non uo-la ey chus a dizer...
quenquer x‟ a pode entender;
lá chus seu nome non direy;
c‟ a feito [iá] mh a nomeey.
E quen ben quiser trastornar
per tod‟o o mundo e ferir
mui festinho xh-a pod‟achar,
ca, por uos home non mentir,
non á ela tal pareçer
con que ss‟assy poss‟ asconder [esconder]
por como a eu dessiney [indiquei],
acha-la-am, cousa que sey.
Os que me soyam coitar
foi-lhes mha senhor descobrir;
lá mh ora leixaram folgar,
ca lhis non podia guarir,
ca ben lhe‟-la fiz conhocer,
porque me non quis ben fazer,
e tenho que boa me uinguey,
pois l‟en concelh‟ aueriguey. (CCB 6 e CA 316)
Texto FERNANDEZ, Monio (ou Nuno). “Pois me
fazedes, mha senhor”. In: NUNES, José
9
Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 157.
Pois me fazedes, mha senhor,
de quantas cousas no mund‟á
desejos perder e sabor,
Ca me fazedes muyto mal,
des aquel dia ‟n que uos vj;
pero, senhor, rem non uos ual,
que nunca eu de nós parti
meu eoraçon, poys uos amey,
nen iá nunca o partirei
d‟amar uós, e farey meu mal.
E faç‟ o lá, pois Deus [o] quer,
qu‟eu sempr‟ ey lá a desejar,
tanto com‟eu uiuer poder,
mha mort‟ e nosso semelhar,
ca nunca tanto uiuerey
que desei‟al, nen sairey
por al de coita, poys Deus quer. (CB 18 e CA 328)
Texto BONAVAL, Bernaldo de. “A dona que eu
am‟ e tenho por senhor”. In: NUNES, José
10
Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 157-158.
A dona que eu am‟ e tenho por senhor
amostrade-mh-a Deus, se nos eu prazer for,
senon dade-mh a morte!
A que tenh‟eu por lume d‟estes olhou meus
e por que choran sempr‟, amostrade-mh-a Deus,
senon dade-mh a morte!
Essa que uós fezestes melhor parecer
de quantas sei, ay Deus, fazede-mh-a ueer
senon dade-mh a morte!
Ai Deus, que mh-a fezestes mais ca min amar,
mostrade-mh-a hu possa con ela falar
senon dade-mh a morte! (CV 657)
Texto SOARES, Martim. “Senhor fremosa, pois
me non queredes”. In: NUNES, José Joa11
quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:
Clássica, 1970. p. 158-9.
Senhor fremosa, pois me non queredes
creer a cuita „n que me ten amor,
por meu mal é que tan ben pareçedes
o por meu mal uos filhei por senhor,
e por meu mal tan muito ben oy
dizer de uós, e por meu mal uos uy,
pois meu mal é quanto ben uós auedes.
E, pois uos uós da cuita nõ nẽbrades,
nem do affan [fadiga] que m‟amor faz prender,
por meu mal uiuo mais ca uos cuidades
o por meu mal me fezo Deus naçer
e por meu mal nõ morri u cuidei
como uos viss‟e por meu mal fiquei
uiuo, pois uós por meu mal ren nõ dados.
[E] d‟esta cuita ‟n que me uós tẽedes
em que oi‟ eu uiuo tan sen sabor
que farei eu, pois mh-a nós nõ creedes?
que farei eu, catiuo pecador?
que farei eu, uiuẽdo sẽepr‟ assi?
que farei eu, que mal dia naçi?
que farei eou, pois me uós nõ ualedes?
E, pois que Deus non quer que me ualhades
nem me queirades mia coita creer
que farei eu, por Deus que mh-o digades,
que farei eu, se logo non morrer?
que farei eu, se mais a viver ei?
que farei eu, que conselho non sei?
que farei eu, que vós desamparades?
(CB 131 e CA 46)
Texto GIL, D. Vasco. “Se uos eu ousasse, senhor,”. In: NUNES, José Joaquim.
12
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 159.7
Se uos eu ousasse, senhor,
no mal, que por nós ei, falar,
des que nos ui, a meu coidar,
pois fossedes en sabedor,
doer-uos-yades de mi.
E, porque nunca estes meus
olhos fazen se non chorar,
u nos non ueen, con pesar,
Se o soubessedes, por Deus,
doer-uos-yades de mi.
Mais non nos faço[o] eu saber
de quanto mal me fez amor
por nós, ca m’ ey de nós pauor,
ca, se uo’-l’ ousasse dizer,
doer-uos-yades de mi. (CA 148 e CB 257)
7
Foi este fidalgo (c. primeira metade do século XIII) um dos defensores do destronado D. Sancho II. Cultivou os três gêneros.
Texto PONTE, Pero da. “Senhor do corpo delgado”. In: NUNES, José Joaquim.
13
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 160.8
Senhor do corpo delgado,
en forte pont‟ eu fuy nado!
que nunca perdi cuydado
nem afan, des que uos ui.
En forte pont‟ eu fuy nado,
senhor, por uós e por mi!
Con est‟ afan tan longado
en forte pont‟ eu foy nado!
que uos amo sen meu grado
e faço a uós pesar y.
En forte pont‟ eu fuy nado,
senhor, por uós e por mi!
Ay eu, catjv‟e coytado,
en forte pont‟ eu fuy nado!
que semi sempr‟ endõado
ond‟ un ben nunca prendi.
En forte pont‟ eu fuy nado,
senhor, por uós o por mi! (CA 292 e CV 570)
Texto RODRIGUEZ, Fernan. “Uedes, framosa,
mha senhor,”. In: NUNES, José Joaquim.
14
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 161.
Uedes, framosa, mha senhor,
segurament‟ o que farey:
en tanto com‟ eu uyuo for,
nunca uos mha coyta direy,
ca non m‟ auedes a creer,
macar [ainda que] me ueiades morrer.
Por que uos ei eu, mha senhor,
a dizer nada do meu mal?
pois d‟esto sõ[o] sabedor,
segurament‟, u nõ iaz al,
que non m‟ auedes a creer,
marcar me ueiades morrer?
Seruyr-uos-ey [eu], mha senhor,
quant‟ eu poder, mentre [enquanto] uiuer,
mays, poys de coyta sofredor
8
NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 161: “PERO DA PONTE. É este um trovador que, pelas
suas composições, ocupa lugar distinto entre os poetas do seu tempo.
Provàvelmente oriundo da Galiza, frequentou as cortes de Fernando III e
Afonso X na qualidade de segrel, onde figurou ao lado de outros nossos
conhecidos, principalmente Afonso Eanes do Coton seu mestre e amigo.
Dos seus sirventeses conclui-se que floresceu na primeira metade do
século XIII. Nos Cancioneiros figura como autor de cantigas de
escárnio, de amor e de amigo.”
sõo, non uo‟-l‟ ey a dizer,
ca non m‟ auedes a creer,
macar me ueiades morrer.
Poys eu ẽtendo, m[h]a senhor,
quan pouco proueito me ten
de uos dizer quã grãd‟ amor
uos ej, nõ uos fala[rei] en,
ca non m‟ auedes a creer,
macar me veiades morrer. (CB 31 e CA 341)
Texto PAEZ, Fernan. “Uedes, senhor, pero me
mal fazedes,”. In: NUNES, José Joaquim.
15
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 161-2.9
Uedes, senhor, pero me mal fazedes,
mentr‟ eu uiuer, iá uós sẽpre seredes,
senhor fremosa,
de mj poderosa.
Pero me mal fazedes cada dia,
mentr‟ eu uiuer, seredes todavia,
senhor fremosa,
de mj poderosa
For como quer que uós de mi façades,
mentr‟ eu uiuer, nós quer‟ eu que seiades,
senhor fermosa,
de mj poderosa. (CB 51 e CA 361)
Texto TENOIRO, Men Rodriguez. “Senhor
fremosa, poys m‟ aqui,”. In: NUNES, José
16
Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 162.10
Senhor fremosa, poys m‟ aqui,
hu uos ueio, tanto mal uen,
dizede-mo [uós] hua ren,
por Deus: e que será de mi,
quando m‟ eu ora, mha senhor
fremosa, du uós sodes, for?
E, poys m‟ ora tal coyta dá
o uoss‟ amor, hu uos ueer
posso, queria já saber
eu de nós: de mi que será,
quando m‟ eu ora, mha senhor
fremosa, du vos sodes, for? (CA 449 e CV 8)
9
Poeta pré-afonsino da primeira metade do século XIII, segundo J. J.
Nunes.
10
Segundo Michaëlis, este trovador poetou a partir de 1245, na corte
de D. Fernando e do rei Sábio.
Texto GARCIA, D. Fernan. “Se Deus me leixe de
nós ben auer,”. In: NUNES, José Joaquim.
17
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 162-3.11
Se Deus me leixe de nós ben auer,
senhor fremosa, nunca ui prazer
des quando m‟eu de uós parti.
E fez-mh e voss‟amor tan muito mal
que nunca ui prazer de min, nem d‟al,
des quando m‟eu de uós parti.
Ouu‟eu tal coita no meu coraçon
que nunca ui prazer, se ora non,
des quando m‟eu de nos parti.
Texto NUNEZ, Joan (Camanês). “Rogaria eu mha
senhor”. In: NUNES, José Joaquim.
18
Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 162-3.12
Rogaria eu mha senhor
por Deus que mj fezesse ben,
mais ei d‟ela tan gram pauor
que lhi non ouso falar ren,
con medo de se m‟assanhar
e mj non querer pois falar.
Diria-lh‟eu de coraçon
como me faz perder o sem
o seu bom parecer, mais non
ous‟e tod‟aquest‟a mö auen [acontece]
com medo de se mi assanhar
e mj non querer pois falar.
Pois me Deus tal uentura deu
que m’en tamanha coita tem
amor, iá sempr’eu serei seu,
mais non a rogarei por en,
com medo de se m‟assanhar
e mj non querer pois falar. (CA 113 e CB 221)
Texto D. SANCHO I. “Ay eu coitada! — Como
vivo”. In: TAVARES, José Pereira (sel.).
19
Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 8-9.13
Ay eu coitada! — Como vivo
en gran cuidado por meu amigo
11
Pertencia à família dos Sousões, tendo florescido no tempo do rei
Afonso III. Dezesseis cantigas de amor e duas de escárnio.
12
Oriundo da Galiza, foi este trovador talvez contemporâneo do reisábio (Nunes).
13
O poema foi, segundo D. Carolina, inspirado pela ribeirinha.
que ei alongado. Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
ca o vosso bõ(o) ssemelhar
par nunca lh‟ omem pod‟ achar.
Ay eu coitada! Como vivo
en gran desejo por meu amigo
que tarda e não vejo! — Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
§ E, poys que o Deus assy quis,
que eu ssõ (o) tam alongado
de vós, muy bem seede ffis [certa]
que nunca eu ssen cuydado
eu viverey, ca já Paris
d‟ amor non foy tarn coitado
[e] nem Tristam;
nunca soffreron tal affam,
nen am quantos som, nen se(e)ram.
Texto SANCHEZ, D. Gil. “Tu, que ora vẽes de
Monte-mayor,”. In: TAVARES, José Perei20
ra (sel.). Antologia de textos medievais. 2.
ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 8-9.14
[8] Tu, que ora vẽes de Monte-mayor,
Tu, que ora vêes de Monte-mayor,
digas-me mandado de mia senhor;
digas-me mandado de mia senhor.
ca se eu seu mandado
non vir‟, trist‟ e coitado
serei; e gran pecado
fará, se me non val.
Ca en tal ora nado
foi que mao-pecado!
amo-a endõado [em vão],
e nunca end‟ òuvi al!
[9] Tu, que ora viste os olhos seus,
Tu, que ora viste os olhos seus,
digas-me mandado d‟ela, por Deus;
digas-me mandado d‟ela, por Deus,
ca se eu seu mandado
non vir‟, trist‟ e coitado
serei; e gran pecado
fará, se me non val.
Ca en tal ora nado
foi que mao-pecado!
amo-a endõado,
e nunca end‟ òuvi al! (CBN 22)
Texto D. AFONSO. “Bem ssabia eu, mha senhor,”. In: TAVARES, José Pereira (sel.).
21
Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 11-12.
Ben ssabia eu, mha senhor,
que, poys m‟ eu de vós partisse,
que nunca veeria sabor
de rem, poys vos eu non visse,
porque vós ssodes a melhor
dona de que nunc(a) oysse [ouvisse]
homem falar,
14
Esta cantiga tem refrão de oito versos — Inserta no C. A.,
Apêndice, n.º 332.— Este D. Gil Sanches era filho de D. Sancho I e da
Ribeirinha. É a única poesia que dele se conhece, e julga D. Carolina
Michaëlis que deve ter sido escrita em 1213, ano do cerco de Montemor.
Que ffarey eu, poys que non vir
o muy bon parecer vosso?
ca o mal que vos foy ferir
aquel‟ é meu e non vosso,
e por ende per rem partir
de vos muyt‟ amar non posso
nen [o] farey
ante ben sey ca morrerey,
se non ey vós que sempr‟ amey. (CV 468)
Texto NUNES, José Joaquim. Crestomatia
Arcaica. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1943.
22
479p.
[269] San Cremenço do Mar,
se mi del non uingar,
non dormirey.
San Cremenço senhor,
se uingada non for,
non dormirey.
[Se mi del non uingar,
do fals‟e desleal,
non dormirey].
Se uingada non for
do fals‟e traedor,
non dormirey. (Torneol, CV 806)
Texto NUNES, José Joaquim. Crestomatia
Arcaica. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1943.
23
479p.
[269] Estaua-m’em San Clemenço,
hu fôra fazer oraçon,
e disse-mh o mandadeyro
que mi prougue de coraçon:
«agora uerrá ‟qui uoss‟amigo».
Estava-m‟en San Clemenço,
hu fora candeas queimar,
e disse-mh o mandadeyro:
dremosa de bon semelhar,
agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo.
Estava-m‟en San Clemenço,
hu fora oreçon fazer,
e diese-mh o mandadeyro:
«fremosa de hon parecer,
agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo».
E disse-mh o mandadeyro:
fremosa de bon semelhar»,
por que uyu que mi prazia,
ar começou-me a falar:
«agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo».
E disse.mh o mandadeyro:
«fremosa de bon parecer»
por que uyu que mi prazia,
ar começou-me a dizer:
«agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo».
E disse-mh o mandadeyro
que mi prougue de coraçon;
por que nyu que mi prazia,
ar disse-m‟ outra uez enton:
«agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo». (Torneol, CV 808)
Texto TAVARES, José Pereira (sel.). Antologia
de textos medievais; selecção, introdução e
24
notas pelo prof. José Pereira Tavares. 2. ed.
Lisboa: Sá da Costa, 1961. 323p.
[46] Vi eu, mia madr‟, andar
as barcas eno mar:
e moiro-me d‟amor.
E non o achei,
[o] que por meu mal vi:
e moiro-me d‟amor.
[E non o achei lá,
o que vi por meu mal:
e moiro-me d‟amor.] (CV 246)
Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da
Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,
25
337p.
CA 70
[138] Ir-vus queredes, mia senhor,
e fiqu‟ end‟ eu con gran pesar,
que nunca soube ren amar,
ergo vós, dês quando vos vi.
E pois que vus ides d‟aqui,
senhor fremosa ¿que farei?
[139] E que farei eu, pois non vir‟
o vosso mui bon parecer?
Non poderei eu mais viver,
se me Deus contra vos non val.
Mais ar dizede-me vos al:
senhor fremosa ¿que farei?
E rogu‟ eu a Nostro Senhor
que, se vós vus fordes d‟aquen,
que me dê mia morte por én,
ca muito me será mester.
E se mi-a el dar non quiser:
senhor fremosa ¿que farei?
Foi eu, madre, veer
as barcas eno ler:
e moiro-me d‟amor.
Pois mi-assi força voss‟amor
e non ouso vusco guarir,
des quando me de vos partir‟,
eu que non sei al ben querer,
querria-me de vos saber:
senhor fremosa ¿que farei?
As barcas [e]no mar
e foi-las aguardar:
e moiro-me d‟amor.
Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da
Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,
26
337p.
As barcas eno ler
e foi-las atender:
e moiro-me d‟amor.
CA 74
[145] Que prol vus á vós, mia senhor,
de me tan muito mal fazer?
pois eu nom sei al ben querer
no mundo, nen ei d‟al sabor,
Dizede-me ¿que prol vus á ?
[47] E foi-las aguardar
e non o pud‟achar:
e moiro-me d‟amor.
E foi-las atender
e non pudi veer:
e moiro-me d‟amor.
[146] E que prol vus á, de fazer,
tan muito mal a quen voss‟é?
Non vus á prol, per bõa fé,
e, mia senhor, se eu morrer‟,
Dizede-me ¿que prol vus á?
Que prol vus á de eu estar
sempre por vos en grand‟afan?
e est‟é mui grande, de pran,
e pois mi-o voss‟amor matar,
dizede-me ¿que prol vus á?
E vos, lume dos olhos meus,
oïr-vus-edes maldizer
por min, se eu por vos morrer‟.
e, senhor, por l‟amor de Deus,
dizede-me ¿que prol vus á?
Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da
Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,
27
337p.
CA 75
[147] Quer‟ eu a Deus rogar de coraçon,
com‟ ome que é cuitado d‟ amor,
que el me leixe veer mia senhor
mui ced‟; e se m‟ el non quiser‟ oïr,
logo lh‟ eu querrei outra ren pedir:
que me non leixe mais eno mundo viver!
[148] E se m‟ el á de fazer algun ben,
oïr-mi-á „questo que lh‟ eu rogarei,
e mostrar-mi-á quanto ben no mund‟ ei.
E se mi-o el non quiser‟ amostrar,
logo lh‟ eu outra ren querrei rogar:
que me non leixe mais eno mundo viver!
E se m‟ el amostrar‟ a mia senhor,
que am‟ eu mais ca o meu coraçon,
vedes, o que lhe rogarei enton:
que me dê seu ben, que m‟ é mui mester;
e rogá-lh‟-ei que, se o non fezer‟,
que me non leixe mais eno mundo viver!
E rogá‟-lh‟-ei, se me ben á fazer,
que el me leixe viver en logar
u a veja e lhe possa falar,
por quanta coita me por ela deu;
se non, vedes que lhe rogarei eu:
que me non leixe mais eno mundo viver!
Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da
Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,
28
337p.
CA 76
[149] Quando mi-agora for‟ e mi alongar‟
de vos, senhor, e non poder‟ veer
esse vosso fremoso parecer,
quero-vus ora por Deus preguntar:
Senhor fremosa ¿que farei enton?
Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon!
E dizede-me: en que vus fiz pesar,
por que mi-assi mandades ir morrer?
Ca me mandades ir alhur viver!
E pois m‟ eu for‟ e me sen vos achar‟,
Senhor fremosa ¿que farei enton?
Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon!
E non sei eu como possa morar
u non vir‟ vos, que me fez Deus querer
ben, por meu mal; por én quero saber:
e quando vus non vir‟, nen vus falar‟,
Senhor fremosa ¿que farei enton?
Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon!
Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da
Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,
29
337p.
CA 77
[150] Que ben que m’ eu sei encobrir
con mia coita e con meu mal,
ca mi-o nunca pod‟ ome oïr.
Mais que pouco que mi-a min val!
Ca non quer‟ eu ben tal senhor
que se tenha por devedor
algũa vez de mi-o gracir.
[151] Pero faça como quiser‟,
ca sempre a eu servirei,
e quando a negar poder‟,
todavia negá-la-ei;
ca eu ¿por quê ei a dizer
o por que m‟ ajan de saber
quan gran sandece comecei,
E de que me non á quitar
nulha cousa, se morte non?
pois Deus, que mi-a fez muit‟ amar,
non quer, nen o meu coraçon.
Mais a Deus rogarei por én
que me dê cedo d‟ ela ben,
ou morte, se m‟ est‟ á durar.
E ben dev‟ eu ant‟ a querer
mia morte ca viver assi,
pois me non quer Amor valer,
e a que eu sempre servi
me desama mais d‟ outra ren.
Pero fui ome de mal-sen
porque, d‟ u ela é, saí!
Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da
30
Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,
337p.
CA 81
[155] Preguntan-me por quê ando sandeu,
e non lhe‟-lo quer‟ eu jamais negar;
e pois me d‟ eles non poss‟ amparar,
nen me leixan encobrir con meu mal,
direi-lhes eu a verdade e non al:
direi-lhes ca ensandeci
pola melhor dona que vi,
[156] Nen mais fremosa, (lhes direi, de pran,
ca lhes non quero negar nulha ren
de mia fazenda -ca lhes quero ben,)
nen pola que og‟ eu sei mais de prez.
E se m‟ ar preguntaren outra vez,
direi-lhes ca ensandeci
pola melhor dona que vi.
E Deu-lo sabe, quan grav‟ a mi é
de lhes dizer o que sempre neguei;
mais pois me coitan, dizer-lhe‟-la ei
a meus amigos, e a outros non.
Mui gran verdad‟ é ¡si Deus mi perdon!
direi-lhes ca ensandeci
pola melhor dona que vi.
E se a eles viren, creeran
ca lhes digu‟ eu verdade, u al non á,
e leixar-m‟ an de me preguntar ja;
e se o non ar quiseren fazer,
querê‟-lhes-ei a verdade dizer:
direi-lhes ca ensandeci
pola melhor dona que vi.
Nuno Fernandes Torneol (v.1, p. 149-171)
Texto CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA
NACIONAL; leitura, comentários e
31
glossário por Elza Paxeco Machado e
José Pedro Machado. Lisboa: Revista de
Portugal, 1949-1964. 8v.
[151] 70.
(Tr. 149)
Ir-vus queredes, mia senhor,
e fiqu‟ end‟ eu con gran pesar,
que nunca soube ren amar
ergo vós, des quando vus vi.
E pois que vus ides d‟ aqui,
senhor fremosa ¿que farei?
E que farei eu, pois non vir‟
o vosso mui bon parecer?
Non poderei eu mais viver,
se me Deus contra vos non val.
Mais ar dizede-me vos al:
senhor fremosa ¿que farei?
E rogu‟ eu a Nostro Senhor
que, se vos vus fordes d‟ aquen,
que me dê mia morte por én,
ca muito me será mester.
E se mi-a el dar non quiser‟:
senhor fremosa ¿que farei?
Pois mi-assi força voss‟ amor
e non ouso vusco guarir,
des quando me de vos partir‟,
eu que non sei al ben querer,
querria-me de vos saber:
senhor fremosa ¿que farei?
(coblas singulares)
POESIAS SATÍRICAS
Afons’ Eanes do Coton
32
A ũa velha quis ora trobar,
quand‟ en Toledo fiquei desta vez;
e veo-me Orraca López rogar
e disso-m‟ assi: — Por Deus, que vos fez,
non trobedes a nulha velh‟ aqui,
ca cuidaran que trobades a min.
33
Ben me cuidei eu, Maria Garcia,
en outro dia, quando vos fodi,
que me non partiss‟ eu de vós assi
como me parti já, mão vazia,
vel por serviço muito que vos fiz;
que me non destes, como x‟ omen diz,
sequer un soldo que ceass‟ un dia.
Mais desta seerei eu escarmentado
de nunca foder já outra tal molher,
se m‟ ant‟ algo na mão non poser,
ca non ei por que foda endoado;
e vós, se assi queredes foder,
sabedes como: ide-o fazer
con quen teverdes vistid‟ e calçado.
Ca me non vistides nen me calçades
nen ar sej‟ eu eno vosso casal,
nen avedes sobre min poder tal
por que vos foda, se me non pagades;
ante mui ben e mais vos en direi:
nulho medo, grado a Deus e a el-Rei,
non ei de força que me vós façades.
E, mia dona, quen pregunta non erra;
e vós, por Deus, mandade preguntar
polos naturaes deste logar
se foderan nunca en paz nen en guerra,
ergo se foi por alg‟ ou por amor.
Id‟ adubar vossa prol, ai, senhor,
c‟ avedes, grad‟ a Deus, renda na terra.
34
Covilheira velha, se vos fezesse
grand‟ escarnho, dereito i faria,
ca me buscades vós mal cada dia;
e direi-vos en que vol‟ entendi:
ca nunca velha fududancua vi
que me non buscasse mal, se podesse.
E non est‟ũa velha nen son duas,
mais son vel cent‟ as que m‟ andan buscando
mal quanto poden e m‟ andan miscrando;
e por esto rogu‟ eu de coraçon
a Deus que nunca meta semeldon
antre min e velhas fududancuas.
E pero, lança de morte me feira,
covilheira velha, se vós fazedes
nen un torto se me gran mal queredes;
ca Deus me tolha o corp‟ e quant‟ ei,
se eu velha fududancua sei
oje no mundo a que gran mal non queira.
E se me gran mal queredes, covilheira
velha, digu‟ eu que fazedes razon,
ca vos quer‟ eu gran mal de coraçon,
covilheira velha; e sabed‟ or‟ al:
des que fui nado, quig‟ eu sempre mal
a velha fududancua peideira.
35
Fernan Gil and‟ aqui ameaçado
dun seu rapaz e doestado mal;
e Fernan Gil ten-se por desonrado,
ca o rapaz é mui seu natural:
é filho dun vilão de seu padre
e demais foi criado de sa madre.
36
Pero da Ponte, ou eu non vejo ben,
ou de pran essa cabeça non é
a que vós antano, per boa fé,
levastes, quando fomos a Geen;
e cuido-m‟ eu adormecestes ....
37
Foi Don Fagundo un dia convidar
dous cavaleiros pera seu jantar,
e foi con eles sa vaca encetar;
e a vaca morreu-xe logu‟ enton,
e Don Fagundo quer-s‟ ora matar,
por que matou sa vaca o cajon.
Quand‟ el a vac‟ ante si mort‟ achou,
logu‟ i estando mil vezes jurou
que non morreu por quant‟ end‟ el talhou,
ergas se foi no coitelo poçon;
e Don Fagundo todo se messou,
por que matou sa vaca o cajon.
Quisera-x‟ el da vaca despender
tanto per que non leixass‟ a pacer;
ca, se el cuidasse sa vaca perder,
ante xa der‟ a quen-quer, assi non;
e Don Fagundo quer ora morrer,
por que matou sa vaca o cajon.
....................................................................
38
Meestre Nicolás, a meu cuidar,
é mui bon físico; por non saber
el assi as gentes ben guarecer,
mais vejo-lhi capelo d‟ Ultramar
e trage livros ben de Mompisler;
e latin come qual clérigo quer
entende, mais nõno sabe tornar;
E sabe seus livros sigo trager,
como meestr‟, e sabe-os catar
e sabe os cadernos ben cantar;
quiçai non sabe per eles leer,
mais ben vos dirá quisquanto custou,
todo per conta, ca ele xos comprou.
Ora veede se á gran saber!
E en bon ponto el tan muito leeu,
ca per i o preçan condes e reis;
e sabe contar quatro e cinqu‟ e seis
per estrolomia ‟n que aprendeu;
e mais vos quer‟ end‟ ora dizer eu:
mais van a el que a meestr‟ Andreu,
des antano que o outro morreu.
E outras artes sab‟ el mui melhor
que estas todas de que vos falei:
diz das aves en como vos direi:
que xas fezo todas Nostro Senhor;
e dos estormentos diz tal razon:
que mui ben pod‟ en eles fazer son
todo ome que en seja sabedor.
39
Orraca López vi doente un dia
e preguntei-a se guareceria.
E disse-m‟ ela, tod‟ en jograria:
— Sõo velha e cuid‟ a guarecer.
E dixe-lh‟ eu: — Cuidades gran folia,
ca i mais vej‟ eu das velhas morrer.
E dixe-lh‟ eu: — Gran folia pensades,
se per velhece a guarecer cuidades;
pero non vos digu‟ eu que non vivades
quanto vos Deus quiser leixar viver;
mais en velhice non vos atrevades,
ca i mais vej‟ eu das velhas morrer.
40
Paai Rengel e outros dous romeus
de gran ventura, non vistes maior,
guarecerán ora; loado a Deus,
que non morreron, por Nostro Senhor,
en ũa lide que foi en Josafás:
a lide foi com‟ oj‟ e, come crás,
prenderan eles terra no Alcor.
E ben nos quis Deus de morte guardar,
Paai Rengel e outros dous, enton,
dũa lide que foi en Ultramar,
que non chegaran aquela sazon;
e vedes ora por quanto ficou:
que o dia que s‟ a lide juntou,
prenderam eles port‟ a Mormoion.
De como non entraron a Blandiz,
per que poderan na lide seer,
já os quis Deos de morte guarecer,
per com‟ agora Paai Rengel diz;
e guareceron de morte poren:
que, quando a lide foi en Belen,
aportaron eles en Tamariz.
41
Veeron-m‟ agora dizer
dũa molher que quero ben,
que era prenhe, e já creer
non lho quig‟ eu per nulha ren;
pero dix‟ eu: — Se est‟ assi,
õi-mais non creades per mi,
se a non emprenhou alguen.
E digo-vos que m‟ é gran mal
daquesto que lhi conteceu,
ca sõo eu cord‟ e leal,
pero me dan prez de sandeu;
mais vedes de que ei pesar
daquel que a foi emprenhar:
de que cuidan que xa fodeu.
Pero juro-vos que non sei
ben este foro de Leon,
ca pouc‟ á que aqui cheguei;
mais direi-vos ũa razon:
en mia terra, per boa fé,
a toda molher que prenh‟ é
logo lhi dizen: — Ten baron!
POESIA PALACIANA
42 - TROVAS EM UM CAMINHO
Os lugares em qu‟andei
convosco ledo, e ufano,
nesta tristeza os busquei,
mas o que neles achei
foi a meu dano mor dano.
Comecei-lh‟a perguntar
que fora daquela grória
qu‟ali me viram passar:
responderam, sem falar,
qu‟estaria na memoria.
— “Em qual memória” — pregunto —
“pode tal lembrança ser?”
— Responderam: “Tudo junto,
o próprio e o transunto,
na vossa podereis ver”.
Na resposta que senti
vi meu mal camanho era,
vi o que logo me vi:
partir deles e de mi
para donde não quisera.
Comecei de caminhar
um caminho povoado,
por um mui craro luar
que me fazia parar
a cada passo pasmado.
Pus os olhos nas estrelas,
por não ver por donde andava,
olhando por todas elas;
lágrimas tristes, querelas,
escuro tudo tomava.
Com lembranças ledas tristes,
vim assi fantesiando;
fantesias que não vistes,
sentidos que não sentistes
como nos vinham matando...
Mas quem soubera morrer
a tal tempo, e tal hora,
para não tornar a ver
vida tão má de sofrer
com‟esta triste d‟agora!
Ó vida de minha vida,
ó triste grória passada,
ó memória entristecida,
pois sois tão desconhecida
para que me lembrais nada?
Esquecei vossas lembranças,
deixai-me viver assi
sem vossas vãs esperanças,
porque com vossas mudanças
vivo sem vós e sem mi.
43 - CANTIGA E FIM
Lembranças, não persigais
a quem já não tem poder
mais que quanto vós lhe dais
mais suspiros e ais, para chorar e gemer.
Ó minha triste memória,
ó minha dor não fingida,
se lembrar fosse vitória,
a quem daríeis mais grória
qu‟a quem dais tão triste vida?
Mas estas lembranças tais
devíeis já d‟esquecer
que, se lembram, acordais
os meus suspiros, e ais,
e meu chorar e gemer. (Francisco de Sousa)
porque a causa querer bem,
o desejar o efeito:
amores que este não tem
não me negara ninguém
que não têm o ser perfeito.
Não digo que o desejar
seja no homem primeiro,
mas venha por derradeiro,
pera se certificar
o bem querer verdadeiro;
porque quem este não tem,
hei por mui certo sinal
ou que não quer bem nem mal,
ou que quer pequeno bem.
E bem se poderá achar
desejar sem bem querer,
grande bem sem desejar
no homem não pode ser;
e quem tal conclusão tem
contra a minha opinião,
vai tão fora da razão,
como está de querer bem.
Sentir-se-á se se não vir
qualquer cousa desejada,
mas quem não deseja nada
não tem nada que sentir.
Ora Vossa Mercê veja
qual daquestes mais merece:
quem quer bem, e não deseja,
ou quem deseja, e padece?
.............................................
CONDE DO VIMIOSO
VILANCETE
44 - AIRES TELES E CONDE DO VIMIOSO
TROVAS QUE MANDARAM O CONDE DO VIMIOSO E AIRES TELES À SENHORA DONA
MARGARIDA DE SOUSA SOBRE UMA PORFIA
QUE TIVERAM PERANTE ELA, EM QUE DIZIA
AIRES TELES QUE NÃO SE PODIA QUERER
GRANDE BEM SEM DESEJAR, E O CONDE
DIZIA O CONTRÁRIO.
Meu amor, tanto vos amo,
que meu desejo não ousa
desejar nenhuma cousa.
Porque, se a desejasse,
logo a esperaria;
e, se a eu esperasse,
sei que vos anojaria.
Mil vezes a morte chamo,
e meu desejo não ousa
desejar-me outra cousa.
AIRES TELES
AIRES TELES
Desejar e bem querer
são, Senhora, tão parceiro,
que os amores verdadeiros
sem ambos não podem ser;
Sem outros mais argumentos
na sua mesma razão,
jaz, Senhora, a confusão
de todos seus fundamentos.
No que diz contra o que digo
nas razões que dei arriba,
ele só luta consigo,
ele mesmo se derriba.
Descansa, triste, descansa,
que seus males são vinganças,
tuas lágrimas amansa,
leixas suas esperanças.
Ca pois nascem sem razão,
nunca por ela lh‟esperes,
lembra-te que são mulheres.
VILANCETE
Meu amor tanto vos quero,
que deseja o coração
mil cousas contra razão.
Porque, se vos não quisesse,
como poderia ter
desejo que me viesse
do que nunca pode ser?
Mas conquanto desespero,
é em mim tanta afeição,
que deseja o coração.
Esforça meu coração,
não te mates, se quiseres
lembra-te que são mulheres.
Lembra-te que por nascer
nenhuma que não errasse,
lembra-te que seu prazer,
por bondade, e merecer.
não vi quem dele gostasse;
pois não te dês à paixão,
toma prazer se puderes,
lembra-te que são mulheres.
Tuas mui grandes firmezas,
tuas grandes perdições,
suas desleais nações
causaram tuas tristezas.
Pois não te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
verás que são as mulheres.
Que te presta padecer,
que te aproveita chorar,
pois nunc‟ outras hão de ser
nem são nunca de mudar?
Deixas com sua nação,
seu bem nunca lho esperes,
lembra-te que são mulheres.
Não te mates cruamente
por quem fez tão grande errada,
que quem de si se não sente,
por ti não lhe dará nada.
Vive lançando pregão
por u fores e vieres,
que são mulheres mulheres.
PROSA DOUTRINÁRIA - INÍCIO DA PROSA PORTUGUESA
Texto ORTO do Esposo. In: NUNES, José Joa45
quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:
Clássica, 1970. p. 56-7.
[Uma promessa cumprida]
[56] Hũa santa uirgem, que auja nome
Dorothea, era leuada pera degolar pella fé de Ihesu
Christo, e hũu escolastico leterado, que auia nome
Theofilo, escarnecendo dela, disse-lhe:
— Tu, espossa de Christo, emvia-me do
parayso do teu esposo rosas e pomas.
E a santa uirgem lhe respondeo:
— Certamẽte asy farey.
E ella, quando ueo ao luguar onde auja de
seer degolada, fez oraçõ a Deus. E, acabada a
oraçom a Deus, logo apareceu ante ella hũu menjno,
que tragia ẽ hũu pano de linho muy aluo tres maçãas
muy nobres e trem rosas muy fremosas. E disse-lhe
a santa uirgem:
— Rogo-te que leues esto a Theofilo e dilhe: Ex aquelo que pidiste a Dorothea que te
emviasse do parayso do seu esposo.
E a santa uirgem foy degolada e acabou seu
marteyro. E Theofilo estaua recontando e
prometimẽto que lhe fezera a santa uirgem,
escarneçendo della. E aque o menino chegou ante
elle cõ o pano do linho aluo ẽ que tragia aquellas
maçãas marauilhosas e as rossas muy fremosas e
dise-lhe:
— Iirmãao, ex aquj aquello que te prometeu
a uirgẽ muy santa Dorothea, que te emuija do
parayso do meu esposo.
[58] E entõ Theofllo tomou as pomas e as
rosas e braadou muy grande uoz, dizendo:
— Uerdadeiro Deus he Ihesu Christo.
E diseron-lhe os companheyros:
— Ensandeces ou dizes esso em jogo?
Respondeu Teofilo:
— Eu nõ soom sandeu, nẽ ey talante de
jogo, mais creo uerdadeyramẽte que Ihesu Christo
he uerdadeyro Deus, ca agora he o mes de feuereyro
e toda esta terra de Capadocia he cuberta de geada e
de friu o nõ ha em ella folhas verdes nẽ flores
nehũas, pois donde pensades que ueerõ estas maçãas
con suas folhas e estas rosas tam fremosas?
E elles diserom:
— Esso nõ sabemos nós.
E Theofilo lhes disse:
— Eu faley a Dorothea, quando a leuauã a
degolar, e dise-lhe em escarnho: Molher, hu te uaas?
E ella me disse: uou-me para o meu amigo e meu
esposo Ihesu Christo, que me conujda pera muy
santas uodas e muy solempnes manjares para o seu
parayso. E eu lhe disse como a sandia: Quando fores
em esse parayso, ẽuja-me das rosas e das maçãas. E
ella me prometeu que o farya. E agora, tanto que foy
degolada, ueeo a mi hũu menjno, que me parece que
nõ he mais de idade de quatro ãnos, e chamou-me a
de parte e falou-me tam perfectamente que a mö
parecia soer eu rustico ante el e amostrou-me e deume este pano cõ estas tres rosas e tres maçãas e disemo: Aquella uirgem santa Dorothea te ẽuja esto, asy
como o prometeu, estas doas do orto do seu esposo.
E, tanto que as eu tomey e começey de braadar, logo
aquelle moço nõ pareçeu mais, e eu creo que era
angeo de Deus.
E logo Theofilo começou a braadar:
— Bem auẽturados som aquelles que creem
em Ihesu Christo, e aquelle que dá a elle a sua fé he
uerdadeyro sabedor.
E degolarõ-no con outros e foy-se pera o
parayso do deleyto, que he eno çeeo. E asy mostrou
este leterado a sua doutrina par paçiençia, ca,
segundo diz hũu santo padre, a doutrina do barõ
conheça-sse pela paciẽçia, ca, quanto o homẽ he
meos paciẽte, tanto se mostra por meos ẽsinado.
(Do Orto do esposo, códice alcobacense n.º
273/198, fols. 22 e V.).
molher, e o omem bom lhe dezia todas as palavras que
ho podiam comfortar, e a molher lhe dezia toda trayçam, qua ella ho descomfortaua em corpo e em alma.
E, quando veo aos sete dias, veo ho homem
bom da nao e dise-lhe que se lhe achegava ho prazo
de ser lyvre, se se soubese guardar e ter-se comtra ho
diabo. E elrey lhe dise:
[75] — Senhor, como me saberya eu bem
guardar?
E ele lhe dise:
— Se te oje toda via poderes guardar de
asanhares teu Senhor, tuu seras lyvre de todos os
penares e de todas estas más trevas que te am de vir,
se te nom guardares de crer comselho que seja
comtra sua vomtade. E, quamdo d‟aquy pasares,
averás pasadas as gramdes trebulações.
Emtam se foy o senhor da barca e elrey
ficou muy ledo e pôs bem em seu coraçam que já,
por causa que visse, nom se partysse da pena. Asy
esteue, até que foy ora de noa. Entam oulhou por ho
mar e via vyr hũa muy gramde nao e muy rica, mas
nam via hy homem nem molher. A nao era muy
formosa e guarnyda de muy fermosas cousas e veyose direyto a pena, e, tamto que chegou, começou-se
hu mao tempo e (a nao chegou a pena o tempo)
começou a fazer trovõis, chuveiros tam fortemente
que parecia que a pena querya cair, e nom ouvera
homem que ho vise que nom cuydase que se vinha
afim.
Elrei estaua na pena e a chuva ha ferya de
todas partes e nom sabia omde me fosse escomder,
que a parte da pena omde a coua era cayra e a
tempestade cada vez era mayor, os coryscos muy
ameude cayam e tam desamparado era ellrey que
nũnca d‟aquele perygo cuydou escapar. Asy sofreu
elrey ho tromento do vemto e da chuva e dos
coryscos no corpo e na alma, mas por yso nom se
quys acolher a nao, nem leyxar a pena; tamto sofreo,
atá que o tempo estiou e o soll começou a esclarecer,
e entam foy muy ledo.
E emtam veio hũa tam grarnde quemtura que
parecia que a pena querya arder, e, se ante elrrey
sofreo pena, mjll tamto lhe foy esta. Via amte ey a
nao toda aparelhada de boas camaras, omde, se hy
emtrasse, poderia bem sofrer a gramde quemtura,
Texto JOSEP ab Aramatia. In: NUNES, José Joa- mas ele duvidou tamto a sanha de seu Senhor que
46
quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: pôs em seu coraçam de amte sofrer morte que leyxar
a pena.
Clássica, 1970. p. 74-79.
Com muyta paciẽçia sofreo elrey esta
quemtura, atá que a cabeça lhe esuaeçeu e nom se
Um episódio do Josep ab Aramatia
pode ter e caio esmorecido. E, quamdo hacordou,
ergeo hũ pouco a cabeça, pera ver se ho tempo
DOS GRAMDES TRABALHOS QUE
amamsara. E, quamdo via que era temperado, asy
MORDAYMNA PENA PASSOU E DAS
como avia de ser amte ora de nona e besporas, foy
TENTAÇÕES QUE O DIABO LHE FEZ E DO
muy ledo. Emtam prouou se se poderya herguer com
QUE LHE DEOS DISSE
[74] Em esta maneyra foy elrey na pena e cada a cabeça que lhe esuaeçera e, quaindo se ouve de
dia ho omem bom da naao vinha ha ele e depois ha alevamtar, nom semtio mall nem dor. E, quamdo se
ergeo, maravilhou-se das gramdes avemturas que lhe
acomteceram e sofrer tam gramdes trabalhos e nom
hos semtir, e as vezes lhe parecia que sonhara e
tamto era ledo. Nysto cuydou, atá que foy bespora, e
oulhou e vio vir hũa [76] nao muy nuamente
aparelhada e vio-[a] muy rica, e, quamdo se foy
chegamdo, vio no castelo d‟avamte hir dons escudos
e conheceu que hũu era ho seu e o outro de seu
cunhado Naçeram e maravilhou-se e começou
muyto ha cuydar, tamto que se esqueçeo, e logo
ouvio rimchar hũ cavalo e escarvar com as mãos
tamto que pareçia que brytava a nao, ho que elrey
ouvio muj bem, e pareçeo-lhe no rimchar que
haquele era ho seu cavalo, que ele guanhara de
Tolomer, na batalha de Orcanze.
Muyto se maravilhou elrey do cavalo e dos
escudos que via em estranha terra e que aventura
poderya ser que ally os trouxese. E nesto a nao
chegou tamto que emcorou na pena e elrey se hergeo
e vio muy fermosa gemte.
Emtam veo hũ homem fora, que mais
parecia cõ hũ seu irmão que lhe mataram em hũaa
batalha. E, quamdo ho vio, foy muy ledo comtra ele,
mas vio-lhe fazer muy mao comtynemte, em tamto
que muyto fez perder a elrey de sua alegrya e toda
via ho foy abraçar e pregũtou-lhe por que fazia tam
triste gesto, e ele lhe disse:
— Senhor, nam posso fazer menos, qua vos
perdestes dons amigos, os mylhores que numca
tyvestes no mumdo, eu e Naçeram, voso cunhado,
que vede-lo aquy na nao en hua cama.
Quamdo elrey ysto ouviu, cayo esmorecido
e, quamdo acordou, dise-lhe que lho mostrasse e deu
brados, como homem samdeu, e tornou outra vez a
cair esmorecido. E ho homem ho tomou por a mão
esquerda e o levou a nao.
Quamdo elrey foy na nao, vio hũ leyto e
ergeo hũ pano e vio hu corpo que bem cuydou que
era Naçeram, e caio emtam esmoreçido de sorte que,
quem ho vira disera que nom escaparya. E, quamdo
acordou, quys pregumtar ao cavaleiro em que forma
Naseram morrera e teve olho a pena e vio-se muy
alomgado, tamto que hapenas a podia ver. E,
quamdo ysto vio, [caio] esmorecido e, quamdo
acordou, bemzeo-se, e, tam azinha como ouve feyto
o synall da cruz, nam vio homem nem molher na
nao, nem no leyto.
E, quãdo vio como ho negoçio hia, começou
muy feramente a chorar, e dise:
— Senhor Deus, ora me guardey mall
comtra vós e agora sey que vos fize torto, e, se me
mall vier, bem ho mereçy.
E, tam azynha como ysto disse, vio na proa
da nao aquele homem que ele vi[r]a na barca
fermosa da prata e que toda a semana lhe dissera as
boas palavras. E, tamto que o vio, dyse-lhe
choramdo:
— Ay, Senhor, como me emganou haquele
de que vós me mamdastes gardar!
E ho omem lhe dise:
[77] — Nom chores, mas guar-te de fazeres
pior.
E elrey lhe preguntou que poderya fazer e
ele lhe disse:
— Muitas estranhas avemturas verás que te
acomteçerám, mas jamais norn comerás nem
beberás, atá que nom aches Naseraw, teu cunhado. E
virá a ti, como verdadeiro crystam, e, quamdo ho asy
vires, emtam sabe que serás livre. E sabe bem que o
anho que te eu disse omtem por a menham e o lobo
que tu vias nesta nao ho podes ver, e este que te
disse como Naseram era morto, este he o diabo, que
sempre he lobo comtra as ovelhas de Deus, tamto
como comtra o povo de Deus, e este he o lobo que
em tua visam te tolhya os bõs mamjares que te ho
anho dava, e aquele cordeiro saberás tu muy bem
que quer ser, mas esto non será seraá hua vez, e
emtam te será descuberta sua visam e o que pode
seneficar. Bem sabe que aquele diabo que te meteo
na nao foy aquela molher que a ty vinha cada dia e
te dezia as más palavras. Ora te vay e olha como te
guardes comtra ela ho mylhor que puderes e mylhor
que atá‟quy te guardaste, que, se te nom souberes
guardar, muy azinha verás cousas que te tornarám a
morte perduravell.
Emtam se calou, que lhe nom disse mais, e
elrey oulhou e nam ho vio e ficou só na nao e o
vemto deu na nao e toda a noute e dia a trouxe de
quá pera lá. E a outro dia, estamdo elrey na cadeira
do mestre, oulhou e vio lomge da nao hu homem,
asy como a pé, e, quamdo foi perto, vyo-lhe debaixo
dos pés duas aves que os sostynham e o traziam tam
lygeyramente como hũa podia mais boar [voar]. E,
quamdo veio a nao, emtrou e começou a fazer ho
sinall da cruz sobre ha nao e tomou agoa de demtro
da nao e lavou toda ha nao de demtro com ambas as
mãos, sem cousa falar. E el-rey oulhou e muito se
maravilhou que podia ysto ser e por que ho omem
deytava ha agoa hasy por a nao.
E, quamdo ho omem jsto teve feito, falou ha
el-rey e dise-lhe:
— Mordaim.
Elrey se maravilhou muyto, quãdo se vio
nomear por seu nome de bautismo, e lhe respomdeo:
— Senhor.
E ho homem bom lhe dise:
— Sabes quem sam [sou]?
— Nem, disse elrey.
E o homem bom lhe disse:
— Sam teu defemdedor por mamdado de
Ihesu Christo; eu sam [sou] Salustes, aquele em cujo
nome e em cuja omrra tu fizeste a rica ygreja na
cidade de Sarrar, e vym-te comfortar e acomselhar.
E emvia-te dizer por mym ho anho, aquele que em
tua visão te daua os bõs mamjares que o lobo te
tolhia, que tu vemçeste ho lobo, e [78] ysto foy por
ho synall da cruz que tu fyzeste sobre ty, quamdo te
viste halomgado da pena, e emtam te leixou ho lobo.
Este foy ho diabo, que amtes te tolhia os bõs
mamjares que ho cordeiro te daua; estas sam as boas
palavras que o omen bom da nave te dezia: aquele
homen bom era ho cordeiro que em tua visam te
dava os bõs mamjares. E sabe que ho anho de Deus,
que por ha terreal lynhajem foy sacryfycado, que
veo tam mamso a cruz, como ho anho ha morte, este
hé Ihesu Christo, filho da Vyrgem. Aquele que cada
dia te vinha comfortar, aquele me embiou a ty por te
descobryr tua visam asy como te ele mostrou, pera
que tu saybas que quer dizer. Tuu viste de teu
sobrynho sair hu laguo e dele sai[re]m nove rios e os
oyto eram todos ygaes, e o noveno, que derradeiro
naçera, era tam formoso e tam gramde como todos
os outros, e o lago era muy fermoso e muy grande, e
tuu oulhaste e vyste sobre ty vir hũ omem que tynha
semelhança do verdadeiro croxofixo, e, quamdo
deçeo, emtrou no lago e lavou nele os pes e as
pernas e outro sy em todos os outros oyto rios, e no
nono se lavaua todo. Aquele lago e teu sobrynho em
que Ihesu Christo banhara seus pes e suas pernas
tamto quer dizer que ele era de tam boa vida que
sera verdadeyro na samta fé, do quall sairám os nove
rios. Estes serã nove homẽs que dele decemderám e
nom serám todos seus filhos, amtes decemderárn de
hũu e do outro por geraçam e todos oyto seram
ygaes de bomdade e de vida, pero ho oytauo nom
será no começo de tall vida, mas se-lo-ha depois, ho
noveno sera de muy mayor alteza de vida que todos,
e, por que de todas bomdades vemcerá os outros, por
ysso banhará Ihesu Christo nele todo o seu corpo,
ysto nam vestido, mas nuu, que ele se espirá amte
ele de tall maneyra que lhe mostrará todas as suas
porydades, que ele nũqa ha omen descobryo. Aquele
será cõprydo de todas as bomdades que em coraçam
de homem deva d‟aver e pasará de armas todos
aqueles que amte ele fora e serám; aquele será
aquele de quem ho amygo falou em Sarrat, quamdo
feryo Josefes com a lamça da vimgança, quamdo
disse que jamais as maravilhas do Greall nom
seryan descubertas senam a hu homem soo; aquele
será o noveno dos que decemderám de teu sobrynho
e será tall como te eu digo, mas ho gramde mylagre
e as gramdes vertudes que acomtecerám aly omde
ho seu corpo jazerá nom seram sabidas, porque
naquele tempo saram muy poucos que saybam
verdadeiros synaes de sua sepultura. Agora te faley
já de tua visan, ora te quero falar desta nao e porque
deytey por ela agoa, que esta naao foy do diabo, que
tu por ho synall da cruz deytaste e, por que foy sua,
nom podia ser que algũa vez ha ela nom viesse,
senom fosse lympa, e agora sé lympaa por a agoa e
por ho synal da cruz e por ho comjuramento da
Samta Trymdade asy que nenhu maao esprito nela
emtrará, que elles nenhua cousa, tamto temem como
ho synal [79] da cruz (he bemzia no nome do Padre
e do Filho e do Esprito Santo) e por esta bemçam
fica lympa de toda a sogidade [sujeira], e em quall
quer lugar que ysto com boa fé fycar ja o diabo nam
será ousado que hy vaa. Em tall maneyra faze e serás
seguro que, no lugar omde ho fizeres, o diabo nom
terá poder de fazer mall a teu corpo, nem tua alma
nom será perdida.
Emtam se calou ho samto homem e partio-se
dele e elrey ficou na náo, asy como ouvydes.
(Capítulo LXVI do códice n.º 643 existente no
Arquivo da Torre do Tombo, fols. 105 a fols. 110).
Texto LAPA, Rodrigues (sel.). A morte de
47
Genevra. In: Crestomatia Arcaica. 4. ed.
Lisboa: Sá da Costa, 1976. 89p. p. 4852.
[48] A morte de Genevra15
Eu esta parte diz o conto que, pois a rala
Genevra entrou en orden con pavor dos filhos de
Morderet, ela foi sempre mui viçosa de todolos
viços16 do mundo; onde avẽo que, pois ouve de
sofrer as lazeiras17 da orden, que non avia eu
custurne, caeu logo en camanha enfermidade que
todos aqueles que a vian avian maior asperança en sa
morte ca en sa vida. E ela avia consigo hũa donzela
de gran guisa e que presera18 orden por amor dela.
Aquela donzela fora entendedor de Giflet, filho de
Dondinax. E porque a rala ouvira dizer que Giflet
tevera mais longamente companha a rei Artur ca
outro cavaleiro, amava tanto a companha desta
donzela que non podia mais. E confortavan-se antre
si e choravan muito [49] ameúde, quando lhis
lembrava os grandes viçose a grande alteza e grande
poder eu que foran, e ora eran en orden, con pavor
da morte.
A raöa, como quer que fosse eu orden, non
quedava19 de fazer 3 por Lauçalot e que non dissesse
algũa vez: — Ai, meu senhor Lançalor, don
Lançalot, e como vos esqueci, que amais nunca
15
p. 48, nota: É dos últimos capítulos da Demanda e, sem dúvida, um
dos mais belos e menos conhecidos. A rainha Genevra, mulher do rei
Artur, estava ligada a Lançarote do Lago, o melhor cavaleiro do mundo,
por um amor da carne e dos sentidos, pecaminoso, embora sublimado
pelo ideal do amor cortês. No pequeno episódio da sua morte, numa
abadia em cuja austeridade amortecera os «viços» de mulher cortesã,
nem sequer falta o pormenor do ciúme, personificado naquela monja que
amara também Lançarote e resolve vingar-se da feliz rival, fazendo-lhe
crer que o seu amigo morrera num naufrágio. Essa mentira cruel foi uma
punhalada no coração doente de Genevra, coração esse que ela manda,
após sua morte, arrancar do peito e oferecer num elmo ao homem que
ela amara acima de tudo.
16
Prazeres.
17
Agruras.
18
Tomara.
19
Não deixava.
cuidei que vós me leixássedes! Se vós catássedes20 a
vossa bondade e o vosso prez, e er21 o gran poder
que Deus vos deu, lembrar-vos-íades algũa vez de
min e vingaríades a morte de rei Artur e
conquistatíades o reino de Logres e alegraríades-mi
desta cuita eu que soõ e deste poder alheo eu que
soõ, eu que me meti con pavor de morte.
Esto dizia a raia de Lançalot, u jazia doente, e
a donzela a confortava muito quanto ela podia.
E dizia que non ouvesse pavor, ca ben
soubesse verdadeiramente que Lançalot non tardaria
muito que non veesse, que já ela ende22 ouvira
novas. E a raöa respondeu: — Sobejo me tarda, e sei
que eu sa tardança tenho morte.
Eu aquela abadia avia hfia monja que entrara
eu orden porque entendera eu Lançalot e uon na
quisera, e desamava a raia mui de coraçon, porque a
leixara Lançalot por amor da raöa. E pensou que,
pois ela non podia vingar sa sanha en Lançalot, que
a vingaria en a raöa. Uũ dia avẽo23 que disse esta
dona aa amiga de [50] Giflet, aquela que a raöa
guardava, e fez sembrante que non queria que a raöa
a ouvisse:
— Ai, donzela, maas novas vos trago! Don
Lançalot, que viöa con gran poder por conquerer o
reino de Logres, perdeu-se no mar con toda sa gente.
— Par Deus — disse a amiga de Giflet —
gran perda é essa. Mas como o sabedes vós se é verdade?
— Eu o sei ben — disse ela — por aquel que
o viu.
A raöa, que jazia doente, quando ouviu estas
novas ouve tan gran pesar, que a poucas que non foi
sandia; pero encubriu-se ben, con pavor daquela que
as novas dizia. E, pois se partiu, disse a raöa con
gran pesar:
— Ai, mar amargoso e maldito, comprido de
amargura e de door, néicio, mao e desconhoçudo,
mal m‟ás morta, que vós à mais leal amador do
mundo tolhestes seu amor.
Pois disse esto, calou-se con tan gran pesar,
que non pôde mais comer nen bever; e jouve24 assi
três dias. Ao quarto dia veeron novas que Lançalot,
sen falha25, aportara na Grã-Bretanha con tan gran
cavalaria e tan bõa, que non a omen no mundo que o
ousasse atender en campo.
A donzela que a raöa guardava foi mui leda
quando estas novas ouviu, e foi-se correndo aa raia e
disse-lhi:
— Senhora, muito vos trago bõas novas.
20
Se olhásseis para.
E também.
22
Disso.
23
Sucedeu.
24
Jazeu.
25
Sem dúvida.
21
[51] Sabede verdadeiramente que don
Lançalot é na Bretanha con tanta gente que, en
pouca sazon, a correrá toda.
A raöa, que preto estava de morta, quando
estas novas entendeu, respondeu a grande afã26:
— Donzela, tarde mo dissestes e já me non
vai ren sa viöda, ca eu soõ preto de morta. Mas pero,
porque don Lançalot é o homen do mundo que eu
mais amo, rogo-vos que façades, polo meu amor e o
seu, o que vos quero rogar.
— E ela lhi prometeu lealmente que o faria a
todo seu poder.
— Pois ora vo-lo direi — disse a rala. — Eu
bem vejo que soõ morta e non ei crás a cheguar aa
manha; e ben vos digo que nunca foi27 leda tanto de
novas como destas. E de outra parte, pesa-me sobejo
que o non posso veer ante que moira; ca me
semelhalo que, se o visse, que mia alma seeria mais
leda. E porque eu quero que ele veja e saiba que de
sa vida mi praz e que moiro con pesar e que de
grado o queria veer, se podesse, porén eu vos rogo
que, tan toste28 que eu moira, que me tiredes o
coraçon e que lho ievedes en este elmo que foi seu; e
que lhi digades que, en renembrança de nossos
amores, lhe envio o meu coraçon, que nunca el o
esqueceu.
[52] Aquel dia mesmo, passou a rainha Genevra e a
donzela fez seu mandado; pero non achou Lançalot,
e por esto non acabou todo o que lhe mandara a
rainha.
48 - CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES
[25] CAPITULO VII
Como o Primçipe de Galles emviou a elRei Dom
Hemrrique huuma carta, e das razoões comtheudas
em ella.
SABEMDO elRei Dom Hemrrique como
elRei Dom Pedro e o Primçipe de Galiez hiam
caminho do Gronho por passar o tio Debro, partio
domde estava e foisse pera Najara; e pos seu arreal
aaquem da villa, em guisa que o rio de Najara estava
o seu arreal, e o caminho per hu elRei Dom Pedro
avia d‟hir. ElRei Dom Pedro e o Primçipe com sas
gentes partirom do Gronho, e veherom pera
Navarrete; e dalli emviou o Primçipe a ElRei Dom
Hemrrique huum seu arauto com huuma carta, que
dizia assi. «Eduarte filho primogenito delRei «de
Imgraterra, Primçipe de Gallez, e de Guiana, e
duque de Cornoalha, e Comde de Cestre: Ao nobre e
26
27
28
Ansiedade.
Fui alegre.
Tão logo que.
poderoso Primçipe Dom Hemrrique comde de
Trastamara: Sabee que nestes mas passados o muj
alto e muj poderoso Primçipe Dom «Pedro, Rei de
Castella e de Leom, nosso muj caro e muj amado
paremte, chegou aas partes de Guiana, omde nos
estavamos, e fez nos emtemder, que quamdo elRei
Dom Affonsso seu padre morreo, que todollos
poboos dos reinos de Castella e de Leom
paçificamente ho tomarom por seu Rei e senhor;
amtre os quaaes vos fostes huum dos que assi lhe
obedeçerom, e estevestes gram tempo em sua
obediemçia. E diz que depois desto, pode ora aver
huum ano, vos com gemtes estranhas emtrastes em
seu reino e lho teemdes ocupado per força,
chamamdovos Rei de Castelia, tomamdolhe seus
tesouros e remdas, dizemdo vos que o deffemderees
del, e [26] «daquelles que o ajudar quiserem; da qual
cousa fomos muj maravilhado, que huum tão nobre
homem como vos, e de mais filho de Rei, fezessees
cousa vergomçosa comtra vosso Rei e senhor. E o
dito Rei Dom Pedro emviou mostrar estas «cousas a
elRei de Imgraterra, meu senhor e padre, e lhe
reque«rio que pollo gram divedo de linhagem que
amtre as casas Dingraterra e de Castella ouverom em
huum, des i pollas ligas e amizades que com o dito
Rei meu senhor e comigo «tijnha feitas, o quisesse
ajudar a cobrar seu reino e senhorio. ElRei meu
senhor e padre veemdo que elRei Dom Pedro seu
paremte lhe emviava pedir cousa justa e razoada, a
que todo Rei deve dajudar, prouguelhe fazello assi, e
mandounos que «com todos seus vassalos e amigos
ho ouvessemos ajudar, segumdo a sua homrra
perteemçe; polla qual razom fomos aqui chegados, e
estamos em este logar de Navarrete, que he nos
termos de Castella. E porque se voomtade de Deos
fosse de se escusar tam gramde espargimento de
sangue de Christaãos, como he per força de i aver, se
a batalha se fezer, de que Deos sabe que a nos pesa
mujto: vos rogamos e requirimos da parte de Deos e
do martir Sam Jorge, que se vos praz que nos
seiamos boom medianeiro antre o dito Rei Dom
Pedro e vos, que nollo façaaes saber, e nos
trabalharemos como vos ajaaes em seus reinos, e em
sua boa graça emerçee tam gram parte, per que muj
abastadamente possaaes manteer vosso boom e
homrrado estado: e se alguumas outras cousas
emtemdees de livrar com elle, com a merçee de
Deos emtendemos de poer hi tal meo, como vos
seiaees de todo bem comtento. «E se vos disto nom
praz e querees que se livre per batalha, sabe Deos
que nos despraz e o muj to; pero nom podemos
«escusar de hir com elRei Dom Pedro nosso paremte
e antigo «per seu reino: e se nos alguuns quiserem
embargar o caminho, nos faremos mujto polio ajudar
com aajuda e graça de Deos. Scripta em Navarrete,
vila de Castella, primeiro dia dabril.»
[27] CAPITULO VIII
Da reposta que elRei Dom Hemrrique emviou ao
Primçipe per sua carta.
ELREI Dom Hemrrique veemdo esta carta
reçebeo bem o arauto, e deulhe panos douro e
dobras; e ouve comselho como respomderia ao
Primçipe, por que alguuns diziam que pois lhe nom
chamara Rei, que lhe escprevesse per outra maneira;
des i acordarom que lhe escprevessem cortesmente,
e foi a carta em esta forma. «Dom Hemrrique pela
graça de Deos Rei de Castella e de Leom: Ao muj
alto, e muj poderoso «Primçipe Dom Eduarte, filho
primogenito delRei de Ingra«terra, Primçipe de
Gallez, e de Guiana, e duque de Cornoalha, e comde
de Cestre: Reçebemos per huum arauto vossa carta,
na qual se contijnham mujtas razoões que vos forom
ditas por esse nosso aversairo que hi he; e nom nos
pareçe que fostes bem emformado, como assi seia
que nos tempos passados elle regeo estes reinos de
tal maneira, que todollos que o sabem e ouvem se
podem maravilhar de tanto tempo seer sofrido no
senhorio que teve. E todollos dos reinos de Castella
e de Leom, com gram dampno, e trabalho, e mortes,
e perigos, e mallezas «que seeriam Iomgas de
comtar, soportarom ataaqui seus feitos, «os quacs
nom poderam mais emcobrir nem sofrer; e Deos
«por sua merçee avemdo piedade de todollos destes
reinos, por tam gramde mal nom hir mais adeamte,
sem lhe fazemdo «nenhuum de sua terra, salvo
obediençia qual devia. E estamdo todos com ele em
Burgos pera o servir e ajudar a deffemder «seus
reinos, deu Deos semtemça comtra elle, e de sua
[28] voom|tade propia os desemparou e se foi; e
todollos de seu senhorio «ouverom muj gramde
prazer, teemdo que Deos emviara sobrelles a sua
misericordia, por os livrar de tam duro e tam
«perijgoso senhorio que tijnham: e todollos dos ditos
reinos, assi prellados come cavalleiros e fidallgos, e
çidadaãos de sua «voomtade veherom a nos, e nos
reçeberom por seu Rei e senhor: assi que
entemdemos per estas cousas sobreditas que esto foi
obra de Deos. E por tanto pois per voomtade de
Deos, e de todollos do reino nos foi dado, vos nom
teemdes «razom por que nos ajaaes destorvar; e se
batalha ouver de «seer, sabe Deos que nos despraz
dello, pero nom podemos escusar de poer nosso
corpo por defemder estes reinos, a que tam teudos
somos, aaquel que comtra elles quer seer; e por
emde vos rogamos e requirimos da parte de Deos, e
do apostollo Samtiago, que vos nom queiraaes
tremeter assi podero«samente de em nossos reinos
fazerdes dampno, ca fazemdoo, nom podemos
escusar de os deffemder. Scripta no nosso arreal
açerca de Najara, segumdo dia dabril». Mostrou o
Primçipe esta carta a elRei Dom Pedro, e disserom
que estas razoões nom eram abastamtes pera se
escusar de nom poer logo a batalha; e pois todo era
na voomtade de Deos, que como sua merçee fosse,
que assi o livrasse.
[29] CAPITULO IX
Como se fez a batalha amtre os Reis ambos, e foi
vemçido elRei Dom Hemrrique.
JA ouvistes como elRei Dom Hemrrique
tijnha seu arreal posto per homde avia de vijnr elRei
Dom Pedro, de guisa que o rio de Najara estava
amtre huuns e os outros; e ouve estomçe seu
comselho de passar o rio, e poer a batalha em huurna
gramde praça, que he comtra Navarrete, per homde
os enimijgos aviam devijnr; e desto pesou a mujtos
dos seus, por que tijnham aa primeira seu arreal
posto com moor avamtagem, do que o depois
teverom: mas elRei Dom Hemrrique era homem de
gram coraçom e esforço, e disse que nom quina poer
batalha, salvo em na praça chaã sem avamtagem
nenhuma. E elRei Dom Pedro e o Primçipe com
todas suas companhas partirom de Navarrete sabado
pella manhaã, e poseromsse todos pee terra ante
huuma gram peça que chegassem aos delRei Dom
Hemrrique, hordenados em batalha, segumdo
avemos comtado. ElRei Dom Hemrrique isso
meesmo hordenou sua batalha na maneira que
dissemos; e ante que as batalhas jumtassem alguuns
genetes, e o pemdom de Santestevam com homeens
desse logar que estavom com elRei Dom
Hemrnique, passaromsse pera elRei Dom Pedro. Em
esto moverom as batalhas, e chegarom huuns aos
outros; e o comde Dom Samcho delRei Dom
Hemrrique, e Monsse Beltram, e todollos cavalleiros
que estavom com o pemdom da bamda, forom ferir
na avanguarda homde vijnha o Duque Dalancastro, e
o comdeestabre; e os da parte delRei Dom Pedro e
do Pnimçipe [30] tragiam todos cruzes vermelhas
em campo bramco, e os delRei Dom Hemrrique
levavam esse .dia bamdas: e assi de voomtade
juntarom huuns com os outros, que cahirom as
lamças a todos, e começarom de se ferir aas espadas,
e ochas, e porras, chamando os da parte delRei Dom
Pedro, Guiana Sam Jorge, e os delRei Dom
Hemrrique, Casteila Samtiago; e tam rijamente se
ferirom, que os da avamguarda do Primçipe se
começarom de retraer quamto seeria huuma passada,
e forom alguuns delles derribados, em guisa que os
delRei Dom Hemrrique cuidarom que vemciam, e
chegaromse mais a elles, e começaromsse outra vez
a ferir. Dom Tello irmaão delRei Dom Hemrrique,
que estava de cavallo da maão ezquerda da
avanguarda delRei Dom Hemrrique, nom movia
pera peileiar, que foi huum gramde aazo de se perder
a batalha, e por que lhe elRei. Dom Hemrrique
depois sempre quis mal; e os dalla dereita da avamguarda do Prinçipe aderemçarom comtra Dom Tello,
e ei e os que com ei estavom nom os ousarom
datemder, e moverom do campo a todo romper,
seguindoos os daquella alia que hiam a Dom Tello; e
veemdo que lhe nom podiam empeencer, tornarom
sobre as espaldas dos que que estavom de pee na
avamguarda delRei Dom Hemrrique, com o
pemdom da bamda que pdlleiavom com a
avamguarda do Primçipe, e ferimdoos pelas
espalidas começarom de matar delles; e isso meesmo
fez a outra alia da maão seestra da avanguarda do
Primçipe, depois que nom achou gentes de cavallo
que pelleiassem com elles: assi que alli era toda a
pressa da batalha, seemdo Dom Samcho e os outros
todos çercados de cada parte dos emmijgos; porem o
pemdom da bamda aimda nom era derribado. E
elRei Dom Hemrrique come ardido cavalleiro,
chegou per vezes em cima de seu.cavallo, armado de
loriga, alli hu era a pressa tam gramde, por acorrer
aos seus, teemdo que assi o fariam os outros que
estavom com ei de cayallo: e quando vio que os seus
nom pelleiavom, nom pode sofrer os emnújgos, e
ouve de volver costas e todollos de davallo que com
ei eram, e desta guisa se perdeo a batalha. E
afirmasse, se he verdade, que seemdo a batalha da
sua parte bem pelleiada/ era gram duvjda nom seer
elRei Dom Pedro desbaratado; e assi mal como ela
foi, se nom fora o gramde esforço e ardideza do
Primçipe e do duque Dalancastro, que eram
estremados homeens darmas, aimda o vemçimento
dela esteve em gramde avcmtuira; e forom mortos
[31] dos de pee que aguardavom o pemdom da
bamda, e antre cavalleitos e homeens darmas ataa
quatro çemtos, e presos outros znujtos, assi como
Dom Samcho, e Monsse Beltram, e o mariscal, e
Dom Filipe de Castro e outros, cujos nomes
Ieixamos por nom alomgar. E dos de cavallo forom
isso meesmo presos o comde de Denja, e o comde
Dom Affonsso, o comde Dom Pedro, e o meestre de
Callatrava e outros que dizer nom curamos: e forom
mortos no emcalço ataa villa de Najara mujtos
delRei Dom Hemrrique, ë matou elRei Dom Pedro
depois per sa maão, teemdo preso hum cavalleiro do
Primçipe Inhego Lopez de Orozco; e fez matar
Gomez Carrilho de Quinitina, camareiro moor
delRei Dom Hemrrique, e Sancho Sanchez de
Orozco, e Garçia Jofre Tenoiro, que forom presos na
batalha, e teveromno todos a mal; e foi esta batalha
vemçida sabado de Lazaro, seis dias dabril, da era de
Cesar de mil e quatro çemtos e çimquo annos.
A DEMANDA DO SANTO GRAAL
MEGALE, Heitor (ed.). A Demanda do Santo Graal.
São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. 538p.
[25]
I
Galaaz é armado cavaleiro
1. Véspera de Pentecostes, houve muita gente
reunida em Camalote, de tal modo que se pudera ver
muita gente, muitos cavaleiros e muitas mulheres de
muito bom parecer. O rei, que estava por isso muito
alegre, honrou-os muito e fez servi-los muito bem e
toda coisa que entendeu que tornaria aquela corte
mais satisfeita e mais alegre, tudo mandou fazer.
Aquele dia que vos digo, exatamente quando
queriam pôr as mesas, — isto era hora de noa —
aconteceu que uma donzela chegou muito formosa e
muito bem vestida; e entrou no paço a pé, como
mensageira. Ela começou a procurar de uma parte e
de outra pelo paço; e perguntaram-lhe o que
buscava.
— Busco, disse ela, dom Lancelote do Lago.
Está aqui?
— Sim, donzela, disse um cavaleiro. Vede-o:
está naquela janela falando com dom Galvão.
Ela foi logo para ele e saudou-o. Ele, assim
que a viu, recebeu-a muito bem e abraçou-a, porque
aquela era uma das donzelas que moravam na ilha da
Lediça a quem a filha Amida do rei Peles amava
mais que a donzela da sua companhia.
2. Como a donzela disse a Lancelote que fosse
com ela.
— Ai, donzela! disse Lancelote, que ventura
vos trouxe aqui? Que bem sei que sem razão não
viestes.
— Senhor, verdade é; mas rogo-vos, se vos
aprouver, que vades comigo àquela floresta de
Camalote; e sabei que amanhã, à hora de comer,
estareis aqui.
— Certamente, donzela, disse ele, muito me
agrada, pois tenho obrigação de vos servir em tudo
que puder.
Então pediu suas armas. E quando o rei viu
que se fazia armar com tanta pressa, dirigiu-se a ele
com a rainha e disse-lhe:
— Como? Deixar-nos quereis em tal festa,
quando cavaleiros de todo o mundo vêm à corte, e
muito mais ainda por vos verem que por outro
motivo: uns para vos verem, e outros por terem
vossa companhia?
— Senhor, disse ele, não vou senão a esta
floresta, com esta donzela que me pediu, mas
amanhã, à hora de terça, estarei aqui.
3. Como Lancelote se foi com a donzela.
Então saiu Lancelote do paço e montou seu cavalo, e
a donzela, seu palafrém, e haviam ido com a donzela
dois cavaleiros e duas donzelas. E quando ela voltou
a eles, disse-lhes:
[26] — Sabei que consegui aquilo por que
vim: dom Lancelote do Lago há de ir conosco.
Então puseram-se a andar e entraram na
floresta, e não andaram muito por ela que chegaram
à casa do ermitão que costumava falar com Galaaz.
E quando ele viu Lancelote ir e a donzela, logo
soube que ia para fazer Galaaz cavaleiro, e deixou
sua ermida para ir ao mosteiro das mulheres, porque
não queria que Galaaz fosse antes que ele o visse,
porque bem sabia que se ele partisse dali, não
voltaria, porque lhe conviria, assim que fosse
cavaleiro, entrar nas aventuras do reino de Logres. E
por isso lhe parecia que o havia perdido e que o não
veria amiúde e temia, pois tinha por ele muito
grande estima, porque era santa cousa e santa
criatura.
4. Como Lancelote chegou à abadia. Quando
chegaram à abadia, levaram Lancelote a uma câmara
e o desarmaram. E veio a ele a abadessa com quatro
mulheres, e trouxe consigo Galaaz, tão formosa
pessoa que maravilha era. E andava tão bem vestido
que não podia melhor. E a abadessa chorava muito
com prazer, assim que viu Lancelote, e disse-lhe:
— Senhor, por Deus, fazei nosso novo
cavaleiro, porque não queríamos que fosse cavaleiro
por mão de outro; porque melhor cavaleiro que vós
não o pode fazer cavaleiro; porque bem cremos que
ainda será tão bom, que vos achareis bem por isso, e
será vossa a honra de o fazerdes, e se ele vos isto
não pedisse, vo-lo deveríeis fazer, pois bem sabeis
que é vosso filho.
— Galaaz, disse Lancelote, quereis ser
cavaleiro?
E ele respondeu vivamente:
— Senhor, se vos aprouvesse, bem o queria
ser, porque não há cousa no mundo que eu tanto
deseje como a honra de cavalaria e ser cavaleiro da
vossa mão, porque de outro o não queria ser, que vos
ouço tanto louvar e prezar de cavalaria, que
ninguém, no meu entender, podia ser covarde e mau,
que vós fizésseis cavaleiro. E isto é uma das cousas
do mundo que me dá maior esperança de ser homem
bom e bom cavaleiro.
—
Filho
Galaaz,
disse
Lancelote,
estranhamente vos fez Deus formosa criatura. Por
Deus, se não cuidásseis ser bom homem ou bom
cavaleiro, assim Deus me aconselhe, sobejo seria
grande dano e grande desventura não serdes bom
cavaleiro, porque sobejo sois formoso.
E ele disse:
— Se me Deus fez formoso, dar-me-á
bondade, se lhe aprouver, porque de outro modo
valeria pouco. E ele quererá que eu seja bom e coisa
que semelhe minha linhagem e aqueles de quem eu
[27] venho; e posta hei minha esperança em Nosso
Senhor; e por isso vos rogo que me façais cavaleiro.
E Lancelote respondeu:
— Filho, pois vos apraz, eu vos farei
cavaleiro. E Nosso Senhor, assim como a ele
aprouver e o poderá fazer, vos faça tão bom
cavaleiro como sois formoso.
E o ermitão respondeu a isto:
— Dom Lancelote, não tenhais dúvida de
Galaaz porque vos digo que em bondade de
cavalaria, os melhores cavaleiros do mundo passará.
E Lancelote respondeu:
— Deus o faça assim como eu queria.
Então começaram a chorar de prazer quantos
no lugar estavam.
5. Como Galaaz prometeu ao ermitão o que
lhe pedia. Aquela noite, ficou Lancelote ali e fez
Galaaz vigília na igreja. E o ermitão, que sobejo
amava Galaaz, velou toda aquela noite e não parou
de chorar porque viu que havia de separar-se dele.
Quando veio a manhã, disse a Galaaz:
— Filho, coisa santa e honrada, flor e louvor
de toda a mocidade, outorga-me, se te apraz, que te
faça companhia por toda a minha vida enquanto te
puder seguir, desde que partires da corte de rei
Artur, porque bem sei que não demorarás lá mais
que um dia, porque a demanda do santo Graal
começará, assim que lá chegares. E eu te peço tua
companhia, assim como tu ouves que conheço tua
santa vida e tua bondade, mais que tu mesmo. E não
conheço no mundo coisa que tanto pudesse
confortar-me, de hoje em diante, como ver tão santo
cavaleiro como tu serás e ver as maravilhas como tu
verás e a que darás cabo. Porque Deus que te fez
nascer em tal pecado como sabes, para mostrar seu
grande poder e sua virtude, te outorgou, por sua
piedade e pela vida boa que começaste desde a
infância até aqui, poder e força e bondade de armas e
bravura sobre todos os cavaleiros que, em qualquer
época, trouxeram armas no reino de Logres; assim
darás cabo a todas as outras maravilhas e aventuras
em que todos os outros falharam e falharão. E por
isso quero todos os teus feitos saber, a que darás
cabo tu, que foste feito em tal pecado, e a que os
outros não puderam chegar que foram feitos em leal
casamento. Eu te quero fazer companhia, porque sei
que em nosso tempo nunca fez tão formosos
milagres Nosso Senhor, nem tão conhecidos, como
fará por ti. Isto quero eu melhor saber, por ver as
grandes aventuras e milagres que Deus por ti fará. E
porei por escrito todas as maravilhas que Deus
mostrará por teu amor nesta demanda. Filho,
outorga-me o que te peço. Que Deus te faça homem
bom.
[28] 6. Como Lancelote fez Galaaz cavaleiro.
Aquele dia, hora de prima, rezada a missa, fez
Lancelote cavaleiro seu filho Galaaz, assim como
era costume. E sabei que quantos lá estavam
agradavam-se de sua aparência; e não era maravilha,
porque naquele tempo não se podia achar em todo o
reino de Logres donzel tão formoso e tão bem feito;
porque em tudo era tal que não se podia achar nada
em que o censurasse, exceto que era meigo demais
em seu modo de ser. E sabei que, quando Lancelote
o fez cavaleiro, não pôde conter-se de chorar, porque
sabia que em toda parte era de grande prestígio que
não podia maior ser; e via tão pobre festa e tão
pequena alegria em sua cavalaria; nem ele podia
jamais cogitar que pudesse chegar a tal grandeza
como depois chegou. O corpo tinha bem feito e o
modo de ser era meigo.
7. Como Lancelote viu Boorz e Leonel que
vieram atrás dele. Depois que Lancelote fez quanto a
cavaleiro convinha, disse:
— Filho Galaaz, agora sois cavaleiro. Deus
mande que seja a cavalaria tão bem empregada em
vós, como em nossa linhagem. Agora dizei: ireis à
corte do rei Artur para onde muitos homens bons de
todas as partes do mundo vêm e onde todos os
cavaleiros do reino de Logres estão reunidos nesta
festa de hoje?
E ele disse:
— Senhor, irei, mas não convosco; outrem me
guiará até lá.
— E quando? disse Lancelote.
E outros cavaleiros que com ele andavam
disseram:
— Senhor, pois já cavaleiro é, irá mais cedo à
corte do que vós cuidais, porque estará lá muito
cedo.
— Pois encomendo-vos a Deus, disse
Lancelote, porque quero ir à corte, pois à hora de
terça, hei de lá estar.
Então tomou suas armas e cavalgou; e,
quando queria sair do mosteiro, viu, na frente de
uma câmara, Boorz e Leonel armados, que também
queriam cavalgar; e assim que eles o viram,
dirigiram-se para ele e ele lhes disse:
— Que ventura vos trouxe aqui? Cuidava que
estivésseis na corte.
— Senhor, disseram eles, viemos por pavor de
vossa morte, porque não partiríeis senão por alguma
aflição muito grande. Por isso viemos atrás de vós
até aqui e nos ocultamos o melhor que pudemos.
Quando soubemos que queríeis voltar à corte,
armamo-nos para voltar convosco, e não por outra
razão.
— Então cavalgai e vamo-nos, disse ele.
[29] Então cavalgaram e, indo pelo caminho,
perguntou Boorz:
— Senhor, quem é este cavaleiro que ora
fizestes?
— Logo o sabereis, disse Lancelote. Deixai
por isso agora a pergunta.
Também disse Leonel:
— Quem quer que seja, é o mais formoso que
alguma vez vi na sua idade e, se for tão bom
cavaleiro como é formoso, muito bem lhe fará Nosso
Senhor.
II
Na corte do rei Artur
8. Como Lancelote e Boorz e Leonel
chegaram à corte. Assim falando, chegaram a
Camalote, e sabei que quantos na corte estavam
ficaram com isso muito alegres, porque muito seria a
festa menor e mais pobre, se eles nela não
estivessem. O rei foi então ouvir missa na Sé em
companhia de tantos cavaleiros que ficaríeis
maravilhado de os ver. E ele trajava tão rica
vestimenta que maravilha era. E com a rainha iam
tantas donas e donzelas, que era grande maravilha. E
ela e eles ouviram missa e foram para o paço. E
aconteceu, entrementes, que, procurando os assentos
da távola redonda, acharam: “Aqui deve ser fulano e
aqui fulano.” E quando chegaram ao assento
perigoso, encontraram letreiro recentemente escrito
que dizia: “A quatrocentos e cinqüenta e três anos
cumpridos da morte de Jesus Cristo, em dia de
Pentecostes, deve haver este assento senhor.”
— Por Deus, disse Lancelote, quando esta
maravilha ouviu: pois hoje deve haver senhor,
porque da morte de Jesus Cristo a este Pentecostes
há quatrocentos e cinqüenta e três anos. E bem
quereria, se pudesse, que este letreiro ninguém visse,
até que viesse aquele que o há de acabar.
E eles disseram:
— Nós guardaremos bem.
Então cobriram o assento com um pano de
seda vermelha, assim como os outros estavam
cobertos.
Quando o rei veio da igreja, a rainha foi para a
câmara com todas as suas donzelas e companhia. E o
rei perguntou se era hora de comer.
— Senhor, disse Quéia, já tempo é de comer,
pois já está perto de meio dia; mas se vosso costume,
que mantivestes até aqui em todas as grandes festas,
quereis manter, não me parece que comer [30]
possais, porque em tão grande festa como esta não
aconteceu ainda aventura nenhuma; e enquanto
aventura não vos acontecesse, não costumáveis
comer em nenhuma grande festa.
— Verdade é, disse o rei; este meu costume
mantive sempre desde que fui rei e manterei
enquanto viver. E pelas grandes aventuras que na
minha corte acontecem, chamam-me rei aventuroso;
e por isso manterei as aventuras, porque, a partir da
época em que deixarem de acontecer, bem sei que a
Nosso Senhor não agradará que muito eu reine daí
em diante. Mas assim como as aventuras
costumavam acontecer nas festas grandes, nesta sei
bem que no dia de hoje não faltarão, antes
acontecerão as maiores e as mais maravilhosas que
nunca aconteceram, pois adivinha meu coração isto.
Não me incomodo de esperarmos um pouco, pois
bem sei verdadeiramente que nossa festa não será
hoje sem aventura, mas tive tão grande prazer com a
vinda de Lancelote e de seus coirmãos, que me
esquecia o costume.
9. Como o cavaleiro caiu da janela bradando.
Enquanto o rei isto dizia, dom Lancelote e muitos
outros cavaleiros olhavam para umas janelas que
davam para um regato e viram lá estar um cavaleiro
que era natural de Irlanda, muito fidalgo e bom
cavaleiro de armas, de muito grande fama e muito
bem vestido. E estava pensando tanto, que ninguém
o podia acordar de seu pensar, de modo que não
prestava atenção à festa nem à corte. E quando
estava assim pensando, deu um grito:
— Ai! desgraçado de mim, estou morto!
E deixou-se cair da janela e quebrou-lhe o
pescoço. E os cavaleiros que lá estavam foram até
ele para ver o que era e acharam que lhe saía pela
boca e pelas narinas chama de fogo tão forte como
se fosse de um forno aceso, e tinha em suas mãos
uma carta que lhe escapou. Os cavaleiros pegaram a
carta, e o rei chegou lá com seus cavaleiros para ver
aquela maravilha. E porque era companheiro da
távola redonda, quando o rei viu que estava morto,
mandou que o levassem fora do paço, porque não
quis que sua corte fosse perturbada com ele. E então
o levaram para fora com muito grande dificuldade,
porque queimava tanto que toda a roupa tinha virado
cinza, e não se podia a ele chegar ninguém que não
se queimasse, e, posto ele fora do paço, novamente
começaram sua alegria como antes e muito tinham
grande pesar todos do cavaleiro, porque era muito
estimado. Ao rei, muito pesava, mas não o ousava
mostrar para não ficar a corte mais triste. E depois
que soube que estava na igreja, disse:
[31] — Cavaleiros, agora podeis comer,
porque já por aventura maravilhosa não deixareis de
comer, pois me parece muito estranha esta aventura.
10. Como o escudeiro disse ao rei as novas da
pedra. E eles disto falando, eis que vem um
escudeiro que disse ao rei:
— Senhor, eu vos trago as mais maravilhosas
novas de que ouvistes falar.
— E que novas são? disse o rei, dizei-no-las.
— Neste vosso paço, aportou agora uma pedra
de mármore, na qual está metida uma espada, e
sobre esta pedra, no ar, está uma bainha. E eu vos
digo que vi a pedra nadar sobre a água, como se
fosse madeira.
E o rei, que o teve por chufa, disse-lhe se
podia ver esta pedra. Então disse o escudeiro:
— Já estão lá muitos cavaleiros da vossa
companhia para ver aquela maravilha.
E o rei, assim que isto ouviu, foi logo para lá
com sua companhia de homens bons. E Lancelote,
apenas soube o que era, logo foi para lá atrás deles; e
Heitor e Persival, que já haviam visto, queriam ver,
entre tão grande companhia como lá estava reunida,
se haveria alguém que desse cabo agora daquela
aventura.
Quando o rei chegou à ribeira e viu a pedra e
a espada que nela estava metida, pelo encantamento
de Merlim, assim como o conto já referiu, e uma
bainha que estava perto dela no meio do ar, e o
letreiro que Merlim fizera, ficou todo espantado.
— E, amigos, disse ele, novas vos direi. Ora,
sabei que por esta espada será conhecido o melhor
cavaleiro do mundo, porque esta é a prova pela qual
se há de saber; e nenhum, se não for o melhor
cavaleiro do mundo, poderá sacar a espada desta
pedra.
11. Como o rei disse a Lancelote que tirasse a
espada da pedra e Lancelote ndo quis. Quando os
cavaleiros ouviram isto, afastaram-se quase todos os
que queriam tentar sacá-la. E o rei disse a Lancelote:
— Dom Lancelote, tirai esta espada, porque
ela é vossa, por testemunho de quantos aqui estão
que vos têm pelo melhor cavaleiro do mundo.
E quando isto ouviu, ficou muito
envergonhado e respondeu:
— Senhor, estes me tem pelo melhor
cavaleiro do mundo; certamente, não sou eu que esta
espada devo ter, porque muito melhor cavaleiro do
que eu a terá e pesa-me que não sou tão bom como
vós o cuidais.
[32] Disto que Lancelote disse, tiveram
muitos pesar, e mais os da linhagem de rei Bam, que
o tinham pelo melhor cavaleiro do mundo. O rei, que
percebeu que havia algum pesar, disse:
— Provar vos convém. Porque assim não sois
pois culpado se, porventura, fracassardes.
— Senhor, disse ele, apesar de vossa graça,
não me chegarei aí, porque, assim Deus me valha,
não valho eu tanto que deva pôr a mão em arma de
tal homem como aquele será que esta espada há de
trazer.
12. Como Galvão provou a espada por ordem
do rei. Então disse o rei a Galvão:
— Sobrinho, pois Lancelote receou a espada,
provai-a vós e veremos o que acontecerá.
— Eu, senhor, disse ele, prová-la-ei para
cumprir vossa ordem, mas sei que nada é que eu
possa conseguir, porque bem sabeis vós e quantos
aqui estão que, quando dom Lancelote deixa alguma
coisa por míngua de cavalaria, eu nada nisto
conseguirei, pois ele é muito melhor cavaleiro do
que eu.
— E ainda assim, disse o rei, prová-la-eis,
porque assim me apraz.
Então aproximou-se Galvão e pegou a espada
pelo punho e puxou-a o mais que pôde, mas nunca
tanto que a pudesse sacar da pedra, e deixou-a então
e disse ao rei:
— Senhor, agora podeis buscar quem a prove,
porque eu não porei mais a mão, pois bem vejo que
Deus não ma quer outorgar.
— Dom Galvão, disse Lancelote, o rei fez seu
prazer, pois que vo-la mandou provar, mas nesta
aventura não deveis entrar, porque não pode
demorar muito que não hajais mal por isso, pois
recebereis o maior golpe ou ferimento pelo qual
tereis pavor da morte ou morrereis.
— Amigo, disse ele, não pude mais, porque se
aqui cuidasse morrer, não deixaria de cumprir a
ordem do rei.
— Pois feito está, disse o rei, não é culpa,
apenas míngua.
E então perguntou a todos os outros:
— Amigos, há aqui alguém que queira provar
esta espada?
E calaram-se todos. E quando o rei viu que
não faziam mais questão, disse:
— Agora vamos almoçar, porque já é hora, e
Deus nos dê quem a esta aventura dê cabo, pois
certamente muito me agradaria que chegasse logo.
[33] 13. Como os clérigos acharam letreiros
em dois assentos. Depois disto, chegaram ao paço e
mandaram pôr as mesas. E os clérigos, que se
esforçavam por cuidar dos assentos da távola
redonda, o que haviam de fazer, andaram de uma
parte e da outra. E acharam então que em dois
assentos não havia letreiro como antes, senão outro
recente. Num assento estava escrito o nome de Erec,
e era o assento daquele cavaleiro que fora morto
como o conto já referiu. E o outro tinha sido de um
cavaleiro da Escócia que tinha nome Dragão, a quem
Tristão matara naquela semana diante da Joiosa
Guarda, porque aquele Dragão pedira amor à rainha
Isolda. Mas isto não relata agora a estória do santo
Graal, porque não toca a seu livro, mas a grande
estória de dom Tristão o conta no seu livro.
14. Como Erec e Elaim tiveram os assentos.
Quando os clérigos viram os assentos guarnecidos
de novos nomes, souberam logo que aqueles a quem
haviam pertencido tinham morrido e entenderam que
a Deus agradaria que outros entrassem no lugar
deles. E acharam nos assentos outros nomes, de Erec
e de Elaim, o branco. Então foram até o rei e
disseram-lhe o que haviam achado. E o rei
agradeceu muito a Nosso Senhor que tanto lhes dava
conselho na realização do santo Graal e da távola
redonda. E com Erec e Elaim também ficaram todos
muito felizes. Mas bem sabei que de Elaim, o
branco, tiveram todos os da linhagem de rei Bam
muito grande prazer, porque Elaim era filho de
Boorz de Gaunes e fizera-o naquele dia cavaleiro o
rei Artur.
Rei Artur, que muito amava Erec e o prezava
de cavalaria pela fama que dele ouvira, que não
prezava tanto nenhum cavaleiro da sua idade,
quando viu que esta honra lhe viera, disse feliz e
com muito prazer:
— Erec, meu amigo, filho do rei Lac, que
nesta corte de sua idade não se devia mais prezar
mancebo de cavalaria, vinde a mim e vos
conduziremos à grandeza que Nosso Senhor vos
deu, que a outrem não.
Então foi buscá-lo à câmara da rainha, onde
estava falando com as donzelas. E depois, tomou-o o
rei pela mão e conduziu-o ao assento da távola
redonda no qual seu nome estava escrito e disse-lhe,
ao assentar-se:
— Erec, Deus vos faça de hoje em diante tão
bom cavaleiro
como fostes até aqui.
Depois dirigiu-se a Elaim, o branco, e disselhe:
— Filho, muito sois formoso, mas Deus, por
sua bondade, vos faça semelhar em cavalaria à vossa
linhagem de rei Bam.
[34] Quando viram que assim ganhara ele o
assento da távola redonda por bondade de Nosso
Senhor, ficaram muito felizes à maravilha. E disse
Lancelote:
— Elaim ainda sairá a grandes feitos.
E saibam todos que este conto ouvirem que
aquele Elaim, o branco, foi filho de Boorz de
Gaunes e o fez numa filha do rei da Grã-Bretanha.
Mas antes que isto acontecesse, prometera Boorz a
Nosso Senhor lhe guardar sua virgindade. Mas tão
logo ela o viu, gostou dele desde então e amou-o; e
depois enganou-o por encantamento, e dormiu com
ela e fez ali aquela noite aquele que foi depois
imperador de Constantinopla. E se Boorz quebrou
aquilo que prometeu, não foi por sua vontade, mas
pelo encantamento que lhe a donzela fez; e depois
corrigiu aquilo que fez, pois todos os dias de sua
vida manteve castidade.
III
O assento perigoso
Galaaz acaba a aventura da pedra
Torneio em Camalote
15. Como os que procuravam os assentos os
acharam. Aquele dia que vos digo, que Erec e Elaim
foram postos nos assentos da távola redonda,
mandou o rei pôr as mesas, porque já era tempo de
comerem. E o rei foi sentar em seu alto assento. E
depois os companheiros da távola redonda foram
sentar cada um em seu lugar. E os outros, que não
eram de tão grande fama, sentaram cada um onde
devia.
Aquela hora, antes que lhes dessem de comer,
mandou o rei contar quantos companheiros da távola
redonda tinham vindo àquela festa e os que ainda
faltavam. E os que os contaram acharam todos os
cento e cinqüenta assentos ocupados, menos dois, e
disseram-no ao rei. O rei estendeu as mãos ao céu e
disse: “Jesus Cristo, Pai e Senhor de todas as coisas,
bendito sejas tu que me deixaste tanto viver que
visse cheia a távola redonda, que não faltassem
senão dois.”
Então disse àqueles que os assentos haviam de
olhar:
— Quais são esses dois que faltam?
— Senhor, disseram eles, Tristão e o assento
perigoso que não está ocupado.
— Não vos pese, disse o rei, que logo estará
ocupado, porque por outra razão não fiz vir tanta
gente à minha corte, senão para [35] verem as
maravilhas que acontecerão a esta mesa, porque hoje
será a minha corte chamada para sempre corte
aventurosa.
16. Como Galaaz entrou no paço e acabou o
assento perigoso. Eles nisto falando, olharam e
viram que todas as portas do paço se fecharam e
todas as janelas, mas não escureceu por isso o paço,
porque entrou um tal raio de sol, que por toda a casa
se estendeu. E aconteceu então uma grande
maravilha, não houve quem no paço não perdesse a
fala; e olhavam-se uns aos outros e nada podiam
dizer, e não houve alguém tão ousado, que disso não
ficasse espantado; mas não houve quem saísse do
assento, enquanto isto durou. Aconteceu que entrou
Galaaz armado de loriga e brafoneiras e de elmo e
de duas divisas de veludo vermelho; e, depós ele,
chegou o ermitão, que lhe rogara que o deixasse
andar com ele, e trazia um manto e uma garnacha de
veludo vermelho em seu braço.
Mas tanto vos digo que não houve no paço
quem pudesse entender por onde Galaaz entrara, que
em sua vinda não abriram porta nem janela. Mas do
ermitão não vos digo, porque o viram entrar pela
porta grande. E Galaaz, assim que chegou ao meio
do paço, disse de modo que todos ouviram:
— A paz esteja convosco.
E o homem bom pôs as vestes que trazia sobre
um tapete, e foi ao rei Artur e disse-lhe:
— Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado,
aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e de
José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta
terra e das outras terão fim.
E com isto que o homem bom disse, ficou o
rei muito alegre. E disse:
— Se isto é verdade, sede bem-vindo. E bem
seja vindo o cavaleiro, porque este é o que há de dar
cabo ãs aventuras do santo Graal. Nunca foi feita
nesta corte tanta honra como lhe nós faremos; e
quem quer que ele seja, eu quereria que lhe fosse
muito bem, pois de tão alta linhagem vem como
dizeis.
— Senhor, disse o ermitão, cedo o vereis em
bom começo. Então fê-lo vestir os panos que trazia e
foi assentá-lo no assento perigoso. E disse:
— Filho, agora vejo o que muito desejei,
quando vejo o assento perigoso ocupado.
E quando viram Galaaz no assento, logo todos
os cavaleiros tiveram poder de falar, e bradaram
todos a uma voz:
— Dom Galaaz, sede o bem-vindo, pois já seu
nome sabiam, porque o ermitão o nomeara já ali.
[37] 17. O cavaleiro de quem Merlim e todos
osprofetasfalaram. O rei, assim que viu no assento
perigoso o cavaleiro de quem Merlim e todos os
profetas falaram na Grã-Bretanha, então bem soube
que aquele era o cavaleiro por quem seriam
acabadas as aventuras do reino de Logres, e ficou
com ele tão alegre e tão feliz, que bendisse a Deus:
— Deus, bendito sejas tu que te aprouve de
tanto viver eu que, em minha casa, visse aquele de
quem todos os profetas desta terra e das outras
profetizaram, tão longo tempo há já. Agora falta,
disse ele, da távola redonda, dom Tristão, e nenhum
outro. Mas maldita seja a beleza de Isolda, porque o
assim temos perdido, porque se ela não fosse, não
deixaria ele, de modo algum, de vir a esta festa tão
grande.
18. Como um donzel deu novas à rainha de
Galaaz. Assim falava o rei de Tristão, com muito
grande pesar de que não vinha à corte; mas os outros
não tinham disso pesar, antes estavam muito alegres,
porque o assento perigoso estava acabado, e
honravam e serviam Galaaz quanto podiam, que não
podiam mais, porque bem sabiam que este havia de
dar cabo às maravilhosas aventuras do reino de
Logres; mas sobre todos estava Lancelote mais
alegre, porque bem via que, se Galaaz vivesse,
passaria em bondade e em cavalaria todos os do
reino de Logres. Estas novas foram de uma parte e
da outra, de modo que chegaram à rainha, porque
um donzel lhe disse:
— Senhora, maravilha grande aconteceu
agora no paço.
— E que maravilhas são? disse a rainha,
dizei-no-las.
— Senhora, disse ele, o assento perigoso está
ocupado. Um cavaleiro senta nele.
— Sim? disse ela. Por Deus, formosa aventura
Deus deu. Porque de muitos que já sentaram, nunca
um houve que não morresse. E de que idade pode
ser? disse a rainha.
— Senhora, disse ele, de dezoito anos.
E ela maravilhou-se das maravilhas que a
respeito ouviu; depois disse:
— Maravilha pode daí advir e nada eu nunca
soube. E sabes de qual linhagem é?
E o donzel disse que não, apenas que dizem
todos que parece ser da linhagem de rei Bam, mais
que de outra. E ela começou a pensar e logo cuidou
em seu coração que era filho de Lancelote, porque
lhe dissera Heitor que era já Galaaz moço feito e
logo seria cavaleiro; e disse a rainha ao cavaleiro:
— Donzel, sabes como tem nome?
— Senhora, disse ele, tem nome Galaaz.
[37] E ela, quando ouviu o nome, logo soube
com certeza que era filho de Lancelote, porque
tempo havia que ela sabia como tinha nome. Então
disse para as mulheres que com ela estavam:
— Estai certas, se ele é o bom cavaleiro, não
me maravilho muito, porque de todas as partes vêm
bons cavaleiros, que não pode errar que não seja
melhor do que outro cavaleiro.
— Senhora, disseram elas, quem é bom sobre
todos?
— Vós o sabereis, disse ela, mas não por
mim.
19. Como Galaaz acabou a aventura da pedra.
Aquele dia foi grande a alegria entre eles. E o rei
mandou que lhes dessem de comer. Tão logo
comeram, perguntou o rei a quantos estavam no
paço:
— Que vos parece do que nos aconteceu?
Porque a mim tal hora foi, antes que chegasse
Galaaz, que não pude falar.
E todos disseram que bem assim acontecera a
eles.
— Por Deus! disse o rei, grande maravilha foi
esta. E podeis entender por que foi?
— Não, disseram eles.
— Por Deus, disse ele, muito me pesa.
Grande foi a alegria e o prazer que todos
tiveram. E o rei se ergueu da mesa e foi à mesa onde
sentava Galaaz, e viu lá seu nome escrito, e ficou
muito alegre e disse a Galvão:
— Sobrinho, agora podeis ver Galaa.z, o
muito bom cavaleiro sobejo, que tanto esperamos e
tanto desejamos ver.
E os da távola redonda falavam mais amiúde
do que todos os outros. E diziam:
— Pois no-lo Deus trouxe, sirvamo-lo e
honremo-lo enquanto estiver entre nós, porque não
viverá muito conosco por causa da demanda do
santo Graal que começará logo.
— Assim Deus me ajude, disse Galvão, bem o
devemos servir, porque Deus no-lo enviou por nos
livrar a terra das grandes maravilhas e das estranhas
aventuras que tão amiúde acontecem e desde tão
longo tempo.
Então veio o rei a Galaaz e disse-lhe:
— Senhor, sede bem-vindo, porque muito
tempo há que vos desejei ver; e graças a Deus e a
vós, quisestes aqui vir.
— Senhor, disse ele, vim aqui, porque me
convinha, porque daqui hão de partir agora todos
aqueles que à demanda do santo Graal queiram ir e
bem sei que logo será começada.
— Senhor, disse o rei, vossa vinda nos é mui
mister por muitas aventuras maravilhosas a que não
podemos dar cabo. E vo-lo digo por uma que nos
hoje aconteceu; ide-a ver, se vos aprouver.
[38] E Galaaz disse que iria de muito bom
grado. Então o pegou o rei pela mão e levou-o à
margem do rio, onde a pedra estava.
E os do paço foram todos com ele, para verem
o que poderia ser.
E quando a rainha viu que o rei levava Galaaz
pela mão à pedra, saiu ela com grande companhia de
donas e donzelas. E o rei disse a Galaaz:
— Quereis sacar esta espada desta pedra? Pois
a não quer ninguém provar de quantos aqui estão,
porque dizem que a aventura não é deles. Provai-a,
se vos aprouver, porque se o não provais, não
acharemos cavaleiro que o prove.
Então pegou Galaaz a espada pelo punho e
puxou-a tão facilmente, como se não estivesse presa
a nada. E depois, pegou a bainha e meteu-a dentro e
cingiu-a logo, e disse ao rei:
— Senhor, agora tenho já a espada, mas o
escudo não tenho.
— Amigo, disse o rei, pois Deus e a ventura
vos a espada deu, não tardará muito o escudo.
20. Como a donzela disse as novas ao rei. Eles
nisto falando, viram vir pela ribeira uma donzela
sobre um palafrém branco; e quando chegou a eles,
perguntou se estava aí Lancelote. Ele estava diante
dela e disse-lhe:
— Donzela, que vos apraz?
Disse ela:
— Eu te trago as mais maravilhosas novas que
viste, tempo há, e não de teu prazer, mas de teu
pesar; e sabe que tens teu nome desonrado desde
hoje de manhã, porque quem ontem te chamava,
porque eras, o melhor cavaleiro do mundo, te dizia a
verdade; mas agora não é assim. E isto podes bem
ver por prova desta espada, porque vês que melhor
cavaleiro que tu a ganhou.
— Donzela, disse ele, vós não me dizeis nada
que eu por verdade não soubesse, tempo há, porque
já outra vez vi esta espada e não ousei prová-la.
E então tornou a donzela ao rei e disse-lhe
assim:
— Rei Artur, manda-te dizer o ermitão que,
neste dia de hoje, te acontecerá a maior maravilha e
honra que te nunca aconteceu. E não virá por ti, mas
por outrem.
E assim que isto disse, volveu a rédea ao
palafrém e voltou. E muitos houve que quiseram
mais saber dela, mas não quis ficar por rogo de
ninguém, nem dizer mais de seus feitos.
21. Como rei Artur fez armar o torneio no
campo de Camalote. Então disse o rei aos que
estavam perto dele:
[39] — Amigos, assim é que a demanda do
santo Graal é sinal verdadeiro de que ireis daqui
logo; e porque sei verdadeiramente que jamais vos
verei reunidos em minha casa, como agora vejo,
quero que naquele campo de Camalote seja agora
começado um torneio tal que, depois de minha
morte, seja contado e no qual hajam que referir
nossos heróis.
E concordaram com isso todos. E voltaram à
cidade e pediram suas armas e armaram-se e
voltaram ao campo. E o rei não fizera isto, senão
para ver alguma coisa da cavalaria de Galaaz, porque bem sabia que não estaria muito em Camalote.
22. Como Galaaz justava, e como o rei partiu
para aquele torneio. Aquele dia, rogou Lancelote a
seu filho Galaaz que trouxesse armas naquele
torneio com divisas da linhagem de rei Bam. E ele o
fez de muito bom grado, porque não há nada que ele
receasse, que lhe seu pai mandasse; mas não quis
trazer escudo. Depois que foram reunidos no campo
de Camalote, começaram a se ferir com lanças, de
modo que muitos veríeis cair, e muitos havia que o
faziam muito bem. E Galaaz, que entrou no campo,
começou as lanças a quebrar e a derrubar cavaleiros,
e a fazer tantas maravilhas, que todos diziam que
nunca viram tão bom cavaleiro de justa. Porque, sem
falha, nunca ele alcançava cavaleiro hábil, por mais
valente que fosse, que o não metesse em terra; e fez
disso tanto, que todos aqueles que o viram, disseram
que nunca tão altamente começara cavaleiro a
derribar cavaleiros. E bem aparecia no que naquele
dia fizera, porque, de todos. aqueles que eram
companheiros da távola redonda, não ficaram senão
poucos que ele não derribasse.
Este torneio desta justa durou até hora de
vésperas. Então mandou o rei que parassem, porque
se temia acontecer alguma desavença. E disse-lhes
que se fossem desarmar, e fez tirar o elmo a Galaaz
e deu-o a Boorz de Gaunes, que o segurasse, porque
aquele era em quem tinha confiança muito grande,
que sempre fora em sua honra e em sua ajuda.
IV
Tristão
A Graça do santo Graal
A demanda
23. Como o rei e os cavaleiros viram vir
Tristdo. Ainda o preito não estava acabado nem
decidido, quando viram vir um cavaleiro pelo fundo
da ribeira, sobre um cavalo tão bom, que poucos
[40] ha|via no campo melhores; e vinha tão depressa,
como se todos os diabos do inferno viessem depós
ele. E não trazia todas as armas, apenas a espada e o
escudo. E o rei olhou o escudo e mostrou-o a
Lancelote, que perto dele estava, e disse-lhe:
— Agora estou alegre e tenho muito gosto,
porque vejo aqui vir Tristão, o sobrinho de rei Mars
de Cornualha, porque bem conheço aquele escudo
que não vi desde que me fez muito pesar.
E Lancelote começou a ferir o cavalo com as
esporas e foi em direção dele, e disse-lhe, de tão
longe como pôde entender que o poderia ouvir:
— Dom Tristão, sede bem-vindo.
E Tristão, que o reconheceu, saudou-o e
abraçou-o. E depois perguntou:
— Amigo Lancelote, ë verdade que veio
Galaaz, o mui bom cavaleiro, à corte, aquele que há
de acabar o assento perigoso e há de dar fim às
aventuras do reino de Logres?
— Com certeza, amigo, disse Lancelote, ele
veio à corte e acabou o assento perigoso e deu cabo
da aventura de uma espada, em que nenhum
cavaleiro da távola redonda ousou pôr a mão. Mas
como soubestes que ele, no dia de hoje, aqui havia
de estar?
— Isto vos direi eu, disse ele, mas em outra
oportunidade, não agora.
Enquanto isto, eis que o rei saiu em direção a
ele, porque muito estava alegre com sua vinda, e
disse-lhe:
— Dom Tristão, sede bem-vindo.
E Tristão saudou-o muito educadamente. E o
rei disse-lhe:
— Dom Tristão, estou muito alegre com vossa
vinda, porque não faltava nenhum dos companheiros
da távola redonda, senão vós.
24. Como o reifalava com Tristão e da alegria
dos cavaleiros. Quando os cavaleiros viram que
aquele era Tristão com quem o rei falava, foram para
lá muito alegres e com grande prazer da sua vinda,
porque muito prezavam sua cavalaria e sua cortesia.
E assim que viram o escudo, disseram entre si:
— Enganados fomos noutro dia, porque este
era o cavaleiro que levava a mulher, e o que derribou
os cavaleiros daqui.
Grande foi a alegria e o prazer que todos com
Tristão tiveram.
E ele rogou ao rei que lhe mostrasse Galaaz, o
mui bom cavaleiro, e o rei lhe disse que havia ido
para a cidade com alguns da linhagem de rei Bam.
— Ai, senhor, disse Tristão, fazei que o veja,
porque por outro motivo não vim aqui.
— De bom grado, disse o rei.
[41] Então se foram para o paço e desceram. E
quando entraram no paço, acharam Galaaz com sua
linhagem, que já se desarmaram. E o rei pegou
Tristão e levou-o a ele e disse-lhe:
— Amigo Tristão, vedes aqui o que buscais.
— Em nome de Deus, disse Tristão, bem seja
ele vindo, porque com sua vinda estou muito alegre.
Então ficou de joelhos diante dele e disse-lhe:
— Senhor, abençoado seja o dia em que
nascestes, quando vos Deus deu tal graça.
Galaaz não lhe quis permitir que ficasse assim
a seus pés; ç depois ergueu-o e beijou-o em
significado de companheirismo e de fraternidade. E
bem ouvira já dizer que aquele era o mais afamado e
o melhor cavaleiro da távola redonda, com exceção
de Lancelote apenas.
25. Como os da mesa redonda tiveram a graça
do santo Graal. Grande foi a alegria e o prazer que
os cavaleiros da távola redonda tiveram aquele dia,
quando se viram todos reunidos. E sabei que, desde
que a távola redonda começou, nunca todos assim
foram reunidos, mas aquele dia, sem falha,
aconteceu que estavam lá todos, mas depois, nunca
de novo estiveram.
Contra a noite, depois de vésperas, quando se
assentaram às mesas, ouviram vir um trovão tão
grande e tão espantoso, que lhes semelhou que todo
o paço caía. E logo depois que o trovão deu, entrou
uma tão grande claridade, que tornou o paço dois
tantos mais claro que era antes. E quantos no paço
estavam sentados, logo todos foram repletos da
graça do Espírito Santo e começaram a olhar uns aos
outros, e viram-se muito mais formosos, muito mais
do que costumavam ser, e maravilharam-se muito do
que aconteceu e não houve quem pudesse falar por
muito grande tempo, antes estavam calados e
olhavam-se uns aos outros. E eles assim estando
sentados, entrou no paço o santo Graal, coberto de
um veludo branco; mas não houve um que visse
quem o trazia. E assim que entrou, foi o paço todo
repleto de bom odor, como se todos os perfumes do
mundo lá estivessem. E ele foi para o meio do paço,
de uma parte e da outra, ao redor das mesas. E por
onde passava, logo todas as mesas ficavam repletas
de tal manjar, qual em seu coração desejava cada
um. E depois que teve cada um o de que houve
mister.a seu prazer, saiu o santo Graal do paço que
ninguém soube o que fora dele, nem por qual porta
saíra. E os que antes não podiam falar, falaram
então. E deram graças a Nosso Senhor, que lhes
fazia tão grande honra e os confortara e abundara da
graça do santo Vaso. Mas sobre todos aqueles que
alegres estavam, mais [42] o estava rei Artur, porque
maior merca lhe mostrara Nosso Senhor que a
nenhum rei que antes reinasse em Logres. Disto
foram maravilhados quantos lá estavam, porque bem
lhes pareceu que se lembrara Deus deles, e falaram
muito disso. E o rei disse aos que perto dele
estavam:
— Com certeza, amigos, muito devíamos
estar alegres, que Deus nos mostrou tão grande sinal
de amor, que em tão boa festa como hoje, de
Pentecostes, nos deu a comer de seu santo celeiro.
26. Como Galvão começou a demanda do
santo Graal. Galvão que sentava diante do rei, disse:
— Senhor, ainda há outra cousa que não
imaginais. Sabei que não há cavaleiro no paço que
não houvesse de comer o que pensou cada um em
seu coração. E isto nunca houve em nenhuma corte,
senão na casa do rei Peles. Mas tanto fomos
enganados que o nao vimos senão coberto. Quanto
em mim é, prometo agora a Deus e a toda cavalaria
que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei
na demanda do santo Graal, assim que a manterei
um ano e um dia e, porventura mais; e ainda mais
digo: jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça,
até que melhor e mais a meu prazer veja o que ora
vi; mas se não puder ser, voltarei então.
27. Como os da mesa redonda começaram a
demanda do santo Graal. Quando os cavaleiros da
távola redonda ouviram que aquele era Galvão e
viram o que disse, pararam até de comer; mas assim
que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e
fizeram aquela promessa que fizera Galvão, e
disseram que jamais deixariam de andar até que
vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão
bem preparados, como eram aqueles que aquele dia
comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por
dificuldade e por esforço que sofrer pudessem.
28. Como o rei disse a Galvão mal. E quando
o rei viu que todos haviam feito esta promessa, teve
grande pesar e grande armagura em seu coração
porque viu que não podia fazê-los voltar atrás de
modo algum. E disse a Galvão:
— Vós me haveis morto e escarnecido porque
por esta promessa que fizestes, me tirastes a melhor
companhia e a mais leal que nunca houve no mundo
— a companhia da távola redonda; porque, depois
que partirem daqui, sei bem que não tornarão tão
cedo, antes morrerão muitos nesta demanda, porque
não terá tão cedo fim como cuidais; e por isso me
pesa, porque sempre lhes fiz honra de todo meu
poder, e lhes quis bem e quero, como se fossem
meus [43] irmãos ou meus filhos. E por isto me é
grave sua partida, e quando eu, que os costumava
ver e ter sua companhia, os não vir, grande dor
sofrerei e grande pesar.
Depois que isto disse, o rei começou a pensar
muito; e ele pensando, começaram-se-lhe ir as
lágrimas dos olhos pelas faces, assim que todos o
viram. E, ao cabo de um tempo, disse de modo que
todos o ouviram:
— Galvão, Galvão, vós me metestes tão
grande pesar no coração, que jamais sairá até que
desta demanda veja o fim, porque terei grande pesar
e pavor de perder nela meus amigos.
— Ai, senhor, disse Lancelote, que dizeis? Tal
homem como vós não deveria ter pavor, mas animo
e boa esperança. Certamente, se morrêssemos todos
nesta demanda, maior honra seria do que morrer em
outro lugar.
— Ai, Lancelote, disse o rei, o muito grande
amor que sempre tive por vós e por eles me faz isto
dizer. E não é grande maravilha, se tenho grande
pesar, porque nunca rei cristão teve tantos cavaleiros, nem tantos homens bons à sua mesa, como hoje
tenho, nem terá jamais. E por isso receio que jamais
estarão reünidos aqui nem em outro lugar, como
agora estão.
V
Galvão e a donzela feia
29. Como a donzela feia chegou à casa de rei
Artur. A isto que o rei disse, não soube Galvão o que
responder, porque sabia que dizia a verdade, e
fizera-se de bom grado a fora, se pudesse, mas não
podia pelos Outros que prometeram já, como ele. E,
além disso, porque sabia já a rainha e as donas e as
donzelas todas que a demanda do santo Graal estava
já começada e os que haviam de ir, haviam de sair
de manhã. Então começaram as mulheres sua lamentação tão grande a fazer, que era maravilha, e
foram entrar no paço como loucas. Mas o rei
acordou com estas vozes e com este rebuliço que as
mulheres faziam nos aposentos da rainha. Estava o
rei com seus ricos homens com grande pesar
pensando. Nisto, eis que uma donzela entrou a pé e
trazia uma espada que tinha o punho muito rico e
muito formoso e a bainha muito bem lavrada; e ela
reconheceu o rei e foi ao rei e disse-lhe:
— Rei, não penses, porque teu pensar não
vale nada; mas recebe isto que te trago e faze disto o
que te eu mandar. Eu te digo que verás ainda tal
coisa vir que a terás por maravilha.
[44] 30. Como a donzela fez tirar a espada.
Então ergueu o rei a cabeça e disse-lhe:
— Que dizeis, senhora?
— Digo-vos que tomeis esta espada e a façais
tirar da bainha a cada um de vossos cavaleiros da
mesa redonda e vereis que grande maravilha por isso
vos acontecerá: e depois aconselhar-vos-ei o que
havereis de fazer.
Ele pegou então a espada e tirou-a da bainha,
e achou-a então muito formosa. E a donzela lhe
disse:
— Ora a podeis dar a outrem, porque não sois
quem eu procuro.
— Ora dizei-me, donzela, disse o rei, que
maravilha pode disso advir e acreditaremos em vós
por isso mais, quando a virmos.
— Eu vo-lo direi, disse ela, pois tendes gosto
de o saber. Sabei que esta espada, que agora vedes
tão formosa e tão limpa, ficará toda tinta de sangue
quente e vermelho, assim que a tiver na mão aquele
que fará a maravilha de matar cavaleiros nesta
demanda mais que outrem. Esta espada trouxe eu
aqui para o conhecerdes e para o fazerdes aqui ficar,
porque, sem falha, se ele for, tanto mal e pesar
haverá e tanta mortandade de homens bons, que vós
vos chamareis, a seu retorno, rei pobre, deserdado de
bons fidalgos.
— Por Deus! donzela, disse o rei, mais me
vale perda-lo do que me sobrevir tanto mal por ele.
E melhor é cada um provar.
— Pois, disse ela, provai qual é, porque o
podeis entender e reconhecer por isto que vos digo.
Então deu o rei a espada a Galaaz e sacou-a da
bainha, e não se mudou de qual era. O rei disse:
— Vós estais quite.
E Galaaz deu-a a seu pai, e seu pai tirou-a, e
não apareceu nada. E depois a Boorz de Gaunes, e a
Heitor e a Persival de Galas e a Erec, filho do rei
Lac, e a Gaeriete; mas nada se mostrou em nenhum
destes. E então a pegou Galvão, e logo que a sacou
da bainha, ficou toda coberta de sangue, toda de uma
parte e da outra, tão quente e tão vermelho, como se
a sacassem do corpo de homem ou de chaga.
31. Como o rei ordenou a Galvão que não
fosse. Quando os do paço viram isto, disseram:
— Esta é das grandes maravilhas que vimos,
tempo há. E disse o rei a Galvão:
— Rogo-vos que não vades a esta demanda,
porque muito grande mal pode daí sair. Donzela,
cuidais vós que este é o homem que
[45] — Não cuido, disse ela, mas sei
verdadeiramente que, se for, fará tão grande dano
aos cavaleiros que aqui estão, que toda sua linhagem
não nos poderá recuperar.
E o rei bem acreditou que dizia a verdade, e
disse a Galvão:
— Sobrinho, eu vos peço que fiqueis aqui e
não vades a esta demanda.
E ele, que teve grande pesar sobejo desta
aventura, entre tanto homem bom, respondeu:
— Senhor, não deveis acreditar no que vos
disserem. Sabei que tudo é encantamento e chufa a
maior que vistes, tempo há. Não vos lembra quando
vistes a rainha Morgana e toda sua companhia
tornada em pedra? E por isso não deveis crer nisto.
Então disse a donzela:
— Isto não é encantamento, assim Deus me
ajude, mas antes inteira verdade. E, por Deus! se
fordes, tio grande dano se fará, que não o podereis
recuperar, nem rei Artur que aqui está.
A isto respondeu o rei:
— Donzela, vital sinal da sua ida que, assim
Deus me ajude, sei verdadeiramente que sobrevirá
disso mal. E por isto lhe ordeno, como senhor faz a
cavaleiro, que não vá, mas de todo modo fique.
— Como, senhor, disse Galvão, mais
acreditais nesta donzela do que em mim?
— Eu acredito, disse o rei, no que vejo. E por
isso vos ordeno de todo em todo, que não vades a
esta carreira.
— Senhor, disse ele, parece-me que não
cuidais da minha honra, mas do meu mal e da minha
vergonha, porque, se eu não for, sou perjuro e
desleal e então ninguém me deveria considerar como
cavaleiro.
— Não sei, disse o rei, o que fareis; mas se
fordes, pesar-me-á muito sobejo.
VI
Preparativos da demanda
32. Como a rainha houve pesar por Lancelote.
Galvão, que disto houve grande mágoa, afastou-se
do rei e foi para sua pousada. E a rainha disse ao
donzel que lhe dissera as novas da demanda:
— Agora dize-me, estavas presente quando
prometeram os cavaleiros buscar o santo Graal?
— Sim, senhora, disse ele.
[46] — Galvão e Lancelote hão de ir?
— Senhora, disse ele, dom Galvão o jurou
primeiro, e depois dele, Lancelote, e depois, todos os
outros da mesa redonda.
— Assim? disse ela, em mal ponto foi
começado este preito, porque muitos homens bons
morrerão nele e haverá então grande prejuízo no
reino de Logres.
Então houve tão grande pesar de Lancelote,
que as lágrimas lhe vieram aos olhos, e disse outra
vez:
— Certamente este é grande dano sobejo,
porque, sem a morte de muitos homens bons, não
será esta demanda acabada, e maravilho-me do rei,
como o pode suportar, porque os melhores
cavaleiros do mundo se afastarão dele e sua terra
valerá por isso muito menos.
Então começou a chorar muito intensamente,
e as mulheres e as donzelas também. E a donzela
feia, que estava ainda no paço, quando deram a dom
Galvão a espada, e viu que se afastara já dali com
sanha, disse ao rei:
— Que será da ida de dom Galvão? Sabei que
muito mal disso virá e acontecerá.
E ele disse:
— Sabei que não irá à demanda cavaleiro que
me muito não pese; mas muito mais deste me pesará,
porque bem sei que muito mal por ele acontecerá.
— Pois, disse ela, senhor, rogo-vos que o
façais ficar.
— Eu vos digo, disse ele, que não será tão
ousado que o experimente, porque bem lhe proibi
eu, e vós o ouvistes.
— Muito obrigada, disse ela. Então se foi com
sua espada.
33. Como os da corte souberam que Galaaz
era filho de Lancelote. Como leram a carta. Aquela
tarde, souberam os mais da casa do rei Artur que era
Galaaz filho de Lancelote, porque não podia ser que
a origem de tão grande homem como Galaaz
pudesse ser escondida tão longamente. Muito
falaram o rei e a rainha aquela noite com Galaaz e os
altos homens qüe lá estavam e sua linhagem que o
amavam muito. Quando a noite chegou, não
esqueceu ao rei a maravilha do cavaleiro que se
queimou de manhã e perguntou quem estava com a
carta que tinha na mão quando se queimara. Então
disse um cavaleiro de Norgales.
— Senhor, vedes a carta que tinha na mão.
E ele pegou a carta na mão e leu-a, e achou
que dizia assim:
— Ai! Arcebispo de Cantuária, homem santo
e de boa vida e sisudo, aconselha-me em minha má
ventura e em meu pecado, [47] assim como te
contarei. Sabe verdadeiramente que o revelo a Deus
e a ti, que sou pecador, maior dos pecadores, que
deitei com minha mãe e com minha irmã. E depois,
matei-as ambas, na mesma hora, porque não queriam
cumprir minha vontade. E depois, estando a olhá-las
onde as matara, sobreveio o meu pai, o rei da ilha do
Porto; depois que viu aquela morte, meteu mão à sua
espada e eu à minha, e matei-o. E estando a olhá-lo,
sobreveio meu irmão, o conde de Geer, e causou-me
mal e matei-o. Todo este mal que te digo, fiz num só
dia. Agora me aconselha, padre santo, porque já tão
grande penitencia não me darás, que a não cumpra.
Tudo isto dizia a carta que o cavaleiro tinha
quando morreu. Depois que o rei leu a carta, assim
que a ouviu Galaaz e os outros homens que com ele
estavam, disse:
— Agora podemos saber por que este
cavaleiro morreu tão cruelmente. Sabei que isto foi
vingança de Jesus Cristo.
E os outros disseram que bem parecia
verdade, segundo a carta dizia. Então fez o rei
guardar a carta numa abadia, que era de Santo
Estevão, que era a Sé de Camalote e fez fazer um
mui rico túmulo para o cavaleiro e escrever em
cima: “Aqui jaz o cavaleiro que num dia matou seu
pai e sua mãe e seu irmão e sua irmã”.
Este escrito foi feito depois que os cavaleiros
foram para a demanda do santo Graal.
34. Como o homem velho disse que nenhum
levasse consigo amiga na demanda. Depois disto,
mandou o rei chamar a rainha e as donzelas e
mulheres que viessem a ele. E depois que chegaram
ao paço, cada um dos cavaleiros foi estar com sua
mulher ou com sua amante ou com sua amiga. E
alguns houve que combinaram com suas amigas de
as levarem. E assim aconteceria, se não fosse um
velho, que chegou vestido com hábito de ordem, que
disse tão alto que todos ouviram:
— Cavaleiros da távola redonda, ouvi. Vós
jurastes a demanda do santo Graal. E Nascião, o
ermitão, vos manda dizer por mim que nenhum
cavaleiro desta demanda leve consigo mulher nem
donzela, senão fará pecado mortal. E não seja tal que
nela entre, se não for bem confessado, porque em tão
alto serviço de Deus como este, não deve entrar se
não for bem confessado e bem comungado e limpo e
purificado de todos os danos e de pecado mortal;
porque esta demanda não é de tais obras, antes é
demanda dos segredos e das coisas escondidas de
Nosso Senhor, que fará ver conhecida-, mente ao
bem-aventurado cavaleiro que ele escolheu para seu
[48] ser|vo entre todos os cavaleiros terrenos, ao
qual mostrará as grandes maravilhas do santo Graal
e lhe fará ver o que o coração mortal não poderia
pensar, e língua humana não poderia dizer.
35. Como a rainha perguntava a Galaaz. Por
esta palavra ficou que nenhum cavaleiro levaria
consigo sua amiga. O rei mandou muito bem cuidar
do homem bom e perguntou-lhe por seus feitos, mas
ele disse muito pouco, porque em outro lugar tinha o
coração. E a rainha veio a Galaaz e assentou-se ao
lado dele e disse-lhe:
— Amigo, de onde sois e de qual linhagem?
E ele lhe disse um tanto, mas não lhe disse
que era filho de Lancelote e que Lancelote o fizera
na filha do rei Peles, que muitas vezes ouvira já a
respeito ela falar. E, no entanto, porque ela queria
saber a verdade dele, perguntou-lhe outra vez e
disse-lhe:
— Dizei-me, quem é vosso pai?
— Senhora, disse ele, não o sei muito bem.
— Ai, senhor! disse ela, vós mo ocultais. Por
que o fazeis? Assim Deus me ajude, ao vos
lembrardes de vosso pai, não tenhais vergonha
nenhuma, porque ele é o mais formoso cavaleiro do
mundo e de todas as partes vêm reis e rainhas e a
mais alta linhagem do mundo em apreço ao melhor
cavaleiro do mundo, porque por direito deveríeis
passar todos os cavaleiros do mundo.
36. Como a rainha disse a Galaaz que era filho
de Lancelote. E quando ele isto ouviu teve grande
vergonha e respondeu:
— Senhora, pois que vós tão bem conheceis,
tanto o podereis dizer a mim, como eu a vós. E se é
aquele que penso, não vo-lo negarei, mas se este não
é quem me dizeis, nãô concordarei com outro.
— Pois que não me quereis dizer, disse ela, eu
vo-lo direi. Vosso pai é dom Lancelote do Lago, o
melhor cavaleiro de armas e o mais formoso e o de
melhor donaire e o mais desejado e o mais amado de
todos aqueles que nasceram em nossso tempo. Todas
estas bondades tem vosso pai. E por isso me parece
que o não deveis negar a mim nem a outrem, porque
de melhor pai e de melhor cavaleiro não poderíeis
ser filho.
— Senhora, disse ele, pois que assim sabeis,
por que vo-lo diria eu? Porque bem o saberão já
sempre.
37. Como rei Artur pensava nos cavaleiros
que iam à demanda. Aquela noite, fez o rei Galaaz
ficar numa câmara onde ele costumava ficar, num
leito seu, porque tinha muito gosto de lhe fazer
honra. E todos os da linhagem de rei Bam ficaram
nos aposentos [49] do rei, por causa de Galaaz. E
muito lhe era penoso terem de partir tão cedo,
porque toda aquela linhagem se amavam muito,
porque mais queriam viver juntos do que partirem.
E, sem falha, na casa do rei havia então daquela
linhagem dezenove cavaleiros, que eram todos muito
bons. E todos foram tão venturosos, que não houve
entre eles um que não fosse da távola redonda. E por
isso era aquela linhagem tão honrada e tão afamada,
que nunca falavam de outra linhagem no reino de
Logres, fora daquela.
Aquela noite, quando rei Artur viu que os
cavaleiros da linhagem do rei Bam — que, naquele
tempo, era a flor e o louvor dos cavaleiros do mundo
— ficaram em sua casa por causa de Galaaz,
começou a olhá-los e a pensar que estes eram os
homens do mundo que mais vezes foram melhores
para ele e que melhor o vingaram de seus inimigos.
E quando novamente pensava que queriam de manhã
ir a tal lugar de onde cuidava que jamais voltassem,
teve tão grande pesar, que não se pôde aconselhar,
porque esta era a linhagem do mundo que mais
amava, fora a sua. E foi então deitar só numa câmara
e começou a fazer o maior pranto do mundo e maldizer muito Galvão, seu sobrinho. E disse que
maldita fosse a hora em que o vira primeiro, porque
lhe tiraria logo todos os bons cavaleiros e todos os
homens bons pelos quais era ele o mais temido de
todos os reis do mundo.
38. Como o rei fez seu pranto por seus
cavaleiros e como lhe pesava de sua ida. Assim se
queixava e fez seu pranto o rei por seus cavaleiros,
que se dele separavam, e, assim que foi manhã,
levantou-se o mais cedo que pôde, porque muito
estava em grande cuidado com o que havia de fazer,
mas não se levantou tão cedo que já não achasse
mais de sessenta cavaleiros dos que haviam de ir à
demanda, que vestiam já as lorigas e cingiam as
espadas. O rei que tinha grande pesar disso, que não
há homem no mundo que o imaginar pudesse,
quando os viu assim estar, teve tão grande pena que
não teve força para saudá-los e aconteceu-lhe falhar
o coração com grande pesar. E viu Gaeriete e disselhe assim:
— Gaeriete, morto me há vosso irmão que me
tolheu tantos homens bons como havia em minha
casa. E ao menos se me ficasse a linhagem de rei
Bam, não haveria tão grande pesar.
Quando Gaeriete isto ouviu, calou-se, porque
bem entendia que dizia o rei verdade. Aquele dia,
ajudou o rei armar Galaaz, e depois que foi armado,
exceto do elmo e do escudo, foi ouvir missa na
capela do rei, ele e sua linhagem. E depois, voltaram
ao paço e encontraram jáos outros, que haviam de ir
à demanda, que não esperavam outra coisa senão
eles e sentaram-se uns perto dos [50] ou|tros. Então
se ergueu rei Bandemaguz e falou tão alto que todos
ouviram:
— Senhor, disse ele ao rei Artur, pois que este
preito assim está começado, que não pode já ser
deixado e os que nele hão de ir não esperam senão a
vós, eu louvaria que os santos Evangelhos viessem
aqui, e os cavaleiros fizessem tal juramento como
devem fazer os que vão a tão alta demanda.
— Está bem, disse o rei, pois outra coisa já
não pode ser.
Então mandaram vir os clérigos e trouxeram o
livro sobre o qual faziam o juramento da corte, e
depois o puseram no alto assento do rei, e o rei
chamou Galaaz, porque o tinha pelo melhor
cavaleiro de quantos lá havia, e disse-lhe:
— Galaaz, sois como mestre dos cavaleiros da
mesa redonda e o melhor. Vinde adiante e fazei o
juramento desta demanda.
E ele disse que o faria de muito bom grado.
Então foi ficar de joelhos ante o livro, e jurou que, se
Deus o guardasse do mal e o guiasse, manteria esta
demanda um ano e um dia, e mais, se preciso fosse,
e não tornaria à corte, até que soubesse, de algum
modo, a verdade do santo Graal. Depois jurou
Lancelote e Tristão. Também sabei que, de todos os
cento e cinqüenta cavaleiros da mesa redonda, não
ficou nenhum que este juramento não fizesse, afora
Galvão somente. Aquele dia, sem falha, não estava
lá, porque já se fora pela manhã, bem armado, para
esperar os outros na floresta de Camalote, porque
bem sabia que, se com os outros quisesse sair, não o
deixaria o rei, mas o faria ficar.
39. O conto dos cento e cinqüenta cavaleiros
da távola redonda. Os nomes deles. Por isso partiu
Galvão pela manhã da corte, e o rei, pelo grande
pesar que tinha quando recebia o juramento, nunca
lembrou de Galvão, tantos eram os outros. Mas
porque a está-ria não citou os nomes daqueles que
foram na demanda do santo Graal, convém que
refira aqui os nomes dos que foram companheiros da
mesa e fizeram juramento. Dos cento e cinqüenta
cavaleiros que fizeram o juramento desta demanda,
foi o primeiro Galaaz, depois dele, Tristão e
Lancelote e Boorz de Gaunes e Bliobleris e Leonel e
Heitor de Mares; Brandinor, seu irmão, e Elaim, o
branco; Banim, o afilhado do rei Bam; Abão, bom
cavaleiro a maravilha; Gadrão; Laner; Tanri;
Pincados; Lelas, o ruivo; Crinides, o negro; Ocursus,
o negro; Acantão, o ligeiro; Danúbio, o corajoso.
Todos estes cavaleiros, exceto Tristão, eram da
linhagem de rei Bam e vieram à corte de rei Artur
por causa de Lancelote. E aconteceu-lhes assim por
boa cavalaria e por sua vida boa que foram
companheiros da távola redonda e eram estimados
pelos cavaleiros sobre todos [51] os cavaleiros da
casa de rei Artur; e pela bondade destes, que eram
andantes, era a linhagem de rei Bam famosa como
vos digo. Os outros da linhagem de rei Branco não
eram senão estes: Galvão e Gaeriete, Agravaim,
Grieres, Morderete; estes eram irmãos. Os outros
eram estes: Agroval e Persival; Corsidares;
Maidairos, seu primo coirmão; e Persives de
Langaulos. Os outros eram filhos de Lot: Cujerão,
seu irmão, de Ganaor, mui bom cavaleiro de armas,
mas era tão soberbo, que maravilha era. Os outros:
Quéia, o mordomo, e Sagramor, o dizimador; e
Gilfrete, o filho de Dó; Lucão, o copeiro; e
Dondinax, o selvagem; Calogrenante; Ivã, filho de
rei Urião; Ivã das mãos brancas; Ivã de Canelones de
Alemanha; Oures, o pequeno; Gures, o negro; o
Laido ousado; Garnaldo, seu irmão; Mador da Portà,
o grande cavaleiro; Craidandos; Isaias; rei
Bandemaguz; Patrides, seu sobrinho; Madão, seu
coirmão, o donzel da saia mal talhada, de quem o
conto do Brado fala muito; Dinadeira, seu irmão,
bom cavaleiro à maravilha e que foi muito no reino
de Logres; Gar da Montanha; Clamadim, que pouco
havia que ganhara o assento da távola redonda;
Galaaz, o grande da Deserta; Senala, seu irmão;
Caradão, Damas, Damacab, que eram seus primos
coirmãos. Sabei que todos estes eram tão bons
cavaleiros que não se podia achar melhores no reino
de Logres, a menos que fossem da linhagem de rei
Bam. Estes cinco queriam mal a esta linhagem com
inveja, porque não faziam a eles tanta honra como
aos outros. E outro Lambeguêm, que foi aio de
Boorz e de Leonel; Sinados, Artel, Bagarim,
Sanasésio; Arnal, o formoso; e o cavaleiro do Chão;
Angelis dos Vaos, Baradão, o manso, que era seu irmão; Marat, o da torre; Nicorante, o bem feito e o
famoso de espada; Alaim dos Prados; Martel do
grande escudo; Melez, o longo; Dinas, seu irmão;
Codias das longas mãos; Pinabel da Ilha; Daniel, o
cuidador, e Gandaz, o negro, Gandim da Montanha,
que eram ambos irmãos; Ataz; Calendim, o
pequeno; Utrenal; Raface; Conais, o branco;
Agregão, o sonhador; Guigar, o filho de Galvão de
quem o conto do Brado fala; Anarão, o grosso;
Amatim, o bom justador; Canedão, o delgado;
Canedor, o da formosa amiga; Ar-pião da estranha
montanha; Saret; Dinados; Peliaz, o forte, aquele,
sem dúvida era natural de Logres; Alamão; Ganadal;
Lucas de Camalote; Brodão; Endalão; Melião;
Julião; Galiadão; Cardoilem de Londres, bom
cavaleiro violentamente ousado; Delimaz, o pobre;
Asalim, o pobre; Caligante, o pobre: estes três eram
irmãos; Ecubas; Eladinão, seu irmão. Todos estes de
que vos eu antes disse os nomes eram da mesa
redonda, e não houve um que não fosse cavaleiro
escolhido e provado de muito boa cavalaria. Rei
Artur, sem falta, está com eles, e com ele, sem falha,
são cento e cinqüenta.
VII
Despedida dos cavaleiros
40. Como a rainha se lamentava por Lancelote
que ia à demanda. Uma vez que fizeram o juramento
e comeram um pouco, pelo rei que lhes pediu,
novamente puseram seus elmos em suas cabeças e
encomendaram-se muito à rainha e a Deus e
despediram-se com lágrimas e com choro. E ela
começou um tão grande lamento, como se visse o
mundo todo morto diante de si. E para não a
ouvirem, voltou à sua câmara e deixou-se cair em
seu leito e começou a fazer tão grande lamento que
não há quem a visse que se não maravilhasse.
Quando Lancelote ficou já todo pronto e tinha pena
de sua senhora, que maior não podia, foi à câmara
onde a viu entrar. E assim que ela o viu, disse:
— Ai, Lancelote! Morta me tendes, porque
deixais a casa do rei para irdes às terras estranhas de
onde jamais voltareis, senão por maravilha.
— Ai, senhora, disse ele, voltarei, se Deus
quiser, muito mais cedo do que cuidais.
— Ai! disse ela, meu coração mo diz, que me
poe em tal pavor e sofrimento, como nunca mulher
de tal modo ficou por cavaleiro.
— Senhora, disse ele, irei com vossa graça,
quando vos aprouver.
— A meu prazer, nunca pode ser, disse ela,
depois que viu que não havia outra coisa a fazer,
mas ide com a graça de Deus Nosso Senhor que vos
guie e vos traga de volta com saúde e vos dá honra
nesta demanda.
— Senhora, disse ele, assim o faça Deus, se
lhe aprouver.
41 .Como o rei foi até ldfora com os
cavaleiros. Então se despediu Lancelote da rainha e
foi ao paço do rei e encontrou todos que cavalgavam
montados, menos ele, porque o esperavam. E ele foi
ao seu cavalo e montou. E o rei, que viu Galaaz sem
escudo, disse-lhe:
— Amigo, não me parece que fazeis bem de
não levar escudo como os outros.
— Senhor, faria mal se daqui o levasse. E
sabei que não trarei escudo até que a ventura mo dê.
Agora seja no nome de Deus.
42.Como os cavaleiros iam alegres à demanda
do santo Graal. Então se afastaram do paço e foram
pela vila, mas nunca vistes tão grande lamentação
como faziam os cavaleiros de Camalote e a outra
gente que ficava. Mas os que haviam de ir não
mostravam [53] ne|nhum sinal de tristeza, antes vos
pareceria, se os vísseis, que iam muito felizes e
muito alegres, e, sem dúvida, assim era.
43. Como a donzela feia disse a Galvão que
voltasse, porque muito mal faria naquela demanda.
Quando chegaram à entrada da fioresta em direção
ao castelo de Vagam, pararam todos diante de uma
cruz. Então disse Lancelote ao rei:
— Senhor, voltai, bastante viestes conosco.
— Assim Deus me ajude, disse o rei, voltar
me será pesado, porque sobremaneira me despeço de
vós contrariado, mas porque vejo que me convirá
fazer, voltarei.
Então tirou Lancelote o elmo e os outros
também, e abraçouos o rei, e beijou-os muito
afetuosamente chorando, e os outros homens que lá
estavam também. Depois que puseram seus elmos,
encomendaram-se a Deus uns aos outros e choravam
muito sentidamente. Então se afastou o rei deles e
voltou a Camalote. E eles entraram na floresta, e
então cavalgaram tanto que chegaram ao castelo de
Vagam, onde foram muito bem servidos de quanto
tinham necessidade. E aquele Vagam era um
cavaleiro bom e de vida boa, e quando viu os
cavaleiros da távola redonda, soube que iam
demandar a aventura do santo Graal, recebeu-os
muito bem e considerou-se satisfeito de que lhe
Deus trouxera tantos homens bons, pois os poderia
albergar. Aquela noite, albergaram com Vagam e
foram tão bem servidos de quanto tinham
necessidade que ficaram maravilhados de como tão
depressa se preparou para tão grande companhia
tanta coisa. À tarde, quando estavam comendo, eis
que vem a donzela feia, que vos disse que injuriara
Erec e ferira Lancelote com o freio. E viu que
Galvão estava e foi parar diante dele e disse-lhe
assim com raiva:
— Galvão, Galvão, cavaleiro desleal, como és
tão ousado que nesta demanda queres ir, quando
sabes que tanto mal por ti acontecerá? E rogam-te
estes cavaleiros da távola redonda que, se te quisesses lembrar da morte de Lamorante e de seu
irmão Briam de Monjaspe, e da deslealdade que
então fizeste, deverias agora mais te guardar do que
outro cavaleiro de fazer coisa desleal, porque
bastante fizeste naquele tempo. Queres ir a esta
demanda como os outros; mas olha o que por tua
causa acontecerá. Sabe que dom Galaaz que aqui
está — este é agora o melhor cavaleiro do mundo —
não fará tanto bem nesta demanda, como tu farás
mal, porque pela tua mão — que em má hora
pegaste a espada — matarás dezoito destes teus
companheiros, tais que valem mais que tu de
cavalaria. E isto acontecerá por ti nesta demanda.
Agora, olha como eles devem cciisurar e maldizer a
tua vinda.
[54] 44. Como Galvão se salvou e como a
donzela disse que alguns a creriam, outros não.
Galvão teve muito grande vergonha do que lhe disse
a donzela e respondeu:
— Donzela, se eu cuidasse que tanto mal por
mim aconteceria nesta demanda, voltaria, mas
porque sei verdadeiramente que, do que se diz, nem
tudo acontece, não acredito no que dizes.
— Não? disse ela.
— Senhora, não.
— Não acreditas? Acreditarás, porque tudo
verás que como to eu digo, assim te acontecerá. E
não tenho pena deste preito se cindir por ti, mas pelo
mais sisudo homem do reino de Logres que matarás.
Então virou para rei Bandemaguz e disse-lhe:
— Rei Bandemaguz, tenho muita pena de que
vás a esta demanda, porque nela morrerás e será
grande dano, por duas causas: uma, porque és muito
bom cavaleiro, e a outra, porque és o mais sisudo do
reino de Logres. E sabe que um só cavaleiro te
matará a ti e a teu sobrinho Patrides, e Erec e Ivã e
tantos outros, porque em má hora nasceu este
pecador que tanto mal fará, que mais valera que
ainda estivesse por nascer, porque, por suas armas,
ficarão, depois de sua morte, mais de cem anos,
muitos remos órfãos de bons cavaleiros e de
senhores.
Então voltou a Galvão e disse:
— Galvão, cre que tu e Morderete, teu irmão,
não nascestes senão para fazerdes más aventuras e
dolorosas. Se os que aqui estão o soubessem como o
sei, arrancariam vossos corações, porque ainda os
fareis morrer de dor e de sofrimento. E estes, que
agora não criem no que lhes digo, ainda acreditarão
a tal hora em que não poderão tomar sentido.
45.Como o cavaleiro disse a Galaaz que ou o
matasse ou o mataria ele. Logo que a donzela isto
disse, afastou-se deles e saiu tão depressa quanto
pôde. E eles ficaram tão espantados que não sabiam
se deviam acreditar; e deixaram então de falar disso
por causa de Artur e Galvão, que tanto amavam. E
estando assim, eis que um cavaleiro entrou
desarmado, exceto de espada, e era muito grande e
muito forte; e assim que viu Galaaz, ficou de joelhos
e disse-lhe:
— Galaaz, bem-aventurado cavaleiro e
escolhido sobre todos aqueles que trouxeram armas
na Grã-Bretanha, eu te rogo pela fé que deves a toda
a cavalaria que me dês um dom, que ninguém te
pediu desde que recebeste a ordem da cavalaria. E se
o não fizeres, cstranhaniente errarás.
[55] — Galaaz olhou o cavaleiro, que tão
francamente lhe pedia, e não sabia o que responder,
porque cuidou que era grande coisa e disse-lhe:
— Erguei-vos, cavaleiro; eu vos dou o que me
pedistes, se coisa é que possa dar ou deva.
— Muito obrigado, disse o cavaleiro. Pois
agora vos peço que me corteis a cabeça com esta
espada que trago, que nada desejarei tanto, como
morrer por mão de tão bom cavaleiro como vós, porque bem sei que bom cavaleiro como vós não me
poderá matar.
Então tirou a espada da bainha e colocou-a na
mesa e disse:
— Galaaz, pegai esta espada e fazei o que vos
eu rogo.
E ele olhou-o e começou a persignar-se pelo
que lhe dizia, porque o teve por maravilha. E
respondeu:
— Ai, senhor cavaleiro! Outra coisa me pedi,
porque a vós nem a outro cavaleiro não matarei,
senão em defendendo meu corpo ou meu senhor.
— Certamente, disse o cavaleiro, isto não
fareis em começo de vossa cavalaria, que me não
cumprais o que me prometestes, porque por isso
seríeis o pior cavaleiro do mundo e o mais
mentiroso, se assim começásseis.
— Não vos é vantagem, disse Galaaz, de me
tal pedido fazerdes, porque não há nada no mundo
por que vos matasse assim.
— Não? disse ele, não me cumprireis minha
promessa?
— Outra promessa vos manteria, disse
Galaaz, mas esta não faria, ainda que pudesse.
Então se ergueu o cavaleiro e tomou a espada
na mão e disse:
— Agora vos farei outro pedido: ou vós me
matais, ou eu vos matarei. Agora escolhei qual
quereis.
E Galaaz começou a sorrir e persignou-se,
tanto tinha isto por grande maravilha.
— Vede, pois, disse ele, por boa fé, cavaleiro,
sois o mais louco e o mais néscio de que nunca ouvi
falar, porque quereis que, por força, alguém vos
mate.
— Se me não matardes, disse o cavaleiro, de
manhã me matará outro, de quem ninguém, exceto
Deus, pode me guardar, porque aquele é o homem
do mundo a quem pior quero e a quem menos prezo.
Então queria que me matásseis vós, para que não me
achassem de manhã vivo.
— Como quer que aconteça, disse Galaaz, de
modo algum vos matarei.
— Não? disse ele. Pois quero-vos eu matar.
Então ergueu a espada e fez de conta que o
queria matar. Mas Galaaz, que nunca tivera medo,
não se moveu, porque nunca [56] du|vidou do que
quer que fosse. E quando o cavaleiro viu que o não
podia espantar, disse:
— Galaaz, agora bem vejo que acabarás as
aventuras do reino de Logres, porque te vejo
esforçado, como nunca cuidei ver alguém que o
fosse tanto. E por isso te provei eu; porque és mais
valente que outro, te deixei de matar, porque muito
seria grande o dano se neste momento morresses. E
pois que de manhã hei de morrer, não por ti, quero
lamentar minha morte.
Então enfiou a espada em si e com sofrimento
de morte caiu e disse a Galaaz.
— Senhor, roga a Deus por mim.
Logo que isto disse, morreu. E quantos na
casa estavam, ficaram maravilhados. Então vieram
os cavaleiros e escudeiros e tiraram-no do paço onde
comiam. Os cavaleiros disseram ao senhor do castelo que o fizesse enterrar e que perguntasse por seu
nome e por seus feitos e os fizesse escrever sobre
seu túmulo para que os que depois viessem
soubessem aquela maravilha. Naquela hora, tomaram a decisão de partirem de manhã e que cada um
tomasse o seu caminho, porque por mal e por
covardia tomariam, se andassem juntos.
46. Como partiram os cavaleiros. No outro
dia, pela manhã, ouviram missa e depois montaram e
encomendaram a Deus seu anfitrião e agradeceram
muito quanto lhes fizera. Depois, saíram do castelo e
assim que chegaram à floresta, partiu cada um por
onde achou a carreira ou senda, e muito choraram ao
partir.
Mas ora deixa o conto a falar dos cavaleiros e
volta a Galaaz.
VIII
Galaaz recebe o escudo
47. Ora diz o conto que Galaaz, quando se
separou de sua companhia, andou tres dias sem
aventura achar que de contar seja, e não trazia
escudo. E sabei que sempre o ermitão ia atrás dele a
pé, porque não queria montar em animal. Ao quarto
dia, aconteceu-lhe que chegou, à hora de vésperas, a
uma abadia de monges brancos; e os frades
acolheram-no muito bem, porque o reconheceram
como cavaleiro andante, e fizeram-no descer, e
levaram-no a uma câmara e o desarmaram. E ele
olhou e viu dois cavaleiros da mesa redonda; um era
rei Bandemaguz e o outro era Ivã, o bastardo. E
assim que se reconheceram, ficaram muito alegres e
abraçaram-se [57] e bem o deviam fazer porque
eram como irmãos por causa da mesa redonda.
Aquela tarde, depois que comeram, sairam por
uma horta para folgarem, e Galaaz perguntou que
ventura os trouxera ali. E rei Bandemaguz disse:
— Viemos aqui para ver uma aventura
maravilhosa que aqui há.
— E que aventura é? disse Oalaaz.
— Eu vo-lo direi, disse rei Bandemaguz; aqui
há um escudo, que não pode alguém levar uma
jornada daqui, se o deitar a seu colo, que não seja
morto ou muito ferido. E dom Ivã veio aqui para vãlo; e quero prová-lo e levá-lo de qualquer maneira.
— Por Deus, disse Galaaz, de grande
maravilha falais; esta éuma das grandes maravilhas
que vi e tenho por bem que o proveis. E se o não
puderdes levar, eu o levarei, se puder, porque não
tenho escudo.
— Senhor, disse Bandemaguz, se vós a
aventura provardes primeiro, creio que a acabareis,
mas deixai-me pegar o escudo, e veremos se é
verdade o que dizem.
48. Como os frades contaram a aventura do
escudo a Galaaz e aos outros. Aquela noite, foram os
cavaleiros muito bem albergados de quanto os frades
puderam ter e fizeram muita honra a Galaaz pelo
bem que ouviram dele dizer aqueles dois cavaleiros.
De inanhã, depois que ouviram missa, perguntou rei
Bandemaguz a um frade que lhe dissesse onde
estava o escudo de que tanto falavam pela terra. E o
frade disse:
— Por que o perguntais?
— Quero prová-lo, se o puder levar, e verei se
tem tal virtude como dizem.
— Nisto não vos louvarei eu, disse o frade,
porque cuido que ganhareis desonra.
— Não vos incomodeis, disse ele, mas se vos
aprouver, mostrai-mo.
— De bom grado, disse ele.
E levou-os então para o altar e mostrou-lhes
então o escudo, que estava de trás do altar, e o
escudo era branco e tinha uma cruz vermelha. E o
frade lhes disse:
— Vede aqui o escudo que buscais.
E eles o olharam e pareceu-lhes que era o
mais formoso e o mais rico que nunca viram. E
exalava tão bom odor, como se todas as espécies do
mundo nele estivessem. Quando Ivã, o bastardo, viu
o escudo, disse:
[58] — Assim Deus me ajude, deste escudo
digo eu tanto que nenhum cavaleiro o devia deitar a
seu colo, se não fosse o melhor cavaleiro. E
certamente, serei aquele que o não provarei, porque
não me sinto tal que o deva fazer.
— Em nome de Deus, disse rei Bandemaguz,
eu o quero daqui tirar, não importa o que aconteça
por isso.
Então tomou o escudo e deitou-o a seu colo e
disse a Galaaz:
— Senhor, eu queria, se vos aprouvesse, que
me esperásseis aqui até que víssemos o que podia
advir desta aventura. E se me acontecesse mal por
este escudo, queria que o provásseis vós porque bem
sei que não sereis mal sucedido.
— Eu vos esperarei, disse Galaaz, de mui
boamente.
E os frades lhe deram um escudeiro que fosse
com ele em sua companhia e trouxesse o escudo, se
o levar não pudesse, e tornasse à abadia com ele.
49. Como rei Bandemaguz foi ferido. Assim
ficou então Galaaz, e Ivã com ele, e rei
Bandemagu.z se foi; e depois que andaram quanto
seria duas léguas, viram sair de uma ermida um
cavaleiro de umas armas brancas. E vinha quanto o
cavalo o podia trazer, a lança sob o braço, contra rei
Bandemaguz. E o rei que o viu vir, voltou a ele e
quebrou a lança nele. E o cavaleiro que o alcançou
em descoberto, feriu-o tão rijaxnente, que lhe
quebrou a loriga e meteu-lhe o ferro da lança por sob
a espádua esquerda, e lançou-o em terra.
Depois desceu e pegou-lhe o escudo e montou
seu cavalo e disse-lhe:
— Muito fostes louco, cavaleiro, que este
escudo pegastes, porque não é outorgado senão para
um homem só, e aquele convém que seja o melhor
cavaleiro do mundo. Pelo grande erro que nisto
fizestes, me enviou aqui aquele que toma as grandes
vinganças, para tirar de vós vingança, segundo o
erro que fizestes.
Depois que isto disse a rei Bandemaguz, virou
para o escudeiro e disse-lhe:
— Toma este escudo e leva-o ao servo de
Jesus Cristo, aquele que chamam Galaaz. E dize-lhe
que o alto Mestre lho manda, que o traga, porque
sempre será tão novo como agora é e tão formoso, e
isto é grande coisa por que se deve muito amá-lo. E
saúda-o da minha parte.
— Senhor, disse o escudeiro, quem sois?
— Isto não podes agora saber nem depois,
disse o cavaleiro.
— Pois que assim é, disse o escudeiro, que
vosso nome não quereis dizer, eu vos rogo, pela
coisa do mundo que mais amais, que me digais a
verdade do escudo e de quem o trouxe a esta terra,
porque nunca vi cavaleiro que a seu colo o deitasse,
que lhe mal não viesse.
[59] — Tanto me conjuraste, disse o
cavaleiro, que to direi, mas não o direi a ti só, antes
quero que tragas aqui o cavaleiro a que hás de levar
o escudo e to direi diante dele, e dize-lhe de minha
parte que, se quiser saber a verdade, venha falar
comigo, porque bem aqui me achará.
Então foi o escudeiro a rei Bandemaguz e
perguntou-lhe se estava ferido.
— Eu cuido, disse o rei, que estou ferido de
morte.
— E podereis cavalgar? disse o escudeiro.
— Prová-lo-ei, disse ele, porque de ficar não
me pode vir senão mal.
Então se ergueu como pôde e cavalgou com
muita dificuldade. E o escudeiro atrás dele para o
segurar.
50. Como o escudeiro deu o escudo a Galaaz.
Assim partiram daquele campo e voltaram à abadia e
os frades pegaram rei Bandemaguz e levaram-no a
uma câmara e esforçaram-se para lhe pensar a chaga,
que era muito grande. E Galaaz perguntou a um
frade que lhe cuidava da chaga:
— Cuidais que possa sarar? Certamente,
grande dano seria se por tal aventura morresse,
porque o ouvi muito louvar de sangue e de cavalaria.
— Senhor, disse o frade, não tenhais medo de
morrer; mas nao devia ninguém dele ter dó, porque
antes lhe havíamos dito que, se levasse o escudo,
colheria disso mal.
Então veio o escudeiro a Galaaz e disse-lhe
perante quantos lá estavam:
— Senhor, manda vos saudar o bom cavaleiro
das armas brancas; manda vos dizer que vos envia
este escudo, que o tragais, porque não há agora,
como ele diz, ninguém no mundo senão vós que o
tanto mereça. E diz que, se quiserdes saber donde
veio o escudo e quantas maravilhas dele advim,
vades a ele e ele vo-lo dirá. E eu vos levarei onde ele
está.
Quando os frades isto ouviram, humilharamse muito perante Galaaz e disseram:
— Abençoadas sejam estas novas e bendito
seja Deus, que o aqui trouxe, porque agora sabemos
bem que por este serão acabadas as aventuras
maravilhosas do reino de Logres.
E Ivã, o bastardo, disse:
— Senhor Galaaz, deitai este escudo ao vosso
colo. E assim será um pouco minha vontade
cumprida, porque, se Deus me ajude, nunca tanto
desejei nada como ver o bom cavaleiro que deste
escudo haveria de ser senhor.
[60] Galaaz disse que o faria, pois lho
enviaram, mas que antes queria ter suas armas; e
trouxeram-lhas. Depois que ficou armado e montou
em seu cavalo e deitou seu escudo ao colo,
encomendou os frades a Deus e foi-se. E Ivã, o
bastardo, que estava já armado para montar em seu
cavalo, disse que lhe faria companhia. E ele disse
que lho agradecia muito, mas não queria que
ninguém fosse com ele, senão o escudeiro e o
ermitão. Sem falha, o ermitão andava sempre atrás
dele, às vezes longe, às vezes perto e contava-lhe
cada dia as vidas dos padres santos e as estórias
antigas. E contou-lhe de onde era, e de qual
linhagem e de quais cavaleiros, e contou-lhe de José
e de rei Mordraim e de Nascião, que homens foram e
que cavaleiros e de quanto amor Nosso Senhor os
amava. Isto era coisa que de bom grado mais no
mundo escutava e mais o confortava, e tanto tinha
gosto de ouvir que nada no mundo lhe agradava
tanto.
51. Como o ermitão disse a dom Galaaz a
verdade do escudo. Quando Galaaz chegou à ermida,
onde o cavaleiro das armas brancas o esperava, o
escudeiro que ia com Galaaz, assim que viu o
cavaleiro, disse a Galaaz:
— Senhor, vedes o cavaleiro que vos enviou o
escudo.
E o cavaleiro, assim que o viu, saiu em
direção a ele e saudouo. E Galaaz também a ele.
— Senhor, disse o escudeiro, agora contai a
dom Galaaz o que dissestes que lhe contaríeis diante
de mim.
— Muito me agrada, disse ele, porque não há
no mundo ninguém a quem antes devesse contar do
que a ele, que é agora o escolhido que não tem par
entre todos os cavaleiros que agora são e foram, há
muito tempo.
Então disse a Galaaz:
— Sabei que me pede o escudeiro que vos
faça saber a verdade deste escudo e por que tantas
maravilhas por ele advieram àqueles que, por seu
louco atrevimento, contra a proibição de Nosso Senhor, o deitaram a seus colos, porque lhes
acontecem tantas desventuras como sabem nesta
terra. Tudo isto ele me pediu que vos dissesse,
porque não é justo que outrem saiba antes que vós,
mas pois que aqui viestes, eu vo-lo contarei diante
dele e diante deste ermitão que anda convosco e vos
contou já dele um tanto.
— Senhor, disse Galaaz, certamente, isto é
uma coisa que desejei saber.
— Pois vo-lo direi, disse o cavaleiro, tudo
assim como aconteceu.
[61] Então lhe começou a contar de tal modo
como vos depois contará o livro.
52. Como o cavaleiro branco contou a Galaaz
sua linhagem.
— Galaaz, disse ele, aconteceu, já há muito
tempo, que, depois da morte de Jesus Cristo,
sessenta e dois anos, José de Arimatéia veio à cidade
de Sarras, assim como o alto Mestre o destinava por
sua vontade. Depois que chegou à cidade de Sarras
com seus parentes, que eram então novos servos e
discípulos de Jesus Cristo, o rei da cidade, que tinha
nome Evalac e era então pagão, os recebeu muito
bem. O rei estava então muito triste e muito
desconfortado com Tolomer, um rei seu vizinho
mais rico e mais poderoso que ele, que o guerreava e
facilmente seria desbaratado, porque seus homens
lhe falhavam, se não fosse Josefes, o filho de José,
que lhe disse:
— Rei Evalac, se me tu quiseres acreditar, eu
te aconselharei de modo que terás alegria sobre
todos os teus inimigos. E mais te farei ganhar a
alegria que nunca terá fim.
O rei ficou muito feliz com estas novas e
perguntou-lhe que homem era.
— Eu sou cristão, disse Josefes.
Quando o rei isto ouviu ficou maravilhado, e
mandou logo chamar seus clérigos, que disputassem
com ele sobre a lei dos cristãos. E quando estavam
reunidos, Josefes, que do Espírito Santo falava com
simplicidade, os venceu a todos, assim que não
houve quem falasse. Quando o rei viu Josefes tão
sisudo, acreditou. E quando aconteceu que o rei
queria ir contra Tolomer, que lhe entrava na terra,
Josefes lhe disse:
— Rei, faze-me trazer o teu escudo.
E o rei o fez trazer logo. E Josefes pegou um
pano de seda vermelho, e fez dele uma cruz e
pregou-o no escudo com pregos bons, pequenos.
Depois disse ao rei:
— Vedes este sinal?
— Sim, disse ele; é muito bom.
— Certamente, disse Josefes, no mundo não
há perigo de que não escapasse o que perfeitamente
acreditasse naquele a quem por este sinal oramos. E
por isso quero que o leves. E quando estiveres em tal
perigo que não cuides escapar jamais, então o
descobre e dize: “Deus, que neste sinal recebeste
morte, tu me torna feliz e são a receber tua graça” e
bem sabe verdadeiramente, se o chamares de bom
coração, que não morrerás, antes terás alegria e
honra.
Então cobriu Josefes com um pano o escudo.
[62] 53. Como Evalac viu aprova do escudo e
como prendeu Tolomer. Então acreditou o rei que
Josefes bem podia dizer a verdade. E apesar de que
duvidava daquilo que dizia, fez levar consigo o
escudo na batalha que havia de ter com Tolomer.
Então partiu de Sarras e foi contra Tolomer, e
juntaram-se umas gentes com as outras. E aconteceu
assim que Evalac foi preso e desbaratado e levado
para uma floresta, onde o queriam matar os que o
prenderam. Quando Evalac se viu afastado dos seus,
imaginou que jamais poderia escapar, se aqueles
homens que o levaram o houvessem de meter na
floresta. E então pegou o pano com o qual o escudo
estava coberto e viu na cruz uma imagem do
crucificado, que lhe parecia que lhe caíam dos pés e
das niãos gotas de sangue. Quando isto viu, tomouse-lhe por isso o coração de grande piedade, que era
maravilha. Então disse em seu coração: “Senhor
Deus, que por este sinal tomaste morte, faze-me
tornar ã minha cidade são e feliz, que receba a tua
santa crença e que os outros saibam por mim que tu
és verdadeiro e poderoso em todas as coisas.” Por
esta palavra que vos digo, disse o branco cavaleiro a
Galaaz, ficou o rei Evalac livre do perigo em que
estava, porque Nosso Senhor me enviou lá para
socorrê-lo e tão bem o ajudei, pelo poder que me deu
aquele que para lá me enviou, que o livrei daqueles
que o tinham, e tanto fiz que Tolomer foi preso e
toda sua gente destruída.
54. Como Evalac venceu seus inimigos.
Depois que rei Evalac venceu seus inimigos, voltou
para Sarras e recebeu o batismo pelos grandes
milagres que lhe Nosso Senhor mostrara, porque viu
que o cavaleiro que o braço cortado tinha, assim que
tocou o escudo, logo ficou curado. E ainda
aconteceu outra maravilha, que a cruz se desprendeu
do escudo e se prendeu ao braço do cavaleiro.
Quando o rei viu isto, mandou guardar muito bem o
escudo, porque se comoveu muito pelos milagres
que lhe Nosso Senhor mostrava por ele. E quando
aconteceu pois que ele veio a esta terra para livrar
José de prisão, andou com Josefes, seu filho, de
José, por quem Nosso Senhor fazia tanto bom
milagre, que maravilha era.
55. Como o cavaleiro contou a Galaaz como
fora feita a cruz no escudo. Depois que Evalac
permaneceu nesta terra muito tempo com Josefes,
este havia de cumprir sua vida. Quando o rei viu que
ele havia de passar, rogou-lhe, por Deus, que lhe
deixasse alguma coisa, pela qual ainda se lembrasse
dele.
— Rei, disse Josefes, pois fazei-me trazer o
vosso escudo, onde vistes o sinal do verdadeiro
crucificado, pelo qual ficastes livre das mãos de
Tolomer.
[63] O rei lhe fez trazer o escudo. Aquela hora
que o escudo trouxeram diante de Josefes, saiu-lhe
tanto sangue das narinas, que o não podiam estancar.
Josefes pegou o escudo e fez nele do seu sangue esta
cruz, tal qual agora vedes, e este é o escudo de que
vos conto. E depois que fez a cruz tal qual ainda
podeis ver, deu o escudo ao rei e disse-lhe:
— Vedes aqui a lembrança que vos deixo de
mim, porque sabeis bem que esta cruz é do meu
sangue. E sabei que sempre assim será fresca e
vermelha, bem como agora vedes, enquanto o
escudo durar; e não durará pouco, porque não o
deitará cavaleiro ao seu colo, que se mal não ache,
até a vinda do bom cavaleiro Galaaz, que será o
derradeiro da linhagem de Nascião, que o deitará a
seu colo. E por isso vos digo que nenhum será tão
valente que o a seu colo deite, senão aquele a quem
Nosso Senhor o tem outorgado. E como mais
maravilha haverá deste escudo que de outro, assim
haverá mais bondade de armas e de santa vida
naquele que o há de trazer do que em outro
cavaleiro.
— Pois assim é, disse o rei, que tão boa
lembrança aqui deixais de vós, dizei-me, se vos
aprouver, onde deixarei o escudo? Porque queria eu,
dc muito bom grado, que ele fosse posto em tal lugar, onde o encontrasse o bom cavaleiro, quando
viesse.
— Direi como fareis, disse Josefes. Lá onde
virdes que Nascião se mandará lançar à sua morte, lá
deixai o escudo. E lá chegará o bom cavaleiro, logo
ao quarto dia que a ordem de cavalaria receber.
E agora assim é, disse o cavaleiro branco a
Galaaz, que ao quarto dia que fostes cavaleiro,
viestes a este mosteiro onde jaz Nascião, e achastes
aqui o escudo. E agora vos contei por que as más
aventuras e as grandes aconteceram aos cavaleiros
que, por sua louca valentia contra esta proibição,
queriam levar o escudo que não estava outorgado
senão a vós.
56. Como o escudeiro rogou a Galaaz que o
fizesse cavaleiro. Assim que isto havia contado a
Galaaz, sumiu-se de tal modo que nunca soube
Galaaz o que fora dele, nem para qual direção se
fora. E quando o escudeiro, que estava diante de
Galaaz e tudo isto ouvira, viu que aquele que tudo
contara havia sumido, desceu do seu rocim, e foi
ficar de joelhos diante de Galaaz, e disse-lhe
chorando:
— Ai, senhor! Eu vos rogo, por amor daquele
Senhor cujo sinal trazeis em vosso escudo e que em
tal sinal recebeu a morte, que me recebais por vosso
escudeiro e me façais cavaleiro.
— Amigo, disse Galaaz, se eu quisesse
companhia de escudeiro, não recearia a vossa, mas
assim é que afastei de mim meus [64] es|cudeiros,
porque não quero companhia de mnguém, a não ser
por ventura, se me encontrar assim com alguém que
não possa ser diferente.
— Senhor, disse ele, fazei-me cavaleiro, por
Deus, porque vos digo lealmente, segundo Deus, não
já para me louvar, que pela ajuda de Deus, será em
mim bem empregada a cavalaria, de acordo com a
força e a valentia que tenho, e Deus, por sua
bondade, me fará bem fazer meus feitos.
IX
Galaaz e a aventura do mosteiro
57. Como Galaaz atendeu o pedido do
escudeiro. Galaaz olhou para o escudeiro e o viu
chorar tão copiosamente, como se visse a pessoa do
mundo que mais amava morta diante de si, e teve
por ele grande compaixão. E por isso lhe concedeu
que o faria cavaleiro.
— Senhor, disse o escudeiro, pois assim é que
me outorgais que me fareis cavaleiro, rogo-vos que
me tomeis à abadia, porque lá terei cavalo e armas, e
não volteis lá tanto por mim, como para ver uma
aventura que há lá que vós tereis pela maior
maravilha que nunca vistes; e como eu cuido, vós
lhe dareis cabo, porque nunca houve cavaleiro que a
ela pudesse pôr fim. E por isso seria bom voltardes
lá.
E ele disse que iria de boamente. Então
voltaram à abadia, e os frades saíram em sua direção
e receberam-no muito bem, e perguntaram ao
escudeiro por que voltara lá; e ele disse que voltava
para o fazer cavaleiro e para ver a aventura que lá
havia. E Galaaz, assim que desceu, perguntou se
poderia ver a aventura que ali havia.
— Senhor, disse um homem bom, bem a
podeis ver e nunca de tal maravilha ouvistes falar. E
vos direi como tempo há que houve aqui perto um
cemitério onde corpos de muitos homens bons e
muitos santos jaziam. E aconteceu que um pagão, o
mals desleal cavaleiro que nunca se viu na GrãBretanha e a mais endiabrada coisa do mundo, foi lá
enterrado. E logo que foi enterrado, quantos na
abadia estavam, viram logo os diabos sobre seu
túmulo, e começou de lá sair uma voz tão infeliz que
todo aquele que a ouvia podia perder a cor por muito
tempo. E por esta maravilha vieram aí muitas vezes
muitos homens bons e nunca houve um que se não
achasse muito mal, porque, assim que ouvia a voz,
não tinha força de se levantar do lugar; e alguns
havia que morriam; e alguns que viviam, mas estes
eram poucos.
[65] — Aquele túmulo queria eu ver, disse
Galaaz.
E ele disse que lho mostraria, e levou-o então
fora da abside da igreja e passaram por um
cemitério, depois mostrou-lhe num grande campo
ermo, uma grande árvore que lá havia e disse-lhe:
— Em baixo daquela árvore está o túmulo de
onde sai a voz que todo homem que a ouve perde o
sentido e fica desmaiado para sempre; e se lá quereis
ir e quer Deus que possais erguer a pedra, alguma
maravilha encontrareis lá em baixo dela, que é muito
grande verdade.
58. Como Galaaz acabou a aventura do
mosteiro. Depois disto, não esperou mais Galaaz,
mas foi logo ao túmulo; e assim que chegou lá,
ouviu logo uma voz de tão grande dor que maravilha
era, e dizia assim:
— Ai, Galaaz, servo de Jesus Cristo, não te
chegues a mim, porque me farás deixar este lugar
em que até agora fiquei.
Mas Galaaz isto ouviu, não se espantou, como
aquele que era mais esforçado do que outro
cavaleiro, e foi ao túmulo e quis erguer a pedra, e
viu sair uma fumaça, tão negra como pez, depois
uma chama, depois uma figura em semelhança de
homem, a mais feia e a mais estranha coisa que
nunca se viu, e persignou-se, porque bem lhe
pareceu coisa do diabo. Então ouviu uma voz que
lhe disse:
— Ai, Galaaz santa coisa em ti vejo; eu te
vejo cercado de anjos, que não posso resistir contra
ti. E por isso te deixo o meu lugar, em que longo
tempo folguei. Quando ele a voz ouviu, agradeceu
muito a Jesus Cristo e persignou-se e lançou a pedra
longe do túmulo e viu jazer no túmulo um corpo de
cavaleiro todo armado, e uma espada ao lado dele, e
quanto havia mister para cavaleiro, exceto cavalo e
lança. E quanto ele isto viu, chamou os frades e
disse-lhes:
— Vinde ver o que aqui achei, e me direis o
que ainda farei, porque farei mais, se mais devo
fazer.
E eles vieram e viram o corpo jazer no túmulo
e disseram:
— Senhor, bastante tendes feito e não convém
que mais façais, porque este corpo não será daqui
removido, como nós cuidamos.
— Sim, será, disse um homem velho que ali
estava, convém que este homem seja tirado deste
túmulo, porque, nesta terra abençoada e sagrada, não
deve tão desleal corpo e tão mau, como este era,
jazer.
— Amigos, disse Galaaz, fiz nesta aventura
quanto devia fazer?
— Sim, senhor, disseram eles, porque nunca
mais se ouvirá a voz de que tanto mal vinha.
[66] — E que interpretação podia ter esta voz,
disse Galaaz, e esta aventura? Porque sem grande
interpretação isto não podia ficar.
— Senhor, disse um homem bom velho, eu
vo-lo direi, e bem o deveis ouvir, porque muito
maravilhosa coisa é.
59. Como Galaaz fez Melias cavaleiro. Então
se afastaram do túmulo e voltaram ao mosteiro. E
Galaaz disse ao escudeiro:
—
Amigo, esta noite fazei vigília para
que de manhã sejais cavaleiro, assim como direito
costume.
E o escudeiro fez como ele mandou e ensinou.
E o homem bom levou Galaaz a uma câmara e o fez
desarmar e depois o fez deitar no leito e disse-lhe:
— Senhor, perguntastes-me pelo significado
desta aventura, a que hoje destes cabo. Eu vo-lo direi
de muito bom grado. Nesta aventura havia três
coisas mui duvidosas. Uma era a pedra do túmulo,
que não era muito fácil de erguer; a outra era o corpo
do cavaleiro; a terceira era a voz que todo homem
que a ouvia perdia o sentido e a força dos braços e
de todos os membros. Destas três coisas vos direi os
significados.
60. Significado da pedra. Sabei que a pedra
que cobria o túmulo representa os endurecidos
corações que Nosso Senhor achou no mundo quando
veio, porque na terra não encontrou senão corações
duros. E bem aparecia, porque o filho não amava o
pai nem o pai o filho, e por isso iam todos para o
inferno. Quando o pai dos céus viu que na terra era
tão grande a dureza dos corações, que os homens
não queriam guardar as palavras dos profetas e
faziam seus novos deuses, enviou à terra seu filho,
para que aquela forte dureza dos corações pudesse
amolecer para tornar os corações dos homens novos
e obedientes. Depois que ele chegou à terra, achou
os corações tão duros e tão envoltos nos pecados
mortais, que tão difíceis lhe eram de tornar a si, quão
difícil seria a alguém amolecer uma pedra muito
grande. Por isso disse ele pela boca de seu profeta
Davi: “Eu estou sozinho na minha paixão”; tanto
quer esta palavra dizer como se dissesse: “Pai, muito
pequena parte deste povo terei convertido até minha
morte.” Ora, é assim que aquela missão para a qual o
Pai‟enviou seu Filho à terra para livrar o povo, agora
está renovada. Porque assim como a discórdia e a
loucura fugiram com sua vinda, e a verdade, por ele,
ficou conhecida, bem assim vos escolheu Nosso
Senhor sobre todos os cavaleiros, para vos enviar
pelas terras estranhas, para destruirdes as difíceis
aventuras e para fazerdes conhecer como surgiram e
de que modo foram começadas. E por isso se deve
ensinar a vossa vinda como a de Jesus [67] Cristo,
quanto à semelhança, mas não em grandeza. E assim
como os profetas, muito tempo antes da vinda de
Jesus Cristo, profetizaram sua vinda e que ele
livraria o povo dos sofrimentos do inferno, bem
assim profetizaram os santos ermitães e também
muitos homens bons, a vossa vinda, muito tempo
antes que vós viésseis. E diziam bem todos que
jamais as aventuras do reino de Logres teriam fim,
enquanto não chegásseis. E tanto vos esperamos que,
agora, por graça de Deus, já o temos.
61. Significado do cavaleiro, o que demonstra.
— Agora dizei-me, disse Galaaz, o que dizeis
do cavaleiro? Que já muito bem me explicastes o
que demonstrava a pedra do túmulo.
— Eu vo-lo direi, disse o homem bom. O
corpo do cavaleiro nos faz entender o povo que
vivera sob aquela dureza dos corações muito tempo,
assim que eles eram mortos e confundidos por muitos pecados mortais que carregavam sobre si e
acrescentavam sobre si de dia em dia. E bem
aparecia que estavam todos confundidos quando
Jesus Cristo veio à terra. Porque eles, quando viram
entrar em seu meio o Rei dos reis e o Salvador do
mundo, não o conheceram, antes o tiveram por
pecador e cuidaram que era tal como eles e
acreditaram mais na voz do diabo do que nas outras
palavras, e justiçaram sua carne por ordem daquele
que todo o mal tem comandado — pelo diabo, que
lhes andava todo o dia no ouvido. E por isso fizeram
tal feito pelo qual depois Vespasiano os deserdou e
os destruiu, assim que ele soube a verdade daquele
profeta que eles justiçaram tão deslealmente. Assim
foram todos mortos e confundidos, porque
acreditaram no conselho do inimigo. Agora devemos
crer como esta semelhança de agora e de então se
ajusta no conjunto. Esta pedra que aqui está significa
a dureza dos corações, que Jesus Cristo achou nos
judeus e o corpo do cavaleiro significa os judeus e
todos os hereges, que estavam todos mortos pelos
pecados mortais, de que se não podiam livrar. A voz,
que do túmulo saía, significa a dolorosa palavra que
eles disseram a Pilatos, quando disseram: “O seu
sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.” Por
esta palavra foram confundidos, e foram destruidos e
ficaram desacreditados para sempre.
62. Significado do cavaleiro da paixõo de
Jesus Cristo. Assim podeis entender nesta aventura o
significado da paixão de Jesus Cristo e a lembrança
da sua santa vida. E outra coisa acontecia então
muitas vezes que os cavaleiros andantes vinham aqui
e queriam entrar no túmulo, e o diabo, que os
conhecia por pecadores e por envoltos nos pecados,
os espantava de tal modo que, pela voz [68] espan|tosa que fazia, eles perdiam a força dos corpos e dos
membros e jamais esta força, que perdiam, podiam
recuperar. Mas isto não ousou traduzir Robert de
Boron em francas de latim, porque os segredos da
santa Igreja não os quis ele revelar, porque não
convém que os saiba homem leigo. E, de outra parte,
tinha medo de revelar a demanda do santo Graal,
como a verdadeira estória do latim a conta, porque
os homens, enquanto não sabem, ao estudar, caem
em erro e em menosprezo da fé. E por isso, poderia
acontecer que seu livro fosse proibido, que ninguém
se utilizasse dele nem lesse, o que ele não queria de
modo algum; e por isso, promete uma terceira parte
do seu livro que exponha a demanda do santo Graal,
as cavalarias e as proezas que os cavaleiros da mesa
redonda fizeram naquela demanda, e as maravilhas
que nela acharam, e como o santo Graal se foi da
Inglaterra para a cidade de Sarras. E bem saibam
todos que a divindade do Filho sofria, o que não
convem, nem quer ele revelar, porque seria culpado
diante da santa Igreja. Mas quem isto quiser saber,
procure ver o livro do latim. Aquele livro vos fará
entender e saber inteiramente as maravilhas do santo
Graal; porque devemos louvar os segredos da santa
Igreja, nem direi mais, segundo o meu poder, do que
à estória convém, pois não convém ao homem
descobrir os segredos do alto Mestre.
X
Aventuras de Galaaz e de Melias
63. Como Melias pediu a Galaaz que fosse
com ele. Depois que aquele homem revelou a Galaaz
o significado daquela aventura que acabara, disse
que muito era a melhor interpretação que ele
revelara. Aquela noite, fizeram-lhe os frades muito
serviço, porque muito o prezavam e amavam. Antes
da hora de prima, fez Galaaz o escudeiro cavaleiro,
assim como era costume naquele tempo, e depois
perguntou-lhe qual era seu nome e ele disse que
tinha nome Melias e que era filho de rei.
— Amigo, disse Galaaz, pois sois de muito
juízo, guardai que seja empregada bem em vós a
cavalaria de modo que a honra de vossa linhagem
seja por vós levada à frente. Certamente, pois que
filho de rei chega a ponto de receber ordem de
cavalaria, deve-se adiantar em bondade de cavalaria
e em toda proeza a todos os outros cavaleiros, assim
como faz o raio do sol sobre as estrelas.
E ele disse que a honra da sua linhagem não
se perderia por ele porque pela dedicação de seu
corpo que ele punha a serviço da [69] cavalaria, não
deixaria de ser bom cavaleiro. Então pediu Galaa.z
suas armas para se ir dali e trouxeram-lhas e armou
Melias.
E disse-lhe Melias:
— Senhor, vós me fizestes cavaleiro, à merca
de Deus e à vossa. E por isso tive tão grande prazer
em meu coração que difidilmente vo-lo poderia eu
dizer. Porque, sem falha, o melhor cavaleiro do
mundo me deu armas. E vós sabeis que, segundo o
costume, quem faz cavaleiro novo não lhe pode
negar um dom, se vir que é razoável.
— É verdade, disse Galaaz.
— Senhor, disse ele, peço-vos pois, por favor,
que me deixeis ir em vossa companhia convosco
nesta demanda, até que a ventura nos separe: e se a
ventura nos ajuntar, que me não tolhais vossa
companhia.
E ele lho outorgou de bom grado. Então pediu
suas armas e, depois que foi armado, montou em seu
cavalo e encomendaram os monges a Deus e
andaram aquele dia e outro, sem aventura achar.
Assim que, uma segunda-feira, lhes aconteceu de
manhã, que chegaram a uma cruz de que partiam
duas carreiras. E aquela cruz estava na entrada de
um grande campo, e era de madeira muito velha, e
acharam um letreiro que dizia: “Ouve tu, cavaleiro
andante, que aventura demandar vens. Aqui há duas
carreiras, uma à direita e outra à esquerda. E a da
esquerda te proíbo eu. porque demasiado bom deve
ser o cavaleiro que nela entrar, porque, se bom não
fosse, não poderia sair dela sem grande dano. E da
direita não te digo tanto, porque não há nela tanto
perigo; mas, se nela entrares e não fores bom
cavaleiro, não acabarás lá nada.”
Quando Melias viu este letreiro, disse a
Galaaz:
— Senhor, por cortesia, deixai-me esta
carreira da esquerda, porque quero provar se há em
mim cousa pela qual deva ter mérito de cavalaria, se
vos aprouver.
— Certamente, disse Galaaz, eu iria por lá,que
saberia melhor dar cabo de alguma aventura; creio
que passaria por lá mais facilmente que vós.
E ele disse que, ainda assim, por lá queria ir, e
ele lho outorgou, pois viu que o muito rogava. E
então se abraçaram e encomendaram-se a Deus, e
cada um foi por sua carreira.
64. Mas ora deixa o conto a falar de dom
Galaaz e torna a Metias. Diz o conto que Melias se
separou de Galaaz e andou tanto tempo até que
passou aquele campo e chegou a uma floresta velha
e antiga que se estendia ao longo de duas jornadas; e
andou tanto por ela que chegou a uma ribeira e
encontrou muitas choças feitas e [70] duas tendas
armadas e formosas e bem feitas de pano de seda
vermelha. E entre as tendas, no meio, havia uma
cadeira muito formosa e muito rica e, naquela
cadeira, sentava-se um homem velho, mas não sei se
era cavaleiro ou não; mas tinha coroa de ouro tão
formosa e tão rica, como se fosse feita para algum
imperador. Sabei que dormia tão profundamente,
como se nunca tivesse dormido, mas não havia com
ele homem nem outra coisa, a não ser as tendas.
Quando Melias isto viu, chegou à cadeira, a cavalo
como estava, e lhe pareceu a mais formosa como
nunca vira. Mas quando viu que o homem bom
dormia, pensou como o despertaria, porque muito
lhe agradava saber de seus feitos, antes de retirar-se
e disse em alta voz:
— Amigo senhor, quem sois vós? Dizei-mo,
se vos aprouver.
E ele não respondeu nada; de novo chamou
outra vez com mais alta voz que antes. E ele dormia
tão profundamente; que se não despertou. E então
disse Melias dentro de si: “Ai! Deus, será este
homem rei? que nunca vi rei assim dormir; e pela
maldade que nele vejo, quero-lhe tomar a coroa,
porque cuido que nunca este homem foi rei, senão
de dormir.”
E então lhe tomou a coroa e a pôs em baixo de
seu braço esquerdo, e deixou-o dormir, e foi pela
floresta quanto se pôde ir a poder de cavalo.
65. Como Me/ias levou a coroa e como levou
a donzela de Amador de Belrepaire. E Melias indo
assim pela floresta, encontrou uma donzela, que
fazia grande lamentação por um cavaleiro, que havia
pouco que estava ferido, e a donzela era muito
formosa, e Melias gostou dela e perguntou-lhe por
que fazia tão grande lamento por aquele cavaleiro.
Disse ela que outro cavaleiro o feriu agora de morte,
que não pode cavalgar nem sair daquela floresta. E
Melias lhe disse:
— Donzela, o cavaleiro está morto e não o
podeis levar, e mais vale que o deixeis e vades a um
lugar a salvo, porque sei que, se aqui ficardes nesta
floresta, logo vos poderia vir algum mal.
— Não, senhor, disse ela, em deixá-lo aqui
farei grande mal, e muito a contragosto o farei,
porque muito me amava; mas, pois que, a ficar, a
mim não haveria senão mal, e ele, se eu ficasse, não
teria bem, irei convosco, porque tenho medo de
andar perdida por esta floresta.
— Donzela, disse ele, eu vos guiarei e vos
levarei a salvo.
— Senhor, disse ela, se isto soubesse, iria
convosco, porque bem vejo que deste cavaleiro não
posso ter ajuda, bem o cuido.
Então disse Melias:
— Parece-me perto de morto, mas ainda a
alma nele está.
[71] Então foi a donzela a seu palafrém, que
atara a uma árvore, e cavalgou e deixou o cavalo do
cavaleiro perto dele, que ainda o tinha pela rédea, e
tinha perto de si o escudo e a lança, e não estava tão
ferido que ainda não sarasse, se tivesse quem o
curasse, porque, sem falha, Boorz de Gaunes o ferira
tanto que estava desmaiado; mas o ferimento não era
assim tão grande. E ouviu bem o cavaleiro quanto
Melias e a donzela disseram, e soube que não era
Boorz aquele com quem ela se ia, e teve muito
grande pesar de que o deixara tão cedo a donzela,
antes que soubesse se estava morto.
66. Como Amador foi atrás de Melias. Então
se ergueu de onde estava e depois lançou seu elmo e
limpou seus olhos, que tinha cheios de sangue, e
depois ajeitou-se o melhor que pôde, como quem tinha grande força e grande ânimo, e cavalgou sobre
seu cavalo e foi atrás de Melias para se vingar, e
alcançou-o e gritou-lhe:
— Deixar vos convém a donzela, porque em
má hora a vistes.
Depois baixou a lança. E quando Melias o viu
vir, pôs a coroa numa árvore e voltou a ele e feriu-o
tão fortemente, que meteu a lança pelo cavaleiro; e o
cavaleiro que era muito forte, feriu Melias tão
fortemente que lhe quebrou o escudo e a loriga e
meteu-lhe pela costa esquerda o ferro da lança, e
caíram em terra tão feridos, que não houve quem
não tivesse necessidade de descansar e de quem o
curasse. E o cavaleiro levantou-se, porque era muito
forte de ânimo, e depois que viu que estava ferido de
morte, meteu mão à espada, e foi à donzela e disselhe:
— Eu estou por vós morto, e justo é que
morrais por mim, porque de outra maneira, estaria
mal vingada a minha morte.
E então pegou a espada e cortou-lhe a cabeça.
Depois que isto fez, não teve tão grande força que
pudesse montar no cavalo, nem ir a Melias, antes
caiu em terra tão ferido, que não cuidou sarar mais.
67. Mas ora deixa o conto a falar de Melias e
torna a Galaaz. Quando Galaaz se separou de
Melias, andou todo aquele dia sem aventura achar
que de contar seja. Aquela noite, chegou à casa de
uma viúva que morava no meio de uma floresta, que
o albergou muito bem e, aquela noite, lhe contou o
ermitão a vida e os feitos de sua linhagem, como
eram leais a Jesus Cristo e o grande amor que lhes
mostrava Jesus Cristo por seu serviço. De manhã,
ouviu missa e despediu-se da mulher e cavalgou e
andou até meio-dia. E então encontrou uma donzela,
que andava num palafrém negro, que lhe perguntou:
— Senhor, sois cavaleiro andante?
— Donzela, sim, sou, por que perguntais?
— Por uma mui grande maravilha, disse ela,
que vos agora direi que encontrei naquela floresta.
[72] — E que maravilha é? disse Galaaz.
— Eu achei agora mortos dois cavaleiros e
uma donzela, que tinha a cabeça cortada, e jazem
todos os três no meio do caminho, e, se quiserdes ir
por esta carreira por onde eu venho, vos levará a
eles.
— E é longe? disse ele.
— Não, disse ela: não há mais que dois
arremessos de besta.
68. Como Galaaz achou Melias ferido. E
então foi Galaaz para onde lhe disse a donzela e
achou o que buscava. E quando reconheceu Melias,
teve grande pesar, pois bem cuidava que estava
morto, e desceu e perguntou-lhe como se sentia. E
ele levantou a cabeça, e, quando o viu, ficou muito
alegre e disse:
— Ai! senhor dom Galaaz, sede bem-vindo.
Por Deus, levai-me a alguma abadia onde possa ter
meus direitos da santa Igreja, porque bem sei que
estou ferido de morte.
— Muito me pesa, disse Galaaz; e quem vos
feriu assim?
— Senhor, disse ele, aquele cavaleiro que jaz
ali, e bem creio que está muito ferido, tão mal como
eu ou pior.
— E aquela donzela, quem a matou? disse
Galaaz.
— Esse cavaleiro, porque vinha comigo, disse
ele.
Então foi Galaaz ao cavaleiro e tirou-lhe o
elmo, porque, se pudesse, queria saber quem era. E
depois que lhe tirou o elmo e o almofre, abriu o
cavaleiro os olhos que tinha cheios de sangue e falou
então e disse a Galaaz:
— Quem sois vós que me o elmo tirastes?
— Mas quem sois vós, disse Galaaz, que a
esta donzela fizestes tal crueza?
— Eu não fiz tanto quanto devera fazer,
porque estou morto e da minha morte terão muitos
grande pesar.
— E quem sois vós? disse Galaaz. Porventura,
sois da casa de rei Artur ou sois da mesa redonda?
— Sim, sou, disse ele, e parti com os outros
na demanda do santo Graal; mas assim me
aconteceu, por meus pecados, que estou morto, e
Deus dê melhor sorte aos outros do que a mim deu.
Quando Galaaz ouviu que era da mesa
redonda, teve grande pesar e teve medo que fosse
dos da sua linhagem de rei Bam. E por isso lhe
perguntou:
— Como tendes nome?
Então disse ele:
— Eu tenho nome Amador de Belrepaire.
E Galaaz reconheceu que era este o derradeiro
cavaleiro que entrara na demanda do santo Graal, e
pesou-lhe muito da sua morte, [73] porque o ouvira
elogiar na corte, de cavalaria e de cortesia. E disse-
lhe então:
— Amador, muito me pesa da vossa morte,
porque éreis bom cavaleiro.
E Galaaz, isto dizendo, estendeu-se sobre ele
com a dor da morte e disse:
— Ai, Jesus Cristo, Pai de piedade, não olheis
para os meus pecados, mas assim como um pai tem
piedade de seu filho, se o engana, assim tende vós de
mim como de vossa criatura e de vosso filho, ainda
que eu seja pecador.
Então ficou muito tempo assim, e Galaaz teve
tão grande pesar que começou a chorar.
E disse Amador outra vez a Galaaz:
— Galaaz, mui santa pessoa e mui santo
cavaleiro, roga por mim ao Rei dos reis, que tenha
merca de tal pecador como eu sou, porque sei, com
certeza que, se lhe pedires, terá de mim merca e ma
dará, porque ele atende o pedido do justo.
Assim que disse isto, saiu-lhe a alma do
corpo. Quando Galaaz viu que estava morto, tirou o
elmo e beijou-o, e isto fazia ele, porque era da mesa
redonda.
Depois que viu que estava morto, cerrou-lhe a
boca, depois foi a Melias e perguntou-lhe o que lhe
faria.
— Senhor, disse ele, levar-me-eis a uma
abadia, que há aqui perto; e se eu tiver que morrer,
que morra antes lá que em outro lugar no ermo; e se
tiver que sarar, depressa sararei.
Então o desarmou Galaaz e tirou-lhe o ferro
da ferida e atou-a o melhor que pôde. E quando o
queria pôr na besta, chegou Ivã, o
bastardo, e
assim que viu Galaaz, reconheceu-o, foi a ele e
saudou-o e perguntou-lhe a verdade como
acontecera, e maravilhou-se, e teve grande pesar do
cavaleiro, e disse:
— Certamente, muito grande pesar terá rei
Artur, quando souber da morte deste cavaleiro,
porque, sem falha, Amador de Belrepaire era um dos
famosos cavaleiros que havia na corte de rei Artur,
em bondade de armas.
E Galaaz disse:
— Agora me pesa mais da sua morte do que
antes, porque todo homem deve ter pesar da morte
de homem bom e, mais, de tão bom cavaleiro como
este companheiro da távola redonda.
69. Como Galaaz defendeu Melias dos
cavaleiros. Eles isto dizendo, eis que vêm dois
cavaleiros armados, que chegaram e perguntaram
qual era o cavaleiro que trazia o escudo branco e a
banda vermelha. E Galaaz disse:
[74] — Vede-o aqui.
E mostrou-lhes Melias, que estava lá; e os
cavaleiros disseram:
— Nós o andamos buscando, porque ele nos
tem feito tanto mal, que, se não está morto, matá-lo-
emos nós.
— Assim? disse Galaaz, certamente não o
fareis, porque o defenderei eu quanto puder.
Então meteu mão à espada; e eles que o viram
a pé, disseram-lhe:
— Cavaleiro, vós sois sandeu, porque quereis
vos matar de caso pensado. E cuidais poder conosco,
estando nós a cavalo e vós a pé?
E ele não respondeu ao que lhe eles disseram.
Então feriu o primeiro que alcançou, tão rijamente
que lhe cortou a metade da loriga com a coxa, assim
que o corpo caiu de um lado e a coxa do outro.
Quando o outro viu este golpe, não teve coragem de
o esperar: além disso, viu que seria loucura esperar
golpe de quem assim feria, e foi à coroa que viu
estar na árvore e tomou-a e voltou-se e começou a ir
quanto pôde. E Galaaz pôs Melias em seu cavalo e
depois foi depós ele e levou-o a um mosteiro que
ficava num vale, porque tinham medo dos ladrões,
pois havia muitos na floresta; e assim fez Ivã, o
bastardo, a Amador de Belrepaire, levou-o àquele
lugar para o enterrar em sagrado; e a donzela,
deixaram-na, porque a não puderam levar, e o conto
não fala mais dela. Mas diz do cavaleiro que foi
enterrado e foi seu nome escrito sobre o túniulo. E
Galaaz perguntou aos monges se havia lá alguém
que soubesse curar ferimentos.
— Senhor, disseram, sim, há.
E trouxeram um homem velho, que fora
cavaleiro. E ele olhou logo Melias, e disse que o
daria logo curado com a ajuda de Deus, e Galaaz
ficou muito alegre e esteve lá três dias depois.
(...)
LXXIX
Galaaz, Persival e Boorz na nave de Salomão
Sepultamento da irmã de Persival
614. De manhã, partiram a tal hora que não
viram rei Peles nem rei Peles a eles. E cavalgaram
muitas jornadas até que chegaram à beiramar e
acharam lá na praia a mui formosa nave, que Salomão e sua mulher fizeram e entraram e acharam
sobre o leito, que no meio da nave estava, o santo
Graal coberto de baixo de um rico pano de seda tão
formoso e tão rico, que era uma grande maravilha;
mostrou-o um ao outro e disseram:
— Que boa ventura nos aconteceu, pois temos
em nossa companhia o que desejávamos; com o que
vamos onde apraza a Nosso Senhor que tenhamos de
ficar.
E depois que estavam dentro da nave, o vento
a feriu tão violentamente, que a levou da praia e a
meteu em alto mar. Assim navegaram muito tempo,
que não sabiam onde Deus os queria levar; e toda
vez que se deitava e se levantava, Galaaz fazia sua
oração a Nosso Senhor, que a qualquer hora que lhe
pedisse sua morte, lha desse. E tanto fez esta oração,
que a santa voz lhe disse:
[464] — Galaaz, Nosso Senhor fará tua
vontade a respeito do que lhe pedes, porque à hora
em que lhe pedires tua morte, a terás e acharás a
vida da alma e a alegria perdurável.
Esta oração que ele fazia ouviu muitas vezes
Persival e pediu-lhe que dissesse por que tal cousa
rogava.
— Isto vos direi bem, disse ele.
615. Aquela hora que vimos uma parte das
maravilhas do santo Graal, que Deus nos mostrou
por sua piedade, vi umas coisas maravilhosas
escondidas, que não são mostradas a qualquer
pessoa. E vi tais coisas que língua não poderia
contar nem coração sentir, e meu coração ficou em
tão grande alegria e tão grande prazer, que, se então
morresse, nunca alguém teria morrido em tão grande
prazer como eu, porque vi tão grande companhia de
anjos e tantas coisas espirituais, que, se então
morresse, iria logo para a perdurável vida dos
gloriosos mártires e dos verdadeiros amigos de
Nosso Senhor. E por isso fazia eu o rogo que
ouvistes. E por isso ando ainda em tal estado que
morro, vendo as maravilhas do santo Graal.
Deste modo revelou Galaaz sua morte a
Persival como havia de ser, como lhe ensinou a
santa voz.
616. Aquela noite aconteceu que estava
dormindo Galaaz e veio a ele um homem muito
formoso, vestido de uns panos brancos, e disse-lhe:
— Galaaz, bem sei o que pensavas quando
adormeceste.
— E como o sabeis? disse Galaaz.
— Eu o sei bem, disse ele.
— Pois dizei-mo, disse Galaaz.
E ele respondeu:
— Pensas se voltarás ainda ao reino de Logres
ou se o santo Vaso lá voltará. Eu te digo que jamais
voltarás ao reino de Logres, nem Persival, mas
Boorz voltará; e jamais o santo Graal, que tanto bem
fez no reino de Logres, voltará lá, porque não o
veneraram lá nem serviram como deveriam, e, por
quanto bem dele tiveram, muitas vezes, não
deixaram de pecar; por isso serão privados dele de
modo que jamais o terão.
Deste modo soube Galaaz que o santo Vaso
não voltaria à Grã-Bretanha.
617. De tal modo como vos digo, perderam os
da Inglaterra o santo Graal, que tiveram muitas
vezes muito bem por ele, e foram muitas vezes
saciados por ele e, enquanto ele esteve no reino de
Logres, nunca houve fome na terra. Mas assim que
se retirou, começou tal [465] fome, que durou três
anos e foi tão grande, que morreu muita gente e o
sofrimento foi tão grande que, por pouco, não se
comiam os homens uns aos outros. E então
lembraram eles do santo Graal, e disseram que
tinham sofrido muito grande perda e lhes acontecera
por seu pecado e por sua desventura. E quando rei
Artur viu esta fome na terra, disse:
— Certamente, esta fome e aflição
merecemos nós por nosso pecado, e bem se mostra
pelo santo Graal; e assim como Nosso Senhor o deu
a José e aos outros homens bons, que de sua
linhagem vieram, por sua bondade e por sua proeza,
assim o tirou de nós por nossa maldade e por nossa
má vida, e por isso se pode ver que os maus
perderam por sua maldade o que os bons
mantiveram por sua bondade.
Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e de
toda sua companhia e torna aos três cavaleiros.
618. Muito tempo andaram os três cavaleiros
pelo mar e um dia aconteceu que foi Galaaz ao
convés da nave para saber se veria terra, e olhou e
viu a cidade de Sarras e mostrou-a aos outros e tiveram grande prazer sobejo porque, havia muito tempo
que não viam terra de nenhum lado. Então ouviram
uma voz que lhes disse: “Saí desta nave, cavaleiros
de Jesus Cristo, e tomai esta mesa de prata como
está, e levai-a à cidade, mas de nenhum modo a
ponhais na terra até que chegueis ao Paço Espiritual,
onde Nosso Senhor fez o primeiro bispo Josef.es.”
E eles queriam já pegar a mesa e olharam pelo
mar e viram vir uma barca, aquela em que meteram
a irmã de Persival. E quando a viram, disseram:
— Bem cumpriu esta donzela o que nos
prometeu.
619. E quando chegaram à praia, pegaram a
mesa e tiraram-na da nave, e pegaram-na pela frente
Boorz e Persival, e Galaaz na outra extremidade e
assim foram para a cidade, e quando chegaram à
porta, estava Galaaz um pouco cansado. Diante da
porta estava um paralítico, que ficava pedindo
esmola aos que passavam, e, quando tinha de andar,
apoiava-se em dois paus, e disse-lhe Galaaz:
— Homem, vem aqui e ajuda-me a levar esta
mesa e a poremos naquele paço.
— Ai, senhor, disse ele, isto não posso fazer,
porque há bem dez anos que não dou um passo sem
ajuda de outrem.
— Não importa, disse Galaaz, levanta-te e não
tenhas medo, porque estás são.
[466] E Galaaz isto dizendo, experimentou o
homem se poderia erguer-se e achou-se são como se
nunca tivesse tido mal. Então correu à mesa e
pegou-a da parte onde segurava Galaaz e, quando
entrou na cidade, disse a quantos achou o formoso
milagre que Nosso Senhor lhe fizera. E, quando
entraram no paço, puseram a mesa diante da rica
cadeira que Nosso Senhor fizera para Josefes, e logo
correram todos da cidade para ver o que fora
paralítico e estava são.
620. Depois que os três cavaleiros fizeram o
que lhes foi mandado, voltaram ao mar e tiraram a
donzela da barca e levaram-na ao paço e soterraramna lá tão ricamente como filha de rei deve ser soterrada. Quando Escorante, que era rei da cidade de
Sarras, viu os três cavaleiros, perguntou-lhes de
onde eram e o que traziam sobre a mesa de prata. E
disseram a verdade de quanto lhes perguntou e da
força e virtude que Deus na mesa pusera. Aquele rei
era bravo e desleal mais que qualquer outro do
mundo, como quem era da maldita linhagem dos
pagãos e não quis acreditar em nada de quanto
disseram, antes disse que eram mentirosos e
briguentos e esperou até que os viu desarmados e
mandou então pegá-los e deitá-los na prisão e lá os
manteve um ano. Mas deles não esqueceu Nosso Senhor, que logo meteu dentro o Graal com eles, pelo
qual foram saciados de quanto mister houveram,
enquanto estiveram na prisão.
LXXX
Morte de Galaaz e de Persival
Boorz volta ao reino de Logres
621. No fim do ano, aconteceu que fez Galaaz
esta oração a Nosso Senhor:
— Senhor, a mim parece que vivi já muito
neste mundo. Se vos aprouver, levai-me logo.
Aquele dia mesmo que ele esta oração fez, rei
Escorante estava doente de morte, e fez vir Galaaz
diante de si, e pediu-lhe perdão do que lhe fizera que
o afrontara tanto e tão sem razão. E ele e os outros
lhe perdoaram de muito bom grado, e, quando ele
morreu e foi enterrado, os da cidade ficaram em
grande aflição, porque não sabiam a quem fariam
rei, pois ele não tinha filho, e falaram isto muito
tempo, e estando em seu conselho, disse-lhes uma
voz: “Pegai o maior dos três cavaleiros estrangeiros,
o qual vos guardará e manterá bem, enquanto estiver
convosco.”
[467] E eles cumpriram a ordem da voz, e
pegaram Galaaz, querendo ou não, e fizeram-no rei,
e puseram-lhe a coroa na cabeça, querendo ou não e
desagradando-lhe muito, mas porque viu que o queriam matar se o não fizesse, concordou, e depois que
foi rei, fez fazer sobre a mesa, onde o santo Graal
estava, uma abóbada de ouro e de pedras preciosas
tão ricas, que nunca alguém viu tanto. E Galaaz e os
outros, cada vez que se levantavam, iam ao santo
Vaso e ficavam de joelhos diante dele e faziam suas
orações e suas preces.
622. Quando veio, no fim de um ano, o dia em
que ele tomara a coroa, levantou-se muito cedo e os
outros também. E quando entraram no Paço
Espiritual, olharam diante de si o santo Vaso, e
viram um homem revestido como clérigo de missa,
que estava de joelhos diante da mesa e batia a mão
no peito dizendo sua culpa; e estava ao redor dele
muito grande companhia de anjos; e, depois que
ficou muito tempo de joelhos, ergueu-se e começou
sua missa da gloriosa Senhora. E quando chegou
depois da secreta, que o homem bom tirou a patena
de cima do santo Vaso, chamou Galaaz e disse-lhe:
— Vem adiante, servo de Jesus Cristo, e verás
o que tanto desejaste sempre ver.
E ele se aproximou logo e olhou o santo Vaso
e depois que olhou um pouco, começou a tremer
muito violentamente, tão logo a mortal carne
começou a ver as coisas espirituais, e estendeu logo
suas mãos para o céu e disse:
— Senhor, a ti dou graças e a ti oro e a ti
bendigo, porque me fizeste tão grande merca, que
vejo abertamente o que língua mortal não poderia
dizer, nem coração sentir. Aqui vejo o começo das
grandes audácias. Aqui vejo a razão das grandes
maravilhas. E pois assim é, Senhor, que cumpristes
minha vontade de me deixardes ver o que sempre
desejei, ora vos rogo que, nesta hora em que nesta
grande alegria estou, vos agrade que eu passe desta
terreal vida e vá à celestial.
E tão logo rogou a Nosso Senhor, o homem
bom que cantava a missa tomou o Corpus Domini e
lhe deu em comunhão. E Galaaz o recebeu com
grande humildade e o homem bom perguntou:
— Sabeis quem sou?
— Não, disse ele, se não me disserdes.
— Pois sabe, disse ele, que sou Josefes, o
filho de José de Arimatéia, que Nosso Senhor te
enviou para te fazer companhia. E sabes por que me
enviou de preferência a Outro? Porque pareces
comigo em duas coisas: porque viste as maravilhas
do santo Graal [468] como eu, e porque é direito que
um virgem faça companhia a outro virgem.
Depois que Josefes disse isto a Gaiaaz, voltou
Galaaz a Persivai e beijou-o, e depois disse a Boorz:
— Saudai por mim muito a dom Lancelote,
meu pai e meu senhor, tão logo o vejais.
Então voltou para diante da mesa e ficou de
joelhos e não demorou senão pouco. Quando caiu no
chão, a alma se lhe saiu do corpo e levaram-na os
anjos fazendo grande alegria e bendizendo a Nosso
Senhor.
623. Tão logo ele morreu, aconteceu uma
grande maravilha, Boorz e Persival viram que veio
do céu uma mão, mas não viram o corpo de quem
era a mão, e tomou o santo Vaso e levou-o para o
céu com tão grande canto e com tão grande alegria,
que nunca alguém viu mais agradável coisa de ouvir,
assim como nunca houve quem na terra depois
pudesse dizer com verdade que alguma vez também
viu. Quando Persival e Boorz viram que estava
morto Galaaz, tiveram tão grande pesar que não
puderam maior, e se não fossem tão bons homens e
de vida boa como eram, cairiam em desespero, tanto
tiveram grande pesar. O povo da terra também teve
muito grande pesar, porque era de vida muito boa e
porque fora muito bom rei e porque os mantivera em
sua honra e honra da terra.
624. Dépois que Galaaz foi enterrado no paço
espiritual o mais honradamente que puderam os da
cidade de Sarras, Persival se meteu ermitão numa
ermida fora da vila, e pesou muito aos da vila, que já
haviam decidido que o fariam rei, mas ele não quis e
disse que Deus nunca o fizesse rei longe de seus
amigos e do reino de Logres. E Boorz foi para
Persival, mas não trocou a roupa do século, porque
tinha empenho em ir ainda à casa de rei Artur. Um
ano e dois meses viveu Persival na ermida. Então
passou deste século e o fez Boorz enterrar no Paço
Espiritual com sua irmã e perto de Galaaz. Quando
viu Boorz que havia perdido Galaaz e Persival e
estava em tão longínqua terra e tão estranha como se
estivesse em terra de Babilônia, teve tão grande
pesar, que não soube se aconselhar. E partiu de
Sarras tão escondidamente, que ninguém o pôde
saber, porque, se o soubessem, não o deixariam ir
pela boa cavalaria que nele conheciam. Quando
Boorz partiu de Sarras, veio até o mar armado e
entrou numa nave e teve tão bom vento, que em
pouco tempo chegou ao reino de Logres; e depois
que andou tanto, achou quem lhe desse cavalo; e
cavalgou e foi pelo mais curto caminho que
conhecia para Camalote. E quando chegou a quatro
jornadas [469] de lá, albergou em casa de um
montanheiro e achou lá um cavaleiro que chegara
pouco antes dele.
625. Depois que comeram, Boorz perguntou
ao cavaleiro estranho de onde vinha.
— Senhor, disse ele, venho de Camalote e não
há sete dias que de lá parti.
— E estava lá rei Artur? disse Boorz.
— Sim, disse ele; deixei-o na corte bem com
doze cavaleiros daquela linhagem, mas estavam
muito tristes e tinham muito pesar de Boorz de
Gaunes, que diziam que fora morto na demanda do
santo Graal, e de Galaaz, o bom cavaleiro, e de
Persival. Da perda destes três cavaleiros tinha rei
Artur grande pesar.
— Como vai, disse ele, na corte, a linhagem
de rei Bam?
— Muito bem, disse ele, fora duas coisas:
uma porque rei Artur tem queixa um pouco de
Heitor de Mares, que desafiou Galvão pela morte de
Erec, depois que voltaram da demanda do santo
Graal, e também pela morte de Palamades, e quer
provar que não deve ser cavaleiro nem ter a
companhia da távola redonda, e teria já acontecido a
batalha se dependesse de Heitor; mas a rainha e dom
Lanceloie meteram nisso paz, mas nunca depois se
amaram; a outra é que a linhagem de rei Artur está
condenada, e dizem em segredo, mas não sei se é
verdade, que dom Lancelote deita com a rainha e o
querem dizer ao rei para meterem mortal desamor
entre o rei e a linhagem de rei Bam.
— E que pensais disso? disse Boorz, assim
Deus vos salve, pensais que é verdade?
— Cuido, disse ele, tanto o ouço dizerem
muitos homens bons que merecem crédito.
626. Aquela noite, perguntou muito Boorz por
novas de sua linhagem. No outro dia, despediu-se de
seu anfitrião e do cavaleiro e andou tanto por suas
jornadas, que chegou a Camalote. Mas nunca por
alguém viram tão grande alegria num lugar, porque
muito era amado no reino de Logres por todos e por
todas. Mas o prazer que tinha a linhagem de rei Bam
não tinha par, porque consideravam que tinham em
seu bando um dos melhores cavaleiros do mundo. E
quanto agradara a eles, tanto pesara a Galvão,
porque a linhagem de rei Bam crescia. Rei Artur,
quando viu que Boorz estava já descansado dos
grandes trabalhos que tivera mandou-o vir um dia
diante dele e disse-lhe:
— Eu vos digo, pelo juramento que fizestes
quando daqui partistes, que me conteis todas as
aventuras recentes pelas quais passastes nesta
demanda em que tanto demorastes.
[470] E Boorz, que era bom e de vida boa e
não perjuraria de modo algum, disse todas as
aventuras de que se lembrou que tivera, e como
Galaaz e Persival tinham morrido. E sabei que se
estivésseis ouvindo tudo aquilo, veríeis chorar
muitos homens bons e muitos bons cavaleiros,
quando ouviram como morreram Galaaz e Persival.
Rei Artur fez escrever todas as aventuras que Boorz
lhe contou. E sabei que estes três cavaleiros foram
os mais louvados da demanda:
Galaaz, Boorz e Persival. E Boorz se
intrometeu em meter paz entre Heitor e Galvão, mas
não podia ser, porque Heitor era de ânimo muito
forte e não podia concordar em nada que fosse a
favor de Galvão, porque o tinha por desleal, e amava
tanto Erec, que não podia esquecer sua morte, e dizia
que ainda seria vingado. Que vos direi? Boorz
demorou na corte até perceber que Lancelote amava
a rainha e pesou-lhe muito. Mas sabei que o
cavaleiro de sua linhagem a quem mais pesava este
feito era Leonel, porque era mais sisudo do que
muitos, e quando se afastava com sua linhagem para
onde não havia outro, dizia:
— Pesar e dano nos advirão deste amor e em
má hora foi começado. Tanto manteve já Lancelote
este amor, que não há cavaleiro em casa de rei Artur,
que algo não tenha ouvido a respeito, e não o
encobrem ao rei, senão pelo pavor que têm da
linhagem de rei Bam, porque sabem que o não dirá
tal que morte não sofra. E os homens da casa de rei
Artur que melhor o sabem sao Galvao e seus irmãos,
mas não o querem dizer, porque entendem que nascerá disso grande mal.
Mas ora deixa o conto a falar das novas que
trouxe Boorz àcorte, de Galaaz e de Persival e do
santo Graal e da condenação da rainha e de
Lancelote, e torna a Agravaim, por contar de que
modo descobriu Lancelote e a rainha contra o rei.
LXXXI
É revelada a rei Artur a deslealdade de
Lancelote
627. Um dia, diz o conto que os irmãos se
apartaram numa câmara e falavam mal do preito da
rainha e de Lancelote; e Galvão, que era mais sisudo
que os outros, disse:
— Calai-vos, porque não há mister, porque se
o dissermos ao rei, tal guerra poderá daí nascer, pela
qual mais de sessenta mil homens poderiam morrer,
e com tudo isto poderia não ficar nossa desonra
vingada, porque sobejaniente é grande a força da
linhagem [471] de rei Bam e Deus os pôs em tal
honra e em tal poder, que não cuido que possam ser
derrubados por alguém, e por isso deixemos isto,
porque muito grande desgraça sobejo poderia advir.
E não digo isto porque não queira mais mal à
linhagem de rei Bam do que poderíeis cuidar, e, se
dependesse de mim, veríeis o que eu mostraria.
628. Depois que isto Galvão disse, respondeu
Gaeriete:
— Como quer que digais isto entre nós, não
concordo que por nós lhes sobrevenha mal, porque
são todos muito bons homens e de muito ânimo e
nosso senhor, o rei, os pôs em tão grande honra e em
tão grande poder, de que só por homens não podem
ser derribados, pelo que vos digo que vos guardeis
de começar guerra contra eles, porque são tão bons
cavaleiros e têm tantos amigos que logo nos
poderiam sobrevir grande mal e muito grande
desonra e, porventura, o reino de Logres seria
destruido.
Com isto concordaram Galvão e Gaeriete,
mas os outros três não, antes disseram que o fariam
saber ao rei e queriam antes ser mortos do que
suportarem mais tão grande angústia de seu senhor e
sua.
— Ai! disse Gaeriete não o façais, porque se o
fizerdes, comprareis vossa morte e a nossa. Ora
olhai que não podeis ver em toda a linhagem de rei
Bam cavaleiro que não valha dois dos outros e estão
tão armados que, se hoje quisessem daqui partir,
veríeis que mais da metade dos cavaleiros da távola
redonda iria com eles. E não é jogo da graça que
Deus lhes deu, antes grande maravilha como já
metem todo o mundo sob seu poder, e o farão, sem
falha, se longamente viverem. E por isso vos
aconselho, por Deus e por vossa honra, que vos
guardeis, e isto mantende em segredo, assim como
amais vossos corpos.
Mas eles não concordaram com nada do que
lhes dissessem.
629. Eles nisto falando, entrou o rei e ouviu o
que dizia Galvão a Agravaim:
— Calar, disse; e nada mais.
— Meu senhor e meu irmão dom Galvão,
assim Deus me ajude, não calarei, antes o direi ao
rei, se Deus ainda me ajudar.
E o rei, que isto ouviu, aproximou-se e disse:
— Agravaim, o que é que me direis?
— Senhor, disse Galvão, não é senão bem;
deixai-nos; isto não é conosco.
— Ainda assim, disse o rei, quero saber.
— Senhor, disse dom Gaeriete, não vos
importeis; já por meu conselho, não sabereis mais,
porque por saber alguém tudo, nenhum [472] bem
pode sobrevir. E sabei que Agravaim não diz senão a
maior chufa e a maior mentira.
— Por Santa Maria, disse o rei, sabê-lo quero
eu. Eu vos digo, pelo compromisso e pelo juramento
que me fizestes, que me digais.
— Senhor, disse Galvão, maravilha é que
sempre vos enfureceis por saber novas. Sabei que
não sabereis por mim nem por Gaeriete. E se alguém
vos disser, mal lhe sobrevirá e a vós pior.
— Assim? disse o rei. Ora quero saber por
esta cabeça, de qualquer jeito.
À boa ventura, disse Galvão, porque, se Deus
quiser, por mim não o sabereis, porque não poderia
sobrevir daí proveito nem honra para mim nem para
outrem, e, sem falha, ganharia no fim vosso
desamor, de modo que me quereríeis daí pior que
qualquer outro, porque assim sucede de tal coisa.
Então saiu da câmara e Gaeriete com ele,
ambos com muito grande pesar, e disseram que em
má hora fora esta conversa começada, porque, se o
rei souber e se pegar com Lancelote, o reino de
Logres será destruído, porque outra coisa não pode
ser. O rei ficou com seus três sobrinhos, fechou a
câmara e virou para eles e disse-lhes:
— Dizei-me o que ora antes faláveis.
— Assim Deus me ajude, disse Agravaim,
não vos direi a respeito mais nada.
— Por Santa Maria, sim, fareis, disse o rei.
E foi muito rápido correndo a uma espada e
sacou-a da bainha e disse-lhe:
— Ou me direis, ou estais morto.
E ergueu a espada para lhe dar um golpe, e
ele, com pavor, disse:
— Ai, senhor, parai, vo-lo direi.
Então lhe contou o que falavam e disse que
era verdade. O rei ouvira já alguma vez dizer que
Lancelote amava a rainha, mas não o podia crer,
tanto o amava sobejamente, pelo que vezes houve
que respondeu deste modo aos que lhe diziam:
— Por certo, se é que Lancelote ama Genevra,
bem sei que não é por sua vontade, mas a força do
amor o força, que costuma fazer da pessoa mais
sensata do mundo sandeu e do mais leal cavaleiro
desleal, e por isso não sei que vos diga, porque não
cuidava de maneira alguma que tão bom cavaleiro
como ele soubesse cometer traição.
630. Isto disse o rei de Lancelote, que não
podia crer que fosse verJade. Mas aquela hora que
os sobrinhos lhe foram testemunhas teve disso pesar
superior a todos os pesares, porque ele amava a
[473] rai|nha tão desmedidamente, que mais não
podia. Então começou a pensar e ficou muito tempo
sem falar. E Morderete lhe disse:
— Senhor, nós vo-lo encobrimos o quanto
pudemos, e ora vo-lo dizemos contra nossa vontade.
Ora fazei o que vos parecer e que não venha mal a
nossa terra e a nossos amigos.
— Como quer, disse ele, que disso
sobrevenha, eu me vingarei de modo que sempre a
respeito falarão, e, se me quereis bem, rogo-vos que
me apoieis nisso.
E eles lhe prometeram que o fariam, e o rei
lhes prometeu que faria tal justiça que sempre ele e
sua linhagem ficassem honrados. Então saíram da
câmara e foram ao paço, mas bem demonstrava o rei
que andava sanhudo.
631. Todo aquele dia ficou o rei muito triste.
E aconteceu, à hora de noa, que entraram no paço
Galvão e Gaeriete, e quando viram o rei triste, logo
perceberam que sabia já os feitos de Lancelote e da
rainha, e por isso não foram por onde o rei estava,
mas por outro lugar. E Gaeriete disse a Galvão:
— Mau dia hoje chegou a Camalote. Se
alguma vez conheci o orgulho da linhagem de rei
Bam, o reino de Logres pagará isto que ao rei foi
dito.
Todos os do paço estavam calados, que não
ousavam falar, pelo rei que viam triste, afora aqueles
cinco irmãos. Depois entrou um cavaleiro, que disse
ao rei:
— Senhor, novas vos trago do torneio de
Carais, onde os do reino de Sorelois e dà terra Gasta
foram vencidos.
— Ora me dizei, disse o rei, dos cavaleiros
daqui esteve lá algum?
— Sim, disse ele, Lancelote esteve, que os
venceu a todos e levou por isso o apreço e a fama de
uma parte e da outra.
Quando o rei isto ouviu, baixou a cabeça e
começou a pensar muito profundamente e, ao cabo
de muito tempo, ergueu-se tão triste e tão
angustiado, que não podia mais e disse tão alto que o
podiam todos ouvir muito bem:
— Ai, Deus! que aflição e que dano, quando
em tal homem albergou traição!
E foi para sua câmara e deitou-se em seu leito
tão triste e tão aflito, que não soube o que fizesse,
porque bem sabia que, se Lancelote fosse morto ou
preso neste preito, nunca tão grande mal haveria pela
morte de um cavaleiro do mundo, mas antes queria
que morresse, do que sua desonra não ser vingada.
Então mandou chamar seus sobrinhos e disse-lhes:
— Quero que deis cabo e proveis este feito.
[474] E eles disseram:
— Senhor, em vosso alcance está e vos
diremos como pode ser. Dizei, à noite, a vossos
companheiros, que quereis ir de manhã àcaça, mas
não leveis Lancelote convosco, e bem sabemos que,
se ficar aqui, irá à rainha e o espreitaremos.
— E o rei concordou com aquele conselho.
Sobrevieram Galvão e Gaeriete e, quando viram que
falavam nisto, disse Galvão ao rei:
— Senhor, Deus faça que deste conselho
venha bem a vós e a outrem, porque, certamente,
temo que venha dele muito mal. Agravaim, meu
irmão, rogo-vos que não façais nada a que não deis
fim, e nada digais de Lancelote, que não sabeis
verdadeiramente, porque, certamente, ele é muito
melhor cavaleiro que vós.
— Galvão, Galvão, disse o rei, fora daqui,
porque jamais confiarei em vós, porque muito mal
me andastes neste feito, que sabíeis de minha
desonra e não me queríeis dizer. Certamente, quem.
examinasse bem vos devia fazer como a desleal e
traidor.
— Senhor, disse ele, direis o que vos
aprouver, mas traição nunca em mim vistes, e se
traição fiz, nunca foi a vós nem em vosso dano.
Então saiu da frente dele e disse:
— Agravaim, nada daria por isso, mas sei
verdadeiramente que há de vir grande mal, e muitos
homens bons que nunca dano mereceram, morrerão
por isso.
— Ora, ainda que sobrevenha bem, disse
Gaeriete ao rei e a vós, meu irmão, jamais me
esforçarei neste preito, porque sei verdadeiramente
que nunca alguém se pegará com a linhagem de rei
Bam, que a bom termo possa chegar.
— Por Deus! disse Galvão, não há homens no
mundo que eu tanto desame. Mas são tantos e tão
bons, que lhes prejudica muito pouco meu desamor.
E por isso os deixo até que veja minha força.
632. Então saíram da câmara e foram à
pousada de Gaeriete. E indo pela vila, acharam
Lancelote e Boorz e Leonel e Heitor e Bliobleris
com grande companhia de cavaleiros, e receberamse muito bem e com grande alegria, e Gaeriete disse
então a Lancelote:
— Eu vos rogo que esta noite passeis em
meus aposentos, e sabei que vo-lo digo em vosso
proveito.
E ele concordou. Então voltou Lancelote com
ele e foram àpousada e desarmaram-se; depois, à
tarde, foram ao rei, e estando às mesas, disse o rei a
todos os cavaleiros que, no dia seguinte, queria ir à
caça. E Lancelote disse:
— Senhor, eu vos farei companhia, se vos
aprouver.
[475] — Não, disse o rei, porque tendes mais
necessidade de descansar que de caçar, porque
chegastes hoje cansado do torneio, por isso quero
que fiqueis.
E ele não ousou contrariar a ordem do rei e
disse que ficaria, mas bem entendeu que o rei não
lhe fazia gesto de amor nem de bom cavaleiro como
costumava, e maravilhou-se do que seria, porque não
julgou que tivesse sido denunciado.
À noite, quando voltaram à pousada de
Gaeriete, disse a Boorz:
— Vistes que atitude teve comigo hoje o rei?
Não acreditarei em nada, senão que está com raiva
de alguma coisa.
— Sabei verdadeiramente, disse Boorz, que
recebeu novas de vós e da rainha. Ora cuidai do que
faremos, pois estamos numa guerra, que, por muito
tempo, não acabará. Deus no-la faça bem acabar,
porque o rei Artur é muito temido.
— Ai, Deus! disse Lancelote, quem foi tão
ousado que disse estas novas ao rei?
— Se foi cavaleiro, disse Boorz, foi
Agravaim; e se foi mulher, foi Morgana, que vos
desama tão mortalmente como sabeis. Nenhuma
outra pessoa ousaria dizer, senão uma destas.
No outro dia, disse Galvão a Lancelote:
— Eu e Gaeriete com estes outros cavaleiros
queremos ir à caça; quereis ir?
— Não, disse ele, porque não tenho hoje
vontade de ir desta vez. Então foram atrás do rei e
ele ficou.
633. Assim que rei Artur foi à caça, mandou
dizer a rainha a Lancelote que fosse a ela, no çaso de
ele não ter mais o que fazer, e ele ficou muito alegre
e disse-lhe que iria o mais escondidamente que
pudesse, e aconselhou-se com Boorz como o poderia
fazer.
— Ai, senhor! disse Boorz, por Deus, não
vades, porque se fordes, pesar vos sobrevirá, porque
meu coração, que nunca teve medo por vós, o diz.
E ele disse que de nenhum modo deixaria de
ir.
— Senhor, disse ele, visto que não quereis
ficar, ensinarei como ir lá escondidamente. Vedes
aqui uma horta pela qual podeis ir, e ninguém vos
verá. Mas ainda assim levai vossa espada, porque
ninguém sabe o que pode acontecer.
E assim fez ele, e foi à câmara da rainha. Mas
bem sabei que Morderete e seus irmãos com muitos
outros cavaleiros seguiam seu caminho. Assim que
ele entrou na câmara, deitou-se com a rainha, mas
não ficou muito que vieram à porta os que
espreitavam, e acharam-na fechada e disseram:
— Agravaim, que faremos? Arrombaremos a
porta?
[476] — Sim, disse ele.
E, ao baterem à porta, ouviu-os a rainha e
levantou-se toda intimidada e disse a Lancelote:
— Ai, amigo! estamos mortos.
— Como? disse ele, que é isto?
E escutou e ouviu à porta grande rebuliço e
grandes brados de pessoas que queriam arrombar a
porta.
— Ai, amigo! disse ela, ora saberá o rei meus
feitos e os vossos. Tudo isto nos preparou Agravaim.
— Assim Deus me ajude, disse ele, eu lhe
urdirei por isso a morte.
Então se levantou.
— Ai, senhora, disse ele, há aqui alguma
loriga?
— Certamente, disse ela, não, porque apraz a
Deus que morramos ambos. Mas se aprouvesse a
Deus que escapásseis daqui são, não haveria quem
ousasse me matar sabendo que estais vivo; mas
cuido que nosso pecado nos destrói.
Então foi Lancelote à porta e gritou aos que
fora estavam:
— Maus cavaleiros e covardes, esperai um
pouco, porque logo tereis a porta aberta, e verei qual
será o valente que entrará primeiro.
Então abriu a porta e disse:
— Ora entrai.
E um cavaleiro que tinha nome Einaguis,
entrou primeiro, porque desamava Lancelote. E
Lancelote, que tinha já a espada levantada, feriu-o
com toda sua força, que lhe não prestou arma que
trouxesse, que o não fendesse todo até as espáduas, e
o meteu morto no chão. E quando os outros viram
este golpe, não houve alguém tão valente que
quisesse entrar, antes se afastaram, de modo que a
entrada ficou livre. Quando isto viu, disse à rainha:
— Senhora, esta guerra está acabada. Quando
vos aprouver, irei.
E ela disse:
— Se fordes a salvo, não temerei por mim.
Então puxou Lancelote o cavaleiro que matara
e fechou a porta para não entrarem os outros e
desarmou-o e depois armou-se com aquelas armas o
melhor que pôde e disse à rainha:
— Senhora, agora posso ir, se Deus quiser, a
salvo, porque de quantos aqui me aguardam me
livrarei muito bem, como cuido.
— Pois ide, disse ela, e pensai em mim,
porque bem sei que logo terei mister de vossa ajuda.
— Convém que eu vá, disse ele, mas se vos
aprouver, levar-vos-ei, porque não há alguém aqui
por quem vos deixe.
[477] — Isto não quero eu, disse ela, porque
assim logo seriam nossos feitos mais conhecidos;
mas melhor o disporá Deus.
Então abriu as portas Lancelote, e disse que
não queria mais ficar preso, e feriu o primeiro com
um tão grande golpe, que caiu no chão desfalecido; e
os outros, que isto viram, afastaram-se, e não houve
quem o caminho não lhe deixasse. E Lancelote foi à
horta e da horta à pousada, e achou numa câmara
Boorz, que tinha medo de que ele não voltasse,
porque bem lhe dizia o coração que os da linhagem
de rei Artur o pegariam com a rainha, se pudessem.
634. Quando Boorz viu armado seu senhor,
que fora desarmado, logo entendeu que havia
acontecido alguma briga e perguntou-lhe a respeito.
E ele lhe disse tudo, como Agravaim e Morderete e
Guerrees quiseram pegá-lo com a rainha, com
grande companhia de cavaleiros, mas se defendera
de modo que não puderam pegá-lo.
— Ai, senhor! disse Boorz, ora vai mal, agora
está o preito descoberto, agora começará a guerra
que nunca acabará, e quanto vos amou o rei até aqui
mais de coração que a qualquer outro que de sua
linhagem não fosse, tanto vos desamará daqui para
frente, depois que souber verdadeiramente a afronta
que lhe fizestes com sua mulher. Ora vede o que
possamos fazer, porque bem sei que de hoje em
diante o rei será nosso mortal inimigo. Mas pela rainha, que será por nós julgada de morte, muito me
pesa, e de bom grado queria que tivéssemos
conselho como escapasse.
A este conselho sobreveio Heitor e pesou-lhe
muito, quando soube como estava a contenda, e
disse:
— Senhor, já que é assim, vamos àquela
floresta e escondamonos; e quando a rainha for
julgada de morte, levá-la-ão fora da vila para a
queimarem. Então sairemos e a livraremos e a
levaremos a Benoic ou a Gaunes; e depois não
recearemos o rei.
Com esta idéia concordaram Lancelote e
Boorz e logo cavalgaram eles e vinte e sete
cavaleiros muito bons que lá estavam, e depois que
partiram de sua pousada, foram à floresta e
meteram-se pela beira dela onde a viram mais
espessa e lá ficaram até a noite. Então chamou
Lancelote um seu donzel e mandou-o a Camalote
para saber novas da rainha, e o donzel se despediu
deles e cavalgou em seu rocim e foi ao paço.
Ora deixa o conto a falar dele e torna aos três
irmãos de quem Lancelote se separou.
635. Diz o conto que, àquela hora em que
Lancelote escapou daqueles que o queriam pegar
com a rainha, entraram eles na câmara e pegaram a
rainha e fizeram-lhe muita desonra e muito pesar, e
[478] disseram-lhe que estava agora a sua traição
provada e que agora morreria. E ela chorava tão
sentidamente, que bem deveriam dela ter dó os que a
levavam.
Hora de noa, chegou o rei da caça, e assim
que apeou, logo lhe disseram novas da rainha, que
acharam com Lancelote e estava presa. Quando ele
isto ouviu, teve grande pesar, isto não pergunte
ninguém, e perguntou se Lancelote estava preso.
— Senhor, disseram eles, não, porque se
defendeu tão violentamente como nunca alguém se
defendeu.
— Pois que, disse o rei, não está aqui, achálo-eis em sua pousada. Mandai armar cavaleiros e
ide e prendei-o e trazei-mo, e farei justiça dele e da
rainha juntos.
Então foram-se armar bem trinta cavaleiros e
não de boa vontade, mas porque o rei ordenou, e
foram à pousada de Lancelote, mas não o acharam, e
não houve quem ficasse muito alegre por isso,
porque bem sabiam que achariam nele defesa
mortal. Então voltaram ao rei e lhe disseram, e o rei
disse que lhe pesava, mas, visto que não podia
vingar-se em Lancelote, vingar-se-ia na rainha. O rei
Iom lhe disse:
— Senhor, o que quereis fazer?
— Quero, disse ele, por esta deslealdade,
fazer dela tal justiça, que todas as outras sejam
castigadas. E mando a vós, rei Iom, primeiramente,
porque sois rei, e a todos os ricos-homens também
que aqui estão, e rogo-vos pela fé que me deveis,
que cuideis de qual morte deve morrer, porque da
morte não deve escapar, ainda que o julgásseis.
— Senhor, disse rei Iom, não é direito
costume nesta terra proferir juízo depois de noa,
sobretudo de morte de homem ou de mulher, e
acima de tudo, de tão alta dama como é a rainha.
Mas amanhã cedo, se mandardes, o faremos.
Então deixaram de falar nisso e o rei teve tão
grande pesar, que todo aquele dia não comeu nem
bebeu, nem quis que a rainha ficasse diante dele.
636. De manhã, hora de prima, assim que os
ricos-homens foram reunidos, ordenou o rei a
Morderete e Agravaim e a todos os ricos-homens
que dissessem o que haviam de fazer com a rainha
por direito juízo. E eles emitiram veredicto e
disseram Agravaim e Morderete:
— Este é o julgamento correto e não há outro:
visto que, em lugar de tão alto homem como rei
Artur meteu outro cavaleiro, deve ser queimada.
[479] Com isto concordaram todos ou por
vontade ou por força. Quando Galvão viu que davam
tal julgamento, disse:
— Se Deus quiser, nunca concordarei com tal
julgamento, em que veja a morte da mulher do
mundo que mais honra me fez.
Então foi ao rei e disse-lhe:
— Senhor, deixo-vos quanto de vós tenho, e
jamais, enquanto viver, vos servirei.
O rei não ligou a nada que lhe dissesse,
porque muita outra coisa tinha em seu coração. E
Galvão despediu-se dele e foi a sua pousada,
fazendo o maior pranto do mundo. E o rei mandou
fazer muito grande fogueira fora da vila no campo, e
as lamentações e os prantos foram tantos e tão
grandes pela vila, como se a rainha fosse mãe de
todos. O rei mandou buscar a rainha, que viesse à
sua frente, e ela veio chorosa, vestida de um pano de
seda vermelho. E ela era tão formosa mulher e tão
agradável, que no mundo não se acharia outra em
sua idade. E quando o rei a viu, teve dela tão grande
dó, que não podia deter nela o olhar, e mandou que a
levassem de sua frente e lhe fossem fazer aquilo a
que a condenaram.
637. Assim que a rainha saiu do paço e a
levaram pelas ruas da vila, veríeis correr de todas as
partes e sair moços e moças e velhos e velhas e ricos
e pobres gritando e bradando e fazendo a maior
lamentação do mundo, e diziam todos a uma voz:
— Ai, boa senhora e de boa aparência e mais
cortês e mais educada que outra mulher, em quem
acharão depois os mais pobres conselho e piedade?
Ai! rei Artur, que a fazes por deslealdade e bravura
matar, pesar ainda te sobrevenha e sejas por isto
destituído do reino, e os traidores que te levaram a
fazer ainda morram de má sorte!
Assim diziam todos os da vila, quando
passava por entre eles; e depois iam todos atrás dela,
gritando como se estivessem fora de juízo.
LXXXII
Lancelote arrebata a rainha
O sofrimento de rei Artur
638. O rei ordenou a Agravaim e a seus
irmãos que pegassem oitenta cavaleiros para guardar
o campo onde a fogueira estava, de modo que, se
Lancelote viesse, não a pudesse livrar.
— Senhor, disse ele, se quiserdes que eu vá,
ordenai a meu irmão Gaeriete que vá conosco.
[480] E o rei ordenou, e Gaeriete disse que
não o faria, mas tanto o ameaçou o rei que disse que
iria. Então armou-se e todos os outros que Agravaim
escolheu e Agravaim também se armou. E depois
que ficaram armados e saíram da vila, disse Gaeriete
a Agravaim:
— Imaginais que venho aqui para me pegar
com Lancelote, se ele socorrer a rainha? Sabei que
não me esforçarei por isso porque, assim Deus me
ajude, antes queria que outra coisa ele tivesse,
enquanto vivesse, do que morte aqui.
Assim falando, chegaram à fogueira. E
Lancelote, que estava escondido na floresta, assim
que viu seu donzel chegar, perguntou-lhe:
— Que novas trazes da rainha?
— Senhor, disse ele, más, porque a trazem
para ser queimada.
— Assim? disse ele. Ora cavalguemos, porque
quem cuida matála morrerá por isso. E praza a Deus,
se alguma vez ouviu oração de pecador, que ache lá
Agravaim que armou isto.
Então montaram e contaram-se e acharam
trinta e três, e foram muito bem armados o mais que
puderam para onde viram o fogo. E quando as
pessoas que estavam no campo os viram vir, gritaram aos que guardavam a rainha:
— Fugi, fugi! Vedes aqui Lancelote que vem
libertar a rainha.
E Lancelote, que vinha à frente dos outros,
deixou-se correr para Agravaim, porque bem o
reconheceu por suas armas, e feriu-o tão
violentamente, que lhe não valeu escudo e loriga,
que não metesse a lança por ele, de modo que o ferro
apareceu da outra parte, e meteu-o por terra, e, ao
cair, quebrou-lhe a lança. E Boorz se deixou ir a
Guerrees e feriu-o com uma lançada, que o meteu
em terra de tal modo que não houve mister mestre. E
os outros, que com Lancelote vinham, foram ferir os
outros e derribaram muitos deles; depois, meteram
mão às espadas e começaram sua luta muito brava e
muito feroz. Mas quando Gaeriete viu que seus
irmãos estavam por terra, ficou muito sanhudo,
porque bem cuidou que estavam mortos. Então se
deixou ir a Meliaduz, o negro, que se esforçava
muito por ajudar Lancelote e por vingar a honra da
rainha, e deu-lhe uma tal lançada, que deu com ele e
o cavalo na fogueira; e depois meteu mão à espada e
feriu outro com tal golpe, que o meteu morto aos pés
de dom Lancelote. E quando este, que muito
observava Gaeriete viu que lhes fazia tal dano, disse
consigo mesmo que, se muito durasse, muito os
atrapalharia, e por isso mais valeria o matarem, se
pudessem, embora fosse o cavaleiro da corte que os
da linhagem de rei Bam mais amavam. Então foi
dar-lhe tão forte espadada, que lhe deitou o elmo da
cabeça no chão. [481] E quando ele sentiu a cabeça
descoberta, ficou todo espantado. E Lancelote, que
ia de uns a outros e andava correndo as fileiras de
uma parte e da outra e não o reconhecia, feriu-o tão
violentamente por cima da cabeça, que o fendeu até
os dentes e o meteu morto por terra. E isto foi muito
grande dano, porque era um dos bons cavaleiros da
corte, e amara sempre Lancelote, mais do que outro
cavaleiro da corte que alguma vez tivesse visto. Com
este golpe ficaram os do rei apartados e
desbaratados, de modo que de oitenta que eram, não
escaparam senão três, que fugiram para a cidade.
Um foi Morderete e os outros dois da távola
redonda. E quando Lancelote isto viu, foi à rainha e
disse-lhe:
— Senhora, o que quereis que vos façamos?
E ela respondeu muito alegre:
— Queria que me levásseis a um lugar onde o
rei não me pudesse fazer mal.
— Senhora, disse ele, montai e vamos àquela
floresta, e tomaremos lá conselho do que será bom
fazer.
E ela concordou. Então a puseram num
cavalo, porque havia bastantes sem dono; depois
foram à floresta onde a viram mais espessa e
contaram sua companhia e acharam menos quatro, e
perguntaram-se o que fora feito deles, e disse-lhes
Heitor:
— Vi três que Gaeriete matou.
— Como? disse Lancelote, estava Gaeriete
nesta luta?
— E que é isso que me perguntais, disse
Heitor; vós o matastes.
— Ora, disse Lancelote, bem podemos dizer
que jamais teremos paz com o rei e com Galvão, por
morte de Gaeriete, de que me pesa muito, assim
Deus me ajude. E agora começará a guerra que não
acabará em todos os dias de nossa vida.
639. Muito teve Lancelote grande pesar da
morte de Gaeriete, porque era dos cavaleiros do
mundo que ele sempre mais amara. E Boorz disse a
Lancelote:
— Senhor, haverá mister ficar a rainha a salvo
em lugar onde não tivesse medo do rei.
— Se a pudéssemos ter, disse Lancelote, num
castelo que eu conquistei, lá estaria a salvo, porque o
castelo é forte à maravilha e fica num lugar que não
pode ser cercado; e depois que lá fôssemos e o
tivéssemos abastecido, mandaria pedir ajuda a
muitos cavaleiros, a quem ajudei muitas vezes, e a
muitos que conquistei, e são tantos que, se os tiver
em minha ajuda e ficarmos naquele castelo, com
facilidade poderemos guerrear com um homem de
grande poder.
— E onde fica este castelo? disse Boorz.
[482] — Perto da cidade de Longuefão e
chama-se castelo da Joiosa Guarda; mas quando o
conquistei, há muito tempo, quando era cavaleiro
novo, chamava-se a Dolorosa Guarda.
— Ai! disse a rainha, já vi este castelo, e é
exatamente tão forte, que não teme nada a não ser
traição.
Concordaram com isto e andaram tanto que
chegaram a um castelo que ficava no meio da
floresta e tinha nome Caleque e era senhor dele um
conde muito bom cavaleiro e de grande poder, que
amava muito a Lancelote, e quando soube que vinha,
ficou muito alegre e recebeu-o muito bem e lhe fez
todo o serviço que pôde e toda honra, e prometeulhe que o ajudaria contra o rei Artur e disse-lhe:
— Senhor, senhor, eu vos dou este castelo
para vós e a rainha e o deveis receber, porque é tão
forte, que não tereis aqui medo de rei Artur.
E Lancelote agradeceu muito, mas disse que a
outro lugar queriam ir.
No outro dia, despediu-se do conde Dangis,
que lhe deu quarenta cavaleiros e o fez jurar que o
ajudasse, como o ajudaria ele. Então partiram e
andaram tanto que chegaram ao castelo da Joiosa
Guarda. E quando os do castelo souberam que
Lancelote vinha, saíram para recebê-lo, fazendo tão
grande alegria e tão grande festa, como se fosse
Deus. E quando souberam que havia de morar como
eles e por quê, juraram que o ajudariam contra todos
os homens do mundo e ele se animou com isso.
Mandou logo buscar todos os da terra, e eles vieram
e eram muitos, depois fez abastecer muito bem seu
castelo.
Mas ora deixa o conto a falar dele e torna a rei
Artur.
640. Naquela hora, diz o conto, em que rei
Artur viu voltar seu sobrinho Morderete com muito
pequena companhia, maravilhou-se e perguntou
como era aquilo; e um donzel que esteve onde a
batalha acontecera, disse-lhe:
— Senhor, muito más novas vos direi, de que
vos pesará e a quantos aqui estão. Sabei que de todos
os cavaleiros que levaram a rainha à fogueira, não
escaparam senão três, e destes três que escaparam,
um é Morderete e os outros dois não sei quais são.
— Ai! disse o rei, Lancelote esteve lá?
— Por Deus, senhor, sim, disse ele. E ainda
fez mais, que leva a rainha consigo e entrou na
floresta com ela.
Quando o rei estas novas ouviu, teve tão
grande pesar, que não soube o que fizesse. Nisto
chegou Morderete que disse ao rei:
— Senhor, vai mal! Lancelote nos desbaratou
a todos e levou a rainha consigo.
[483] — Ora, atrás dele, disse o rei, porque
não escapará, se depender de mim.
Então fez armar cavaleiros, servos e todos
aqueles que com ele estavam e cavalgaram o mais
rápido que puderam e foram à floresta e olharam de
uma parte e da outra. Mas aconteceu que não o
acharam. Então mandou o rei que se distribuíssem
por muitas partes para ver se os poderiam achar. E
rei Carados disse:
— Senhor, isto não tenho por bem, porque se
se dividirem e Lancelote os achar, a todos matará,
porque traz boa companhia de bons cavaleiros.
— Pois o que faremos? disse rei Artur.
— Senhor, disse ele, vo-lo direi. Mandai
vossos homens com cartas vossas a todos os desta
terra, que ninguém ouse deixar passar Lancelote
nem alguém de sua companhia, e assim, terá de ficar
na terra; e depois que ficar e soubermos onde está,
iremos a ele e poderemos facilmente pegá-lo e vos
vingareis dele.
641. Fez o rei suas cartas e mandou a todos os
portos de Logres para que ninguém ousasse deixar
passar Lancelote ou alguém de sua companhia. E
depois que enviou os mensageiros, dirigiu-se para
onde fora a derrota e viu Agravaim, seu sobrinho,
que Lancelote matara, e tinha um pedaço da lança no
meio do peito, de modo que o ferro aparecia da outra
parte. E teve tão grande pesar, que não pôde manterse em sela, e caiu sobre ele desfalecido e ficou assim
muito tempo, e quando acordou e pôde falar, disse:
— Ai, bom sobriilho! mortalmente vos
desamava aquele que este golpe vos deu e grande
dor meteu no meu coração quem tal cavaleiro abateu
de minha linhagem.
E depois que isto disse, tirou-lhe o elmo da
cabeça e beijou-lhe os olhos e a boca; depois o fez
levar à cidade. E depois percorreu todos os outros, e
achou Guerrees, que Boorz matara, e tinha uma
lançada pelo meio do peito. Ali veríeis o rei
lamentação fazer e dizer que muito vivera quando
via a morte dos homens do mundo que mais amava e
com que pesar isto via. E depois fez levar Guerrees
em seu escudo. E andou olhando os outros e olhou à
esquerda e viu Gaeriete, que Lancelote matara, e
este era o sobrinho que ele mais amava, afora
Galvão. E quando viu aquele que tanto amava, não
se comparou a dor que dos outros tivesse à deste.
Então foi a ele e abraçou-o, e caiu desfalecido sobre
ele, que os que estavam no lugar cuidavam que
tivesse morrido. E depois que ficou assim o tempo
que andaram uma meia légua, acordou e disse:
— Ai, morte! como me tardas, porque me
parece que já vivi muito. Ai, Gaeriete, meu
sobrinho, se tenho de morrer de pena, [484] morrerei
com pena de ti, porque nunca vi morte de que tanto
me pesasse. Ai, bom sobrinho e bom amigo, em má
hora foi feita aquela espada que assim te feriu e
maldito seja o braço que tal golpe te deu, porque
confundiu a mim e a toda a minha linhagem.
Depois beijou-lhe os olhos e a boca e o rosto
ensangüentado como estava, e fez tal pranto, porque
todos o amavam e o prezavam, tanto era bom
cavaleiro e bom cortesão.
642. Grandes foram os lamentos e os gritos
que faziam por ele os mais, tanto parentes como
amigos, e tomaram Gaeriete em seu escudo e o
levaram à vila, e quando os da vila souberam que
esta morte fora feita, veríeis o pranto violento e cada
um pegava seu amigo e levava ao paço. A estes
gritos saiu Galvão de sua pousada, que bem cuidava
que a rainha já estava morta e este tão grande pranto
era por ela. E estando na rua perguntando, disseramlhe:
— Ai, dom Galvão, se quereis ver vosso
grande pesar e a destruição de vossa linhagem, ide
ao paço e lá vereis o maior pesar que nunca vistes.
E ele teve grande pesar destas novas e não
respondeu a nada que lhe dissessem, e baixou a
cabeça muito triste e começou a dirigir-se ao paço,
mas não cuidou que o pranto era senão pela rainha e
olhou à direita e à esquerda e viu as pessoas todas
chorarem e carpirem; e cada um lhe dizia:
— Ide, dom Galvão, ide, e vereis vosso mui
grande pesar e vossa mui grande pena.
Quando ouviu que todos falavam daquilo,
cresceu-lhe muito maior pesar, mas não o ousou
mostrar e foi triste e pensativo. E, quando entrou no
paço, achou todos tão grande pranto fazendo como
se todos os parentes do mundo vissem diante de si
mortos. E quando o rei viu Galvão, disse-lhe em alta
voz:
— Galvão, Galvão, vedes aqui vossa grande
dor e minha; vedes, aqui está vosso irmão Gaeriete
morto, o mais prezado cavaleiro da nossa linhagem.
E mostrou-o todo ensangüentado, como o
tinha reclinado em seu peito. Quando isto viu,
Galvão não teve força para falar nada, nem para se
manter de pé, porque lhe faltou o ânimo e o corpo
fraquejou e caiu no meio do paço como morto, e
ficou muito tempo desfalecido. E os ricos-homens,
que lá estavam com grande pesar, que jamais
cuidavam ter prazer, quando viram que era Galvão,
foram pegá-lo e o seguraram em seus braços
chorando muito sentidos e dizendo:
— Ai, Deus! Como aqui há grande dano de
todas as partes!
[485] E depois que Galvão ficou assim muito
tempo e acordou, levantou-se e voltou a Gaeriete,
que estava morto e retirou-o do rei e abraçou-o e
começou a beijá-lo e tomou-se-lhe de tão grande dor
o coração, que não pôde se manter de pé e caiu por
terra com Gaeriete e ficou maior tempo que antes, e
depois que acordou, sentou-se e começou a olhar
Gaeriete, e quando lhe viu tão grande golpe, disse:
— Ai, bom irmão! maldito seja o braço que
tal golpe vos deu, porque matou a mim e a toda a
minha linhagem, e não vale mais por isso, porque,
depois do que vejo, não quero mais viver, ai bom
irmão, senão até que vos vingue do traidor que isto
vos fez e me deu tão grande dor no coração.
643. Tal lamento fez Galvão e maior fizera, se
pudesse, mas apertou-se-lhe o coração com pesar, de
modo que o não pôde fazer senão tarde. E depois
que esteve assim muito tempo, olhou a sua direita e
viu jazerem Guerrees e Agravaim diante do rei sobre
seus escudos em que os trouxeram. E quando os
reconheceu, disse em muito alta voz:
— Ai, mesquinho! em má hora vivi tanto, que
vejo mortos de má morte meus irmãos!
Então foi a eles e deixou-se cair sobre eles, e
abraçou-os e beijouos ensangüentados como
estavam e desfaleceu sobre eles muito amiúde, de
modo que os altos homens que lá estavam cuidaram
que morreria entre seus irmãos.
644. O rei, que estava tão abatido que não
sabia o que pudesse fazer nem dizer, perguntou aos
ricos-homens:
— O que faremos? Porque se deixarmos aqui
muito tempo Galvão, cuido que morrerá de pesar.
— Senhor, disseram eles, acharíamos bom
afastá-lo daqui e o guardarmos numa câmara até que
estejam enterrados, porque, sem falha, se ficar muito
tempo aqui, morrerá.
E o rei concordou com este conselho, e
levaram-no os ricos-homens a uma câmara
desfalecido como estava. E todo aquele dia e aquela
noite dormiu que nada falou. Todo aquele tempo foi
grande a dor no paço e pela vila. E os cavaleiros
mortos foram desarmados e enterrados cada um
como valiam. Para Guerrees e Agravaim tão ricos
túmulos fizeram e tão formosos, como se fossem
para filhos de rei. E puseram-nos ambos juntos e
meteram-nos dentro do mosteiro de Santo Estevão
de Camalote, que então era Sé. Assim estes dois
deitaram e à cabeceira destes, puseram outro tuniulo
muito melhor e mais rico que algum daqueles e
fizeram nele meter [486] Gae|riete. Mas ao enterrar,
poderíeis ver o grande dó e o grande pranto, porque
todos os arcebispos e bispos da terra foram lá e
todos os altos homens bons, que puderam, chegaram
a sua sepultura e fizeram tanta honra aos mortos
quanto mais puderam, mas muito mais a Gaeriete. E
porque era tão bom homem, fizeram erguer seu
túmulo mais que todos os outros, e fizeram escrever
um letreiro que dizia: “Aqui jaz Gaeriete, sobrinho
de rei Artur, que Lancelote do Lago matou.” E
também fizeram sobre as lápides dos outros escrever
o nome daquele que julgavam que os matara.
645. Depois que os arcebispos e bispos e
clérigos fizeram -tudo o que deviam fazer, voltou o
rei a seu paço e sentou-se diante de seus ricoshomens com grande pesar, como não teria, se
perdesse a metade de seu reino; e também estavam
todos tristes, que não sabiam o que dizer e fazer. No
paço estavam todos os ricos-homens e muitos outros
cavaleiros e muita gente, mas tão calados estavam,
que parecia que não havia ninguém lá. O rei estava
na parte mais alta do paço muito triste, e depois que
ficou muito tempo, disse tão alto que todos o
ouviram:
— Ai, Deus! quão longamente me suportastes
e mantivestes em grande honra e grande altura, e
agora estou em pouco tempo rebaixado e aviltado
por desgraça. Nunca alguém perdeu tanto como
perdi, porque esta é perda superior a todas as perdas;
porque se alguém perde terra, pode recuperá-la,
como muitas vezes acontece, mas se alguém perde
amigo ou parente, não pode recuperar de nenhum
modo. Senhores, esta perda sofri como vedes, e não
por vontade de Nosso Senhor, mas pela soberba de
Lancelote do Lago. E se esta perda me viesse por
vingança de Deus, a suportaria com honra, mas veio
por aquele que pusemos em mais alto lugar de honra
que achamos, e recebemos em nossa terra tão
honradamente como se fosse meu filho. Aquele nos
fez este dano e esta desonra. E tendes todos de mim
terra e sois meus vassalos, porque me fizestes homenagem e juramento, e por isto vos rogo, pelo
direito que deveis cumprir, que me ajudeis e
aconselheis como homens bons devem aconselhar
seu senhor, de modo que minha desonra seja vingada
e tenhais honra em quebrar e confundir aqueles que
esta desonra me fizeram.
646. Depois que o rei isto disse, calou-se e
esperou até que seus ricoshomens respondessem. E
começaram a olhar-se e a dizer um ao outro o que
falar. E depois que ficaram muito tempo calados,
levantou-se rei Iom e disse ao rei:
[487] — Senhor, sou vosso vassalo e de bom
grado devo aconselhar-vos o que seja em vossa
honra e em proveito do reino. Nossa honra, sem
falha, é vingar com a nossa força, mas quem em
proveito do reino quisesse olhar, não cuido que
começasse guerra contra a linhagem de rei Bam de
Benoic, porque vemos que Nosso Senhor os exaltou
tanto sobre todas as outras linhagens, que se sabe
que em força de gente e de boa Qavalaria e de boa
linhagem, não há, que eu saiba, quem no mundo lhes
pudesse muito prejudicar, estando eles em sua terra,
senão vós; e, senhor, por isso vos rogo, por Deus,
que não comeceis guerra contra eles, se não virdes
que a podeis acabar muito bem, porque, certamente,
a meu ciente, difícil será desbaratá-los.
647. Então foi grande o rebuliço no paço e
falaram que rei Iom nada dissera e que o dizia por
covardia.
— Certamente, disse ele, não o digo por pavor
maior que algum de vós, mas sei verdadeiramente
que, depois de começada a guerra, e se recolherem
eles a sua terra, nos temerão muito menos do que
cuidais.
— Certamente, dom Iom, disse Morderete,
nunca de tão bom homem saiu tão mau conselho.
Mas se o rei confiar em mim, de nenhum modo
deixará de ir e de vos levar consigo, ainda que vos
pese.
— Morderete, Morderete, disse rei Iom, por
certo irei com mais boa vontade do que vós. E vá o
rei quando quiser, que, de bom grado, irei com ele.
— E o que discutis? disse Mador da Porta. Se
quereis a guerra, muito perto a achareis, porque
Lancelote está num castelo que conquistou logo que
foi cavaleiro quando andava nas primícias das
aventuras pelo reino de Logres e o castelo tem nome
a Joiosa Guarda e o conheço bem e sei onde fica e
tenho o dever de saber, porque estive lá muito tempo
preso e tinha grande pavor da morte, quando me
livrou Lancelote a mim e a outros cavaleiros daqui
que lá estavam presos.
— Por Deus, disse o rei, esse castelo conheço
muito bem, mas cuidais que está lá a rainha com ele?
— Senhor, digo-vos verdadeiramente que a
rainha está lá, e Lancelote com todos os seus
parentes, assim como aqui estava e não vos
aconselho que vades lá desta vez para lhes fazer mal,
porque o castelo é tão forte, que nunca alguém o
cercou; e eles são tão bons cavaleiros, que não
recearão vos fazer guerra e desonra.
648. Quando o rei isto ouviu, respondeu:
[488] — Por boa fé, Mador, verdade me dizeis
do castelo, que é forte, e da soberba deles. Mas bem
sabeis e quantos aqui estão que, desde que fui
coroado rei, não comecei guerra a que não desse cabo à minha honra e de meu reino. Por isso vos digo
que não deixarei de nenhum modo de fazer guerra
contra aqueles que me têm feito traição e tão grande
perda e rogo-vos primeiramente a quantos aqui
estais que me ajudeis nisso, assim como em vós
confio. Também mandarei chamar os que mais longe
estão que de mim têm terra; e depois que estiver
toda nossa força reunida, e pode ser daqui a quinze
dias, partiremos então. E porque quero que não vos
afasteis, quero que me façais todos homenagem e me
jureis que mantereis comigo esta guerra com toda
vossa força até que nossa desonra seja vingada.
E fez logo trazer os santos Evangelhos e
recebeu logo homenagem e juramento. Depois
mandou dizer por toda sua terra, perto e longe, aos
que dele tinham terra, que viessem a ele e marcou o
dia em que estivessem com ele com toda sua força
na Joiosa Guarda. Com isto concordaram todos e
prepararam-se para ir lá e cuidaram levar a cabo
facilmente o que diziam.
649. Quando Lancelote ouviu estas novas,
mandou dizer ao reino de Benoic e ao reino de
Gaunes, e aos ricos-homens que dele terra tinham,
que guarnecessem bem os castelos, de modo que, se
porventura tivessem de partir da Grã-Bretanha e ir
para Gaula, tivessem seus castelos bem guarnecidos
contra rei Artur. Depois, mandou a rainha para o
reino de Sorelois, e mandou dizer à terra Forânea e a
todos os cavaleiros que ele ajudara e a quem
demonstrara amor muitas vezes, que viessem ajudálo contra rei Artur. E porque ele era o cavaleiro do
mundo mais amado e que maior amor e honra fazia
aos cavaleiros, e por aquele rogo com que os
mandou rogar, vieram tantos cavaleiros em sua
ajuda que, se Lancelote fosse rei coroado, seria
grande coisa reunir tão grande cavalaria como reuniu
na Joiosa Guarda.
Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a
rei Artur e sua companhia.
LXXXIII
Desfecho da guerra de rei Artur e de
Lancelote
650. Conta a estória que aquele dia que o rei
marcou para seus ricoshomens que estivessem
reunidos em Camalote, o foram e houve [489] lá tão
grande ajuntamento, que muito tempo havia que não
se ajuntara tão grande cavalaria. Neste ínterim, ficou
curado Galvão, que tivera muito grande enfermidade
com o pesar da morte de seus irmãos. Aquele dia
que foram reunidos, disseram ao rei:
— Senhor, antes que partais daqui, teríamos
por bem e seria assim como nos parece, que destes
fidalgos que aqui estão, escolhêsseis tantos quantos
mataram pela rainha e os metêsseis na távola
redonda no lugar dos que mataram, de modo que a
conta de cento e cinqüenta fosse preenchida, e bem
vos dizemos que, se o fizésseis, nossa companhia
seria mais temida.
651. O rei concordou com isto e disse que era
bem, e chamou seus ricos-homens e ordenou-lhes
pelo juramento e pela homenagem que lhe haviam
feito, que escolhessem os melhores cavaleiros de
bondade e de boas habilidades que achassem e não
os deixassem por pobreza e por não serem de alta
linhagem e os metessem na távola redonda. Então
saíram à parte superior do paço e souberam primeiramente quantos eram os que faltaram, e
acharam na contagem que faltavam setenta e dois e
escolheram outros tantos que mereceram. Mas, sem
falha, o maior assento da távola redonda, que continuavam a chamar o assento perigoso, não houve
tão ousado que ousasse nele sentar. Mas no assento
de Lancelote sentou um cavaleiro que tinha nome
Elians e era o melhor cavaleiro e o mais afamado de
toda a Irlanda e era filho de rei. No assento de Boorz
sentou outro cavaleiro que tinha nome Balinor e era
filho do rei das Estranhas Ilhas; aquele, sem falha,
era muito bom cavaleiro e, por rogo de seus amigos,
ganhou o assento de Boorz. E o assento de Heitor
teve outro de Escócia, que era bom cavaleiro e
poderoso de armas e amigos, e era grande de corpo e
muito valente à maravilha e chamava-se Vadans, o
negro, e era de muito alta posição, mas era tão bravo
e tão invejoso, que não se conhecia cavaleiro que o
fosse tanto. O lugar de Gaeriete teve um cavaleiro
que se chamava Gaeris de Norgales e era jovem e
muito bom cavaleiro; depois, os melhores dos outros
cavaleiros que acharam meteram nos outros
assentos.
652. Quando isto fizeram, as mesas postas,
assentaram-se para comer e serviram aquele dia a
mesa de rei Artur sete reis seus vassalos, e aquele
dia ajeitaram seus feitos para que partissem no outro
dia de manhã. No outro dia, ouviram missa e saíram
e chegaram nesse dia a um castelo que tinha nome
Lambor. No outro dia, partiram daí e andaram tanto
por suas jornadas, que chegaram a meia légua da
Joiosa Guarda, e porque viram o castelo tão forte
que não [490] temia força de gente e não podia ser
cercado, senão de longe, pousaram na margem do
Ombre, e puseram a sua frente, enquanto se
preparavam, cavaleiros armados de modo que, se
viessem os do castelo, fossem tão bem recebidos
como se deve receber inimigos. Deste modo se
prepararam os da hoste para receberem seus
inimigos. Mas os do castelo, que eram bons
cavaleiros, mandaram boa parte de sua cavalaria que
se escondesse numa floresta, que ficava perto dali,
para terem condição de ataque imprevisto na guerra,
quando vissem que fosse azado, de modo que
fossem atacados pelos da floresta e pelos do castelo,
e não deram nada por seu cerco, antes os deixaram
pousar muito em paz e disseram que no outro dia
atacariam.
sairiam, assim que a guerra fosse empreendida por
ambas as partes. Como disseram, assim o fizeram.
Quando viram que os deixavam pousar em paz,
ficaram muito seguros e disseram muitos deles que,
se Lancelote tivesse grande companhia, não deixaria
de nenhum modo de atacar, porque não era cavaleiro
que suportasse mal que lhe fizesse seu inimigo.
Quando Lancelote viu que rei Artur o havia
cercado e era o homem do mundo que ele mais
amara e lhe fizera mais honra, teve tão grande pesar
que não soube o que fizesse, não por medo, mas
porque amara o rei mais que outra pessoa que não
fosse seu parente. E por isso pegou uma donzela e
apartou-se com ela numa câmara e disse-lhe:
— Donzela, ireis a rei Artur e lhe direis da
minha parte que me maravilho muito, porque
começou esta guerra contra mim, porque bem cuido
que nunca tanto o afrontei por que o devesse fazer.
Se vos disser que o faz pela rainha e que o afrontei
como alguns dizem, dizei que me defenderei contra
os dois melhores cavaleiros de sua corte que
injustamente me recriminam, e pela honra dele e por
seu amor que perdi por falsa acusação, dizei-lhe que
me meterei em juízo diante de sua corte, se lhe
aprouver. E se disser que começou esta guerra pela
morte de seus sobrinhos, dizei-lhe que daquela
morte não sou culpado por que me devesse desamar
tão mortalmente, porque eles mesmos foram
culpados de sua morte. Donzela, dizei ao rei, meu
senhor, que não me sinto tão culpado contra ele, que
não me submeta a julgamento em sua corte. E, se ele
não quiser concordar com nenhuma destas coisas
que lhe mando dizer, [491] resistirei a sua força com
maior pesar que ele ou outrem cuidaria pensar. E
saiba que, depois que a guerra começar, todo o mal
que puder fazer aos seus, farei. E ele,
verdadeiramente, porque o tenho por senhor e
amigo, embora não me venha ver como amigo, mas
como inimigo mortal, asseguro-lhe que não se
guarde de mim, antes o guardarei sempre de todos
aqueles que vir que lhe querem fazer mal. Donzela,
isto lhe dizei.
E ela disse que aquela ordem cumpriria tão
bem que depois não pudesse ser culpada. A donzela
se despediu dele e saiu do castelo, de modo que
ninguém o ouviu. Isto foi à hora de vésperas.
Naquela hora estava o rei ceando, e porque ouviram
que era mensageira, assim que lá chegou, levaramna ao rei, e chegou-se ao rei e disse-lhe quanto
Lancelote mandou.
653. Os cavaleiros da floresta eram em
número de duzentos, muito bons cavaleiros e muito
valentes, e Boorz e Heitor eram capitães deles; e os
do castelo combinaram com eles este sinal: assim
que de manhã vissem uma senha vermelha na maior
torre, logo saíssem e fossem atacar, porque logo
654. Galvão, que estava perto do rei, ouviu
quanto a donzela lhe disse e falou antes que os
outros falassem e disse de modo que todos os ricoshomens o ouviram:
— Senhor, senhor, está na hora de vingar
vossa vergonha e o grande dano que recebestes de
vossos sobrinhos por Lancelote, e tendes poder e
força para fazer o que tínheis dentro do coração em
Camalote: confundir e reduzir a nada a linhagem de
rei Bam, que, por sua soberba e desmedida ambição,
vos fez tão grande mal e tão grande dano, que jamais
poderá ser vingado, senão por Deus.
E isto vos digo, porque se agora fizésseis paz
estando na hora de vos vingardes, vo-lo teriam por
mal os vossos e os estranhos.
— Galvão, disse à rei, o preito já está de tal
modo que, enquanto viva, por cousa que Lancelote
possa dizer ou fazer, jamais terá paz comigo, embora
seja o homem do mundo a quem eu mais devia
perdoar um grande erro, porque, sem falha, ele fez
mais por mim do que qualquer outro cavaleiro. Mas,
enfim, me fez um tão grande mal que vos prometo
como rei que nunca comigo terá paz.
655. Então dirigiu-se à donzela e disse-lhe:
— Donzela, dizei a vosso senhor que, de
quanto me mandou dizer, nada farei e jamais,
enquanto viva, não terá paz comigo.
— Por certo, disse a donzela, senhor, isto é
grande dano, mais para vós do que para outrem,
porque vós, que sois agora o homem mais poderoso
do mundo e o mais afamado, sereis por isso destruído e morto e os homens sisudos, que muito falaram
do vosso fim, não estavam enganados, porque,
quanto a isto, não há dúvida de que os sisudos
adivinhadores que houve em nosso tempo, que sabiam grande parte das coisas que haviam de vir,
disseram que, no fim, havia a linhagem de rei Bam
de trazer mal e vencer e [492] asse|nhorear-se de
todos os seus inimigos. E vós, dom Galvão, que devíeis ser sisudo, sois mais néscio do que eu cuidava,
porque buscais vossa morte a ainda o podeis ver.
A donzela despediu-se então do rei e foi para
seu senhor e contou-lhe quanto lhe disse o rei, e ele
teve grande pesar.
656. No outro dia, pela manhã, mandou
Lancelote erguer a senha vermelha na torre, e os da
floresta a viram logo e saíram e Lance-lote saiu
àquela hora do castelo, e começaram a batalha muito
violenta de ambas as partes. Naquela batalha, perdeu
o rei Artur muito, e muito mais que os outros,
porque os da linhagem de rei Bam eram de tão
grande bondade de armas, que o rei e seus homens
não lhes podiam resistir sem perder muito cada vez
que se enfrentavam, e isto era muito amiúde. E no
fim, perdera o rei tudo, se não fosse o arcebispo de
Cantuária, que era parente da rainha, e excomungou
todo o reino de Logres, porque o rei não queria
voltar a sua mulher, mas quando o rei viu que a
santa Igreja o constrangia deste modo, pegou-a. E
ficou muito mais alegre do que parecia, porque ele
amava a rainha sobre todas as coisas do mundo. E
sabei verdadeiramente que Lancelote não a
entregara, se não fosse que as pessoas percebessem
que era verdade o que diziam. E ele se desculpava a
respeito para muitos homens bons.
657. Depois que Lancelote deu a rainha,
retirou-se de todo o reino de Logres com toda sua
linhagem, e passou o mar e foi para Gaunes e fez
reis coroados seus primos: a um deu o reino de
Gaunes, e a outro o de Benoic e toda a Gaula, como
lhe dera rei Artur. Naquele tempo podiam dizer bem
os do reino que eram ricos de bom senhor e de boa
cavalaria; porque tinham bom senhor, que bem
mantinha a terra e o reino em paz. Mas aquela paz
não demorou muito, porque depois veio aí rei Artur,
com todo seu exército para vingar a morte de seus
sobrinhos e isto foi por conselho de Galvão; e cercou
a cidade de Gaunes, onde estava Lancelote com toda
sua linhagem. E depois que a teve cercada, perdeu lá
mais do que ganhou, porque sobejo tinham grande
poder os de dentro. E, se Lancelote quisesse, muitas
vezes o vencera e o prendera, mas não quis, porque
amava rei Artur com muito grande amor.
658. Quando o rei viu que nada podia fazer
naquele cerco para sua honra, disse um dia a Galvão:
— Matastes-me, porque me fizestes aqui vir,
porque os de dentro não dão nada por nós.
Quando isto ouviu Galvão, teve grande pesar,
e tão grande foi o pesar, que mandou dizer a
Lancelote:
[493] — Lancelote, se és tal que digas que
não mataste meus irmãos, à traição, eu te provarei.
E Lancelote quando isto ouviu, teve grande
pesar e disse que se defenderia. E foi à batalha
diante da cidade de Gaunes; e quando foram metidos
no campo, fez Galvão seu tio prometer que, se
Lancelote o vencesse, rompessem o cerco de Gaunes
e dessem a Lancelote por quite de todo queixume
que dele tinham; e Lancelote também fez sua
linhagem prometer que, se Galvão o vencesse, todos
se tornassem vassalos de rei Artur exceto rei Boorz e
rei Leonel: estes dois ficassem livres desta
convenção, porque eram reis.
659. Então foram combater ambos os
cavaleiros, e durou a batalha muito tempo. Mas no
fim, ficou Galvão tão ferido, que não pôde mais; e
matara-o então Lancelote, se não fosse por amor do
rei e de todos os ricos-homens do reino de Logres. E
sabei que, naquela batalha, recebeu Galvão um tal
golpe de que depois não pôde curar-se, antes o levou
aquela chaga à morte. Quando a batalha foi
encerrada, rei Artur deu por quite Lancelote e toda
sua linhagem de quanto queixume dele tinha.
Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a
rei Artur, por falar como teve sua batalha com o
imperador de Roma.
660. Nesta parte diz o conto que, assim que o
pacto de rei Artur e de Lancelote foi feito, chegaram
umas novas de que teve grande pesar e muito grande
sanha, porque lhe disseram que o imperador de
Roma estava na Bretanha com muito grande gente e
queria tomar Gaula e depois passar ao reino de
Logres e conquistá-lo. E o rei tinha muitos
cavaleiros feridos e demorou até que sararam. Quando viu que Galvão e outros cavaleiros estavam já
sãos, saiu com todo seu exército contra o imperador
de Roma e lutou com ele e venceu-o e matou-o, e
pegou muitos dos melhores de Roma e os fez jurar
sobre os santos Evangelhos que o levassem a Roma;
e, ao partir, disse-lhes:
— Levareis aos romanos, de minha parte, o
imperador, e lhes direis que esta é a renda- que lhes
devo.
LXXXIV
Levante de Morderete
Rei Artur na capela Veira
661. Aquele dia que os romanos foram
vencidos, chegaram a rei Artur umas novas muito
más, porque um escudeiro lhe disse:
[494] — Senhor, perdestes o reino de Logres.
Morderete, vosso sobrinho, sé virou com todos os
homens bons da terra contra vós e é rei coroado de
toda vossa terra, e cercou a rainha Genevra no aicácer de Logres e ameaçou que a mataria, porque o
não queria receber por marido.
E quero-vos contar como. Digo-vos que,
quando rei Artur partiu de Logres sobre Lancelote,
recomendou, sem falha, sua terra e sua mulher e sua
gente, que ficava, a seu sobrinho Morderete e fez
jurar sobre os santos Evangelhos que fizessem por
Morderete tanto como por seu corpo. Quando
Morderete viu que a terra estava em seu poder, logo
pensou que faria de modo que seu tio não tivesse
como voltar a ela. E ele amava a rainha como nunca
Lance-lote a amou mais. E mandou então fazer uma
carta falsa que fez trazer como a caminho de onde
estava, perante os homens bons de Logres, que
fizessem Morderete rei e lhe dessem a rainha por
mulher. Os de Logres, que verdadeiramente
cuidavam que era como a carta dizia fizeram
Morderete rei; e quando lhe quiseram dar a rainha
por mulher, não quis ela, porque o desaniava muito e
meteu-se no aicácer de Logres, com gente de sua
linhagem. E Morderete fez combater a torre, mas
não a pôde tomar, porque os que dentro estavam
eram muito bons e a defenderam bem.
662. Esta foi a traição que Morderete fez a seu
tio, de que o rei teve grande pesar, quando a respeito
ouviu as novas, e disse:
— Agora cavalguemos, porque, se Deus
quiser, não descansarei até que esteja em Logres.
Quéia, o mordomo, fizera muito bem na
batalha, mas saiu ferido de morte, e também Galvão
e muitos outros bons cavaleiros. Quéia, que bem viu
que não poderia ir à batalha, fez-se levar à Normandia, à casa de uma mulher que fora sua amante.
Ali morreu Quéia e fizeram os da linhagem do rei,
por amor de Quéia, uma vila que tem o nome Caião.
663. O rei chegou ao mar e passou-o com
tanta gente como trazia. Galvão, assim que chegou à
terra, morreu logo, e levaram-no ao castelo de Cros.
Morderete, logo que assumiu o poder, fez-se amar
tanto por todos, pelo muito bem que nele havia de
muitas coisas, que todos o amavam muito. Por isso
aconteceu que lhe disseram, quando souberam que
vinha rei Artur:
— Senhor, não tenhas medo, mas cavalga e
defende o que nós te demos, porque temos gosto de
receber morte por defender tua honra.
[495] 664. Morderete fez então armar toda sua
gente, e partiu de Logres, onde mantinha a rainha
cercada. E assim que ele partiu, meteu-se a rainha
num mosteiro de mulheres e pensou que, se
Morderete vencesse, não seria tão mau que dali a
tirasse, e se Morderete fosse vencido, iria para seu
senhor.
Morderete cavalgou com toda sua companhia
tanto que alcançou rei Artur com muita gente.
Quando os dois exércitos se encontraram, muito foi
dito de uma parte e da outra, se poderiam meter
nisso a paz. Mas não pôde ser, porque o rei não
concordou. Todas estas coisas que aqui convém que
vos não revele amplamente, achareis no conto do
Brado, porque não me comprometi a revelar exaustivamente as grandes batalhas que houve entre a
linhagem de rei Bam e de rei Artur, e o imperador de
Roma e rei Artur, porque seriam mais que as três
partes do livro.
665. Quando os exércitos foram ajuntados no
campo de Salaber, lá se poderia ver bons cavaleiros
de um lado e de outro. Por isso aconteceu que, assim
que se feriram às lanças, veríeis tantos jazer em terra
mortos e feridos, que maravilha era. E naquela
batalha havia sete reis da parte de rei Artur. E o
conto do Brado diz quais eram. Ali morreu Ivã, filho
de rei Urião. Ali morreu Quéia Destrais e Dondinax,
o selvagem, e Brandeliz e bem vinte da távola redonda, dos quais o que menos valia era tido por
muito bom cavaleiro e por bom homem.
Naquela batalha fez Morderete tão bem em
armas e tanto se defendeu maravilhosamente, que
não houve quem o visse naquele dia, que o não
tivesse por muito bom cavaleiro estranhamente. E
sabei que a estória diz que, em toda sua vida, não fez
tanto em armas como naquele dia só, porque por
suas mãos matou seis companheiros da távola
redonda, de quem o conto do Brado conta os nomes
e os feitos.
E rei Artur também fez tão bem aquele dia,
que todos os seus consideraram façanha e nunca
mais cansava de ferir com a espada. Por isso Lucão,
que estava perto dele e via as maravilhas que fazia,.
disse a Gilfrete:
— Dom Gilfrete, estejamos seguros de que
venceremos esta batalha; vedes aqui rei Artur que
boa figura nos faz. Bem ensina a vencer e matar seus
inimigos. Bem deve ser chamado rei quem assim
sabe ajudar sua gente.
Isto disse Lucão, o copeiro, de rei Artur,
quando viu que tão bem o fazia. E rei Artur andou
tanto pela batalha, que achou Morderete e deu-lhe
por cima do elmo um tão grande golpe, que o meteu
em terra estonteado, e cuidou que estava morto, e
disse-lhe:
[496] — Morderete, muito mal me tens feito,
mas não se tornou em teu proveito.
666. Rei Artur derribou Morderete como vos
digo. Mas não ficou em terra nada, porque seus
vassalos o ergueram. Mas quando montou o cavalo,
teve grande vergonha de ter caído diante de seus homens. E deixou-se correr a Sagramor, e deu-lhe um
tão grande golpe, que lhe deitou a cabeça longe, e o
corpo caiu no chão. E quando o rei viu este golpe,
disse:
— Ai, Deus, como é grande a má andança do
traidor, matar os bons cavaleiros e os leais.
O rei recuperara já sua lança boa e forte e
deixou-se correr a Morderete, que nada temia, tanto
era de bom ânimo, e feriu-o tão rijamente, que lhe
meteu a lança pelo peito e o cabo apareceu da outra
parte. E diz a estória que, depois que tirou a lança
dele, passou pelo meio da chaga um raio de sol, tão
claramente, que bem o viu Gilfrete; por isso os da
terra, depois que a respeito ouviram falar, disseram
que era milagre de Nosso Senhor e sinal de pesar.
Morderete sentiu bem que estava ferido de
morte e feriu o rei, seu tio, tão violentamente que
elmo nem almofre não prestou que a espada não
fizesse entrar até o osso, e do osso lhe cortou grande
pedaço. Daquele golpe, caiu o rei no chão e também
Morderete.
667. De tal modo como vos conto, matou rei
Artur Morderete e Morderete o feriu de morte. E isto
foi grande mal e grande dano, porque não houve,
depois de rei Artur, rei cristão tão venturoso e que
tão bem fizesse seus feitos e que tanto amasse e
honrasse cavalaria.
Quando Bliobleris, que diante dele estava, viu
este golpe, disse com muito grande pesar:
— Ai, Deus! Agora vejo a profecia cumprida
que os homens sisudos desta terra disseram muitas
vezes, que rei Artur morreria pela mão de seu filho.
Ai, Deus! que dano e que perda!
Então apeou e aproximou-se do rei e o pôs em
seu cavalo. E o rei estava ainda tão estonteado do
golpe, que dificilmente se podia manter, no entanto,
assim que acordou e viu Morderete jazer por terra,
disse:
— Morderete, em má hora te fiz cavaleiro. Tu
me confundiste a mim e ao reino de Logres, e por
isso estás morto. Maldita seja a hora em que
nasceste!
E aquela hora que o rei isto disse, estava já a
batalha acabada, porque de sessenta mil, que aquele
dia foram lá ajuntados, não ficaram senão sessenta,
que não morreram. E Bliobleris, que fizera [497] tão
bem de armas, que ninguém o fizera melhor, depois
que pôs o rei em seu cavalo, desceu para Morderete,
à vista de quantos lá estavam, e atou-o à cauda de
seu cavalo e começou a arrastá-lo pelo meio da
batalha. Então o levou de modo que ficou todo
despedaçado.
Do exército de Morderete não ficou ninguém
vivo, nem do exército de rei Artur, senão quatro: o
arcebispo de Cantuária e Bliobleris e Gilfrete e
Lucão, que ainda estavam a cavalo. E rei Artur, que
ainda estava a cavalo, mas bem sentia que estava
ferido de morte.
Quando viram que não ficara ninguém com
quem pudessem combater e viram o campo de
Salaber coberto em todas as partes de cavaleiros
mortos, disseram entre si chorando:
— Ai, Deus! Como há grande dano e grande
perda! Ai, Deus! que não poderíeis mais mal nos
fazer do que vermos aqui todo o mundo lazer morto
de sofrimento e de dor!
668. Depois que fizeram seu pranto,
despediram-se do campo doloroso. E o rei fazia tão
grande dó, que morria, e o arcebispo o confortava
quanto podia e disse:
— Ai, senhor! se perdestes vossos amigos,
por outro lado, graças a Deus, tivestes sorte, e
escapastes vivo e vencestes esta mortal batalha e
matastes vossos inimigos.
— Ai! disse o rei, se escapei vivo, de que me
adianta? Porque minha vida não é nada, pois bem
vejo que estou ferido de morte. Ai, Deus! que
sofrimento provocou tão grande desgraça a uma
grande terra, pela traição de um mau homem!
669. Deste modo partiu rei Artur do campo de
Salaber, e Bliobleris trazia ainda trás de si a cabeça
de Morderete, porque, sem falha, o corpo estava
todo despedaçado. O rei perguntou a Bliobleris:
— Ficou-vos algo do traidor que tão mal nos
confundiu?
— Senhor, disse Bliobleris, sim, esta é a
cabeça de Morderete.
— Muito me apraz, disse o rei; faremos
colocá-la em lugar onde possa ver quem quiser. E
vós e o arcebispo ficareis neste campo e fareis uma
grande torre em que deitem as cabeças dos que aqui
morreram. E pendurai alto numa grande corrente a
cabeça de Morderete e fazei escrever o grande
sofrimento que neste campo aconteceu por ele, de
modo que os que depois de nós vierem, quando
souberem pelo letreiro o mal que por ele aconteceu,
maldigam todos sua alma.
670. Bem como o rei ordenou o fizeram o
arcebispo e Bliobleris, porque fizeram no campo
uma grande torre e puseram-lhe o nome [498] a
Torre dos mortos. E puseram nela a cabeça de
Morderete, e ficou lá pendurada até que Carlos
Magno passou à Inglaterra e foi ver a torre. E
quando Galarão, o traidor, que depois fez tanto mal
como o conto relata, soube por que a cabeça de
Morderete estava lá. pendurada, pareceu-lhe que
fora lá posta por injúria e por lembrança dos
traidores todos do mundo e pesou-lhe muito, porque
se tinha por tal. E foi lá de noite, e retirou-a e meteua em lugar onde não souberam depois o que dela foi
feito. A torre ficou, sem falha; ainda hoje há muros
dela.
Mas ora deixa o conto a falar da torre e torna
a rei Artur.
671. Ora diz o conto que, depois que rei Artur
se retirou do campo onde a batalha foi tão mortal e
tão dolorosa e se foram com ele Lucão e Gilfrete,
cavalgou tanto que chegou a uma capela. E aquela
capela tinha nome capela Veira. Mas de onde teve
este nome, o romance do Brado o revela, porque diz
mais respeito a seu conto do que a este. Quando
chegaram à capela, o rei, que se sentia muito ferido,
apeou e os outros com ele entraram na capela e o rei
ficou de joelhos no chão diante do altar. E Lucão,
que estava a seu lado também de joelhos, não
demorou muito que viu o estrado ao redor do rei
cheio de sangue. Então entendeu pela primeira vez,
que o rei estava ferido de morte e dela não podia
escapar, e não se pôde conter que não dissesse
chorando:
— Ai, rei Artur, como é grande o dano de
vossa morte! Jamais tal homem devera morrer!
E o rei ficou espantado com esta fala, como
alguém se espanta quando ouve falar de sua morte. E
respondeu:
— O dano não será só meu; mas muitos
homens bons perderão com isso.
Então se deixou cair de costas; e ele era
grande e pesado e estava armado. E aconteceu,
quando caiu, que atingiu entre si e a terra Lucão, que
já estava desarmado. E estendeu-se sobre ele tão
violentamente, que o apertou muito em baixo de si,
não por raiva que dele tivesse, mas pela grande dor
que sentia, que o quebrou, de modo que logo
morreu.
672. O rei, depois que ficou assim muito
tempo, ergueu-se, mas não cuidou que matara
Lucão. E Gilfrcte que viu que Lucão estava morto,
disse-o ao rei. Ao rei pesou muito e disse como
quem tinha grande dor:
— Gilfrete, não sou rei Artur, a quem
costumavam chamar rei venturoso, pelas boas
venturas que tinha. Mas agora quem me chamar por
meu correto nome me chamará mal-aventurado e
[499] mês|quinho. Isto me fez a ventura, que se me
tornou madrasta e inimiga. E a Nosso Senhor apraz
que viva em dó e tristeza este pouco que hei de
viver; bem o mostra ele, porque como ele quis e foi
poderoso para me elevar por muitas formosas
aventuras e sem meu merecimento, assim é poderoso
para me derrubar por aventuras feias e más, por meu
merecimento e por meu pecado.
Assim disse rei Artur quando viu que matara
Lucão. E ficou lá aquela noite com grande pesar e
tão sofrido, que bem entendeu que pouco duraria.
Quando chegou o dia, disse a Gilfrete:
— Cavalguemos e vamos diretamente ao mar,
porque tanta desgraça me sobreveio desta vez em
Logres, que não queria aqui morrer. E bem assim
como minha vida andou sempre em aventura, assim
será a minha morte. Porque minha morte ficará tão
em dúvida para todas as gentes, que ninguém poderá
se gabar de saber com certeza a verdade do meu fim.
Então cavalgaram e afastaram-se da capela e
foram diretamente para o mar.
Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e de
Gilfrete e torna a Bliobleris e ao arcebispo.
LXXXV
Combate de Bliobleris e Artur, o pequeno
673. Diz o conto que, depois que Bliobleris e
o arcebispo fizeram a torre, como rei Artur lhes
mandou, partiram de lá. E Bliobleris disse ao
arcebispo:
— Senhor, o que fareis?
— Por certo, disse o arcebispo, desde que
começamos esta torre a que demos cabo, ouvi dizer
muitas vezes a muitos dignos de crença, que rei
Artur estava perdido de tal modo que não sabiam
onde andava. E visto que sei com certeza que nunca
mais terei a companhia de tão bom homem, não
quero mais viver no século. E o século não valerá
daqui adiante, senão pouco, pois tal homem como
este está perdido, porque este era o esteio do mundo
e honra do século e já que está perdido, eu me farei
ermitão numa ermida e rogarei a Nosso Senhor por
rei Artur, que lhe faça merca à alma e pelos outros
bons cavaleiros que morreram na dolorosa batalha
de Salaber.
— De me fazer ermitão, disse Bliobleris, não
tenho intenção, porque ouvi dizer que meu senhor
dom Lancelote logo há de passar por aqui com muita
gente para tomar esta terra, pelo que ambos os filhos
de Morderete já vão se entregando.
[500] — Pois recomendo-vos a Deus, disse o
arcebispo, porque quero ir àquela ermida.
E disse-lhe onde ficava a ermida.
— Conheço bem esta ermida, disse Bliobleris,
porque já fui lá. E sabei que, se ventura me trouxer
por aqui, vos quereria ver.
674. Deste modo se despediram. O arcebispo
foi para a ermida e Bliobleris foi sozinho à aventura
pelo reino de Logres, munido de todas as armas
como cavaleiro andante. Um dia aconteceu que topou com Artur, o pequeno, também armado de todas
as armas. E quando se viram, não se reconheceram,
porque muito havia que tinham trocado suas armas.
Mas bem julgaram ambos de si mesmos que eram
cavaleiros andantes e, assim que se aproximaram,
pararam; e cada um estava com tal pesar, que, por
um tempo, não se falaram, lembrando-se daquele
sofrimento e daquele martírio em que os cavaleiros
andantes e os homens bons do reino de Logres
morreram e a que estava o reino de Logres reduzido.
Depois disse
Bliobleris:
— Por Deus, dizei-me quem sois, porque
muito o queria saber, porque julgo que fostes dos
cavaleiros de Artur.
E ele respondeu com mui grande dificuldade,
porque sobejo teve grande pesar, quando ouviu falar
de seu pai, e disse chorando:
— Tenho nome Artur, o pequeno. Muito
tempo estive na corte de rei Artur. E tanto lá estive
que aprouve a Deus que fosse companheiro da
távola redonda. Agora dizei-me quem sois.
— Sou, disse ele, Bliobleris, que bem deveis
conhecer, porque sou da távola redonda como vós.
Quando Artur, o pequeno, o ouviu, disse:
— Sois dos inimigos de rei Artur, porque sois
da linhagem de rei Bam. Por aquela linhagem estão
mortos e destruídos todos os do reino de Logres,
porque começaram a guerra e por isso sou vosso
inimigo mortal, e vos digo que vos guardeis de mim,
porque não há aqui senão morte.
675. Quando Bliobleris isto ouviu, respondeu:
— Ai, dom Artur! Isto não fareis, se Deus
quiser; porque sabeis que seríeis perjuro e desleal.
— Isto não há mister, disse Artur. Defendeivos, se quiserdes, se não vos achareis mal.
Quando Bliobleris viu que não podia outra
coisa fazer, deixou-se correr a ele. E feriram-se
ambos tão violentamente, que se meteram em terra e
os cavalos sobre si. E ficaram ambos muito feridos,
[501] mas eram de tão bom ânimo e de tão grande
força, que se levantaram o mais rápido que puderam
e meteram mão às espadas e deixaram-se ir e deramse tantos golpes, que se fizeram tais os escudos e as
lanças, que valiam muito pouco perto do que antes
eram, porque bem perceberia quem lá estivesse, que
bem entendiam ambos de espadas.
Que vos direi? Antes que daquela vez se
cansassem, foram tais os golpes que Outro cavaleiro
se teria por muito ferido. Mas eles tinham os ânimos
tão fortes e a raiva tão desmedida, que o não
sentiam.
Depois que ficaram cansados, descansaram
para recobrar força. E depois que descansaram um
pouco, disse Bliobleris:
— Dom Artur, vós me acometestes sem
motivo e combatestes comigo e nada ganhastes.
Rogo-vos, por Deus e por cortesia, que deixeis esta
batalha e vos darei por quite de quanto nela errastes.
E Artur disse que não o faria até que um deles
morresse.
— E se me matardes, disse Bliobleris, que
bem vos advirá? Porque quem quer que o saiba vos
terá por perjuro e desleal; e além disso, sabeis que
nunca mereci morte de vós.
— Sim, merecestes, disse Artur, e vos direi
como. Bem sabeis que tal é o costume dos cavaleiros
andantes, que, se algum cavaleiro é traidor de seu
senhor natural, e alguém ajudasse aquele cavaleiro
contra ele, seria por isso traidor. Pois agora me dizei,
disse Artur, bem sabeis que ajudastes Lancelote do
Lago, que era traidor de seu senhor, porque foi
achado com a rainha Genevra. E o ajudastes em toda
aquela guerra que por ele começou. Pois então não
sois traidor por ajudardes contra vosso senhor o
traidor? Por isso vos ataquei agora e porque matastes
diante da Joiosa Guarda o cavaleiro do mundo que
eu mais amava. E agora vos acho aqui e quero vos
dar o galardão.
— Certamente, dom Artur, disse Bliobleris,
vós vos conduzis por mau conselho. E já que vejo
que não posso convosco fazer paz, digo-vos uma
coisa, mas não para me louvar, não vos temo, porque
verdadeiramente sei que sou tão bom cavaleiro como
vós ou melhor. E bem vos mostrarei que é verdade,
porque vos matarei ou vencerei, antes que de vós me
separe e, assim Deus me ajude, me pesa muito, mas
pois que outra coisa não posso fazer, o farei. Porque
antes quero que morrais nas minhas mãos do que eu
nas vossas.
676. Depois disto, sem mais, deixaram-se
correr um ao outro e meteram mão às espadas e
deram-se os maiores golpes que puderam. E
demorou tanto aquela batalha que não houve quem
não tivesse [502] medo da morte, porque ambos se
sentiam feridos, mas muito mais estava ferido Artur,
o pequeno, do que Bliobleris, de modo que via que
não podia escapar, porque tinha bem doze feridas,
sendo que a menos perigosa era mortal. E quando
viu que não podia suportar a batalha, afastou-se um
pouco e disse:
— Bliobleris, como vos sentis?
— Bem, disse ele, graças a Deus, segundo o
preito, porque estou muito ferido, mas não de morte.
— Não? disse Artur. Por Deus, o mesmo não
digo de mim, porque me sinto ferido de morte por
minha loucura; e não me pesa tanto de minha morte,
como de que me não vinguei.
E depois que disse isto, caiu por terra de
costas. E Bliobleris, que teve grande pesar, meteu a
espada na bainha, porque lhe não quis mais mal
fazer. E foi a ele e tirou-lhe o elmo e o almofre, para
lhe dar algum ar que o alentasse mais. E Artur,
quando isto sentiu, cuidou que o fazia para lhe cortar
a cabeça e disse-lhe:
— Ai, Bliobleris! Não me façais mais mal,
porque me matastes por minha soberba, e se vos
afrontei, bem vos vingastes. Apressaivos, se vos
aprouver, e deixai-me soterrar inteiro.
— Assim Deus me ajude, disse Bliobleris, não
tenho vontade de vos fazer mais mal, pesa-me de
quanto fiz.
— Por Deus, disse Artur, não deveis ser
culpado, porque tudo foi por minha soberba. Mas
uma coisa que nunca disse a ninguém vos quero
dizer, porque vejo que estou morto e quero que o
mundo saiba. Sabei que rei Artur era meu pai, e por
isso tenho nome Artur, o pequeno. E isto, se vos
aprouver, fazei escrever sobre meu túmulo.
E assim que isto disse, morreu. E Bliobleris o
pôs diante de si sobre seu cavalo e o levou a uma
abadia e o fez enterrar muito honradamente e fez
escrever sobre o túmulo o que lhe rogara, e partiu.
Ora deixa o conto a falar dele e torna a rei
Artur.
LXXXVI
Morte de rei Artur
677. Quando rei Artur partiu da capela Veira
como já vos disse, foi com Gilfrete em direção ao
mar, com muito grande pesar das aventuras que
aconteciam e das desgraças que lhe sobrevinham re-
centemente, uma atrás das outras.
[503] Quando chegou ao mar, isto foi hora de
meio-dia, apeou e sentou-se na praia e descingiu a
espada e tirou-a da bainha e viu a cinta vermelha de
sangue daqueles que matara. E depois que a olhou
muito tempo, disse suspirando:
— Ai, Excalibur, espada boa e honrada, a
melhor que alguma vez entrou no reino de Logres,
fora a da estranha cinta, agora perderás teu dono,
mas onde acharás em quem tão bem empregada
sejas, como eras em mim, se não vens às mãos de
Lancelote? Ai, Lancelote, o melhor homem e o
melhor cavaleiro que alguma vez vi, fora Galaaz,
que foi o melhor dos melhores! Ora aprouvesse a
Nosso Senhor que esta espada tivesses e eu o
soubesse! Certamente a minha alma estaria mais
satisfeita com isso para sempre.
Então chamou Gilfrete e disse-lhe:
— Tomai esta espada e ide sobre aquele
outeiro e achareis lá um lago; e jogai-a nele, porque
não quero que os maus, que depois de nós reinarão,
tenham esta espada.
— Senhor, disse ele, cumprirei vossa ordem,
mas antes queria, se vos aprouvesse, que ma désseis.
— Não o farei, disse ele, porque não será em
vós empregada segundo minha vontade, porque não
tendes muito a viver.
678. Então tomou Gilfrete a espada e foi ao
outeiro e achou o lago e tirou a espada da bainha e
olhou-a e viu-a tão boa e tão rica, que lhe pareceu
que seria dano sobejo jogá-la no lago e era melhor
jogar a sua e pegar aquela para si e diria ao rei que a
jogara no lago. Então tomou a sua e jogou-a no lago
e escondeu a do rei nas ervas e voltou para o rei e
disse que a jogara no lago.
— Pois que viste então? disse o rei.
— Senhor, não vi nada.
— Ai, disse o rei, muita mágoa me dás. Volta
lá e joga-a, porque ainda não a jogaste.
E ele voltou lá e pegou a espada e olhou-a e
fez seu lamento e disse que seria grande dano se
fosse perdida; e pensou que jogaria a bainha e teria a
espada, porque ainda poderia ter proveito a ele ou a
outrem; e pegou a bainha e jogou-a no lago e voltou
para o rei e disse que deitara a espada. E o rei de
novo lhe perguntou o que vira.
— Senhor, disse ele, não vi nada. E o que
havia de ver?
— O que havias de ver? disse o rei. Não a
jogaste ainda. Por que me fazes tanto mal? Vai e
joga-a. Então verás o que acontecerá, porque, sem
grande maravilha, ela não pode ser perdida.
Quando viu que tinha que fazer, voltou ao
lago e pegou a espada e disse:
[504] — Ai, espada boa e rica, como é grande
dano que algum homem bom não te tome na mão!
Então a lançou o mais que pôde; e quando
chegou perto da água viu uma mão sair do lago que
aparecia até o cotovelo, mas do corpo não viu nada.
A mão recebeu a espada pelo punho e brandiu-a três
vezes ou quatro; depois que a brandiu, meteu-se com
ela na água. Ele esperou muito tempo se se lhe
mostraria mais.
679. Depois partiu do lago e voltou ao rei e
disse-lhe como deitara a espada e o que vira.
— Por Deus, disse o rei, tudo isto sabia que
aconteceria. Agora sei bem que minha morte se
aproxima muito.
Então vieram-lhe as lágrimas aos olhos e
pensou muito tempo e disse:
— Ai, Gilfrete! longo tempo me servistes e
me tivestes companhia. Mas agora chegou já o fim
em que nos convém já que eu parta. E bem vos
podeis orgulhar de que sois o companheiro da távola
redonda que mais longamente me teve companhia.
Mas agora vos digo que vos vades, porque de hoje
em diante não quero que fiqueis comigo, porque
meu fim se aproxima; e não é conveniente que
alguém saiba a verdade de meu fim, porque assim
como aqui porventura fui rei, passarei deste reino
porventura, porque ninguém poderá se gabar,
doravante, de com certeza saber o que será de mim.
E por isso quero que vos vades; e depois que
estiverdes de mim separado, se vos perguntarem
novas de mim, respondei-lhes que rei Artur veio
porventura e porventura partiu, e só ele foi rei
venturoso.
— Ai, senhor! mercê, disse Gilfrete. Por
Deus, deixai-me que vos faça companhia até que
seja o vosso fim.
— Nunca vos amarei, disse o rei, se não
fordes e vos dou certeza de que mal vos advirá, se
não fordes.
— Ai, senhor, disse Gilfrete, irei, pois vos
apraz, mas sabei que nunca fiz nada de que tanto me
pesasse, como me separar de vós, porque vos amei
sempre sobre todas as coisas. Mas por Deus e por
vossa bondade, isto me dizei, se vos aprouver,
cuidais que de novo vos veja, depois de partir agora?
— Por certo, disse o rei, nunca mais me
vereis.
E ele respondeu então:
— Senhor, quanto é maior meu pesar!
Então foi a seu cavalo e montou e disse
chorando com tão grande dificuldade como a quem
bem parecia que o coração se lhe queria partir:
— Senhor, recomendo-vos a Deus.
— Deus seja convosco, disse o rei.
[505] E deixou-o Gilfrete. Então começou a
chover muito e a fazer mau tempo. E foi Gilfrete
para um outeiro o mais depressa que pôde, porque
pensou que do outeiro conseguiria ver para onde rei
Artur iria.
680. Quando Gilfrete chegou ao outeiro,
parou em baixo de uma árvore até que passasse a
chuva, e começou a chorar e olhar aquele lugar onde
deixara o rei. E não ficou lá muito tempo, que viu vir
pelo meio do mar uma barqueta em que vinham
muitas mulheres. A barca aportou diante do rei Artur
e as mulheres sairam e dirigiram-se ao rei. E andava
entre elas Morgana, a fada, irmã de rei Artur, que
dirigiu-se ao rei com todas aquelas mulheres que
trazia, e rogou-lhe então muito, que, por seu rogo,
teve o rei que entrar na sua barca. E depois que
estava dentro, fez meter lá seu cavalo e todas as suas
armas; depois começou a barca a ir pelo mar com ele
e com as mulheres, em tal hora, que não houve
depois cavaleiro nem outrem no reino de Logres que
dissesse depois, com certeza, que o tivesse visto.
Quando Gilfrete, que estava no outeiro, viu
que o rei entrara na barca com as mulheres, desceu
do outeiro e dirigiu-se para lá, quanto o cavalo o
pôde levar, porque julgou que, se chegasse a tempo,
se meteria com seu senhor na barca e não se
separaria dele por nada que acontecesse, a não ser
por morte.
E quando chegou ao mar, a barca estava já
afastada da praia e viu o rei entre as mulheres e
reconheceu bem Morgana, a fada, porque muitas
vezes a vira. E a barca estava da praia tanto como
um lance de besta. E quando Gilfrete viu que assim
perdera o rei, começou a fazer o maior pranto do
mundo e ficou ali todo aquele dia e toda aquela
noite, que não comeu nem bebeu, e já o dia anterior
não comera.
681. No outro dia, quando o sol estava já
levantado, montou Gil-frete muito sofrido e com
grande pesar e partiu dali e cavalgou tanto que
chegou a um mato pequeno, e morava lá um ermitão
que era muito seu conhecido, e contou-lhe então o
que vira de rei Artur, quando o vira entrar no mar
com as mulheres.
Ao terceiro dia, partiu dali e foi à capela Veira
para saber se estava já Lucão enterrado, e chegou iá
à hora de meio-dia e apeou e atou seu cavalo a uma
árvore e entrou e achou dois túmulos diante do altar,
muito formosos e muito ricos. Mas um era muito
mais rico do que o outro. Sobre o que era menos rico
havia um letreiro que dizia: “Aqui jaz Lucão, o
copeiro, que rei Artur matou em baixo de si.” Sobre
o outro mais rico que era maravilha, havia.um
letreiro [506] que dizia: “Aqui jaz rei Artur que, por
sua proéza e por sua bondade, conquistou doze
remos.”
682. Quando leu os letreiros, desfaleceu sobre
o túmulo, e quando acordou, beijou-o chorando
muito sentidamente, e ficou lá até a tarde, quando
um homem bom chegou, que servia o altar da capela. E assim que o viu, Gilfrete perguntou-lhe:
— Senhor, por Deus, é verdade que aqui jaz
rei Artur?
— Certamente, disse o homem bom, creio que
sim, porque há pouco traziam aqui mulheres o corpo
de um cavaleiro num leito, e faziam pranto muito
grande à maravilha, e quando lhes perguntei quem
era aquele por quem tal pranto faziam, me disseram
que era rei Artur; e metemo-lo então neste túmulo.
Depois foram elas em direção ao mar e não
voltaram.
E Gilfrete julgou então que aquelas eram as
mulheres que vira meter rei Artur na barca, mas
disse no seu íntimo que ainda queria saber
verdadeiramente se era rei Artur quem no túmulo
jazia.
683. Então foi Gilfrete ao túmulo, estando
diante dele o homem bom. Então mandou erguer a
lápide e quando olhou dentro, nada viu, senão o
elmo de rei Artur, aquele mesmo que trouxera na dolorosa batalha. Quando viu que o corpo do rei não
estava lá, mostrou ao homem bom o túmulo vazio e
disse-lhe:
— Aqui não jaz meu senhor, quero que sejais
testemunha. E tornou a lápide sobre o túmulo, como
antes estava; depois pergun-tou outra vez:
— Vistes aqui meter bem o corpo de meu
senhor?
— Por Deus, disse o homem bom, metemos aí
um corpo e as mulheres me fizeram saber que era rei
Artur. Outra verdade não vos saberia dizer a
respeito.
— Assim? disse Gilfrete; em vão me
esforçarei por perguntar como rei Artur morreu.
Verdadeiramente, este é o rei venturoso, cuja morte
ninguém saberá; e disse bem a verdade, que como
veio ao reino de Logres porventura, assim se foi ele
porventura. Mas pois vejo que não é proveito
procurá-lo, pois achado não pode ser, nunca mais
viverei no século, antes quero ficar aqui nesta
ermida e viver aqui, enquanto viva.
Então rogou ao homem bom, que o recebeu
em sua companhia. Deste modo como vos digo,
ficou Gilfrete com aquele homem bom e serviu a
Deus na capela Veira e levou vida muito santa e boa.
Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e da
morte de Gilfrete, para contar de Lancelote e dos
filhos de Morderete.
[507] LXXXVII
Últimos feitos de Lancelote
684. Conta a estória que, enquanto Gilfrete foi
à ermida, ambos os filhos de Morderete foram a
Ginzestre para guardar a vila. Quando souberam da
morte de seu pai e de rei Artur e de outros homens
bons, que morreram na batalha dolorosa, ficaram
muito confortados. Eram ambos bons cavaleiros e
conheciam muito o mal, como seu pai, e prometeram
tanto e deram aos de Ginzestre, que os receberam
por senhores, como fizeram a seu pai. E reuniram
logo quanta gente puderam e foram pela terra
assenhoreando-se dela. E isto podiam facilmente
fazer, porque todos os homens bons foram mortos na
batalha.
Quanto a rainha soube a verdade da batalha
que acontecera no campo de Salaber e lhe disseram
que o rei estava morto e todos os homens bons de
Logres, teve tão grande pesar que bem quisera estar
morta. E quando lhe disseram que os filhos de
Morderete iam se assenhoreando da terra e tinham
tanta gente, que logo teriam todo o reino, teve tão
grande pesar, que não poderia maior, porque teve
medo de a matarem. E por isso tomou hábito de
ordem e fez-se monja.
685. Enquanto isto, chegaram as novas a
Lancelote, que estava em Gaunes com grande
companhia de homens bons de seu reino. Depois
também contaram-lhe como os filhos de Morderete,
que não estiveram na batalha, andavam se
assenhoreando da terra. E destas novas teve grande
pesar Lancelote e fez muito grande pranto por rei
Artur, porque não havia ninguém no mundo que
mais amasse.
E perguntou por novas da rainha. Mas não lhe
soube nada dizer quem as novas lhe dava, porque
poucos havia na terra que soubessem o que fora feito
dela, porque, sem falha, ela pensava esconder-se o
mais que pudesse, com medo de sua morte. Muito
teve Lancelote grande pesar daquelas novas e tomou
conselho com rei Boorz e com rei Leonel do que
poderiam fazer, porque não desamava nada do
mundo tanto como Morderete e seus filhos.
Respondeu rei Boorz:
— Senhor, teria por bem que nos reuníssemos
e passássemos à Grã-Bretanha; e, se nos esperarem,
matemo-los com alguma morte estranha, porque não
vejo como deles possamos nos vingar de outro
modo.
Lancelote concordou com seu conselho. Então
mandaram mensageiros ao reino de Benoic e ao
reino de Gaunes e ao de Gaula [508] e reuniram na
cidade de Gaunes mais de vinte mil homens tanto a
pé como a cavalo. E depois que foram reunidos,
Lancelote e rei Boorz e rei Leonel e Heitor, com
toda sua companhia, partiram de Gaunes e andaram
tanto por suas jornadas, que chegaram ao mar e
acharam suas naves preparadas e entraram e tiveram
tão bom vento que, nesse dia mesmo, aportaram na
Grã-Bretanha e desceram e pousaram na praia.
686. No outro dia, chegaram as novas aos
filhos de Morderete, que Lancelote estava na terra
com muita gente. Quando isto ouviram, ficaram
muito espantados e decidiram se ajuntar e lutar com
ele. Com isto concordaram, porque tinham mais
gente do que Lance-lote. Assim disseram, assim
fizeram, porque se reuniram em Ginzestre e tanto
fizeram em tão pouco tempo por sua grandeza e
proeza, que todos os homens do reino de Logres lhes
fizeram homenagem e contavam com a ajuda de
muitos cavaleiros estranhos.
Depois que estavam reunidos, saíram de
Ginzestre e indo, no outro dia, pela manhã, logo lhes
chegou um mensageiro que lhes disse:
— Mortos estais e confundidos, porque
Lancelote vem aqui com grande companhia e não
está daqui mais de seis léguas, e asseguro-vos que
muito cedo estará convosco.
Quando isto ouviram, disseram que o
aguardariam lá e lá combateriam com ele; e apearam
para descansar a eles e os cavalos. Assim ficaram os
de Logres diante de Ginzestre. E Lancelote com toda
sua compahia cavalgou, mas com muito grande
pesar sobejo, porque aquele dia lhe chegaram novas
de que a rainha estava morta, havia três dias.
Mas porque o nosso conto não revela como
morreu, contaremos aqui de outra maneira.
687. Nesta parte, diz o conto que, depois que a
rainha Genevra entrou no convento com pavor dos
filhos de Morderete, ela, que sempre fora feliz com
todas as alegrias do mundo, e teve de sofrer as penitências da ordem, de que não tinha costume, caiu
logo de cama enferma, e todos os que a viam tinham
muito cuidado com sua morte e com sua vida. E
tinha consigo uma donzela de alta posição e que
tomara hábito por amor dela. Esta donzela fora
amante de Gilfrete, filho de Dondinax. E porque a
rainha ouvira dizer que Gilfrete fizera mais
longamente companhia a rei Artur do que outro
cavaleiro, amava tanto a companhia desta donzela,
que mais não podia. E confortavam-se e choravam
muito amiúde, quando lhes lembravam as grandes
alegrias e a grande nobreza e o grande poder em
[509] que estiveram, e agora estavam no convento
com pavor da morte. A rainha, embora no convento,
não deixava de fazer grande pranto por Lancelote
que não dissesse alguma vez:
— Ai, meu senhor Lancelote, dom Lancelote!
Como esquecestes de mim que jamais cuidei que me
deixásseis. Se levásseis em conta vossa bondade,
vosso prazer e o grande poder que Deus vos deu, vos
lembraríeis alguma vez de mim e vingaríeis a morte
de rei Artur e conquistarieis o reino de Logres e me
alegraríeis desta dor em que estou e deste poder
alheio em que estou, em que me meti com pavor da
morte.
Isto dizia a rainha de Lancelote, quando
estava doente, e a donzela a confortava muito,
quanto ela podia. E dizia que não tivesse pavor, que
bem soubesse que verdadeiramente Lancelote não
tardaria muito a vir, porque dele já ouvira novas.
E a rainha respondeu:
— Sobejo me tarda, e sei que em sua
tardança, morro.
688. Naquela abadia, havia uma monja que
entrara no convento, porque amara Lancelote e não a
quisera, e desamava a rainha muito profundamente,
porque a deixara Lancelote por amor da rainha. Um
dia aconteceu que disse esta monja à amiga de
Gilfrete, aquela que guardava a rainha, e fingiu que
não queria que a rainha ouvisse:
— Ai, donzela, más novas vos trago! Dom
Lancelote, que vinha com grande força para
conquistar o reino de Logres, perdeu-se no mar com
toda sua gente.
— Por Deus, disse a amiga de Gilfrete, grande
perda é esta. Mas como sabeis se é verdade?
— Sei bem, disse ela, por quem o viu.
A rainha, que estava doente, quando ouviu
estas novas, teve tão grande pesar que, por pouco,
não ficou louca; mas disfarçou bem, com medo
daquela que as novas dizia. E depois que partiu,
disse a rainha com grande pesar:
— Ai, mar amargoso e maldito, cheio de
amargura e de dor, néscio, mau e desconhecido, mal
me mataste, porque me tiraste o mais leal amante do
mundo e tiraste-me seu amor.
Depois que disse isto, calou-se com tão
grande pesar, que não pôde mais comer nem beber, e
ficou assim três dias. Ao quarto dia, chegaram novas
de que Lancelote, sem falha, aportara na Grã-Bretanha com tão grande cavalaria e tão boa, que
não há quem no mundo o ousasse esperar em campo.
689. A donzela, que guardava a rainha, ficou
muito alegre com estas novas e foi correndo à rainha
e disse-lhe:
[510] — Senhora, muito vos trago boas novas.
Sabei verdadeiramente que dom Lancelote está na
Grã-Bretanha com tanta gente que em pouco tempo
a correrá toda.
A rainha, que perto estava de morta, quando
estas novas ouviu, respondeu com grande
dificuldade:
— Donzela, tarde mo dissestes, e já não me
vale nada sua vinda, porque estou quase morta. Mas,
porque dom Lancelote é o homem do mundo que
mais amo, rogo-vos que façais pelo meu amor e pelo
seu, o que vos quero rogar.
E ela lhe prometeu lealmente que o faria a
todo seu poder.
— Pois ora vo-lo direi, disse a rainha. Bem
vejo que estou morta e não hei amanhã de chegar à
manhã e bem vos digo que nunca fiquei tão alegre
como com estas novas. E de outra parte, pesa-me
sobejo que o não posso ver antes de morrer, porque
se o visse, parece que minha alma ficaria mais
alegre. E porque quero que ele veja e saiba que sua
vinda me apraz e que morro com pesar e de bom
grado o que queria ver, se pudesse, por isso vos rogo
que, tão logo eu morra, me tireis o coração e o leveis
para ele neste elmo que foi dele; e lhe digais que, em
lembrança de nossos amores, lhe envio meu coração
que nunca o esqueceu.
Aquele dia mesmo passou a rainha Genevra e
a donzela cumpriu sua ordem, mas não achou
Lancelote e por isso não deu cabo a tudo que a
rainha mandara.
Mas ora deixa o conto a falar dela e torna a
Lancelote e aos filhos de Morderete.
690. Aqui diz o conto que, depois que
Lancelote ouviu as novas da rainha, que estava
morta, teve tão grande pesar que era maravilha, e
contudo partiu e andou aquele dia e sua companhia
até que chegaram a Ginzestre. E os outros, que os
esperavam, quando os viram, cavalgaram a
ajuntaram-se com eles. Naquele ajuntamento, muitos
ficaram mortos e feridos e foi grande o desamor
entre eles. Depois que quebraram suas lanças,
meteram mão às espadas e começaram a ferir o mais
que puderam, de modo que, por este preito, veríeis
muitos mortos de uma parte e da outra e muitos feridos. A batalha durou até hora de noa e aconteceu
que Meliante, o filho de Morderete, tinha uma lança
pequena e grossa e de ferro muito cortador e ele era
muito bom cavaleiro de armas; e deixou-se correr a
Leonel e feriu-o de modo que escudo e loriga não
lhe prestaram que a lança não fosse do outro lado,
pelo meio do peito, e meteu-o em terra do cavalo, e
ao cair, quebrou-lhe a lança, de modo que o ferro
com pedaço da haste ficou nele. Este golpe viu [511]
rei Boorz e bem reconheceu, sem falha, que seu
irmão estava ferido de morte, e teve tão grande
pesar, que bem cuidou da morte com pena.
Então se deixou correr rei Boorz a Meliante e
foi lhe dar uma espadada, como quem muito grande
golpe havia já dado, e lhe quebrou o elmo e o
almofre e o fendeu até as espáduas, e caiu Meliante
em terra morto. E quando o viu em terra morto disse:
— Ai, traidor! Que mal hoje cobro o dano que
me fizeste! Certamente meteste em meu coração tão
grande dor que jamais sairá.
Então se deixou correr aos outros, onde via
maior aperto para matar e derribar quantos podia, de
modo que não há quem não se maravilhasse das
maravilhas que faziam os cavaleiros de Gaunes.
Quando viram cair rei Leonel, apearam e livraram-
no do aperto e deitaram-no sob uma árvore. E
embora o vissem tão ferido, não ousaram fazer
lamento para que seus inimigos não tivessem prazer.
691. Assim foi diante de Ginzestre a batalha
começada, má e dolorosa, que durou até hora de noa
tão obstinadamente que, com dificuldade se podia
reconhecer quem levava a melhor. Depois da hora de
noa, aconteceu que Lancelote topou com aquele que
era o filho maior de Morderete, e era sem falha bom
cavaleiro. Lancelote o reconheceu, porque trazia tais
armas como seu pai costumava trazer, e deixou-se
correr a ele com a espada na mão. E o outro não o
receou, antes ergueu o escudo contra o golpe,
quando viu vir a espada. E Lancelo.te, que
mortalmente o desamava, feriu-o tão violentamente
que lhe fendeu o escudo até o centro, de modo que
lhe cortou o punho com que o segurava. E quando
ele sentiu que tinha perdido a mão, quis fugir para
uma floresta, que ficava perto dali, porque bem sabia
que não podia resistir a Lancelote. Mas Lancelote o
reteve em tão grande dor, que não teve força para
escapar, e deu-lhe um tão grande golpe, que lhe fez a
cabeça com seu elmo voar do corpo em terra mais
longe que uma lança. Quando os outros viram este
morto, não souberam como recuperar-se e tomar
conselho, e começaram a fugir e os outros
começaram a ir atrás deles matando-os e derribandoos por esses caminhos. E Lancelote, que os ia
alcançando à frente de toda sua companhia, matava e
feria e derribava tão violentamente, que bem se
poderia ver o rastro atrás dele dos que derribava
mortos e feridos. Tanto andou assim que alcançou
um duque de Gorra, que sabia que era traidor e
desleal e fizera muitas vezes pesar aos da linhagem
de rei Bam.
692. Quando Lancelote o alcançou e o
reconheceu, disse-lhe:
[512] — Ai, traidor e desleal! Certamente
estais morto, porque não há nada no mundo que vos
salve, senão Deus.
E o outro olhou atrás de si e quando
reconheceu que era Lancelote e que deste modo o
ameaçava, teve grande pavor, porque bem sabia que
verdadeiramente era o melhor cavaleiro do mundo e
bem viu que estava morto se o alcançasse. E
começou a ir quanto o cavalo podia levar em direção
a uma montanha. E andava em muito bom cavalo, e
Lancelote também, de modo que bem correram duas
léguas. Então cansou o cavalo do duque, de modo
que, de cansado, caiu morto em baixo dele. E
Lancelote, que ia perto, quando o viu em terra, foi a
ele como estava, a cavalo, e deu-lhe uma espadada
por cima do elmo, que o fendeu até os dentes. Depois não o olhou mais e começou a ir quanto pôde,
mas quanto mais cuidava aproximar-se da
companhia, tanto mais se afastava dela.
693. Tanto andou Lancelote perdido, que
chegou a um vale muito fundo. Então achou lá um
escudeiro que vinha de Ginzestre, e perguntou-lhe
de onde vinha. E ele lhe disse que vinha do campo
onde fora a dolorosa batalha.
— E cuido, a meu ciente, disse o escudeiro,
que não escapou de lá ninguém vivo, senão vós.
E isto dizia ele, porque cuidava que Lancelote
era do reino de Logres.
— Mas isto vos digo: os outros têm muito
grande pesar de rei Leonel, que perderam na batalha.
— Como? disse Lancelote, é verdade que rei
Leonel está morto?
— Verdade, disse o escudeiro; eu o vi morto,
e nunca vistes tão grande pranto como os seus por
ele faziam.
— Certamente, disse Lancelote, aqui há
grande dano, porque muito era bom cavaleiro. Nosso
Senhor lhe tenha merca à alma.
Então começou a chorar muito violentamente;
e o escudeiro lhe disse:
— Senhor, onde cuidais hoje albergar? porque
é muito tarde.
— Não sei, disse ele, não daria nada por
pousada, tão grande é meu pesar.
— E o escudeiro lhe perguntou como se
chamava.
— Tenho nome Lancelote, disse ele.
— E o escudeiro começou a fugir assim que o
ouviu dizer que era Lancelote, porque tinha muito
grande pavor que o matasse. E Lancelote começou a
andar triste e muito sofrido. E andou já aquela noite
e todo aquele dia, que não comeu ele nem seu
cavalo. De manhã, aconteceu que a ventura o levou a
uma ermida, onde achou [513] o arcebispo de
Cantuária e Bliobleris, que se meteram lá para servir
a Nosso Senhor. E quando os achou, ficou muito
alegre; e eles quando o viram também ficaram muito
alegres e o desarmaram. E assim que ficou
desarmado, foi a um altar de Santa Maria, que lá
havia, e ficou de joelhos diante dele e jurou que, se
Deus e Santa Maria e os santos o ajudassem, jamais
se afastaria do serviço de Nosso Senhor, mas ficaria
naquela ermida, enquanto vivesse. E como jurou,
assim o fez, porque ali morreu em serviço de Nosso
Senhor. Mas ora deixa o conto a falar dele e torna a
Boorz e a sua companhia.
694. Depois que os de Gaunes terminaram sua
batalha e desbarataram os de Ginzestre e viram rei
Leonel morto, tiveram grande pesar, e decidiram
entre si o que fariam.
— Certamente, disse rei Boorz, tanto tenho
perdido no reino de Logres depois que perdi meu
irmão, que não tenho mais vontade de morar aqui,
antes quero ir embora.
Mas não sabia ainda que Lancelote estava
separado deles, e mandou meter seu irmão num leito
e partiu do campo em que fora a batalha e cavalgou
tanto até que chegou ao mar, e lhe disseram os de
sua companhia:
— Senhor, fizemos mal, porque já dois dias
andamos e não temos conhecimento de nenhum
recado de Lancelote.
Então mandou a metade das pessoas com o
corpo de rei Leonel e a outra metade ficou.
— Porque nunca, disse rei Boorz, tanto amei
esta terra como agora desamo pela morte de meu
irmão que aqui perdi.
695. Do modo como rei Boorz lhes mandou
fizeram: a metade ficou com Heitor e a outra metade
foi com rei Boorz. Os que ficaram permaneceram
quatro dias num castelo chamado Ambenic e
esperaram lá, se poderiam ter novas de Lancelote; e
Heitor ficou com eles, com grande pesar de seu
irmão, de quem não podia ter nenhuma nova. Eles
assim esperando, eis que vem um ermitão que disse
a Heitor:
— Em vão esperais aqui vosso irmão, porque
não tem prazer de vir aqui, porque se meteu numa
ermida, de que não sairá jamais, porque o prometeu
a Nosso Senhor; e está com ele o arcebispo de
Cantuária e Bliobleris. Estes dois também são
ermitães.
— E onde estão? disse Heitor, poderia
encontrá-los?
— Isto vos não direi, disse o ermitão.
— Se não me quiserdes dizer, disse Heitor,
não será por isso que não vá buscá-lo até que o ache.
[514] 696. Então fez diante de si vir toda sua
companhia e os fez jurar que cumprissem todos sua
ordem, e depois que juraram, disse-lhes:
— Agora ordeno que saiais do reino de
Logres e vades para vossas terras.
— E vós, disseram eles, senhor, o que fareis?
— Ficarei, disse ele, e se depois me der
vontade de ir, irei atrás de vós.
E assim fizeram, porque se meteram no mar e
foram para suas terras, e Heitor ficou. Então rogou
ao ermitão, por Deus, que o levasse onde estava seu
irmão, que queria lá servir a Deus como ele. Então
partiram e levou-o à ermida onde seu irmão estava e
os outros de quem vos disse. Assim que os irmãos se
viram, choraram de alegria, porque muito se
amavam. E Heitor disse a Lancelote:
— Senhor, pois vos acho em serviço de Jesus
Cristo e vos apraz ficar, quero convosco ficar para
nunca de vós me separar.
Quando os outros isto ouviram, ficaram muito
alegres de que tão bom cavaleiro entrava no serviço
de Deus e receberam-no muito bem, dando graças a
Nosso Senhor. Deste modo ficaram ambos os irmãos
na ermida e dai em diante esforçaram-se por fazer
serviço a Nosso Senhor. Quatro anos e mais ficou
Lancelote na ermida de modo que ninguém poderia
suportar mais canseira e esforço do que ele sofria em
jejuar e em velar, em fazer preces e oraçães e em
mortificar seu corpo de todas as maneiras que podia.
Ao quarto ano, passou Heitor e soterraram-no
na ermida.
697. Ao quinto ano, quinze dias antes de
maio, deu tal enfermidade em Lancelote, que bem
viu que não podia escapar, e rogou ao arcebispo e a
Bliobleris que, assim que passasse, o levassem à
Joiosa Guarda e o metessem naquele túmulo onde
jazia Galeote, o senhor das longas ilhas. E eles
prometeram que o fariam. Quatro dias depois deste
rogo viveu Lancelote e, ao quinto dia, cessou. Mas
àquela hora em que passou não estava com ele o
arcebispo nem Bliobleris, antes dormiam fora sob
um olmo. E aconteceu então que Bliobleris
despertou primeiro e viu o arcebispo dormindo
perto, e dormindo ria e tinha o maior aspecto de
alegria que nunca vistes. E dizia por sonho:
— Ai, Deus, bendito sejais, porque agora vejo
quanto desejava ver e saber!
Quando Bliobleris viu que ele dormia deste
modo e ouviu o que dizia, teve o maior medo de que
o demo tivesse entrado nele e despertou-o.
— Ai, senhor! disse ele, por que me tirastes
de tão grande alegria em que estava?
[515] — Em que alegria estáveis? disse
Bliobleris.
— Estava, disse ele, em tão grande festa e em
tão grande companhia de anjos, que nunca vi tão
grande reunião. E levavam com tio grande alegria e
com tão grande festa como vos digo, a alma de dom
Lancelote. Agora vamos ver se está morto.
— Vamos, disse Bliobleris.
E foram logo onde deixaram Lancelote, e
acharam que a alma já se havia separado dele.
— Ai, Deus! disse o arcebispo, bendito sejais!
Agora sei verdadeiramente que aquela grande festa
que os anjos faziam era com sua alma. Agora posso
dizer que a penitencia vale mais que todas as coisas
do mundo. De hoje em diante, enquanto viver, não
me separarei da penitencia.
— Agora convém, disse Bliobleris, que o
levemos à Joiosa Guarda, por que lhe prometemos.
— verdade, disse o arcebispo.
Então prepararam uma padiola e deitaram nela
o corpo de Lancelote. E pegou um de um lado e
outro de outro e partiram da ermida e andaram tanto
por suas jornadas, que chegaram à Joiosa Guarda.
Mas sabei que foi muita canseira e grande esforço.
698. Quando os do castelo souberam que
aquele era o corpo de Lancelote, saíram em direção
dele com grande pranto e chorando muito e fazendo
grande lamento, como se todos vissem sua linhagem
morta diante de si. E levaram-no à maior igreja do
castelo e fizeram-lhe quanta honra mais puderam e
quanta deviam fazer a tal homem. Aquele dia
mesmo, aconteceu que rei Boorz chegou lá muito
pobremente, acompanhado de um só cavaleiro e de
um só escudeiro. E quanto soube que o corpo de
Lancelote estava na igreja foi lá e o fez descobrir e
tanto o olhou e observou que bem reconheceu que
era seu senhor. E assim que o reconheceu, caiu
desfalecido sobre ele; e quando acordou, começou a
fazer seu pranto o maior do mundo.
Todo aquele dia e aquela noite, foi muito
grande o pranto no castelo e fizeram abrir o túmulo
de Galeote, que era tão rico, que mais não podia. E
de manhã, meteram-no lá. Depois fizeram sobre a
lápide entalhar um letreiro, que dizia: “Aqui jaz
Galeote, o senhor das longas ilhas, e com ele,
Lancelote, o melhor cavaleiro que alguma vez
trouxe armas na Grã-Bretanha, fora somente Galaaz,
seu filho.”
Depois que o meteram no túmulo, veríeis mais
de mil ao redor dele fazer lamentação.
E o arcebispo perguntou ao rei Boorz como
lhe acontecera que chegara na hora do enterro de
Lancelote.
[516] — Por certo, senhor, disse rei Boorz,
um ermitão de santa vida que há no reino de Gaunes,
me disse, não há um mês que, se neste dia, pudesse
yir a este castelo, acharia meu senhor ou morto ou
vivo. E aconteceu como ele disse. Mas, por Deus, se
soubésseis onde morou até aqui, dizei, porque muito
o desejo saber.
E o arcebispo lhe contou a vida que Lancelote
sempre teve desde que partiu da batalha de
Giftzestre e o formoso fim que teve o seu
passamento e quanto a respeito viu.
699. Quando Boorz, que de muito bom grado
escutava o que o arcebispo dizia, ouviu toda sua
vida, respondeu:
— Senhor, pois ele convosco viveu até seu
fim, eu sou aquele que no lugar dele vos farei
companhia, enquanto viver, porque jamais, sem
falha, me afastarei de penitencia, antes quero ir
convosco. E viverei em vossa companhia todos os
dias de minha vida.
E o arcebispo e Bliobleris agradeceram muito.
E no outro dia, partiram do castelo da Joiosa Guarda
e rei Boorz mandou seu escudeiro e seu cavaleiro
dizerem aos de Gaula e aos de Gaunes que fizessem
rei a quem quisessem, porque jamais voltaria lá. E
foi com o arcebispo e com Bliobleris a pé e mui
pobremente de modo que quem bem olhasse sua alta
posição de rei de tão rico reino, bem poderia
entender que tinha boa vontade com Deus para
servi-lo.
700. Um dia aconteceu que, quando iam assim
para sua ermida, acharam Meraugis de Porlegues
armado de todas as armas. quando ele viu os três
homens bons, embora não os reconhecesse, teve deles grande pena, porque os viu andar descalços e
bem lhe pareceu que eram bons e honrados e de vida
boa e, estando a cavalo, lhes perguntou:
— Quem sois?
E respondeu o arcebispo:
— Somos pecadores que fazemos penitencia
de nossos pecados. E bem nos adviria, se por tão
pouca miséria, pudéssemos salvar nossas almas.
E Meraugis olhou bem e pareceu-lhe que o
vira já outra vez, mas não o pôde reconhecer. Por
isso lhe disse:
Rogo-vos, pela fé que deveis àquele que
servis, que me digais quem sois.
E ele disse:
— Sou ermitão, mas já fui arcebispo de
Cantuária e naquele dia o era ainda em que foi a
dolorosa batalha de Salaber, pela qual o reino de
Logres foi destruído. E por aquele mau dia que vi,
entrei numa ermida, e fiquei lá até agora e ficarei,
enquanto viver.
[517] — E quem são estes outros dois? disse
Meraugis, que andam encobertos?
E ele os nomeou. Quando Meraugis isto
ouviu, ficou maravilhado da maravilha que teve,
porque não há nada por que ele cuidasse tão
honrados cavaleiros e de tão alta posição se
metessem tão cedo no serviço de Deus. E desceu
logo de seu cavalo e disse:
— Senhores, pois vejo que deixastes a
cavalaria para servir a Nosso Senhor, eu a deixo,
porque hei bem mister de minha alma salvar como
vós, e não tomarei mais armas, a não ser que grande
cuidado me obrigue.
Então se desarmou e deixou todas as suas
armas no meio do caminho e foi com eles. Quando
os outros três isto viram, tiveram grande prazer e
agradeceram a Nosso Senhor. Depois começaram a
andar juntos até que chegaram a sua ermida. E
Meraugis lhes perguntou se sabiam algumas novas
de Lancelote. E eles lhe contaram quanto a respeito
sabiam e como fora ermitão com eles.
Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a
rei Mars para dizer como teve conhecimento das
mortes dos cavaleiros do reino de Logres e como
eram todos da távola redonda.
LXXXVIII
Vingança de rei Mars
701. Assim que as novas da morte de
Lancelote Foram sabidas por toda Grã-Bretanha e
por Gaula e por Gaunes e por Benoic e pela Pequena
Bretanha e por Escócia e por Irlanda e por
Cornualha, rei Mars estava ainda vivo e era tão
velho que, àquele tempo, não havia rei no mundo de
tão avançada idade, e cavalgava ainda animadamente e mantinha bem sua terra, que não temia
vizinho que tivesse; mas tanto estava sua linhagem
rebaixada, que Tristão, seu sobrinho, estava morto.
Mas não tinha ele disso grande pesar. Mas da morte
da rainha Isolda andava ele muito triste, tão
sobejamente a amava muito. Mas da morte de seu
sobrinho não estava triste, mas muito alegre. Quando
ouviu falar da morte de Lancelote, ficou muito
alegre e disse então:
— De hoje em diante, não vejo quem me
possa impedir de ter o reino de Logres, pois os da
linhagem de rei Bam estão mortos. E ainda que
estivessem vivos, a morte deste só me bastaria. Mas
vivendo este, não há quem no mundo o pudesse
acabar.
Então reuniu quanta gente pôde ter e passou o
mar e foi à GrãBretanha. E depois que saíram das
naves e tiraram o que tinham de tirar, disse rei Mars:
[518] — Agora estou na terra em que recebi
mais desonra e dano que em qualquer lugar onde
tenha estado. Agora quero que alguma vez me
tenham por rei, se não me vingo.
Então ordenou aos seus uma crueldade que
nunca rei cristão fez: que não deixassem de matar
homem e mulher que achassem.
— Tampouco quero, disse ele, que quanto rei
Artur tenha feito, fique, mas que tudo seja destruído;
e quantas igrejas e quantos mosteiros ele fez, sejam
destruidos, porque já tantos não destruireis que eu
não faça mais e melhores. E faço esta destruição,
porque não quero que depois de minha morte
apareça neste reino nada que rei Artur tenha feito.
Isto mandou rei Mars fazer. Por isso
aconteceu que o reino de Logres chegou perto de ser
destruído.
702. Depois que isto foi ordenado, começaram
a ir pela terra, estragando-a toda por onde iam; e
tanto andaram, que chegaram numa meia-noite à
Joiosa Guarda, entraram e destruíram-na, de forma
que nunca depois valeu senão pouco. Quando rei
Mars soube que ali estava o corpo de Lancelote, foi
ver o túmulo onde jazia, e quando o viu tão formoso
e tão rico, disse:
— Ai, Lancelote, quanto mal me fizeste
enquanto viveste! E nunca me pude vingar. Mas
agora me vingarei quanto posso.
Então fez perfurar o túmulo, que era tão rico e
tão formoso, que todo o haver de Cornualha não
seria seu preço, e o fez deitar fora do castelo num
lago, de onde ninguém o pudesse tirar. E tomou o
corpo de Lancelote, que ainda estava inteiro, e
mandou fazer uma grande fogueira, e mandou deitar
nela os ossos de Galeote e deixou-os arder até que
viraram cinza.
E bem vos digo que estavam lá muitos
homens bons, a quem pesava muito.
703. Depois que rei Mars isto fez, foi para
Camalote, porque eram muito poucos contra os seus,
mas eram de forte ânimo e de muita fama e disseram
que não se deixariam cercar. E sairam logo todos da
vila e combateram com eles. Mas eram tão poucos,
que logo foram todos mortos, de modo que ninguém
escapou; e, sem falha, isto os fez morrer, porque
eram de tão forte ânimo, que não quiseram fugir. Rei
Ma2rs entrou na cidade e destruiu o resto dela. E
quando foi à távola redonda e viu o lugar de Galaaz,
disse:
— Este foi o lugar daquele que destruiu num
só dia a mim e aos do reino de Sansonha. E
destruirei por desamor dele, a távola redonda e seu
lugar primeiramente, e depois todos os outros.
E bem como o disse, fez, que mandou tudo
destruir, que não ficou nada.
[519] 704. Naquela hora que rei Mars isto fez,
veio a ele um cavaleiro de Cornualha, que sempre
desamara rei Artur e a linhagem de rei Bam, e disselhe:
— Senhor, nada tereis feito, se não matardes
rei Boorz e Bliobleris e o arcebispo de Cantuária e
Meraugis; aqueles foram da távola redonda e vivem
nesta terra, e se vos escapam, buscarão gente com
que vos farão muito mal a vós e a todos os do vosso
lado.
E o rei lhe perguntou onde estavam. Eele lhe
contou todos os feitos dos quatro cavaleiros.
— Isto não há mister, disse rei Mais; nestes
convém que vingue minha sanha. Agora cuidai de os
buscar, e a quem até eles me levar, darei tal riqueza,
que se terá por bem recompensado.
Por esta promessa que ouviram, foram muitos
cavaleiros pelas ermidas buscá-los.
705. Da linhagem de rei Mars foram àquela
demanda quatro cavaleiros. E um dia aconteceu que
chegaram perto da ermida onde os quatro cavaleiros
moravam e acharam diante de uma fonte Meraugis
dormindo, muito pobremente vestido e magro e
amarelo e muito mudado do que costumava ser,
porque muita miséria sofrera. E despertaram-no para
perguntarem a respeito do que buscavam. E ele lhes
disse:
— Nesta ermida os achareis. E eu sou
Meraugis, um dos quatro cavaleiros que buscais.
Depois, disseram:
— Levai-nos lá.
E ele o fez. E quando viram os dois
companheiros, que foram tão bons cavaleiros de
armas e tão poderosos de tudo, e assim se meteram
no serviço de Nosso Senhor, tiveram deles muita
pena e saíram da ermida e disseram entre si:
— Matá-los-emos ou não?
E foi assim afinal que concordaram em não
matá-los, mas em contar ao rei. Depois voltaram ao
rei e disseram-lhe o que acharam.
— Assim? disse o rei: estas são boas novas.
Estes muitas vezes me afrontaram; eu me vingarei.
Então pegou um dos quatro cavaleiros e disselhe:
— Levai-me lá.
E ele disse que o faria. Então se separou o rei
de sua companhia todo armado e não quis que
ninguém soubesse, fora aquele que o guiava; e ele
desamava tanto aqueles quatro, que os poderia matar
com sua mão. Quando chegou à ermida, achou
dentro um cavaleiro da linhagem de rei Bam, que
chamavam Paulas, mas estava ainda armado, e
quando viu que não era aquele que buscava, [520]
saiu da ermida e andou ao redor procurando os
quatro ermitães que estavam fazendo sua alegria
pelo hóspede que chegara. Quando rei Mars foi a pé
onde estavam, perguntou qual deles era rei Boorz. E
rei Boorz disse:
— Senhor, que vos apraz?
— Apraz-me algo que se tornará em vosso
dano, disse ele. Sabeis quem sou? Sou rei Mars de
Cornualha, que aqui vim para me vingar de vós.
706. Então meteu mão à espada, e quando o
arcebispo viu que os queria matar, meteu-se entre o
golpe, e deu-lhe o rei por cima da cabeça tão grande
golpe, que o meteu morto. Quando Paulas viu isto,
ergueu-se com grande pesar e disse:
— Ai, rei Mars, bravo e desleal! Fizeste-me a
maior traição que nunca rei fez. Mas te acharás por
isso mal, se eu posso.
Então meteu Paulas mão à espada e deixou-se
ir a rei Mars e feriu-o tão violentamente como quem
era de muita força, que lhe não valeu elmo nem
almofre, que o não fendesse todo até os dentes, e o
corpo caiu por terra. Quando o cavaleiro que viera
com o rei, viu este golpe, pediu-lhe merca que o
não matasse.
— Pois promete-me, disse Paulas, que desta
morte não dirás a ninguém.
E ele prometeu e partiu. E os ermitães
pegaram o corpo de rei Mars e enterraram-no diante
da ermida, fora de sagrado, porque o tinham por um
dos desleais homens do mundo.
Deste modo como vos digo, morreu rei Mars
de Cornualha; e os ermitães ficaram na ermida em
serviço de Deus. E assim acabemos nós. Amém.
50 - AMADIS DE GAULA
O ROMANCE DE AMADIS. Reconstituição
doAmadis de Gaula dos Lobeiras (sécs. XIII-XIV)
porAffonso Lopes Vieira. São Paulo: Martins
Fontes,1995.135p.
[1] 1. Perion
Senhores, ouvide o Romance de Amadis, o
Namorado. Escreveu-o um velho trovador
português, mas depois um castelhano, trocando-lhe a
língua e o jeito, da terra lusa o levou. Porém as mais
nobres mentes de Espanha já por nosso o dão.
Em Portugal tem a segunda pátria o espírito
heróico e amoroso da Távola Redonda.
E o conto é de amor fino e fiel, de português
amor, rendido como ele é só.
Ao começar o Romance, invoco a memória do
cavaleiro-poeta que o compôs, para que me alumie.
Invoco a alma do Portugal que aprendeu com
Amadis a ser gentil e forte e a prezar a flor da
Honra.
E vós que amais com amor heróico e fiel, que
amais o amor, ouvide a história como eu a senti.
Não muitos anos depois da Paixão do nosso
Salvador e Redentor Jesus Cristo, [2] houve na
Pequena Bretanha um rei, por nome Garinter, bom
cristão e de lhanas maneiras.
Teve este rei duas filhas, de sua mulher, boa
dona. A mais velha casou com Languines, rei de
Escócia; e a essa se chamou a Dona da Guirlanda,
porque de uma grinalda mui rica quis seu marido
que ela sempre cobrisse os formosos cabelos, tanto
gosto lhe dava olhá-los; e por filhos houveram
Agrajes e Mabília, de quem menção se fará.
A outra filha, chamada Elisena, era muito
mais linda que a irmã e tão virtuosa, que parecia ser
Deus o único senhor capaz de estimar tal criatura.
Bem haviam pedido a sua mão muitos príncipes
dignos de a esposar, os quais demandavam a corte
da Pequena Bretanha, sabedores da formosura e
virtude que nela resplandeciam.
— Filha — dizia-lhe el-rei Garinter, a quem
dava desgosto esta isenção da infanta —, estou já de
muitos dias e quisera, antes de dar contas a Deus,
deixar-te segura nas voltas do mundo.
Porém ela só aos gozos da religião se inclinava, sem mostrar outro fito que o do Céu. E tanta
esquivança deu azo a que a apelidassem Devota
perdida.
Ora, este rei Garinter, quando o tempo ia
brando, saía algumas vezes a montear, para espalhar
cuidados. Uma vez que se apartara dos monteiros e
pela espessura andava a rezar suas Horas, viu um
cavaleiro que com [3] dois outros pelejava, nos quais
reconheceu dois vassalos, de quem, por soberbos e
descorteses, el-rei muitas queixas havia. Mui bravo
era o que acometia sozinho os dois juntos, pois, com
tão natural galhardia se guardava e investia com
eles, que da sua parte mais parecia desenfado que
peleja, seguro como se achava de si o cavaleiro
desconhecido.
El-rei Garinter, que se arredara, olhava o
combate desigual, no fim do qual foram mortos os
maus vassalos.
Isto feito, veio o cavaleiro a el-rei e, vendo-o
só, perguntou-lhe:
— Bom homem, que terra é esta em que os
cavaleiros são salteados?
— De isso não hajais espanto — retrucou elrei —, que em todas as terras bons e maus cavaleiros
há; e desses que dizeis muitos tinham agravos, e até
seu mesmo rei.
— A esse rei quero falar — tornou o cavaleiro
—, e, se sabeis onde pára, peço-vos o .digais.
Não quis el-rei manter por mais tempo o
engano. E respondeu:
— Pois, seja como for, sabei que tal rei eu o
sou.
Ouvindo estas palavras, entregou o cavaleiro
ao escudeiro o escudo e o elmo e foi abraçar el-rei
Garinter, dizendo-lhe que era el-rei Perion de Gaula
e que muito quisera conhecê-lo. Ao som deste nome,
deveras folgou o senhor bretão. Conhecia ele Perion
[4] por sua fama alta e honrada, pela bravura e
gentileza da sua cavalaria, as quais, sendo aquele rei
moço como era, tão celebradas andavam por todos
os remos da Pequena e da Grã Bretanha. E, do
coração, deu-lhe as boas-vindas. Ledos se juntaram
os senhores e dispuseram-se a procurar os
monteiros, para se recolherem à vila de Alima,
donde el-rei Garinter partira para montear.
Prosseguiam os dois, discorrendo sobre coisas
aprazíveis. El-rei Garinter ouvia com gosto quanto
lhe ia dizendo o senhor de Gaula, em cujas palavras
a cortesia emparelhava com o nobre juízo.
— Tão moço é ainda — pensava o da Pequena Bretanha —, e assim na bravura é ousado
como na mente esclarecido. Ditoso será o pai que a
este houver de dar filha!
Súbito, pelo caminho saltou-lhes um veado
escapo da montaria e atrás do qual correram os reis,
a fim de o lancear. Mas um leão, que das brenhas
saíra, alcançou o veado, atassalhou-o e pôs-se a
olhar sanhudo os cavaleiros, como quem preara
coisa que julgava ninguém disputaria.
Vendo o quê, desmontou el-rei Perion do
cavalo, que a vista do leão espantara:
— Pois não há de ser teu! — disse Perion.
Sem que o estorvassem as vozes de el-rei
Garinter, com as quais lhe pedia não desse batalha a
tão bruto inimigo, Perion endireitou à fera, com o
escudo embraçado e a espada na mão. Logo o leão
deixou a presa e, [5] furioso de ver que o
contestavam, arremessou-se contra quem lhe negava
os direitos de tomador. Juntando-se ambos, o leão o
teve debaixo, prestes a esquartejá-lo. Mas el-rei, não
perdendo o ânimo no apuro, ensopou-lhe a espada
no ventre e o matou.
Perto soaram as buzinas dos monteiros que
logo vieram e rodearam a seu senhor.
E do que viu se admirou el-rei Garinter, entre
si dizendo que não sem causa el-rei Perion era tido
pelo mais esforçado cavaleiro do mundo.
[7] II. Darioleta
Carregados em dois palafréns o leão e o
veado, para a vila se encaminharam com grande
prazer os senhores; do que sendo avisada a rainha,
de muitos e ricos atavios se enfeitaram os paços e
foram postas as mesas. Quando foram comer,
sentaram-se a uma mais alta os dois reis e a minha,
com Elisena em outra a par desta; e ali foram
servidos como em casa de tão bom senhor convinha.
Mas, sendo a infanta assim virtuosa e ei-rei
Perion tão alto cavaleiro, em tal hora se olharam,
que o grande recato dela não pôde tanto que de mui
grande amor presa nao fosse; e Perion também da
infanta, pois seu próprio coração livre o havia. De
maneira que um e outro todo o tempo ali estiveram
fora de si. Recolhendo-se a rainha à sua câmara,
levantou-se Elisena e, caindo-lhe do regaço um anel
que tirara para se lavar, a fim de o apanhar se
baixou, quando Perion o tomou e lho deu.
[8] No dar e receber o anel, as mãos deles
encontraram-se e Perion apertou a da infanta, que,
olhando-o com amorosos olhos, lhe agradeceu,
corando.
— Ai, senhora! O último serviço não será que
vos eu farei, pois toda a vida a quero empregar em
vos servir!
Tão turbada se foi Elisena, que a vista quase
perdia. Desconhecia-se a si própria a infanta. É que
o efeito do amor, em alma tão isenta, ia lavrando
com dobrado lume.
Não podendo calar dor tão nova, descobriu
seu segredo a uma donzela de quem muito se fiava e
se chamava Darioleta. E, com pranto dos olhos e
mais do seu coração, pediu-lhe conselho sobre como
poderia saber se Perion amava outra mulher, e se
aquele amoroso rosto, com que a estivera olhando,
seria prova de amor igual ao seu. Pasmou a donzela
com tal mudança em pessoa para quem estas coisas
eram tão desusadas. Teve por caso peregrino que assim, de súbito, quisesse saborear o humano, quem
até ali desdenhara de alguma vez o provar. Porém
logo prometeu servi-la, vendo que o amor não
deixara em sua senhora lugar para caberem razão ou
aviso.
Determinando-se, pois, a ajudar sem detença a
nova enamorada, encaminhou-se Darioleta para a
câmara de el-rei Perion, a tempo que o escudeiro ia
levar os vestidos do seu senhor. Pediu-lhos a
donzela, dizendo que ela mesma os levaria.
[9] Tomando por maior honra o que a seu senhor se fazia, deu-lhos o escudeiro. E Darioleta,
entrando na câmara de el-rei, por esse foi
reconhecida como a donzela da infanta:
— Boa donzela, que me quereis?
— Senhor, dar-vos de vestir.
— Nu de alegria está meu coração.
— Mas por quê?
— Porque sempre livre fui, a esta terra livre
vim, e agora, em casa de vosso senhor, ferido estou
de ferida mortal. E, se para ela remédio me
achásseis, eu vos daria bom galardão.
Respondeu Darioleta que contente seria de
servir a tão bom senhor, se soubesse em quê. Ora,
Darioleta sabia muito bem aquilo em que poderia
servir a el-rei Perion. Mas alegrava-se de o ouvir
falar do amor que Elisena lhe merecia, comparava as
palavras dele com as que lhe ouvira a ela, e tudo ia
encaminhando ao ponto que desejava.
Respondeu-lhe el-rei:
— Se me prometeis, como leal donzela,
guardar segredo do que vos eu disser, descobrindo-o
só onde de razão, então direi.
E, prometendo-lho Darioleta, disse-lhe que
vivera até ali sem haver empregado o coração,
costumado a correr aventuras, mas não a penar
cuidados; que em forte hora olhara a grande
formosura de Elisena, cuja presença lhe havia
ensinado o que era o verdadeiro amor, pois tão
cuidoso estava agora, que se julgava a ponto de
morrer, e [10] enfim que morreria se algum remédio
não achasse.
Tornou-lhe a donzela:
— Se me prometeis, como rei, guardando em
tudo a verdade a que mais obrigado sois, de, a seu
tempo, a tomar por mulher, então eu farei coisa que
não só o coração vos contente, mas também o dela,
onde mora amor igual ao vosso. Porém, se o não
prometerdes, por mulher a não lograreis, nem vossas
palavras haverei como de honrado amor.
El-rei Perion, que obedecia também ao mando
de Deus para que tudo sucedesse como adiante
ouvireis, pôs a mão na cruz da sua espada e jurou:
— Juro nesta cruz e espada, com que a
Cavalaria recebi, de isso fazer que me pedis,
donzela, e quanto por vossa senhora requerido me
for.
— Pois folgai ora, que eu farei o que vos
disse!
Buscando a infanta, contou-lhe o que com elrei Perion concertara e repetiu-lhe as palavras de tão
seguro amor que tinha ouvido a el-rei.
Elisena abraçou-a, tomada de uma alegria
como jamais a havia iluminado:
— Minha amiga verdadeira! Mas quando
soará a hora em que em meus braços aperte aquele
que por senhor me foi dado?
Explicou-lhe Darioleta que, dando a câmara
de el-rei Garinter para o pomar, a ela [11] iriam
seguras quando todos estivessem dormindo. E,
lembrando-lhe Elisena que, na mesma câmara, el-rei,
seu pai, dormia, a donzela prometeu que tudo faria
bem.
Quando caiu a noite, Darioleta apartou-se com
o escudeiro de el-rei Perion e perguntou-lhe quem
era a mulher que seu senhor amava com entranhado
amor.
— O meu senhor — respondeu o escudeiro —
a todas ama,mas a nenhuma como dizeis.
Ficou a donzela contente de receber esta
resposta, que tão bem se ajustava com o que a tal
respeito lhe havia dito el-rei Perion.
Neste ponto acercou-se el-rei Garinter e,
vendo os dois conversando, perguntou àdonzela que
tinha ela que dizer àquele escudeiro.
— Por Deus, senhor, eu vo-lo direi: ele me
chamou e disse que seu senhor costuma dormir
sozinho em sua câmara, e vossa companhia certo o
estorvará.
El-rei Garinter, muito honrado com o seu
hóspede e querendo que ele se achasse bem, foi
dizer a el-rei Perion que, levantando-se a matinas,
por ter muito em que cuidar, o deixaria só para
estorvo lhe não fazer.
Quando Darioleta viu que os reposteiros
levavam de ali a cama de el-rei Garinter, foi contar à
infanta quanto sucedia.
[12] — Boa amiga — disse-lhe Elisena —,
creio que Deus assim o quere! O que parece agora
erro será ao depois grande serviço seu.
E deste modo estiveram elas, até que todos
foram dormir.
[13] III. Elisena
Como tudo estivesse sossegado e o ermo
silêncio da noite lhes fosse aconselhando ânimo, a
donzela encaminhou a infanta e saíram ambas ao
pomar. Fazia um luar muito claro.
Darioleta, olhando Elisena, abriu-lhe o manto,
remirou-lhe o corpo, que ela trazia nu, só com
camisa, e disse, rindo:
— Senhora, em boa hora nasceu aquele que
vos vai ter!
Sorriu a infanta e tornou-lhe:
— Amiga, dizei antes que bem-aventurada fui
em me dar Deus tal senhor.
Com passadas tão cautas quanto lho ia
pedindo o melindre da empresa, foram as duas
andando à surda, sob a Lua.
Perion, com a queixa do coração e a esperança
que a donzela nele lhe fora plantar, não havia podido
dormir. Caíra em modorra e sonhava. Padecia aflito
os tratos que lhe estavam dando, pois é maravilha da
mente [14] representar-nos tão vivo o que só nela
própria se engenha. Sonhava que alguém entrara por
uma porta falsa naquela câmara, sem que se ele
pudesse defender do inimigo agora vindo à sua
ilharga.
Este fora-se ao que ali jazia e abrira-lhe as
costas com as mãos , remexendo até lhe agarrar o
coração.
— Por que me fazeis tal crueza? — dizia
Perion, a labutar nas vascas do pesadelo.
Afogado em dor, vira el-rei o seu próprio
coração levado a uma janela, donde fora lançado às
águas de um rio.
Enquanto el-rei Perion pelejava no sonho, a
infanta e a sua guia haviam chegado à porta da
câmara. Elisena tremia toda. Ao tocarem na aldrava,
o ferro tiniu. Perion acordou espavorido e benzeu-se.
Neste ponto iam entrar as donzelas, e,
havendo-as ele sentido, temeu-se de traição e saltou
do leito, empunhando a espada contra os vultos.
— Senhor, isso que é? — segredou-lhe Darioleta.
Reconhecendo então Elisena, foi tomá-la
Perion nos braços. Darioleta disse à infanta:
— Ficai, senhora, que, ainda que vos defendestes de muitos, e ele de muitas também se
defendeu, mandou Deus que vos não defendêsseis
um do outro.
E, vendo a espada de el-rei, tomou-a em sinal
da jura feita e saiu.
[15] Perion, olhando Elisena à luz das tochas
que ardiam, parecia-lhe que nela se ajuntara toda a
formosura do mundo.
Antes da alva romper, veio Darioleta pela
infanta e, indo as duas dormIr, nada se soube em
palácio.
Assim, por espaço de dez noites se amaram
Perion e Elisena. Em cada uma guiava Darioleta a
infanta até a câmara onde os desígnios do Senhor se
cumpriam.
Por isso o Senhor juntara os dois, mudando
para tal fim a um e a outro: a ele, tirando-lhe a
liberdade com que correra aventuras; fazendo-lhe a
ela baixar os formosos olhos à terra. Em uma noite,
perguntou Elisena ao seu amigo:
— E, quando vos fordes, que há de ser de
mim?
Respondeu-lhe el-rei, sentindo já também a
dor da próxima ausência:
— Quando me eu for, deixo-vos o coração, e
ele, junto ao vosso, nos dará forças, a vós para
esperar um tempo, a mim para cedo tornar.
Ao cabo daqueles dias el-rei Perion acordou e
forçou sua vontade, decidindo-se a partir. Bem se
pode dizer que acordara, porque o verdadeiro amor,
ao encher coração de homem, de tal sorte o eleva e
embala, que o livra do peso do mundo. Além da
pena principal que lhe fazia o deixar Elisena, sentia
el-rei outro grande cuidado, e este lho dava o sonho
que tivera. Queria [16] sa|ber como os sábios do seu
reino entenderiam aquilo do coração deitado ao rio,
pois, desde que tal coisa sonhara, não havia podido
recobrar o ânimo seguro.
Despedindo-se de el-rei Garinter, com
palavras de muita cortesia, e tendo ouvido outras de
grande estimação, quando quis cingir a espada, não a
achou. Não se atreveu a pedi-la, o que muito lhe
custava, porque era boa e formosa.
E partiu daquele reino.
Porém antes falara com Darioleta, com quem
desabafou a pena em que ia e lhe contou aquela em
que sua senhora ficava.
— Ai, minha amiga, eu vo-la recomendo
como ao meu próprio coração!
E, tirando do dedo um formoso anel, de dois
iguais que trazia, deu-lho para que lho levasse por
seu amor.
[17] IV. Amadis sem tempo
Com que saudade e dor Elisena ficou do seu
amigo! Em tão breve tempo, e tão pouco propensa
como havia sido às coisas do amor, provara a infanta
toda a alegria e toda a pena. Só falando com
Darioleta algum alívio achava. Passando foram os
dias, uns menos tristes que outros, porém povoados
todos de cuidados. O mais do tempo levava-o
Elisena a cismar, e, recolhida na própria alma, ia
escutando as vozes das lembranças, que são consolo
e amargura de quem lhes dá ouvidos. Até que a
infanta se sentiu grávida, perdendo o comer e o dormir e a sua formosa cor.
Cresceram então os temores, e não sem
grande razão, porque era lei naquele tempo que não
escapasse à morte, por maior que fosse seu estado e
senhorio, mulher que cometesse culpa.
Culpa, não a cometera Elisena, pois o que elrei Perion jurara sobre a cruz [18] santifi|cava para
Deus o amor que haviam. Mas isto era para Deus,
não para os homens. E durou esta lei cruel até a
vinda do mui virtuoso Rei Artur, que a revogou ao
tempo em que matou Floyan em batalha, às portas
de Paris.
Mas aquele poderoso Senhor Deus, por cuja
permissão todas estas ações se faziam para seu santo
serviço, tão discreta tornou Darioleta, que a donzela
tudo remediou, como agora ouvireis.
Havia em palácio uma apartada câmara de
abóbada, sobre um rio que por ali passava, e ao rés
do qual se abria uma portinha de ferro, por onde às
vezes as donzelas entravam na água para folgar.
Por conselho de Darioleta, pediu Elisena esta
câmara a seus pais, a fim de melhorar a saúde e rezar
suas horas, sem que a estorvasse ninguém, levando
Darioleta para que a servisse. Tendo-lho eles
consentido, ali se aposentou a infanta, e alguma
coisa descansou de seus temores.
Um dia, perguntou à donzela que se havia de
fazer ao que nascesse.
— Quê, senhora? Que padeça para que vos
livreis!
— Ai! Santa Maria! E como deixarei matar o
que aquele que mais amo fez?
— Disso não cureis — tornou-lhe a donzela
—, porque, se a vós matassem, a ele não poupariam.
[19] Mas o coração da que ia ser mãe é que se
não podia conformar com tais juízos. Do fundo das
entranhas, Elisena exclamou:
— Ainda que eu como culpada morra, não
quero que o inocente padeça!
— Pois grande loucura seria que, para salvar
coisa sem proveito, vos perdêsseis e a vosso senhor,
que viver sem vós não poderia. Mas, vivendo ambos,
outros filhos vireis a ter, que a pena deste vos farão
passar.
Como à donzela era Deus quem a guiava,
antes do aperto quis o remédio. Buscou quatro
tábuas tão grandes, que com elas fez uma arca do
comprimento de uma espada, e com betume as ligou
tão bem, que toda a água vedavam.
Mostrando a Elisena o que fizera, disse-lhe
que a seu tempo saberia para que era aquilo.
A pobrezinha respondeu-lhe:
— Pouco se me dá saber o que se faz ou se
diz, que perto estou de perder minha alegria e meu
bem!
Doeu-se de pena a donzela, vendo-a tão triste
e chorando, pois bem lhe custava ter de ser crua por
força. E foi-se para que a infanta a não visse também
chorar.
Pensava Elisena em Perion, de quem não
houvera mais novas. E, embora cresse no amor dele
e em que ele nunca a esquecia, pesava-lhe muito a
ausência, para mais em tão incerta hora.
Uma vez, perguntou a Darioleta:
— Por que não virá o meu senhor?
[20] Sossegou-a a donzela, respondendo-lhe o
que a infanta a si mesma dizia quando cuidava
naquela ausência:
— Senhora, por tudo será, menos porque vos
esqueça, pois no juramento feito sua palavra
empenhou.
Não tardou muito que a Elisena chegasse a
hora de ser alumiada; e, como não podia gemer,
dobradamente sofria.
Enfim quis Nosso Senhor que um filho
nascesse, e, tomando-o a donzela nos braços, viu que
era vivo e formoso!
Porém logo tratou de fazer o que convinha,
segundo o que antes determinara: batizou o menino
como se fora em artigo de morte, e, depois de o
embrulhar em ricos panos, trouxe a arca.
Elisena, abraçada ao filho, não entendia estes
preparos:
— Que ides fazer?
— Pô-lo aqui e deitá-lo ao rio!
A mãe apertava-o ao peito, chorava que se
matava:
— Meu menino! Meu rico filhinho!
Mas o temor do risco em que se achavam
aguçava a ligeireza da donzela.
Darioleta escreveu num pergaminho: Este é
Amadis sem tempo, filho de Rei. O nome era o de um
santo de muita devoção, a quem o encomendou; e
dizia “sem tempo” porque cuidava que ele ia logo
morrer.
Pendurou a carta ao pescoço do menino e
Elisena enfiou na mesma fita o anel que [21] Perion
lhe havia dado. Deitado o menino na arca, puseramlhe ao lado a espada de seu pai — e a donzela deitou
a arca ao rio...
Como a corrente era forte, depressa chegou ao
mar. E, sendo já manhã, aconteceu um daqueles
sucessos que Nosso Senhor ordena quando lhe
apraz.
No mar navegava uma nau em que um
cavaleiro de Escócia partia da Pequena Bretanha,
com sua mulher, que dera à luz pouco havia; e de
bordo viram a arca e mandaram recolhê-la. Trazida
esta pesca de nova feição, o cavaleiro, que se
chamava Gandales, abriu a arca e viu o menino,
sorrindo, deitadinho ao lado da espada.
— Este é filho de algo. E que espada formosa!
Apertou-o ao peito, com dó e encanto do que,
por milagre, assim lhe vinha.
Maldizia o cavaleiro a mãe que a tal criatura
pudera enjeitar e pediu a sua mulher que o criasse.
Logo esta lhe deu o seio da ama que a seu filho
Gandalim aleitava e onde o menino mamou com
vontade, do que os bons senhores se alegraram.
Era brando o coração de Gandales, e também
o de sua mulher. Custoso seria, com efeito, não
sentir piedade de quem fora deitado às ondas em tão
frágil embarcação, mal havia aberto os olhos para
sorrir ao mundo cru. E logo a bordo da nau o menino
foi querido, no que o ajudava o mistério de sua
origem.
[22] Assim foram Gandales e os seus navegando até Antália, cidade de Escócia, e, de ali
partidos, chegaram a um castelo que tinham e era
dos bons do reino.
Aí foram criando o menino como seu filho. E
todos creram que o era, porque pelos marinheiros
nada se soube, tendo eles navegado a outras partes.
[23] V O Donzel do Mar
Partindo el-rei Perion da Pequena Bretanha,
como já se vos contou, quanta saudade de sua
senhora havia! Pelo caminho por onde antes tinha
ido solto, voltava agora cativo. E que também
Perion, como Elisena viera a conhecer o que até ali
havia ignorado: o verdadeiro amor. E também ele
pensava na infanta, temendo que se ela achasse em
perigo.
Chegado que foi ao seu reino, enviou recado
aos homens-bons para que lhe mandassem os mais
sabedores, a fim de lhe explicarem um sonho que
tivera.
Vieram os vassalos mui desejosos de o ver,
que de todos el-rei era querido; e, depois que tratou
das coisas do reino e do que ã sua fazenda cumpria,
a cada um despachou para as suas terras. Passado
tempo, chegaram a palácio três homens entendidos
naquilo que a el-rei tornava cuidoso, por serem
práticos na leitura dos astros. Tendo-[24] os levado à
capela, onde lhes fez jurar que toda a verdade diriam
, sem lhe esconderem dura verdade, contou-lhes elrei o sonho, guardando-se de dizer onde e como o
tivera. E começaram os mestres a futurar. Com as
razões dos primeiros não pôde Perion satisfazer-se:
tão embrulhada saía a explicação, que não entrevia
luz o entendimento. Ungan, o Picardo, que era o
mais avisado, sorria de ouvi-los e, quando lhe
chegou a vez, começou de dizer:
— Senhor, porventura vi eu já coisas que é
melhor guardar para nós.
Saíram os outros, conforme o desejo
mostrado. Quando ficou só com el-rei Perion,
Ungan, o Picardo, falou-lhe assim:
— Ora vos posso dizer, senhor, o que encobris: amais e já vossa vontade cumpristes. O
sonho do coração deitado ao rio, quere dizer que na
água~ será achado um filho que haveis de ter.
Agora sabei que o donzel que em casa de
Gandales se criava, e ao qual chamavam o Donzel
do Mar, em tanta formosura crescia, que a todos
maravilhava.
Uma vez, indo Gandales seu caminho,
apareceu-lhe uma donzela que lhe disse:
— Ai, Gandales! Se muitos altos senhores
soubessem o que eu sei, cortavam-te a cabeça...
Pasmou o bom cavaleiro.
Acrescentou aquela:
[25] — Porque em tua casa guardas a morte
deles.
— Donzela, por Deus rogo vos expliqueis!
Então ouviu Gandales tais palavras maravilhosas:
— Digo-te que aquele que achaste no mar será
a flor da Cavalaria: fará tremer os fortes, humilhará
os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará
com honra. E será também o cavaleiro que com mais
bela lealdade há de manter seu amor!
— Ah! senhora, dizei-me quem sois!
— Sou Urganda, a Desconhecida, mas não me
busques que me não acharias.
E, ao passo que assim dizia, de moça formosa
se mudou em velha trôpega. Isto vendo, teve
Gandales a Urganda por uma daquelas mulheres que
possuem saber de sortes e encantamentos, conhecem
a virtude das palavras, das águas e das ervas e guardam o segredo de manter mocidade, beleza e
poderio.
Voltando ao castelo, tomou Gandales nos
braços o Donzel e beijou-o, com lágrimas nos olhos.
E o menino, que tinha três anos e era formoso
à maravilha, quis enxugar o pranto do bom senhor,
do que este se alegrou, pensando que na velhice lhe
seria doce.
Quando o Donzel fez cinco anos, deu-lhe
Gandales um arco à sua altura, e outro a seu filho
Gandalim, com os quais os fazia atirar.
[26] E assim o foi criando até que ele fez sete
anos.
A este tempo el-rei Languines, de jornada no
seu reino, albergou-se com a rainha no castelo de
Gandales, que lhe ficava em caminho.
Mas os donzéis mandou-os Gandales para um
pátio, no propósito de que olhos alheios não vissem
o que, cioso, guardava. Ora, a rainha, olhando de um
eirado, viu-os embaixo jogando e, entre eles, o
Donzel do Mar, de cuja formosura tanto se
maravilhou, que chamou as aias para que o
admirassem também:
— Vinde cá e vereis a mais linda criatura que
nunca foi vista!
Estavam a rainha e as aias debruçadas a
admirar o que viam, enquanto os donzéis iam
atirando ao arco.
O donzel formoso, que parecia senhor dos
outros, não só por lindeza e garbo, senão porque
trazia vestes mais ricas, foi-se a uma bica de água
beber e, enquanto se arredou, um, mais crescido,
quis atirar a Gandalim o arco com que este atirava.
— Acode-me, Donzel do Mar! — gritou
Gandalim.
Logo o mais pequeno se foi ao maior e, como
o visse lutar com Gandalim, bateu-lhe com o arco na
cabeça e derribou-o. Saiu o donzel ferido, a fim de
se queixar ao aio; e, vindo este com as correias para
dar castigo, ajoelhou o Donzel do Mar e disse:
[27] — Mais quero que me castiguem que ver
padecer meu irmão.
Do eirado onde estava, a rainha viu tudo. E
tanto se agradou do rasgo do Donzel como se
admirou do seu nome e maravilhou de sua
formosura.
Neste
ponto
chegava
el-rei,
acompanhado de Gandales; e perguntou a rainha:
— Dizei-me, Gandales, é vosso filho aquele
formoso donzel a quem chamam o Donzel do Mar?
Sobressaltou-se o coração do bom senhor,
vendo já descoberto o que ele, por acautelado,
escondera. E respondeu pouco seguro, como quem
nunca mentia:
— Senhora, sim...
Continuou a rainha, curiosa:
— E por que tem tal nome?
— Porque no mar nasceu, quando eu tornava
da Pequena Bretanha.
— Pois, amigo, não se parece convosco —
disse a rainha, sorrindo e pensando que o seu vassalo
Gandales, se era muito abastado em bondades,
pouco devia à formosura.
— Chamai-o para que eu o veja — prosseguiu
ela.
Dissimulando a nenhuma vontade com que o
fazia, mandou Gandales chamar o Donzel do Mar.
Logo que ele veio e ajoelhou diante da rainha,
disse esta a Gandales:
— Sou eu que o quero criar!
[28] Dorido no coração e escondendo as lágrimas, perguntou Gandales ao Donzel:
— Queres ir com a rainha, meu filho?
Pôs este os olhos em seu senhor e respondeu,
com firmeza de varão:
— Irei onde me mandardes, mas vá meu
irmão comigo.
— Nem eu o deixaria! — acrescentou Gandalim, que o acompanhava.
— Senhor — disse Gandales a el-rei —, tão
amigos são um do outro, que haveis de os levar aos
dois.
Chamou el-rei Languines seu filho Agrajes e,
mostrando-lhe os donzéis, recomendou-lhe:
— Filho, quero que sejas muito amigo destes,
pois que muito o sou eu do pai deles.
Mas, vendo el-rei os olhos de Gandales rasos
de água, sorriu do seu vassalo:
— Amigo, nunca eu cuidei que tão louco
fôsseis!
— Senhor, não o sou tanto quanto cuidais.
Então, a sós com seus senhores, pediu
Gandales lhe perdoassem o haver encoberto a
verdade, ao que o levara o mimoso amor que votava
àquele que havia criado e amava como a filho. E
contou-lhes a história do Donzel: de como o tinha
achado boiando no mar com uma espada formosa, de
como julgava que ele vinha de grande linhagem e o
que havia profetizado Urganda, que o bom senhor
tinha por fada.
[29] Com cativado respeito, como quem ouvia
coisas em que a vontade do Céu se entremostrava,
iam os senhores escutando o que lhes contava o bom
vassalo. Também seus corações movia ao amor a
história do menino deitado às ondas.
— Por meu o quero, se vos apraz — disse a
rainha. — E, pois Deus tanto cuidado teve em o
guardar, razão é para lhe querermos mais.
Porém Gandales é que se não consolava de
saber que o Donzel se iria de sua casa, na real
companhia.
— Filho formoso — pensava ele —, que tão
cedo começaste a correr perigo e aventura, a quem
logo amei quando te vi na arca, deitadinho ao lado
da espada, e agora vais servir quem talvez devera
servir-te, Deus te abençoe e eu chegue a ver as
maravilhas que te prometidas são!
Passados dias, partiram.
Criava a rainha o Donzel do Mar como a seu
próprio filho Agrajes, e afeiçoara-se-lhe Mabília
como terna irmã.
De tão bom engenho era ele, que tudo
aprendia melhor e mais depressa que os outros: tão
certeiro cravava uma seta como lia direito umas
horas ou cantava uma canção. A caça do monte tanto
lhe aprazia, que, se pudera, nunca a deixara.
E a rainha queria-lhe tão grande bem, que
sempre a par de si o havia.
[31] VI. Oriana, a Sem-Par
Soube el-rei Perion, por carta de Elisena, que
el-rei Garinter morrera, e, como em cada dia a
lembrava com fiel amor, logo partiu ansioso de a
esposar. Não a esquecera Perion um só dia, ainda
que um tempo tardara; nem o juramento lhe saíra da
memória, como cumpria a quem tanto zelava sua
honra. Mas haviam-no demorado promessas antigas
de cavaleiro, e só queria partir para receber,
conforme a lei de Cristo, aquela que esposara já no
seu coração, depois de pagar tais promessas, a fim
de levar a alma segura. Concertados os negócios do
reino e feitas as festas das bodas, vieram ao reino de
Gaula, onde depressa a rainha foi querida. E de
Perion houve dois filhos, que se chamaram Galaor e
Melícia.
Mas quantas vezes pensava Elisena naquele
menino formoso que a força das coisas lhe fizera
enjeitar! Padecia de o haver perdido, mal o chegara a
ter. Temia que [32] Deus lhe não perdoasse o feito,
inda que o Senhor bem vira como ela sofrera em seu
coração. Doía-lhe a maldade de haver exposto
aquela vida às ondas do mar, em cujo deserto
escumoso havia perecido, por força, a tenra criatura.
Via-o deitadinho na arca, sorrindo a quem lhe estava
preparando a morte, e tão esperto e lindo como
quem vinha viver para em tudo vencer e brilhar! E,
muitas vezes, rodeada de seus filhos, entristecia a
rainha com saudades do outro.
Enquanto estes casos se passavam, Lisuarte,
grande cavaleiro e rei da Grã Bretanha, aportava ao
reino de Escócia, com sua mulher Brisena, e de elrei Languines e da rainha eram recebidos com muita
honra.
Traziam consigo sua filha Oriana.
Ah!, senhores, dizendo este nome, bate-me o
coração mais apressado!
É que, toda esta história que se vos conta, por
amor dela se pôde contar. E, entre todas as bemamadas, nenhuma foi mais bem-amada. Nem
Genevra, a quem tanto amou Lançarote do Lago;
nem Brancaflor, a quem tanto quis Flores, nem a
própria loira Iseu, por quem morreu Tristão de
Leonis, foram mais adoradas que Oriana.
E, sobretudo, em nenhum desses amores
houve a candura deste e sua graça de mocidade em
flor.
A infanta ia nos dez anos e era a mais linda
criatura da Terra — tão linda, que foi [33] chamada
a Sem-Par. Ora, como Oriana andasse enjoada do
mar, el-rei Lisuarte, que navegava para o seu reino,
deixou-a entregue a el-rei Languines e à rainha,
dizendo-lhes que a mandaria buscar quando ela tivesse cobrado mais forças.
A este tempo o Donzel do Mar tinha doze
anos e, em altura e força, mostrava quinze. Servia a
rainha, mas, pois chegara Oriana, deu-lho a rainha
para que a servisse.
E ela disse que o Donzel lhe agradava, e ele
guardou no coração tais palavras.
De como as guardaria, esta história vo-lo
mostra, porque o mais belo amor aqui deles se conta.
Mas o Donzel do Mar, não sabendo o que a
infantinha sentia, tinha-se por ousado em pensar
nela, vista sua grandeza e formosura. E Oriana, que
tanto lhe queria, não falava ao Donzel mais que a
outro, por já temer que a suspeitassem. Assim
viviam encobertos, e um para o outro viviam.
Ora, o Donzel do Mar, pensando em sua
senhora, e que esta mais lhe viria a querer se em seu
serviço praticasse grandes feitos, ou por ela
morresse a praticá-los, desejou ser armado cavaleiro
e de isto deu parte a el-rei Languines.
Sorriu el-rei do desejo do Donzel:
— A Cavalaria é leve de ter e pesada de
manter!
E prometeu-lhe que o armaria quando azado
ensejo houvesse.
[34] Ao mesmo tempo enviou el-rei
Languines recado a Gandales, a quem estas novas
muito alegraram. E o bom senhor, que havia guardado como a um tesouro o anel, o pergaminho e a
espada, mandou-os a el-rei, contente de saber que o
Donzel tanto merecia a estima de seus senhores e
desejoso de que ele sempre crescesse de bem em
melhor.
Em breve chegou à corte o mensageiro de
Gandales, trazendo as coisas em que se continham
todos os haveres do que ia recebê-las.
— Senhor Donzel do Mar — disse o mensageiro —, vosso amo vos saúda como àquele a
quem muito quere e envia-vos este anel, esta carta e
esta espada, pedindo-vos que a espada useis sempre
pela grande amizade que vos ele tem.
Descobriu Q Donzel a espada, tirando-a do
pano que a envolvia e admirado de que a não
encerrasse bainha. E, tomando-a na mão, sorriu
àquela luminosa nudez.
— Donzel — disse-lhe el-rei Languines, depois que com ele se apartou —, querei ser cavaleiro
e vossa mesma história ignorais. Há doze anos vi eu
essa espada, assim nua e formosa; e, pois hoje a
tendes por vossa, vos convém saber como a haveis.
Contou-lhe então como ele havia sido achado
no mar, com o anel ao pescoço e aquela espada ao
lado.
— Senhor, já entendo por que meu amo
Gandales me não mandou tratar por filho...
[35] Mas agora mais me convém a Cavalaria,
para ganhar honra e preço como aquele que não sabe
donde vem!
Ora, el-rei Perion veio neste comenos àcorte
de el-rei Languines, para pedir-lhe ajuda contra elrei Abies de Irlanda, que o guerreava e lhe andava
tomando terras e senhorios. Prometeu el-rei
Languines ajudá-lo como pudesse; e Agrajes, que já
era cavaleiro, rogou ao pai o deixasse ir também.
Olhava o Donzel do Mar a el-rei Perion e nele
admirava a grande fama que el-rei havia.
Olhava-o: e, à vista de el-rei, crescia-lhe a
vontade de ser ilustre, mantendo-se virtuoso; de ser
famoso, guardando a honra com tal apuro que
nenhum bafo pudesse jamais embaciar-lha. Cismava
em sua origem misteriosa, que mais o estava
obrigando a ir servir, em nome de Deus, as causas da
virtude perseguida, da inocência desamparada. Entre
estes pensamentos que lhe vinham, não tirava de
Oriana o seu melhor cuidado, e como o tiraria, se
por ela, afinal, é que tudo era?
E pensava que da mão de el-rei Perion, mais
que de outra nenhuma, gostaria de receber as armas.
Lembrou então que por Qriana poderia
alcançar o seu grande desejo. Procurou a infanta,
esperando que estivesse apartada dos mais, ajoelhouse-lhe aos pés e disselhe, tremente:
[36] — Senhora, muito queria eu pedir-vos
uma mercê...
Qriana, que via ali diante quem mais que a si
própria amava, sorriu-lhe graciosa e respondeu de
alvoroçado coração:
— Donzel, dizei!
— Mas não sou tão ousado que pedir-vo-la
possa, senão digno de fazer quanto por vós me for
mandado.
— Pois tão fraco é o vosso coração, que se
não atreva a pedir?
Ao ver o sorriso que o convidava a falar,
ganhou ânimo o Donzel:
— Senhora, pois el-rei, meu senhor, me não
quis armar cavaleiro, nunca tão bem o poderia eu ser
como por mão de el-rei Perion, a vosso rogo.
Sentiu-se Oriana encantada com o desejo que
animava o seu encoberto amigo. E, com o aguçado
sentido que torna adivinhos os corações das
mulheres, entendia que era por ela que o Donzel
aspirava ao lustre e à fama:
— E a primeira coisa que me pedis, Donzel do
Mar, e fazer-vo-la quero de boa mente.
Combinou Oriana com Mabília que o Donzel
viria à capela da rainha, à hora em que todos
estivessem recolhidos; e ficaram de mandar recado a
el-rei Perion, quando este se levantasse para partir,
antes da alva. Encontrando-se com Gandalim, disselhe o
Donzel:
[37] — Irmão, espero receber as armas esta
noite. Ora dize-me se, quando eu abalar, queres ir
comigo onde eu for.
— Mas eu — respondeu Gandalim — nunca
vos deixarei!
Beijou-o o Donzel do Mar na face, e, encaminhando-se para a capela, quedou-se ante o altar,
rezando. Pedia a Deus, pois lhe fora o Criador tão
benigno salvando-o, destinando-lhe por amos tão
bons senhores e mandando que ali tivesse vindo
aquela por quem o seu coração batia, que no amor de
Oriana e na glória das armas lhe desse mercês de
vitória.
Depois que a rainha foi dormir, Oriana,
Mabília e outras donzelas vieram acompanhá-lo. E,
quando chegou el-rei Perion, a quem Mabília tinha
enviado aviso, disse-lhe esta:
— Senhor, fazei o que vos pedir Oriana, filha
de el-rei Lisuarte.
Perion olhou Oriana e achou-a formosa sem
par.
Sorrindo com graça a el-rei, a infanta rogou-
lhe:
— Senhor, o dom que vos peço é que façais
cavaleiro o meu donzel.
Viu então el-rei Perion o Donzel do Mar, que
aos pés do altar estava ajoelhado. Viu-o e
maravilhou-se de sua formosura.
— Senhora — disse el-rei a Oriana —, de boa
mente vos farei tal dom, primeiro porque vós o
desejais, depois porque para este [38] o pedis. E
pesar-me-ia de não ser mais rica a cerimônia, se não
estivésseis presente, enriquecendo-a tanto.
Acercou-se el-rei Perion do altar e perguntou:
— Donzel, quereis receber a Ordem da
Cavalaria?
— Senhor, eu o quero.
— Em nome de Deus, e que o Senhor Deus
mande que tão bem empregada seja quanto vos fez
formoso!
Calçou-lhe a espora direita e disse-lhe:
— Ora cavaleiro sois. Tomai a espada!
E, entregando-lha, mal cuidava que era a sua,
que por perdida houvera quando se despedira de
Elisena.
Oriana sorria. El-rei Perion partiu.
[39] VII. Amadis de Gaula
Armado cavaleiro, quis o Donzel do Mar
partir na mesma noite. Tardava-lhe empregar aquela
espada que de tão boas mãos tinha recebido e com
que havia sido achado no mar.
E olhava Oriana, a desperdir-se... Olhava-a
muito, a dizer-lhe adeus até não sabia quando! Ela
sentia o coração aos saltos, e os seus olhos
respondiam aos dele, e tudo um ao outro
descobriam.
Despedindo-se, disse-lhe Oriana:
— Donzel, por tão bom vos tenho, que vos
não creio filho de Gandales...
— Senhora, no mar fui achado e vivo para vos
servir!
Então Oriana encomendou-o a Deus. E
Mabília, que já era e sempre havia de ser tão doce
amiga dele, disse-lhe adeus também.
À saída dos paços esperava-o Gandalim, com
os cavalos e as armas.
[40] E, sem que de ninguém fossem vistos,
cavalgaram e abalaram.
Pouco adiante amanheceu-lhes e, como era no
mês de abril, estavam as árvores em flor e cantavam
as aves à porfia. Lembrando-se da sua amiga, ia o
Donzel do Mar pensando:
— Pobre Donzel sem linhagem nem bem,
como ousaste escolher aquela que em linhagem e
formosura todas as outras vale? Mais formosa é que
o mais belo cavaleiro armado, brilha mais sua
bondade que a riqueza dos maiores tesouros — e tu,
pobre Donzel, não sabes sequer quem és, e só te
cabe calar o amor, morrer de amor antes de o
confessar!
E, com estes e outros pensamentos, cavaleiro
e escudeiro meteram-se a caminho de aventuras.
Senhores, não nos demoraremos nos primeiros
feitos do Donzel do Mar. Se eu vos contasse, agora
ou mais tarde, todas as ações do herói, a história
alongar-se-ia e encurtava-se a vontade de a ouvir.
Quando me decidi a contá-la, logo pensei em
a não fazer comprida, a fim de que a escutásseis de
boa mente.
Mas sabei que sem demora praticou belas
proezas o moço cavaleiro, e que aquela
desconhecida Urganda, que havia aparecido a
Gandales para profetizar a glória do menino, lhe
apareceu também a ele e lhe fez dom de uma lança.
[41] Embarcando para a Pequena Bretanha
tempos depois foi o Donzel ter a um castelo em
torno do qual se pelejava bravamente. E viu que
eram muitos contra um só, que já mal se guardava de
tantos golpes. Mandado por íntima força que lhe
nascia do amor da lealdade, e quem sabe de que
outra origem proviria, correu logo o Donzel a
defender o cavaleiro cercado, derribando à sua volta
muitos que o acometiam. E no cavaleiro reconheceu
el-rei Perion de Gaula. Vendo-se socorrido, el-rei
Perion cobrou novo ânimo, e o Donzel e ele
desbarataram os covardes que haviam feito a traição
e eram por el-rei Abies de Irlanda.
Quando o Donzel do Mar tirou o elmo, por
muito lho pedir el-rei Perion, este reconheceu no seu
salvador o moço a quem, tempos antes, dera as
armas.
— Amigo, louvo a Deus de por vós haver
feito o que fiz!
— Senhor, logo vos reconheci. Se vos
aprouver, servir-vos-ei na guerra de Gaula e até lá
não quisera eu dar-me a conhecer.
— Amigo, parece pura maravilha o que
acontece!
Juntos seguiram para palácio, onde o Donzel
foi agasalhado com muita honra e curado das feridas
que recebera.
E logo se aperceberam para a guerra que el-rei
Abies fazia àquele reino, estando já com sua hoste às
portas do burgo.
[42] Travada a batalha, por três dias pelejaram
com sanha os de um e outro campo. Aos senhores de
Gaula tinham vindo juntar-se os de Normandia
contra os de Irlanda, e a estes levava-os el-rei Abies.
Era este rei de tão desmarcada estatura, que excedia
um palmo os mais altos cavaleiros. No seu escudo
figurava, em campo azul, uma cabeça de gigante
decepada, em memória da que el-rei decepara àquele
com quem combatera. E, enorme no seu grande
cavalo, coberto com o escudo sangrento, el-rei Abies
era medonho.
Num passo da batalha, quando os de Irlanda
carregavam os de Normandia e Gaula e estes já
recuavam, encontraram-se frente a frente o Donzel
do Mar e aquele rei: e entre o fragor da peleja
requereram-se os dois ao combate.
À pesada pujança de el-rei Abies respondia a
esbelteza forte do Donzel, e carregavam-se ambos
de golpes que amolgavam os elmos, cortavam os
escudos, desguarneciam os arneses.
Resfolegando furioso sob os golpes que
recebia e vendo que os que dava não derribavam
aquele inimigo fino e de aço, el-rei Abies gritara-lhe:
— Tanto te desamo quanto te prezo!
Prosseguia entanto a batalha, e os de Gaula
com os de Normandia carregavam agora os de
Irlanda, aos quais minguava o esforço do seu rei.
[43] Mais furiosos que antes, atacaram-se o
Donzel do Mar e el-rei Abies. Desconcertava-se a
rude força com tanta móbil destreza que a acometia.
Rachou-se de um golpe o escudo sangrento, e Abies
recuou furibundo e envergonhado, dando-se já por
perdido. Enfim, um golpe o lançou do cavalo, e,
vendo-o por terra, bradou-lhe o Donzel:
— Abies, dá-me a tua espada ou morres!
— Morro, mas é de vergonha! — tornou-lhe
ele, rendendo a alma.
Já os de Irlanda viam perdidos os seus
melhores cavaleiros, e os de Normandia e Gaula
haviam desbaratado os invasores.
Ao lado de el-rei Perion, entrou o Donzel do
Mar na cidade em festa.
Os moradores tinham enfeitado as janelas, e
as ruas estavam juncadas de cheirosa verdura.
Ao ver passar o moço, salvava-o o povo e
dizia:
— Mantenha-vos Deus, Donzel!
E exclamava, maravilhado:
— Deus! Como é formoso! O Senhor lhe dê
ajuda e honra para que sempre como hoje batalhe!
Enquanto o Donzel do Mar livrava a terra de
Gaula, depois de haver mantido a vida do rei dela,
chegavam à corte de el-rei Languines cem cavaleiros
de el-rei Lisuarte e muitas donas e donzelas, que iam
buscar Oriana.
[44] Partiu a infanta, acompanhada também
de Mabília. Mas, antes, vira o pergaminho enviado
por Gandales e alegrou-se de saber que o Donzel era
filho de rei e se chamava Amadis.
Ora, senhores, decerto vos lembrais daquele
anel que Perion deu a Elisena, no tempo dos seus
amores. E, como Elisena se pejara de contar a el-rei
Perion que tinha tido um filho e o deitara ao mar,
desculpara-se com dizer que havia perdido esse anel.
Uma vez, passando o Donzel do Mar por uma sala
dos paços, viu Melícia chorando e perguntou-lhe o
que tinha. A menina respondeu-lhe que perdera o
anel que seu pai lhe tinha dado a guardar enquanto
dormia a sesta.
Tirou o Donzel do Mar o que trazia no dedo e
deu-lho para a consolar da pena em que a via.
— Mas esse é o que eu perdi!
— Não é; mas, se tanto se assemelha, melhor
vos remediará.
Quando el-rei Perion quis o anel, Melícia deulho e calou-se. Mas Perion achou o outro, que era,
como sabeis, igualzinho. Chamando à parte a
menina, mostrou-lhe os dois anéis, ordenando lhe
explicasse como houvera o outro e olhando-a com
tão carregado cenho, que ela, temendo castigo, contou-lhe logo como houvera um deles. Então teve
Perion um mau pensamento, quanto injusto e cruel
para Elisena! Com o [45] sem|blante mudado,
buscou a rainha e, dando-lhe mostras do que
suspeitava, ameaçou-a de morte.
Ouvindo Elisena a horrenda suspeita, feriu
com as mãos o rosto e, chorando, não podendo mais,
contou-lhe que tivera um filho e o deitara ao mar,
com a espada ao lado e aquele anel ao pescoço.
— Por Santa Maria! — disse el-rei Perion. —
Creio que este é o nosso filho.
Num súbito recordo, veio-lhe à memória o
sonho que tivera aquela noite, quando esperava
Elisena e ela viera a ele. Lembrou-se do coração
deitado ao rio e viu como certo saía o que Ungan, o
Picardo, havia futurado.
Foram-se logo à câmara onde o Donzel do
Mar ficava; e o Donzel dormia. Mas, enquanto
dormia, chorava, do que eles se maravilharam —
sabei, senhores, que eram saudades de Oriana.
Olhou Perion a espada pendida à cabeceira e
logo a reconheceu por sua, que nunca outra tão boa
houvera.
Neste ponto acordou o Donzel do Mar, que se
ergueu e ficou turbado de os ver.
— Ai!, senhor! — bradou a rainha —, acudime na dor que tenho!
— Senhora, se o meu serviço vos pode remediar, explicai-vos, que o farei até a morte!
— Dizei-me: de quem sois filho?
— Senhora, por Deus que o não sei. Acharamme no mar por grã ventura...
[46] Então exclamou a rainha, chorando:
— Vês aqui teu pai e mãe!
E, ajoelhada ante Amadis, a mãe beijou-lhe as
mãos, dando graças a Deus.
El-rei Perion fez cortes e apresentou-lhes
Amadis de Gaula.
Depois seguiram-se grandes festas em louvor
daquele milagre que Nosso Senhor obrara, e ordenou
el-rei Perion muitos jogos e alegrias e concedeu
muitos dons. Sentia o povo a boa ventura que lhe
viera com tal herdeiro do reino. Mas Amadis só
pensava em partir. Bem fizeram pai e mãe por o
guardar, tão felizes se achavam de ali ter o filho que
lhes lembrava aquele amor que súbito os unira. Mas
Amadis pensava em Oriana — senhores, com que
saudades!
E, acompanhado do fiel Gandalim, embarcou
para a Grã Bretanha.
[47] VIII. Na corte de el-rei Lisuarte
Ia Amadis a caminho da corte de el-rei
Lisuarte e de longada praticava belos feitos, de sorte
que, por onde o Namorado passava, ficava
melhorada a justiça e remediada a fraqueza.
Ora, uma noite, não achando pousada, e vindo
de atravessar uma floresta, foi bater a um castelo que
tinha luz e de onde saía alarido de festa, com rija
matinada de quem ia bebendo.
Era o castelo de Dardan, o Soberbo, o mais
fero cavaleiro da Grã Bretanha, e tão mau homem
quanto esforçado em batalha. Pediu Amadis
pousada, como quem, à lei da cortês hospitalidade,
pretendia ali recolher-se. Porém o próprio Soberbo,
respondendo das altas ameias com a soberba voz,
negou-se a albergar a quem lho estava pedindo.
Enfureceu-se o moço cavaleiro, que era flor
de cortesia; e a Dardan prometeu que inda em outro
lugar se haviam de ver.
[48] Ao romper de alva, e depois que passou a
noite na floresta, veio Amadis a saber, por umas
donzelas com quem foi de caminho, a feia história
de Dardan, o Soberbo.
Amava Dardan uma dona daquela terra, a
qual, resistindo ao desejo do que a requeria e
valendo-se da fama de bravo que ele tinha, lhe fizera
prometer ruim serviço. Porque esta dona tanto
desamava a sua madrasta viúva, que queria haver
por seus os bens que eram daquela. E ao Soberbo
dissera a sua amiga que só dele havia de ser no dia
em que a levasse à corte de ei-rei Lisuarte, aí
dissesse que a ela pertenciam os bens de sua
madrasta e o provasse em batalha a quem dissesse o
contrário. E Dardan assim o prometera fazer no
seguinte dia.
Mas — prosseguiam, com lástima, as donzelas a quem Amadis ouvia estas coisas — a dona
viúva não viria a ter quem combatesse por ela, pois a
todos Dardan metia respeito. Alegrou-se Amadis
com tais novas, e logo determinou combater com o
Soberbo. E sorria de pensar que a batalha se daria
diante de Oriana!
Assim foi andando até chegar a Vindilisora,
que era onde estava el-rei Lisuarte. Torneando a
cidade, sem que o houvessem descoberto, subiu a
um outeiro; e de aí, sentado à sombra de uma árvore,
via embaixo o castelo e ficava-se a olhar, com lágrimas nos olhos.
Era ali que estava Oriana: e o Namorado tanto
a queria ver, que se arreceava também de a
encontrar. Só por ela viera, como só por ela vivia; e
agora, sabendo-a tão perto, quase quisera partir,
morrendo de a não ter visto...
Mas Dardan, o Soberbo, chegara à corte para
dar sua batalha.
El-rei Lisuarte, com a companhia de homensbons, encaminhou-se para o campo cerrado. E
Dardan entrou, trazendo à rédea o cavalo da sua
amiga, que vinha soberba também.
— Senhor — disse ele a el-rei —, mandai
entregar a esta dona o que outra guarda e lhe não
pertence. E, se houver quem diga o contrário,
comigo combaterá!
Perguntou el-rei Lisuarte à viúva:
— Dona, haveis quem combata por vós?
— Senhor, não — tornou-lhe ela, chorando
que el-rei houve pena, porque era boa dona.
Olhava Dardan em roda e não via quem
combatesse com ele. Todos lhe queriam mal, mas
todos o temiam. E, seguro de sua esperava o juízo de
el-rei, dado contorme o costume.
Então, da orla da floresta um cavaleiro
Cavalgava um formoso corcel branco,
resplandecia-lhe o elmo, e as armas brilhavam-lhe à
luz. À sua vista todos se [50] maravi|lhavam e
diziam que jamais haviam posto os olhos em
cavaleiro tão belo.
O cavaleiro foi direito a Dardan, a que dava
surpresa e gosto este inimigo: surpresa porque a sua
força não admitia contrário gosto porque era bravo e
apetecia lidar.
— Dardan, defendo quem tu acusas! E ora
cumpro a promessa que te fiz.
Perguntou el-rei Lisuarte à dona viúva se
outorgava seu direito àquele defensor.
— Senhor, sim! E que Deus o ajude!
El-rei mandou que pelejassem.
Arremessando-se de espaço um contra o
outro, Amadis e Dardan quebram as primeiras
lanças. Depois, como os cavalos já cansam,
acometem-se à espada e dão tão feros golpes, que o
aço dos elmos faísca e parece que as cabeças ardem!
Começa Dardan a deter-se, e Amadis carrega-o de
golpes.
— Mas quem será o cavaleiro — pensava o
povo, seguindo a luta — que à força soberba de
Dardan opõe tanta força gentil?
E, a alguns que o estavam vendo e reparavam
no que Amadis tinha a modo de resplandecente,
afigurava-se que ele seria da Cavalaria do Céu.
Sob os golpes que Lhe chovem e Lhe cegam a
sanha, vai Dardan recuando até debaixo das janelas
onde as damas assistem ao combate.
E eis que, erguendo os olhos, Amadis vê
Oriana!
[51] Ah!, senhores, podeis sentir tudo o que
estas palavras guardam?
Amadis viu Oriana! Não a havia ele olhado
desde a noite em que recebera as armas e em que,
por causa dela e para ir merecendo o dom do seu
amor, tinha partido a caminho de aventuras,
cavaleiro pobre e sem nome. E voltava agora a vê-la
e, de olhá-la, esquecia o fero inimigo que tinha ali
diante, naquele campo cerrado.
Já Amadis fere poucas vezes, e cresce Dardan
na sezão do furor! Cuida o Soberbo que a vitória é
sua e a espertar-lhe a sanha, pensa que da vitória
depende o haver o corpo da sua amiga, por que viera
ali a manter dolo e mentira.
El-rei e o povo, que olham a batalha, por
momentos descoroçoam de que ela acabe como no
íntimo o estão pedindo a Deus.
É que o Namorado ergueu os olhos e não os
pode despregar de onde os tem...
— Se eu morrer — pensava ele —, morro por
ela e a vê-la!
Mas, ah! senhores, assim como Oriana o ia
perdendo, Oriana o salvou: porque Amadis lembrou
que a fraqueza podia ser julgada covardia. Então,
como acordado de sonho, sente que lhe aflui ao
sangue uma força invencível. Cresce para Dardan,
que recua temente; arranca-lhe o elmo de um golpe,
a espada cintila ao Sol, e o Soberbo rolou morto no
chão!
[52] Quando o combate acabou, com grande
alegria de todos, disse Oriana a Mabília:
— Adivinha-me o coração que este cavaleiro
é Amadis, pois tempo é de me ele buscar!
— Assim o cuido também — respondeu
Mabília, contente de ver contente a sua amiga e por
ser tão amiga de Amadis, que o era tanto ou mais
que de Agrajes, seu irmão.
— Não vistes como parou, em meio do
combate, a olhar para a vossa banda?
— Se vi! — tornou-lhe Oriana. — E batia-me
o coração que perdia quase o acordo!
— Pois, se ele é Amadis, não tardará com
recado.
Ao mesmo tempo, Amadis, descansando na
floresta, dizia a Gandalim:
— Amigo, vai a palácio sem que te veja
ninguém: que Oriana saiba que estou aqui e me diga
que farei.
Gandalim, a furto, falou a Mabília, que o
levou em segredo à infanta:
— Onde está teu senhor? Que é feito dele?
— Senhora, dele será o que quiserdes, pois
por vós morre de amor!
Então Oriana ensinou-lhe que nessa noite viria
Amadis ao vergel para onde deitava a câmara em
que ela dormia, e que a uma janela de rexas de ferro
se poderiam falar.
Quando a noite caiu, penetrou Amadis no
vergel, seguido de Gandalim, que ficou de esculca,
vigiando. Olhou por todos os [53] baixos do alcáçar,
buscando a lucerna prometida, e em breve lobrigou a
janela onde ela luzia e o chamava. Acercou-se e,
através da grades, viu Oriana!
Vestia a infanta um brial de seda azul com
flores de ouro e estava formosa sem par.
— Meu senhor, sede bem-vindo... Ele olhavaa, e o coração não o deixava falar.
— Meu senhor, sede bem-vindo e sabei que
alegria tive com as boas novas que da vossa fortuna
me chegaram.
Disse-lhe então Amadis:
— A mercê que vos peço não é para meu
descanso: é que me deixeis servir-vos e viver só para
vós!
Oriana tornou-lhe:
— Mas de mim não hajais tal cuidado que eu
vos dê tristeza e dor.
— Senhora, em tudo obedeço, nisso não
posso...
Com os seus olhos formosos, os mais
formosos da Terra, olhava-o Oriana, revendo-se no
perfeito Namorado.
— Meu senhor, e que vos impede? Beijando
aquelas mãos, as mais lindas mãos que havia, e
estavam fora das grades a falar também para ele no
fino gesto dos dedos, Amadis respondeu:
— O meu coração!
E, levando as mãos de Oriana aos próprios
olhos, Amadis banhou-as de lágrimas, feliz de tanto
sofrer o gozo do seu desejo.
[54] Neste ponto apareceu Gandalim e disse
que a alva não tardava.
No outro dia entrou Amadis em Vindilisora, e
todos o salvavam ledos e diziam:
— E o cavaleiro que venceu Dardan! Saiu elrei Lisuarte a recebê-lo com honra, acompanhado de
muitos homens-bons.
— Amigo, sede bem-vindo!
— Senhor, Deus vos dê alegria!
E, como Oriana o quisera, ficou Amadis na
corte para servir a rainha — senhores, para a servir a
ela!
[55] IX. Arcalaus
Determinou el-rei Lisuarte fazer cortes, a fim
de bem ordenar as coisas do seu reino, por grande
honra e proveito de todo aquele senhorio. Mandou
el-rei aperceber os homens-bons, para que com ele
fossem em Londres, no dia de Santa Maria de
Setembro, e a rainha enviou recado às donas e
donzelas.
Ora, sabei que havia na Grã Bretanha um artemágico, votado às malas-artes e em más obras
useiro. Enredado uma vez em suas manhas, tinha
Amadis derrotado o poder do encantador. E
Arcalaus, que assim se chamava o feiticeiro, jurara
vingar-se dele e perder el-rei Lisuarte, a quem
grande ódio havia. Ouvide a traição que ele fez, e
que a graça do Senhor seja conosco.
A fim de melhor tecer a trama que fazia,
procurou Arcalaus a Barsinan, senhor de Sansonha,
convencendo-o a que se levantasse contra o poder de
el-rei. Ao cabo de muito falar, dissera Arcalaus, em
segredo:
[56] — Barsinan, senhor, queira-lo tu e serás
rei da Grã Bretanha!
Respondeu Barsinan que lhe convinha, porque
era homem afeito à deslealdade a seu senhor; e quis
saber como faria naquele tredo negócio.
Mas, para lhe espertar a sanha da traição,
Arcalaus só lhe dissera mais:
— E terás Oriana por mulher!
Estava el-rei Lisuarte na sua corte, apercebendo-se para partir para Londres, quando chegou
um rico mercador que muito lhe queria falar.
Ajoelhando diante de el-rei, disse o mercador:
— Senhor, eu vos trago aqui o que a um
grande rei como vós convém!
E, abrindo uma arquinha que trazia, tirou uma
coroa tão esplendente, que a el-rei foram-se-lhe os
olhos nela.
A coroa era bela à maravilha. No seu ouro
finamente lavrado resplandeciam as pedras mais
formosas.
— Senhor — disse o mercador —, crede que
esta obra é tal, que nenhum dos que hoje lavram
ouro e cravam pedras a poderia fazer de suas mãos.
A rainha, que estava olhando, atalhou logo:
— Certo, senhor, esta formosa coroa vos
convém!
Continuou o mercador:
[57] — E para vós, senhora, trago este manto!
Isto dizendo, tirou da arquinha um manto tão
bem obrado como a coroa e formoso como outro
jamais fora visto. Era orvalhado de aljôfares e nele
se viam brilhar todas as aves do mundo, bordadas na
mais rica pedraria.
A rainha não se pôde ter que não confessasse:
— Assim Deus me valha, amigo, que este
manto parece que o bordou a mão daquele Senhor
que tudo pode!
Contente do que ouvia, e ofertando à cobiça
dos olhos a deslumbrante fazenda, sorriu-se o
mercador e respondeu:
— Senhora, bem podeis crer que a este manto
o bordou mão da Terra, porém outro não há assim
formoso e, por o eu saber, vo-lo trouxe.
Tornou logo a rainha a el-rei:
— Certo, senhor, este formoso manto me
convém!
E, assim como el-rei Lisuarte e a rainha
Brisena admiravam o manto e a coroa, assim os
cavaleiros e as damas os admiravam também,
encandeados todos no brilho das pedras e no fulgor
dos bordados.
Disse então o mercador, falando a el-rei diante
de toda a companhia:
— Senhor, não sei eu quanto valem estes dons
nem tempo tenho para me agora deter. Mas levai-os
às cortes de Londres, que eles vos darão mor alteza.
Basta-me a vossa [58] palavra, cujo preço, senhor, se
conhece. E por isto me dareis o que vos eu lá pedir,
ou, não mo querendo dar, a coroa e o manto me
restituireis.
Disse el-rei que aceitava — foi o brilho das
pedras que o cegou! E, pelo haver aceitado, vereis
que dores lhe hão de vir.
[59] X. O primeiro beijo
Fizeram-se as cortes em um grande campo
bem plantado de árvores, e a cadeira real, em meio
do campo, estava coberta com um pano de sirgo,
semeado de tantas estrelas quantas nele podiam
caber. Em redor havia muitos panos ricamente
lavrados com variadas histórias e lavores. Quando
todos se acharam ali juntos, el-rei Lisuarte falou aos
homens-bons:
— Senhores, assim como Deus me fez rei,
assim eu devo, para seu santo serviço, fazer coisas
mais louváveis que nenhum outro, em prol do
comum e proveito da terra. Dizei-me, pois, o que os
vossos juízos alcançarem, para, por mim e por vós,
senhores, ganhar mais honra.
Na tenda onde el-rei se achava, estavam com
ele Amadis, seu irmão Dom Galaor —que Amadis
trouxera àquela corte, depois de o haver socorrido
em muitos perigos —, e estava também Barsinan,
senhor de Sansonha e homem tredo.
[60] Mas el-rei, que falava seguro, tinha no
coração grande cuidado. Havia ele trazido às cortes
o manto e a coroa esplendentes, e bem guardados os
tivera, como era de razão com coisas tão preciosas.
Porém, naquela manhã, quando fora abrir a arquinha
para tirar manto e coroa, achara a arqulnha vazia,
inda que cerrada estava.
Depois que el-rei falou, começaram a falar os
homens-bons. Ele a todos ouvia, e resolviam-se os
pleitos. Já porém sobre o rei, tão gracioso e leal, e
sobre os seus, a quem muito queria, pesa a traição de
Arcalaus, que tece o fio da trama. Assim foi que
uma donzela, em pranto e toda coberta de dó, se foi
queixar a el-rei de males que lhe faziam. Contou
como seu pai fora preso no castelo de Guldenada,
ele sem culpa e sem defesa ela.
Vendo ali aqueles senhores a inocência
desamparada e mostrando-lhes lágrimas de aflição, a
todos moveu à piedade e à vontade de a servir.
— Escolhei destes cavaleiros — disse el-rei
— quais hão de ir em serviço vosso.
— Senhor, sou de terra estranha e escolhê-los
não sei; mas peço à rainha mos dê, que bem os
conhece por seus.
A rainha, que houve piedade, escolheu
Amadis e Dom Galaor.
Começa Arcalaus a vencer, porque Amadis
deixa as cortes e Oriana fica só!
[61] Ora, ao quarto dia da partida de Amadis,
estando el-rei Lisuarte com muitos homens-bons e
donas e donzelas, adiantou-se o mercador, que
ajoelhou e lhe disse:
— Senhor, por que não trouxestes a coroa e o
manto que vos entreguei?
Calou-se el-rei, turbado.
— Senhor — continuou o mercador —, aprazme que mos pagueis ou mos tomeis a dar, à fé do
que tratamos.
Para encurtar razões, e como quem ia direito à
verdade, atalhou el-rei Lisuarte:
— Amigo, não vo-los posso dar porque os
perdi.
Fingiu logo o tredo Arcalaus que lhe doía a
nova como indo nisso a sua mesma vida!
Dando-se por perdido, maldizia a sua sorte e
arrepelava os cabelos, com dor:
— Senhor, que me desgraçastes! Em má hora
vos confiei meus tesouros! E, se me não valeis,
morro mesquinho!
Tornou-lhe el-rei:
— Mas dizei-me já seu preço, que vo-lo
pagarei de contado.
Recolheu-se a pensar consigo o afligido
mercador, ao tempo que já uma dor surda ralava os
corações dos que se ali achavam. Ao cabo de haver
avaliado a sua fazenda, disse o traidor a el-rei:
— Senhor, bem me custa alegar-vos quanto
me a mim deveis: mas sabei que só salvarei a vida se
me derdes o manto e a coroa, ou, por escambo de
eles, a vossa filha Oriana!
[62] À roda os homens-bons, as donas, as
donzelas, tinham agora os corações cheios de
lástima. E, havendo escutado tal despropósito,
alguns iam arrancar das espadas, quando el-rei, com
um sinal, ordenou que estivessem quedos.
Então, ao mercador que esperava, e refreando
a dor do coração e a sanha do logro, el-rei Lisuarte
respondeu:
— Amigo, demais me pedis! Mas antes eu
perca a filha que a palavra. Porque, perdendo a filha,
perco o que a mim e a mais alguns custa e dói:
porém, perdendo a palavra, a todos faria dano, dando
exemplo com que ninguém doravante respeitasse as
leis da honra.
E, mostrando-lhe Oriana, que desfalecera, el-
rei disse a Arcalaus:
— Eis o preço que requereis! Podeis levá-la!
Arcalaus tomou a infanta nos braços e,
seguido de cinco cavaleiros, entre o pasmo de
quantos ali estavam, cavalgou e desapareceu.
Entretanto Amadis e Galaor sofriam traição
no castelo de Guldenada e, com a ajuda de Deus,
escapavam às tramas do encantador. Já a caminho de
Londres, recebeu Amadis o ansioso recado de
Mabília e por ele soube que Oriana era roubada.
— Ai! Santa Maria, valei-me!
Corre Amadis em busca do seu bem.
[63] Interroga no chão o rasto dos cavalos,
uma traça e corre, e perde-a e descoroçoa, e cuida
mais adiante ir já por ela...
Mas o Senhor Deus não deixa sem amparo as
almas puras nem sem ajuda contra as malas-artes os
bons filhos seus que elas enredam.
Ao fim de muito andar, encontrou Amadis um
lenhador que tinha a cabana à borda do caminho.
Como era noite fechada, ali se recolheu e deitou o
cavalo a pastar. Contou-lhe aquele homem que vira
passar de longada cinco cavaleiros armados, com um
à frente que levava uma donzela.
— Amigo, e como era a donzela?
— Senhor, formosa sem par!
Mais lhe disse que tinham atalhado ao
caminho do castelo de Grumen, um primo de
Dardan, o que fora morto em casa de el-rei Lisuarte.
Neste passo a alva rompia. Amadis cavalgou e
partiu a caminho do castelo de Grumen. Enchia-lhe
agora esperança nova o coração. De toda a sua alma,
elevava para o Céu a mais acesa prece, e sentia que
o Senhor lhe advogava a pura causa.
Escondido na espessura de uma cerrada mata,
espiava Amadis desde as árvores o castelo, torvo nos
muros grossos. Estando assim em desvelada vigia,
não tardou muito em ver um cavaleiro que a uma
torre viera mirar o campo em roda. Depois a porta
do castelo abriu-se, saíram cinco cavaleiros [64]
bem armados, e Amadis viu Oriana nos braços do
encantador.
— Ai! Santa Maria, valei-me!
Ora julgai como seriam os golpes de Amadis!
Ao primeiro, que era Grumen, o senhor do
castelo, trespassou-o com a lança, de sorte que ferro
e fuste lhe saíram a outra parte; tomando a espada
que lhe fora companheira no mar, fendeu ao segundo
a cabeça traidora; ao terceiro, que resistir-lhe queria,
derribou-o com sanha pelos peitos; e aos outros dois,
que já desandavam, acutilou-os pelas espáduas
refeces.
Deste modo ficaram os cinco semeando o
caminho, com bravas feridas abertas.
A Arcalaus não o pode Amadis ferir como
aqueles, porque ele foge e leva consigo — Senhor!
— todo o seu bem!
Mas persegue-o, ladeia-o, envolve-o e, como
o tredo se teme da espada cristã que rebrilha,
Amadis arrebata-lhe dos braços Oriana — Oriana, a
Sem-Par!...
Diante dos maus cavaleiros, mortos por terra
com disformes gestos, Oriana estremeceu; e Amadis,
ajoelhado a seus pés, disse-lhe com doçura:
— Quanto mais custa morrer de amor!
— Fazei como quiserdes — respondeu-lhe a
infanta —, que bem fareis; e, se parecer pecado, não
o será para Deus.
[65] Eis, aí vai Amadis gozando, pela vez
primeira, este bem sem igual de se achar só com a
bem-amada.
Ali com ela, tendo-a salvo do horrendo a que
a arrastara mal precavida promessa e conquistando-a
em batalha no momento em que ia perder o seu bem,
sentia Amadis no coração tão bela ventura, que esta
quase o empecia de a gozar, tamanha era.
E ainda ali Amadis amava a furto, se não já
por temor dos homens, por temor do amor.
Assim foram andando até a orla da mata,
levando Amadis à rédea o cavalo em que a infanta
havia montado. Mas sentia-se Oriana tão cansada,
como quem não dormira a passada noite, que
Amadis se encaminhou para um vale onde corria um
ribeiro, entre a erva viçosa.
— Passai aqui a calma; descansai nesta
frescura.
Enquanto Amadis se desarmava, Oriana
adormeceu à sombra das árvores.
Chegou-se Amadis devagarinho e, vendo-a
tão linda e ali sozinha, ficou-se a olhá-la.
Com os cotovelos fincados no macio chão da
ribeira, o rosto encostado nas mãos, gozando o
fresco repouso após tão ásperos dias, ia Amadis
olhando a bem-amada, serena dormindo sob a
guarda adoradora dos seus olhos.
Oriana, acordando, sorriu.
[66] E, então, mais por ela o querer que por
ele o ousar, a donzela se fez dona sobre aquela cama
verde.
Bem abraçados se tinham, e do amor o amor
crescia — puro amor, amor sem fim!
[67] XI. Briolanja
Oriana voltou logo à casa de seus pais, salva
de tantos perigos e traições.
El-rei Lisuarte, contra quem Barsinan tramara
aleivosia, retomou seu senhorio com maior alteza e
honra e castigou o tredo senhor de Sansonha.
Junto da sua amiga, goza Amadis com ela o
bem do amor escondido. Porém a Cavalaria é oficio
que sempre está obrigando a quem o pratica, e que a
Amadis obriga mais que a outro nenhum. Assim a
honra da palavra dada lhe manda que se aparte do
seu bem — senhores, com que saudades!
Porque — sabei-o — um dia Amadis fora ter
ao castelo de Grononesa e aí soubera a triste história
da linda princesinha Briolanja.
Havia esta sido esbulhada do seu reino por
horrenda felonia, quando tivera o pai morto às mãos
de um próprio irmão que cobiçava a coroa. E, como
não havia mais filhos, ali ficara a linda princesinha
sem [68] de|fensão nem amparo. Para memória
daquela traição, tinham alguns vassalos fiéis levantado no castelo uma figura de pedra que representava
o rei morto, coroado e de espada na mão. Bem
estava requerendo desagravo a alma alçada naquela
imagem. Mas ainda ali não viera cavaleiro que
pelejasse pela princesinha. E esta, tão triste em
tenros anos, vivia esperando por ele, olhando a
estátua de pedra.
Tinha então dito Amadis que havia de ser ele
o cavaleiro desejado; e prometeu a Briolanja voltar,
para lhe reaver o reino de seu pai.
Ah!, em má hora fora prometer estes leais
serviços Amadis. E, quando a Oriana rogou lhe
deixasse ir fazê-los, mal sabia que dor lhe viria, e
quanto injusta, Senhor!
Vai Amadis nos vinte anos. A formosura que
tem realçam-na agora os nobres sinais das armas,
que lavram para lembrança os momentos de glória.
E é já sua fama tão grande, que com ele resplandece.
Desde que o havia olhado, sendo tão menina,
quis-lhe Briolanja com perdido amor; e agora,
tornando a vê-lo, sente que lhe quere mais.
Junto dela, servindo-a na guerra, guarda
Amadis a fé do seu amor.
E nem um breve momento, à luz do Sol ou da
Lua, deixa de só viver para Oriana, a Sem-Par.
Mas ao amor depressa vem o enredo, até ao
amor de Amadis, fiel como outro não há. Assim foi
que um pajem contou na cor~e de el-rei Lisuarte —
e não o dissera por mal, mas porque certo o julgava
— que seu senhor Amadis amava a linda princesinha
Briolanja e por amor se fora a reaver-lhe o reino.
Quando a Qriana chegaram estes dizeres do
pajem, sentiu no coração queixa mortal. Em vão
Mabília, a de fiel conselho, lhe apontava a razão e a
verdade.
Debalde com palavras de claro entendimento
lhe mostrava o que tão certo era:
— Pois podeis crer em tão feia coisa e tão
impossível como essa? Como vos trocaria, se vive
de vós?
Porém Oriana crera na traição e não ouvia
conselho nem a razões atendia.
Ora, enquanto Oriana padece e guarda no
coração injusta sanha, ouvide como Amadis padecia
por lhe ficar fiel até a morte.
O amor de Briolanja, que ele não quere,
quere-o a ele com mais amor, a que se acresce a
gratidão que lhe tem, senhora do seu reino como é
já. E tanto se dói de lhe querer, que o senhor infante
Dom Afonso de Portugal — filho do Rei-trovador, e
que depois foi tão belo cavaleiro no Salado — se
amerceou da linda princesinha e, por piedade dela,
até queria pôr no Romance um passo de sua feição.
[70] E bem podemos cuidar que ao trovador
de Amadis dissera o bravo infante, dando mostras de
fino coração, o mesmo que, mais tarde, havia de
sangrar ao ter de ser cruel para o Colo de Garça:
— Amigo, hei grande sabor dos feitos de
Amadis e de tudo o que haveis bem contado. Mas
por minha fé juro que, por sua grande bondade e
formosura, não há de ser Briolanja tratada de tal
guisa!
— Senhor — tornara-lhe sério o cavaleiropoeta —, mas vossa mercê bem sabe que até a morte
será fiel Amadis à sua senhora Oriana!
— Pois, amigo, cobremos o remédio, e isto
mudai na história que vos fará sempre louvado dos
homens-bons que vos agora lêem e lerão adiante.
Queria o senhor infante que Amadis, preso em
uma torre até que a Briolanja aceitasse por amiga,
enviasse recado a Qriana, pedindo-lhe licença para
se resgatar.
E que Qriana, outro modo não vendo de o
livrar, desse a licença requerida, do que Briolanja
haveria dois filhos de um só ventre.
Remediava desta guisa a ambos o senhor
infante Dom Afonso de Portugal: a Amadis, por não
quebrar fé jurada; a Briolanja, por a servir no desejo.
Mas, ah! senhores, é outra a verdade.
Não entendeu neste ponto o infante ao trovador. Se tal coisa se pusesse na história, ir-[71] senos-ia grande encanto dela. A verdade éque Amadis,
preso em uma torre pelo que ouvistes, perdeu o
comer e o dormir e perto estava da morte.
Então, temendo matá-lo, Briolanja soltou-o.
E Amadis foi fiel a Oriana, a Sem-Par!
[73] XII. As penas de Amadis
Aconselhada pela sem-razão e escondendo a
Mabília o que fazia, escreveu Oriana a Amadis.
Chamou Durim — irmão de uma boa donzela
da Dinamarca que na corte havia muito morava — e
ordenou-lhe que levasse a carta ao reino de
Briolanja, a entregasse, mas lhe não trouxesse
resposta.
Entretanto Amadis, com seus irmãos Galaor e
Florestan, com Agrajes e outros belos cavaleiros,
ganhara a Ilha Firme, que fora de Apolidon, ali
outrora arribado, vindo das ilhas da Grécia, e dela
tomara senhorio com seus palácios e tesouros.
Partiu Durim e, chegado que foi à Ilha Firme,
chamou Amadis a furto, onde não fossem vistos, e
deu-lhe a carta.
Quando o Namorado acabou de a ler —tão
crua era! —, sentou-se nas ervas do chão, perdida a
cor e a firmeza.
— Amigo, mandaram-me outro recado?
[74] — Senhor, não.
— Mas levareis meu mandado?
— Senhor, não o levarei.
Releu Amadis a regra que dizia:
“Não vos quero ver mais, nem me busqueis,
nem me deis novas”.
Então suspirou assim o Namorado:
— Senhor Deus! Por que vos apraz matar-me?
Ao fiel, caro Gandalim, que chorava de o ver
chorar, Amadis, despedindo-se, dissera:
— Gandalim amigo! Criou-nos o mesmo leite,
e teus pais me quiseram como a filho, desde que
recolheram aquele pobre menino achado a boiar nas
ondas. Agora, que vou morrer, ouve a minha
vontade: esta Ilha Firme, que eu ganhei, a ti a dou
para que a ela tragas como senhores teu pai e mãe.
De ti me despeço com pena, pois tão leal me foste.
Mas sabe que já não tenho cabeça, nem coração,
nem nada! Tudo perdi ao perder o amor de quem
amo. Amigo, não me procures, que não nos veremos
mais!
E Gandalim, transido de dor, viu-o partir sem
elmo, nem escudo, nem lança, nem espada! Segue-o
com os olhos e a própria dor o segura, tão súbita o
feria. E, quando busca partir, Amadis já vai longe.
Vai Amadis andando e não sabe aonde. É o
cavalo sem governo que o guia.
[75] Amadis não tem rumo porque o perdeu
com o amor.
Descem dos montes, lentas, as sombras e
deitam-se ao comprido na terra solitária. Amadis
caminha e alonga no meio delas a aparência do seu
vulto.
— O meu amor — pensava ele, ao passo que
a luz desfalecia — é como a sombra:
quanto vai sendo mais tarde tanto vai sendo
maior!
O cavalo endireitou a uma floresta e penetrou
na funda espessura.
Deixa-se ir Amadis ao sabor das suas penas.
Anoiteceu. Assim vagueia metade da noite na
rumorosa escuridão das árvores.
E desta noite em que vai, mais cerrada que a
outra que o cerca, só acorda quando um ramo lhe
bate rijo nos olhos.
Apeia-se, deita-se, e no escuro a voz misturase ao pranto que chora à maravilha:
— Ó meu senhor Gandales, bom, leal cavaleiro meu amo! Por que te aprouve recolher aquela
pequena coisa que lá ia sobre as águas do mar?
Ao outro dia, caminhando à ventura por uma
verde campina, encontrou Amadis um ermitão que
descansava ao pé de uma fonte, onde dera de beber
ao seu asno.
Cobria-o um pobre hábito tecido de lã de
cabra, e espalhavam-se-lhe nos peitos as cãs mui
alvas.
[76] Perguntou-lhe Amadis se ele era monge,
e, como o bom velho lhe tornasse que ha, via
quarenta anos o era, apeou-se o cavaleiro e, de
joelhos, beijou os pés do homem de Deus.
Doeu-se o velho monge da pena que via em
tão moço e formoso senhor:
— Meu filho, se de arrependido chorais por
pecados que hajais cometido, boas as lágrimas são.
Pediu-lhe Amadis que o ouvisse de confissão
e consolava-se de contar ao servo
Deus os passos da sua vida, agora tão mesquinha, e que tão boa fora quando o amor lhe
mostrava a razão de viver e vencer. Narrou-lhe como
o haviam recolhido no mar, no que o monge entreviu
sinal de favor divino. E, vindo do que há mais tempo
sucedera até ao que mais próximo soara, ali lhe
contou da sua vida assim o bem como a dor.
Ao cabo da confissão, disse-lhe o monge:
— Meu filho, se os bens temporais são fumo
que o vento semeia, que serão prazeres de mulheres
senão um fumo mais vão?
E foi-o admoestando com palavras sisudas,
que lhe a idade e estado aconselhavam, mas também
com o jeito brando que rende almas queixosas.
Disse-lhe que cuidados tais os reprovava ele por
desgarrados; que a mocidade e o valoroso rasgo o
deviam de consolar de semelhantes males, os quais,
em verdade, provinham de coisas [77] que não
acrescentavam o serviço de Deus; que o pecado
começa por fazer doce o que depois com seu travor
tão amargoso torna. E mais lhe disse que não havia
no mundo mulher nenhuma merecedora de que por
ela se viesse a perder um homem como ele.
— Meu pai, nessa parte não vos peço eu
conselho; só vos peço que cureis da minha alma.
Rogou-lhe então Amadis que o levasse
consigo onde fosse, pois, sentindo-se a ponto de
morrer, precisava do socorro divino.
— Meu filho, moro em lugar esquivo e
trabalhoso em uma ermida posta em alta penha que
se adianta sete léguas no mar. Para se lá viver, é
mister despedirmo-nos do mundo, dos prazeres e
vícios que tem. Como quereis acompanhar-me em
tal lugar da penitência, vós, mimoso da corte,
costumado a brilhar na paz e na guerra? Aquela terra
é deserta e, do lado da água, só em tempo macio de
verão se logra desembarcar. E eu vivo de esmolas...
Respondeu Amadis que muito lhe aprazia
quanto escutava, pois para si se acabara o mundo. E
tornou a rogar-lhe que o levasse, ou iria morrer nos
algares dos montes, desesperado e sozinho,
perdendo a alma. Movido de tais razões, conveio por
fim o monge em o levar; e, erguendo a mão, abençoou-o.
Rezou o ermitão as vésperas e, ao cabo, tirou
de um alforje uma escassa merenda, [78] que
repartiu com Amadis. Não comia este havia dois
dias, mas recusou o bocado, do que o santo homem
lhe ralhou, fazendo-o comer um pouco:
— Filho, comei para cobrardes forças, pois
muito temos que andar até chegarmos ao ermo.
Sabei que o vosso desespero não édo agrado do
Senhor, antes receio que a seu juízo altíssimo venha
a parecer ingratidão.
Anoitecia entrementes, O ermitão deitou-se a
dormir no seu manto, e Amadis, a seus pés,
adormeceu também. E Amadis teve um sonho.
Sonhou que estava encerrado em câmara tão
negra, que não entrava nela alguma lembrança do
dia; e, não achando por onde saísse, arquejava-lhe o
coração, às pancadas na arca do peito! Do meio da
temerosa escuridade, parecia-lhe que vinham a ele
sua prima Mabília e a Donzela da Dinamarca, e que
um raio de Sol bailava diante delas... Tomavam-lhe
elas as mãos e diziam-lhe:
— Senhor, saí e buscai a luz!
E, saindo, vira Oriana, que estava cercada de
fogo... E, passando através do fogo, sem sentir que
ele o queimasse, tomara Onana nos braços e a levara
a um formoso vergel...
Com aflitos brados, acordou; o ermitão
despertou com eles, e, como a alva vinha rompente,
dispôs-se a ir de longada.
Queria Amadis deixar ali o cavalo, para
seguir, apeado e humilde, o seu virtuoso [79]
companheiro. Mas não lho consentiu o ermitão.
— Meu pai — disse—lhe Amadis — , mais
uma coisa vos peço: que a ninguém digais quem sou
nem me chameis por meu nome.
Sorriu-se o santo homem e tornou-lhe que a
tão moço e formoso senhor, carregado de tanta pena,
daria nome que quadras-se à gentileza e à dor.
E pôs-lhe o nome de Beltenebros.
Então, indo o monge no asno e no corcel o
cavaleiro triste, tomaram ambos o caminho da
soledade.
[81] XIII. Beltenebros
Enquanto Beltenebros e o ermitão iam de
longada, chegava à corte de el-rei Lisuarte um nobre
senhor que andava jomadeando naquele reino.
Acompanhado de dez escudeiros, anunciou-se a elrei o poderoso cavaleiro e deu-se a conhecer como o
príncipe de Roma, filho do Imperador e herdeiro do
Império, que de seu velho pai receberia.
Acolheu-o el-rei Lisuarte como requeria a
alteza deste hóspede; e, abraçando-o, rogou-lhe se
albergasse na corte, do que el-rei e os seus haveriam
prazer.
Achando-se todos juntos para comer, viu o
príncipe romano Oriana, a Sem-Par, e tão espantado
foi de sua formosura, que se não pôde ter que não
dissesse a el-rei Lisuarte:
— Senhor, muitas belezas vi e admirei no
mundo e muito ouvira eu louvar a formosura da
princesa Oriana, vossa filha: porém, agora que a
vejo com meus olhos, por mesquinhos tenho os
louvores.
[82] Sorriu el-rei Lisuarte, satisfeito do que o
príncipe dizia. Mas Oriana, que, apesar da crueza
com que tratara Amadis, não pensava senão nele e
morria por novas, fingiu não ter visto esse olhar
lisonjeador.
Nos dias que esteve na corte, não buscava o
príncipe senão servir a infanta, por mais que esta lhe
mostrasse uma esquivança que aquele parecia não
alcançar, pois, como era soberboso, avaliava em
grande conta o serviço próprio.
E Oriana, a quem o cuidado do amor tornava
triste, tinha por castigo as finezas do romano e
suspirava por vê-Lo abalar.
Também o príncipe não aprouve aos cavaleiros que com ele tratavam; e todos o julgavam
mais bravo em polir as palavras que em praticar os
feitos.
Antes de deixar a corte, dissera o príncipe a
el-rei Lisuarte, encobrindo nas palavras um claro
pensamento:
— Senhor, de vossa corte não me poderei eu
esquecer. E, um dia, espero mandar-vos de Roma
novas minhas...
Chegados que foram à Penha Pobre o ermitão
e Beltenebros, aos marinheiros que os passaram na
barca deu este as vestes e o cavalo, recebendo um
tabardo de lã meirinha, com que se cobriu.
Agradou-se Beltenebros da braveza de tais
lugares.
— Filho — disse-lhe o ermitão —, eis aqui a
Penha Pobre, e esta é a ermida onde a [83] Vir|gem
Nossa Senhora vai ter mais um servidor, do que
pagado sereis por sua fina bondade. Assim muitas
vezes socorre aos navegantes a Senhora da Penha,
quando dessas ondas, achando-se eles em perigo, por
ela bradam e lhe rezam com devoção. Para aqui me
passei, deixando sem saudade os enganos do mundo,
depois de haver gastado a flor da idade em desvairos
de mancebo. E aqui me acompanhou, sempre fiel, a
solidão destes sítios, a qual em trinta anos só uma
vez deixei, e agora foi, para ir ao enterro de uma
irmã.
E ali começou Beltenebros a fazer penitência,
para que Oriana, um dia, o quisesse.
Entretanto Durim, correndo a galope desapoderado, voltara em dez dias à corte de el-rei
Lisuarte.
Ardia Oriana por novas e, encerrando-se com
ele, perguntou-lhe logo o que dissera Amadis e que
fazia, e se Durim vira Briolanja e a achara tão
formosa como era fama.
Mas Purim respondeu-lhe, com tristeza:
—. Senhora, tudo direi. Mas sabei antes que,
crueza como a vossa, nunca no mundo se viu!
E, depois de lhe contar os feitos de Amadis,
que havia ganhado o rico senhorio da Ilha Firme, e
de gabar a formosura de Briolanja — a qual, tirante
Oriana, a Sem-Par, era a mais formosa que jamais
vira —, contoulhe de como Amadis ficara dorido e
triste da cruel sem-razão; de como propusera [84]
en|viar resposta àquela mensagem, durante a leitura
da qual havia perdido as forças; e como desesperado
tinha abalado ou morrido, sem se saber onde parava,
se acaso ainda vivia...
Quando isto ouviu, Oriana sentiu que a ira
quebrava e que, no lugar onde ela ardera, estava
agora piedade que a derretia em amor.
Vendo-a chorar grossas lágrimas, Durim
compadeceu-se e chamou Mabília e a irmã para que
confortassem a infanta. Como sucede com corações
de mulher, que vão de extrema a extrema sem mais
guarte, tudo nela era chorar, arrepender-se e doer-sé,
desafogando-se em vozes de aflição:
— Ai! coitada sem ventura, que matei o que
mais amava! E a morte de meu senhoi mal vingada
será com a minha!
Foram-na as duas boas donzelas sossegando, e
com isto lhe davam prova do mais fino bem-querer,
pois ambas haviam por cru o que ela em segredo
fizera, sem olhar aos perigos da crueza. E aconselharam-na a que a Amadis enviasse doce recado sem
detença — ponto era saber-se onde ele estava!
Concertaram que, a seu tempo, Oriana o iria
esperar no castelo de Miraflores, para onde Mabília
seguiria com ela. E que a Donzela da Dinamarca
partiria, acompanhada de Durim, para o reino de
Escócia, em demanda do castelo de Gandales, onde
Amadis talvez se houvesse recolhido, a buscar
consolação.
Uma vez, na soledade da Penha Pobre, fez o
ermitão sentar a Beltenebros no poial da ermida e
perguntou-lhe:
— Bom filho, que sonho tivestes quando ao
pé da fonte dormíamos e me acordastes com brados?
Muitas vezes cismara Beltenebros naquele
sonho que Amadis tivera, sem que alcançasse o que
ele dizia: se lhe era aviso de novos males ou vinha
por esperança de remédio. E, alegrando-se de que o
ermitão lhe falasse do sonho, contou-lho sem lhe
esquecer nenhum passo, tão certo se lembrava de
tudo pelo rebate que lhe dera. E foi dizendo de como
naquela câmara negra entrara um raio do Sol, e as
donzelas que lhe haviam falado, e o fogo que vira
ardente, e o vergel onde fora ter, levando nos braços
Oriana... Ia o ermitão ouvindo, com os olhos
estendidos àquele grande ermo vivo do mar que
tinham diante, e ali era toda a companhia.
Respondia o marulho das águas à voz de um e
ao silêncio do outro; e, quando Beltenebros acabou
de o contar, pediu ao santo homem lho explicasse,
ainda que a seu juízo fosse o sonho prenúncio de
outras penas.
Pensou o ermitão um bocado, como quem
soletrava sua leitura naquelas imaginações que, em
verdade, ficavam da outra banda da vida.
[86] E, ao cabo, disse-lhe, contente:
— Beltenebros, bom filho, muito me haveis
alegrado; e, se, contra meu costume, vos falo de
semelhantes coisas, é porque julgo melhor serviço
de Deus o dizer-vos palavra certa que vos ajude a
alar-vos desta tristeza, que o deixar-vos correr à
morte desesperada.
Caiu Beltenebros de joelhos aos pés do
ermitão, regando-lhe as mãos de lágrimas e achando
que doce lhe era, em dor tão áspera, ter o mimo
daquele companheiro.
E o santo homem, que muita amizade votava a
Beltenebros, continuou, sorrindo:
— Bom filho, ainda que as idéias do mundo
não devam de andar-me na mente, ora ouvireis como
entendo o que diz esse sonho: era a câmara negra o
cuidado; as donzelas, amigas vossas que trabalham
por vosso bem; aquele raio do Sol, bom mandado
que recebereis; e o fogo que cercava a vossa amiga é
a pena em que ela vive por vos.
Partiram em demanda de Amadis, para o reino
de Escócia, a Donzela da Dinamarca e seu irmão
Durim. Levavam consigo uma carta, mas, a esta,
Oriana fizera-a tão doce quanto a outra era crua.
Navegaram com ventos fagueiros e, ao cabo
de sete dias, arribaram a Peligez, de onde foram
seguindo ao castelo de Gandales.
[87] Voltava da caça o bom senhor e, mal
soube de onde chegavam, com grande amizade e
alegria falou do seu criado Amadis:
— Que novas dele me dais, pois tanto me
alegram sempre?
Por onde logo conheceram, com tristeza, que
Amadis ali não fora.
A este tempo, Dom Guilan, o Cuidador, que
estivera na Ilha Firme, trouxe piedosamente a el-rei
Lisuarte as armas de Amadis, que achara ao
abandono.
Tendo Amadis por morto, choraram-no todos.
E Oriana, encerrada em uma câmara, maldizia
como doida a sua ventura e quena morrer.
Mas a boa Mabília consolava-a e, com
palavras que sabia, tão doces, convencia-a de que
Amadis não morrera, de que haviam de saber novas
dele. Não havia Deus de permitir mal tão grande. O
Senhor o teria em sua santa guarda!
Ora, um dia aportou à Penha Pobre uma nau
em que vinha a condessa Corisanda, acompanhada
de suas damas e cavaleiros.
Correndo o tempo macio, quiseram desembarcar para folgar uns dias, e ao ermitão pediu a
nobre dama aposento para se albergar. Como na cela
do santo homem jamais este consentiria que entrasse
mulher, ofereceu Beltenebros a sua, para onde Corisanda fez levar a cama em que dormia. E [88] ele
entanto ficava ao relento, como muitas vezes
costumava.
Alegrou-se então com a leda companhia
aquela solidão da Penha Pobre.
Trazia luzidos cavaleiros e formosas damas a
nobre Corisanda, donairosos de suas armas eles,
garridas elas de mocidade e lindeza. E, nesses dias
em que todos descansavam das fadigas da viagem,
espalhavam-se pela praia ou pelas rocas, folgando
em jogos, tangendo música.
E Beltenebros, olhando na ribeira do mar os
cavaleiros e as damas, cismava em tudo o que fora,
em tudo o que perdera, e remirava de longe as
armas, com saudades!
Uma vez, estava ele a remirá-las do adro da
capela, onde o ermitão entrara para rezar as
vésperas; e, como este deixara encostado ao muro o
cajado a que se arrimava, pegou Beltenebros no
bordão e floreou-o no ar como uma espada.
Ao sair da ermida, viu o monge aquela ação,
sem que o houvesse pressentido Beltenebros; e,
como do coração desejava que o seu bom filho
abalasse daquele deserto, pondo cobro à penitência,
sorriu satisfeito e teve por bom agouro que em tais
mãos se houvesse feito espada um bordão de pobre
velho.
À missa, que o ermitão dizia, Corisanda e os
seus repararam naquele homem moço, tão triste e
choroso, que ajoelhava como penitente aos pés da
Virgem Maria.
[89] — Quem será — pensavam os cavaleiros
— este que desdenha dos gostos do amor e das
alegrias da guerra?
— Não haveriam sido penas de amor —
cismavam as damas — que para aqui o trouxeram?
E, uma noite, ouviram que Beltenebros
cantava uma canção tão saudosa, que nao mais lhes
esqueceu.
Passados dias, de novo se embarcaram.
E a Penha Pobre ficou mais triste e só.
Mas Corisanda navegava com rumo a corte de
el-rei Lisuarte. Chegada que foi aí, contou a Mabília,
quando conversavam a respeito da viagem, que
havia encontrado na Penha Pobre um penitente cuja
dor lhe cortara o coraçao.
Era moço e tão triste, que muitas vezes lhe
vira lágrimas; tinha maneiras corteses; decerto fora
formoso; como quem desesperara do mundo,
arredava-se de toda a companhia.
E, como ainda lhe soava aos ouvidos a voz de
Beltenebros, contou que o ouvira cantar uma canção
saudosa, que não mais lhe esquecia.
Ouvindo falar daquele penitente, deu rebate o
fiel coração de Mabília, e, enquanto Corisanda
continuava, ia pensando a boa donzela:
— E se aquele penitente fosse Amadis, a
penar penas tão duras por pecados que não fez?
[90] Seguindo o rasto do pensamento que lhe
viera, disse Mabília a Corisanda:
— Senhora, mal cuidais como me prende o
que me dizeis; e, se vos lembrais da canção, muito
quisera eu ouvi-la.
Vendo quanto a Mabília cativava o que ia
contando, adivinhou Corisanda haver ali mágoa de
amor de que a infanta de Escócia sabia.
E, para satisfazer Mabília, cantou a saudosa
canção de Beltenebros.
Escutando-a, com o coração a saltar-lhe,
conheceu-a Mabília por uma canção de amor que
Amadis fizera a Oriana.
Então correu à infanta e disse-lhe de um
fôlego:
— Amadis vive e está na Penha Pobre! E
Oriana e Mabília, abraçadas, confundiam as
lágrimas, sorrindo.
[91] XIV. A senhora da Penha
No reino de Escócia, descoroçoados com seu
despacho, embarcaram Durim e a boa Donzela da
Dinamarca. Da corte de el-rei Languines traziam
para Mabília as lembranças da rainha, sua mãe.
Traziam também os recados do bom cavaleiro
Gandales.
Mas o que mais queriam trazer, que eram
novas de Amadis, não o traziam eles.
Agora ouvireis como o Senhor dispõe
graciosamente as coisas, quando tem piedade das
suas pobres criaturas.
No mar levantou-se uma grande tormenta, e
ficou a nau rota, sem aparelho, e já não sabiam
caminho nem carreira. Jogados iam ao gosto das
vagas, altas como serras de água, e davam-lhes em
cima os borbotões do vento.
Cuidando já todos que morreriam, faziam
promessas a Nossa Senhora e rezavam em coro —
Virgem Madre de Deus, rogai por nós!
[92] Apertando ao peito a carta de Oriana, a
Donzela da Dinamarca chorava e pensava consigo:
— Ai, coitada! De que serviu minha amizade
a minha senhora, que lá ficou curtindo suas penas,
mas esperançada no remédio que eu viria a dar-lhes?
Não encontrei Amadis e agora morro, levando
comigo a carta que salvaria o melhor cavaleiro do
mundo!
— Destino cru! — ia pensando Durim, à sua
parte. — Foi por minha mão que Amadis recebeu
aquela carta que o perdeu. Se lha entreguei sem
suspeitar que desespero lhe daria, para que obedeci
no mais, não lhe aceitando a resposta? E vou morrer
sem poder resgatar esta maldade!
O bom Durim recordava aquele dia da Ilha
Firme e revia Amadis como este havia ficado após a
leitura da carta: sentado nas ervas do chão e muito
branco.
Assim os dois leais servidores se lastimavam,
enquanto a flor do escarcéu fazia peninha da nau.
Mas, passados dias, o mar e o vento
amainaram e, na torna da manhã, avistaram terra.
Então conheceram de bordo a ermida da
Penha Pobre. Logo determinaram os mareantes
desembarcar, a fim de ouvirem missa e renderem
suas graças à Senhora, pela milagrosa salvação que
lhes dera.
Ordenados em procissão desde a praia,
seguiam os marinheiros a cruz que um [93]
gru|mete, vestido em uma sobrepeliz, levava alçada;
atrás da cruz ia uma folia e uma dança, por festejar o
escape da perdição, e no coice da procissão ia o
monge da. Penha Pobre, com o Santíssimo
Sacramento e os cantores.
Desembarcaram também a Donzela e Durim.
E, depois que o ermitão disse a missa, encontraramse no adro com Amadis e não o reconheceram, tão
dessemelhado e descarnado estava, com cabelos e
barba ao desdém.
Mas ele, quando os encarou, caiu como morto
no chão!
É que a surpresa de tal encontro lhe dera no
coração com o ímpeto mais grave das lembranças.
Achar ali aqueles amigos era de alguma sorte ver
Oriana, pois quem ama respira o amor em tudo o que
toca ao objeto dele.
Vendo o ermitão a Beltenebros por terra,
cuidou que para este soara a derradeira hora, e
corriam-lhe os prantos pelas cãs:
— Senhor poderoso, por que vos não
amerceastes de quem por vosso serviço tanto ainda
poderia fazer?
E pediu aos mareantes que o ajudassem a
levar ao catre aquele penitente.
Apiedada do que via, perguntou a Donzela ao
ermitão quem aquele homem era.
Ao que o monge, fiel à promessa que havia
feito, apenas respondeu, dorido como estava:
[94] — É um cavaleiro que aqui faz
penitência...
— Se tão áspero lugar buscou, grandes devem
de ser seus pecados! — tornou-lhe a mensageira de
Oriana. — Mas, pois é um valeiro, deixai-me falar
com ele, e das coisas que trago em a nau o poderei
remediar.
Entrou a Donzela na cela do penitente, e,
quando a viu ao pé do seu catre, Amadis tão turbado
foi, que não sabia que fizesse: porque, se se lhe
desse a conhecer, rompia a vontade de sua senhora
cruel, e, se a deixasse partir, com ela se lhe ia a
esperança.
Entretanto a Donzela falava piedosa ao que ali
jazia:
— Bom homem, pelo ermitão soube eu que
sois cavaleiro, e, como nos cumpre servir quem a
nós outras serve em tantos perigos, dizei-me que
farei por vossa saúde.
Chorando, calava-se Amadis, para que o som
da voz lhe não traísse o segredo. Bem lhe estava o
coração pedindo desfizesse o engano daquela que a
Providência lhe enviava. Porém como se atreveria a
nomear-se, se Oriana lhe havia ordenado que lhe não
desse novas nem mandados?
Suspeitou a Donzela que o penitente estaria
morto. Havendo pouca luz na cela, abriu uma fresta
para ver melhor.
Mas, então, afirmando-se em Beltenebros,
conheceu-lhe no rosto o sinal de uma lançada — e
caiu de joelhos, soluçando e beijando as mãos de
Amadis!
[95] XV. No castelo de Miraflores
Ao deixar a Penha Pobre, despediu-se Amadis
do santo ermitão, beijando aquelas mãos que na má
ventura lhe haviam sido amparo. E rogou-lhe com
muita amizade que fosse à Ilha Firme, a fim de
reformar um convento de monges que em suas terras
mandara edificar.
Sorria satisfeito o bom velho, pois já sabeis
como tinha criado afeição àquele que, por mando da
Providência, havia colhido à beirinha do desespero:
satisfeito de o ver, enfim, sair desses lugares, onde
só alma embebida em pensamentos de Deus poderia
achar o cristão contentamento das agruras.
Depois, passando na barca, meteu-se Amadis
a caminho com a Donzela e Durim. Tão fraco,
porém, se sentia, que não pôde ir muito além. E,
achando eles um lugar que bom lhes pareceu para
cobrar a saúde com o descanso, ali ficou Amadis,
servido pela Donzela, enquanto Durim partia a [96]
le|var recado a Oriana. Era, em verdade, deleitoso o
sítio, com árvores de meiga sombra e claras águas
correntes. Ali falavam os dois do muito que
sucedera, das dores padecidas, dos cuidados que
todos tinham sofrido quando Amadis se sumira.
Contava-lhe a boa Donzela de como Galaor,
Florestan e Agrajes haviam partido a buscá-lo por
longes terras; a dor do fiel Gandalim, que voltara
chorando à corte, como doido, e a de Durim, que a
custo obedecera à ordem que levava e tanto se lamentara de a haver cumprido.
Mas era de Oriana que os dois falavam sem
fim. Contava-lhe a Donzela como se ela arrependera
logo da sem-razão e crueza e como quisera ter
morrido, julgando perdido o seu senhor. Para mais
lhe mostrar o arrependimento de Oriana, referia a
Donzela a palidez da infanta, mortificada de pena,
ralada de remorso, e tendo de esconder quanto
sofria, lágrimas e cuidados.
E dizia-lhe de como Oriana agora partiria para
o castelo de Miraflores, ansiosa do seu perdão,
ansiosa do seu amor! Lá no lindo castelo — ia
dizendo a Donzela — esperava-o Oriana, que com
Mabília aí fora, para a bom recato receber a quem
sempre quisera, até quando fora mais crua. Porque,
pensando bem, que havia sido tal crueza, senão sinal
do amor mais fino? Deitado à sombra gostosa,
ouvindo o tom da água que chalreava brincando, ia
Amadis relendo a carta de [97] Oria|na, em que a
bem-amada lhe pedia perdão e ainda duvidava de
que ele lho desse. Beijando as doces palavras,
sentindo o que a bem-amada padecera, padecia o
Namorado por ela, sem mais lembrar a dor que lhe
tinha vindo e a ponto estivera de matá-lo.
E, pensando no castelo de Miraflores, pedia a
Deus lhe tornasse a saúde, para depressa partir e
viver!
Com tão quieto descanso e, mais que tudo,
com certeza tão deleitosa, cobrara Amadis as forças.
Já não podia com mais esperas: o desejo aguçava-lhe
a saúde e estavam-lhe os braços pedindo o peso
glorioso das armas. A Donzela da Dinamarca, vendo
como ele melhorara, disse-lhe adeus até Miraflores.
Partiu de ali Amadis e, na primeira vila, por
dinheiro que lhe emprestara a boa Donzela, teve
armas e um cavalo.
E então foi o cavaleiro Beltenebros.
Ficava o castelo de Miraflores a duas léguas
de Londres e, sendo pequeno, era o mais lindo que
havia para uma saborosa morada.
Rodeado de vergéis, assentava numa encosta
toda coberta de árvores tão boas, que todo o ano
davam fruto e flor. Dentro, tinha câmaras de rico
lavor e pátios onde as fontes murmuravam.
Uma vez que el-rei Lisuarte ali fora caçar e
havia levado a rainha e Oriana, esta, [98] ain|da
tamanina, tanto se agradou do castelo que el-rei lho
deu de presente.
E ali viera agora Oriana, sentida das dores que
sofrera, trazendo no rosto formoso o sinal descorado
das penas.
Com a fiel Mabília, sentava-se a infanta num
patiozinho ensombrado de frondosas árvores,
debaixo das quais uma fonte cantava por bica
melodiosa.
Aí confessava Oriana o seu temor de lhe não
perdoar Amadis a crueza com que fora tratado; e
contava-lhe de como o amava mais, depois que tanto
o havia feito penar. Sorria Mabília e dizia que, se ela
duvidava do perdão do seu amigo, é que ainda lhe
não conhecia o maravilhoso amor. E explicava-lhe
de como ele mais a amaria, depois que tanto havia
penado por ela.
Animava-se Oriana com tais doces palavras. E
as duas amigas, Oriana ainda magoada, Mabília com
jeito brando, passeavam os vergéis de Miraflores,
floridos de moitas de rosas e borbulhantes de fontes.
Voltava ao rosto de Oriana a cor viçosa, pois
já dentro do corpo formoso a fé do amor derramara a
graça. E, como cuidavam não tardaria Amadis,
combinavam ledas de que modo entraria a furto o
cavaleiro que vinha da amorosa penitência:
— Esta varanda é alta — dizia Oriana —, e
não poderá subir!
— Sim, subirá — tornava Mabília, rindo —,
porque nós lhe daremos as mãos!
[99] Entrementes, e para que todos fossem
mais alegres, chegaram ao castelo os amigos fiéis: a
Donzela da Dinamarca, Gandalim e Durim.
Havia Gandalim chegado depois dos outros e,
como o porteiro o viera anunciar àinfanta, logo esta
ordenou:
— Que entre o bom amigo que tão bom
escudeiro é e foi criado conosco, para mais irmão de
leite de Amadis, a quem Deus guarde!
— Senhora — disse o porteiro —, sim, a
quem Deus guarde, pois grande perda seria se tão
bom senhor se perdesse.
— Não vedes — disse Oriana a Mabília,
quando o porteiro saiu — como a Amadis amam
todos, até os mais simples como este? E como o não
amaria eu?
Fechados com segurança no patiozinho da
fonte formosa, falavam todos de Amadis, em breve
dia esperado, segundo as novas trazidas pela
Donzela da Dinamarca.
— Gandalim amigo — disse uma vez Orla-na
ao escudeiro fiel —, ainda me queres mal pelo mal
que eu fiz, sem saber?
— Senhora — respondeu Gandalim —, quero-vos grande bem por meu senhor, inda que mal
vos quis quando perdido o julguei. E vós, para o
receberdes, tomai ora todo o brilho e cor!
— Tão feia te pareço? — tornou Oriana,
rindo. — Foi por me achar feia, amigo, depois de
tanto sofrer, que eu vim a este [100] cas|telo esperar
a Amadis, meu senhor, de soi que, vendo-me ele,
não possa fugir de mina
Uma tarde, penetrando na floresta, foi-se
Amadis acostando à parte de Miraflores; e deixando
o cavalo pastar, esperava que anoitecesse.
Tão perto estava agora da ventura, que as
dores passadas lhe semelhavam sonho que tivera.
Lembrava como tantas vezes quisera ter morrido e
agradecia a Deus qu~ lhe fora tão cortês e benigno
senhor.
Entretanto a noite caía, e com a sombra vinha
o segredo propício ao desejo dos namorados.
Quando anoiteceu, Amadis saltou o mu~ ro,
caminhou pelo vergel e, vendo Gandalim, chamou-o
baixinho.
Correu o amigo e foi avisar Oriana, que veio à
varanda com as suas fiéis.
Então, sustido por Gandalim e Durim, que o
tinham posto nos ombros, e ajudado de cima pelas
mãos de Oriana, de Mabília e da Donzela, entrou
Amadis no castelo — e fi~ cou preso num beijo à
boca da bem-amada!
[101] XVI. A espada e a guirlanda
Amadis, que todos julgavam perdido ou
tinham por morto, fizera a el-rei Lisuarte serviços
assinalados, combatendo por sua glória. Tamanha
fama havia ganho, que já diziam alguns que, a fama
de Amadis, Beltenebros a ofuscava. Mas, como não
tirara o elmo e ninguém lhe pudera ver o rosto,
guardava o nome de Beltenebros.
Entretanto, quando a noite descia, entrava em
Miraflores.
Ora, estando ele aí uma vez junto da bemamada, veio da corte Gandalim com grandes novas.
Um velho escudeiro grego, por nome
Macandon, mostrara a el-rei Lisuarte maravilhosas
coisas, as quais trouxera à corte da Grã Bretanha por
ser afamada em gentileza.
E, depois que el-rei disse lhe aprazia que à sua
corte a buscassem por gentil, mostrara-lhe o
escudeiro uma espada como outra jamais fora vista.
Encerrava-a uma bainha [102] transparente, cor de
esmeralda, e a folha de aço era, até metade, tão
limpa como água cristalina, e na outra metade tão
ardente e vermelha como de fogo.
Depois que esta espada havia mostrado,
descobrira o escudeiro uma guirlanda tão
maravilhosa como aquela: metade das flores que a
entreteciam estavam frescas como se acabassem de
abrir, e na outra metade tão murchas que parecia que
se iam desfolhar.
— Senhor — dissera Macandon —, há sessenta anos ando eu vagamundo, em cata daqueles
cujo Perfeito Amor logrará vencer o encanto do que
vos mostro. Desses só, de mais ninguém, por mando
de altos desígnios, poderei receber as armas e, enfim
armado cavaleiro, subir neste cabo da vida ao trono
que há tanto me espera. Mas, como a esses não
achei, nem nos remos distantes nem nas ilhas do
mar, à vossa corte vim para que nela ordeneis uma
prova, e, se me prometeis que a ordenais, direi o
mais que não disse.
Ouvindo tais maravilhosas palavras, arderam
todos por saber o mais que Macandon calava.
— Senhor — disseram a el-rei os cavaleiros,
que olhavam a espada encantada —, ordenai, pois,
essa prova, e tentemo-la todos, não sendo contra a
lei de Cristo.
E as damas, que remiravam curiosas a
encantada guirlanda, disseram à rainha:
[103] — Senhora, pois que esta guirlanda nos
respeita como toucado de flores, ordene el-rei essa
prova para que a tentemos também.
De boa mente o prometera el-rei Lisuarte.
Continuou, então, o velho Macandon:
— Senhor, esta espada que vedes, ninguém
nunca a tirou da bainha, donde só poderá arrancá-la
aquele que à sua bem-amada quiser com Perfeito
Amor. E esta guirlanda, quando posta na cabeça
daquela que a seu amado quiser com amor igual,
então se verá que reverdece e ficará toda em flor.
Ouvira Amadis estas novas e quedara-se a
pensar nelas.
Contara depois Gandalim que, tendo ei-rei já
marcado o dia da prova, todos os cavaleiros fariam
por desembainhar a espada, do mesmo modo que a
guirlanda seria posta em cabeças de donas e
donzelas. E, como então estivessem na corte os
melhores cavaleiros da Pequena e Grã Bretanha e a
rainha Briolanja — que Oriana queria ver mais que a
ninguém no mundo! — ali havia chegado, coberta de
luto por Amadis, a grande prova respeitava a todos e
todos queriam tentá-la.
Disse então Amadis à bem-amada:
— À prova iremos também!
Pasmou Oriana do que ouviu, tão impossível
lhe pareceu por perigoso e louco.
Respondendo ao espanto que lia nos formosos
olhos da sua amiga, beijou-lhe Amadis as mãos e
explicou seu pensamento:
[104] — Mas ireis rebuçada de guisa que ninguém saiba quem sois. Comigo sereis diante de
vosso pai, e faremos a prova da Espada e da
Guirlanda!
Na véspera da prova na corte enviou Oriana
recado a el-rei, dizendo que, por estar doente,
naquele dia ficava deitada.
E, depois, Mabília e a Donzela da Dinamarca
disfarçaram a infanta à maravilha.
Tão bem disfarçada ficou, vestida em uma
capa mui rica, mas desusada no reitio, e com a cara
encoberta com um rebuço, que Amadis, sorrindo,
disse quando a viu:
— Nunca eu cuidei que tanto folgaria de vos
não conhecer!
E, antes da alva do dia, saíram de Mira-flores
e cavalgaram para a corte em festa. Levava Amadis
as mais formosas armas, pusera Oriana as mais
formosas jóias, e eram ambos o Perfeito Par:
Na sala grande dos paços, e depois d~ ouvida
missa, el-rei Lisuarte e ~ rainha Brisena vão presidir
à prova. Todos os cavaleiros cercam o trono, e,
sorrindo para eles, estão presentes todas as donas e
donzelas.
Guardadas numa arqueta de jaspe chapeada de
ouro, vêem-se a meio da sala a Espada e a
Guirlanda.
Quando el-rei Lisuarte soube que Beltenebros
ali chegava para concorrer à prova, alegrou-se e
recebeu-o com honra.
[105] E o cavaleiro Beltenebros, que não
havia tirado o elmo, foi saudar el-rei, levando pela
mão a dama rebuçada...
(Ah! senhores, como Oriana tremia!)
Dado sinal, a prova começou.
Primeiro tentou-a el-rei e, pegando na espada,
não a pôde tirar da bainha, Seguiram-se Dom
Galaor, que amava Briolanja, e Brunéu de Bonamar,
que amava Melícia, e Arban de Norgales, que amava
Grindalaia: e não desembainharam a espada. Depois
foi Florestan, o outro irmão de Amadis, tão leal e
gentil, que amava Corisanda: e a espada não saiu da
bainha de esmeralda.
Seguiram-se Galvanes Sem-Terra, e Brandoivas, e Grumedan, e Ladasim, que todos tinham
amores: e a espada ficou-se na bainha. Logo a
provou Guilan, o Cuidador, que amava Brandaía,
depois de a haver provado Agrajes, que amava
Olinda: e não saiu da bainha aquela espada.
E assim foi com Polomir, com Dragonis, com
todos que a provaram: pois, se todos, uns mais,
outros menos, arrancaram da espada algum tanto,
nenhum pôde arrancar a espada toda.
Então adiantou-se Beltenebros, levando pela
mão a bem-amada: e, pegando na espada, arrancou-a
da bainha!
Fez-se depois a prova da guirlanda.
A rainha, primeiro, pôs na cabeça as flores: e
as flores não refloriram. Seguiu-se-lhe [106]
Briolanja, formosa no seu luto — e para quem
Oriana olhava muito —, e não floriu a guirlanda.
Depois foram Estreleta e Brandaía, e foi Aldeva, e
foi Olinda, e Grindalaia, e foram todas: e as flores
não refloriam. Quando postas naquelas cabeças,
mais em umas, noutras menos, refloriam algumas
flores, mas nunca toda a guirlanda.
Então adiantou-se a Dama de Beltenebros,
levada pela mão do seu amado: e, quando a pôs na
cabeça, toda a guirlanda floriu!
[107] XVII. A canção de Leonoreta
Acabada a prova da espada e da guirlanda, foi
o velho Macandon armado cavaleiro por
Beltenebros, e, bendizendo o Perfeito Par cujo
Perfeito Amor lhe havia enfim quebrado o fadário,
recebeu as armas das mãos daquela dama rebuçada.
Muito festejou a rainha a Dama de Beltenebros, e elrei Lisuarte, para fazer mais honra ao cavaleiro e à
bem-amada, saiu a despedi-los, levando à rédea o
cavalo daquela em cuja cabeça florescia a guirlanda,
assim como na mão de Beltenebros rebrilhava a
espada.
Voltando a palácio, quis el-rei Lisuarte ofertar
aos cavaleiros e às donas e donzelas um mimo
gracioso e que a todos deu prazer. Depois que
Amadis se havia perdido — e alguns dos que ali
estavam bem o tinham buscado por longes terras —,
era a primeira vez que se davam mostras de alegria.
Chamou el-rei Leonoreta, sua filha ainda
menina, e pediu-lhe que viesse cantar e [108]
dançar, com seu coro de donzelinhas, aquela canção
que Amadis, sendo seu cavaleiro, havia feito por
amor dela.
Fora o caso que uma vez, estando Amadis a
falar com el-rei e a rainha, convenceram Oriana,
Mabília e Olinda a Leonoreta a que escolhesse
Amadis por seu cavaleiro, para que ele mui bem a
servisse, sem olhar para mais nenhuma dama.
Riram-se os reis e Amadis; e este, pegando ao colo
na infantinha, sentara-a no estrado e dissera-lhe,
muito sério:
— Pois para cavaleiro me quereis, bem éme
deis uma jóia, a fim de me eu ter por vosso.
E a infantinha, tirando dos cabelos um alfinete
de ouro cravado de pedras preciosas, dera-lho por
amoroso penhor.
Tendo el-rei Lisuarte contado esta lembrança
engraçada, todos sorriram ouvindo-a.t
Mas o que el-rei não sabia era que essa canção
a fizera Amadis para Oriana e que, enquanto falava a
Leonoreta, brincando com ela no estribilho, em
verdade dizia como amava a furto a Sem-Par.
Entrementes entrou Leonoreta, e seguiam-na
doze damizelas. Vinham todas vestidas por igual, de
telas ricas, e traziam grinaldas nas cabeças.
E Leonoreta e o coro cantaram e dançaram a
formosa canção:
[109] Senhor genta,
min tormenta
voss’a mor en guisa tal,
que tormenta que eu senta,
outra non m’é ben nen mal,
mais la vossa m’é mortal.
Leonoreta, fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta, non me meta
en tal coita vosso amor!
Das que vejo
non desejo
outra senhor se vós non.
E desejo
tan sobejo
mataria un leon,
senhor do meu coraçon!
Leonoreta, fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
non me meta
en tal coita vosso amor!
Mha ventura
en loucura
me meteu de vus amar.
[110] É loucura
que me dura,
que me non poss’én quitar.
Ai fremosura sem par!
Leonoreta, fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
non me meta
en tal coita vosso amor!
[111] XVII. As sete partidas
Depressa foge ao amor a alegria, e deste modo
fugiram ligeiros os dias de Miraflores. Conheceu
Amadis que não podia encontrar-se aí mais com a
adorada, por tão perigoso ser. Então se despediu de
sua boa ventura.
Doces horas vividas a furto entre os amigos
fiéis, no coração dos quais demorava o segredo
escondido e amado; doces horas de tanto sabor na
câmara de Oriana, ao tomar rijo nos braços a
esbelteza do corpo de ouro; doces horas em que
ambos passeavam à sombra rescendente dos vergéis:
adeus!
Dera-se então Amadis a conhecer a el-rei
Lisuarte e a todos, e em batalha o fizera, salvando
el-rei da perdição em que estava e mantendo-lhe a
vida com a vitória.
Não mostrara, porém, el-rei Lisuarte tão
agradecido coração como devera, fosse que já
invejasse glória que tanto brilhava, fosse que a seus
ouvidos ousassem segredar [112] bo|cas enredadoras
que Amadis lhe cobiçava a coroa.
Saudoso de Miraflores, desgostoso da cone, e
não, como todos cuidavam, por desejo de andar
terras estranhas e ver várias gentes e leis, foi Amadis
correr as sete partidas do mundo.
— Amiga adorada — dissera ele a Oriana,
falando a furto com ela uma última vez —, pois elrei assim o quere, assim me convém fazê-lo e voume para que a glória, que por ti só ganhei, se não
perca com minha honra. Amiga, como sou mais teu
que meu, não me mandes ficar, inda que eu morra de
dizer-te adeus!
— Amigo — respondera-lhe Oriana, a quem o
coração também se partia —, a mim era, e não a elrei, meu pai, que tu servias. Mas pois da tua honra
me falas — até um dia e até sempre!
Nesses remos distantes, para onde se fora
depois de visitar o seu bom senhor Gandales e a
corte de Gaula, praticou Amadis grandes feitos, para
glória de Deus e da bem-amada.
Um dia, navegando diante de uma ilha que lhe
pareceu bem vestida de arvoredo, apeteceu a Amadis
desembarcar, por descansar um pouco em sombra
mansa.
— Senhor — disse-lhe mestre Elisabat, que
era o patrão da galera, homem sábio em experiência
e conselho —, esta é a Ilha Triste e de nela
desembarcar nos guardemos nós.
[113] E contou-lhe mestre Elisabat de como
ali reinava Madarque, o gigante cruel de cuja ira lhe
foi narrando os malefícios, contra a lei de Cristo
praticados, e em cujos cárceres penavam cativos que
Madarque pusera a ferros.
Mas a Amadis respeitava limpar o mundo de
traição, de maldade e de erro; e, alcançando terra em
um batei onde levava o cavalo, foi subindo um
escarpado monte, coroado no cimo por um castelo.
Logo de uma torre do alcáçar deu sinal o fero som
de uma buzina, cujo clangor foi tangendo o
recôncavo das furnas. Não tardou Madarque em
descer a terreiro, e viu-o Amadis vestido de aço no
possante ginete, trazendo a cabeça coberta com uma
capelina coruscante e na mão um venábulo de
guerra.
— Ora me valha aqui, minha senhora Oriana!
— rezou Amadis no íntimo do coração.
E mestre Elisabat ouvira, desde a galera
ancorada, o estrupido da batalha, que atemorizava os
ecos. Enfim, roto dos golpes se abatera por terra o
gigante Madarque, e, vencido e repeso, prometera ao
vencedot abraçar a lei de Cristo. Então libertara
Amadis dos cárceres do castelo os cativos que neles
penavam, e agora bendiziam o salvador!
Outra vez, indo com rumo a Constantinopla, e
depois de uma tormenta que lhes dera, passaram a
certa ilha que, por tão despovoada e agreste,
entristecia os olhos [114] que a abrangiam. E mestre
Elisabat contara que aquela era a Ilha do Diabo,
ainda mais temerosa que a Ilha Triste, porque ali
havia senhorio, não já criatura com forma humana,
mas uma alimária horrenda, em cuja fábrica metera
mão o Demônio e a quem o pavor das gentes
nomeava por Endriago.
Tinha o corpo veloso e escamoso, a modo de
rocha felpuda; corria voante como touro alado em
asas de morcego, chamejando pela goela peçonha de
vapores; e todo o seu prazer era devorar gente, da
qual pouca restava naquela ilha.
Ouvia Amadis tais temerosas coisas, e,
enquanto olhava a ilha renegada, pensava que em
combater o próprio poder do Demônio daria grande
lustre ao seu amor.
— Gandalim amigo — disse Amadis ao escudeiro fiel, quando saiu a combater o monstro —,
uma coisa te rogo muito: e é que, se eu aqui morrer,
leves à minha senhora Oriana o que eu trago e dela é
— o meu coração!
Ficara-se Gandalim em lastimoso pranto,
porque a grande afeição que a Amadis votava
sobrelevava nele ao desejo de ver o seu senhor
colher mais glória. E temia ter de cumprir tão
doloroso mandado, levando a Oriana a flor dos
corações!
Fora-se Amadis a desafiar a medonha bestafera no seu fojo de rochas taciturnas, dando vozes
com que eia saiu a terreiro mais sanhuda.
[115] Como a Endriago assistia o poder do
Demônio e como este via que o cavaleiro invocava,
antes do nome de Deus, o nome da bem-amada, já
festejava raivoso o desbarate do inimigo.
Mas o nome de Oriana, junto ao nome de
Deus, ainda ali salvara o que o invocava em batalha.
E, após o combate, destroçado o monstro,
recolhera Gandalim a Amadis meio morto à galera,
onde mestre Elisabat, com sutis medicinas, lhe foi
curando as feridas e a peçonha.
E, por memória do grande feito, se ficou
chamando aquela ilha — Ilha de Santa Maria.
Depois, em Constantinopla, que era naquele
tempo a cabeça da Cristandade, recebera-o o
Imperador fazendo-lhe muitas honras — e quanto
desejara que em suas terras ficasse demorando o
Paladim!
Mas tanto se lembrava sempre Amadis da
bem-amada, que, vendo entrar a infanta, linda à
maravilha, se recordou do tempo em que Oriana era
da idade dela e ele o Donzel do Mar — e chegaramlhe as lágrimas aos olhos. Repararam todos naquele
pranto represo, admirados de verem lágrimas nos
olhos do vencedor de Endriago. Porém todos
calaram por cortesia a estranheza.
O Imperador, a quem Amadis mais agradava
que nenhum outro senhor que até então tivesse
conhecido, falou à puridade com mestre Elisabat:
[116] — Mestre, por que razão choraria o amo
a quem bem servis?
— Senhor, como o saberei? Só sei que mais
formoso e esforçado cavaleiro não há!
— Seria por esconder mágoa de amor?
— Senhor, se ele a esconde, bem encerrada a
tem, pois só quando dorme suspira, inda que às
vezes as cismas o tragam por longe.
Mas a princesa, a quem mais que a todos
aquelas lágrimas haviam chegado ao coração,
perguntou a Amadis, piedosamente, uma vez que
junto ao seu estrado não estava por então mais
ninguém:
— Senhor, por que haveis chorado?
Recobrou-se Amadis do enleio em que o
deixara a pergunta e, não sabendo mentir nem
querendo passar além, disfarçou com alegre
semblante:
— Foi porque me lembrei de um tempo
saboroso!
Ao despedir-se Amadis da corte, juntaram-se
na sala grande dos paços, que era toda forrada de
ouro, com figuras mui ricas de embrechados, os
altos senhores do Império, e o Imperador ofertou a
Amadis muitas pedras preciosas que provinham dos
tesouros dos reis da Judéia. Mas Amadis escusou-se
a aceitá-las.
A infanta, a quem aquele adeus custava,
trouxe duas coroas do mais rico lavor e pedraria:
— Dois dons vos peço, senhor — disse a bela
princesa —, que a coroa em que [117] alvore|ce este
branco rubim a deis à donzela mais linda que
conhecerdes e estoutra em que esplende um rubim
vermelho à mais formosa dona a oferteis.
Então pusera Amadis a coroa do branco rubim
na cabeça da infanta de Constantinopla, e a coroa do
rubim vermelho guardou-a para Oriana, a Sem-Par.
Assim por espaço de três anos andou Amadis
de terra em terra e de glória em glória, em
Alemanha, em Romania, em Grécia, protegendo os
fracos, abatendo os soberbos, reparando agravos,
emendando erros, aprendendo as linguagens dos
povos, conhecendo peregrinos costumes.
Às vezes, quando mais lhe pesava o lembrarse, fugia aos louvores — pois nunca lhe agradava
que o louvassem — e ao saudar de príncipes e
senhores, e buscava solidão de floresta, para aí, a sós
com o seu coração, sozinho com Gandalim, pensar
em Miraflores. Como é sina e magia de saudosos
irem ante si figurando o que adoram, assim via
Amadis os olhos de Qriana, a boca de Oriana, suas
mãos, seus cabelos, seus pés mimosos nos chapins
pontiagudos, todo o seu corpo de ouro, que ele tivera. E, como o que via estava animado daquela luz
de dentro que é a alma, via também a alma de
Oriana, tão finamente trajada no vestido do seu
corpo e formosa como ele.
[118] Quantas vezes, no albergue dos castelos
ou na riqueza das cortes, sentira Amadis que o
buscavam o sorriso de muitas bocas formosas e a luz
de muitos olhos lindos!
Mas, se os olhava, nem bem os via, pois tão
cerrado guardava o segredo do seu amor, como
mantinha fiéis corpo e alma à bem-amada.
E, sem nunca ter novas de Oriana, teve-a
sempre presente na sua alma, porque sempre houve
nela — a Saudade.
[119] XIX. Imperatriz de Roma
Mas não fora esquecida Oriana em Roma, e o
novo Imperador que aí reinava mandou a el-rei
Lisuarte uma poderosa embaixada, a pedir-lhe a mão
desta infanta, sua filha.
Assim, desde que partira da corte da Grã
Bretanha, não havia esquecido aquele príncipe a
formosa Sem-Par, cuja arredia esquivança lhe não
dera algum azo a determinar-se de tal modo.
Logo que subiu ao trono, o seu primeiro
cuidado foi pedi-la, fiado na boa menção que el-rei
fizera às palavras da sua despedida e, mais que tudo,
fiado na soberba de crer que nenhuma princesa da
Cristandade recusaria sentar-se à sua ilharga, no
sólio daquele Império. Arribaram à Grã Bretanha as
naves romanas, aparelhadas com grande riqueza, e
delas desembarcaram grandes senhores.
Agasalhou el-rei Lisuarte com muita honra os
nobres embaixadores, entre os quais [120] mandara
o Imperador a rainha Sardamira de Sardenha — a
fim de acompanhar a Imperatriz a Roma —, o
príncipe Salustanquídio, senhor de Calábria,
Brondajel de Roca e o bispo de Tulância.
E, quando eles lhe pediram para o Imperador
de Roma a mão da infanta Qriana, ficou el-rei
Lisuarte de dar a resposta ao cabo de um mês.
Mas logo teve el-rei por graciosa fortuna que
o Imperador mais poderoso da Terra lhe mandasse
pedir uma filha.
E, antes que ouvisse conselho, prometeu a si
mesmo que a daria.
Quando Oriana soube que os romanos vinham
com tal recado e sua mãe lhe disse que el-rei se
inclinava a dar-lhes favorável despacho, ficou
tolhida de espanto e dor! Jamais lhe havia lembrado
que sucesso semelhante se poderia armar, para vir
pôr em tanto risco a fidelidade do seu juramento.
Não sabia a fiel Mabília defender agora Oriana
contra perigo que era maior por tão traiçoeiro ser.
Apartadas de todos na câmara da infanta,
desafogavam-se em palavras, já de furor, logo
descoroçoadas, do que ambas iam sofrendo, cada
uma de seu mal, que ao mesmo ia dar. E lembravam
com sanha e desdém o príncipe néscio e inchado,
que em má hora tinha vindo à corte da Grã Bretanha.
— Ai! — gemia Qriana. — Por que se foi
Amadis e me deixou sozinha, ele, o lume das
coitadas?
[121] Não podendo mais calar a angústia que
a trespassava e esperançada em que atalharia o mal
acudindo-lhe com remédio, foi Oriana ter com seu
pai, ajoelhou-se-lhe aos pés e disse-lhe, chorando:
— Havei piedade desta filha!
Levantou-a el-rei a ponto que Oriana lhe ia
beijar os pés:
— Filha, a tudo que disserdes ouvirei com
amor de pai.
— Meu pai e senhor, se é vossa vontade
mandar-me ao Imperador de Roma, apartando-me de
vós, de minha mãe e da terra onde nasci, sabei que
tal vontade se não poderá cumprir, porque antes
morrerei ou me darei a morte!
Isto dizendo, ficara Oriana aos pés do pai,
aguardando, chorosa, o requerido conforto.
Porém el-rei não tomou tão grave dor por
sentimento assim fundo como era.
Tornou-lhe que forte loucura seria não subir
ao trono mais poderoso da Terra, não fruir as
grandezas do Império, desdenhar de seu senhorio e
enjeitar reis e rainhas por vassalos. Em ela chegando
a Roma, logo aprovaria o que el-rei desejava para
bem de sua filha, a quem muito queria, e para bem
da sua coroa, a que muito lustre dava.
Junto de sua mãe recebia Oriana piedade e
carinho. Mas que podia a rainha senão acompanhá-la
na dor?
[122] E, porque el-rei cuidou que a seus fins
convinha, mandou Oriana para o castelo de
Miraflores, onde a rainha Sardam ira a foi
acompanhar.
No castelo das lembranças caras, mais
padeceu Oriana a grande pena em que se via. Tudo
ali lhe espertava a memória dos dias encantados,
tudo, desde o mavioso chalreio das fontes até ao
aceno das árvores que aos dois haviam coberto. Em
tudo lia Oriana os sinais do seu amor, surgia de cada
canto o vulto de Amadis, a todo o sítio o marcava
lembrança de afago ou beijo. E, à noite, sozinha em
sua câmara, via a seu lado no leito o lugar do seu
amado.
Falava-lhe a rainha Sardamira das grandezas
de Roma e do senhorio imperial. Com palavras
copiosas, e sem suspeitar que afligia aquela a quem
as estava dizendo, encarecia a soberba da cidade,
contava a riqueza da corte. Mas, enquanto a rainha
falava, ia Oriana cismando em seu amigo, que
saudoso andava por longes terras; pensava na
fidelidade de Amadis, no que havia por ela penado
— e sentia no corpo formoso derreter-se-lhe a alma
por ele.
Louvava-lhe a rainha Sardamira o belo amor
do Imperador, que tanto lhe queria desde que a vira
na corte, nunca a pudera esquecer e dela fazia a
senhora mais poderosa do mundo, soberana dos
príncipes da Cristandade
[123] Mas Oriana, olhando o vergel,
lembrava-se da noite em que Amadis havia entrado
no castelo — e tinha ficado preso à sua boca!
Quis el-rei Lisuarte ouvir os homens-bons e a
palácio os chamou, com o conde Argamon, seu tio, a
fim de receber juízos avisados.
Era o velho conde senhor de mente arguta e
tinha muito mundo.
Ainda que se achava doente de gota, não
quisera faltar ao chamamento; e, sabedor do que a
todos constava, vendo os modos de el-rei, logo o
teve por já determinado e por pouco inclinado a
escutar razões. Como havia conhecido muitas cortes
e servido a bastos senhores, bem sabia que aos reis
não apraz que os atalhem nos intentos, até por serem
de humana condição.
Mas o conde Argamon vinha seguro de sua
causa e, depois, já por tão velho ser, desapegado das
coisas do mundo, não se lhe dava dizer aos mais o
que tinha por direita verdade.
Juntos que foram nos paços, falou el-rei
Lisuarte aos homens-bons. Disse-lhes que havia
aquele casamento por coisa louvável e da qual
poderiam todos ter aprazimento; que o Imperador,
escolhendo Oriana entre as princesas da Cristandade,
dera mostras de honrar a coroa da Grã Bretanha,
aliando o esplendor do Império ao da Cavalaria
deste reino; e que esperava, em seu coração de rei
[124] e de pai, que a infanta, sua filha, fosse ditosa
em Roma, alçada ao trono por Imperatriz.
Ouvira o velho conde as razões de el-rei e
fora-o olhando com finos olhos em cuja chama, que
a idade tinha amortecido, brilhava ainda a luz das
mentes claras. Quando el-rei acabou, começou ele:
— Sobrinho e senhor, custoso é dar conselho
em casos tais, pois, se por vossa vontade formos, a
nós mesmos podemos enganar, e, se contra ela nos
pusermos, vos agastar-vos-eis.
E foi advertindo que semelhante casamento
não era de razão se o não desejava Oriana, e que ele
suspeitava que a infanta se não sentia leda de se
alçar por Imperatriz; que por esse casamento
perderia o reino de que era herdeira e de direito lhe
pertencia, de sorte que, mandando-a ao Imperador,
el-rei Lisuarte a deserdava e dava a coroa a
Leonoreta; que também tal casamento viria a pôr o
reino em perigo, pois o Imperador, por morte de sua
mulher, acaso se julgaria com direitos a esta coroa,
acontecendo que os teria deveras; e que, sendo o
Imperador poderoso como era, sem grande trabalho
o reino viria tomar.
Todas estas avisadas coisas as dissera o conde
Argamon por amor da verdade e também porque
sabia que Oriana padecia e chorava de casar, e o
discreto senhor sentia pela formosa infanta um afeto
que se revia em sua beleza dela.
[125] Doeu-se el-rei Lisuarte com o arrazoado
do seu velho tio. Retrucou que a mocidade, pelo ser,
não sabe o que mais convém ao bem próprio e que a
muita crescença dos anos, com escurecer o mundo,
levanta perigos onde se eles não acham.
E, assim como não atendera aos homens-bons,
por cujas bocas tinha falado o conde, não atendia elrei Lisuarte a sua mulher, a rainha Brisena, que
chorava de saber que Oriana partia e contra vontade
casava.
O conde Argamon, com quem el-rei se
mostrava agastado, retirou-se para as suas terras.
Já nos corações dos mais leais cavaleiros
lavrava a tristeza de tal noivado. E Dom Galaor, que,
além de ser dos mais leais, suspeitava que Amadis e
Oriana se amavam, falou por todos a el-rei.
— Senhor, amanhã, se Deus quiser, sairemos
deste reino, que em vossa corte nos não apraz mais
servir.
Perguntou el-rei Lisuarte a razão por que o
queriam deixar.
— Senhor, porque a vossa filha fazeis o que
não devíeis fazer à mais miseranda mulher.
E Galaor, Florestan, Agrajes, e com eles todos
os leais, deixaram a corte de el-rei Lisuarte e
passaram-se à Ilha Firme.
Ao cabo do prazo marcado, chamou el-rei a
Brondajel de Roca e deu-lhe a sua resposta:
[126] — Amigo, sabei que este casamento não
édo agrado de alguns, que, por muito estimarem
minha filha, a custo a vêem partir. Mas, pois eu
julgo que a faço feliz, muito me apraz a mim; e, em
ela chegando a Roma, logo me aprovará. Aparelhai,
pois, vossas naus, para levardes a Imperatriz ao Imperador.
Então, no a perto de tão duro transe, e por
conselho da fiel Mabília, mandou Oriana por Durim
à Ilha Firme o seu recado de dor, pedindo aos
cavaleiros de Amadis que lhe acudissem na aflição.
E, enquanto se aparelham as naves da
embaixada, que já balouçam no porto ansiosas da
partida, roga Oriana a Deus lhe traga o seu amigo a
tempo de a salvar!
[127] XX. A Ilha Firme
Quando Amadis entrou no mar Oceano,
palpitou-lhe com ânsia o coração! Vindo de tão
longe, e de tão variadas terras, lembrava que,
entrando a navegar naquelas águas, voltava aos
caros lugares onde ficara Oriana. E mais viva se lhe
acendia no coração a saudade da bem-amada. Agora
que a idade verde fugira, fazendo amor mais
pensado, apetecia Amadis a bênção da Igreja, que,
diante de Deus e dos homens, juntaria o seu coração
ao de Oriana, senhora da Ilha Firme — a qual, por
alta proeza, ele havia ganho — e futura rainha de
Gaula.
Cuidava que, não por merecimentos próprios,
senão porque lho permitira a divina bondade, havia
merecido Oriana desde aquela manhã de abril em
flor em que tinha abalado, a caminho de aventuras,
tão pobre que nem nome tinha, levando a alma tão
cheia de amor tal a sentia agora.
[128] Assim vinha Amadis imaginando, enquanto a nau singrava ligeira, e ele olhava,
entrevendo-as a distância, as costas dos reinos e as
areias das praias.
Nas horas de folgança, com o vento a
acompanhar nas enxárcias as vozes, os marinheiros
cantavam:
Lá no meio desse mar
ouvi cantar, escuitei:
saiu-me a senhora sereia
lá no palácio de el-rei.
Ouvindo-os cantar, acudiam-lhe as lembranças e as saudades cresciam.
Lembrava-se dos amigos fiéis cujo amparo
tivera em horas de tanta dor: da sua doce prima
Mabília, de tão fina amizade, es-pena sempre em
bem-querer; da donzela da Dinamarca, a qual, pela
mão de Nossa Senhora, o tinha ido buscar à
penitência; do certo amigo Durim. Como em névoa
de sonho, revia a soledade da Penha Pobre, em cujos
rigores se havia apurado; recordava o ermitão que
lhe fora abrigo e santo companheiro. E, por cima das
ondas, mandava um pensamento de terna afeição ao
seu querido senhor Gandales.
Um dia, encontraram uma fusta e chegaram à
fala com uns mercadores da Grã Bretanha, que
partiam para traficar em outras terras. Como lhes
pedissem novas do reino, e sendo a maior delas o
casamento de [129] Oria|na,contaram os mercadores
o despacho que el-rei Lisuarte dera à embaixada,
contra a vontade de muitos e, ao que eles tinham
ouvido, contra a vontade da infanta. Por todo o reino
ia azáfama festiva. Houvera belos torneios para
celebrar os esponsais. E os soberbos romanos
aparelhavam as naus para levar a Imperatriz...
Ouvindo Amadis que a Oriana já a tratavam por
Imperatriz de Roma, ficou um tempo sem acordo
nos braços de Gandalim.
Ao ver desfalecido o mais forte cavaleiro, a
quem apenas derribava o cuidado da bem-amada,
considerava o escudeiro, com pranto enternecido, o
maravilhoso amor de seu senhor e amigo.
— Este que vai aqui desacordado — pensava
Gandalim — aquele é que venceu Dardan, o
Soberbo, desbaratou Abies de Irlanda, converteu o
gigante Madarque, matou o demoníaco Endriago!
Tornando em si, sentiu Amadis crescerlhe. a
sanha contra el-rei Lisuarte e mais se doeu de ele tão
ingrato haver sido à leal companhia de armas que o
servira, dando ouvidos a vozes de traição, nascidas
só da inveja. Recordou que a el-rei tinha prestado
serviços tão grandes, que destes proviera nova honra
e glória à Grã Bretanha, e que o próprio rei lhe devia
a vida, que lhe ele salvara em arriscado perigo.
Porém, mais pungente que todas, uma idéia
lhe atravessava a mente: Oriana! [130] Oria|na a
padecer na pura fidelidade do seu coração, forçada a
dar-se por noiva, calando o amor que lhe tinha,
decerto apetecendo a morte!
E da sua alma, que a angústia agora toda
revolvia, ergueu-se prece fervorosíssima: que o
vento lhe inchasse as velas, para a tempo chegar!
O mar era chão, sopravam os ventos fagueiros
e, ao cabo de alguns dias, gritou um gajeiro que
subira ao tope real:
— Alvíssaras, alvíssaras! Já vejo a Ilha
Firme!...
Receberam os da Ilha Firme com grande
glória a seu senhor, aclamando quem tão desejado e
amado era. E, depois de ter agradecido a Deus o
haver-lhe permitido que a tempo viesse, juntou
Amadis seus irmãos e pares e cavaleiros e assim lhes
falou:
— Bons senhores e amigos, depois que de vós
me apartei, muitas terras estranhas andei e muitas
aventuras corri. Passei grandes perigos e trabalhos,
dos quais saí com a ajuda de Deus. Porém, aqueles
em que o meu coração mais folgou, eu os passei
levando socorro a donas e donzelas a quem agravo e
sem-razão se faziam, e a que elas respondiam com
lágrimas e suspiros, que são as armas das mulheres.
Ora, sabeis que sem-razão e agravo faz el-rei
Lisuarte à sua filha Oriana, deserdando-a do reino da
Grã Bretanha e mandando-a, contra seu mesmo
querer, ao [131] Imperador de Roma. Se el-rei
Lisuarte comete esta crueza contra Deus e contra
seus naturais, digo-vos que a nós compete remediá-la. Agora diga cada um seu parecer, que o meu,
amigos, já vo-lo dei!
Ouviram com grande louvor todos os leais as
palavras de Amadis: acendia-se-lhes nos olhos a
chama do valor que brada — avante! — e ansiavam
em cada bainha as espadas por verem a luz.
Pediram os cavaleiros a Agrajes que, em
nome de todos, respondesse:
— Bom senhor e primo, sabei que, ainda que
com a vossa presença se nos dobrassem as forças,
até sem vós, que por apartado tínhamos,
determinados éramos ao remédio!
E Agrajes, assim falando, por seu próprio
coração também falava, porque o príncipe
Salustanquídio, senhor de Calábria, movera el-rei
Lisuarte a que mandasse Olinda para Roma, a fim de
casar com ela.
Quando chegou o dia aprazado e aborrecido,
desceu Oriana à praia, entre o grande cortejo que a
levava. Ordenara el-rei Lisuarte que naquela
despedida concorresse grande brilho, já por honrar
ledamente a noiva, já porque às grandezas do
Imperador queria ele responder com as próprias.
Vestia Oriana panos de ouro, bordados de
pedraria e pérolas, e assentava-lhe nos formosos
cabelos uma coroa que cintilava. Alegravam a
marcha do cortejo as cores [132] de|senroladas dos
pendões, e o clangor das trombetas varava o ar, do
burgo à praia. As damas, montadas em finos
palafréns, iam levadas à rédea pelos pajens;
revestiam os cavaleiros as suas armas mais ricas, e
toda esta companhia luzia de esplendor.
Ia a infanta a par de el-rei e montava um
soberbo palafrém ricamente ajaezado, com freio,
peitoral e estribo de ouro a martelo, cravejado de
pedras finas, presente de seu pai, e em que devia
fazer a sua entrada em Roma.
E já a aguardavam os nobres embaixadores,
ora mais orgulhosos com o despacho.
Mostrava el-rei Lisuarte bom semblante, posto
que em seu coração pesava nuvem grossa: não
estava ali a flor dos seus cavaleiros, e havia muitos
olhos rasos de água. Doía uma pena escondida nos
corações dos homens-bons, e a arraia-miúda
murmurava de ver partir a infanta.
— Contra vontade vai ela — pensavam as
mulheres do povo, a quem a vista de Oriana movia a
doce piedade —, e que lhe faz a riqueza, à Bela mal
mandada?
— Também se nos vai com ela a segurança do
reino — pensavam outros, a quem a formosura da
infanta tocava o coração — e em má hora vieram os
romanos para levar-nos quem nos pertencia!
Com Oriana quisera ir Mabília, a sempre doce
e fiel; a Donzela da Dinamarca não deixara também
a pobre de sua senhora; e Olinda, toda chorosa,
embarcava com elas.
[133] Abraçou-se Oriana em sua mãe, ambas
confundindo as lágrimas:
— Filha, eu me fio em Deus de que isto que te
manda el-rei é por teu bem!
Receberam enfim os embaixadores a formosa
Sem-Par.
E, dando ao vento as velas, alongam-se as
naus da vista — e todos os olhos as seguem, e os
corações todos choram!
Já as proas romanas fendem as ondas, e
navegam soberbas as naves.
Dispostas vão de maneira que, no meio delas,
guardam a mais soberba, em cujo tope se desfralda a
insígnia do Imperador. Fechada a cadeado em uma
câmara rica, nessa vai Oriana a caminho de Roma.
Mas à frente da frota roubadora surge outra
que o amor comanda e guia.
— Gaula, Gaula! Aqui vai Amadis!...
Rompe fera a batalha entre as naus abordadas.
Combatem pelos da Ilha Firme os nobres
aliados, e Briolanja mandou os seus melhores
cavaleiros. Ao cabo de brava peleja, rendem-se as
naves romanas.
Então sobe Amadis àquela em cujo tope flutua
a insígnia imperial e onde Oriana, dando graças a
Deus, posta em joelhos, tinha ouvido, sorrindo, a
voz do seu amado!
E Amadis liberta e leva para a Ilha Firme
— Oriana, Oriana, a Sem-Par!...
TEATRO DE GIL VICENTE
VICENTE, Gil. OBRAS-PRIMAS do teatro vicentino; ed. organizada, prefaciada e comentada pelo Segismundo Spina. 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1983. 329p.
51 - AUTO DA BARCA DO INFERNO
[107]
Diabo.
Comp.
Diabo.
À barca, à barca, hou-lá!
que temos gentil maré!
— Ora venha a caro29 a ré!
Feito, feito!
Bem está!
5
30
Vai tu muitieramá ,
e atesa [estica] aquele palanco [corda]
e despeja aquele banco,
para a gente que virá.
À barca, à barca, uuh!
Asinha [depressa], que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
10
— Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!
[108]
Comp.
Diabo.
Comp.
Diabo.
Em bonora! Feito, feito!
15
Abaixa aramá [em má hora] esse cu!
Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça31.
Oh caça! Oh! iça! Iça!
Oh, que caravela esta!
20
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
— Ó preciso dom Anrique,
cá vindes vós?... Que cousa é esta?...
Fidal.
Diabo.
Parece-me isso cortiço...
Porque a vedes lá de fora.
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Porém, a que terra passais?
Para o inferno, senhor.
Terra é bem sem-sabor.
Quê?... E também cá zombais?
E passageiros achais
para tal habitação?
Vejo-vos eu em feição
para ir ao nosso cais...
Diabo.
35
40
Fidal.
Diabo
Fidal.
Parece-te a ti assi!...
Em que esperas ter guarida?
Que deixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
Diabo. Quem reze sempre por ti?!..
45
Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?!...
[109]
Embarca — ou embarcai...
50
que haveis de ir à derradeira [afinal]!
Mandai meter a cadeira,
que assi passou vosso pai.
Fidal. Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!
Diabo. Vai ou vem! Embarcai prestes!
55
Segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.
Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Diabo.
29
Esta barca onde vai ora,
que assi‟stá apercebida?
Vai para a ilha perdida [inferno],
e há-de partir logo ess‟ora.
Para lá vai a senhora?
Senhor, a vosso serviço.
25
Fidal.
Diabo.
30
a caro: expressão enigmática. Seria o mesmo que a
carom, termo náutico, com o valor de em frente?
30
muitieramá: em hora muito má.
31
poja: corda que serve para virar a vela; driça: corda
para levantar a vela.
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.
Não há aqui outro navio?
Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me destes logo sinal.
Que sinal foi esse tal?
Do que vós vos contentastes.
A estoutra barca me vou.
— Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Hou-lá! Hou!...
— Por Deus, aviado estou!
60
65
70
Quanto a isto é já pior.
Que gericocins, salvanor!
Cuidam cá que são eu grou?
Diabo.
Anjo.
Fidal.
Anjo.
Fidal.
Anjo.
Fidal.
Anjo.
Fidal.
Que quereis?
Que me digais,
pois parti tão sem aviso,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.
Esta é; que demandais?
Que me deixeis embarcar.
sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.
Não se embarca tirania
neste batel divinal.
Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria...
Pra vossa fantasia
mui estreita é esta barca.
Para senhor de tal marca
não há aqui mais cortesia?
75
Fidal.
80
85
Diabo.
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Diabo.
Anjo.
Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
Não vindes vós de maneira
para entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo [cauda] caberá
e todo vosso senhorio.
Ireis lá mais espaçoso,
vós e vossa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso;
e porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.
Diabo.
(cant.):
Fidal.
À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata
e valentes remadores!
Vós me veniredes a la mano;
a la mano me veniredes,
e vos veredes
peixes nas redes.
Ao Inferno, todavia!
Inferno há aí para mi?!
Ó triste! Enquanto vivi
não cuidei que o aí havia:
Tive que era fantasia!
Folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.
90
Fidal.
Diabo.
Venha essa prancha e veremos
esta barca de tristura.
Embarque vossa doçura,
que cá nos entenderemos...
Tomareis um par de remos,
130
veremos como remais;
e, chegando ao nosso cais,
todos bem vos desembarcaremos.
Mas esperai-me aqui:
tornarei à outra vida,
ver minha dama querida
que se quer matar por mi.
Que se quer matar por ti?!...
Isto bem certo o sei eu.
Ó namorado sandeu,
o maior que nunca vi!...
Era tanto seu querer [amor]
que me escrevia mil dias?
Quantas mentiras que lias,
e tu... morto de prazer!...
Para que é escarnecer,
que não havia mal nem bem?
Assim vivas tu, amém,
como te tinha querer!
135
140
145
95
Fidal.
Diabo.
Fidal.
100
Diabo.
105
110
[112]
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Diabo.
Fidal.
Diabo.
115
Fidal.
120
Isto quanto ao que eu conheço... 150
Pois, estando tu expirando,
se estava ela requebrando
com outro de menos preço.
Dá-me licença, te peço,
que vá ver minha mulher.
155
E ela, por não te ver,
despenhar-se-á dum cabeço [cume]!
Quanto ela hoje rezou,
entre seus gritos e gritas,
foi dar graças infinitas
a quem na desassombrou.
160
Quanto a ela, bem chorou!
Não há aí choro de alegria?!
E as lástimas que dizia?
Sua mãe lhas ensinou...
165
Entrai, meu senhor, entrai!
— Venha a prancha! — Ponde o pé!
Entremos, pois que assim é...
Ora, senhor, descansai,
passeai e suspirai;
170
Em tanto virá mais gente.
Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!
Diz o Diabo.. ao Moço da cadeira:
Anjo.
Diabo.
Não entras cá! Vai-te daí,
que a cadeira é cá sobeja.
Cousa que esteve na igreja
não se há-de embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi,
marchetada de dolores,
com tais modos de lavores,
que estará fora de si...
— À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar a ela! Chegar a ela!
Muitos e de boa mente!
Oh! que barca tão valente!
175
Onz.
Anjo.
180
Onz.
Anjo.
Onz.
Diabo.
185
Onz.
Diabo.
[113]
Onz.
Diabo.
Onz.
Diabo.
Onz.
Diabo.
Onz.
Diabo.
Onz.
Diabo.
Onz.
Hou-lá! Hou Demo barqueiro!
230
Sabeis vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazê-lo meu dinheiro;
que aqueloutro marinheiro,
porque me vê vir sem nada,
235
dá-me tanta borregada [pancada]
como arrais lá do Barreiro.
Diabo.
Entra, entra e remarás!
Não percamos mais maré!
Todavia...
Per força é!
Que te pês [custe], cá entrarás!
Irás servir Satanás,
pois que sempre te ajudou.
Oh! Triste, quem me cegou?
Cal‟te, que cá chorarás.
195
Onz.
Diabo.
E para onde é a viagem?
Para onde tu hás-de ir;
estamos para partir,
não cures de mais linguagem.
Mas pra onde é a passagem?
Pera a infernal comarca.
Disse, não vou em tal barca.
Estoutra tem avantagem.
200
Hou da barca! Hou-lá! Hou!
Haveis logo de partir?
E onde queres tu ir?
Eu pra o Paraíso vou.
Onz.
Diabo.
240
245
Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:
205
Onz.
Fidal.
Diabo.
210
Santa Joana de Valdês!
Cá é vossa senhoria?
Dá ao demo a cortesia!
Ouvis? Falai vós cortês!
Vós, fidalgo, cuidarês
que estais na vossa pousada?
Dar-vos-ei tanta pancada
c‟um um remo que arreneguês!
250
Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:
Vai-se à barca do Anjo., e diz:
Anjo.
Onz.
Onz.
190
Nem tão só para o barqueiro
não me deixaram nem tanto.
Ora entrai, entrai aqui!
Não hei eu i de embarcar!
Oh! que gentil recear,
e que cousas para mi!...
Inda agora faleci,
deixa-me buscar batel!
Pesar de João Pimentel!
Porque não irás aqui?
225
Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:
Para onde caminhais?
Oh! que má-hora venhais,
onzeneiro, meu parente!
Como tardastes vós tanto?
Mais quisera eu lá tardar.
Na safra do apanhar
me deu saturno quebranto.
Ora mui muito me espanto
não vos livrar o dinheiro!...
Por que?
Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
Juro a Deus que vai vazio!
Não já no teu coração.
Lá me ficam de roldão
vinte e seis milhões nũa arca.
Pois que onzena tanto abarca
não lhe deis embarcação.
220
[114]
Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno,
dizendo:
Onzen.
Diabo.
Pois quanto eu bem fora estou
de te levar para lá.
Essoutra te levará.
Vai para quem te enganou!
Parvo.
Diabo.
Parvo.
215
Diabo.
Parvo.
Hou daquela!
Quem é?
Eu sô.
É esta a naviarra nossa?
De quem?
Dos tolos.
255
[115]
Diabo.
Parvo.
Diabo.
Parvo.
Diabo.
Parvo.
Diabo.
Parvo.
Diabo.
Parvo.
Diabo.
Parvo.
Diabo.
Parvo.
Vossa,
entrai.
De pulo ou de vôo?
Oh! Pesar de meu avô!
Soma [em suma]: vim a adoecer
e fui má-hora morrer;
260
e nela, pera mim só.
De que morreste?
De quê?
Samicas [talvez] de caganeira.
De quê?
De caga merdeira!
Má rabugem que te dê!
265
Entra! Põe aqui o pé!
Hou-lá! Não tombe o zambuco [batel]!
Entra, tolaço eunuco,
que se nos vai a maré!
Parvo.
Anjo.
Parvo.
Anjo.
Parvo.
Anjo.
Aguardai, aguardai, hou-lá!
E onde havemos nós de ir ter?
Ao porto de Lucifer.
Hã?
Ao inferno, entra cá.
Ao inferno, ieramá?!
Hiu! Hiu! Barca do cornudo,
Pêro Vinagre, beiçudo,
rachador de Alverca, huhá!
Sapat.
Diabo.
270
Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha!
De pica naquela!
Hiu! Hiu! Caga na vela,
ó dom Cabeça-de-grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho da Pampulha!
rabo de forno de telha!
Chega o Parvo ao batel do Anjo. e diz:
305
310
Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de
formas, e chega ao batel infernal e diz:
Sapat.
[117]
275
Diabo.
Sapat.
Sapateiro da Candosa!
Entrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
280
filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
e há-de parir um sapo
chantado [pregado] no guardanapo!
Neto de cagarrinhosa!
285
Furta cebolas! Hiu! Hiu!
‟xcomungado nas igrejas!
[116]
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
a mulher que te fugiu
290
para a Ilha da Madeira!
Ratinho da Giesteira,
o demo que te pariu!
Hou da barca!
Tu que queres?
Queres-me passar além?
Quem és tu?
Não sou ninguém.
Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres
por malícia não erraste.
Tua simpleza te baste
para gozar dos prazeres.
Espera entanto por aí:
veremos se vem alguém,
merecedor de tal bem,
que deva de entrar aqui.
Diabo.
Sapat.
Diabo.
Sapat.
Diabo.
Sapat.
295
Diabo.
Sapat.
300
Diabo.
Sapat.
Hou da barca!
Quem vem aí?
— Santo sapateiro honrado,
como vens tão carregado?
Mandaram-me vir assi...
E para onde é a viagem?
Para a terra dos danados.
E os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
Não cures de mais linguagem,
que esta é a tua barca, esta!
Renegaria eu da festa
e da barca e da barcagem!
Como poderá isso ser,
confessado e comungado?!
Tu morreste excomungado:
Não no quiseste dizer.
Esperavas de viver,
calaste dez mil enganos,
tu roubaste bem trinta anos
o povo com teu mester.
Embarca, eramá para ti,
que há já muito que te espero!
Digo-te que re-não quero!
Digo que si, re-si!
Quantas missas eu ouvi,
não me hão elas de prestar?
Ouvir missa, então roubar —
é caminho para aqui.
315
320
325
330
335
340
E as ofertas que darão?
E as horas dos finados?
E os dinheiros mal levados —
345
que foi da satisfação?
Oh! Não praza ao cordovão [couro],
nem à puta da badana [couro mole],
se é esta boa traquitana [trapalhada?]
em que se vê João Antão!
350
Ora juro a Deus que é graça!
Vai-se à barca do Anjo e diz:
Anjo.
Sapat.
Anjo.
Sapat.
Anjo.
Sapat.
Anjo.
Frade.
Diabo.
Frade.
Hou da santa caravela,
podereis levar-me nela?
A cárrega [carga] te embaraça.
Não há mercê que me Deus faça? 355
Isto onde quer irá.
Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.
Ó almas embaraçadas!
Ora eu me maravilho
360
haverdes por grão peguilho [estorvo]
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir chentadas [metidas]
num cantinho desse leito!
Se tu viveras direito,
365
elas foram cá escusadas.
Diabo.
Assim que determinais
que vá cozer ao inferno?
Escrito estás no caderno
das ementas infernais.
Frade.
Diabo.
Frade.
Frade.
Diabo.
370
Pois, diabos, que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Para que é aguardar mais?
Vem um Frade com ũa Moça pela mão e um broquel
e a espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa começou de dançar, dizendo:
Frade.
Diabo.
Frade.
Diabo.
Frade.
Diabo.
Frade.
Diabo.
Frade.
[119]
Diabo.
Frade.
Diabo.
Tai-rai-rai-ra-rã; taririrã;
375
tarai-rai-rai-rã; tairirirã:
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhã!
Que é isso, padre?! Que vai lá?
Deo gratias! Sou cortesão.
Sabeis também o tordião [dança]? 380
É mal que me esquecerá.
Essa dama há-de entrar cá
Não sei onde embarcarei.
Ela é vossa?
Não sei;
385
por minha a trago eu cá.
E vos punham lá grosa [censura]
nesse convento sagrado?
Assim fui bem açoitado.
Que coisa tão preciosa!
390
Juro a Deus que não te entendo!
E este hábito no me val‟?
Gentil padre mundanal,
a Belzebu vos encomendo!
Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesus Cristo,
que eu não posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde,
que estou maravilhado!
Torna-se à barca dos danados e diz o Sapateiro:
Sapat.
Entrai, padre reverendo.
Para onde levais gente?
Para aquele fogo ardente
que não temestes vivendo.
Diabo.
Frade.
Diabo.
Não façamos mais detença.
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.
Não ficou isso na avença.
Pois dada está já a sentença!
Por Deus! Essa seria ela?
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
Como?! Por ser namorado
e folgar com uma mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...
Ora estás bem aviado!
Mais estás bem corrigido!
Devoto padre e marido,
haveis de ser cá pingado...
395
400
405
410
415
420
[120]
Descobriu o Frade a cabeça tirando o capelo e apareceu o casco, e diz o Frade:
Frade.
Diabo.
Frade.
Diabo.
32
Mantenha Deus esta c‟oroa!
Ó padre frei-capacete!
Cuidei que tínheis barrete...
425
Sabei que fui da pessoa [importante]!
Esta espada é roloa
e este broquel rolão32.
Dê Vossa Reverença lição
de esgrima, que é cousa boa!
430
Os termos rolão e roloa parecem aludir a Rolando,
personagem da gesta francesa, cuja arma (a Durindana) se
tornou famosa.
Começou o frade a dar lição de esgrima com a espada e broquel que eram de esgrimir e diz desta
maneira:
Frade.
Que me praz! Demos caçada [assalto]!
Então logo um contra, sus!
Um fendente [golpe], ora sus!
Esta é a primeira levada [bote].
Alevantai a espada! —
— Metei o diabo na cruz
como o eu agora pus...
— Sai coa espada rasgada
e fique anteparada.
Talho largo, um revés [golpe],
e logo colher os pés,
que todo o al no é nada!
435
Daqui saio c‟uma guia
e um revés da primeira.
Esta é a quinta verdadeira.
— Oh! quantos daqui feria!...
Padre que tal aprendia
no inferno há-de haver pingos?!
Ah! Não praza a São Domingos
com tanta descortesia!
[122]
Frade.
Diabo.
Frade.
[121]
Diabo.
Frade.
Parvo.
440
Quando o recolher se tarda
o ferir não é prudente.
Eia, sus! Mui largamente,
445
cortai na segunda guarda!
— Guarde-me Deus de espingarda
ou de varão denodado
mais aqui estou guardado
como a palha na albarda.
450
Saio com meia espada...
Hou-lá! Guardai as queixadas!
Oh que valentes levadas!
Inda isto não é nada...
Demos outra vez caçada:
Contra, sus! Ora um fendente!
E, cortando largamente,
eis aqui sexta guarda.
huhá!
Brís.
Diabo.
Brís.
Diabo.
Comp.
Diabo.
Brís.
Diabo.
Brís.
Diabo.
Brís.
Diabo.
Brís.
465
Prossigamos nossa história,
não façamos mais detença.
Daí cá a mão, senhora Florença:
vamos à barca da Glória!
470
Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira:
Frade.
Tarararairão, tariririrão,
tairairão, taririrão, taririrão,
480
Vamos onde havemos de ir,
não praza a Deus coa a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira
senão, enfim... concrudir [aceitar].
Padre, haveis logo de vir?
485
Sim, tomai-me lá Florença,
e cumpramos a sentença:
ordenemos de partir.
Hou-lá da barca, hou-lá!
Quem chama?
Brísida Vaz.
Eia! Aguarda-me, rapaz!
Por que não vem ela já?
Diz que não há de vir cá
sem Joana de Valdeis.
Entrai vós, e remareis.
Não quero eu entrar lá.
490
495
Que saboroso arrecear!...
Não é essa barca a que eu cato.
E trazeis vós muito fato?
O que me convém levar.
500
Que é o que haveis de embarcar?
Seiscentos virgos [himens] postiços
e três arcas de feitiços
que não podem mais levar.
Três armários de mentir,
e cinco cofres de enleios,
e alguns furtos alheios,
assi em jóias de vestir;
guarda-roupa de encobrir,
enfim — casa movediça;
um estrado de cortiça
com dez coxins de embair.
Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:
Frade.
Senhora, dá-me à vontade
que este feito mal está...
Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira, per nome Brísida Vaz, a qual chegando à barca infernal diz desta maneira:
455
460
Deo gratias! Há lugar cá
para minha reverença?
E a senhora Florença
475
pelo meu entrará lá!
Andar, muitieramá!
Furtaste esse trinchão [facão], frade?
505
510
[123]
A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquesta mercadoria
trago eu muita, à bofé!
515
Diabo.
Brís.
Diabo.
Brís.
Ora ponde aqui o pé.
Hui! E eu vou para o paraíso!
E quem te disse a ti isso?
Lá hei-de ir desta maré.
Eu sou a mártir tal,
açoites tenho eu levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se eu fosse ao fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca cá em fundo,
me vou eu, que é mais real.
Diabo.
520
Anjo.
Brís.
[123]
Anjo.
Brís.
Anjo.
Brís.
Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
Eu não sei quem te cá traz...
Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deus, minha rosa?
Eu sou Brísida, a preciosa
que dava as moças a molhos.
525
Judeu. Que vai lá, hou marinheiro!
Diabo. Oh! que má-hora vieste!
570
Judeu. Cuja [de quem] é esta barca que preste?
Diabo. Esta barca é do barqueiro.
Judeu. Passai-me por meu dinheiro.
Diabo. E esse bode há cá de vir?
Judeu. O bode também há-de ir.
575
Diabo. Oh! Que honrado passageiro!
530
Judeu.
Diabo.
Judeu.
535
A que criava as meninas
para os cônegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
540
olho de perlinhas finas!
E eu sou apostolada,
angelada e martelada [martirizada],
e fiz obras mui divinas.
Santa Úrsula não converteu
545
tantas cachopas como eu:
todas salvas pelo meu
que nenhuma se perdeu.
E prouve àquele do Céu
que todas acharam dono.
550
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponta!... E não se perdeu!
Ora vai lá embarcar,
não estês importunando.
Pois estou-vos alegando
o porque me haveis de levar.
Não cures de importunar,
que não podes vir aqui.
E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!
Diabo.
[125]
Judeu.
Porque não irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
Diabo. E ao fidalgo quem lhe deu...
o mando, dizeis, do batel?
Judeu. Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el deu, que te sacuda
com a barca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!
555
Parvo.
560
Diabo.
Hou barqueiros da má-hora,
ponde a prancha, que eis me vou,
e tal fada me fadou
e pareço mal cá de fora.
Sem bode, como irei lá?
Pois eu não passo cá cabrões.
Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do semifará
que me passeis o cabrão!
Quereis mais outro tostão?
Nem tu não hás-de vir cá.
580
585
(Fala ao Fidalgo)
Torna-se Brísida Vaz à barca do inferno dizendo:
Brís.
565
Tanto que Brísida Vaz se embarcou veio um Judeu
com um bode às costas; e chegando ao batel dos
danados, diz:
E chegando à barca da glória diz ao Anjo.:
Brís.
Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida...
Se vivestes santa vida,
vós o sentireis agora...
Parvo.
590
595
Furtaste a chiba [cabra], cabrão? 600
Pareceis-me vós a mim
carrapato de Alcoutim
enxertado em camarão.
Judeu, lá te levarão,
porque hão-de ir descarregados. 605
E ele se mijou nos finados
no adro de São Gião!
Diabo.
E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E mais ele, salvanor,
610
cada vez mija naquela!
Ora, sus! Demos à vela!
Vós, judeu, ireis à toa [sem rumo],
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!
615
Vem um Corregedor carregado de feitos, com sua
vara na mão, e chegando à barca do inferno diz:
[126]
Corr.
Hou da barca!
Diabo. Que quereis?
Corr.
‟Stá aqui o senhor juiz?
Diabo. Ó amador de perdiz,
quantos feitos que trazeis!
Corr.
No meu ar conhecereis
620
que eles não vêm de meu jeito..
Diabo. Como vai lá o direito?
Corr.
Nestes feitos o vereis.
Diabo.
Corr.
Diabo.
Corr.
Diabo.
Corr.
Diabo.
Corr.
Diabo.
Corr.
ser].
Diabo.
Ora, pois, entrai, veremos
que diz i nesse papel.
E onde vai o batel?
No inferno vos poremos.
Como?! À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
Corr.
[127]
630
Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
640
Há aqui meirinho do mar?
Não há tal costumagem.
Não entendo esta barcagem,
nem hoc nom potest esse {Isto não pode
Se ora vos parecesse
645
que não sei mais que linguagem [portu-
Entrai, entrai, corregedor!
Hou! Videtis qui petatis!
Super jure majestatis
Oh! que isca esse papel
para um fogo que eu sei!
Correg. Domine, memento mei! 36
Diabo. Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia judicastis malitia.37
Correg. Sempre ego in justitia
fecit, e bem por nível.38
E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
Correg. Isso eu não no tomava
eram lá percalços seus.
Nom sunt pecatus meus,
peccavit uxore mea.39
Diabo. Et vobis quoque cum ea,
nemo temuistis Deus.40
650
655
660
Diabo.
665
670
625
Ora, entrai, pois que viestes!
Non est de regulae juris, não!
Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nascestes
635
para nosso companheiro.
— Que fazes tu, barzoneiro [vadio]?
Faze-lhe essa prancha prestes!
guês]!...
Diabo.
tem vosso mando vigor33?
Quando éreis ouvidor
non ne accepistis rapina? 34
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for. 35
A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?41
Correg. Vós, arrais, non legistis
que o dar quebra os penedos?
[128]
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...
Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
Correg. E na terra dos danados
estão os Evangelistas?
Diabo. Os mestres das bulras vistas
lá estão bem fragoados.
675
Diabo.
33
680
685
Vede o que reclamais! — Acaso o vosso poder está
acima do direito de majestade?
34
Acaso não recebeste rapina?
35
Para onde nós determinarmos.
36
Senhor: lembra-te de mim!
37
porque sentenciastes com malícia.
38
com justiça e eqüidade
39
Minha mulher é que pecava.
40
Tu pecavas com ela e não temias a Deus. Latim macarrônico.
41
O Diabo diz que o Corregedor enriqueceu a valer, à
custa do sangue dos lavradores, pecadores ignorantes,
sem atendê-los sequer.
Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais
infernal, chegou um Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
Correg. Ó senhor Procurador!
Procur. Beijo-vo-las mãos, juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?
Diabo. Que sereis bom remador.
690
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando à bomba.
Procur. E este barqueiro zomba...
Jogatais [gracejais] de zombador?
E essa gente que aí está
para onde a levais?
Diabo. Para as penas infernais.
Procur. Disse, não vou eu para lá!
Outro navio está cá,
muito milhor assombrado.
Diabo. Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!
695
700
Correg. Confessaste-vos, doutor?
Procur. Bacharel sou... — Dou-me ao demo!:
Não cuidei que era extremo,
705
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
[129]
Correg. Eu mui bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor...
710
Porque, se o não tornais,
não vos querem absolver,
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.
Diabo. Pois porque não embarcais?
Procur. Quia speramus in Deo.42
Diabo. Imbarquemini in barco meo...
para que esperatis mais?
715
Vão-se ambos ao batel da glória, e chegando diz o
Corregedor ao Anjo:
Correg. Hou arrais dos gloriosos,
passai-nos nesse batel!
Anjo.
Oh pragas para papel,
para as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
Correg. Oh! Habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
Parvo. Hou, homens dos breviários,
rapinastis coelhorum
et pernis perdigotorum43
720
e mijais nos campanários!
730
Correg. Anjos, não nos sejais contrários,
pois não temos outra ponte!
Parvo. Belequinis ubi sunt?
Ego latinus macarios.44
Anjo.
A justiça divinal
740
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.
[129]
Correg. Oh! não praza a São Marçal!
coa ribeira, nem co rio!
745
Cuidam lá [na terra] que é desvario
haver cá tamanho mal!
Procur. Que ribeira é esta tal!
Parvo. Pareceis-me vós a mi
como cagado nebri [falcão],
mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!
Correg. Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.
Procur. Diz um texto do degredo...
Diabo. Entrai, que cá se dirá!...
Porque esperamos em Deus.
755
E tanto que foram dentro no batel dos condenados,
disse o Corregedor a Brísida Vaz, porque a conhecia:
Correg. Esteis muito aramá,
senhora Brísida Vaz!
Brís.
Já sequer estou em paz,
que não me deixáveis lá.
Cada hora encoroçada45:
“Justiça que manda fazer...”
Correg. E vós... tornar a tecer
e urdir outra meada...
Brís.
Dizede, juiz de alçada:
vem lá Pero de Lisboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá nesta barcada.
760
765
Vem um homem que morreu enforcado e chegando
ao batel dos mal-aventurados disse o Arrais tanto
que chegou:
Diabo.
Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?46
770
725
43
Recebestes como propinas coelhos e pernas de perdi-
zes.
44
Onde estão os beleguins?
Com a carocha à cabeça, um barrete de papelão que a
justiça impunha como castigo às alcoviteiras.
45
42
750
[131]
Enforc. Eu vos direi que ele diz:
— que fui bem-aventurado
que, pelos furtos que eu fiz,
sou santo canonizado,
pois morri dependurado
como o tordo na boiz.
775
Diabo.
Entra cá, governarás
até às portas do Inferno.
Enforc. Não é essa a nau que eu governo.
Diabo. Entra, que inda caberás.
780
Enforc. Pesar de São Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...
E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em boa-hora eu cá nascera;
e que o Senhor me escolhera;
e por bem vi beleguins;
e com isto mil latins,
como se eu latim soubera...
E no passo derradeiro
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do mosteiro
não tinha tão santa gente
como Afonso Valente
o que é agora carcereiro.
Dava-te consolação
isso, ou algum esforço?
Enforc. Co o baraço [corda] no pescoço,
mui mal presta a pregação...
E ele leva a devoção
que há-de tornar a jantar...
Mas quem há-de estar no ar
aborrece-lhe o sermão.
[132]
Diabo. Entra, entra no batel,
que ao inferno hás-de ir!
Enforc. O Moniz há-de mentir?
Disse-me: — “Com São Miguel
jantaria pão e mel
como fores enforcado”.
Ora, já passei meu fado,
e já feito é o burel.
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão — logo ao paraíso.
E isto muito em seu siso,
e que era santo o meu baraço.
Porém não sei que aqui faço,
ou se era mentira isso.
785
790
795
800
820
Diabo. Falou-te no Purgatório?
825
Enforc. Diz que foi o Limoeiro,
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório [pena final];
e que era mui notório
que aqueles disciplinados
830
eram horas dos finados
e missas de São Gregório [Purgatório].
Diabo.
Ora entra, pois hás-de entrar,
não esperes por teu pai...
Enforc. Entremos, pois que assim vai...
Diabo. Este foi bom embarcar!
— Eia! Todos apear,
que está em seco o batel!
Vós, doutor, bota batel!
Fidalgo, saltai ao mar!
835
840
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem
cada um a cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de [133] sua santa fé católica morreram
em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per
privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da paixão daquele por quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da
Madre Santa Igreja; e a cantiga que assim cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:
Diabo.
À barca, à barca segura!
Guardar da barca perdida,
à barca, à barca da vida!
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810
815
Agora não sei que é isso.
46
te.
Funcionário da casa da moeda ao tempo de Gil Vicen-
Senhores que trabalhais
pela vida transitória,
memória, por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!
845
850
855
E passando per diante da proa do batel dos danados
assim cantando, com suas espadas e escudos, disse
o Arrais da perdição desta maneira:
Diabo.
Cavaleiros, vós passais
e não me dizeis para onde is?
Caval. Vós, Satanás, presumis?
Atentai com quem falais!
Outro Cav. Vós que nos demandais?
Sequer conheceis-nos bem:
morremos nas partes de Além,
e não queirais saber mais.
Diabo. Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu não posso entender isto!
Caval. Quem morre por Jesus Cristo
não vai em tal barca como essa!
860
865
Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho
direito à barca da glória, e tanto que chegam diz o
Anjo.:
[134]
Anjo.
Ó cavaleiros de Deus,
870
a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
santos por certo sem falha,
875
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.
E assim embarcam.
TEATRO DE GIL VICENTE
VICENTE, Gil. Auto de Inês Pereira. In: BERARDINELLI, Cleonice. Gil Vicente: autos. 4. ed. Rio de Janeiro:
Agir, 1974. p. 19-66.
52 - FARSA DE INES PEREIRA
Feita por Gil Vicente, representado ao muito
alto e mui poderoso Rei D. João, o terceiro, no seu
Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII.
O seu argumento é um exemplo comum que
dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que
me derrube.
As figuras são as seguintes: Inês Pereira, sua
Mãe; Lianor Vaz; Pero Marques; dous Judeus (um
chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um
seu Moço; um Ermitão; [Luzia e Fernando].
Entra logo Inês Pereira, e finge que está lavrando
só, em casa, e canta esta cantiga:
Inês (canta). Quien con veros pena y muere
que hará cuando no os viere?47
(fala). Renego deste lavrar
e do primeiro que o usou!
Ao diabo que o eu dou,
que tão mau é d‟aturar!
Ó Jesu! Que enfadamento,
e que raiva, e que tormento,
que cegueira, e que canseira!
Eu hei de buscar maneira
d‟algum outro aviamento.
5
10
encerrada nesta casa
como panela sem asa
que sempre está num lugar?
E assi hão de ser logrados
dous dias amargurados,
que eu posso durar viva?
E assi hei d‟estar cativa
em poder de desfiados?
Antes o darei ao diabo
que lavrar mais nem pontada.
Já tenho a vida cansada
de jazer sempre dum cabo.
Todas folgam, e eu não;
todas vêm e todas vão
onde querem, senão eu.
Hui! que pecado é o meu,
ou que dor de coração?
Esta vida é mais que morta.
São eu coruja ou corujo,
ou são algum caramujo
que não sai senão à porta?
E quando me dão algum dia
licença, como a bugia,
que possa estar à janela,
é já mais que a Madanela
quando achou a alelúia.
15
20
25
30
35
Coitada, assi hei d‟estar
47
Quem, vendo-vos, sofre e morre, que fará quando não
vos vir?
Vem a Mãe, da Igreja, e, não na achando lavrando,
diz:
Mãe.
Inês
Logo eu adivinhei,
lá na missa onde eu estava,
como a minha Inês lavrava
a tarefa que lhe eu dei...
Acaba esse travesseiro!
Hui! naceu-te algum unheiro?
ou cuidas que é dia santo?
Praza à Deus que algum quebranto
me tire do cativeiro!
Mãe.
Toda tu estás aquela...
Choram-te os filhos por pão?
Inês.
Prouvesse a Deus! Que já é razão
de não estar tão singela.
Mãe.
Inês.
Olhade lá o mau pesar!
Como queres tu casar
com fama de preguiçosa?
Mas eu, mãe, sou aguçosa,
e vós dai-vos devagar.
40
45
Diz que havia de saber
se era eu fêmea, se macho.
90
Mãe. Hui! Seria algum muchacho
que brincava por prazer?
Lianor. Si, muchacho sobejava...
Era um zote tamanhouço!...
E eu andava no retouço,
95
tão rouca que não falava.
Quando o vi pegar comigo,
que me achei naquele perigo:
— Assolverei! — Não assolverás
— Tomarei! — Não tomarás!
100
— Jesu! Homem! que hás contigo?
50
55
Mãe.
Mãe.
Inês.
Mãe.
Inês.
Ora espera, assim vejamos!
Quem já visse esse prazer!
Cal‟-te, que poderá ser,
que “ante Páscoa vêm os Ramos.”
Não te apresses tu, Inês:
“maior é o ano que o mês.”
Quando te não precatares,
virão maridos a pares
e filhos de três em três.
Quero-m‟ ora alevantar.
Folgo mais de falar nisso,
— assi Deus me dê o Paraíso! —
Mil vezes que não lavrar.
Isto não sei que me faz...
Mãe. Aqui vem Lianor Vaz.
Inês. E ela vem-se benzendo.
Lianor. Jesus, que me eu encomendo!
Quanta cousa que se faz!
Mãe. Lianor Vaz, que é isso?
Lianor. Venho eu, mana, amarela?
Mãe. Mais ruiva que uma panela!
Não sei como tenho siso!
Lianor. Jesu! Jesu! Que farei?
Não sei se me vá a el-Rei,
se me vá ao Cardeal.
Mãe. E como? Tamanho é o mal?
Lianor. Tamanho? Eu to direi:
vinha agora por ali,
ò redor da minha vinha,
e um clérigo, mana minha,
pardeus!, lançou mão de mi.
Não me podia valer:
Eu cuidei que era jogo
e ele... dai-o vós ò fogo!
Tomou-me tamanho riso,
riso em todo meu siso,
e ele leixou-me logo.
60
65
70
75
80
85
— Irmã, eu t‟assolverei
c‟o breviairo de Braga.
— Que breviairo, ou que praga!
Que não quero! Aque-d‟el-Rei!
Quando viu revolta a voda,
foi e esfarrapou-me toda
o cabeção da camisa.
Assi me fez dessa guisa
outro, no tempo da poda.
Lianor. Si, agora, ieramá!
Também eu me ria cá
das cousas que me dizia:
chamava-me “luz do dia”.
— “Nunca teu olho verá!”
Se estivera de maneira
sem ser rouca, bradara eu!
Mas logo o demo me deu
cadarrão e peitogueira,
cócegas e cor de rir,
e coxa pera fugir,
e fraca pera vencer.
Porém pude-me valer
sem me ninguém acudir...
O demo, e não pode al ser,
se chantou no corpo dele.
Mãe. Mana, conhecia-t‟ele?
Lianor. Mas queria-me conhecer!
Vistes vós tamanho mal?
Lianor. Eu me irei ao Cardeal,
e far-lhe-ei assi mesura
e contar-lhe-ei a aventura
que achei no meu olival.
Mãe.
Não estás tu arranhada
de te carpir nas queixadas.
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140
Lianor. Eu tenho as unhas cortadas
e mais estou trosquiada.
E mais pera que era isso?
E mais pera que é o siso?
E mais, no meo da requesta,
veo um homem de a besta,
que em vê-lo vi o Paraíso.
E soltou-me, porque vinha,
bem contra sua vontade.
Porém, a falar verdade,
já eu andava cansadinha.
Não me valia rogar,
nem me valia chamar:
— “Aque de Vasco de Fóis!
Acudi-me, como sóis!”
E ele... senão pegar!
145
150
155
Lianor. Eu vos trago um bom marido,
rico, honrado, conhecido;
diz que em camisa vos quer.
Inês. Primeiro eu hei de saber
se é parvo, se sabido.
Lianor. Nesta carta, que aqui vem
pera vós, filha, d‟amores,
veredes vós, minhas flores,
a descrição que ele tem.
Inês. Mostrai-ma cá, quero ver,
Lianor. Tomai. E sabedes vós ler?
Mãe. Hui! ela sabe latim,
e gramáteca, e alfaqui
e sabe quanto ela quer!
Deras-lhe, maora, boa
e mordera-lo na coroa.
Lianor. Assi? Fora excomungada!
160
Mãe.
Não lhe dera um empuxão,
porque sou tão maviosa
que é cousa maravilhosa:
e esta é a concrusão.
Leixemos isto! Eu venho
com grande amor que vos tenho,
porque diz o exempro antigo
que “amiga e bô amigo
mais aquenta que o bom lenho”:
165
170
195
200
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz assi:
Inês.
— Mais mansa, Lianor Vaz,
assi Deus te faça santa.
— Trama te dê na garganta!
Como! Isto assi se faz?
— Isto não releva nada...
— Tu não vês que são casada?
190
“Senhora amiga Inês Pereira,
Pero Marques, vosso amigo,
que ora estou na nossa aldea,
mesmo na vossa mercea
me encomendo. E mais digo,
digo que benza-vos Deus,
que vos fez de tão bom jeito:
bom prazer e bom proveito
veja vossa mãe de vós
e de mi também assi,
ainda que eu vos vi,
estoutro dia de folgar,
e não quisestes bailar
nem cantar presente mi...”
Na voda de seu avô
ou onde me viu ora ele?
Lianor Vaz, este é ele?
Lionor. Lede a carta sem dó,
que ainda eu são contente dele.
205
210
215
220
Inês Pereira a prosseguir com a carta:
Inês está concertada
pera casar com alguém?
Até‟gora com ninguém
não é ela embaraçada.
Lianor. Em nome do anjo bento,
eu vos trago um casamento.
Filha, não sei se vos praz.
175
Inês.
Mãe.
180
Inês.
E quando, Lianor Vaz?
Lianor. Já vos trago aviamento.
Inês.
Porém, não hei de casar
senão com homem avisado;
ainda que pobre e pelado
seja discreto em falar,
que assi o tenho assentado.
185
“... Nem cantar presente mi.
Pois Deus sabe a rebentinha
que me fizestes então.
Ora, Inês, que hajais benção
de vosso pai e a minha,
que venha isto a concrusão.
E rogo-vos como amiga,
que samicas vós sereis,
que de parte me faleis,
antes que outrem vo-lo diga.
E, se não fiais de mi,
esteja vossa mãe aí,
a Lianor Vaz de presente:
veremos se sois contente
que casemos na boa hora.”
225
230
235
Inês
Des que naci até agora
não vi tal vilão com‟este,
Nem tanto fora de mão!
Lianor. Não queiras ser tão senhora.
Casa, filha, que te preste,
não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
no tempo d‟agora, Inês?
Antes casa em que te pês,
que não é tempo d‟escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
“ou seja sapo ou sapinho,
ou marido ou maridinho,
tenha o que houver mister”.
Este é o certo caminho.
Mãe. Pardeus, amiga, essa é ela!
“Mata o cavalo de sela
e bô é o asno que me leva.”
Lianor. Filha, “no Chão do Couce
quem não poder andar, choute”.
E “mais quero eu quem me adore
que quem faça com que chore”.
Chamá-lo-ei, Inês?
Inês. Si.
Venha e veja-me a mi.
Quero ver, quando me vir,
se perderá o presumir
logo em chegando aqui,
pera me fartar de rir.
Mãe.
Inês.
Touca-te bem, se vier,
pois que pera casar anda.
[Pero.] Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá...
Eu vos escrevi de lá
285
240
Assi que... e de maneira...
245
Mãe. Tomai aquela cadeira.
Pero. E que val aqui a destas?
290
Inês [à parte]Ó Jesu! que Jão das Bestas [=
bobalhão]!
Olhai aquela canseira!
Assentou-se com as costas pera elas, e diz:
250
Pero.
Mãe.
Pero.
255
Mãe.
Eu cuido que não estou bem...
Como vos chamam, amigo?
Eu Pero Marques me digo,
como meu pai, que Deus tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deus!,
que fora bem escusado,
e ficamos dous heréus.
Perém meu é o mor gado.
De morgado é vosso estado?
Isso veria dos céus.
295
300
260
Pero.
265
Essa é boa demanda [= recomendação]!
Cerimônias há mister
homem que tal carta manda?
Eu o estou cá pintando...
270
sabeis, mãe, que eu adevinho?
Deve ser um vilãozinho...
Ei-lo se vem penteando:
será com algum ancinho?
Mais gado tenho eu já quanto,
e o mor de todo o gado,
digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
prouguesse ao Espírito Santo,
com Inês, que eu me espanto
quem me fez seu namorado.
Parece moça de bem,
e eu de bem, er também
Ora vós ide lá vendo
se lhe vem milhor ninguém,
e segundo o que eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
peras da minha pereira...
Hão d‟estar na derradeira.
Tende ora, Inês, per i.
Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de
lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro,
com o capelo por diante, e vem dizendo:
Inês.
Pero.
E isso hei de ter na mão?
Deitai as peas no chão.
Pero.
Inês.
As perlas pera enfiar
Três chocalhos e um novelo,
e as peas no capelo...
E as peras? Onde estão?
Pero.
Nunca tal me aconteceu!
Algum rapaz mas comeu...
que as meti no capelo,
e ficou aqui o novelo,
e o pentem não se perdeu.
Pois trazi‟-as de boa mente...
Homem que vai aonde eu vou
275
não se deve de correr [= envergonhar].
Ria embora quem quiser,
que eu em meu siso estou.
Não sei onde mora aqui...
olhai que me esquece a mi!...
280
eu creo qu‟é nesta rua...
Esta parreira é sua.
Já conheço que é aqui.
Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz:
305
310
315
320
325
330
Inês.
Pero.
Fresco vinha o presente,
com folhinhas borrifadas!
Não, que elas vinham chentadas
cá no fundo, no mais quente.
entonces veremos nós...
[Vai-se Pero Marques e diz] Inês Pereira:
Inês.
Vossa mãe foi-se? Ora bem...
Sós nos leixou ela assi?...
Cant‟eu quero-me ir daqui,
não diga algum demo alguém...
Inês. E vós que havies de fazer,
nem ninguém que há de dizer
[à parte].
O galante despejado!
Pero. Se eu fora já casado,
doutra arte havia de ser,
como homem de bom recado.
335
Inês. Quão desviado este está!
[à parte].
Todos andam por caçar
suas damas sem casar,
e este... tomade-o lá!
Pero. Vossa mãe é lá no muro?
Inês. Minha mãe eu vos seguro
que ela venha cá dormir.
Pero. Pois, senhora, quero-m’ir
antes que venha o escuro
Virá cá Lianor Vaz,
veremos que lhe dizeis...
Inês. Homem, não aporfieis,
que não quero, nem me praz.
Ide casar a Cascais!
Pero. Não vos anojarei mais,
ainda que saiba estalar;
e prometo não casar
até que vós não queirais.
345
340
Mãe.
Inês.
Mãe.
Inês.
350
355
360
Mãe.
[Pero vai-se, dizendo:]
[à parte]
Estas vos são elas a vós!
Anda homem a gastar calçado,
e, quando cuida que é aviado,
escarnefucham de vós!
[a Inês]
Não sei se fica lá a pea...
Pardeus! Bô ia eu à aldea!
380
365
Inês.
Mãe.
Pessoa conheço eu
que levara outro caminho...
Casai lá com um vilãozinho,
mais covarde que um judeu!
Se fora outro homem agora,
e me topara a tal hora,
estando assi às escuras,
falara-me mil doçuras,
ainda que mais não fora...
Vem a mãe e diz:
Pero Marques foi-se já?
Pera que era ele aqui?
Não te agrada ele a ti?
Vá-se muitieramá,
que sempre disse e direi
mãe, eu não me casarei
senão com homem discreto,
e assi vo-lo prometo;
ou antes o leixarei.
Que seja homem mal feito,
feo, pobre, sem feição,
como tiver descrição,
não lhe quero mais proveito.
E saiba tanger viola,
e coma eu pão e cebola.
Siquer a canteguinha!
Discreto, feito em farinha,
porque isto me degola.
Sempre tu hás de bailar,
e sempre ele há de tanger?
Se não tiveres que comer,
o tanger te há de fartar?
“Cada louco com sua teima.”
Com «a borda de boleima
e a vez d‟água fria,
não quero mais cada dia.
Como às vezes isso queima!
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Voltando atrás:
Inês.
Pero
Senhora, cá fica o fato [= objetos pessoais]?
Olhai se o levou o gato...
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Inda não tendes candea?
Ponho per cajo [= suponhamos] que alguém
vem como eu vim agora,
e vos acha só a tal hora;
parece-vos que será bem?
375
Ficai-vos ora com Deus:
çarrai a porta sobre vós
com vossa candeazinha.
E siquais sereis vós minha:
Inês.
E que é desses escudeiros?
Eu falei ontem ali
que passarão por aqui
os Judeus casamenteiros
e hão de vir logo aqui.
420
Aqui entram os Judeus casamenteiros,
chamados, um, Latão, e, o outro, Vidal, e diz Latão:
Latão. Hou de cá!
Inês.
Quem está lá?
Vidal. Nome dei Deu, aqui somos!
Latão. Não sabeis quão longe fomos.
Vidal. Corremos a irama.
Este e eu.
Latão. Eu, e este...
[Vidal].
Pola lama e polo pó,
que era pera haver dó,
com chuiva, sol e nordeste.
Latão.
Vidal.
Latão
Vidal.
Latão.
Vidal.
Latão.
Vidal.
Latão.
Foi a coisa de maneira,
tal friura é tal canseira,
que trago as tripas macadas.
Assi me fadem boas fadas
que me saltou caganeira!
Pera vossa mercê ver
o que nos encomendou
O que nos encomendou
será se hoiver de ser.
Todo este mundo é fadiga....
Vós dissestes, filha amiga,
que vos buscássemos logo
E logo pujemos fogo...
Cal-te!
Não queres que diga?
Não sou eu também do jogo?
Não fui eu também contigo?
Tu e eu não somos eu?
Tu judeu e eu judeu,
não somos massa dum trigo?
Si, somos. Juro al Deu!
Leixa-me falar.
Já calo.
Senhora, há já três dias...
Falas-lhe tu ou eu falo?
Ora dize o que dizias:
que forte, que fomos, que ias
buscá-lo, esgaravatá-lo...
Vidal. Vós, amor, quereis marido
discreto, e de viola?
Latão. Esta moça não é tola,
que quer casar per sentido...
Vidal. Judeu, queres-me leixar?
Latão. Leixo, não quero falar
Vidal. Buscamo-lo...
Latão. Demo foi logo!
Credo que vosso fogo
vencerá o Tejo e o mar.
Eu cuido que falo... e calo.
Calo eu agora ou não?
Ou falo, se vem à mão?
Não digas que não te falo...
Inês. Jesu! Guarde-me ora Deus!
Não falará um de vós?
Já queria saber isso.
Mãe. Que siso, Inês, que siso
tens debaixo desses véus...
Inês. Diz o exemplo da velha:
“o que não haveis de comer
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leixai-o a outrem mexer”.
Mãe. Eu não sei quem t‟aconselha...
Inês. Enfim, que novas trazeis?
Vidal. O marido que quereis,
de viola e dessa sorte,
não no há senão na corte
que cá não no achareis.
Falamos a Badajoz,
músico, discreto, solteiro;
este fora o verdadeiro,
mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilhacastim
e... falou-nos em latim:
— Vinde cá daqui a a hora,
e trazei-me essa senhora.”
Inês. Tudo é nada, enfim?
Vidal. Esperai, aguardai ora!
Soubemos dum escudeiro,
de feição de atafoneiro
que virá logo essora,
que fala... e com‟ora fala!
estrugirá esta sala.
E tange... e com‟ora tange!
Alcança quanto abrange,
e se preza bem de gala.
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Vem o Escudeiro com seu Moço, que lhe traz
a viola, e diz, falando só:
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Escudeiro.
Se esta senhora é tal
como os judeus ma gabaram,
certo os anjos a pintaram,
e não pode ser i al.
Diz que os olhos com que via
eram de Santa Luzia,
cabelos, da Madanela...
Se ela fosse donzela
tudo essoutro passaria...
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Moça de vila será ela,
com sinalzinho postiço,
e sarnosa no toutiço
como burra de Castela.
eu, assi como chegar,
compre-se bem atentar
se é garrida, se honesta,
por que o melhor da festa
é achar siso e calar.
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Mãe [falando para Inês]:
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Mãe.
Se este escudeiro há de vir
e é homem de discrição
hás-te de por em feição.
e falar pouco, e não rir.
E mais, Inês, não muito olhar,
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e muito chão o menear.
porque te julguem por muda,
porque a moça sesuda
é a pena pera amar.
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Escudeiro [falando para o Criado]:
Escudeiro.
Olha cá, Fernando, eu vou
ver a com que hei de casar.
Avisa-te que hás de estar
sem barrete onde eu estou.
Moço. Como a Rei! Corpo de mi!
[à parte]
Mui bem vai isso assi...
Escudeiro.
E se cuspir, pola ventura,
põe-lhe o pé e faze mesura.
Moço [à parte]. Ainda eu isso não vi!
Escudeiro.
E se me vires mentir,
gabando-me de privado,
está tu dissimulado,
ou sai-te lá fora a rir;
isto te aviso daqui,
faze-o por amor de mi.
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Moço. Porém, senhor, digo eu
que mau calçado é o meu
pera estas vistas assi.
Escudeiro.
Que farei, que o sapateiro
não tem solas, nem tem pele?
Moço. Sapatos me daria ele,
se me vós désseis dinheiro...
Escudeiro.
Eu o haverei agora.
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E mais, calças te prometo.
Moço[à parte]Homem que não tem nem preto
[moeda de cobre]
casa muito na maora.
Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e
alevantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o
Escudeiro:
Escudeiro.
Antes que mais diga agora,
Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora.
Que bem vejo
nesse ar, nesse despejo,
mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma, aquela
que eu busco e que desejo.
Obrou bem a Natureza
em vos dar tal condição
que amais a discrição
muito mais que a riqueza.
Bem parece
que só discrição merece
gozar vossa fermosura,
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que é tal que, de ventura,
outra tal não se acontece.
Senhora, eu me contento
receber-vos como estais:
se vós vos não contentais,
o vosso contentamento
pode falecer, nô mais.
Latão. Como fala!
Vidal. Mas ela como se cala!
Tem atento o ouvido...
Este há de ser seu marido,
segundo a coisa s‟abala.
Escudeiro.
Eu não tenho mais de meu,
somente ser comprador
do Marichal meu senhor
e são escudeiro seu.
Sei bem ler
e muito bem escrever,
e bom jugador de bola,
e quanto a tanger viola,
logo me ouvireis tanger.
Moço, que estás lá olhando?
Moço. Que manda Vossa Mercê?
Escudeiro.
Que venhas cá!
Moço. Pera quê?
Escudeiro.
Pera fazeres o que mando!
Logo vou.
Moço. O diabo me tomou:
[à parte].
O diabo me tomou:
tirar-me de João Montês,
por servir um tavanês,
mor doudo que Deus criou!
Escudeiro.
Fui despedir um rapaz,
que valia Perpinhão!,
por tomar este ladrão...
Moço! [Moço!]
Moço. Que vos praz?
Escudeiro.
A viola!
Moço. Oh como ficará tola,
[à parte]
se não fosse casar ante
c‟o mais sáfeo bargante
que cebola pão e cebola!
[ao escudeiro] Ei-la aqui bem temperada:
não tendes que temperar.
Escudeiro.
Faria bem de ta quebrar
na cabeça, bem migada.
Moço [à parte].E se ela é emprestada,
quem na havia de pagar?
[ao escudeiro] Meu amo, eu quero-m‟ir.
E quando queres partir?
Moço. Ante que venha o inverno,
porque vós não dais governo
pera vos ninguém servir.
Escudeiro.
Não dormes tu que te farte?
Moço. No chão... e o telhado por manta,
e çarra-se-m‟a garganta
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com fome...
Escudeiro.
Isso tem arte...
Moço. Vós sempre zombais assi.
Escudeiro.
Oh que boas vozes tem
esta viola aqui!
Leixa-me casar a mi,
depois eu te farei bem.
Agora vos digo eu
que Inês está no paraíso.
Inês. Que tendes de ver com isso?
Todo o mal há de ser meu.
Mãe. Quanta doudice!
Inês. Como é seca a velhice!
Leixai-me ouvir e folgar,
que não me hei de contentar
e casar com parvoíce.
Pode ser maior riqueza
que um homem avisado?
Mãe. Muitas vezes, mal pecado!,
é melhor boa simpreza.
Latão. Ora oivi, e oivireis;
escudeiro, cantareis
alg a boa cantadela.
Namorai esta donzela,
Esta cantiga direis.
Canta o Judeu:
Canas do anuir, canas,
canas do amor.
Polo longo de um rio,
canaval vi florido,
canas do amor.
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Mãe.
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Canta o Escudeiro o romance de “Mal me
quieren en Castilla”, e diz Vidal:
Vidal. Latão, já o sono é comigo
como oivo cantar guaiado
que não vai esfandegado.
Latão. Esse é o demo q‟eu digo!
655
Viste cantar Dona Sol:
Pelo mar vai a vela,
vela vai pelo mar?
Vidal. Filha Inês, assi vivais,
que tomeis esse senhor,
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escudeiro, cantador,
e caçador de pardais,
sabedor, rebolvedor,
falador, gracejador,
afoitado pela mão,
665
e sabe de gavião.
Tomai-o, por eu amor!
Podeis topar um rabugento,
desmazelado, baboso,
descancarrado [boçal], brigoso,
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medroso, carrapatento.
Este escudeiro, a osadas!,
onde se derem pancadas,
ele as há de levar
boas: senão apanhar...
Nele tendes boas fadas.
Mãe. Quero rir, com toda a mágoa,
destes teus casamenteiros:
nunca vi judeus ferreiros
aturar tão bem a frágua.
Não te é melhor, mal por mal,
Inês, um bom oficial
que te ganhe nessa praça,
que é um escravo de graça?
E casarás com teu igual.
Latão. Senhora, perdei cuidado:
o que há de ser, há de ser,
e ninguém pode tolher
o que está determinado.
Vidal. Assi diz Rabi Zarão.
Inês, guar-te de rascão!
Escudeiro queres tu?
Inês. Jesu, nome de Jesu,
quão fora sois de feição!
Já, minha mãe adevinha,
houvestes por vaidade
casar à vossa vontade;
eu quero casar à minha.
Mãe. Casa, filha, muito embora!
Escudeiro.
Dai-me essa mão, senhora.
Inês. Senhor, de mui boa mente.
Escudeiro.
Per palavras de presente
vos recebo desd‟agora.
Nome de Deus, assi seja!
Eu, Brás da Mata, escudeiro,
recebo a vós, Inês Pereira,
por mulher e por parceira,
como manda a Santa Igreja.
Inês. Eu aqui, diante Deus,
Inês Pereira, recebo a vós,
Brás da Mata, sem demanda,
como a Santa Igreja manda.
Juro al Deu! Aí somos nós!
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Os Judeus ambos:
Judeus. Alça manim, dona ò dono, ha!
Arrea espeçulá!
Bento o Deu de Jacob,
bento o Deu que a Faraó
espantou e espantará!
Bento o Deu de Abraão!
Benta a terra de Canão!
Pera bem sejais casados!
Vidal. Dai-nos cá senhos ducados!
Mãe. Amenhã vo-los darão.
Pois assi é, bem será
que não passe isto assi;
eu quero chegar ali,
chamar meus amigos cá,
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e cantarão de terreiro.
Escudeiro.
Oh! quem me fora solteiro!
Inês. Já vós vos arrependeis!
Escudeiro.
Oh, esposa, não faleis,
que casar é cativeiro.
Inês.
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Aqui vem a Mãe com certas Moças e Mancebos, pera fazerem a festa, e diz a delas, per
nome Luzia:
Luzia. Inês, por teu bem te seja!
Oh, que esposo e que alegria!
Inês. Venhas embora, Luzia,
e cedo te eu assi veja.
Mãe. Ora vai tu ali, Inês,
e bailareis três por três.
Fernando.
Tu conosco, Luzia, aqui,
e a desposada ali:
ora vede qual dirês.
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Cantam todos a cantiga que se segue:
Mal ferida va la garça
enamorada;
sola vá, y gritos dava.
A las orillas de um río
la garça tenía el nido;
ballestero la há herido
en el alma;
sola va, y gritos dava.
Fernando.
Ora, senhores honrados,
ficai com vossa mercê,
E Nosso Senhor vos dê
com que vivais descansados.
Isto foi assi agora,
mas melhor será outrora;
perdoai pelo presente:
foi pouco e de boa mente...
Com vossa mercê, senhora.
Luzia. Ficai com Deus, desposados,
com prazer e com saúde,
e sempre Ele vos ajude
com que sejais bem logrados.
Mãe.
Ficai com Deus, filha minha,
não virei cá tão asinha.
A minha benção hajais.
Esta casa em que ficais
vos dou, e vou-me à casinha.
Senhor filho e senhor meu,
pois que já Inês é vossa,
vossa mulher e esposa,
encomendo-vo-la eu.
E pois que, des que naceu,
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a outrem não conheceu,
senão a vós, por senhor,
que lhe tenhais muito amor,
que amado sejais no Céu.
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Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro, e
senta-se Inês Pereira a lavrar, e canta esta cantiga:
Si no os huviera mirado,
no penara,
pero tampoco os mirara.
O Escudeiro, vendo cantar a Inês Pereira, mui
agastado lhe diz:
Escudeiro.
Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas me andáveis vós?
Juro ao Corpo de Deus
que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar,
eu vos farei assoviar...
Inês. Bofé, senhor meu marido,
se vós disso sois servido,
bem o posso eu escusar.
Escudeiro.
Mas é bem que o escuseis,
e outras cousas que não digo,
Inês. Por que bradais vós comigo?
Escudeiro.
Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
que não me respondais nada,
em que ponha fogo a tudo;
porque o homem sesudo
traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar
com homem nem mulher que seja;
nem somente ir à igreja
não vos quero eu leixar.
Já vos preguei as janelas,
porque vos não ponhais nelas;
estareis aqui encerrada,
nesta casa tão fechada,
como freira d‟Oudivelas.
Inês. Que pecado foi o meu?
Por que me dais tal prisão?
Escudeiro.
Vos buscastes discrição...
que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
maior discrição e siso,
que guardar eu meu tisouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
Vós não haveis de mandar
em casa somente um pelo;
se eu disser: “Isto é novelo”,
havei-lo de confirmar.
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E mais, quando eu vier
de fora, haveis de tremer;
e cousa que vós digais
não vos há de valer mais
que aquilo que eu quiser.
— Moço, às partes d‟além
me vou fazer cavaleiro.
Moço.[parte. Se vós tivésseis dinheiro,
não seria senão bem.
Escudeiro.
Tu hás de ficar aqui;
olha por amor de mi
o que faz tua senhora:
fecha-la-ás sempre de fora.
— Vós, lavrai, ficai per i.
Moço. Com o que me vós leixais
não comerei eu galinhas...
Escudeiro.
Vai-te tu per essas vinhas,
que diabo queres mais?
Moço. Olhai, olhai, como rima!
E depois de ida a vendima?
Escudeiro.
Apanha desse rabisco.
Moço. Pesar ora de São Pisco!
Convidarei minha prima...
E o rabisco acabado,
ir-m‟ei espojar às eiras?
Escudeiro.
Vai-te per essas figueiras
e farta-te, desmazelado!
Moço. Assi!
Escudeiro.
Conheces túbaras da terra?
Moço. (I-vos vós embora à guerra,
que eu vos guardarei oitavas...).
Senhora, o que ele mandou
não posso menos fazer.
Inês. Pois que te dá de comer,
faze o que te encomendou.
Moço. Vós fartai-vos de lavrar;
eu me vou desenfadar
com essas moças lá fora.
Vós perdoai-me, senhora,
porque vos hei de fechar.
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Juro em todo meu sentido
que, se solteira me vejo,
assi como eu desejo,
que eu saiba escolher marido,
à boa fé, sem mal engano
pacifico todo o ano,
que ande a meu mandar...
Havia-me eu de vingar
deste mal e deste dano!
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Entra o Moço com
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a carta de Arzila, e diz:
Esta carta vem d‟além,
creo que é de meu senhor.
Mostrai cá, meu guarda-mor,
veremos o que i vem.
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Lê o sobrescrito.
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Aqui fica Inês Pereira só, brechada, lavrando
e cantando esta cantiga:
Inês.
Inês.
e em suas casas macios,
e na guerra lastimeiros.
Vede que cavalaria!
Vede já que mouros mata
quem sua mulher maltrata,
sem lhe dar de paz um dia!
E sempre ouvi dizer
que homem que isto fizer,
nunca mata drago em vaie,
nem mouro que chamem Ale,
e assim deve de ser.
Quem bem tem e mal escolhe,
por mal que lhe venha, não s’anoje.
(falado) Renego da discrição,
comendo ao demo o aviso,
que sempre cuidei que nisso
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estava a boa condição;
cuidei que fossem cavalheiros
fidalgos e escudeiros
não cheos de desvarios,
“A mui prezada senhora
Inês Pereira de Grã,
à senhora minha irmã.”
Inês. De meu irmão! Venha embora!
Moço. Vosso irmão está em Arzila?
Apostarei que i vem
nova de meu senhor também.
Inês. Já ele partiu de Tavila?
Moço. Há três meses que é passado.
Inês. Aqui virá logo recado
se lhe vai bem ou que faz.
Moço. Bem pequena é a carta assaz!
Inês. Carta de homem avisado...
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Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
“Muito honrada irmã,
esforçai o coração
e tomai por devação
de querer o que Deus quer.”
Inês. E isto que quer dizer?
(prossegue) “E não vos maravilheis
de causa que o mundo faça,
que sempre nos embaraça
com cousas. Sabei que, indo
vosso marido fugindo
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de batalha pera a vila,
a mea légua de Arzila,
o matou um mouro pastor.”
Moço. Oh meu amo e meu senhor!
Inês. Dai-me vós cá essa chave,
e i buscar vossa vida.
Moço. Oh que triste despedida!
Inês. Mas que nova tão suave!
Desatado é o nó!
Se eu por ele ponho dó,
o diabo m‟arrebente!
Pera mi era valente
e matou-o um mouro só!
Guardar de cavaleirão,
barbudo, repetenado,
que em figura d‟avisado
é malino e sotrancão.
Agora quero tomar,
pera boa vida gozar,
um muito manso marido;
não no quero já sabido,
pois tão caro há de custar.
Pereira só, dizendo:
Inês.
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O que havedes de fazer?
Casede-vos, minha filha.
Inês. Jesu, Jesu! Tão asinha!
Isso me haveis de dizer?
Quem perdeu um tal marido,
tão discreto e tão sabido,
e tão amigo de minha vida...
Lianor. Dai isso por esquecido
e buscai outra guarida.
Pero Marques tem que herdou
fazenda de mil cruzados;
mas vós quereis avisados...
Inês. Não, já esse tempo passou!
Sobre quantos mestres são,
a experiência dá lição.
Lianor. Pois tendes esse saber,
querei ora quem vos quer,
dai ò demo a opinião!
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Vem Lianor Vaz com Pero Marques, e diz
Lianor
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Aqui vem Lianor Vaz, a finge Inês Pereira
estar chorando, e diz Lianor Vaz:
Lianor. Como estais, Inês Pereira?
Inês. Muito triste, Lianor Vaz.
Lianor. Que fareis ao que Deus faz?
Inês. Casei por minha canseira.
Lianor. Se ficastes prenhe, basta.
Inês. Bem quisera eu dele casta,
mas não quis minha ventura.
Lianor. Filha, não tomeis tristura,
que a morte a todos gasta.
Andar! Pero Marques seja!
Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
asno que me leve quero,
e não cavalo folão;
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero.
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Lianor. Nô mais cerimónias agora;
abraçai Inês Pereira
por mulher e por parceira.
Pero. Há homem empacho, maora!,
quant‟a dizer abraçar;
depois que a eu usar,
entonces poderá ser.
Inês. Não lhe quero mais saber;
já me quero contentar.
Lianor. Ora dai-me essa mão cá.
Sabeis as palavras, si?
Pero. Ensinaram-mas a mi,
perém esquecem-me já.
Lianor. Ora dizei como digo...
Pero. E tendes vós aqui trigo
pera nos jeitar por cima?
Lianor. Inda é cedo, como rima!
Pero. Soma, vós casais comigo
e eu convosco, pardelhas!
Não compre aqui mais falar,
e quando vos eu negar,
que me cortem as orelhas!
Lianor. Vou-me, ficai-vos embora.
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Vai-se e diz Inês Pereira:
Inês.
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Pero.
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Vai Lianor Vaz por Pero Marques, e fica Inês
Inês.
Pero.
Inês.
Pero.
Marido, sairei eu agora,
que há muito que não sai?
Si, mulher, saí-vos i,
que eu me irei para fora.
Marido, não digo disso.
Pois que dizeis vós, mulher?
Ir folgar onde eu quiser.
I onde quiserdes ir,
vinde quando quiserdes vir,
estai quando quiserdes estar.
Com que podeis vós folgar
que eu não deva consentir?
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Vem um Ermitão a pedir esmola, que em
moço lhe quis bem, e diz:
pois que Deus vos trouxe aqui.
Ermitão.
Sea por amor de mí
vuestra buena caridad.
Ermitão.
Señores, por caridad,
dad limosna al dolorido
ermitafio de Cupido,
para siempre en soledad,
pues su siervo soy nacido.
Por exemplo
me meti en su santo templo
ermitaño en pobre ermita,
fabricada de infinita
tristeza en que contemplo;
adonde rezo mis horas,
y mis dias y mis años,
mis servicios y mis daños;
donde tú, mi alma, lloras
ei fin de tantos engaños.
Y acabando
las horas, todas llorando,
tomo las cuentas una a una,
con que tomo a la Fortuna
cuenta del mal en que ando,
sin esperar paga alguna.
Deo gratias! mi señora,
la limosna mata el pecado;
pero vos tenéis cuidado
de matarme cada hora.
Devéis saber,
para merced me hazer,
que por vos soy ermitaño.
Y aun más os desengaño,
que esperanças de os ver
me rizieron vestir tal paño.
Inês. Jesu, Jesu! Manas minhas!
Sois vós aquele que, um dia,
em casa de minha tia,
me mandastes camarinhas
e quando aprendia a lavrar,
mandáveis-me tanta cousinha?
Eu era ainda Inesinha,
não vos queria falar.
Ermitão.
Señora, tengoos servido
y vos a mi despreciado;
hazed que el tiempo pasado
no se cuente por perdido.
Inês. Padre, mui bem vos entendo
ò demo vos encomendo!,
que bem sabeis vós pedir!
Eu determino lá d‟ir,
à ermida, Deus querendo.
Y así, sin esperança
de cobrar lo merecido,
sirvo allí mis dias Cupido
com tanto amor sin mudança
que soy su santo escogido.
O señores,
los que bien os va d‟amores,
dad limosna al sin holgura...
que habita en sierra escura,
uno de los amadores
que tuvo menos ventura.
Yo rogaré al dios de mí,
en quien mis sentidos traigo,
que recibais mejor pago
de lo que yo recebí
en esta vida que hago.
Y rezaré
con gran devoción y fe
que Dios os libre d‟engaño;
que eso rue hizo ermitaño,
y para siempre seré,
pues para siempre es mi daño.
Inês.
Inês.
Olhai cá, marido amigo,
eu tenho por devação
dar esmola a um ermitão,
e não vades vós comigo
I-vos embora, mulher,
não tenho lá que fazer.
Tomais a esmola, padre, lá,
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Ermitão.
Y quando?
Inês. I-vos, meu santo,
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que eu irei um dia destes,
muito cedo, muito prestes.
Ermitão.
Señora, vo me voy eu tanto
Inês.[à parte].Em tudo é boa a concrusão.
Marido, aquele ermitão
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é um anjinho de Deus...
Pero. Corregê-vos esses véus
e ponde-vos em feição.
Inês. Sabei vós o que eu queria?
Pero. Que quereis, minha mulher?
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Que houvésseis por prazer
de irmos lá em romaria
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Pero.
Inês.
Pero.
Inês.
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Pero.
Inês.
Seja logo sem deter!
Este caminho é comprido;
contai
a estória, marido
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Bofá que me praz, mulher.
Passemos primeiro o rio,
descalçai-vos
E pois como?
E levar-me-eis ao ombro,
não me corte a madre [útero] o frio. 1100
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e
diz:
Inês.
Pero.
Inês.
Pero.
Inês.
Pero.
Inês.
Pero.
Inês.
Inês.
Marido, assi me levade!
Ides à vossa vontade?
Como estar no paraíso!
Muito folgo eu com isso.
Esperade ora, esperade!
Olhai que lousas aquelas
pera poer as talhas nelas!
Quereis que as leve?
Si:
a aqui e outra aqui.
Oh, como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?
Eu não saberei entoar...
Pois eu hei só de cantar
e vós me respondereis,
cada vez que eu acabar:
Pois assi se fazem as cousas.
Pero.
Inês.
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Pero.
Inês.
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Pero.
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Marido cuco me levades,
e mais duas lousas.
Pois assi se fazem as cousas.
Bem sabedes vós, marido,
quanto vos amo;
sempre fostes percebido
pera gamo.
Carregado ides, noss’ amo,
com duas lousas.
Pois assi se fazem as cousas.
Bem sabedes vós, marido,
quanto vos quero;
sempre fostes percebido
pera cervo.
Agora vos tomou o demo
com duas Lousas.
Pois assi se fazem as cousas.
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E assi se vão, e se acaba o dito Auto.
LAUS DEO.
Canta Inês Pereira:
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