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LITERATURA PORTUGUESA MEDIEVAL Prof. Augusto Sarmento-Pantoja [email protected] (91) 9164-2801 PARFOR - 1 Semestre de 2011 – Bloco 3 BARCARENA 2010 04 a 09 /07/2011 PRODUÇÃO LITERÁRIA MEDIEVAL Texto PRAGA, Vaasco (de Sandin). “Quero-uos eu, senhor, gran ben”. In: NUNES, José 1 Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássica, 1970. p. 151.1 Quero-uos eu, senhor, gran ben e non ei al de nós se non muito mal, si Deus mi perdon, pero direi-uos ũa ren: todo uo-l‟eu cuid‟a soffrer se m‟end‟ a morte non tolher. E creede que a min é este mal, que me vós leuar fazedes, de mha morte par, pero, senhor, per bõa fé, todo uo-l‟eu cuid‟a ssoffrer, se m‟end a morte non tolher. E, pois por ben, que uos eu sei querer, me fazedes assi uiuer, tan mal dia nos vj! pero verdade uos direi: todo vo-l‟eu cuid‟a sofrer, se m‟end‟ a morte non tolher. (CA 12 e CB 76) Texto SOARES, Joan (Comesso). “Hũa donzela quig‟ eu muy gran bem,”. In: NUNES, 2 José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 152.2 Hũa donzela quig‟ eu muy gran bem, meus amigos, assi Deus me perdom, e ora iá este meu coraçom anda perdudo e fóra de sem por hũa dona, se me ualha Deus, que depois uiron estes olhos meus, que mh-a semelha muy mays d‟outra rem. Porque a donzela nũca verey, meus amigos, emquãt‟ eu já uiuer, por esso quer‟eu muy grã ben querer a esta dona, ẽ que uos faley, que me semelh‟ a dõzela que uy: e a dona seruirey des aquy pola donzela que eu muyt‟ amey! Porque da dona sõ eu sabedor, meus amigos, assi ueja prazer, que a donzela en seu parecer semelha muyt‟, e por ẽd‟ ey sabor de a seruir, pero que he meu mal: 1 Natural da Galiza, segundo Nunes, floresceu no primeiro quartel do século XIII. Restam dele 25 cantigas de amor e 4 de amigo. 2 Nobre da família dos Valadares, deve ter florescido entre os anos de 1210 e 1230. Figura nos cancioneiros apenas com cantares de amor. serui-la-ey e nõ seruirey al, por a donzela que foy mha senhor. (CB 80 e CA 377). Texto TAVEIROOS, Pai Soarez de. “Como morreu quen nunca bem”. In: NUNES, José 3 Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 15.3 Como morreu quen nunca ben ouve da ren que mais amou e quen viu quanto reçeou d‟ela e foi morto por en, Ay, mha senhor, assi moyr‟ eu! Como morreu quen foy amar quen lhe nunca quis ben fazer e de que lhe fez Deus ueer de que foy morto cõ pesar, Ay, mha senhor, assi moyr‟ eu! § Com‟ome que ensandeçeu, senhor, cõ gran pesar que uiu e nõ foy ledo, nen dormiu depois, mha senhor, e morreu, Ay, mha senhor, assy moyr‟ eu! Como morreu quen amou tal dona que lhe nunca fez bem e quen a um leuar a quen a nõ ualia, nen a ual, Ay, mha senhor, assy moir‟ eu! (CA 35 e CB 123) Texto OSOIR‟EANNES. “Cuidei eu de meu coraçon”. In: NUNES, José Joaquim. 4 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 154.4 Cuidei eu de meu coraçon que me non podesse forçar (poys me sacara de prison) de ir comego hi tornar, e forçou-m’ ora nou’ amor e forçou-me noua senhor, e cuydo ca me quer matar! 3 Pertence este trovador à nobre família dos Velhos, a qual mais tarde devia ilustrar ainda outro seu descendente, fr. Gonçalo Velho, o descobridor dos Açores; a sua atividade poética, que se manifestou em cantares de amor e de amigo, devia ser colocada nos primeiros decênios do século XIII, parecendo até ainda poetou no século II. (J. J. Nunes) 4 Pertencente, segundo parece à família dos Marinhos, e filho de Joam Frojaz, fazia este trovador parte de colegiada de Santiago, na qualidade de cônego. Do seu testamento, feito em 1236, sabe-se que havia estudado em Paris. Dele só há versos de amor. E, poys m’ assy desenparar hũa senhor foy, des enton e[u] cuidei ben per ren que non podesse mays outra cobrar, mais forçaron-mh os olhos meus e o bon parecer dos seus e o seu preç’ e hũu cantar. Que lh’ oí, hu a uj estar en cabelos, dizend’ um son. Mal-dia non morri enton, ante que tal coyta leuar qual leuo! que non uj mayor nunca, ond’ estou a pauor de mort[e] ou de lh’o mostrar. (CB 13 e CA 323) Texto SANCHEZ, D. Gil. “Tu, que ora uẽes de Monte Mayor,”. In: NUNES, José 5 Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássica, 1970. p. 15.5 Tu, que ora uẽes de Monte Mayor, tu, que ora uẽes de Monte Mayor digas-me mandado de mha senhor, digas-me mandado de mha senhor, ca, se eu seu mandado non ujr, trist‟e coytado serey, e gram pecado fará, se me non ual, ca en tal ora nado foy que, mao pecado, amo-a endoado [em vão] e nunca end‟óuuj al. Tu, que ora uiste os olhos seus, tu, que ora uiste os olhos seus, digas-me mandado d‟ela por Deus, digas-me mandado d‟ela por Deus, ca, se eu seu mandado non uyr, trist‟e coytado serey, e gram pecado fará, se me non ual, 5 NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássica, 1970. p. 405: “GIL PEREZ CONDE. Floresceu este trovador na primeira metade do século XIII e foi um dos que tomaram parte na conquista da Andaluzia, no reinado de Afonso X, em cuja corte esteve; cultivou apenas a sátira, deixando-nos algumas cantigas de escárnio e de mal-dizer. D. GIL SANCHEZ. Filho de Sancho I e de sua amante predilecta, a formosa D. Maria Paez Ribeira, nasceu este trovador muito provavelmente nos últimos anos do século XII, sendo assim um dos primeiros que cantaram na língua portuguesa. Embora fosse clérigo e o chus honrado.., que ouve na Espanha, na frase do autor do II Livro de Linhagens, teve por amante uma fidalga das mais ilustres do reino, D. Maria Garcês de Sonsa; é de crer que a esta dama, que vivia em Montemor, seja dirigida a única poesia, por sinal bastante original na forma, que dele nos resta. O Livro de Óbitos de Santa Cruz de Coimbra dá-o como falecido a 14 de Setembro de 1236.” ca en tal ora nado foy que, mao pecado, amo-a endoado e nunca end‟óuuy al. (CB 22) Texto CORPANCHO, Airas. “Desei‟ eu rnuit‟ a ueer mha senhor,”. In: NUNES, José Joa6 quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 154-5.6 Desei‟ eu rnuit‟ a ueer mha senhor, e pero sei que, pois dant‟ela for, non lh‟ ei a dizer ren de com‟ oi‟ eu averia sabor e lh‟ estaria ben. Pola ueer moir‟ e pula seruir, e pero sei que, pois m‟ant‟ela uir, non lh‟ei a dizer ren de com‟ oi‟ eu poderia guarir e lh‟ estaria ben. Se lh‟al disser, nõ me dirá de nõ, mais da gran coita do meu coraçõ nõ lh’ei a dizer rem que lh’eu dirja en boa razon e lh’ estaria ben. Pero ei gran sabor de lhe falar, quando a uejo, por lhe nõ pesar, nõ lh’ei a dizer ren de com’eu poderia led’ andar e lh’ estaria ben. (CB 152 e CA 65) Texto VELHO, Pero. “Quand‟ora for a mha senhor ueer,”. In: NUNES, José Joaquim. 7 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 155. Quand’ora for a mha senhor ueer, que me non quer leixar d’amor uiuer, ay, Deus Senhor, se lh’ ousarei dizer: Senhor fremosa, non poss’ eu guarir! Eu, se ousar, direy, quando a uir: Senhor fremosa, non poss’eu guarir. Por quantas uezes m’ela fez chorar con seus desejos [saudades dela], cuytan[do] d’andar, quando a uir, direi-lhi, se ousar: Senhor fremosa, nom poss’ eu guarir. Eu, se ousar, direi, quando a uir: Senhor fremosa, non poss’ eu guarir. 6 Trata-se de um jogral, segundo Michaëlis. Parece ter poetado antes de D. Afonso III. Cantigas de amor e de amigo. se non de nós, de que eu lá Por quanta coyta por ela leuei nunca desejos perderey, e quant’afam sofri e endurei, nen al nunca deseiarey quando a uir, se ousar, lhi direi: no mundo, se non uós, senhor. Senhor fremosa, non poss’ eu guarir, Eu, se ousar, direi, quando a uir: Ou mha morte, poix me uós ben, Senhor fremosa, non poss’ eu guarir. (CB 113 e CA 393)senhor, non queredes fazer, ca non á no mund‟ outra ren por que eu já possa perder Texto MONIZ, Airas. “Pois mi non ual d‟eu a coyta que eu por nós ey, muyt‟amar”. In: NUNES, José Joase non por morrer, eu o sey, 8 quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. ou por min fazerdes nós ben, Lisboa: Clássica, 1970. p. 156. Pois mi non ual d‟eu muyt‟amar a mha senhor, nen a seruir, nem quam apost‟ eu sey negar o amor que lh‟ey [e] a ‟ncobrir a ela, que me faz perder, [De modo] que mh-o non pode[n] entender, lá eu chus [adv. = mais] no‟-na negarey, vel saberam de quen tort‟ey. [torto = mal, inujustiça] Da que á melhor semelhar de quanta[s] no mund‟ome uir e mays [mansa sabe falar] das que home falar oyr, non uo-la ey chus a dizer... quenquer x‟ a pode entender; lá chus seu nome non direy; c‟ a feito [iá] mh a nomeey. E quen ben quiser trastornar per tod‟o o mundo e ferir mui festinho xh-a pod‟achar, ca, por uos home non mentir, non á ela tal pareçer con que ss‟assy poss‟ asconder [esconder] por como a eu dessiney [indiquei], acha-la-am, cousa que sey. Os que me soyam coitar foi-lhes mha senhor descobrir; lá mh ora leixaram folgar, ca lhis non podia guarir, ca ben lhe‟-la fiz conhocer, porque me non quis ben fazer, e tenho que boa me uinguey, pois l‟en concelh‟ aueriguey. (CCB 6 e CA 316) Texto FERNANDEZ, Monio (ou Nuno). “Pois me fazedes, mha senhor”. In: NUNES, José 9 Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 157. Pois me fazedes, mha senhor, de quantas cousas no mund‟á desejos perder e sabor, Ca me fazedes muyto mal, des aquel dia ‟n que uos vj; pero, senhor, rem non uos ual, que nunca eu de nós parti meu eoraçon, poys uos amey, nen iá nunca o partirei d‟amar uós, e farey meu mal. E faç‟ o lá, pois Deus [o] quer, qu‟eu sempr‟ ey lá a desejar, tanto com‟eu uiuer poder, mha mort‟ e nosso semelhar, ca nunca tanto uiuerey que desei‟al, nen sairey por al de coita, poys Deus quer. (CB 18 e CA 328) Texto BONAVAL, Bernaldo de. “A dona que eu am‟ e tenho por senhor”. In: NUNES, José 10 Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 157-158. A dona que eu am‟ e tenho por senhor amostrade-mh-a Deus, se nos eu prazer for, senon dade-mh a morte! A que tenh‟eu por lume d‟estes olhou meus e por que choran sempr‟, amostrade-mh-a Deus, senon dade-mh a morte! Essa que uós fezestes melhor parecer de quantas sei, ay Deus, fazede-mh-a ueer senon dade-mh a morte! Ai Deus, que mh-a fezestes mais ca min amar, mostrade-mh-a hu possa con ela falar senon dade-mh a morte! (CV 657) Texto SOARES, Martim. “Senhor fremosa, pois me non queredes”. In: NUNES, José Joa11 quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 158-9. Senhor fremosa, pois me non queredes creer a cuita „n que me ten amor, por meu mal é que tan ben pareçedes o por meu mal uos filhei por senhor, e por meu mal tan muito ben oy dizer de uós, e por meu mal uos uy, pois meu mal é quanto ben uós auedes. E, pois uos uós da cuita nõ nẽbrades, nem do affan [fadiga] que m‟amor faz prender, por meu mal uiuo mais ca uos cuidades o por meu mal me fezo Deus naçer e por meu mal nõ morri u cuidei como uos viss‟e por meu mal fiquei uiuo, pois uós por meu mal ren nõ dados. [E] d‟esta cuita ‟n que me uós tẽedes em que oi‟ eu uiuo tan sen sabor que farei eu, pois mh-a nós nõ creedes? que farei eu, catiuo pecador? que farei eu, uiuẽdo sẽepr‟ assi? que farei eu, que mal dia naçi? que farei eou, pois me uós nõ ualedes? E, pois que Deus non quer que me ualhades nem me queirades mia coita creer que farei eu, por Deus que mh-o digades, que farei eu, se logo non morrer? que farei eu, se mais a viver ei? que farei eu, que conselho non sei? que farei eu, que vós desamparades? (CB 131 e CA 46) Texto GIL, D. Vasco. “Se uos eu ousasse, senhor,”. In: NUNES, José Joaquim. 12 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 159.7 Se uos eu ousasse, senhor, no mal, que por nós ei, falar, des que nos ui, a meu coidar, pois fossedes en sabedor, doer-uos-yades de mi. E, porque nunca estes meus olhos fazen se non chorar, u nos non ueen, con pesar, Se o soubessedes, por Deus, doer-uos-yades de mi. Mais non nos faço[o] eu saber de quanto mal me fez amor por nós, ca m’ ey de nós pauor, ca, se uo’-l’ ousasse dizer, doer-uos-yades de mi. (CA 148 e CB 257) 7 Foi este fidalgo (c. primeira metade do século XIII) um dos defensores do destronado D. Sancho II. Cultivou os três gêneros. Texto PONTE, Pero da. “Senhor do corpo delgado”. In: NUNES, José Joaquim. 13 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 160.8 Senhor do corpo delgado, en forte pont‟ eu fuy nado! que nunca perdi cuydado nem afan, des que uos ui. En forte pont‟ eu fuy nado, senhor, por uós e por mi! Con est‟ afan tan longado en forte pont‟ eu foy nado! que uos amo sen meu grado e faço a uós pesar y. En forte pont‟ eu fuy nado, senhor, por uós e por mi! Ay eu, catjv‟e coytado, en forte pont‟ eu fuy nado! que semi sempr‟ endõado ond‟ un ben nunca prendi. En forte pont‟ eu fuy nado, senhor, por uós o por mi! (CA 292 e CV 570) Texto RODRIGUEZ, Fernan. “Uedes, framosa, mha senhor,”. In: NUNES, José Joaquim. 14 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 161. Uedes, framosa, mha senhor, segurament‟ o que farey: en tanto com‟ eu uyuo for, nunca uos mha coyta direy, ca non m‟ auedes a creer, macar [ainda que] me ueiades morrer. Por que uos ei eu, mha senhor, a dizer nada do meu mal? pois d‟esto sõ[o] sabedor, segurament‟, u nõ iaz al, que non m‟ auedes a creer, marcar me ueiades morrer? Seruyr-uos-ey [eu], mha senhor, quant‟ eu poder, mentre [enquanto] uiuer, mays, poys de coyta sofredor 8 NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 161: “PERO DA PONTE. É este um trovador que, pelas suas composições, ocupa lugar distinto entre os poetas do seu tempo. Provàvelmente oriundo da Galiza, frequentou as cortes de Fernando III e Afonso X na qualidade de segrel, onde figurou ao lado de outros nossos conhecidos, principalmente Afonso Eanes do Coton seu mestre e amigo. Dos seus sirventeses conclui-se que floresceu na primeira metade do século XIII. Nos Cancioneiros figura como autor de cantigas de escárnio, de amor e de amigo.” sõo, non uo‟-l‟ ey a dizer, ca non m‟ auedes a creer, macar me ueiades morrer. Poys eu ẽtendo, m[h]a senhor, quan pouco proueito me ten de uos dizer quã grãd‟ amor uos ej, nõ uos fala[rei] en, ca non m‟ auedes a creer, macar me veiades morrer. (CB 31 e CA 341) Texto PAEZ, Fernan. “Uedes, senhor, pero me mal fazedes,”. In: NUNES, José Joaquim. 15 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 161-2.9 Uedes, senhor, pero me mal fazedes, mentr‟ eu uiuer, iá uós sẽpre seredes, senhor fremosa, de mj poderosa. Pero me mal fazedes cada dia, mentr‟ eu uiuer, seredes todavia, senhor fremosa, de mj poderosa For como quer que uós de mi façades, mentr‟ eu uiuer, nós quer‟ eu que seiades, senhor fermosa, de mj poderosa. (CB 51 e CA 361) Texto TENOIRO, Men Rodriguez. “Senhor fremosa, poys m‟ aqui,”. In: NUNES, José 16 Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 162.10 Senhor fremosa, poys m‟ aqui, hu uos ueio, tanto mal uen, dizede-mo [uós] hua ren, por Deus: e que será de mi, quando m‟ eu ora, mha senhor fremosa, du uós sodes, for? E, poys m‟ ora tal coyta dá o uoss‟ amor, hu uos ueer posso, queria já saber eu de nós: de mi que será, quando m‟ eu ora, mha senhor fremosa, du vos sodes, for? (CA 449 e CV 8) 9 Poeta pré-afonsino da primeira metade do século XIII, segundo J. J. Nunes. 10 Segundo Michaëlis, este trovador poetou a partir de 1245, na corte de D. Fernando e do rei Sábio. Texto GARCIA, D. Fernan. “Se Deus me leixe de nós ben auer,”. In: NUNES, José Joaquim. 17 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 162-3.11 Se Deus me leixe de nós ben auer, senhor fremosa, nunca ui prazer des quando m‟eu de uós parti. E fez-mh e voss‟amor tan muito mal que nunca ui prazer de min, nem d‟al, des quando m‟eu de uós parti. Ouu‟eu tal coita no meu coraçon que nunca ui prazer, se ora non, des quando m‟eu de nos parti. Texto NUNEZ, Joan (Camanês). “Rogaria eu mha senhor”. In: NUNES, José Joaquim. 18 Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 162-3.12 Rogaria eu mha senhor por Deus que mj fezesse ben, mais ei d‟ela tan gram pauor que lhi non ouso falar ren, con medo de se m‟assanhar e mj non querer pois falar. Diria-lh‟eu de coraçon como me faz perder o sem o seu bom parecer, mais non ous‟e tod‟aquest‟a mö auen [acontece] com medo de se mi assanhar e mj non querer pois falar. Pois me Deus tal uentura deu que m’en tamanha coita tem amor, iá sempr’eu serei seu, mais non a rogarei por en, com medo de se m‟assanhar e mj non querer pois falar. (CA 113 e CB 221) Texto D. SANCHO I. “Ay eu coitada! — Como vivo”. In: TAVARES, José Pereira (sel.). 19 Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 8-9.13 Ay eu coitada! — Como vivo en gran cuidado por meu amigo 11 Pertencia à família dos Sousões, tendo florescido no tempo do rei Afonso III. Dezesseis cantigas de amor e duas de escárnio. 12 Oriundo da Galiza, foi este trovador talvez contemporâneo do reisábio (Nunes). 13 O poema foi, segundo D. Carolina, inspirado pela ribeirinha. que ei alongado. Muito me tarda o meu amigo na Guarda! ca o vosso bõ(o) ssemelhar par nunca lh‟ omem pod‟ achar. Ay eu coitada! Como vivo en gran desejo por meu amigo que tarda e não vejo! — Muito me tarda o meu amigo na Guarda! § E, poys que o Deus assy quis, que eu ssõ (o) tam alongado de vós, muy bem seede ffis [certa] que nunca eu ssen cuydado eu viverey, ca já Paris d‟ amor non foy tarn coitado [e] nem Tristam; nunca soffreron tal affam, nen am quantos som, nen se(e)ram. Texto SANCHEZ, D. Gil. “Tu, que ora vẽes de Monte-mayor,”. In: TAVARES, José Perei20 ra (sel.). Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 8-9.14 [8] Tu, que ora vẽes de Monte-mayor, Tu, que ora vêes de Monte-mayor, digas-me mandado de mia senhor; digas-me mandado de mia senhor. ca se eu seu mandado non vir‟, trist‟ e coitado serei; e gran pecado fará, se me non val. Ca en tal ora nado foi que mao-pecado! amo-a endõado [em vão], e nunca end‟ òuvi al! [9] Tu, que ora viste os olhos seus, Tu, que ora viste os olhos seus, digas-me mandado d‟ela, por Deus; digas-me mandado d‟ela, por Deus, ca se eu seu mandado non vir‟, trist‟ e coitado serei; e gran pecado fará, se me non val. Ca en tal ora nado foi que mao-pecado! amo-a endõado, e nunca end‟ òuvi al! (CBN 22) Texto D. AFONSO. “Bem ssabia eu, mha senhor,”. In: TAVARES, José Pereira (sel.). 21 Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 11-12. Ben ssabia eu, mha senhor, que, poys m‟ eu de vós partisse, que nunca veeria sabor de rem, poys vos eu non visse, porque vós ssodes a melhor dona de que nunc(a) oysse [ouvisse] homem falar, 14 Esta cantiga tem refrão de oito versos — Inserta no C. A., Apêndice, n.º 332.— Este D. Gil Sanches era filho de D. Sancho I e da Ribeirinha. É a única poesia que dele se conhece, e julga D. Carolina Michaëlis que deve ter sido escrita em 1213, ano do cerco de Montemor. Que ffarey eu, poys que non vir o muy bon parecer vosso? ca o mal que vos foy ferir aquel‟ é meu e non vosso, e por ende per rem partir de vos muyt‟ amar non posso nen [o] farey ante ben sey ca morrerey, se non ey vós que sempr‟ amey. (CV 468) Texto NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1943. 22 479p. [269] San Cremenço do Mar, se mi del non uingar, non dormirey. San Cremenço senhor, se uingada non for, non dormirey. [Se mi del non uingar, do fals‟e desleal, non dormirey]. Se uingada non for do fals‟e traedor, non dormirey. (Torneol, CV 806) Texto NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1943. 23 479p. [269] Estaua-m’em San Clemenço, hu fôra fazer oraçon, e disse-mh o mandadeyro que mi prougue de coraçon: «agora uerrá ‟qui uoss‟amigo». Estava-m‟en San Clemenço, hu fora candeas queimar, e disse-mh o mandadeyro: dremosa de bon semelhar, agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo. Estava-m‟en San Clemenço, hu fora oreçon fazer, e diese-mh o mandadeyro: «fremosa de hon parecer, agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo». E disse-mh o mandadeyro: fremosa de bon semelhar», por que uyu que mi prazia, ar começou-me a falar: «agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo». E disse.mh o mandadeyro: «fremosa de bon parecer» por que uyu que mi prazia, ar começou-me a dizer: «agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo». E disse-mh o mandadeyro que mi prougue de coraçon; por que nyu que mi prazia, ar disse-m‟ outra uez enton: «agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo». (Torneol, CV 808) Texto TAVARES, José Pereira (sel.). Antologia de textos medievais; selecção, introdução e 24 notas pelo prof. José Pereira Tavares. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. 323p. [46] Vi eu, mia madr‟, andar as barcas eno mar: e moiro-me d‟amor. E non o achei, [o] que por meu mal vi: e moiro-me d‟amor. [E non o achei lá, o que vi por meu mal: e moiro-me d‟amor.] (CV 246) Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, 25 337p. CA 70 [138] Ir-vus queredes, mia senhor, e fiqu‟ end‟ eu con gran pesar, que nunca soube ren amar, ergo vós, dês quando vos vi. E pois que vus ides d‟aqui, senhor fremosa ¿que farei? [139] E que farei eu, pois non vir‟ o vosso mui bon parecer? Non poderei eu mais viver, se me Deus contra vos non val. Mais ar dizede-me vos al: senhor fremosa ¿que farei? E rogu‟ eu a Nostro Senhor que, se vós vus fordes d‟aquen, que me dê mia morte por én, ca muito me será mester. E se mi-a el dar non quiser: senhor fremosa ¿que farei? Foi eu, madre, veer as barcas eno ler: e moiro-me d‟amor. Pois mi-assi força voss‟amor e non ouso vusco guarir, des quando me de vos partir‟, eu que non sei al ben querer, querria-me de vos saber: senhor fremosa ¿que farei? As barcas [e]no mar e foi-las aguardar: e moiro-me d‟amor. Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, 26 337p. As barcas eno ler e foi-las atender: e moiro-me d‟amor. CA 74 [145] Que prol vus á vós, mia senhor, de me tan muito mal fazer? pois eu nom sei al ben querer no mundo, nen ei d‟al sabor, Dizede-me ¿que prol vus á ? [47] E foi-las aguardar e non o pud‟achar: e moiro-me d‟amor. E foi-las atender e non pudi veer: e moiro-me d‟amor. [146] E que prol vus á, de fazer, tan muito mal a quen voss‟é? Non vus á prol, per bõa fé, e, mia senhor, se eu morrer‟, Dizede-me ¿que prol vus á? Que prol vus á de eu estar sempre por vos en grand‟afan? e est‟é mui grande, de pran, e pois mi-o voss‟amor matar, dizede-me ¿que prol vus á? E vos, lume dos olhos meus, oïr-vus-edes maldizer por min, se eu por vos morrer‟. e, senhor, por l‟amor de Deus, dizede-me ¿que prol vus á? Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, 27 337p. CA 75 [147] Quer‟ eu a Deus rogar de coraçon, com‟ ome que é cuitado d‟ amor, que el me leixe veer mia senhor mui ced‟; e se m‟ el non quiser‟ oïr, logo lh‟ eu querrei outra ren pedir: que me non leixe mais eno mundo viver! [148] E se m‟ el á de fazer algun ben, oïr-mi-á „questo que lh‟ eu rogarei, e mostrar-mi-á quanto ben no mund‟ ei. E se mi-o el non quiser‟ amostrar, logo lh‟ eu outra ren querrei rogar: que me non leixe mais eno mundo viver! E se m‟ el amostrar‟ a mia senhor, que am‟ eu mais ca o meu coraçon, vedes, o que lhe rogarei enton: que me dê seu ben, que m‟ é mui mester; e rogá-lh‟-ei que, se o non fezer‟, que me non leixe mais eno mundo viver! E rogá‟-lh‟-ei, se me ben á fazer, que el me leixe viver en logar u a veja e lhe possa falar, por quanta coita me por ela deu; se non, vedes que lhe rogarei eu: que me non leixe mais eno mundo viver! Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, 28 337p. CA 76 [149] Quando mi-agora for‟ e mi alongar‟ de vos, senhor, e non poder‟ veer esse vosso fremoso parecer, quero-vus ora por Deus preguntar: Senhor fremosa ¿que farei enton? Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon! E dizede-me: en que vus fiz pesar, por que mi-assi mandades ir morrer? Ca me mandades ir alhur viver! E pois m‟ eu for‟ e me sen vos achar‟, Senhor fremosa ¿que farei enton? Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon! E non sei eu como possa morar u non vir‟ vos, que me fez Deus querer ben, por meu mal; por én quero saber: e quando vus non vir‟, nen vus falar‟, Senhor fremosa ¿que farei enton? Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon! Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, 29 337p. CA 77 [150] Que ben que m’ eu sei encobrir con mia coita e con meu mal, ca mi-o nunca pod‟ ome oïr. Mais que pouco que mi-a min val! Ca non quer‟ eu ben tal senhor que se tenha por devedor algũa vez de mi-o gracir. [151] Pero faça como quiser‟, ca sempre a eu servirei, e quando a negar poder‟, todavia negá-la-ei; ca eu ¿por quê ei a dizer o por que m‟ ajan de saber quan gran sandece comecei, E de que me non á quitar nulha cousa, se morte non? pois Deus, que mi-a fez muit‟ amar, non quer, nen o meu coraçon. Mais a Deus rogarei por én que me dê cedo d‟ ela ben, ou morte, se m‟ est‟ á durar. E ben dev‟ eu ant‟ a querer mia morte ca viver assi, pois me non quer Amor valer, e a que eu sempre servi me desama mais d‟ outra ren. Pero fui ome de mal-sen porque, d‟ u ela é, saí! Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da 30 Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, 337p. CA 81 [155] Preguntan-me por quê ando sandeu, e non lhe‟-lo quer‟ eu jamais negar; e pois me d‟ eles non poss‟ amparar, nen me leixan encobrir con meu mal, direi-lhes eu a verdade e non al: direi-lhes ca ensandeci pola melhor dona que vi, [156] Nen mais fremosa, (lhes direi, de pran, ca lhes non quero negar nulha ren de mia fazenda -ca lhes quero ben,) nen pola que og‟ eu sei mais de prez. E se m‟ ar preguntaren outra vez, direi-lhes ca ensandeci pola melhor dona que vi. E Deu-lo sabe, quan grav‟ a mi é de lhes dizer o que sempre neguei; mais pois me coitan, dizer-lhe‟-la ei a meus amigos, e a outros non. Mui gran verdad‟ é ¡si Deus mi perdon! direi-lhes ca ensandeci pola melhor dona que vi. E se a eles viren, creeran ca lhes digu‟ eu verdade, u al non á, e leixar-m‟ an de me preguntar ja; e se o non ar quiseren fazer, querê‟-lhes-ei a verdade dizer: direi-lhes ca ensandeci pola melhor dona que vi. Nuno Fernandes Torneol (v.1, p. 149-171) Texto CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL; leitura, comentários e 31 glossário por Elza Paxeco Machado e José Pedro Machado. Lisboa: Revista de Portugal, 1949-1964. 8v. [151] 70. (Tr. 149) Ir-vus queredes, mia senhor, e fiqu‟ end‟ eu con gran pesar, que nunca soube ren amar ergo vós, des quando vus vi. E pois que vus ides d‟ aqui, senhor fremosa ¿que farei? E que farei eu, pois non vir‟ o vosso mui bon parecer? Non poderei eu mais viver, se me Deus contra vos non val. Mais ar dizede-me vos al: senhor fremosa ¿que farei? E rogu‟ eu a Nostro Senhor que, se vos vus fordes d‟ aquen, que me dê mia morte por én, ca muito me será mester. E se mi-a el dar non quiser‟: senhor fremosa ¿que farei? Pois mi-assi força voss‟ amor e non ouso vusco guarir, des quando me de vos partir‟, eu que non sei al ben querer, querria-me de vos saber: senhor fremosa ¿que farei? (coblas singulares) POESIAS SATÍRICAS Afons’ Eanes do Coton 32 A ũa velha quis ora trobar, quand‟ en Toledo fiquei desta vez; e veo-me Orraca López rogar e disso-m‟ assi: — Por Deus, que vos fez, non trobedes a nulha velh‟ aqui, ca cuidaran que trobades a min. 33 Ben me cuidei eu, Maria Garcia, en outro dia, quando vos fodi, que me non partiss‟ eu de vós assi como me parti já, mão vazia, vel por serviço muito que vos fiz; que me non destes, como x‟ omen diz, sequer un soldo que ceass‟ un dia. Mais desta seerei eu escarmentado de nunca foder já outra tal molher, se m‟ ant‟ algo na mão non poser, ca non ei por que foda endoado; e vós, se assi queredes foder, sabedes como: ide-o fazer con quen teverdes vistid‟ e calçado. Ca me non vistides nen me calçades nen ar sej‟ eu eno vosso casal, nen avedes sobre min poder tal por que vos foda, se me non pagades; ante mui ben e mais vos en direi: nulho medo, grado a Deus e a el-Rei, non ei de força que me vós façades. E, mia dona, quen pregunta non erra; e vós, por Deus, mandade preguntar polos naturaes deste logar se foderan nunca en paz nen en guerra, ergo se foi por alg‟ ou por amor. Id‟ adubar vossa prol, ai, senhor, c‟ avedes, grad‟ a Deus, renda na terra. 34 Covilheira velha, se vos fezesse grand‟ escarnho, dereito i faria, ca me buscades vós mal cada dia; e direi-vos en que vol‟ entendi: ca nunca velha fududancua vi que me non buscasse mal, se podesse. E non est‟ũa velha nen son duas, mais son vel cent‟ as que m‟ andan buscando mal quanto poden e m‟ andan miscrando; e por esto rogu‟ eu de coraçon a Deus que nunca meta semeldon antre min e velhas fududancuas. E pero, lança de morte me feira, covilheira velha, se vós fazedes nen un torto se me gran mal queredes; ca Deus me tolha o corp‟ e quant‟ ei, se eu velha fududancua sei oje no mundo a que gran mal non queira. E se me gran mal queredes, covilheira velha, digu‟ eu que fazedes razon, ca vos quer‟ eu gran mal de coraçon, covilheira velha; e sabed‟ or‟ al: des que fui nado, quig‟ eu sempre mal a velha fududancua peideira. 35 Fernan Gil and‟ aqui ameaçado dun seu rapaz e doestado mal; e Fernan Gil ten-se por desonrado, ca o rapaz é mui seu natural: é filho dun vilão de seu padre e demais foi criado de sa madre. 36 Pero da Ponte, ou eu non vejo ben, ou de pran essa cabeça non é a que vós antano, per boa fé, levastes, quando fomos a Geen; e cuido-m‟ eu adormecestes .... 37 Foi Don Fagundo un dia convidar dous cavaleiros pera seu jantar, e foi con eles sa vaca encetar; e a vaca morreu-xe logu‟ enton, e Don Fagundo quer-s‟ ora matar, por que matou sa vaca o cajon. Quand‟ el a vac‟ ante si mort‟ achou, logu‟ i estando mil vezes jurou que non morreu por quant‟ end‟ el talhou, ergas se foi no coitelo poçon; e Don Fagundo todo se messou, por que matou sa vaca o cajon. Quisera-x‟ el da vaca despender tanto per que non leixass‟ a pacer; ca, se el cuidasse sa vaca perder, ante xa der‟ a quen-quer, assi non; e Don Fagundo quer ora morrer, por que matou sa vaca o cajon. .................................................................... 38 Meestre Nicolás, a meu cuidar, é mui bon físico; por non saber el assi as gentes ben guarecer, mais vejo-lhi capelo d‟ Ultramar e trage livros ben de Mompisler; e latin come qual clérigo quer entende, mais nõno sabe tornar; E sabe seus livros sigo trager, como meestr‟, e sabe-os catar e sabe os cadernos ben cantar; quiçai non sabe per eles leer, mais ben vos dirá quisquanto custou, todo per conta, ca ele xos comprou. Ora veede se á gran saber! E en bon ponto el tan muito leeu, ca per i o preçan condes e reis; e sabe contar quatro e cinqu‟ e seis per estrolomia ‟n que aprendeu; e mais vos quer‟ end‟ ora dizer eu: mais van a el que a meestr‟ Andreu, des antano que o outro morreu. E outras artes sab‟ el mui melhor que estas todas de que vos falei: diz das aves en como vos direi: que xas fezo todas Nostro Senhor; e dos estormentos diz tal razon: que mui ben pod‟ en eles fazer son todo ome que en seja sabedor. 39 Orraca López vi doente un dia e preguntei-a se guareceria. E disse-m‟ ela, tod‟ en jograria: — Sõo velha e cuid‟ a guarecer. E dixe-lh‟ eu: — Cuidades gran folia, ca i mais vej‟ eu das velhas morrer. E dixe-lh‟ eu: — Gran folia pensades, se per velhece a guarecer cuidades; pero non vos digu‟ eu que non vivades quanto vos Deus quiser leixar viver; mais en velhice non vos atrevades, ca i mais vej‟ eu das velhas morrer. 40 Paai Rengel e outros dous romeus de gran ventura, non vistes maior, guarecerán ora; loado a Deus, que non morreron, por Nostro Senhor, en ũa lide que foi en Josafás: a lide foi com‟ oj‟ e, come crás, prenderan eles terra no Alcor. E ben nos quis Deus de morte guardar, Paai Rengel e outros dous, enton, dũa lide que foi en Ultramar, que non chegaran aquela sazon; e vedes ora por quanto ficou: que o dia que s‟ a lide juntou, prenderam eles port‟ a Mormoion. De como non entraron a Blandiz, per que poderan na lide seer, já os quis Deos de morte guarecer, per com‟ agora Paai Rengel diz; e guareceron de morte poren: que, quando a lide foi en Belen, aportaron eles en Tamariz. 41 Veeron-m‟ agora dizer dũa molher que quero ben, que era prenhe, e já creer non lho quig‟ eu per nulha ren; pero dix‟ eu: — Se est‟ assi, õi-mais non creades per mi, se a non emprenhou alguen. E digo-vos que m‟ é gran mal daquesto que lhi conteceu, ca sõo eu cord‟ e leal, pero me dan prez de sandeu; mais vedes de que ei pesar daquel que a foi emprenhar: de que cuidan que xa fodeu. Pero juro-vos que non sei ben este foro de Leon, ca pouc‟ á que aqui cheguei; mais direi-vos ũa razon: en mia terra, per boa fé, a toda molher que prenh‟ é logo lhi dizen: — Ten baron! POESIA PALACIANA 42 - TROVAS EM UM CAMINHO Os lugares em qu‟andei convosco ledo, e ufano, nesta tristeza os busquei, mas o que neles achei foi a meu dano mor dano. Comecei-lh‟a perguntar que fora daquela grória qu‟ali me viram passar: responderam, sem falar, qu‟estaria na memoria. — “Em qual memória” — pregunto — “pode tal lembrança ser?” — Responderam: “Tudo junto, o próprio e o transunto, na vossa podereis ver”. Na resposta que senti vi meu mal camanho era, vi o que logo me vi: partir deles e de mi para donde não quisera. Comecei de caminhar um caminho povoado, por um mui craro luar que me fazia parar a cada passo pasmado. Pus os olhos nas estrelas, por não ver por donde andava, olhando por todas elas; lágrimas tristes, querelas, escuro tudo tomava. Com lembranças ledas tristes, vim assi fantesiando; fantesias que não vistes, sentidos que não sentistes como nos vinham matando... Mas quem soubera morrer a tal tempo, e tal hora, para não tornar a ver vida tão má de sofrer com‟esta triste d‟agora! Ó vida de minha vida, ó triste grória passada, ó memória entristecida, pois sois tão desconhecida para que me lembrais nada? Esquecei vossas lembranças, deixai-me viver assi sem vossas vãs esperanças, porque com vossas mudanças vivo sem vós e sem mi. 43 - CANTIGA E FIM Lembranças, não persigais a quem já não tem poder mais que quanto vós lhe dais mais suspiros e ais, para chorar e gemer. Ó minha triste memória, ó minha dor não fingida, se lembrar fosse vitória, a quem daríeis mais grória qu‟a quem dais tão triste vida? Mas estas lembranças tais devíeis já d‟esquecer que, se lembram, acordais os meus suspiros, e ais, e meu chorar e gemer. (Francisco de Sousa) porque a causa querer bem, o desejar o efeito: amores que este não tem não me negara ninguém que não têm o ser perfeito. Não digo que o desejar seja no homem primeiro, mas venha por derradeiro, pera se certificar o bem querer verdadeiro; porque quem este não tem, hei por mui certo sinal ou que não quer bem nem mal, ou que quer pequeno bem. E bem se poderá achar desejar sem bem querer, grande bem sem desejar no homem não pode ser; e quem tal conclusão tem contra a minha opinião, vai tão fora da razão, como está de querer bem. Sentir-se-á se se não vir qualquer cousa desejada, mas quem não deseja nada não tem nada que sentir. Ora Vossa Mercê veja qual daquestes mais merece: quem quer bem, e não deseja, ou quem deseja, e padece? ............................................. CONDE DO VIMIOSO VILANCETE 44 - AIRES TELES E CONDE DO VIMIOSO TROVAS QUE MANDARAM O CONDE DO VIMIOSO E AIRES TELES À SENHORA DONA MARGARIDA DE SOUSA SOBRE UMA PORFIA QUE TIVERAM PERANTE ELA, EM QUE DIZIA AIRES TELES QUE NÃO SE PODIA QUERER GRANDE BEM SEM DESEJAR, E O CONDE DIZIA O CONTRÁRIO. Meu amor, tanto vos amo, que meu desejo não ousa desejar nenhuma cousa. Porque, se a desejasse, logo a esperaria; e, se a eu esperasse, sei que vos anojaria. Mil vezes a morte chamo, e meu desejo não ousa desejar-me outra cousa. AIRES TELES AIRES TELES Desejar e bem querer são, Senhora, tão parceiro, que os amores verdadeiros sem ambos não podem ser; Sem outros mais argumentos na sua mesma razão, jaz, Senhora, a confusão de todos seus fundamentos. No que diz contra o que digo nas razões que dei arriba, ele só luta consigo, ele mesmo se derriba. Descansa, triste, descansa, que seus males são vinganças, tuas lágrimas amansa, leixas suas esperanças. Ca pois nascem sem razão, nunca por ela lh‟esperes, lembra-te que são mulheres. VILANCETE Meu amor tanto vos quero, que deseja o coração mil cousas contra razão. Porque, se vos não quisesse, como poderia ter desejo que me viesse do que nunca pode ser? Mas conquanto desespero, é em mim tanta afeição, que deseja o coração. Esforça meu coração, não te mates, se quiseres lembra-te que são mulheres. Lembra-te que por nascer nenhuma que não errasse, lembra-te que seu prazer, por bondade, e merecer. não vi quem dele gostasse; pois não te dês à paixão, toma prazer se puderes, lembra-te que são mulheres. Tuas mui grandes firmezas, tuas grandes perdições, suas desleais nações causaram tuas tristezas. Pois não te mates em vão, que quanto mais as quiseres, verás que são as mulheres. Que te presta padecer, que te aproveita chorar, pois nunc‟ outras hão de ser nem são nunca de mudar? Deixas com sua nação, seu bem nunca lho esperes, lembra-te que são mulheres. Não te mates cruamente por quem fez tão grande errada, que quem de si se não sente, por ti não lhe dará nada. Vive lançando pregão por u fores e vieres, que são mulheres mulheres. PROSA DOUTRINÁRIA - INÍCIO DA PROSA PORTUGUESA Texto ORTO do Esposo. In: NUNES, José Joa45 quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássica, 1970. p. 56-7. [Uma promessa cumprida] [56] Hũa santa uirgem, que auja nome Dorothea, era leuada pera degolar pella fé de Ihesu Christo, e hũu escolastico leterado, que auia nome Theofilo, escarnecendo dela, disse-lhe: — Tu, espossa de Christo, emvia-me do parayso do teu esposo rosas e pomas. E a santa uirgem lhe respondeo: — Certamẽte asy farey. E ella, quando ueo ao luguar onde auja de seer degolada, fez oraçõ a Deus. E, acabada a oraçom a Deus, logo apareceu ante ella hũu menjno, que tragia ẽ hũu pano de linho muy aluo tres maçãas muy nobres e trem rosas muy fremosas. E disse-lhe a santa uirgem: — Rogo-te que leues esto a Theofilo e dilhe: Ex aquelo que pidiste a Dorothea que te emviasse do parayso do seu esposo. E a santa uirgem foy degolada e acabou seu marteyro. E Theofilo estaua recontando e prometimẽto que lhe fezera a santa uirgem, escarneçendo della. E aque o menino chegou ante elle cõ o pano do linho aluo ẽ que tragia aquellas maçãas marauilhosas e as rossas muy fremosas e dise-lhe: — Iirmãao, ex aquj aquello que te prometeu a uirgẽ muy santa Dorothea, que te emuija do parayso do meu esposo. [58] E entõ Theofllo tomou as pomas e as rosas e braadou muy grande uoz, dizendo: — Uerdadeiro Deus he Ihesu Christo. E diseron-lhe os companheyros: — Ensandeces ou dizes esso em jogo? Respondeu Teofilo: — Eu nõ soom sandeu, nẽ ey talante de jogo, mais creo uerdadeyramẽte que Ihesu Christo he uerdadeyro Deus, ca agora he o mes de feuereyro e toda esta terra de Capadocia he cuberta de geada e de friu o nõ ha em ella folhas verdes nẽ flores nehũas, pois donde pensades que ueerõ estas maçãas con suas folhas e estas rosas tam fremosas? E elles diserom: — Esso nõ sabemos nós. E Theofilo lhes disse: — Eu faley a Dorothea, quando a leuauã a degolar, e dise-lhe em escarnho: Molher, hu te uaas? E ella me disse: uou-me para o meu amigo e meu esposo Ihesu Christo, que me conujda pera muy santas uodas e muy solempnes manjares para o seu parayso. E eu lhe disse como a sandia: Quando fores em esse parayso, ẽuja-me das rosas e das maçãas. E ella me prometeu que o farya. E agora, tanto que foy degolada, ueeo a mi hũu menjno, que me parece que nõ he mais de idade de quatro ãnos, e chamou-me a de parte e falou-me tam perfectamente que a mö parecia soer eu rustico ante el e amostrou-me e deume este pano cõ estas tres rosas e tres maçãas e disemo: Aquella uirgem santa Dorothea te ẽuja esto, asy como o prometeu, estas doas do orto do seu esposo. E, tanto que as eu tomey e começey de braadar, logo aquelle moço nõ pareçeu mais, e eu creo que era angeo de Deus. E logo Theofilo começou a braadar: — Bem auẽturados som aquelles que creem em Ihesu Christo, e aquelle que dá a elle a sua fé he uerdadeyro sabedor. E degolarõ-no con outros e foy-se pera o parayso do deleyto, que he eno çeeo. E asy mostrou este leterado a sua doutrina par paçiençia, ca, segundo diz hũu santo padre, a doutrina do barõ conheça-sse pela paciẽçia, ca, quanto o homẽ he meos paciẽte, tanto se mostra por meos ẽsinado. (Do Orto do esposo, códice alcobacense n.º 273/198, fols. 22 e V.). molher, e o omem bom lhe dezia todas as palavras que ho podiam comfortar, e a molher lhe dezia toda trayçam, qua ella ho descomfortaua em corpo e em alma. E, quando veo aos sete dias, veo ho homem bom da nao e dise-lhe que se lhe achegava ho prazo de ser lyvre, se se soubese guardar e ter-se comtra ho diabo. E elrey lhe dise: [75] — Senhor, como me saberya eu bem guardar? E ele lhe dise: — Se te oje toda via poderes guardar de asanhares teu Senhor, tuu seras lyvre de todos os penares e de todas estas más trevas que te am de vir, se te nom guardares de crer comselho que seja comtra sua vomtade. E, quamdo d‟aquy pasares, averás pasadas as gramdes trebulações. Emtam se foy o senhor da barca e elrey ficou muy ledo e pôs bem em seu coraçam que já, por causa que visse, nom se partysse da pena. Asy esteue, até que foy ora de noa. Entam oulhou por ho mar e via vyr hũa muy gramde nao e muy rica, mas nam via hy homem nem molher. A nao era muy formosa e guarnyda de muy fermosas cousas e veyose direyto a pena, e, tamto que chegou, começou-se hu mao tempo e (a nao chegou a pena o tempo) começou a fazer trovõis, chuveiros tam fortemente que parecia que a pena querya cair, e nom ouvera homem que ho vise que nom cuydase que se vinha afim. Elrei estaua na pena e a chuva ha ferya de todas partes e nom sabia omde me fosse escomder, que a parte da pena omde a coua era cayra e a tempestade cada vez era mayor, os coryscos muy ameude cayam e tam desamparado era ellrey que nũnca d‟aquele perygo cuydou escapar. Asy sofreu elrey ho tromento do vemto e da chuva e dos coryscos no corpo e na alma, mas por yso nom se quys acolher a nao, nem leyxar a pena; tamto sofreo, atá que o tempo estiou e o soll começou a esclarecer, e entam foy muy ledo. E emtam veio hũa tam grarnde quemtura que parecia que a pena querya arder, e, se ante elrrey sofreo pena, mjll tamto lhe foy esta. Via amte ey a nao toda aparelhada de boas camaras, omde, se hy emtrasse, poderia bem sofrer a gramde quemtura, Texto JOSEP ab Aramatia. In: NUNES, José Joa- mas ele duvidou tamto a sanha de seu Senhor que 46 quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: pôs em seu coraçam de amte sofrer morte que leyxar a pena. Clássica, 1970. p. 74-79. Com muyta paciẽçia sofreo elrey esta quemtura, atá que a cabeça lhe esuaeçeu e nom se Um episódio do Josep ab Aramatia pode ter e caio esmorecido. E, quamdo hacordou, ergeo hũ pouco a cabeça, pera ver se ho tempo DOS GRAMDES TRABALHOS QUE amamsara. E, quamdo via que era temperado, asy MORDAYMNA PENA PASSOU E DAS como avia de ser amte ora de nona e besporas, foy TENTAÇÕES QUE O DIABO LHE FEZ E DO muy ledo. Emtam prouou se se poderya herguer com QUE LHE DEOS DISSE [74] Em esta maneyra foy elrey na pena e cada a cabeça que lhe esuaeçera e, quaindo se ouve de dia ho omem bom da naao vinha ha ele e depois ha alevamtar, nom semtio mall nem dor. E, quamdo se ergeo, maravilhou-se das gramdes avemturas que lhe acomteceram e sofrer tam gramdes trabalhos e nom hos semtir, e as vezes lhe parecia que sonhara e tamto era ledo. Nysto cuydou, atá que foy bespora, e oulhou e vio vir hũa [76] nao muy nuamente aparelhada e vio-[a] muy rica, e, quamdo se foy chegamdo, vio no castelo d‟avamte hir dons escudos e conheceu que hũu era ho seu e o outro de seu cunhado Naçeram e maravilhou-se e começou muyto ha cuydar, tamto que se esqueçeo, e logo ouvio rimchar hũ cavalo e escarvar com as mãos tamto que pareçia que brytava a nao, ho que elrey ouvio muj bem, e pareçeo-lhe no rimchar que haquele era ho seu cavalo, que ele guanhara de Tolomer, na batalha de Orcanze. Muyto se maravilhou elrey do cavalo e dos escudos que via em estranha terra e que aventura poderya ser que ally os trouxese. E nesto a nao chegou tamto que emcorou na pena e elrey se hergeo e vio muy fermosa gemte. Emtam veo hũ homem fora, que mais parecia cõ hũ seu irmão que lhe mataram em hũaa batalha. E, quamdo ho vio, foy muy ledo comtra ele, mas vio-lhe fazer muy mao comtynemte, em tamto que muyto fez perder a elrey de sua alegrya e toda via ho foy abraçar e pregũtou-lhe por que fazia tam triste gesto, e ele lhe disse: — Senhor, nam posso fazer menos, qua vos perdestes dons amigos, os mylhores que numca tyvestes no mumdo, eu e Naçeram, voso cunhado, que vede-lo aquy na nao en hua cama. Quamdo elrey ysto ouviu, cayo esmorecido e, quamdo acordou, dise-lhe que lho mostrasse e deu brados, como homem samdeu, e tornou outra vez a cair esmorecido. E ho homem ho tomou por a mão esquerda e o levou a nao. Quamdo elrey foy na nao, vio hũ leyto e ergeo hũ pano e vio hu corpo que bem cuydou que era Naçeram, e caio emtam esmoreçido de sorte que, quem ho vira disera que nom escaparya. E, quamdo acordou, quys pregumtar ao cavaleiro em que forma Naseram morrera e teve olho a pena e vio-se muy alomgado, tamto que hapenas a podia ver. E, quamdo ysto vio, [caio] esmorecido e, quamdo acordou, bemzeo-se, e, tam azinha como ouve feyto o synall da cruz, nam vio homem nem molher na nao, nem no leyto. E, quãdo vio como ho negoçio hia, começou muy feramente a chorar, e dise: — Senhor Deus, ora me guardey mall comtra vós e agora sey que vos fize torto, e, se me mall vier, bem ho mereçy. E, tam azynha como ysto disse, vio na proa da nao aquele homem que ele vi[r]a na barca fermosa da prata e que toda a semana lhe dissera as boas palavras. E, tamto que o vio, dyse-lhe choramdo: — Ay, Senhor, como me emganou haquele de que vós me mamdastes gardar! E ho omem lhe dise: [77] — Nom chores, mas guar-te de fazeres pior. E elrey lhe preguntou que poderya fazer e ele lhe disse: — Muitas estranhas avemturas verás que te acomteçerám, mas jamais norn comerás nem beberás, atá que nom aches Naseraw, teu cunhado. E virá a ti, como verdadeiro crystam, e, quamdo ho asy vires, emtam sabe que serás livre. E sabe bem que o anho que te eu disse omtem por a menham e o lobo que tu vias nesta nao ho podes ver, e este que te disse como Naseram era morto, este he o diabo, que sempre he lobo comtra as ovelhas de Deus, tamto como comtra o povo de Deus, e este he o lobo que em tua visam te tolhya os bõs mamjares que te ho anho dava, e aquele cordeiro saberás tu muy bem que quer ser, mas esto non será seraá hua vez, e emtam te será descuberta sua visam e o que pode seneficar. Bem sabe que aquele diabo que te meteo na nao foy aquela molher que a ty vinha cada dia e te dezia as más palavras. Ora te vay e olha como te guardes comtra ela ho mylhor que puderes e mylhor que atá‟quy te guardaste, que, se te nom souberes guardar, muy azinha verás cousas que te tornarám a morte perduravell. Emtam se calou, que lhe nom disse mais, e elrey oulhou e nam ho vio e ficou só na nao e o vemto deu na nao e toda a noute e dia a trouxe de quá pera lá. E a outro dia, estamdo elrey na cadeira do mestre, oulhou e vio lomge da nao hu homem, asy como a pé, e, quamdo foi perto, vyo-lhe debaixo dos pés duas aves que os sostynham e o traziam tam lygeyramente como hũa podia mais boar [voar]. E, quamdo veio a nao, emtrou e começou a fazer ho sinall da cruz sobre ha nao e tomou agoa de demtro da nao e lavou toda ha nao de demtro com ambas as mãos, sem cousa falar. E el-rey oulhou e muito se maravilhou que podia ysto ser e por que ho omem deytava ha agoa hasy por a nao. E, quamdo ho omem jsto teve feito, falou ha el-rey e dise-lhe: — Mordaim. Elrey se maravilhou muyto, quãdo se vio nomear por seu nome de bautismo, e lhe respomdeo: — Senhor. E ho homem bom lhe dise: — Sabes quem sam [sou]? — Nem, disse elrey. E o homem bom lhe disse: — Sam teu defemdedor por mamdado de Ihesu Christo; eu sam [sou] Salustes, aquele em cujo nome e em cuja omrra tu fizeste a rica ygreja na cidade de Sarrar, e vym-te comfortar e acomselhar. E emvia-te dizer por mym ho anho, aquele que em tua visão te daua os bõs mamjares que o lobo te tolhia, que tu vemçeste ho lobo, e [78] ysto foy por ho synall da cruz que tu fyzeste sobre ty, quamdo te viste halomgado da pena, e emtam te leixou ho lobo. Este foy ho diabo, que amtes te tolhia os bõs mamjares que ho cordeiro te daua; estas sam as boas palavras que o omen bom da nave te dezia: aquele homen bom era ho cordeiro que em tua visam te dava os bõs mamjares. E sabe que ho anho de Deus, que por ha terreal lynhajem foy sacryfycado, que veo tam mamso a cruz, como ho anho ha morte, este hé Ihesu Christo, filho da Vyrgem. Aquele que cada dia te vinha comfortar, aquele me embiou a ty por te descobryr tua visam asy como te ele mostrou, pera que tu saybas que quer dizer. Tuu viste de teu sobrynho sair hu laguo e dele sai[re]m nove rios e os oyto eram todos ygaes, e o noveno, que derradeiro naçera, era tam formoso e tam gramde como todos os outros, e o lago era muy fermoso e muy grande, e tuu oulhaste e vyste sobre ty vir hũ omem que tynha semelhança do verdadeiro croxofixo, e, quamdo deçeo, emtrou no lago e lavou nele os pes e as pernas e outro sy em todos os outros oyto rios, e no nono se lavaua todo. Aquele lago e teu sobrynho em que Ihesu Christo banhara seus pes e suas pernas tamto quer dizer que ele era de tam boa vida que sera verdadeyro na samta fé, do quall sairám os nove rios. Estes serã nove homẽs que dele decemderám e nom serám todos seus filhos, amtes decemderárn de hũu e do outro por geraçam e todos oyto seram ygaes de bomdade e de vida, pero ho oytauo nom será no começo de tall vida, mas se-lo-ha depois, ho noveno sera de muy mayor alteza de vida que todos, e, por que de todas bomdades vemcerá os outros, por ysso banhará Ihesu Christo nele todo o seu corpo, ysto nam vestido, mas nuu, que ele se espirá amte ele de tall maneyra que lhe mostrará todas as suas porydades, que ele nũqa ha omen descobryo. Aquele será cõprydo de todas as bomdades que em coraçam de homem deva d‟aver e pasará de armas todos aqueles que amte ele fora e serám; aquele será aquele de quem ho amygo falou em Sarrat, quamdo feryo Josefes com a lamça da vimgança, quamdo disse que jamais as maravilhas do Greall nom seryan descubertas senam a hu homem soo; aquele será o noveno dos que decemderám de teu sobrynho e será tall como te eu digo, mas ho gramde mylagre e as gramdes vertudes que acomtecerám aly omde ho seu corpo jazerá nom seram sabidas, porque naquele tempo saram muy poucos que saybam verdadeiros synaes de sua sepultura. Agora te faley já de tua visan, ora te quero falar desta nao e porque deytey por ela agoa, que esta naao foy do diabo, que tu por ho synall da cruz deytaste e, por que foy sua, nom podia ser que algũa vez ha ela nom viesse, senom fosse lympa, e agora sé lympaa por a agoa e por ho synal da cruz e por ho comjuramento da Samta Trymdade asy que nenhu maao esprito nela emtrará, que elles nenhua cousa, tamto temem como ho synal [79] da cruz (he bemzia no nome do Padre e do Filho e do Esprito Santo) e por esta bemçam fica lympa de toda a sogidade [sujeira], e em quall quer lugar que ysto com boa fé fycar ja o diabo nam será ousado que hy vaa. Em tall maneyra faze e serás seguro que, no lugar omde ho fizeres, o diabo nom terá poder de fazer mall a teu corpo, nem tua alma nom será perdida. Emtam se calou ho samto homem e partio-se dele e elrey ficou na náo, asy como ouvydes. (Capítulo LXVI do códice n.º 643 existente no Arquivo da Torre do Tombo, fols. 105 a fols. 110). Texto LAPA, Rodrigues (sel.). A morte de 47 Genevra. In: Crestomatia Arcaica. 4. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1976. 89p. p. 4852. [48] A morte de Genevra15 Eu esta parte diz o conto que, pois a rala Genevra entrou en orden con pavor dos filhos de Morderet, ela foi sempre mui viçosa de todolos viços16 do mundo; onde avẽo que, pois ouve de sofrer as lazeiras17 da orden, que non avia eu custurne, caeu logo en camanha enfermidade que todos aqueles que a vian avian maior asperança en sa morte ca en sa vida. E ela avia consigo hũa donzela de gran guisa e que presera18 orden por amor dela. Aquela donzela fora entendedor de Giflet, filho de Dondinax. E porque a rala ouvira dizer que Giflet tevera mais longamente companha a rei Artur ca outro cavaleiro, amava tanto a companha desta donzela que non podia mais. E confortavan-se antre si e choravan muito [49] ameúde, quando lhis lembrava os grandes viçose a grande alteza e grande poder eu que foran, e ora eran en orden, con pavor da morte. A raöa, como quer que fosse eu orden, non quedava19 de fazer 3 por Lauçalot e que non dissesse algũa vez: — Ai, meu senhor Lançalor, don Lançalot, e como vos esqueci, que amais nunca 15 p. 48, nota: É dos últimos capítulos da Demanda e, sem dúvida, um dos mais belos e menos conhecidos. A rainha Genevra, mulher do rei Artur, estava ligada a Lançarote do Lago, o melhor cavaleiro do mundo, por um amor da carne e dos sentidos, pecaminoso, embora sublimado pelo ideal do amor cortês. No pequeno episódio da sua morte, numa abadia em cuja austeridade amortecera os «viços» de mulher cortesã, nem sequer falta o pormenor do ciúme, personificado naquela monja que amara também Lançarote e resolve vingar-se da feliz rival, fazendo-lhe crer que o seu amigo morrera num naufrágio. Essa mentira cruel foi uma punhalada no coração doente de Genevra, coração esse que ela manda, após sua morte, arrancar do peito e oferecer num elmo ao homem que ela amara acima de tudo. 16 Prazeres. 17 Agruras. 18 Tomara. 19 Não deixava. cuidei que vós me leixássedes! Se vós catássedes20 a vossa bondade e o vosso prez, e er21 o gran poder que Deus vos deu, lembrar-vos-íades algũa vez de min e vingaríades a morte de rei Artur e conquistatíades o reino de Logres e alegraríades-mi desta cuita eu que soõ e deste poder alheo eu que soõ, eu que me meti con pavor de morte. Esto dizia a raia de Lançalot, u jazia doente, e a donzela a confortava muito quanto ela podia. E dizia que non ouvesse pavor, ca ben soubesse verdadeiramente que Lançalot non tardaria muito que non veesse, que já ela ende22 ouvira novas. E a raöa respondeu: — Sobejo me tarda, e sei que eu sa tardança tenho morte. Eu aquela abadia avia hfia monja que entrara eu orden porque entendera eu Lançalot e uon na quisera, e desamava a raia mui de coraçon, porque a leixara Lançalot por amor da raöa. E pensou que, pois ela non podia vingar sa sanha en Lançalot, que a vingaria en a raöa. Uũ dia avẽo23 que disse esta dona aa amiga de [50] Giflet, aquela que a raöa guardava, e fez sembrante que non queria que a raöa a ouvisse: — Ai, donzela, maas novas vos trago! Don Lançalot, que viöa con gran poder por conquerer o reino de Logres, perdeu-se no mar con toda sa gente. — Par Deus — disse a amiga de Giflet — gran perda é essa. Mas como o sabedes vós se é verdade? — Eu o sei ben — disse ela — por aquel que o viu. A raöa, que jazia doente, quando ouviu estas novas ouve tan gran pesar, que a poucas que non foi sandia; pero encubriu-se ben, con pavor daquela que as novas dizia. E, pois se partiu, disse a raöa con gran pesar: — Ai, mar amargoso e maldito, comprido de amargura e de door, néicio, mao e desconhoçudo, mal m‟ás morta, que vós à mais leal amador do mundo tolhestes seu amor. Pois disse esto, calou-se con tan gran pesar, que non pôde mais comer nen bever; e jouve24 assi três dias. Ao quarto dia veeron novas que Lançalot, sen falha25, aportara na Grã-Bretanha con tan gran cavalaria e tan bõa, que non a omen no mundo que o ousasse atender en campo. A donzela que a raöa guardava foi mui leda quando estas novas ouviu, e foi-se correndo aa raia e disse-lhi: — Senhora, muito vos trago bõas novas. 20 Se olhásseis para. E também. 22 Disso. 23 Sucedeu. 24 Jazeu. 25 Sem dúvida. 21 [51] Sabede verdadeiramente que don Lançalot é na Bretanha con tanta gente que, en pouca sazon, a correrá toda. A raöa, que preto estava de morta, quando estas novas entendeu, respondeu a grande afã26: — Donzela, tarde mo dissestes e já me non vai ren sa viöda, ca eu soõ preto de morta. Mas pero, porque don Lançalot é o homen do mundo que eu mais amo, rogo-vos que façades, polo meu amor e o seu, o que vos quero rogar. — E ela lhi prometeu lealmente que o faria a todo seu poder. — Pois ora vo-lo direi — disse a rala. — Eu bem vejo que soõ morta e non ei crás a cheguar aa manha; e ben vos digo que nunca foi27 leda tanto de novas como destas. E de outra parte, pesa-me sobejo que o non posso veer ante que moira; ca me semelhalo que, se o visse, que mia alma seeria mais leda. E porque eu quero que ele veja e saiba que de sa vida mi praz e que moiro con pesar e que de grado o queria veer, se podesse, porén eu vos rogo que, tan toste28 que eu moira, que me tiredes o coraçon e que lho ievedes en este elmo que foi seu; e que lhi digades que, en renembrança de nossos amores, lhe envio o meu coraçon, que nunca el o esqueceu. [52] Aquel dia mesmo, passou a rainha Genevra e a donzela fez seu mandado; pero non achou Lançalot, e por esto non acabou todo o que lhe mandara a rainha. 48 - CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES [25] CAPITULO VII Como o Primçipe de Galles emviou a elRei Dom Hemrrique huuma carta, e das razoões comtheudas em ella. SABEMDO elRei Dom Hemrrique como elRei Dom Pedro e o Primçipe de Galiez hiam caminho do Gronho por passar o tio Debro, partio domde estava e foisse pera Najara; e pos seu arreal aaquem da villa, em guisa que o rio de Najara estava o seu arreal, e o caminho per hu elRei Dom Pedro avia d‟hir. ElRei Dom Pedro e o Primçipe com sas gentes partirom do Gronho, e veherom pera Navarrete; e dalli emviou o Primçipe a ElRei Dom Hemrrique huum seu arauto com huuma carta, que dizia assi. «Eduarte filho primogenito delRei «de Imgraterra, Primçipe de Gallez, e de Guiana, e duque de Cornoalha, e Comde de Cestre: Ao nobre e 26 27 28 Ansiedade. Fui alegre. Tão logo que. poderoso Primçipe Dom Hemrrique comde de Trastamara: Sabee que nestes mas passados o muj alto e muj poderoso Primçipe Dom «Pedro, Rei de Castella e de Leom, nosso muj caro e muj amado paremte, chegou aas partes de Guiana, omde nos estavamos, e fez nos emtemder, que quamdo elRei Dom Affonsso seu padre morreo, que todollos poboos dos reinos de Castella e de Leom paçificamente ho tomarom por seu Rei e senhor; amtre os quaaes vos fostes huum dos que assi lhe obedeçerom, e estevestes gram tempo em sua obediemçia. E diz que depois desto, pode ora aver huum ano, vos com gemtes estranhas emtrastes em seu reino e lho teemdes ocupado per força, chamamdovos Rei de Castelia, tomamdolhe seus tesouros e remdas, dizemdo vos que o deffemderees del, e [26] «daquelles que o ajudar quiserem; da qual cousa fomos muj maravilhado, que huum tão nobre homem como vos, e de mais filho de Rei, fezessees cousa vergomçosa comtra vosso Rei e senhor. E o dito Rei Dom Pedro emviou mostrar estas «cousas a elRei de Imgraterra, meu senhor e padre, e lhe reque«rio que pollo gram divedo de linhagem que amtre as casas Dingraterra e de Castella ouverom em huum, des i pollas ligas e amizades que com o dito Rei meu senhor e comigo «tijnha feitas, o quisesse ajudar a cobrar seu reino e senhorio. ElRei meu senhor e padre veemdo que elRei Dom Pedro seu paremte lhe emviava pedir cousa justa e razoada, a que todo Rei deve dajudar, prouguelhe fazello assi, e mandounos que «com todos seus vassalos e amigos ho ouvessemos ajudar, segumdo a sua homrra perteemçe; polla qual razom fomos aqui chegados, e estamos em este logar de Navarrete, que he nos termos de Castella. E porque se voomtade de Deos fosse de se escusar tam gramde espargimento de sangue de Christaãos, como he per força de i aver, se a batalha se fezer, de que Deos sabe que a nos pesa mujto: vos rogamos e requirimos da parte de Deos e do martir Sam Jorge, que se vos praz que nos seiamos boom medianeiro antre o dito Rei Dom Pedro e vos, que nollo façaaes saber, e nos trabalharemos como vos ajaaes em seus reinos, e em sua boa graça emerçee tam gram parte, per que muj abastadamente possaaes manteer vosso boom e homrrado estado: e se alguumas outras cousas emtemdees de livrar com elle, com a merçee de Deos emtendemos de poer hi tal meo, como vos seiaees de todo bem comtento. «E se vos disto nom praz e querees que se livre per batalha, sabe Deos que nos despraz e o muj to; pero nom podemos «escusar de hir com elRei Dom Pedro nosso paremte e antigo «per seu reino: e se nos alguuns quiserem embargar o caminho, nos faremos mujto polio ajudar com aajuda e graça de Deos. Scripta em Navarrete, vila de Castella, primeiro dia dabril.» [27] CAPITULO VIII Da reposta que elRei Dom Hemrrique emviou ao Primçipe per sua carta. ELREI Dom Hemrrique veemdo esta carta reçebeo bem o arauto, e deulhe panos douro e dobras; e ouve comselho como respomderia ao Primçipe, por que alguuns diziam que pois lhe nom chamara Rei, que lhe escprevesse per outra maneira; des i acordarom que lhe escprevessem cortesmente, e foi a carta em esta forma. «Dom Hemrrique pela graça de Deos Rei de Castella e de Leom: Ao muj alto, e muj poderoso «Primçipe Dom Eduarte, filho primogenito delRei de Ingra«terra, Primçipe de Gallez, e de Guiana, e duque de Cornoalha, e comde de Cestre: Reçebemos per huum arauto vossa carta, na qual se contijnham mujtas razoões que vos forom ditas por esse nosso aversairo que hi he; e nom nos pareçe que fostes bem emformado, como assi seia que nos tempos passados elle regeo estes reinos de tal maneira, que todollos que o sabem e ouvem se podem maravilhar de tanto tempo seer sofrido no senhorio que teve. E todollos dos reinos de Castella e de Leom, com gram dampno, e trabalho, e mortes, e perigos, e mallezas «que seeriam Iomgas de comtar, soportarom ataaqui seus feitos, «os quacs nom poderam mais emcobrir nem sofrer; e Deos «por sua merçee avemdo piedade de todollos destes reinos, por tam gramde mal nom hir mais adeamte, sem lhe fazemdo «nenhuum de sua terra, salvo obediençia qual devia. E estamdo todos com ele em Burgos pera o servir e ajudar a deffemder «seus reinos, deu Deos semtemça comtra elle, e de sua [28] voom|tade propia os desemparou e se foi; e todollos de seu senhorio «ouverom muj gramde prazer, teemdo que Deos emviara sobrelles a sua misericordia, por os livrar de tam duro e tam «perijgoso senhorio que tijnham: e todollos dos ditos reinos, assi prellados come cavalleiros e fidallgos, e çidadaãos de sua «voomtade veherom a nos, e nos reçeberom por seu Rei e senhor: assi que entemdemos per estas cousas sobreditas que esto foi obra de Deos. E por tanto pois per voomtade de Deos, e de todollos do reino nos foi dado, vos nom teemdes «razom por que nos ajaaes destorvar; e se batalha ouver de «seer, sabe Deos que nos despraz dello, pero nom podemos escusar de poer nosso corpo por defemder estes reinos, a que tam teudos somos, aaquel que comtra elles quer seer; e por emde vos rogamos e requirimos da parte de Deos, e do apostollo Samtiago, que vos nom queiraaes tremeter assi podero«samente de em nossos reinos fazerdes dampno, ca fazemdoo, nom podemos escusar de os deffemder. Scripta no nosso arreal açerca de Najara, segumdo dia dabril». Mostrou o Primçipe esta carta a elRei Dom Pedro, e disserom que estas razoões nom eram abastamtes pera se escusar de nom poer logo a batalha; e pois todo era na voomtade de Deos, que como sua merçee fosse, que assi o livrasse. [29] CAPITULO IX Como se fez a batalha amtre os Reis ambos, e foi vemçido elRei Dom Hemrrique. JA ouvistes como elRei Dom Hemrrique tijnha seu arreal posto per homde avia de vijnr elRei Dom Pedro, de guisa que o rio de Najara estava amtre huuns e os outros; e ouve estomçe seu comselho de passar o rio, e poer a batalha em huurna gramde praça, que he comtra Navarrete, per homde os enimijgos aviam devijnr; e desto pesou a mujtos dos seus, por que tijnham aa primeira seu arreal posto com moor avamtagem, do que o depois teverom: mas elRei Dom Hemrrique era homem de gram coraçom e esforço, e disse que nom quina poer batalha, salvo em na praça chaã sem avamtagem nenhuma. E elRei Dom Pedro e o Primçipe com todas suas companhas partirom de Navarrete sabado pella manhaã, e poseromsse todos pee terra ante huuma gram peça que chegassem aos delRei Dom Hemrrique, hordenados em batalha, segumdo avemos comtado. ElRei Dom Hemrrique isso meesmo hordenou sua batalha na maneira que dissemos; e ante que as batalhas jumtassem alguuns genetes, e o pemdom de Santestevam com homeens desse logar que estavom com elRei Dom Hemrnique, passaromsse pera elRei Dom Pedro. Em esto moverom as batalhas, e chegarom huuns aos outros; e o comde Dom Samcho delRei Dom Hemrrique, e Monsse Beltram, e todollos cavalleiros que estavom com o pemdom da bamda, forom ferir na avanguarda homde vijnha o Duque Dalancastro, e o comdeestabre; e os da parte delRei Dom Pedro e do Pnimçipe [30] tragiam todos cruzes vermelhas em campo bramco, e os delRei Dom Hemrrique levavam esse .dia bamdas: e assi de voomtade juntarom huuns com os outros, que cahirom as lamças a todos, e começarom de se ferir aas espadas, e ochas, e porras, chamando os da parte delRei Dom Pedro, Guiana Sam Jorge, e os delRei Dom Hemrrique, Casteila Samtiago; e tam rijamente se ferirom, que os da avamguarda do Primçipe se começarom de retraer quamto seeria huuma passada, e forom alguuns delles derribados, em guisa que os delRei Dom Hemrrique cuidarom que vemciam, e chegaromse mais a elles, e começaromsse outra vez a ferir. Dom Tello irmaão delRei Dom Hemrrique, que estava de cavallo da maão ezquerda da avanguarda delRei Dom Hemrrique, nom movia pera peileiar, que foi huum gramde aazo de se perder a batalha, e por que lhe elRei. Dom Hemrrique depois sempre quis mal; e os dalla dereita da avamguarda do Prinçipe aderemçarom comtra Dom Tello, e ei e os que com ei estavom nom os ousarom datemder, e moverom do campo a todo romper, seguindoos os daquella alia que hiam a Dom Tello; e veemdo que lhe nom podiam empeencer, tornarom sobre as espaldas dos que que estavom de pee na avamguarda delRei Dom Hemrrique, com o pemdom da bamda que pdlleiavom com a avamguarda do Primçipe, e ferimdoos pelas espalidas começarom de matar delles; e isso meesmo fez a outra alia da maão seestra da avanguarda do Primçipe, depois que nom achou gentes de cavallo que pelleiassem com elles: assi que alli era toda a pressa da batalha, seemdo Dom Samcho e os outros todos çercados de cada parte dos emmijgos; porem o pemdom da bamda aimda nom era derribado. E elRei Dom Hemrrique come ardido cavalleiro, chegou per vezes em cima de seu.cavallo, armado de loriga, alli hu era a pressa tam gramde, por acorrer aos seus, teemdo que assi o fariam os outros que estavom com ei de cayallo: e quando vio que os seus nom pelleiavom, nom pode sofrer os emnújgos, e ouve de volver costas e todollos de davallo que com ei eram, e desta guisa se perdeo a batalha. E afirmasse, se he verdade, que seemdo a batalha da sua parte bem pelleiada/ era gram duvjda nom seer elRei Dom Pedro desbaratado; e assi mal como ela foi, se nom fora o gramde esforço e ardideza do Primçipe e do duque Dalancastro, que eram estremados homeens darmas, aimda o vemçimento dela esteve em gramde avcmtuira; e forom mortos [31] dos de pee que aguardavom o pemdom da bamda, e antre cavalleitos e homeens darmas ataa quatro çemtos, e presos outros znujtos, assi como Dom Samcho, e Monsse Beltram, e o mariscal, e Dom Filipe de Castro e outros, cujos nomes Ieixamos por nom alomgar. E dos de cavallo forom isso meesmo presos o comde de Denja, e o comde Dom Affonsso, o comde Dom Pedro, e o meestre de Callatrava e outros que dizer nom curamos: e forom mortos no emcalço ataa villa de Najara mujtos delRei Dom Hemrrique, ë matou elRei Dom Pedro depois per sa maão, teemdo preso hum cavalleiro do Primçipe Inhego Lopez de Orozco; e fez matar Gomez Carrilho de Quinitina, camareiro moor delRei Dom Hemrrique, e Sancho Sanchez de Orozco, e Garçia Jofre Tenoiro, que forom presos na batalha, e teveromno todos a mal; e foi esta batalha vemçida sabado de Lazaro, seis dias dabril, da era de Cesar de mil e quatro çemtos e çimquo annos. A DEMANDA DO SANTO GRAAL MEGALE, Heitor (ed.). A Demanda do Santo Graal. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. 538p. [25] I Galaaz é armado cavaleiro 1. Véspera de Pentecostes, houve muita gente reunida em Camalote, de tal modo que se pudera ver muita gente, muitos cavaleiros e muitas mulheres de muito bom parecer. O rei, que estava por isso muito alegre, honrou-os muito e fez servi-los muito bem e toda coisa que entendeu que tornaria aquela corte mais satisfeita e mais alegre, tudo mandou fazer. Aquele dia que vos digo, exatamente quando queriam pôr as mesas, — isto era hora de noa — aconteceu que uma donzela chegou muito formosa e muito bem vestida; e entrou no paço a pé, como mensageira. Ela começou a procurar de uma parte e de outra pelo paço; e perguntaram-lhe o que buscava. — Busco, disse ela, dom Lancelote do Lago. Está aqui? — Sim, donzela, disse um cavaleiro. Vede-o: está naquela janela falando com dom Galvão. Ela foi logo para ele e saudou-o. Ele, assim que a viu, recebeu-a muito bem e abraçou-a, porque aquela era uma das donzelas que moravam na ilha da Lediça a quem a filha Amida do rei Peles amava mais que a donzela da sua companhia. 2. Como a donzela disse a Lancelote que fosse com ela. — Ai, donzela! disse Lancelote, que ventura vos trouxe aqui? Que bem sei que sem razão não viestes. — Senhor, verdade é; mas rogo-vos, se vos aprouver, que vades comigo àquela floresta de Camalote; e sabei que amanhã, à hora de comer, estareis aqui. — Certamente, donzela, disse ele, muito me agrada, pois tenho obrigação de vos servir em tudo que puder. Então pediu suas armas. E quando o rei viu que se fazia armar com tanta pressa, dirigiu-se a ele com a rainha e disse-lhe: — Como? Deixar-nos quereis em tal festa, quando cavaleiros de todo o mundo vêm à corte, e muito mais ainda por vos verem que por outro motivo: uns para vos verem, e outros por terem vossa companhia? — Senhor, disse ele, não vou senão a esta floresta, com esta donzela que me pediu, mas amanhã, à hora de terça, estarei aqui. 3. Como Lancelote se foi com a donzela. Então saiu Lancelote do paço e montou seu cavalo, e a donzela, seu palafrém, e haviam ido com a donzela dois cavaleiros e duas donzelas. E quando ela voltou a eles, disse-lhes: [26] — Sabei que consegui aquilo por que vim: dom Lancelote do Lago há de ir conosco. Então puseram-se a andar e entraram na floresta, e não andaram muito por ela que chegaram à casa do ermitão que costumava falar com Galaaz. E quando ele viu Lancelote ir e a donzela, logo soube que ia para fazer Galaaz cavaleiro, e deixou sua ermida para ir ao mosteiro das mulheres, porque não queria que Galaaz fosse antes que ele o visse, porque bem sabia que se ele partisse dali, não voltaria, porque lhe conviria, assim que fosse cavaleiro, entrar nas aventuras do reino de Logres. E por isso lhe parecia que o havia perdido e que o não veria amiúde e temia, pois tinha por ele muito grande estima, porque era santa cousa e santa criatura. 4. Como Lancelote chegou à abadia. Quando chegaram à abadia, levaram Lancelote a uma câmara e o desarmaram. E veio a ele a abadessa com quatro mulheres, e trouxe consigo Galaaz, tão formosa pessoa que maravilha era. E andava tão bem vestido que não podia melhor. E a abadessa chorava muito com prazer, assim que viu Lancelote, e disse-lhe: — Senhor, por Deus, fazei nosso novo cavaleiro, porque não queríamos que fosse cavaleiro por mão de outro; porque melhor cavaleiro que vós não o pode fazer cavaleiro; porque bem cremos que ainda será tão bom, que vos achareis bem por isso, e será vossa a honra de o fazerdes, e se ele vos isto não pedisse, vo-lo deveríeis fazer, pois bem sabeis que é vosso filho. — Galaaz, disse Lancelote, quereis ser cavaleiro? E ele respondeu vivamente: — Senhor, se vos aprouvesse, bem o queria ser, porque não há cousa no mundo que eu tanto deseje como a honra de cavalaria e ser cavaleiro da vossa mão, porque de outro o não queria ser, que vos ouço tanto louvar e prezar de cavalaria, que ninguém, no meu entender, podia ser covarde e mau, que vós fizésseis cavaleiro. E isto é uma das cousas do mundo que me dá maior esperança de ser homem bom e bom cavaleiro. — Filho Galaaz, disse Lancelote, estranhamente vos fez Deus formosa criatura. Por Deus, se não cuidásseis ser bom homem ou bom cavaleiro, assim Deus me aconselhe, sobejo seria grande dano e grande desventura não serdes bom cavaleiro, porque sobejo sois formoso. E ele disse: — Se me Deus fez formoso, dar-me-á bondade, se lhe aprouver, porque de outro modo valeria pouco. E ele quererá que eu seja bom e coisa que semelhe minha linhagem e aqueles de quem eu [27] venho; e posta hei minha esperança em Nosso Senhor; e por isso vos rogo que me façais cavaleiro. E Lancelote respondeu: — Filho, pois vos apraz, eu vos farei cavaleiro. E Nosso Senhor, assim como a ele aprouver e o poderá fazer, vos faça tão bom cavaleiro como sois formoso. E o ermitão respondeu a isto: — Dom Lancelote, não tenhais dúvida de Galaaz porque vos digo que em bondade de cavalaria, os melhores cavaleiros do mundo passará. E Lancelote respondeu: — Deus o faça assim como eu queria. Então começaram a chorar de prazer quantos no lugar estavam. 5. Como Galaaz prometeu ao ermitão o que lhe pedia. Aquela noite, ficou Lancelote ali e fez Galaaz vigília na igreja. E o ermitão, que sobejo amava Galaaz, velou toda aquela noite e não parou de chorar porque viu que havia de separar-se dele. Quando veio a manhã, disse a Galaaz: — Filho, coisa santa e honrada, flor e louvor de toda a mocidade, outorga-me, se te apraz, que te faça companhia por toda a minha vida enquanto te puder seguir, desde que partires da corte de rei Artur, porque bem sei que não demorarás lá mais que um dia, porque a demanda do santo Graal começará, assim que lá chegares. E eu te peço tua companhia, assim como tu ouves que conheço tua santa vida e tua bondade, mais que tu mesmo. E não conheço no mundo coisa que tanto pudesse confortar-me, de hoje em diante, como ver tão santo cavaleiro como tu serás e ver as maravilhas como tu verás e a que darás cabo. Porque Deus que te fez nascer em tal pecado como sabes, para mostrar seu grande poder e sua virtude, te outorgou, por sua piedade e pela vida boa que começaste desde a infância até aqui, poder e força e bondade de armas e bravura sobre todos os cavaleiros que, em qualquer época, trouxeram armas no reino de Logres; assim darás cabo a todas as outras maravilhas e aventuras em que todos os outros falharam e falharão. E por isso quero todos os teus feitos saber, a que darás cabo tu, que foste feito em tal pecado, e a que os outros não puderam chegar que foram feitos em leal casamento. Eu te quero fazer companhia, porque sei que em nosso tempo nunca fez tão formosos milagres Nosso Senhor, nem tão conhecidos, como fará por ti. Isto quero eu melhor saber, por ver as grandes aventuras e milagres que Deus por ti fará. E porei por escrito todas as maravilhas que Deus mostrará por teu amor nesta demanda. Filho, outorga-me o que te peço. Que Deus te faça homem bom. [28] 6. Como Lancelote fez Galaaz cavaleiro. Aquele dia, hora de prima, rezada a missa, fez Lancelote cavaleiro seu filho Galaaz, assim como era costume. E sabei que quantos lá estavam agradavam-se de sua aparência; e não era maravilha, porque naquele tempo não se podia achar em todo o reino de Logres donzel tão formoso e tão bem feito; porque em tudo era tal que não se podia achar nada em que o censurasse, exceto que era meigo demais em seu modo de ser. E sabei que, quando Lancelote o fez cavaleiro, não pôde conter-se de chorar, porque sabia que em toda parte era de grande prestígio que não podia maior ser; e via tão pobre festa e tão pequena alegria em sua cavalaria; nem ele podia jamais cogitar que pudesse chegar a tal grandeza como depois chegou. O corpo tinha bem feito e o modo de ser era meigo. 7. Como Lancelote viu Boorz e Leonel que vieram atrás dele. Depois que Lancelote fez quanto a cavaleiro convinha, disse: — Filho Galaaz, agora sois cavaleiro. Deus mande que seja a cavalaria tão bem empregada em vós, como em nossa linhagem. Agora dizei: ireis à corte do rei Artur para onde muitos homens bons de todas as partes do mundo vêm e onde todos os cavaleiros do reino de Logres estão reunidos nesta festa de hoje? E ele disse: — Senhor, irei, mas não convosco; outrem me guiará até lá. — E quando? disse Lancelote. E outros cavaleiros que com ele andavam disseram: — Senhor, pois já cavaleiro é, irá mais cedo à corte do que vós cuidais, porque estará lá muito cedo. — Pois encomendo-vos a Deus, disse Lancelote, porque quero ir à corte, pois à hora de terça, hei de lá estar. Então tomou suas armas e cavalgou; e, quando queria sair do mosteiro, viu, na frente de uma câmara, Boorz e Leonel armados, que também queriam cavalgar; e assim que eles o viram, dirigiram-se para ele e ele lhes disse: — Que ventura vos trouxe aqui? Cuidava que estivésseis na corte. — Senhor, disseram eles, viemos por pavor de vossa morte, porque não partiríeis senão por alguma aflição muito grande. Por isso viemos atrás de vós até aqui e nos ocultamos o melhor que pudemos. Quando soubemos que queríeis voltar à corte, armamo-nos para voltar convosco, e não por outra razão. — Então cavalgai e vamo-nos, disse ele. [29] Então cavalgaram e, indo pelo caminho, perguntou Boorz: — Senhor, quem é este cavaleiro que ora fizestes? — Logo o sabereis, disse Lancelote. Deixai por isso agora a pergunta. Também disse Leonel: — Quem quer que seja, é o mais formoso que alguma vez vi na sua idade e, se for tão bom cavaleiro como é formoso, muito bem lhe fará Nosso Senhor. II Na corte do rei Artur 8. Como Lancelote e Boorz e Leonel chegaram à corte. Assim falando, chegaram a Camalote, e sabei que quantos na corte estavam ficaram com isso muito alegres, porque muito seria a festa menor e mais pobre, se eles nela não estivessem. O rei foi então ouvir missa na Sé em companhia de tantos cavaleiros que ficaríeis maravilhado de os ver. E ele trajava tão rica vestimenta que maravilha era. E com a rainha iam tantas donas e donzelas, que era grande maravilha. E ela e eles ouviram missa e foram para o paço. E aconteceu, entrementes, que, procurando os assentos da távola redonda, acharam: “Aqui deve ser fulano e aqui fulano.” E quando chegaram ao assento perigoso, encontraram letreiro recentemente escrito que dizia: “A quatrocentos e cinqüenta e três anos cumpridos da morte de Jesus Cristo, em dia de Pentecostes, deve haver este assento senhor.” — Por Deus, disse Lancelote, quando esta maravilha ouviu: pois hoje deve haver senhor, porque da morte de Jesus Cristo a este Pentecostes há quatrocentos e cinqüenta e três anos. E bem quereria, se pudesse, que este letreiro ninguém visse, até que viesse aquele que o há de acabar. E eles disseram: — Nós guardaremos bem. Então cobriram o assento com um pano de seda vermelha, assim como os outros estavam cobertos. Quando o rei veio da igreja, a rainha foi para a câmara com todas as suas donzelas e companhia. E o rei perguntou se era hora de comer. — Senhor, disse Quéia, já tempo é de comer, pois já está perto de meio dia; mas se vosso costume, que mantivestes até aqui em todas as grandes festas, quereis manter, não me parece que comer [30] possais, porque em tão grande festa como esta não aconteceu ainda aventura nenhuma; e enquanto aventura não vos acontecesse, não costumáveis comer em nenhuma grande festa. — Verdade é, disse o rei; este meu costume mantive sempre desde que fui rei e manterei enquanto viver. E pelas grandes aventuras que na minha corte acontecem, chamam-me rei aventuroso; e por isso manterei as aventuras, porque, a partir da época em que deixarem de acontecer, bem sei que a Nosso Senhor não agradará que muito eu reine daí em diante. Mas assim como as aventuras costumavam acontecer nas festas grandes, nesta sei bem que no dia de hoje não faltarão, antes acontecerão as maiores e as mais maravilhosas que nunca aconteceram, pois adivinha meu coração isto. Não me incomodo de esperarmos um pouco, pois bem sei verdadeiramente que nossa festa não será hoje sem aventura, mas tive tão grande prazer com a vinda de Lancelote e de seus coirmãos, que me esquecia o costume. 9. Como o cavaleiro caiu da janela bradando. Enquanto o rei isto dizia, dom Lancelote e muitos outros cavaleiros olhavam para umas janelas que davam para um regato e viram lá estar um cavaleiro que era natural de Irlanda, muito fidalgo e bom cavaleiro de armas, de muito grande fama e muito bem vestido. E estava pensando tanto, que ninguém o podia acordar de seu pensar, de modo que não prestava atenção à festa nem à corte. E quando estava assim pensando, deu um grito: — Ai! desgraçado de mim, estou morto! E deixou-se cair da janela e quebrou-lhe o pescoço. E os cavaleiros que lá estavam foram até ele para ver o que era e acharam que lhe saía pela boca e pelas narinas chama de fogo tão forte como se fosse de um forno aceso, e tinha em suas mãos uma carta que lhe escapou. Os cavaleiros pegaram a carta, e o rei chegou lá com seus cavaleiros para ver aquela maravilha. E porque era companheiro da távola redonda, quando o rei viu que estava morto, mandou que o levassem fora do paço, porque não quis que sua corte fosse perturbada com ele. E então o levaram para fora com muito grande dificuldade, porque queimava tanto que toda a roupa tinha virado cinza, e não se podia a ele chegar ninguém que não se queimasse, e, posto ele fora do paço, novamente começaram sua alegria como antes e muito tinham grande pesar todos do cavaleiro, porque era muito estimado. Ao rei, muito pesava, mas não o ousava mostrar para não ficar a corte mais triste. E depois que soube que estava na igreja, disse: [31] — Cavaleiros, agora podeis comer, porque já por aventura maravilhosa não deixareis de comer, pois me parece muito estranha esta aventura. 10. Como o escudeiro disse ao rei as novas da pedra. E eles disto falando, eis que vem um escudeiro que disse ao rei: — Senhor, eu vos trago as mais maravilhosas novas de que ouvistes falar. — E que novas são? disse o rei, dizei-no-las. — Neste vosso paço, aportou agora uma pedra de mármore, na qual está metida uma espada, e sobre esta pedra, no ar, está uma bainha. E eu vos digo que vi a pedra nadar sobre a água, como se fosse madeira. E o rei, que o teve por chufa, disse-lhe se podia ver esta pedra. Então disse o escudeiro: — Já estão lá muitos cavaleiros da vossa companhia para ver aquela maravilha. E o rei, assim que isto ouviu, foi logo para lá com sua companhia de homens bons. E Lancelote, apenas soube o que era, logo foi para lá atrás deles; e Heitor e Persival, que já haviam visto, queriam ver, entre tão grande companhia como lá estava reunida, se haveria alguém que desse cabo agora daquela aventura. Quando o rei chegou à ribeira e viu a pedra e a espada que nela estava metida, pelo encantamento de Merlim, assim como o conto já referiu, e uma bainha que estava perto dela no meio do ar, e o letreiro que Merlim fizera, ficou todo espantado. — E, amigos, disse ele, novas vos direi. Ora, sabei que por esta espada será conhecido o melhor cavaleiro do mundo, porque esta é a prova pela qual se há de saber; e nenhum, se não for o melhor cavaleiro do mundo, poderá sacar a espada desta pedra. 11. Como o rei disse a Lancelote que tirasse a espada da pedra e Lancelote ndo quis. Quando os cavaleiros ouviram isto, afastaram-se quase todos os que queriam tentar sacá-la. E o rei disse a Lancelote: — Dom Lancelote, tirai esta espada, porque ela é vossa, por testemunho de quantos aqui estão que vos têm pelo melhor cavaleiro do mundo. E quando isto ouviu, ficou muito envergonhado e respondeu: — Senhor, estes me tem pelo melhor cavaleiro do mundo; certamente, não sou eu que esta espada devo ter, porque muito melhor cavaleiro do que eu a terá e pesa-me que não sou tão bom como vós o cuidais. [32] Disto que Lancelote disse, tiveram muitos pesar, e mais os da linhagem de rei Bam, que o tinham pelo melhor cavaleiro do mundo. O rei, que percebeu que havia algum pesar, disse: — Provar vos convém. Porque assim não sois pois culpado se, porventura, fracassardes. — Senhor, disse ele, apesar de vossa graça, não me chegarei aí, porque, assim Deus me valha, não valho eu tanto que deva pôr a mão em arma de tal homem como aquele será que esta espada há de trazer. 12. Como Galvão provou a espada por ordem do rei. Então disse o rei a Galvão: — Sobrinho, pois Lancelote receou a espada, provai-a vós e veremos o que acontecerá. — Eu, senhor, disse ele, prová-la-ei para cumprir vossa ordem, mas sei que nada é que eu possa conseguir, porque bem sabeis vós e quantos aqui estão que, quando dom Lancelote deixa alguma coisa por míngua de cavalaria, eu nada nisto conseguirei, pois ele é muito melhor cavaleiro do que eu. — E ainda assim, disse o rei, prová-la-eis, porque assim me apraz. Então aproximou-se Galvão e pegou a espada pelo punho e puxou-a o mais que pôde, mas nunca tanto que a pudesse sacar da pedra, e deixou-a então e disse ao rei: — Senhor, agora podeis buscar quem a prove, porque eu não porei mais a mão, pois bem vejo que Deus não ma quer outorgar. — Dom Galvão, disse Lancelote, o rei fez seu prazer, pois que vo-la mandou provar, mas nesta aventura não deveis entrar, porque não pode demorar muito que não hajais mal por isso, pois recebereis o maior golpe ou ferimento pelo qual tereis pavor da morte ou morrereis. — Amigo, disse ele, não pude mais, porque se aqui cuidasse morrer, não deixaria de cumprir a ordem do rei. — Pois feito está, disse o rei, não é culpa, apenas míngua. E então perguntou a todos os outros: — Amigos, há aqui alguém que queira provar esta espada? E calaram-se todos. E quando o rei viu que não faziam mais questão, disse: — Agora vamos almoçar, porque já é hora, e Deus nos dê quem a esta aventura dê cabo, pois certamente muito me agradaria que chegasse logo. [33] 13. Como os clérigos acharam letreiros em dois assentos. Depois disto, chegaram ao paço e mandaram pôr as mesas. E os clérigos, que se esforçavam por cuidar dos assentos da távola redonda, o que haviam de fazer, andaram de uma parte e da outra. E acharam então que em dois assentos não havia letreiro como antes, senão outro recente. Num assento estava escrito o nome de Erec, e era o assento daquele cavaleiro que fora morto como o conto já referiu. E o outro tinha sido de um cavaleiro da Escócia que tinha nome Dragão, a quem Tristão matara naquela semana diante da Joiosa Guarda, porque aquele Dragão pedira amor à rainha Isolda. Mas isto não relata agora a estória do santo Graal, porque não toca a seu livro, mas a grande estória de dom Tristão o conta no seu livro. 14. Como Erec e Elaim tiveram os assentos. Quando os clérigos viram os assentos guarnecidos de novos nomes, souberam logo que aqueles a quem haviam pertencido tinham morrido e entenderam que a Deus agradaria que outros entrassem no lugar deles. E acharam nos assentos outros nomes, de Erec e de Elaim, o branco. Então foram até o rei e disseram-lhe o que haviam achado. E o rei agradeceu muito a Nosso Senhor que tanto lhes dava conselho na realização do santo Graal e da távola redonda. E com Erec e Elaim também ficaram todos muito felizes. Mas bem sabei que de Elaim, o branco, tiveram todos os da linhagem de rei Bam muito grande prazer, porque Elaim era filho de Boorz de Gaunes e fizera-o naquele dia cavaleiro o rei Artur. Rei Artur, que muito amava Erec e o prezava de cavalaria pela fama que dele ouvira, que não prezava tanto nenhum cavaleiro da sua idade, quando viu que esta honra lhe viera, disse feliz e com muito prazer: — Erec, meu amigo, filho do rei Lac, que nesta corte de sua idade não se devia mais prezar mancebo de cavalaria, vinde a mim e vos conduziremos à grandeza que Nosso Senhor vos deu, que a outrem não. Então foi buscá-lo à câmara da rainha, onde estava falando com as donzelas. E depois, tomou-o o rei pela mão e conduziu-o ao assento da távola redonda no qual seu nome estava escrito e disse-lhe, ao assentar-se: — Erec, Deus vos faça de hoje em diante tão bom cavaleiro como fostes até aqui. Depois dirigiu-se a Elaim, o branco, e disselhe: — Filho, muito sois formoso, mas Deus, por sua bondade, vos faça semelhar em cavalaria à vossa linhagem de rei Bam. [34] Quando viram que assim ganhara ele o assento da távola redonda por bondade de Nosso Senhor, ficaram muito felizes à maravilha. E disse Lancelote: — Elaim ainda sairá a grandes feitos. E saibam todos que este conto ouvirem que aquele Elaim, o branco, foi filho de Boorz de Gaunes e o fez numa filha do rei da Grã-Bretanha. Mas antes que isto acontecesse, prometera Boorz a Nosso Senhor lhe guardar sua virgindade. Mas tão logo ela o viu, gostou dele desde então e amou-o; e depois enganou-o por encantamento, e dormiu com ela e fez ali aquela noite aquele que foi depois imperador de Constantinopla. E se Boorz quebrou aquilo que prometeu, não foi por sua vontade, mas pelo encantamento que lhe a donzela fez; e depois corrigiu aquilo que fez, pois todos os dias de sua vida manteve castidade. III O assento perigoso Galaaz acaba a aventura da pedra Torneio em Camalote 15. Como os que procuravam os assentos os acharam. Aquele dia que vos digo, que Erec e Elaim foram postos nos assentos da távola redonda, mandou o rei pôr as mesas, porque já era tempo de comerem. E o rei foi sentar em seu alto assento. E depois os companheiros da távola redonda foram sentar cada um em seu lugar. E os outros, que não eram de tão grande fama, sentaram cada um onde devia. Aquela hora, antes que lhes dessem de comer, mandou o rei contar quantos companheiros da távola redonda tinham vindo àquela festa e os que ainda faltavam. E os que os contaram acharam todos os cento e cinqüenta assentos ocupados, menos dois, e disseram-no ao rei. O rei estendeu as mãos ao céu e disse: “Jesus Cristo, Pai e Senhor de todas as coisas, bendito sejas tu que me deixaste tanto viver que visse cheia a távola redonda, que não faltassem senão dois.” Então disse àqueles que os assentos haviam de olhar: — Quais são esses dois que faltam? — Senhor, disseram eles, Tristão e o assento perigoso que não está ocupado. — Não vos pese, disse o rei, que logo estará ocupado, porque por outra razão não fiz vir tanta gente à minha corte, senão para [35] verem as maravilhas que acontecerão a esta mesa, porque hoje será a minha corte chamada para sempre corte aventurosa. 16. Como Galaaz entrou no paço e acabou o assento perigoso. Eles nisto falando, olharam e viram que todas as portas do paço se fecharam e todas as janelas, mas não escureceu por isso o paço, porque entrou um tal raio de sol, que por toda a casa se estendeu. E aconteceu então uma grande maravilha, não houve quem no paço não perdesse a fala; e olhavam-se uns aos outros e nada podiam dizer, e não houve alguém tão ousado, que disso não ficasse espantado; mas não houve quem saísse do assento, enquanto isto durou. Aconteceu que entrou Galaaz armado de loriga e brafoneiras e de elmo e de duas divisas de veludo vermelho; e, depós ele, chegou o ermitão, que lhe rogara que o deixasse andar com ele, e trazia um manto e uma garnacha de veludo vermelho em seu braço. Mas tanto vos digo que não houve no paço quem pudesse entender por onde Galaaz entrara, que em sua vinda não abriram porta nem janela. Mas do ermitão não vos digo, porque o viram entrar pela porta grande. E Galaaz, assim que chegou ao meio do paço, disse de modo que todos ouviram: — A paz esteja convosco. E o homem bom pôs as vestes que trazia sobre um tapete, e foi ao rei Artur e disse-lhe: — Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e de José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta terra e das outras terão fim. E com isto que o homem bom disse, ficou o rei muito alegre. E disse: — Se isto é verdade, sede bem-vindo. E bem seja vindo o cavaleiro, porque este é o que há de dar cabo ãs aventuras do santo Graal. Nunca foi feita nesta corte tanta honra como lhe nós faremos; e quem quer que ele seja, eu quereria que lhe fosse muito bem, pois de tão alta linhagem vem como dizeis. — Senhor, disse o ermitão, cedo o vereis em bom começo. Então fê-lo vestir os panos que trazia e foi assentá-lo no assento perigoso. E disse: — Filho, agora vejo o que muito desejei, quando vejo o assento perigoso ocupado. E quando viram Galaaz no assento, logo todos os cavaleiros tiveram poder de falar, e bradaram todos a uma voz: — Dom Galaaz, sede o bem-vindo, pois já seu nome sabiam, porque o ermitão o nomeara já ali. [37] 17. O cavaleiro de quem Merlim e todos osprofetasfalaram. O rei, assim que viu no assento perigoso o cavaleiro de quem Merlim e todos os profetas falaram na Grã-Bretanha, então bem soube que aquele era o cavaleiro por quem seriam acabadas as aventuras do reino de Logres, e ficou com ele tão alegre e tão feliz, que bendisse a Deus: — Deus, bendito sejas tu que te aprouve de tanto viver eu que, em minha casa, visse aquele de quem todos os profetas desta terra e das outras profetizaram, tão longo tempo há já. Agora falta, disse ele, da távola redonda, dom Tristão, e nenhum outro. Mas maldita seja a beleza de Isolda, porque o assim temos perdido, porque se ela não fosse, não deixaria ele, de modo algum, de vir a esta festa tão grande. 18. Como um donzel deu novas à rainha de Galaaz. Assim falava o rei de Tristão, com muito grande pesar de que não vinha à corte; mas os outros não tinham disso pesar, antes estavam muito alegres, porque o assento perigoso estava acabado, e honravam e serviam Galaaz quanto podiam, que não podiam mais, porque bem sabiam que este havia de dar cabo às maravilhosas aventuras do reino de Logres; mas sobre todos estava Lancelote mais alegre, porque bem via que, se Galaaz vivesse, passaria em bondade e em cavalaria todos os do reino de Logres. Estas novas foram de uma parte e da outra, de modo que chegaram à rainha, porque um donzel lhe disse: — Senhora, maravilha grande aconteceu agora no paço. — E que maravilhas são? disse a rainha, dizei-no-las. — Senhora, disse ele, o assento perigoso está ocupado. Um cavaleiro senta nele. — Sim? disse ela. Por Deus, formosa aventura Deus deu. Porque de muitos que já sentaram, nunca um houve que não morresse. E de que idade pode ser? disse a rainha. — Senhora, disse ele, de dezoito anos. E ela maravilhou-se das maravilhas que a respeito ouviu; depois disse: — Maravilha pode daí advir e nada eu nunca soube. E sabes de qual linhagem é? E o donzel disse que não, apenas que dizem todos que parece ser da linhagem de rei Bam, mais que de outra. E ela começou a pensar e logo cuidou em seu coração que era filho de Lancelote, porque lhe dissera Heitor que era já Galaaz moço feito e logo seria cavaleiro; e disse a rainha ao cavaleiro: — Donzel, sabes como tem nome? — Senhora, disse ele, tem nome Galaaz. [37] E ela, quando ouviu o nome, logo soube com certeza que era filho de Lancelote, porque tempo havia que ela sabia como tinha nome. Então disse para as mulheres que com ela estavam: — Estai certas, se ele é o bom cavaleiro, não me maravilho muito, porque de todas as partes vêm bons cavaleiros, que não pode errar que não seja melhor do que outro cavaleiro. — Senhora, disseram elas, quem é bom sobre todos? — Vós o sabereis, disse ela, mas não por mim. 19. Como Galaaz acabou a aventura da pedra. Aquele dia foi grande a alegria entre eles. E o rei mandou que lhes dessem de comer. Tão logo comeram, perguntou o rei a quantos estavam no paço: — Que vos parece do que nos aconteceu? Porque a mim tal hora foi, antes que chegasse Galaaz, que não pude falar. E todos disseram que bem assim acontecera a eles. — Por Deus! disse o rei, grande maravilha foi esta. E podeis entender por que foi? — Não, disseram eles. — Por Deus, disse ele, muito me pesa. Grande foi a alegria e o prazer que todos tiveram. E o rei se ergueu da mesa e foi à mesa onde sentava Galaaz, e viu lá seu nome escrito, e ficou muito alegre e disse a Galvão: — Sobrinho, agora podeis ver Galaa.z, o muito bom cavaleiro sobejo, que tanto esperamos e tanto desejamos ver. E os da távola redonda falavam mais amiúde do que todos os outros. E diziam: — Pois no-lo Deus trouxe, sirvamo-lo e honremo-lo enquanto estiver entre nós, porque não viverá muito conosco por causa da demanda do santo Graal que começará logo. — Assim Deus me ajude, disse Galvão, bem o devemos servir, porque Deus no-lo enviou por nos livrar a terra das grandes maravilhas e das estranhas aventuras que tão amiúde acontecem e desde tão longo tempo. Então veio o rei a Galaaz e disse-lhe: — Senhor, sede bem-vindo, porque muito tempo há que vos desejei ver; e graças a Deus e a vós, quisestes aqui vir. — Senhor, disse ele, vim aqui, porque me convinha, porque daqui hão de partir agora todos aqueles que à demanda do santo Graal queiram ir e bem sei que logo será começada. — Senhor, disse o rei, vossa vinda nos é mui mister por muitas aventuras maravilhosas a que não podemos dar cabo. E vo-lo digo por uma que nos hoje aconteceu; ide-a ver, se vos aprouver. [38] E Galaaz disse que iria de muito bom grado. Então o pegou o rei pela mão e levou-o à margem do rio, onde a pedra estava. E os do paço foram todos com ele, para verem o que poderia ser. E quando a rainha viu que o rei levava Galaaz pela mão à pedra, saiu ela com grande companhia de donas e donzelas. E o rei disse a Galaaz: — Quereis sacar esta espada desta pedra? Pois a não quer ninguém provar de quantos aqui estão, porque dizem que a aventura não é deles. Provai-a, se vos aprouver, porque se o não provais, não acharemos cavaleiro que o prove. Então pegou Galaaz a espada pelo punho e puxou-a tão facilmente, como se não estivesse presa a nada. E depois, pegou a bainha e meteu-a dentro e cingiu-a logo, e disse ao rei: — Senhor, agora tenho já a espada, mas o escudo não tenho. — Amigo, disse o rei, pois Deus e a ventura vos a espada deu, não tardará muito o escudo. 20. Como a donzela disse as novas ao rei. Eles nisto falando, viram vir pela ribeira uma donzela sobre um palafrém branco; e quando chegou a eles, perguntou se estava aí Lancelote. Ele estava diante dela e disse-lhe: — Donzela, que vos apraz? Disse ela: — Eu te trago as mais maravilhosas novas que viste, tempo há, e não de teu prazer, mas de teu pesar; e sabe que tens teu nome desonrado desde hoje de manhã, porque quem ontem te chamava, porque eras, o melhor cavaleiro do mundo, te dizia a verdade; mas agora não é assim. E isto podes bem ver por prova desta espada, porque vês que melhor cavaleiro que tu a ganhou. — Donzela, disse ele, vós não me dizeis nada que eu por verdade não soubesse, tempo há, porque já outra vez vi esta espada e não ousei prová-la. E então tornou a donzela ao rei e disse-lhe assim: — Rei Artur, manda-te dizer o ermitão que, neste dia de hoje, te acontecerá a maior maravilha e honra que te nunca aconteceu. E não virá por ti, mas por outrem. E assim que isto disse, volveu a rédea ao palafrém e voltou. E muitos houve que quiseram mais saber dela, mas não quis ficar por rogo de ninguém, nem dizer mais de seus feitos. 21. Como rei Artur fez armar o torneio no campo de Camalote. Então disse o rei aos que estavam perto dele: [39] — Amigos, assim é que a demanda do santo Graal é sinal verdadeiro de que ireis daqui logo; e porque sei verdadeiramente que jamais vos verei reunidos em minha casa, como agora vejo, quero que naquele campo de Camalote seja agora começado um torneio tal que, depois de minha morte, seja contado e no qual hajam que referir nossos heróis. E concordaram com isso todos. E voltaram à cidade e pediram suas armas e armaram-se e voltaram ao campo. E o rei não fizera isto, senão para ver alguma coisa da cavalaria de Galaaz, porque bem sabia que não estaria muito em Camalote. 22. Como Galaaz justava, e como o rei partiu para aquele torneio. Aquele dia, rogou Lancelote a seu filho Galaaz que trouxesse armas naquele torneio com divisas da linhagem de rei Bam. E ele o fez de muito bom grado, porque não há nada que ele receasse, que lhe seu pai mandasse; mas não quis trazer escudo. Depois que foram reunidos no campo de Camalote, começaram a se ferir com lanças, de modo que muitos veríeis cair, e muitos havia que o faziam muito bem. E Galaaz, que entrou no campo, começou as lanças a quebrar e a derrubar cavaleiros, e a fazer tantas maravilhas, que todos diziam que nunca viram tão bom cavaleiro de justa. Porque, sem falha, nunca ele alcançava cavaleiro hábil, por mais valente que fosse, que o não metesse em terra; e fez disso tanto, que todos aqueles que o viram, disseram que nunca tão altamente começara cavaleiro a derribar cavaleiros. E bem aparecia no que naquele dia fizera, porque, de todos. aqueles que eram companheiros da távola redonda, não ficaram senão poucos que ele não derribasse. Este torneio desta justa durou até hora de vésperas. Então mandou o rei que parassem, porque se temia acontecer alguma desavença. E disse-lhes que se fossem desarmar, e fez tirar o elmo a Galaaz e deu-o a Boorz de Gaunes, que o segurasse, porque aquele era em quem tinha confiança muito grande, que sempre fora em sua honra e em sua ajuda. IV Tristão A Graça do santo Graal A demanda 23. Como o rei e os cavaleiros viram vir Tristdo. Ainda o preito não estava acabado nem decidido, quando viram vir um cavaleiro pelo fundo da ribeira, sobre um cavalo tão bom, que poucos [40] ha|via no campo melhores; e vinha tão depressa, como se todos os diabos do inferno viessem depós ele. E não trazia todas as armas, apenas a espada e o escudo. E o rei olhou o escudo e mostrou-o a Lancelote, que perto dele estava, e disse-lhe: — Agora estou alegre e tenho muito gosto, porque vejo aqui vir Tristão, o sobrinho de rei Mars de Cornualha, porque bem conheço aquele escudo que não vi desde que me fez muito pesar. E Lancelote começou a ferir o cavalo com as esporas e foi em direção dele, e disse-lhe, de tão longe como pôde entender que o poderia ouvir: — Dom Tristão, sede bem-vindo. E Tristão, que o reconheceu, saudou-o e abraçou-o. E depois perguntou: — Amigo Lancelote, ë verdade que veio Galaaz, o mui bom cavaleiro, à corte, aquele que há de acabar o assento perigoso e há de dar fim às aventuras do reino de Logres? — Com certeza, amigo, disse Lancelote, ele veio à corte e acabou o assento perigoso e deu cabo da aventura de uma espada, em que nenhum cavaleiro da távola redonda ousou pôr a mão. Mas como soubestes que ele, no dia de hoje, aqui havia de estar? — Isto vos direi eu, disse ele, mas em outra oportunidade, não agora. Enquanto isto, eis que o rei saiu em direção a ele, porque muito estava alegre com sua vinda, e disse-lhe: — Dom Tristão, sede bem-vindo. E Tristão saudou-o muito educadamente. E o rei disse-lhe: — Dom Tristão, estou muito alegre com vossa vinda, porque não faltava nenhum dos companheiros da távola redonda, senão vós. 24. Como o reifalava com Tristão e da alegria dos cavaleiros. Quando os cavaleiros viram que aquele era Tristão com quem o rei falava, foram para lá muito alegres e com grande prazer da sua vinda, porque muito prezavam sua cavalaria e sua cortesia. E assim que viram o escudo, disseram entre si: — Enganados fomos noutro dia, porque este era o cavaleiro que levava a mulher, e o que derribou os cavaleiros daqui. Grande foi a alegria e o prazer que todos com Tristão tiveram. E ele rogou ao rei que lhe mostrasse Galaaz, o mui bom cavaleiro, e o rei lhe disse que havia ido para a cidade com alguns da linhagem de rei Bam. — Ai, senhor, disse Tristão, fazei que o veja, porque por outro motivo não vim aqui. — De bom grado, disse o rei. [41] Então se foram para o paço e desceram. E quando entraram no paço, acharam Galaaz com sua linhagem, que já se desarmaram. E o rei pegou Tristão e levou-o a ele e disse-lhe: — Amigo Tristão, vedes aqui o que buscais. — Em nome de Deus, disse Tristão, bem seja ele vindo, porque com sua vinda estou muito alegre. Então ficou de joelhos diante dele e disse-lhe: — Senhor, abençoado seja o dia em que nascestes, quando vos Deus deu tal graça. Galaaz não lhe quis permitir que ficasse assim a seus pés; ç depois ergueu-o e beijou-o em significado de companheirismo e de fraternidade. E bem ouvira já dizer que aquele era o mais afamado e o melhor cavaleiro da távola redonda, com exceção de Lancelote apenas. 25. Como os da mesa redonda tiveram a graça do santo Graal. Grande foi a alegria e o prazer que os cavaleiros da távola redonda tiveram aquele dia, quando se viram todos reunidos. E sabei que, desde que a távola redonda começou, nunca todos assim foram reunidos, mas aquele dia, sem falha, aconteceu que estavam lá todos, mas depois, nunca de novo estiveram. Contra a noite, depois de vésperas, quando se assentaram às mesas, ouviram vir um trovão tão grande e tão espantoso, que lhes semelhou que todo o paço caía. E logo depois que o trovão deu, entrou uma tão grande claridade, que tornou o paço dois tantos mais claro que era antes. E quantos no paço estavam sentados, logo todos foram repletos da graça do Espírito Santo e começaram a olhar uns aos outros, e viram-se muito mais formosos, muito mais do que costumavam ser, e maravilharam-se muito do que aconteceu e não houve quem pudesse falar por muito grande tempo, antes estavam calados e olhavam-se uns aos outros. E eles assim estando sentados, entrou no paço o santo Graal, coberto de um veludo branco; mas não houve um que visse quem o trazia. E assim que entrou, foi o paço todo repleto de bom odor, como se todos os perfumes do mundo lá estivessem. E ele foi para o meio do paço, de uma parte e da outra, ao redor das mesas. E por onde passava, logo todas as mesas ficavam repletas de tal manjar, qual em seu coração desejava cada um. E depois que teve cada um o de que houve mister.a seu prazer, saiu o santo Graal do paço que ninguém soube o que fora dele, nem por qual porta saíra. E os que antes não podiam falar, falaram então. E deram graças a Nosso Senhor, que lhes fazia tão grande honra e os confortara e abundara da graça do santo Vaso. Mas sobre todos aqueles que alegres estavam, mais [42] o estava rei Artur, porque maior merca lhe mostrara Nosso Senhor que a nenhum rei que antes reinasse em Logres. Disto foram maravilhados quantos lá estavam, porque bem lhes pareceu que se lembrara Deus deles, e falaram muito disso. E o rei disse aos que perto dele estavam: — Com certeza, amigos, muito devíamos estar alegres, que Deus nos mostrou tão grande sinal de amor, que em tão boa festa como hoje, de Pentecostes, nos deu a comer de seu santo celeiro. 26. Como Galvão começou a demanda do santo Graal. Galvão que sentava diante do rei, disse: — Senhor, ainda há outra cousa que não imaginais. Sabei que não há cavaleiro no paço que não houvesse de comer o que pensou cada um em seu coração. E isto nunca houve em nenhuma corte, senão na casa do rei Peles. Mas tanto fomos enganados que o nao vimos senão coberto. Quanto em mim é, prometo agora a Deus e a toda cavalaria que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei na demanda do santo Graal, assim que a manterei um ano e um dia e, porventura mais; e ainda mais digo: jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça, até que melhor e mais a meu prazer veja o que ora vi; mas se não puder ser, voltarei então. 27. Como os da mesa redonda começaram a demanda do santo Graal. Quando os cavaleiros da távola redonda ouviram que aquele era Galvão e viram o que disse, pararam até de comer; mas assim que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e fizeram aquela promessa que fizera Galvão, e disseram que jamais deixariam de andar até que vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão bem preparados, como eram aqueles que aquele dia comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por dificuldade e por esforço que sofrer pudessem. 28. Como o rei disse a Galvão mal. E quando o rei viu que todos haviam feito esta promessa, teve grande pesar e grande armagura em seu coração porque viu que não podia fazê-los voltar atrás de modo algum. E disse a Galvão: — Vós me haveis morto e escarnecido porque por esta promessa que fizestes, me tirastes a melhor companhia e a mais leal que nunca houve no mundo — a companhia da távola redonda; porque, depois que partirem daqui, sei bem que não tornarão tão cedo, antes morrerão muitos nesta demanda, porque não terá tão cedo fim como cuidais; e por isso me pesa, porque sempre lhes fiz honra de todo meu poder, e lhes quis bem e quero, como se fossem meus [43] irmãos ou meus filhos. E por isto me é grave sua partida, e quando eu, que os costumava ver e ter sua companhia, os não vir, grande dor sofrerei e grande pesar. Depois que isto disse, o rei começou a pensar muito; e ele pensando, começaram-se-lhe ir as lágrimas dos olhos pelas faces, assim que todos o viram. E, ao cabo de um tempo, disse de modo que todos o ouviram: — Galvão, Galvão, vós me metestes tão grande pesar no coração, que jamais sairá até que desta demanda veja o fim, porque terei grande pesar e pavor de perder nela meus amigos. — Ai, senhor, disse Lancelote, que dizeis? Tal homem como vós não deveria ter pavor, mas animo e boa esperança. Certamente, se morrêssemos todos nesta demanda, maior honra seria do que morrer em outro lugar. — Ai, Lancelote, disse o rei, o muito grande amor que sempre tive por vós e por eles me faz isto dizer. E não é grande maravilha, se tenho grande pesar, porque nunca rei cristão teve tantos cavaleiros, nem tantos homens bons à sua mesa, como hoje tenho, nem terá jamais. E por isso receio que jamais estarão reünidos aqui nem em outro lugar, como agora estão. V Galvão e a donzela feia 29. Como a donzela feia chegou à casa de rei Artur. A isto que o rei disse, não soube Galvão o que responder, porque sabia que dizia a verdade, e fizera-se de bom grado a fora, se pudesse, mas não podia pelos Outros que prometeram já, como ele. E, além disso, porque sabia já a rainha e as donas e as donzelas todas que a demanda do santo Graal estava já começada e os que haviam de ir, haviam de sair de manhã. Então começaram as mulheres sua lamentação tão grande a fazer, que era maravilha, e foram entrar no paço como loucas. Mas o rei acordou com estas vozes e com este rebuliço que as mulheres faziam nos aposentos da rainha. Estava o rei com seus ricos homens com grande pesar pensando. Nisto, eis que uma donzela entrou a pé e trazia uma espada que tinha o punho muito rico e muito formoso e a bainha muito bem lavrada; e ela reconheceu o rei e foi ao rei e disse-lhe: — Rei, não penses, porque teu pensar não vale nada; mas recebe isto que te trago e faze disto o que te eu mandar. Eu te digo que verás ainda tal coisa vir que a terás por maravilha. [44] 30. Como a donzela fez tirar a espada. Então ergueu o rei a cabeça e disse-lhe: — Que dizeis, senhora? — Digo-vos que tomeis esta espada e a façais tirar da bainha a cada um de vossos cavaleiros da mesa redonda e vereis que grande maravilha por isso vos acontecerá: e depois aconselhar-vos-ei o que havereis de fazer. Ele pegou então a espada e tirou-a da bainha, e achou-a então muito formosa. E a donzela lhe disse: — Ora a podeis dar a outrem, porque não sois quem eu procuro. — Ora dizei-me, donzela, disse o rei, que maravilha pode disso advir e acreditaremos em vós por isso mais, quando a virmos. — Eu vo-lo direi, disse ela, pois tendes gosto de o saber. Sabei que esta espada, que agora vedes tão formosa e tão limpa, ficará toda tinta de sangue quente e vermelho, assim que a tiver na mão aquele que fará a maravilha de matar cavaleiros nesta demanda mais que outrem. Esta espada trouxe eu aqui para o conhecerdes e para o fazerdes aqui ficar, porque, sem falha, se ele for, tanto mal e pesar haverá e tanta mortandade de homens bons, que vós vos chamareis, a seu retorno, rei pobre, deserdado de bons fidalgos. — Por Deus! donzela, disse o rei, mais me vale perda-lo do que me sobrevir tanto mal por ele. E melhor é cada um provar. — Pois, disse ela, provai qual é, porque o podeis entender e reconhecer por isto que vos digo. Então deu o rei a espada a Galaaz e sacou-a da bainha, e não se mudou de qual era. O rei disse: — Vós estais quite. E Galaaz deu-a a seu pai, e seu pai tirou-a, e não apareceu nada. E depois a Boorz de Gaunes, e a Heitor e a Persival de Galas e a Erec, filho do rei Lac, e a Gaeriete; mas nada se mostrou em nenhum destes. E então a pegou Galvão, e logo que a sacou da bainha, ficou toda coberta de sangue, toda de uma parte e da outra, tão quente e tão vermelho, como se a sacassem do corpo de homem ou de chaga. 31. Como o rei ordenou a Galvão que não fosse. Quando os do paço viram isto, disseram: — Esta é das grandes maravilhas que vimos, tempo há. E disse o rei a Galvão: — Rogo-vos que não vades a esta demanda, porque muito grande mal pode daí sair. Donzela, cuidais vós que este é o homem que [45] — Não cuido, disse ela, mas sei verdadeiramente que, se for, fará tão grande dano aos cavaleiros que aqui estão, que toda sua linhagem não nos poderá recuperar. E o rei bem acreditou que dizia a verdade, e disse a Galvão: — Sobrinho, eu vos peço que fiqueis aqui e não vades a esta demanda. E ele, que teve grande pesar sobejo desta aventura, entre tanto homem bom, respondeu: — Senhor, não deveis acreditar no que vos disserem. Sabei que tudo é encantamento e chufa a maior que vistes, tempo há. Não vos lembra quando vistes a rainha Morgana e toda sua companhia tornada em pedra? E por isso não deveis crer nisto. Então disse a donzela: — Isto não é encantamento, assim Deus me ajude, mas antes inteira verdade. E, por Deus! se fordes, tio grande dano se fará, que não o podereis recuperar, nem rei Artur que aqui está. A isto respondeu o rei: — Donzela, vital sinal da sua ida que, assim Deus me ajude, sei verdadeiramente que sobrevirá disso mal. E por isto lhe ordeno, como senhor faz a cavaleiro, que não vá, mas de todo modo fique. — Como, senhor, disse Galvão, mais acreditais nesta donzela do que em mim? — Eu acredito, disse o rei, no que vejo. E por isso vos ordeno de todo em todo, que não vades a esta carreira. — Senhor, disse ele, parece-me que não cuidais da minha honra, mas do meu mal e da minha vergonha, porque, se eu não for, sou perjuro e desleal e então ninguém me deveria considerar como cavaleiro. — Não sei, disse o rei, o que fareis; mas se fordes, pesar-me-á muito sobejo. VI Preparativos da demanda 32. Como a rainha houve pesar por Lancelote. Galvão, que disto houve grande mágoa, afastou-se do rei e foi para sua pousada. E a rainha disse ao donzel que lhe dissera as novas da demanda: — Agora dize-me, estavas presente quando prometeram os cavaleiros buscar o santo Graal? — Sim, senhora, disse ele. [46] — Galvão e Lancelote hão de ir? — Senhora, disse ele, dom Galvão o jurou primeiro, e depois dele, Lancelote, e depois, todos os outros da mesa redonda. — Assim? disse ela, em mal ponto foi começado este preito, porque muitos homens bons morrerão nele e haverá então grande prejuízo no reino de Logres. Então houve tão grande pesar de Lancelote, que as lágrimas lhe vieram aos olhos, e disse outra vez: — Certamente este é grande dano sobejo, porque, sem a morte de muitos homens bons, não será esta demanda acabada, e maravilho-me do rei, como o pode suportar, porque os melhores cavaleiros do mundo se afastarão dele e sua terra valerá por isso muito menos. Então começou a chorar muito intensamente, e as mulheres e as donzelas também. E a donzela feia, que estava ainda no paço, quando deram a dom Galvão a espada, e viu que se afastara já dali com sanha, disse ao rei: — Que será da ida de dom Galvão? Sabei que muito mal disso virá e acontecerá. E ele disse: — Sabei que não irá à demanda cavaleiro que me muito não pese; mas muito mais deste me pesará, porque bem sei que muito mal por ele acontecerá. — Pois, disse ela, senhor, rogo-vos que o façais ficar. — Eu vos digo, disse ele, que não será tão ousado que o experimente, porque bem lhe proibi eu, e vós o ouvistes. — Muito obrigada, disse ela. Então se foi com sua espada. 33. Como os da corte souberam que Galaaz era filho de Lancelote. Como leram a carta. Aquela tarde, souberam os mais da casa do rei Artur que era Galaaz filho de Lancelote, porque não podia ser que a origem de tão grande homem como Galaaz pudesse ser escondida tão longamente. Muito falaram o rei e a rainha aquela noite com Galaaz e os altos homens qüe lá estavam e sua linhagem que o amavam muito. Quando a noite chegou, não esqueceu ao rei a maravilha do cavaleiro que se queimou de manhã e perguntou quem estava com a carta que tinha na mão quando se queimara. Então disse um cavaleiro de Norgales. — Senhor, vedes a carta que tinha na mão. E ele pegou a carta na mão e leu-a, e achou que dizia assim: — Ai! Arcebispo de Cantuária, homem santo e de boa vida e sisudo, aconselha-me em minha má ventura e em meu pecado, [47] assim como te contarei. Sabe verdadeiramente que o revelo a Deus e a ti, que sou pecador, maior dos pecadores, que deitei com minha mãe e com minha irmã. E depois, matei-as ambas, na mesma hora, porque não queriam cumprir minha vontade. E depois, estando a olhá-las onde as matara, sobreveio o meu pai, o rei da ilha do Porto; depois que viu aquela morte, meteu mão à sua espada e eu à minha, e matei-o. E estando a olhá-lo, sobreveio meu irmão, o conde de Geer, e causou-me mal e matei-o. Todo este mal que te digo, fiz num só dia. Agora me aconselha, padre santo, porque já tão grande penitencia não me darás, que a não cumpra. Tudo isto dizia a carta que o cavaleiro tinha quando morreu. Depois que o rei leu a carta, assim que a ouviu Galaaz e os outros homens que com ele estavam, disse: — Agora podemos saber por que este cavaleiro morreu tão cruelmente. Sabei que isto foi vingança de Jesus Cristo. E os outros disseram que bem parecia verdade, segundo a carta dizia. Então fez o rei guardar a carta numa abadia, que era de Santo Estevão, que era a Sé de Camalote e fez fazer um mui rico túmulo para o cavaleiro e escrever em cima: “Aqui jaz o cavaleiro que num dia matou seu pai e sua mãe e seu irmão e sua irmã”. Este escrito foi feito depois que os cavaleiros foram para a demanda do santo Graal. 34. Como o homem velho disse que nenhum levasse consigo amiga na demanda. Depois disto, mandou o rei chamar a rainha e as donzelas e mulheres que viessem a ele. E depois que chegaram ao paço, cada um dos cavaleiros foi estar com sua mulher ou com sua amante ou com sua amiga. E alguns houve que combinaram com suas amigas de as levarem. E assim aconteceria, se não fosse um velho, que chegou vestido com hábito de ordem, que disse tão alto que todos ouviram: — Cavaleiros da távola redonda, ouvi. Vós jurastes a demanda do santo Graal. E Nascião, o ermitão, vos manda dizer por mim que nenhum cavaleiro desta demanda leve consigo mulher nem donzela, senão fará pecado mortal. E não seja tal que nela entre, se não for bem confessado, porque em tão alto serviço de Deus como este, não deve entrar se não for bem confessado e bem comungado e limpo e purificado de todos os danos e de pecado mortal; porque esta demanda não é de tais obras, antes é demanda dos segredos e das coisas escondidas de Nosso Senhor, que fará ver conhecida-, mente ao bem-aventurado cavaleiro que ele escolheu para seu [48] ser|vo entre todos os cavaleiros terrenos, ao qual mostrará as grandes maravilhas do santo Graal e lhe fará ver o que o coração mortal não poderia pensar, e língua humana não poderia dizer. 35. Como a rainha perguntava a Galaaz. Por esta palavra ficou que nenhum cavaleiro levaria consigo sua amiga. O rei mandou muito bem cuidar do homem bom e perguntou-lhe por seus feitos, mas ele disse muito pouco, porque em outro lugar tinha o coração. E a rainha veio a Galaaz e assentou-se ao lado dele e disse-lhe: — Amigo, de onde sois e de qual linhagem? E ele lhe disse um tanto, mas não lhe disse que era filho de Lancelote e que Lancelote o fizera na filha do rei Peles, que muitas vezes ouvira já a respeito ela falar. E, no entanto, porque ela queria saber a verdade dele, perguntou-lhe outra vez e disse-lhe: — Dizei-me, quem é vosso pai? — Senhora, disse ele, não o sei muito bem. — Ai, senhor! disse ela, vós mo ocultais. Por que o fazeis? Assim Deus me ajude, ao vos lembrardes de vosso pai, não tenhais vergonha nenhuma, porque ele é o mais formoso cavaleiro do mundo e de todas as partes vêm reis e rainhas e a mais alta linhagem do mundo em apreço ao melhor cavaleiro do mundo, porque por direito deveríeis passar todos os cavaleiros do mundo. 36. Como a rainha disse a Galaaz que era filho de Lancelote. E quando ele isto ouviu teve grande vergonha e respondeu: — Senhora, pois que vós tão bem conheceis, tanto o podereis dizer a mim, como eu a vós. E se é aquele que penso, não vo-lo negarei, mas se este não é quem me dizeis, nãô concordarei com outro. — Pois que não me quereis dizer, disse ela, eu vo-lo direi. Vosso pai é dom Lancelote do Lago, o melhor cavaleiro de armas e o mais formoso e o de melhor donaire e o mais desejado e o mais amado de todos aqueles que nasceram em nossso tempo. Todas estas bondades tem vosso pai. E por isso me parece que o não deveis negar a mim nem a outrem, porque de melhor pai e de melhor cavaleiro não poderíeis ser filho. — Senhora, disse ele, pois que assim sabeis, por que vo-lo diria eu? Porque bem o saberão já sempre. 37. Como rei Artur pensava nos cavaleiros que iam à demanda. Aquela noite, fez o rei Galaaz ficar numa câmara onde ele costumava ficar, num leito seu, porque tinha muito gosto de lhe fazer honra. E todos os da linhagem de rei Bam ficaram nos aposentos [49] do rei, por causa de Galaaz. E muito lhe era penoso terem de partir tão cedo, porque toda aquela linhagem se amavam muito, porque mais queriam viver juntos do que partirem. E, sem falha, na casa do rei havia então daquela linhagem dezenove cavaleiros, que eram todos muito bons. E todos foram tão venturosos, que não houve entre eles um que não fosse da távola redonda. E por isso era aquela linhagem tão honrada e tão afamada, que nunca falavam de outra linhagem no reino de Logres, fora daquela. Aquela noite, quando rei Artur viu que os cavaleiros da linhagem do rei Bam — que, naquele tempo, era a flor e o louvor dos cavaleiros do mundo — ficaram em sua casa por causa de Galaaz, começou a olhá-los e a pensar que estes eram os homens do mundo que mais vezes foram melhores para ele e que melhor o vingaram de seus inimigos. E quando novamente pensava que queriam de manhã ir a tal lugar de onde cuidava que jamais voltassem, teve tão grande pesar, que não se pôde aconselhar, porque esta era a linhagem do mundo que mais amava, fora a sua. E foi então deitar só numa câmara e começou a fazer o maior pranto do mundo e maldizer muito Galvão, seu sobrinho. E disse que maldita fosse a hora em que o vira primeiro, porque lhe tiraria logo todos os bons cavaleiros e todos os homens bons pelos quais era ele o mais temido de todos os reis do mundo. 38. Como o rei fez seu pranto por seus cavaleiros e como lhe pesava de sua ida. Assim se queixava e fez seu pranto o rei por seus cavaleiros, que se dele separavam, e, assim que foi manhã, levantou-se o mais cedo que pôde, porque muito estava em grande cuidado com o que havia de fazer, mas não se levantou tão cedo que já não achasse mais de sessenta cavaleiros dos que haviam de ir à demanda, que vestiam já as lorigas e cingiam as espadas. O rei que tinha grande pesar disso, que não há homem no mundo que o imaginar pudesse, quando os viu assim estar, teve tão grande pena que não teve força para saudá-los e aconteceu-lhe falhar o coração com grande pesar. E viu Gaeriete e disselhe assim: — Gaeriete, morto me há vosso irmão que me tolheu tantos homens bons como havia em minha casa. E ao menos se me ficasse a linhagem de rei Bam, não haveria tão grande pesar. Quando Gaeriete isto ouviu, calou-se, porque bem entendia que dizia o rei verdade. Aquele dia, ajudou o rei armar Galaaz, e depois que foi armado, exceto do elmo e do escudo, foi ouvir missa na capela do rei, ele e sua linhagem. E depois, voltaram ao paço e encontraram jáos outros, que haviam de ir à demanda, que não esperavam outra coisa senão eles e sentaram-se uns perto dos [50] ou|tros. Então se ergueu rei Bandemaguz e falou tão alto que todos ouviram: — Senhor, disse ele ao rei Artur, pois que este preito assim está começado, que não pode já ser deixado e os que nele hão de ir não esperam senão a vós, eu louvaria que os santos Evangelhos viessem aqui, e os cavaleiros fizessem tal juramento como devem fazer os que vão a tão alta demanda. — Está bem, disse o rei, pois outra coisa já não pode ser. Então mandaram vir os clérigos e trouxeram o livro sobre o qual faziam o juramento da corte, e depois o puseram no alto assento do rei, e o rei chamou Galaaz, porque o tinha pelo melhor cavaleiro de quantos lá havia, e disse-lhe: — Galaaz, sois como mestre dos cavaleiros da mesa redonda e o melhor. Vinde adiante e fazei o juramento desta demanda. E ele disse que o faria de muito bom grado. Então foi ficar de joelhos ante o livro, e jurou que, se Deus o guardasse do mal e o guiasse, manteria esta demanda um ano e um dia, e mais, se preciso fosse, e não tornaria à corte, até que soubesse, de algum modo, a verdade do santo Graal. Depois jurou Lancelote e Tristão. Também sabei que, de todos os cento e cinqüenta cavaleiros da mesa redonda, não ficou nenhum que este juramento não fizesse, afora Galvão somente. Aquele dia, sem falha, não estava lá, porque já se fora pela manhã, bem armado, para esperar os outros na floresta de Camalote, porque bem sabia que, se com os outros quisesse sair, não o deixaria o rei, mas o faria ficar. 39. O conto dos cento e cinqüenta cavaleiros da távola redonda. Os nomes deles. Por isso partiu Galvão pela manhã da corte, e o rei, pelo grande pesar que tinha quando recebia o juramento, nunca lembrou de Galvão, tantos eram os outros. Mas porque a está-ria não citou os nomes daqueles que foram na demanda do santo Graal, convém que refira aqui os nomes dos que foram companheiros da mesa e fizeram juramento. Dos cento e cinqüenta cavaleiros que fizeram o juramento desta demanda, foi o primeiro Galaaz, depois dele, Tristão e Lancelote e Boorz de Gaunes e Bliobleris e Leonel e Heitor de Mares; Brandinor, seu irmão, e Elaim, o branco; Banim, o afilhado do rei Bam; Abão, bom cavaleiro a maravilha; Gadrão; Laner; Tanri; Pincados; Lelas, o ruivo; Crinides, o negro; Ocursus, o negro; Acantão, o ligeiro; Danúbio, o corajoso. Todos estes cavaleiros, exceto Tristão, eram da linhagem de rei Bam e vieram à corte de rei Artur por causa de Lancelote. E aconteceu-lhes assim por boa cavalaria e por sua vida boa que foram companheiros da távola redonda e eram estimados pelos cavaleiros sobre todos [51] os cavaleiros da casa de rei Artur; e pela bondade destes, que eram andantes, era a linhagem de rei Bam famosa como vos digo. Os outros da linhagem de rei Branco não eram senão estes: Galvão e Gaeriete, Agravaim, Grieres, Morderete; estes eram irmãos. Os outros eram estes: Agroval e Persival; Corsidares; Maidairos, seu primo coirmão; e Persives de Langaulos. Os outros eram filhos de Lot: Cujerão, seu irmão, de Ganaor, mui bom cavaleiro de armas, mas era tão soberbo, que maravilha era. Os outros: Quéia, o mordomo, e Sagramor, o dizimador; e Gilfrete, o filho de Dó; Lucão, o copeiro; e Dondinax, o selvagem; Calogrenante; Ivã, filho de rei Urião; Ivã das mãos brancas; Ivã de Canelones de Alemanha; Oures, o pequeno; Gures, o negro; o Laido ousado; Garnaldo, seu irmão; Mador da Portà, o grande cavaleiro; Craidandos; Isaias; rei Bandemaguz; Patrides, seu sobrinho; Madão, seu coirmão, o donzel da saia mal talhada, de quem o conto do Brado fala muito; Dinadeira, seu irmão, bom cavaleiro à maravilha e que foi muito no reino de Logres; Gar da Montanha; Clamadim, que pouco havia que ganhara o assento da távola redonda; Galaaz, o grande da Deserta; Senala, seu irmão; Caradão, Damas, Damacab, que eram seus primos coirmãos. Sabei que todos estes eram tão bons cavaleiros que não se podia achar melhores no reino de Logres, a menos que fossem da linhagem de rei Bam. Estes cinco queriam mal a esta linhagem com inveja, porque não faziam a eles tanta honra como aos outros. E outro Lambeguêm, que foi aio de Boorz e de Leonel; Sinados, Artel, Bagarim, Sanasésio; Arnal, o formoso; e o cavaleiro do Chão; Angelis dos Vaos, Baradão, o manso, que era seu irmão; Marat, o da torre; Nicorante, o bem feito e o famoso de espada; Alaim dos Prados; Martel do grande escudo; Melez, o longo; Dinas, seu irmão; Codias das longas mãos; Pinabel da Ilha; Daniel, o cuidador, e Gandaz, o negro, Gandim da Montanha, que eram ambos irmãos; Ataz; Calendim, o pequeno; Utrenal; Raface; Conais, o branco; Agregão, o sonhador; Guigar, o filho de Galvão de quem o conto do Brado fala; Anarão, o grosso; Amatim, o bom justador; Canedão, o delgado; Canedor, o da formosa amiga; Ar-pião da estranha montanha; Saret; Dinados; Peliaz, o forte, aquele, sem dúvida era natural de Logres; Alamão; Ganadal; Lucas de Camalote; Brodão; Endalão; Melião; Julião; Galiadão; Cardoilem de Londres, bom cavaleiro violentamente ousado; Delimaz, o pobre; Asalim, o pobre; Caligante, o pobre: estes três eram irmãos; Ecubas; Eladinão, seu irmão. Todos estes de que vos eu antes disse os nomes eram da mesa redonda, e não houve um que não fosse cavaleiro escolhido e provado de muito boa cavalaria. Rei Artur, sem falta, está com eles, e com ele, sem falha, são cento e cinqüenta. VII Despedida dos cavaleiros 40. Como a rainha se lamentava por Lancelote que ia à demanda. Uma vez que fizeram o juramento e comeram um pouco, pelo rei que lhes pediu, novamente puseram seus elmos em suas cabeças e encomendaram-se muito à rainha e a Deus e despediram-se com lágrimas e com choro. E ela começou um tão grande lamento, como se visse o mundo todo morto diante de si. E para não a ouvirem, voltou à sua câmara e deixou-se cair em seu leito e começou a fazer tão grande lamento que não há quem a visse que se não maravilhasse. Quando Lancelote ficou já todo pronto e tinha pena de sua senhora, que maior não podia, foi à câmara onde a viu entrar. E assim que ela o viu, disse: — Ai, Lancelote! Morta me tendes, porque deixais a casa do rei para irdes às terras estranhas de onde jamais voltareis, senão por maravilha. — Ai, senhora, disse ele, voltarei, se Deus quiser, muito mais cedo do que cuidais. — Ai! disse ela, meu coração mo diz, que me poe em tal pavor e sofrimento, como nunca mulher de tal modo ficou por cavaleiro. — Senhora, disse ele, irei com vossa graça, quando vos aprouver. — A meu prazer, nunca pode ser, disse ela, depois que viu que não havia outra coisa a fazer, mas ide com a graça de Deus Nosso Senhor que vos guie e vos traga de volta com saúde e vos dá honra nesta demanda. — Senhora, disse ele, assim o faça Deus, se lhe aprouver. 41 .Como o rei foi até ldfora com os cavaleiros. Então se despediu Lancelote da rainha e foi ao paço do rei e encontrou todos que cavalgavam montados, menos ele, porque o esperavam. E ele foi ao seu cavalo e montou. E o rei, que viu Galaaz sem escudo, disse-lhe: — Amigo, não me parece que fazeis bem de não levar escudo como os outros. — Senhor, faria mal se daqui o levasse. E sabei que não trarei escudo até que a ventura mo dê. Agora seja no nome de Deus. 42.Como os cavaleiros iam alegres à demanda do santo Graal. Então se afastaram do paço e foram pela vila, mas nunca vistes tão grande lamentação como faziam os cavaleiros de Camalote e a outra gente que ficava. Mas os que haviam de ir não mostravam [53] ne|nhum sinal de tristeza, antes vos pareceria, se os vísseis, que iam muito felizes e muito alegres, e, sem dúvida, assim era. 43. Como a donzela feia disse a Galvão que voltasse, porque muito mal faria naquela demanda. Quando chegaram à entrada da fioresta em direção ao castelo de Vagam, pararam todos diante de uma cruz. Então disse Lancelote ao rei: — Senhor, voltai, bastante viestes conosco. — Assim Deus me ajude, disse o rei, voltar me será pesado, porque sobremaneira me despeço de vós contrariado, mas porque vejo que me convirá fazer, voltarei. Então tirou Lancelote o elmo e os outros também, e abraçouos o rei, e beijou-os muito afetuosamente chorando, e os outros homens que lá estavam também. Depois que puseram seus elmos, encomendaram-se a Deus uns aos outros e choravam muito sentidamente. Então se afastou o rei deles e voltou a Camalote. E eles entraram na floresta, e então cavalgaram tanto que chegaram ao castelo de Vagam, onde foram muito bem servidos de quanto tinham necessidade. E aquele Vagam era um cavaleiro bom e de vida boa, e quando viu os cavaleiros da távola redonda, soube que iam demandar a aventura do santo Graal, recebeu-os muito bem e considerou-se satisfeito de que lhe Deus trouxera tantos homens bons, pois os poderia albergar. Aquela noite, albergaram com Vagam e foram tão bem servidos de quanto tinham necessidade que ficaram maravilhados de como tão depressa se preparou para tão grande companhia tanta coisa. À tarde, quando estavam comendo, eis que vem a donzela feia, que vos disse que injuriara Erec e ferira Lancelote com o freio. E viu que Galvão estava e foi parar diante dele e disse-lhe assim com raiva: — Galvão, Galvão, cavaleiro desleal, como és tão ousado que nesta demanda queres ir, quando sabes que tanto mal por ti acontecerá? E rogam-te estes cavaleiros da távola redonda que, se te quisesses lembrar da morte de Lamorante e de seu irmão Briam de Monjaspe, e da deslealdade que então fizeste, deverias agora mais te guardar do que outro cavaleiro de fazer coisa desleal, porque bastante fizeste naquele tempo. Queres ir a esta demanda como os outros; mas olha o que por tua causa acontecerá. Sabe que dom Galaaz que aqui está — este é agora o melhor cavaleiro do mundo — não fará tanto bem nesta demanda, como tu farás mal, porque pela tua mão — que em má hora pegaste a espada — matarás dezoito destes teus companheiros, tais que valem mais que tu de cavalaria. E isto acontecerá por ti nesta demanda. Agora, olha como eles devem cciisurar e maldizer a tua vinda. [54] 44. Como Galvão se salvou e como a donzela disse que alguns a creriam, outros não. Galvão teve muito grande vergonha do que lhe disse a donzela e respondeu: — Donzela, se eu cuidasse que tanto mal por mim aconteceria nesta demanda, voltaria, mas porque sei verdadeiramente que, do que se diz, nem tudo acontece, não acredito no que dizes. — Não? disse ela. — Senhora, não. — Não acreditas? Acreditarás, porque tudo verás que como to eu digo, assim te acontecerá. E não tenho pena deste preito se cindir por ti, mas pelo mais sisudo homem do reino de Logres que matarás. Então virou para rei Bandemaguz e disse-lhe: — Rei Bandemaguz, tenho muita pena de que vás a esta demanda, porque nela morrerás e será grande dano, por duas causas: uma, porque és muito bom cavaleiro, e a outra, porque és o mais sisudo do reino de Logres. E sabe que um só cavaleiro te matará a ti e a teu sobrinho Patrides, e Erec e Ivã e tantos outros, porque em má hora nasceu este pecador que tanto mal fará, que mais valera que ainda estivesse por nascer, porque, por suas armas, ficarão, depois de sua morte, mais de cem anos, muitos remos órfãos de bons cavaleiros e de senhores. Então voltou a Galvão e disse: — Galvão, cre que tu e Morderete, teu irmão, não nascestes senão para fazerdes más aventuras e dolorosas. Se os que aqui estão o soubessem como o sei, arrancariam vossos corações, porque ainda os fareis morrer de dor e de sofrimento. E estes, que agora não criem no que lhes digo, ainda acreditarão a tal hora em que não poderão tomar sentido. 45.Como o cavaleiro disse a Galaaz que ou o matasse ou o mataria ele. Logo que a donzela isto disse, afastou-se deles e saiu tão depressa quanto pôde. E eles ficaram tão espantados que não sabiam se deviam acreditar; e deixaram então de falar disso por causa de Artur e Galvão, que tanto amavam. E estando assim, eis que um cavaleiro entrou desarmado, exceto de espada, e era muito grande e muito forte; e assim que viu Galaaz, ficou de joelhos e disse-lhe: — Galaaz, bem-aventurado cavaleiro e escolhido sobre todos aqueles que trouxeram armas na Grã-Bretanha, eu te rogo pela fé que deves a toda a cavalaria que me dês um dom, que ninguém te pediu desde que recebeste a ordem da cavalaria. E se o não fizeres, cstranhaniente errarás. [55] — Galaaz olhou o cavaleiro, que tão francamente lhe pedia, e não sabia o que responder, porque cuidou que era grande coisa e disse-lhe: — Erguei-vos, cavaleiro; eu vos dou o que me pedistes, se coisa é que possa dar ou deva. — Muito obrigado, disse o cavaleiro. Pois agora vos peço que me corteis a cabeça com esta espada que trago, que nada desejarei tanto, como morrer por mão de tão bom cavaleiro como vós, porque bem sei que bom cavaleiro como vós não me poderá matar. Então tirou a espada da bainha e colocou-a na mesa e disse: — Galaaz, pegai esta espada e fazei o que vos eu rogo. E ele olhou-o e começou a persignar-se pelo que lhe dizia, porque o teve por maravilha. E respondeu: — Ai, senhor cavaleiro! Outra coisa me pedi, porque a vós nem a outro cavaleiro não matarei, senão em defendendo meu corpo ou meu senhor. — Certamente, disse o cavaleiro, isto não fareis em começo de vossa cavalaria, que me não cumprais o que me prometestes, porque por isso seríeis o pior cavaleiro do mundo e o mais mentiroso, se assim começásseis. — Não vos é vantagem, disse Galaaz, de me tal pedido fazerdes, porque não há nada no mundo por que vos matasse assim. — Não? disse ele, não me cumprireis minha promessa? — Outra promessa vos manteria, disse Galaaz, mas esta não faria, ainda que pudesse. Então se ergueu o cavaleiro e tomou a espada na mão e disse: — Agora vos farei outro pedido: ou vós me matais, ou eu vos matarei. Agora escolhei qual quereis. E Galaaz começou a sorrir e persignou-se, tanto tinha isto por grande maravilha. — Vede, pois, disse ele, por boa fé, cavaleiro, sois o mais louco e o mais néscio de que nunca ouvi falar, porque quereis que, por força, alguém vos mate. — Se me não matardes, disse o cavaleiro, de manhã me matará outro, de quem ninguém, exceto Deus, pode me guardar, porque aquele é o homem do mundo a quem pior quero e a quem menos prezo. Então queria que me matásseis vós, para que não me achassem de manhã vivo. — Como quer que aconteça, disse Galaaz, de modo algum vos matarei. — Não? disse ele. Pois quero-vos eu matar. Então ergueu a espada e fez de conta que o queria matar. Mas Galaaz, que nunca tivera medo, não se moveu, porque nunca [56] du|vidou do que quer que fosse. E quando o cavaleiro viu que o não podia espantar, disse: — Galaaz, agora bem vejo que acabarás as aventuras do reino de Logres, porque te vejo esforçado, como nunca cuidei ver alguém que o fosse tanto. E por isso te provei eu; porque és mais valente que outro, te deixei de matar, porque muito seria grande o dano se neste momento morresses. E pois que de manhã hei de morrer, não por ti, quero lamentar minha morte. Então enfiou a espada em si e com sofrimento de morte caiu e disse a Galaaz. — Senhor, roga a Deus por mim. Logo que isto disse, morreu. E quantos na casa estavam, ficaram maravilhados. Então vieram os cavaleiros e escudeiros e tiraram-no do paço onde comiam. Os cavaleiros disseram ao senhor do castelo que o fizesse enterrar e que perguntasse por seu nome e por seus feitos e os fizesse escrever sobre seu túmulo para que os que depois viessem soubessem aquela maravilha. Naquela hora, tomaram a decisão de partirem de manhã e que cada um tomasse o seu caminho, porque por mal e por covardia tomariam, se andassem juntos. 46. Como partiram os cavaleiros. No outro dia, pela manhã, ouviram missa e depois montaram e encomendaram a Deus seu anfitrião e agradeceram muito quanto lhes fizera. Depois, saíram do castelo e assim que chegaram à floresta, partiu cada um por onde achou a carreira ou senda, e muito choraram ao partir. Mas ora deixa o conto a falar dos cavaleiros e volta a Galaaz. VIII Galaaz recebe o escudo 47. Ora diz o conto que Galaaz, quando se separou de sua companhia, andou tres dias sem aventura achar que de contar seja, e não trazia escudo. E sabei que sempre o ermitão ia atrás dele a pé, porque não queria montar em animal. Ao quarto dia, aconteceu-lhe que chegou, à hora de vésperas, a uma abadia de monges brancos; e os frades acolheram-no muito bem, porque o reconheceram como cavaleiro andante, e fizeram-no descer, e levaram-no a uma câmara e o desarmaram. E ele olhou e viu dois cavaleiros da mesa redonda; um era rei Bandemaguz e o outro era Ivã, o bastardo. E assim que se reconheceram, ficaram muito alegres e abraçaram-se [57] e bem o deviam fazer porque eram como irmãos por causa da mesa redonda. Aquela tarde, depois que comeram, sairam por uma horta para folgarem, e Galaaz perguntou que ventura os trouxera ali. E rei Bandemaguz disse: — Viemos aqui para ver uma aventura maravilhosa que aqui há. — E que aventura é? disse Oalaaz. — Eu vo-lo direi, disse rei Bandemaguz; aqui há um escudo, que não pode alguém levar uma jornada daqui, se o deitar a seu colo, que não seja morto ou muito ferido. E dom Ivã veio aqui para vãlo; e quero prová-lo e levá-lo de qualquer maneira. — Por Deus, disse Galaaz, de grande maravilha falais; esta éuma das grandes maravilhas que vi e tenho por bem que o proveis. E se o não puderdes levar, eu o levarei, se puder, porque não tenho escudo. — Senhor, disse Bandemaguz, se vós a aventura provardes primeiro, creio que a acabareis, mas deixai-me pegar o escudo, e veremos se é verdade o que dizem. 48. Como os frades contaram a aventura do escudo a Galaaz e aos outros. Aquela noite, foram os cavaleiros muito bem albergados de quanto os frades puderam ter e fizeram muita honra a Galaaz pelo bem que ouviram dele dizer aqueles dois cavaleiros. De inanhã, depois que ouviram missa, perguntou rei Bandemaguz a um frade que lhe dissesse onde estava o escudo de que tanto falavam pela terra. E o frade disse: — Por que o perguntais? — Quero prová-lo, se o puder levar, e verei se tem tal virtude como dizem. — Nisto não vos louvarei eu, disse o frade, porque cuido que ganhareis desonra. — Não vos incomodeis, disse ele, mas se vos aprouver, mostrai-mo. — De bom grado, disse ele. E levou-os então para o altar e mostrou-lhes então o escudo, que estava de trás do altar, e o escudo era branco e tinha uma cruz vermelha. E o frade lhes disse: — Vede aqui o escudo que buscais. E eles o olharam e pareceu-lhes que era o mais formoso e o mais rico que nunca viram. E exalava tão bom odor, como se todas as espécies do mundo nele estivessem. Quando Ivã, o bastardo, viu o escudo, disse: [58] — Assim Deus me ajude, deste escudo digo eu tanto que nenhum cavaleiro o devia deitar a seu colo, se não fosse o melhor cavaleiro. E certamente, serei aquele que o não provarei, porque não me sinto tal que o deva fazer. — Em nome de Deus, disse rei Bandemaguz, eu o quero daqui tirar, não importa o que aconteça por isso. Então tomou o escudo e deitou-o a seu colo e disse a Galaaz: — Senhor, eu queria, se vos aprouvesse, que me esperásseis aqui até que víssemos o que podia advir desta aventura. E se me acontecesse mal por este escudo, queria que o provásseis vós porque bem sei que não sereis mal sucedido. — Eu vos esperarei, disse Galaaz, de mui boamente. E os frades lhe deram um escudeiro que fosse com ele em sua companhia e trouxesse o escudo, se o levar não pudesse, e tornasse à abadia com ele. 49. Como rei Bandemaguz foi ferido. Assim ficou então Galaaz, e Ivã com ele, e rei Bandemagu.z se foi; e depois que andaram quanto seria duas léguas, viram sair de uma ermida um cavaleiro de umas armas brancas. E vinha quanto o cavalo o podia trazer, a lança sob o braço, contra rei Bandemaguz. E o rei que o viu vir, voltou a ele e quebrou a lança nele. E o cavaleiro que o alcançou em descoberto, feriu-o tão rijaxnente, que lhe quebrou a loriga e meteu-lhe o ferro da lança por sob a espádua esquerda, e lançou-o em terra. Depois desceu e pegou-lhe o escudo e montou seu cavalo e disse-lhe: — Muito fostes louco, cavaleiro, que este escudo pegastes, porque não é outorgado senão para um homem só, e aquele convém que seja o melhor cavaleiro do mundo. Pelo grande erro que nisto fizestes, me enviou aqui aquele que toma as grandes vinganças, para tirar de vós vingança, segundo o erro que fizestes. Depois que isto disse a rei Bandemaguz, virou para o escudeiro e disse-lhe: — Toma este escudo e leva-o ao servo de Jesus Cristo, aquele que chamam Galaaz. E dize-lhe que o alto Mestre lho manda, que o traga, porque sempre será tão novo como agora é e tão formoso, e isto é grande coisa por que se deve muito amá-lo. E saúda-o da minha parte. — Senhor, disse o escudeiro, quem sois? — Isto não podes agora saber nem depois, disse o cavaleiro. — Pois que assim é, disse o escudeiro, que vosso nome não quereis dizer, eu vos rogo, pela coisa do mundo que mais amais, que me digais a verdade do escudo e de quem o trouxe a esta terra, porque nunca vi cavaleiro que a seu colo o deitasse, que lhe mal não viesse. [59] — Tanto me conjuraste, disse o cavaleiro, que to direi, mas não o direi a ti só, antes quero que tragas aqui o cavaleiro a que hás de levar o escudo e to direi diante dele, e dize-lhe de minha parte que, se quiser saber a verdade, venha falar comigo, porque bem aqui me achará. Então foi o escudeiro a rei Bandemaguz e perguntou-lhe se estava ferido. — Eu cuido, disse o rei, que estou ferido de morte. — E podereis cavalgar? disse o escudeiro. — Prová-lo-ei, disse ele, porque de ficar não me pode vir senão mal. Então se ergueu como pôde e cavalgou com muita dificuldade. E o escudeiro atrás dele para o segurar. 50. Como o escudeiro deu o escudo a Galaaz. Assim partiram daquele campo e voltaram à abadia e os frades pegaram rei Bandemaguz e levaram-no a uma câmara e esforçaram-se para lhe pensar a chaga, que era muito grande. E Galaaz perguntou a um frade que lhe cuidava da chaga: — Cuidais que possa sarar? Certamente, grande dano seria se por tal aventura morresse, porque o ouvi muito louvar de sangue e de cavalaria. — Senhor, disse o frade, não tenhais medo de morrer; mas nao devia ninguém dele ter dó, porque antes lhe havíamos dito que, se levasse o escudo, colheria disso mal. Então veio o escudeiro a Galaaz e disse-lhe perante quantos lá estavam: — Senhor, manda vos saudar o bom cavaleiro das armas brancas; manda vos dizer que vos envia este escudo, que o tragais, porque não há agora, como ele diz, ninguém no mundo senão vós que o tanto mereça. E diz que, se quiserdes saber donde veio o escudo e quantas maravilhas dele advim, vades a ele e ele vo-lo dirá. E eu vos levarei onde ele está. Quando os frades isto ouviram, humilharamse muito perante Galaaz e disseram: — Abençoadas sejam estas novas e bendito seja Deus, que o aqui trouxe, porque agora sabemos bem que por este serão acabadas as aventuras maravilhosas do reino de Logres. E Ivã, o bastardo, disse: — Senhor Galaaz, deitai este escudo ao vosso colo. E assim será um pouco minha vontade cumprida, porque, se Deus me ajude, nunca tanto desejei nada como ver o bom cavaleiro que deste escudo haveria de ser senhor. [60] Galaaz disse que o faria, pois lho enviaram, mas que antes queria ter suas armas; e trouxeram-lhas. Depois que ficou armado e montou em seu cavalo e deitou seu escudo ao colo, encomendou os frades a Deus e foi-se. E Ivã, o bastardo, que estava já armado para montar em seu cavalo, disse que lhe faria companhia. E ele disse que lho agradecia muito, mas não queria que ninguém fosse com ele, senão o escudeiro e o ermitão. Sem falha, o ermitão andava sempre atrás dele, às vezes longe, às vezes perto e contava-lhe cada dia as vidas dos padres santos e as estórias antigas. E contou-lhe de onde era, e de qual linhagem e de quais cavaleiros, e contou-lhe de José e de rei Mordraim e de Nascião, que homens foram e que cavaleiros e de quanto amor Nosso Senhor os amava. Isto era coisa que de bom grado mais no mundo escutava e mais o confortava, e tanto tinha gosto de ouvir que nada no mundo lhe agradava tanto. 51. Como o ermitão disse a dom Galaaz a verdade do escudo. Quando Galaaz chegou à ermida, onde o cavaleiro das armas brancas o esperava, o escudeiro que ia com Galaaz, assim que viu o cavaleiro, disse a Galaaz: — Senhor, vedes o cavaleiro que vos enviou o escudo. E o cavaleiro, assim que o viu, saiu em direção a ele e saudouo. E Galaaz também a ele. — Senhor, disse o escudeiro, agora contai a dom Galaaz o que dissestes que lhe contaríeis diante de mim. — Muito me agrada, disse ele, porque não há no mundo ninguém a quem antes devesse contar do que a ele, que é agora o escolhido que não tem par entre todos os cavaleiros que agora são e foram, há muito tempo. Então disse a Galaaz: — Sabei que me pede o escudeiro que vos faça saber a verdade deste escudo e por que tantas maravilhas por ele advieram àqueles que, por seu louco atrevimento, contra a proibição de Nosso Senhor, o deitaram a seus colos, porque lhes acontecem tantas desventuras como sabem nesta terra. Tudo isto ele me pediu que vos dissesse, porque não é justo que outrem saiba antes que vós, mas pois que aqui viestes, eu vo-lo contarei diante dele e diante deste ermitão que anda convosco e vos contou já dele um tanto. — Senhor, disse Galaaz, certamente, isto é uma coisa que desejei saber. — Pois vo-lo direi, disse o cavaleiro, tudo assim como aconteceu. [61] Então lhe começou a contar de tal modo como vos depois contará o livro. 52. Como o cavaleiro branco contou a Galaaz sua linhagem. — Galaaz, disse ele, aconteceu, já há muito tempo, que, depois da morte de Jesus Cristo, sessenta e dois anos, José de Arimatéia veio à cidade de Sarras, assim como o alto Mestre o destinava por sua vontade. Depois que chegou à cidade de Sarras com seus parentes, que eram então novos servos e discípulos de Jesus Cristo, o rei da cidade, que tinha nome Evalac e era então pagão, os recebeu muito bem. O rei estava então muito triste e muito desconfortado com Tolomer, um rei seu vizinho mais rico e mais poderoso que ele, que o guerreava e facilmente seria desbaratado, porque seus homens lhe falhavam, se não fosse Josefes, o filho de José, que lhe disse: — Rei Evalac, se me tu quiseres acreditar, eu te aconselharei de modo que terás alegria sobre todos os teus inimigos. E mais te farei ganhar a alegria que nunca terá fim. O rei ficou muito feliz com estas novas e perguntou-lhe que homem era. — Eu sou cristão, disse Josefes. Quando o rei isto ouviu ficou maravilhado, e mandou logo chamar seus clérigos, que disputassem com ele sobre a lei dos cristãos. E quando estavam reunidos, Josefes, que do Espírito Santo falava com simplicidade, os venceu a todos, assim que não houve quem falasse. Quando o rei viu Josefes tão sisudo, acreditou. E quando aconteceu que o rei queria ir contra Tolomer, que lhe entrava na terra, Josefes lhe disse: — Rei, faze-me trazer o teu escudo. E o rei o fez trazer logo. E Josefes pegou um pano de seda vermelho, e fez dele uma cruz e pregou-o no escudo com pregos bons, pequenos. Depois disse ao rei: — Vedes este sinal? — Sim, disse ele; é muito bom. — Certamente, disse Josefes, no mundo não há perigo de que não escapasse o que perfeitamente acreditasse naquele a quem por este sinal oramos. E por isso quero que o leves. E quando estiveres em tal perigo que não cuides escapar jamais, então o descobre e dize: “Deus, que neste sinal recebeste morte, tu me torna feliz e são a receber tua graça” e bem sabe verdadeiramente, se o chamares de bom coração, que não morrerás, antes terás alegria e honra. Então cobriu Josefes com um pano o escudo. [62] 53. Como Evalac viu aprova do escudo e como prendeu Tolomer. Então acreditou o rei que Josefes bem podia dizer a verdade. E apesar de que duvidava daquilo que dizia, fez levar consigo o escudo na batalha que havia de ter com Tolomer. Então partiu de Sarras e foi contra Tolomer, e juntaram-se umas gentes com as outras. E aconteceu assim que Evalac foi preso e desbaratado e levado para uma floresta, onde o queriam matar os que o prenderam. Quando Evalac se viu afastado dos seus, imaginou que jamais poderia escapar, se aqueles homens que o levaram o houvessem de meter na floresta. E então pegou o pano com o qual o escudo estava coberto e viu na cruz uma imagem do crucificado, que lhe parecia que lhe caíam dos pés e das niãos gotas de sangue. Quando isto viu, tomouse-lhe por isso o coração de grande piedade, que era maravilha. Então disse em seu coração: “Senhor Deus, que por este sinal tomaste morte, faze-me tornar ã minha cidade são e feliz, que receba a tua santa crença e que os outros saibam por mim que tu és verdadeiro e poderoso em todas as coisas.” Por esta palavra que vos digo, disse o branco cavaleiro a Galaaz, ficou o rei Evalac livre do perigo em que estava, porque Nosso Senhor me enviou lá para socorrê-lo e tão bem o ajudei, pelo poder que me deu aquele que para lá me enviou, que o livrei daqueles que o tinham, e tanto fiz que Tolomer foi preso e toda sua gente destruída. 54. Como Evalac venceu seus inimigos. Depois que rei Evalac venceu seus inimigos, voltou para Sarras e recebeu o batismo pelos grandes milagres que lhe Nosso Senhor mostrara, porque viu que o cavaleiro que o braço cortado tinha, assim que tocou o escudo, logo ficou curado. E ainda aconteceu outra maravilha, que a cruz se desprendeu do escudo e se prendeu ao braço do cavaleiro. Quando o rei viu isto, mandou guardar muito bem o escudo, porque se comoveu muito pelos milagres que lhe Nosso Senhor mostrava por ele. E quando aconteceu pois que ele veio a esta terra para livrar José de prisão, andou com Josefes, seu filho, de José, por quem Nosso Senhor fazia tanto bom milagre, que maravilha era. 55. Como o cavaleiro contou a Galaaz como fora feita a cruz no escudo. Depois que Evalac permaneceu nesta terra muito tempo com Josefes, este havia de cumprir sua vida. Quando o rei viu que ele havia de passar, rogou-lhe, por Deus, que lhe deixasse alguma coisa, pela qual ainda se lembrasse dele. — Rei, disse Josefes, pois fazei-me trazer o vosso escudo, onde vistes o sinal do verdadeiro crucificado, pelo qual ficastes livre das mãos de Tolomer. [63] O rei lhe fez trazer o escudo. Aquela hora que o escudo trouxeram diante de Josefes, saiu-lhe tanto sangue das narinas, que o não podiam estancar. Josefes pegou o escudo e fez nele do seu sangue esta cruz, tal qual agora vedes, e este é o escudo de que vos conto. E depois que fez a cruz tal qual ainda podeis ver, deu o escudo ao rei e disse-lhe: — Vedes aqui a lembrança que vos deixo de mim, porque sabeis bem que esta cruz é do meu sangue. E sabei que sempre assim será fresca e vermelha, bem como agora vedes, enquanto o escudo durar; e não durará pouco, porque não o deitará cavaleiro ao seu colo, que se mal não ache, até a vinda do bom cavaleiro Galaaz, que será o derradeiro da linhagem de Nascião, que o deitará a seu colo. E por isso vos digo que nenhum será tão valente que o a seu colo deite, senão aquele a quem Nosso Senhor o tem outorgado. E como mais maravilha haverá deste escudo que de outro, assim haverá mais bondade de armas e de santa vida naquele que o há de trazer do que em outro cavaleiro. — Pois assim é, disse o rei, que tão boa lembrança aqui deixais de vós, dizei-me, se vos aprouver, onde deixarei o escudo? Porque queria eu, dc muito bom grado, que ele fosse posto em tal lugar, onde o encontrasse o bom cavaleiro, quando viesse. — Direi como fareis, disse Josefes. Lá onde virdes que Nascião se mandará lançar à sua morte, lá deixai o escudo. E lá chegará o bom cavaleiro, logo ao quarto dia que a ordem de cavalaria receber. E agora assim é, disse o cavaleiro branco a Galaaz, que ao quarto dia que fostes cavaleiro, viestes a este mosteiro onde jaz Nascião, e achastes aqui o escudo. E agora vos contei por que as más aventuras e as grandes aconteceram aos cavaleiros que, por sua louca valentia contra esta proibição, queriam levar o escudo que não estava outorgado senão a vós. 56. Como o escudeiro rogou a Galaaz que o fizesse cavaleiro. Assim que isto havia contado a Galaaz, sumiu-se de tal modo que nunca soube Galaaz o que fora dele, nem para qual direção se fora. E quando o escudeiro, que estava diante de Galaaz e tudo isto ouvira, viu que aquele que tudo contara havia sumido, desceu do seu rocim, e foi ficar de joelhos diante de Galaaz, e disse-lhe chorando: — Ai, senhor! Eu vos rogo, por amor daquele Senhor cujo sinal trazeis em vosso escudo e que em tal sinal recebeu a morte, que me recebais por vosso escudeiro e me façais cavaleiro. — Amigo, disse Galaaz, se eu quisesse companhia de escudeiro, não recearia a vossa, mas assim é que afastei de mim meus [64] es|cudeiros, porque não quero companhia de mnguém, a não ser por ventura, se me encontrar assim com alguém que não possa ser diferente. — Senhor, disse ele, fazei-me cavaleiro, por Deus, porque vos digo lealmente, segundo Deus, não já para me louvar, que pela ajuda de Deus, será em mim bem empregada a cavalaria, de acordo com a força e a valentia que tenho, e Deus, por sua bondade, me fará bem fazer meus feitos. IX Galaaz e a aventura do mosteiro 57. Como Galaaz atendeu o pedido do escudeiro. Galaaz olhou para o escudeiro e o viu chorar tão copiosamente, como se visse a pessoa do mundo que mais amava morta diante de si, e teve por ele grande compaixão. E por isso lhe concedeu que o faria cavaleiro. — Senhor, disse o escudeiro, pois assim é que me outorgais que me fareis cavaleiro, rogo-vos que me tomeis à abadia, porque lá terei cavalo e armas, e não volteis lá tanto por mim, como para ver uma aventura que há lá que vós tereis pela maior maravilha que nunca vistes; e como eu cuido, vós lhe dareis cabo, porque nunca houve cavaleiro que a ela pudesse pôr fim. E por isso seria bom voltardes lá. E ele disse que iria de boamente. Então voltaram à abadia, e os frades saíram em sua direção e receberam-no muito bem, e perguntaram ao escudeiro por que voltara lá; e ele disse que voltava para o fazer cavaleiro e para ver a aventura que lá havia. E Galaaz, assim que desceu, perguntou se poderia ver a aventura que ali havia. — Senhor, disse um homem bom, bem a podeis ver e nunca de tal maravilha ouvistes falar. E vos direi como tempo há que houve aqui perto um cemitério onde corpos de muitos homens bons e muitos santos jaziam. E aconteceu que um pagão, o mals desleal cavaleiro que nunca se viu na GrãBretanha e a mais endiabrada coisa do mundo, foi lá enterrado. E logo que foi enterrado, quantos na abadia estavam, viram logo os diabos sobre seu túmulo, e começou de lá sair uma voz tão infeliz que todo aquele que a ouvia podia perder a cor por muito tempo. E por esta maravilha vieram aí muitas vezes muitos homens bons e nunca houve um que se não achasse muito mal, porque, assim que ouvia a voz, não tinha força de se levantar do lugar; e alguns havia que morriam; e alguns que viviam, mas estes eram poucos. [65] — Aquele túmulo queria eu ver, disse Galaaz. E ele disse que lho mostraria, e levou-o então fora da abside da igreja e passaram por um cemitério, depois mostrou-lhe num grande campo ermo, uma grande árvore que lá havia e disse-lhe: — Em baixo daquela árvore está o túmulo de onde sai a voz que todo homem que a ouve perde o sentido e fica desmaiado para sempre; e se lá quereis ir e quer Deus que possais erguer a pedra, alguma maravilha encontrareis lá em baixo dela, que é muito grande verdade. 58. Como Galaaz acabou a aventura do mosteiro. Depois disto, não esperou mais Galaaz, mas foi logo ao túmulo; e assim que chegou lá, ouviu logo uma voz de tão grande dor que maravilha era, e dizia assim: — Ai, Galaaz, servo de Jesus Cristo, não te chegues a mim, porque me farás deixar este lugar em que até agora fiquei. Mas Galaaz isto ouviu, não se espantou, como aquele que era mais esforçado do que outro cavaleiro, e foi ao túmulo e quis erguer a pedra, e viu sair uma fumaça, tão negra como pez, depois uma chama, depois uma figura em semelhança de homem, a mais feia e a mais estranha coisa que nunca se viu, e persignou-se, porque bem lhe pareceu coisa do diabo. Então ouviu uma voz que lhe disse: — Ai, Galaaz santa coisa em ti vejo; eu te vejo cercado de anjos, que não posso resistir contra ti. E por isso te deixo o meu lugar, em que longo tempo folguei. Quando ele a voz ouviu, agradeceu muito a Jesus Cristo e persignou-se e lançou a pedra longe do túmulo e viu jazer no túmulo um corpo de cavaleiro todo armado, e uma espada ao lado dele, e quanto havia mister para cavaleiro, exceto cavalo e lança. E quanto ele isto viu, chamou os frades e disse-lhes: — Vinde ver o que aqui achei, e me direis o que ainda farei, porque farei mais, se mais devo fazer. E eles vieram e viram o corpo jazer no túmulo e disseram: — Senhor, bastante tendes feito e não convém que mais façais, porque este corpo não será daqui removido, como nós cuidamos. — Sim, será, disse um homem velho que ali estava, convém que este homem seja tirado deste túmulo, porque, nesta terra abençoada e sagrada, não deve tão desleal corpo e tão mau, como este era, jazer. — Amigos, disse Galaaz, fiz nesta aventura quanto devia fazer? — Sim, senhor, disseram eles, porque nunca mais se ouvirá a voz de que tanto mal vinha. [66] — E que interpretação podia ter esta voz, disse Galaaz, e esta aventura? Porque sem grande interpretação isto não podia ficar. — Senhor, disse um homem bom velho, eu vo-lo direi, e bem o deveis ouvir, porque muito maravilhosa coisa é. 59. Como Galaaz fez Melias cavaleiro. Então se afastaram do túmulo e voltaram ao mosteiro. E Galaaz disse ao escudeiro: — Amigo, esta noite fazei vigília para que de manhã sejais cavaleiro, assim como direito costume. E o escudeiro fez como ele mandou e ensinou. E o homem bom levou Galaaz a uma câmara e o fez desarmar e depois o fez deitar no leito e disse-lhe: — Senhor, perguntastes-me pelo significado desta aventura, a que hoje destes cabo. Eu vo-lo direi de muito bom grado. Nesta aventura havia três coisas mui duvidosas. Uma era a pedra do túmulo, que não era muito fácil de erguer; a outra era o corpo do cavaleiro; a terceira era a voz que todo homem que a ouvia perdia o sentido e a força dos braços e de todos os membros. Destas três coisas vos direi os significados. 60. Significado da pedra. Sabei que a pedra que cobria o túmulo representa os endurecidos corações que Nosso Senhor achou no mundo quando veio, porque na terra não encontrou senão corações duros. E bem aparecia, porque o filho não amava o pai nem o pai o filho, e por isso iam todos para o inferno. Quando o pai dos céus viu que na terra era tão grande a dureza dos corações, que os homens não queriam guardar as palavras dos profetas e faziam seus novos deuses, enviou à terra seu filho, para que aquela forte dureza dos corações pudesse amolecer para tornar os corações dos homens novos e obedientes. Depois que ele chegou à terra, achou os corações tão duros e tão envoltos nos pecados mortais, que tão difíceis lhe eram de tornar a si, quão difícil seria a alguém amolecer uma pedra muito grande. Por isso disse ele pela boca de seu profeta Davi: “Eu estou sozinho na minha paixão”; tanto quer esta palavra dizer como se dissesse: “Pai, muito pequena parte deste povo terei convertido até minha morte.” Ora, é assim que aquela missão para a qual o Pai‟enviou seu Filho à terra para livrar o povo, agora está renovada. Porque assim como a discórdia e a loucura fugiram com sua vinda, e a verdade, por ele, ficou conhecida, bem assim vos escolheu Nosso Senhor sobre todos os cavaleiros, para vos enviar pelas terras estranhas, para destruirdes as difíceis aventuras e para fazerdes conhecer como surgiram e de que modo foram começadas. E por isso se deve ensinar a vossa vinda como a de Jesus [67] Cristo, quanto à semelhança, mas não em grandeza. E assim como os profetas, muito tempo antes da vinda de Jesus Cristo, profetizaram sua vinda e que ele livraria o povo dos sofrimentos do inferno, bem assim profetizaram os santos ermitães e também muitos homens bons, a vossa vinda, muito tempo antes que vós viésseis. E diziam bem todos que jamais as aventuras do reino de Logres teriam fim, enquanto não chegásseis. E tanto vos esperamos que, agora, por graça de Deus, já o temos. 61. Significado do cavaleiro, o que demonstra. — Agora dizei-me, disse Galaaz, o que dizeis do cavaleiro? Que já muito bem me explicastes o que demonstrava a pedra do túmulo. — Eu vo-lo direi, disse o homem bom. O corpo do cavaleiro nos faz entender o povo que vivera sob aquela dureza dos corações muito tempo, assim que eles eram mortos e confundidos por muitos pecados mortais que carregavam sobre si e acrescentavam sobre si de dia em dia. E bem aparecia que estavam todos confundidos quando Jesus Cristo veio à terra. Porque eles, quando viram entrar em seu meio o Rei dos reis e o Salvador do mundo, não o conheceram, antes o tiveram por pecador e cuidaram que era tal como eles e acreditaram mais na voz do diabo do que nas outras palavras, e justiçaram sua carne por ordem daquele que todo o mal tem comandado — pelo diabo, que lhes andava todo o dia no ouvido. E por isso fizeram tal feito pelo qual depois Vespasiano os deserdou e os destruiu, assim que ele soube a verdade daquele profeta que eles justiçaram tão deslealmente. Assim foram todos mortos e confundidos, porque acreditaram no conselho do inimigo. Agora devemos crer como esta semelhança de agora e de então se ajusta no conjunto. Esta pedra que aqui está significa a dureza dos corações, que Jesus Cristo achou nos judeus e o corpo do cavaleiro significa os judeus e todos os hereges, que estavam todos mortos pelos pecados mortais, de que se não podiam livrar. A voz, que do túmulo saía, significa a dolorosa palavra que eles disseram a Pilatos, quando disseram: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.” Por esta palavra foram confundidos, e foram destruidos e ficaram desacreditados para sempre. 62. Significado do cavaleiro da paixõo de Jesus Cristo. Assim podeis entender nesta aventura o significado da paixão de Jesus Cristo e a lembrança da sua santa vida. E outra coisa acontecia então muitas vezes que os cavaleiros andantes vinham aqui e queriam entrar no túmulo, e o diabo, que os conhecia por pecadores e por envoltos nos pecados, os espantava de tal modo que, pela voz [68] espan|tosa que fazia, eles perdiam a força dos corpos e dos membros e jamais esta força, que perdiam, podiam recuperar. Mas isto não ousou traduzir Robert de Boron em francas de latim, porque os segredos da santa Igreja não os quis ele revelar, porque não convém que os saiba homem leigo. E, de outra parte, tinha medo de revelar a demanda do santo Graal, como a verdadeira estória do latim a conta, porque os homens, enquanto não sabem, ao estudar, caem em erro e em menosprezo da fé. E por isso, poderia acontecer que seu livro fosse proibido, que ninguém se utilizasse dele nem lesse, o que ele não queria de modo algum; e por isso, promete uma terceira parte do seu livro que exponha a demanda do santo Graal, as cavalarias e as proezas que os cavaleiros da mesa redonda fizeram naquela demanda, e as maravilhas que nela acharam, e como o santo Graal se foi da Inglaterra para a cidade de Sarras. E bem saibam todos que a divindade do Filho sofria, o que não convem, nem quer ele revelar, porque seria culpado diante da santa Igreja. Mas quem isto quiser saber, procure ver o livro do latim. Aquele livro vos fará entender e saber inteiramente as maravilhas do santo Graal; porque devemos louvar os segredos da santa Igreja, nem direi mais, segundo o meu poder, do que à estória convém, pois não convém ao homem descobrir os segredos do alto Mestre. X Aventuras de Galaaz e de Melias 63. Como Melias pediu a Galaaz que fosse com ele. Depois que aquele homem revelou a Galaaz o significado daquela aventura que acabara, disse que muito era a melhor interpretação que ele revelara. Aquela noite, fizeram-lhe os frades muito serviço, porque muito o prezavam e amavam. Antes da hora de prima, fez Galaaz o escudeiro cavaleiro, assim como era costume naquele tempo, e depois perguntou-lhe qual era seu nome e ele disse que tinha nome Melias e que era filho de rei. — Amigo, disse Galaaz, pois sois de muito juízo, guardai que seja empregada bem em vós a cavalaria de modo que a honra de vossa linhagem seja por vós levada à frente. Certamente, pois que filho de rei chega a ponto de receber ordem de cavalaria, deve-se adiantar em bondade de cavalaria e em toda proeza a todos os outros cavaleiros, assim como faz o raio do sol sobre as estrelas. E ele disse que a honra da sua linhagem não se perderia por ele porque pela dedicação de seu corpo que ele punha a serviço da [69] cavalaria, não deixaria de ser bom cavaleiro. Então pediu Galaa.z suas armas para se ir dali e trouxeram-lhas e armou Melias. E disse-lhe Melias: — Senhor, vós me fizestes cavaleiro, à merca de Deus e à vossa. E por isso tive tão grande prazer em meu coração que difidilmente vo-lo poderia eu dizer. Porque, sem falha, o melhor cavaleiro do mundo me deu armas. E vós sabeis que, segundo o costume, quem faz cavaleiro novo não lhe pode negar um dom, se vir que é razoável. — É verdade, disse Galaaz. — Senhor, disse ele, peço-vos pois, por favor, que me deixeis ir em vossa companhia convosco nesta demanda, até que a ventura nos separe: e se a ventura nos ajuntar, que me não tolhais vossa companhia. E ele lho outorgou de bom grado. Então pediu suas armas e, depois que foi armado, montou em seu cavalo e encomendaram os monges a Deus e andaram aquele dia e outro, sem aventura achar. Assim que, uma segunda-feira, lhes aconteceu de manhã, que chegaram a uma cruz de que partiam duas carreiras. E aquela cruz estava na entrada de um grande campo, e era de madeira muito velha, e acharam um letreiro que dizia: “Ouve tu, cavaleiro andante, que aventura demandar vens. Aqui há duas carreiras, uma à direita e outra à esquerda. E a da esquerda te proíbo eu. porque demasiado bom deve ser o cavaleiro que nela entrar, porque, se bom não fosse, não poderia sair dela sem grande dano. E da direita não te digo tanto, porque não há nela tanto perigo; mas, se nela entrares e não fores bom cavaleiro, não acabarás lá nada.” Quando Melias viu este letreiro, disse a Galaaz: — Senhor, por cortesia, deixai-me esta carreira da esquerda, porque quero provar se há em mim cousa pela qual deva ter mérito de cavalaria, se vos aprouver. — Certamente, disse Galaaz, eu iria por lá,que saberia melhor dar cabo de alguma aventura; creio que passaria por lá mais facilmente que vós. E ele disse que, ainda assim, por lá queria ir, e ele lho outorgou, pois viu que o muito rogava. E então se abraçaram e encomendaram-se a Deus, e cada um foi por sua carreira. 64. Mas ora deixa o conto a falar de dom Galaaz e torna a Metias. Diz o conto que Melias se separou de Galaaz e andou tanto tempo até que passou aquele campo e chegou a uma floresta velha e antiga que se estendia ao longo de duas jornadas; e andou tanto por ela que chegou a uma ribeira e encontrou muitas choças feitas e [70] duas tendas armadas e formosas e bem feitas de pano de seda vermelha. E entre as tendas, no meio, havia uma cadeira muito formosa e muito rica e, naquela cadeira, sentava-se um homem velho, mas não sei se era cavaleiro ou não; mas tinha coroa de ouro tão formosa e tão rica, como se fosse feita para algum imperador. Sabei que dormia tão profundamente, como se nunca tivesse dormido, mas não havia com ele homem nem outra coisa, a não ser as tendas. Quando Melias isto viu, chegou à cadeira, a cavalo como estava, e lhe pareceu a mais formosa como nunca vira. Mas quando viu que o homem bom dormia, pensou como o despertaria, porque muito lhe agradava saber de seus feitos, antes de retirar-se e disse em alta voz: — Amigo senhor, quem sois vós? Dizei-mo, se vos aprouver. E ele não respondeu nada; de novo chamou outra vez com mais alta voz que antes. E ele dormia tão profundamente; que se não despertou. E então disse Melias dentro de si: “Ai! Deus, será este homem rei? que nunca vi rei assim dormir; e pela maldade que nele vejo, quero-lhe tomar a coroa, porque cuido que nunca este homem foi rei, senão de dormir.” E então lhe tomou a coroa e a pôs em baixo de seu braço esquerdo, e deixou-o dormir, e foi pela floresta quanto se pôde ir a poder de cavalo. 65. Como Me/ias levou a coroa e como levou a donzela de Amador de Belrepaire. E Melias indo assim pela floresta, encontrou uma donzela, que fazia grande lamentação por um cavaleiro, que havia pouco que estava ferido, e a donzela era muito formosa, e Melias gostou dela e perguntou-lhe por que fazia tão grande lamento por aquele cavaleiro. Disse ela que outro cavaleiro o feriu agora de morte, que não pode cavalgar nem sair daquela floresta. E Melias lhe disse: — Donzela, o cavaleiro está morto e não o podeis levar, e mais vale que o deixeis e vades a um lugar a salvo, porque sei que, se aqui ficardes nesta floresta, logo vos poderia vir algum mal. — Não, senhor, disse ela, em deixá-lo aqui farei grande mal, e muito a contragosto o farei, porque muito me amava; mas, pois que, a ficar, a mim não haveria senão mal, e ele, se eu ficasse, não teria bem, irei convosco, porque tenho medo de andar perdida por esta floresta. — Donzela, disse ele, eu vos guiarei e vos levarei a salvo. — Senhor, disse ela, se isto soubesse, iria convosco, porque bem vejo que deste cavaleiro não posso ter ajuda, bem o cuido. Então disse Melias: — Parece-me perto de morto, mas ainda a alma nele está. [71] Então foi a donzela a seu palafrém, que atara a uma árvore, e cavalgou e deixou o cavalo do cavaleiro perto dele, que ainda o tinha pela rédea, e tinha perto de si o escudo e a lança, e não estava tão ferido que ainda não sarasse, se tivesse quem o curasse, porque, sem falha, Boorz de Gaunes o ferira tanto que estava desmaiado; mas o ferimento não era assim tão grande. E ouviu bem o cavaleiro quanto Melias e a donzela disseram, e soube que não era Boorz aquele com quem ela se ia, e teve muito grande pesar de que o deixara tão cedo a donzela, antes que soubesse se estava morto. 66. Como Amador foi atrás de Melias. Então se ergueu de onde estava e depois lançou seu elmo e limpou seus olhos, que tinha cheios de sangue, e depois ajeitou-se o melhor que pôde, como quem tinha grande força e grande ânimo, e cavalgou sobre seu cavalo e foi atrás de Melias para se vingar, e alcançou-o e gritou-lhe: — Deixar vos convém a donzela, porque em má hora a vistes. Depois baixou a lança. E quando Melias o viu vir, pôs a coroa numa árvore e voltou a ele e feriu-o tão fortemente, que meteu a lança pelo cavaleiro; e o cavaleiro que era muito forte, feriu Melias tão fortemente que lhe quebrou o escudo e a loriga e meteu-lhe pela costa esquerda o ferro da lança, e caíram em terra tão feridos, que não houve quem não tivesse necessidade de descansar e de quem o curasse. E o cavaleiro levantou-se, porque era muito forte de ânimo, e depois que viu que estava ferido de morte, meteu mão à espada, e foi à donzela e disselhe: — Eu estou por vós morto, e justo é que morrais por mim, porque de outra maneira, estaria mal vingada a minha morte. E então pegou a espada e cortou-lhe a cabeça. Depois que isto fez, não teve tão grande força que pudesse montar no cavalo, nem ir a Melias, antes caiu em terra tão ferido, que não cuidou sarar mais. 67. Mas ora deixa o conto a falar de Melias e torna a Galaaz. Quando Galaaz se separou de Melias, andou todo aquele dia sem aventura achar que de contar seja. Aquela noite, chegou à casa de uma viúva que morava no meio de uma floresta, que o albergou muito bem e, aquela noite, lhe contou o ermitão a vida e os feitos de sua linhagem, como eram leais a Jesus Cristo e o grande amor que lhes mostrava Jesus Cristo por seu serviço. De manhã, ouviu missa e despediu-se da mulher e cavalgou e andou até meio-dia. E então encontrou uma donzela, que andava num palafrém negro, que lhe perguntou: — Senhor, sois cavaleiro andante? — Donzela, sim, sou, por que perguntais? — Por uma mui grande maravilha, disse ela, que vos agora direi que encontrei naquela floresta. [72] — E que maravilha é? disse Galaaz. — Eu achei agora mortos dois cavaleiros e uma donzela, que tinha a cabeça cortada, e jazem todos os três no meio do caminho, e, se quiserdes ir por esta carreira por onde eu venho, vos levará a eles. — E é longe? disse ele. — Não, disse ela: não há mais que dois arremessos de besta. 68. Como Galaaz achou Melias ferido. E então foi Galaaz para onde lhe disse a donzela e achou o que buscava. E quando reconheceu Melias, teve grande pesar, pois bem cuidava que estava morto, e desceu e perguntou-lhe como se sentia. E ele levantou a cabeça, e, quando o viu, ficou muito alegre e disse: — Ai! senhor dom Galaaz, sede bem-vindo. Por Deus, levai-me a alguma abadia onde possa ter meus direitos da santa Igreja, porque bem sei que estou ferido de morte. — Muito me pesa, disse Galaaz; e quem vos feriu assim? — Senhor, disse ele, aquele cavaleiro que jaz ali, e bem creio que está muito ferido, tão mal como eu ou pior. — E aquela donzela, quem a matou? disse Galaaz. — Esse cavaleiro, porque vinha comigo, disse ele. Então foi Galaaz ao cavaleiro e tirou-lhe o elmo, porque, se pudesse, queria saber quem era. E depois que lhe tirou o elmo e o almofre, abriu o cavaleiro os olhos que tinha cheios de sangue e falou então e disse a Galaaz: — Quem sois vós que me o elmo tirastes? — Mas quem sois vós, disse Galaaz, que a esta donzela fizestes tal crueza? — Eu não fiz tanto quanto devera fazer, porque estou morto e da minha morte terão muitos grande pesar. — E quem sois vós? disse Galaaz. Porventura, sois da casa de rei Artur ou sois da mesa redonda? — Sim, sou, disse ele, e parti com os outros na demanda do santo Graal; mas assim me aconteceu, por meus pecados, que estou morto, e Deus dê melhor sorte aos outros do que a mim deu. Quando Galaaz ouviu que era da mesa redonda, teve grande pesar e teve medo que fosse dos da sua linhagem de rei Bam. E por isso lhe perguntou: — Como tendes nome? Então disse ele: — Eu tenho nome Amador de Belrepaire. E Galaaz reconheceu que era este o derradeiro cavaleiro que entrara na demanda do santo Graal, e pesou-lhe muito da sua morte, [73] porque o ouvira elogiar na corte, de cavalaria e de cortesia. E disse- lhe então: — Amador, muito me pesa da vossa morte, porque éreis bom cavaleiro. E Galaaz, isto dizendo, estendeu-se sobre ele com a dor da morte e disse: — Ai, Jesus Cristo, Pai de piedade, não olheis para os meus pecados, mas assim como um pai tem piedade de seu filho, se o engana, assim tende vós de mim como de vossa criatura e de vosso filho, ainda que eu seja pecador. Então ficou muito tempo assim, e Galaaz teve tão grande pesar que começou a chorar. E disse Amador outra vez a Galaaz: — Galaaz, mui santa pessoa e mui santo cavaleiro, roga por mim ao Rei dos reis, que tenha merca de tal pecador como eu sou, porque sei, com certeza que, se lhe pedires, terá de mim merca e ma dará, porque ele atende o pedido do justo. Assim que disse isto, saiu-lhe a alma do corpo. Quando Galaaz viu que estava morto, tirou o elmo e beijou-o, e isto fazia ele, porque era da mesa redonda. Depois que viu que estava morto, cerrou-lhe a boca, depois foi a Melias e perguntou-lhe o que lhe faria. — Senhor, disse ele, levar-me-eis a uma abadia, que há aqui perto; e se eu tiver que morrer, que morra antes lá que em outro lugar no ermo; e se tiver que sarar, depressa sararei. Então o desarmou Galaaz e tirou-lhe o ferro da ferida e atou-a o melhor que pôde. E quando o queria pôr na besta, chegou Ivã, o bastardo, e assim que viu Galaaz, reconheceu-o, foi a ele e saudou-o e perguntou-lhe a verdade como acontecera, e maravilhou-se, e teve grande pesar do cavaleiro, e disse: — Certamente, muito grande pesar terá rei Artur, quando souber da morte deste cavaleiro, porque, sem falha, Amador de Belrepaire era um dos famosos cavaleiros que havia na corte de rei Artur, em bondade de armas. E Galaaz disse: — Agora me pesa mais da sua morte do que antes, porque todo homem deve ter pesar da morte de homem bom e, mais, de tão bom cavaleiro como este companheiro da távola redonda. 69. Como Galaaz defendeu Melias dos cavaleiros. Eles isto dizendo, eis que vêm dois cavaleiros armados, que chegaram e perguntaram qual era o cavaleiro que trazia o escudo branco e a banda vermelha. E Galaaz disse: [74] — Vede-o aqui. E mostrou-lhes Melias, que estava lá; e os cavaleiros disseram: — Nós o andamos buscando, porque ele nos tem feito tanto mal, que, se não está morto, matá-lo- emos nós. — Assim? disse Galaaz, certamente não o fareis, porque o defenderei eu quanto puder. Então meteu mão à espada; e eles que o viram a pé, disseram-lhe: — Cavaleiro, vós sois sandeu, porque quereis vos matar de caso pensado. E cuidais poder conosco, estando nós a cavalo e vós a pé? E ele não respondeu ao que lhe eles disseram. Então feriu o primeiro que alcançou, tão rijamente que lhe cortou a metade da loriga com a coxa, assim que o corpo caiu de um lado e a coxa do outro. Quando o outro viu este golpe, não teve coragem de o esperar: além disso, viu que seria loucura esperar golpe de quem assim feria, e foi à coroa que viu estar na árvore e tomou-a e voltou-se e começou a ir quanto pôde. E Galaaz pôs Melias em seu cavalo e depois foi depós ele e levou-o a um mosteiro que ficava num vale, porque tinham medo dos ladrões, pois havia muitos na floresta; e assim fez Ivã, o bastardo, a Amador de Belrepaire, levou-o àquele lugar para o enterrar em sagrado; e a donzela, deixaram-na, porque a não puderam levar, e o conto não fala mais dela. Mas diz do cavaleiro que foi enterrado e foi seu nome escrito sobre o túniulo. E Galaaz perguntou aos monges se havia lá alguém que soubesse curar ferimentos. — Senhor, disseram, sim, há. E trouxeram um homem velho, que fora cavaleiro. E ele olhou logo Melias, e disse que o daria logo curado com a ajuda de Deus, e Galaaz ficou muito alegre e esteve lá três dias depois. (...) LXXIX Galaaz, Persival e Boorz na nave de Salomão Sepultamento da irmã de Persival 614. De manhã, partiram a tal hora que não viram rei Peles nem rei Peles a eles. E cavalgaram muitas jornadas até que chegaram à beiramar e acharam lá na praia a mui formosa nave, que Salomão e sua mulher fizeram e entraram e acharam sobre o leito, que no meio da nave estava, o santo Graal coberto de baixo de um rico pano de seda tão formoso e tão rico, que era uma grande maravilha; mostrou-o um ao outro e disseram: — Que boa ventura nos aconteceu, pois temos em nossa companhia o que desejávamos; com o que vamos onde apraza a Nosso Senhor que tenhamos de ficar. E depois que estavam dentro da nave, o vento a feriu tão violentamente, que a levou da praia e a meteu em alto mar. Assim navegaram muito tempo, que não sabiam onde Deus os queria levar; e toda vez que se deitava e se levantava, Galaaz fazia sua oração a Nosso Senhor, que a qualquer hora que lhe pedisse sua morte, lha desse. E tanto fez esta oração, que a santa voz lhe disse: [464] — Galaaz, Nosso Senhor fará tua vontade a respeito do que lhe pedes, porque à hora em que lhe pedires tua morte, a terás e acharás a vida da alma e a alegria perdurável. Esta oração que ele fazia ouviu muitas vezes Persival e pediu-lhe que dissesse por que tal cousa rogava. — Isto vos direi bem, disse ele. 615. Aquela hora que vimos uma parte das maravilhas do santo Graal, que Deus nos mostrou por sua piedade, vi umas coisas maravilhosas escondidas, que não são mostradas a qualquer pessoa. E vi tais coisas que língua não poderia contar nem coração sentir, e meu coração ficou em tão grande alegria e tão grande prazer, que, se então morresse, nunca alguém teria morrido em tão grande prazer como eu, porque vi tão grande companhia de anjos e tantas coisas espirituais, que, se então morresse, iria logo para a perdurável vida dos gloriosos mártires e dos verdadeiros amigos de Nosso Senhor. E por isso fazia eu o rogo que ouvistes. E por isso ando ainda em tal estado que morro, vendo as maravilhas do santo Graal. Deste modo revelou Galaaz sua morte a Persival como havia de ser, como lhe ensinou a santa voz. 616. Aquela noite aconteceu que estava dormindo Galaaz e veio a ele um homem muito formoso, vestido de uns panos brancos, e disse-lhe: — Galaaz, bem sei o que pensavas quando adormeceste. — E como o sabeis? disse Galaaz. — Eu o sei bem, disse ele. — Pois dizei-mo, disse Galaaz. E ele respondeu: — Pensas se voltarás ainda ao reino de Logres ou se o santo Vaso lá voltará. Eu te digo que jamais voltarás ao reino de Logres, nem Persival, mas Boorz voltará; e jamais o santo Graal, que tanto bem fez no reino de Logres, voltará lá, porque não o veneraram lá nem serviram como deveriam, e, por quanto bem dele tiveram, muitas vezes, não deixaram de pecar; por isso serão privados dele de modo que jamais o terão. Deste modo soube Galaaz que o santo Vaso não voltaria à Grã-Bretanha. 617. De tal modo como vos digo, perderam os da Inglaterra o santo Graal, que tiveram muitas vezes muito bem por ele, e foram muitas vezes saciados por ele e, enquanto ele esteve no reino de Logres, nunca houve fome na terra. Mas assim que se retirou, começou tal [465] fome, que durou três anos e foi tão grande, que morreu muita gente e o sofrimento foi tão grande que, por pouco, não se comiam os homens uns aos outros. E então lembraram eles do santo Graal, e disseram que tinham sofrido muito grande perda e lhes acontecera por seu pecado e por sua desventura. E quando rei Artur viu esta fome na terra, disse: — Certamente, esta fome e aflição merecemos nós por nosso pecado, e bem se mostra pelo santo Graal; e assim como Nosso Senhor o deu a José e aos outros homens bons, que de sua linhagem vieram, por sua bondade e por sua proeza, assim o tirou de nós por nossa maldade e por nossa má vida, e por isso se pode ver que os maus perderam por sua maldade o que os bons mantiveram por sua bondade. Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e de toda sua companhia e torna aos três cavaleiros. 618. Muito tempo andaram os três cavaleiros pelo mar e um dia aconteceu que foi Galaaz ao convés da nave para saber se veria terra, e olhou e viu a cidade de Sarras e mostrou-a aos outros e tiveram grande prazer sobejo porque, havia muito tempo que não viam terra de nenhum lado. Então ouviram uma voz que lhes disse: “Saí desta nave, cavaleiros de Jesus Cristo, e tomai esta mesa de prata como está, e levai-a à cidade, mas de nenhum modo a ponhais na terra até que chegueis ao Paço Espiritual, onde Nosso Senhor fez o primeiro bispo Josef.es.” E eles queriam já pegar a mesa e olharam pelo mar e viram vir uma barca, aquela em que meteram a irmã de Persival. E quando a viram, disseram: — Bem cumpriu esta donzela o que nos prometeu. 619. E quando chegaram à praia, pegaram a mesa e tiraram-na da nave, e pegaram-na pela frente Boorz e Persival, e Galaaz na outra extremidade e assim foram para a cidade, e quando chegaram à porta, estava Galaaz um pouco cansado. Diante da porta estava um paralítico, que ficava pedindo esmola aos que passavam, e, quando tinha de andar, apoiava-se em dois paus, e disse-lhe Galaaz: — Homem, vem aqui e ajuda-me a levar esta mesa e a poremos naquele paço. — Ai, senhor, disse ele, isto não posso fazer, porque há bem dez anos que não dou um passo sem ajuda de outrem. — Não importa, disse Galaaz, levanta-te e não tenhas medo, porque estás são. [466] E Galaaz isto dizendo, experimentou o homem se poderia erguer-se e achou-se são como se nunca tivesse tido mal. Então correu à mesa e pegou-a da parte onde segurava Galaaz e, quando entrou na cidade, disse a quantos achou o formoso milagre que Nosso Senhor lhe fizera. E, quando entraram no paço, puseram a mesa diante da rica cadeira que Nosso Senhor fizera para Josefes, e logo correram todos da cidade para ver o que fora paralítico e estava são. 620. Depois que os três cavaleiros fizeram o que lhes foi mandado, voltaram ao mar e tiraram a donzela da barca e levaram-na ao paço e soterraramna lá tão ricamente como filha de rei deve ser soterrada. Quando Escorante, que era rei da cidade de Sarras, viu os três cavaleiros, perguntou-lhes de onde eram e o que traziam sobre a mesa de prata. E disseram a verdade de quanto lhes perguntou e da força e virtude que Deus na mesa pusera. Aquele rei era bravo e desleal mais que qualquer outro do mundo, como quem era da maldita linhagem dos pagãos e não quis acreditar em nada de quanto disseram, antes disse que eram mentirosos e briguentos e esperou até que os viu desarmados e mandou então pegá-los e deitá-los na prisão e lá os manteve um ano. Mas deles não esqueceu Nosso Senhor, que logo meteu dentro o Graal com eles, pelo qual foram saciados de quanto mister houveram, enquanto estiveram na prisão. LXXX Morte de Galaaz e de Persival Boorz volta ao reino de Logres 621. No fim do ano, aconteceu que fez Galaaz esta oração a Nosso Senhor: — Senhor, a mim parece que vivi já muito neste mundo. Se vos aprouver, levai-me logo. Aquele dia mesmo que ele esta oração fez, rei Escorante estava doente de morte, e fez vir Galaaz diante de si, e pediu-lhe perdão do que lhe fizera que o afrontara tanto e tão sem razão. E ele e os outros lhe perdoaram de muito bom grado, e, quando ele morreu e foi enterrado, os da cidade ficaram em grande aflição, porque não sabiam a quem fariam rei, pois ele não tinha filho, e falaram isto muito tempo, e estando em seu conselho, disse-lhes uma voz: “Pegai o maior dos três cavaleiros estrangeiros, o qual vos guardará e manterá bem, enquanto estiver convosco.” [467] E eles cumpriram a ordem da voz, e pegaram Galaaz, querendo ou não, e fizeram-no rei, e puseram-lhe a coroa na cabeça, querendo ou não e desagradando-lhe muito, mas porque viu que o queriam matar se o não fizesse, concordou, e depois que foi rei, fez fazer sobre a mesa, onde o santo Graal estava, uma abóbada de ouro e de pedras preciosas tão ricas, que nunca alguém viu tanto. E Galaaz e os outros, cada vez que se levantavam, iam ao santo Vaso e ficavam de joelhos diante dele e faziam suas orações e suas preces. 622. Quando veio, no fim de um ano, o dia em que ele tomara a coroa, levantou-se muito cedo e os outros também. E quando entraram no Paço Espiritual, olharam diante de si o santo Vaso, e viram um homem revestido como clérigo de missa, que estava de joelhos diante da mesa e batia a mão no peito dizendo sua culpa; e estava ao redor dele muito grande companhia de anjos; e, depois que ficou muito tempo de joelhos, ergueu-se e começou sua missa da gloriosa Senhora. E quando chegou depois da secreta, que o homem bom tirou a patena de cima do santo Vaso, chamou Galaaz e disse-lhe: — Vem adiante, servo de Jesus Cristo, e verás o que tanto desejaste sempre ver. E ele se aproximou logo e olhou o santo Vaso e depois que olhou um pouco, começou a tremer muito violentamente, tão logo a mortal carne começou a ver as coisas espirituais, e estendeu logo suas mãos para o céu e disse: — Senhor, a ti dou graças e a ti oro e a ti bendigo, porque me fizeste tão grande merca, que vejo abertamente o que língua mortal não poderia dizer, nem coração sentir. Aqui vejo o começo das grandes audácias. Aqui vejo a razão das grandes maravilhas. E pois assim é, Senhor, que cumpristes minha vontade de me deixardes ver o que sempre desejei, ora vos rogo que, nesta hora em que nesta grande alegria estou, vos agrade que eu passe desta terreal vida e vá à celestial. E tão logo rogou a Nosso Senhor, o homem bom que cantava a missa tomou o Corpus Domini e lhe deu em comunhão. E Galaaz o recebeu com grande humildade e o homem bom perguntou: — Sabeis quem sou? — Não, disse ele, se não me disserdes. — Pois sabe, disse ele, que sou Josefes, o filho de José de Arimatéia, que Nosso Senhor te enviou para te fazer companhia. E sabes por que me enviou de preferência a Outro? Porque pareces comigo em duas coisas: porque viste as maravilhas do santo Graal [468] como eu, e porque é direito que um virgem faça companhia a outro virgem. Depois que Josefes disse isto a Gaiaaz, voltou Galaaz a Persivai e beijou-o, e depois disse a Boorz: — Saudai por mim muito a dom Lancelote, meu pai e meu senhor, tão logo o vejais. Então voltou para diante da mesa e ficou de joelhos e não demorou senão pouco. Quando caiu no chão, a alma se lhe saiu do corpo e levaram-na os anjos fazendo grande alegria e bendizendo a Nosso Senhor. 623. Tão logo ele morreu, aconteceu uma grande maravilha, Boorz e Persival viram que veio do céu uma mão, mas não viram o corpo de quem era a mão, e tomou o santo Vaso e levou-o para o céu com tão grande canto e com tão grande alegria, que nunca alguém viu mais agradável coisa de ouvir, assim como nunca houve quem na terra depois pudesse dizer com verdade que alguma vez também viu. Quando Persival e Boorz viram que estava morto Galaaz, tiveram tão grande pesar que não puderam maior, e se não fossem tão bons homens e de vida boa como eram, cairiam em desespero, tanto tiveram grande pesar. O povo da terra também teve muito grande pesar, porque era de vida muito boa e porque fora muito bom rei e porque os mantivera em sua honra e honra da terra. 624. Dépois que Galaaz foi enterrado no paço espiritual o mais honradamente que puderam os da cidade de Sarras, Persival se meteu ermitão numa ermida fora da vila, e pesou muito aos da vila, que já haviam decidido que o fariam rei, mas ele não quis e disse que Deus nunca o fizesse rei longe de seus amigos e do reino de Logres. E Boorz foi para Persival, mas não trocou a roupa do século, porque tinha empenho em ir ainda à casa de rei Artur. Um ano e dois meses viveu Persival na ermida. Então passou deste século e o fez Boorz enterrar no Paço Espiritual com sua irmã e perto de Galaaz. Quando viu Boorz que havia perdido Galaaz e Persival e estava em tão longínqua terra e tão estranha como se estivesse em terra de Babilônia, teve tão grande pesar, que não soube se aconselhar. E partiu de Sarras tão escondidamente, que ninguém o pôde saber, porque, se o soubessem, não o deixariam ir pela boa cavalaria que nele conheciam. Quando Boorz partiu de Sarras, veio até o mar armado e entrou numa nave e teve tão bom vento, que em pouco tempo chegou ao reino de Logres; e depois que andou tanto, achou quem lhe desse cavalo; e cavalgou e foi pelo mais curto caminho que conhecia para Camalote. E quando chegou a quatro jornadas [469] de lá, albergou em casa de um montanheiro e achou lá um cavaleiro que chegara pouco antes dele. 625. Depois que comeram, Boorz perguntou ao cavaleiro estranho de onde vinha. — Senhor, disse ele, venho de Camalote e não há sete dias que de lá parti. — E estava lá rei Artur? disse Boorz. — Sim, disse ele; deixei-o na corte bem com doze cavaleiros daquela linhagem, mas estavam muito tristes e tinham muito pesar de Boorz de Gaunes, que diziam que fora morto na demanda do santo Graal, e de Galaaz, o bom cavaleiro, e de Persival. Da perda destes três cavaleiros tinha rei Artur grande pesar. — Como vai, disse ele, na corte, a linhagem de rei Bam? — Muito bem, disse ele, fora duas coisas: uma porque rei Artur tem queixa um pouco de Heitor de Mares, que desafiou Galvão pela morte de Erec, depois que voltaram da demanda do santo Graal, e também pela morte de Palamades, e quer provar que não deve ser cavaleiro nem ter a companhia da távola redonda, e teria já acontecido a batalha se dependesse de Heitor; mas a rainha e dom Lanceloie meteram nisso paz, mas nunca depois se amaram; a outra é que a linhagem de rei Artur está condenada, e dizem em segredo, mas não sei se é verdade, que dom Lancelote deita com a rainha e o querem dizer ao rei para meterem mortal desamor entre o rei e a linhagem de rei Bam. — E que pensais disso? disse Boorz, assim Deus vos salve, pensais que é verdade? — Cuido, disse ele, tanto o ouço dizerem muitos homens bons que merecem crédito. 626. Aquela noite, perguntou muito Boorz por novas de sua linhagem. No outro dia, despediu-se de seu anfitrião e do cavaleiro e andou tanto por suas jornadas, que chegou a Camalote. Mas nunca por alguém viram tão grande alegria num lugar, porque muito era amado no reino de Logres por todos e por todas. Mas o prazer que tinha a linhagem de rei Bam não tinha par, porque consideravam que tinham em seu bando um dos melhores cavaleiros do mundo. E quanto agradara a eles, tanto pesara a Galvão, porque a linhagem de rei Bam crescia. Rei Artur, quando viu que Boorz estava já descansado dos grandes trabalhos que tivera mandou-o vir um dia diante dele e disse-lhe: — Eu vos digo, pelo juramento que fizestes quando daqui partistes, que me conteis todas as aventuras recentes pelas quais passastes nesta demanda em que tanto demorastes. [470] E Boorz, que era bom e de vida boa e não perjuraria de modo algum, disse todas as aventuras de que se lembrou que tivera, e como Galaaz e Persival tinham morrido. E sabei que se estivésseis ouvindo tudo aquilo, veríeis chorar muitos homens bons e muitos bons cavaleiros, quando ouviram como morreram Galaaz e Persival. Rei Artur fez escrever todas as aventuras que Boorz lhe contou. E sabei que estes três cavaleiros foram os mais louvados da demanda: Galaaz, Boorz e Persival. E Boorz se intrometeu em meter paz entre Heitor e Galvão, mas não podia ser, porque Heitor era de ânimo muito forte e não podia concordar em nada que fosse a favor de Galvão, porque o tinha por desleal, e amava tanto Erec, que não podia esquecer sua morte, e dizia que ainda seria vingado. Que vos direi? Boorz demorou na corte até perceber que Lancelote amava a rainha e pesou-lhe muito. Mas sabei que o cavaleiro de sua linhagem a quem mais pesava este feito era Leonel, porque era mais sisudo do que muitos, e quando se afastava com sua linhagem para onde não havia outro, dizia: — Pesar e dano nos advirão deste amor e em má hora foi começado. Tanto manteve já Lancelote este amor, que não há cavaleiro em casa de rei Artur, que algo não tenha ouvido a respeito, e não o encobrem ao rei, senão pelo pavor que têm da linhagem de rei Bam, porque sabem que o não dirá tal que morte não sofra. E os homens da casa de rei Artur que melhor o sabem sao Galvao e seus irmãos, mas não o querem dizer, porque entendem que nascerá disso grande mal. Mas ora deixa o conto a falar das novas que trouxe Boorz àcorte, de Galaaz e de Persival e do santo Graal e da condenação da rainha e de Lancelote, e torna a Agravaim, por contar de que modo descobriu Lancelote e a rainha contra o rei. LXXXI É revelada a rei Artur a deslealdade de Lancelote 627. Um dia, diz o conto que os irmãos se apartaram numa câmara e falavam mal do preito da rainha e de Lancelote; e Galvão, que era mais sisudo que os outros, disse: — Calai-vos, porque não há mister, porque se o dissermos ao rei, tal guerra poderá daí nascer, pela qual mais de sessenta mil homens poderiam morrer, e com tudo isto poderia não ficar nossa desonra vingada, porque sobejaniente é grande a força da linhagem [471] de rei Bam e Deus os pôs em tal honra e em tal poder, que não cuido que possam ser derrubados por alguém, e por isso deixemos isto, porque muito grande desgraça sobejo poderia advir. E não digo isto porque não queira mais mal à linhagem de rei Bam do que poderíeis cuidar, e, se dependesse de mim, veríeis o que eu mostraria. 628. Depois que isto Galvão disse, respondeu Gaeriete: — Como quer que digais isto entre nós, não concordo que por nós lhes sobrevenha mal, porque são todos muito bons homens e de muito ânimo e nosso senhor, o rei, os pôs em tão grande honra e em tão grande poder, de que só por homens não podem ser derribados, pelo que vos digo que vos guardeis de começar guerra contra eles, porque são tão bons cavaleiros e têm tantos amigos que logo nos poderiam sobrevir grande mal e muito grande desonra e, porventura, o reino de Logres seria destruido. Com isto concordaram Galvão e Gaeriete, mas os outros três não, antes disseram que o fariam saber ao rei e queriam antes ser mortos do que suportarem mais tão grande angústia de seu senhor e sua. — Ai! disse Gaeriete não o façais, porque se o fizerdes, comprareis vossa morte e a nossa. Ora olhai que não podeis ver em toda a linhagem de rei Bam cavaleiro que não valha dois dos outros e estão tão armados que, se hoje quisessem daqui partir, veríeis que mais da metade dos cavaleiros da távola redonda iria com eles. E não é jogo da graça que Deus lhes deu, antes grande maravilha como já metem todo o mundo sob seu poder, e o farão, sem falha, se longamente viverem. E por isso vos aconselho, por Deus e por vossa honra, que vos guardeis, e isto mantende em segredo, assim como amais vossos corpos. Mas eles não concordaram com nada do que lhes dissessem. 629. Eles nisto falando, entrou o rei e ouviu o que dizia Galvão a Agravaim: — Calar, disse; e nada mais. — Meu senhor e meu irmão dom Galvão, assim Deus me ajude, não calarei, antes o direi ao rei, se Deus ainda me ajudar. E o rei, que isto ouviu, aproximou-se e disse: — Agravaim, o que é que me direis? — Senhor, disse Galvão, não é senão bem; deixai-nos; isto não é conosco. — Ainda assim, disse o rei, quero saber. — Senhor, disse dom Gaeriete, não vos importeis; já por meu conselho, não sabereis mais, porque por saber alguém tudo, nenhum [472] bem pode sobrevir. E sabei que Agravaim não diz senão a maior chufa e a maior mentira. — Por Santa Maria, disse o rei, sabê-lo quero eu. Eu vos digo, pelo compromisso e pelo juramento que me fizestes, que me digais. — Senhor, disse Galvão, maravilha é que sempre vos enfureceis por saber novas. Sabei que não sabereis por mim nem por Gaeriete. E se alguém vos disser, mal lhe sobrevirá e a vós pior. — Assim? disse o rei. Ora quero saber por esta cabeça, de qualquer jeito. À boa ventura, disse Galvão, porque, se Deus quiser, por mim não o sabereis, porque não poderia sobrevir daí proveito nem honra para mim nem para outrem, e, sem falha, ganharia no fim vosso desamor, de modo que me quereríeis daí pior que qualquer outro, porque assim sucede de tal coisa. Então saiu da câmara e Gaeriete com ele, ambos com muito grande pesar, e disseram que em má hora fora esta conversa começada, porque, se o rei souber e se pegar com Lancelote, o reino de Logres será destruído, porque outra coisa não pode ser. O rei ficou com seus três sobrinhos, fechou a câmara e virou para eles e disse-lhes: — Dizei-me o que ora antes faláveis. — Assim Deus me ajude, disse Agravaim, não vos direi a respeito mais nada. — Por Santa Maria, sim, fareis, disse o rei. E foi muito rápido correndo a uma espada e sacou-a da bainha e disse-lhe: — Ou me direis, ou estais morto. E ergueu a espada para lhe dar um golpe, e ele, com pavor, disse: — Ai, senhor, parai, vo-lo direi. Então lhe contou o que falavam e disse que era verdade. O rei ouvira já alguma vez dizer que Lancelote amava a rainha, mas não o podia crer, tanto o amava sobejamente, pelo que vezes houve que respondeu deste modo aos que lhe diziam: — Por certo, se é que Lancelote ama Genevra, bem sei que não é por sua vontade, mas a força do amor o força, que costuma fazer da pessoa mais sensata do mundo sandeu e do mais leal cavaleiro desleal, e por isso não sei que vos diga, porque não cuidava de maneira alguma que tão bom cavaleiro como ele soubesse cometer traição. 630. Isto disse o rei de Lancelote, que não podia crer que fosse verJade. Mas aquela hora que os sobrinhos lhe foram testemunhas teve disso pesar superior a todos os pesares, porque ele amava a [473] rai|nha tão desmedidamente, que mais não podia. Então começou a pensar e ficou muito tempo sem falar. E Morderete lhe disse: — Senhor, nós vo-lo encobrimos o quanto pudemos, e ora vo-lo dizemos contra nossa vontade. Ora fazei o que vos parecer e que não venha mal a nossa terra e a nossos amigos. — Como quer, disse ele, que disso sobrevenha, eu me vingarei de modo que sempre a respeito falarão, e, se me quereis bem, rogo-vos que me apoieis nisso. E eles lhe prometeram que o fariam, e o rei lhes prometeu que faria tal justiça que sempre ele e sua linhagem ficassem honrados. Então saíram da câmara e foram ao paço, mas bem demonstrava o rei que andava sanhudo. 631. Todo aquele dia ficou o rei muito triste. E aconteceu, à hora de noa, que entraram no paço Galvão e Gaeriete, e quando viram o rei triste, logo perceberam que sabia já os feitos de Lancelote e da rainha, e por isso não foram por onde o rei estava, mas por outro lugar. E Gaeriete disse a Galvão: — Mau dia hoje chegou a Camalote. Se alguma vez conheci o orgulho da linhagem de rei Bam, o reino de Logres pagará isto que ao rei foi dito. Todos os do paço estavam calados, que não ousavam falar, pelo rei que viam triste, afora aqueles cinco irmãos. Depois entrou um cavaleiro, que disse ao rei: — Senhor, novas vos trago do torneio de Carais, onde os do reino de Sorelois e dà terra Gasta foram vencidos. — Ora me dizei, disse o rei, dos cavaleiros daqui esteve lá algum? — Sim, disse ele, Lancelote esteve, que os venceu a todos e levou por isso o apreço e a fama de uma parte e da outra. Quando o rei isto ouviu, baixou a cabeça e começou a pensar muito profundamente e, ao cabo de muito tempo, ergueu-se tão triste e tão angustiado, que não podia mais e disse tão alto que o podiam todos ouvir muito bem: — Ai, Deus! que aflição e que dano, quando em tal homem albergou traição! E foi para sua câmara e deitou-se em seu leito tão triste e tão aflito, que não soube o que fizesse, porque bem sabia que, se Lancelote fosse morto ou preso neste preito, nunca tão grande mal haveria pela morte de um cavaleiro do mundo, mas antes queria que morresse, do que sua desonra não ser vingada. Então mandou chamar seus sobrinhos e disse-lhes: — Quero que deis cabo e proveis este feito. [474] E eles disseram: — Senhor, em vosso alcance está e vos diremos como pode ser. Dizei, à noite, a vossos companheiros, que quereis ir de manhã àcaça, mas não leveis Lancelote convosco, e bem sabemos que, se ficar aqui, irá à rainha e o espreitaremos. — E o rei concordou com aquele conselho. Sobrevieram Galvão e Gaeriete e, quando viram que falavam nisto, disse Galvão ao rei: — Senhor, Deus faça que deste conselho venha bem a vós e a outrem, porque, certamente, temo que venha dele muito mal. Agravaim, meu irmão, rogo-vos que não façais nada a que não deis fim, e nada digais de Lancelote, que não sabeis verdadeiramente, porque, certamente, ele é muito melhor cavaleiro que vós. — Galvão, Galvão, disse o rei, fora daqui, porque jamais confiarei em vós, porque muito mal me andastes neste feito, que sabíeis de minha desonra e não me queríeis dizer. Certamente, quem. examinasse bem vos devia fazer como a desleal e traidor. — Senhor, disse ele, direis o que vos aprouver, mas traição nunca em mim vistes, e se traição fiz, nunca foi a vós nem em vosso dano. Então saiu da frente dele e disse: — Agravaim, nada daria por isso, mas sei verdadeiramente que há de vir grande mal, e muitos homens bons que nunca dano mereceram, morrerão por isso. — Ora, ainda que sobrevenha bem, disse Gaeriete ao rei e a vós, meu irmão, jamais me esforçarei neste preito, porque sei verdadeiramente que nunca alguém se pegará com a linhagem de rei Bam, que a bom termo possa chegar. — Por Deus! disse Galvão, não há homens no mundo que eu tanto desame. Mas são tantos e tão bons, que lhes prejudica muito pouco meu desamor. E por isso os deixo até que veja minha força. 632. Então saíram da câmara e foram à pousada de Gaeriete. E indo pela vila, acharam Lancelote e Boorz e Leonel e Heitor e Bliobleris com grande companhia de cavaleiros, e receberamse muito bem e com grande alegria, e Gaeriete disse então a Lancelote: — Eu vos rogo que esta noite passeis em meus aposentos, e sabei que vo-lo digo em vosso proveito. E ele concordou. Então voltou Lancelote com ele e foram àpousada e desarmaram-se; depois, à tarde, foram ao rei, e estando às mesas, disse o rei a todos os cavaleiros que, no dia seguinte, queria ir à caça. E Lancelote disse: — Senhor, eu vos farei companhia, se vos aprouver. [475] — Não, disse o rei, porque tendes mais necessidade de descansar que de caçar, porque chegastes hoje cansado do torneio, por isso quero que fiqueis. E ele não ousou contrariar a ordem do rei e disse que ficaria, mas bem entendeu que o rei não lhe fazia gesto de amor nem de bom cavaleiro como costumava, e maravilhou-se do que seria, porque não julgou que tivesse sido denunciado. À noite, quando voltaram à pousada de Gaeriete, disse a Boorz: — Vistes que atitude teve comigo hoje o rei? Não acreditarei em nada, senão que está com raiva de alguma coisa. — Sabei verdadeiramente, disse Boorz, que recebeu novas de vós e da rainha. Ora cuidai do que faremos, pois estamos numa guerra, que, por muito tempo, não acabará. Deus no-la faça bem acabar, porque o rei Artur é muito temido. — Ai, Deus! disse Lancelote, quem foi tão ousado que disse estas novas ao rei? — Se foi cavaleiro, disse Boorz, foi Agravaim; e se foi mulher, foi Morgana, que vos desama tão mortalmente como sabeis. Nenhuma outra pessoa ousaria dizer, senão uma destas. No outro dia, disse Galvão a Lancelote: — Eu e Gaeriete com estes outros cavaleiros queremos ir à caça; quereis ir? — Não, disse ele, porque não tenho hoje vontade de ir desta vez. Então foram atrás do rei e ele ficou. 633. Assim que rei Artur foi à caça, mandou dizer a rainha a Lancelote que fosse a ela, no çaso de ele não ter mais o que fazer, e ele ficou muito alegre e disse-lhe que iria o mais escondidamente que pudesse, e aconselhou-se com Boorz como o poderia fazer. — Ai, senhor! disse Boorz, por Deus, não vades, porque se fordes, pesar vos sobrevirá, porque meu coração, que nunca teve medo por vós, o diz. E ele disse que de nenhum modo deixaria de ir. — Senhor, disse ele, visto que não quereis ficar, ensinarei como ir lá escondidamente. Vedes aqui uma horta pela qual podeis ir, e ninguém vos verá. Mas ainda assim levai vossa espada, porque ninguém sabe o que pode acontecer. E assim fez ele, e foi à câmara da rainha. Mas bem sabei que Morderete e seus irmãos com muitos outros cavaleiros seguiam seu caminho. Assim que ele entrou na câmara, deitou-se com a rainha, mas não ficou muito que vieram à porta os que espreitavam, e acharam-na fechada e disseram: — Agravaim, que faremos? Arrombaremos a porta? [476] — Sim, disse ele. E, ao baterem à porta, ouviu-os a rainha e levantou-se toda intimidada e disse a Lancelote: — Ai, amigo! estamos mortos. — Como? disse ele, que é isto? E escutou e ouviu à porta grande rebuliço e grandes brados de pessoas que queriam arrombar a porta. — Ai, amigo! disse ela, ora saberá o rei meus feitos e os vossos. Tudo isto nos preparou Agravaim. — Assim Deus me ajude, disse ele, eu lhe urdirei por isso a morte. Então se levantou. — Ai, senhora, disse ele, há aqui alguma loriga? — Certamente, disse ela, não, porque apraz a Deus que morramos ambos. Mas se aprouvesse a Deus que escapásseis daqui são, não haveria quem ousasse me matar sabendo que estais vivo; mas cuido que nosso pecado nos destrói. Então foi Lancelote à porta e gritou aos que fora estavam: — Maus cavaleiros e covardes, esperai um pouco, porque logo tereis a porta aberta, e verei qual será o valente que entrará primeiro. Então abriu a porta e disse: — Ora entrai. E um cavaleiro que tinha nome Einaguis, entrou primeiro, porque desamava Lancelote. E Lancelote, que tinha já a espada levantada, feriu-o com toda sua força, que lhe não prestou arma que trouxesse, que o não fendesse todo até as espáduas, e o meteu morto no chão. E quando os outros viram este golpe, não houve alguém tão valente que quisesse entrar, antes se afastaram, de modo que a entrada ficou livre. Quando isto viu, disse à rainha: — Senhora, esta guerra está acabada. Quando vos aprouver, irei. E ela disse: — Se fordes a salvo, não temerei por mim. Então puxou Lancelote o cavaleiro que matara e fechou a porta para não entrarem os outros e desarmou-o e depois armou-se com aquelas armas o melhor que pôde e disse à rainha: — Senhora, agora posso ir, se Deus quiser, a salvo, porque de quantos aqui me aguardam me livrarei muito bem, como cuido. — Pois ide, disse ela, e pensai em mim, porque bem sei que logo terei mister de vossa ajuda. — Convém que eu vá, disse ele, mas se vos aprouver, levar-vos-ei, porque não há alguém aqui por quem vos deixe. [477] — Isto não quero eu, disse ela, porque assim logo seriam nossos feitos mais conhecidos; mas melhor o disporá Deus. Então abriu as portas Lancelote, e disse que não queria mais ficar preso, e feriu o primeiro com um tão grande golpe, que caiu no chão desfalecido; e os outros, que isto viram, afastaram-se, e não houve quem o caminho não lhe deixasse. E Lancelote foi à horta e da horta à pousada, e achou numa câmara Boorz, que tinha medo de que ele não voltasse, porque bem lhe dizia o coração que os da linhagem de rei Artur o pegariam com a rainha, se pudessem. 634. Quando Boorz viu armado seu senhor, que fora desarmado, logo entendeu que havia acontecido alguma briga e perguntou-lhe a respeito. E ele lhe disse tudo, como Agravaim e Morderete e Guerrees quiseram pegá-lo com a rainha, com grande companhia de cavaleiros, mas se defendera de modo que não puderam pegá-lo. — Ai, senhor! disse Boorz, ora vai mal, agora está o preito descoberto, agora começará a guerra que nunca acabará, e quanto vos amou o rei até aqui mais de coração que a qualquer outro que de sua linhagem não fosse, tanto vos desamará daqui para frente, depois que souber verdadeiramente a afronta que lhe fizestes com sua mulher. Ora vede o que possamos fazer, porque bem sei que de hoje em diante o rei será nosso mortal inimigo. Mas pela rainha, que será por nós julgada de morte, muito me pesa, e de bom grado queria que tivéssemos conselho como escapasse. A este conselho sobreveio Heitor e pesou-lhe muito, quando soube como estava a contenda, e disse: — Senhor, já que é assim, vamos àquela floresta e escondamonos; e quando a rainha for julgada de morte, levá-la-ão fora da vila para a queimarem. Então sairemos e a livraremos e a levaremos a Benoic ou a Gaunes; e depois não recearemos o rei. Com esta idéia concordaram Lancelote e Boorz e logo cavalgaram eles e vinte e sete cavaleiros muito bons que lá estavam, e depois que partiram de sua pousada, foram à floresta e meteram-se pela beira dela onde a viram mais espessa e lá ficaram até a noite. Então chamou Lancelote um seu donzel e mandou-o a Camalote para saber novas da rainha, e o donzel se despediu deles e cavalgou em seu rocim e foi ao paço. Ora deixa o conto a falar dele e torna aos três irmãos de quem Lancelote se separou. 635. Diz o conto que, àquela hora em que Lancelote escapou daqueles que o queriam pegar com a rainha, entraram eles na câmara e pegaram a rainha e fizeram-lhe muita desonra e muito pesar, e [478] disseram-lhe que estava agora a sua traição provada e que agora morreria. E ela chorava tão sentidamente, que bem deveriam dela ter dó os que a levavam. Hora de noa, chegou o rei da caça, e assim que apeou, logo lhe disseram novas da rainha, que acharam com Lancelote e estava presa. Quando ele isto ouviu, teve grande pesar, isto não pergunte ninguém, e perguntou se Lancelote estava preso. — Senhor, disseram eles, não, porque se defendeu tão violentamente como nunca alguém se defendeu. — Pois que, disse o rei, não está aqui, achálo-eis em sua pousada. Mandai armar cavaleiros e ide e prendei-o e trazei-mo, e farei justiça dele e da rainha juntos. Então foram-se armar bem trinta cavaleiros e não de boa vontade, mas porque o rei ordenou, e foram à pousada de Lancelote, mas não o acharam, e não houve quem ficasse muito alegre por isso, porque bem sabiam que achariam nele defesa mortal. Então voltaram ao rei e lhe disseram, e o rei disse que lhe pesava, mas, visto que não podia vingar-se em Lancelote, vingar-se-ia na rainha. O rei Iom lhe disse: — Senhor, o que quereis fazer? — Quero, disse ele, por esta deslealdade, fazer dela tal justiça, que todas as outras sejam castigadas. E mando a vós, rei Iom, primeiramente, porque sois rei, e a todos os ricos-homens também que aqui estão, e rogo-vos pela fé que me deveis, que cuideis de qual morte deve morrer, porque da morte não deve escapar, ainda que o julgásseis. — Senhor, disse rei Iom, não é direito costume nesta terra proferir juízo depois de noa, sobretudo de morte de homem ou de mulher, e acima de tudo, de tão alta dama como é a rainha. Mas amanhã cedo, se mandardes, o faremos. Então deixaram de falar nisso e o rei teve tão grande pesar, que todo aquele dia não comeu nem bebeu, nem quis que a rainha ficasse diante dele. 636. De manhã, hora de prima, assim que os ricos-homens foram reunidos, ordenou o rei a Morderete e Agravaim e a todos os ricos-homens que dissessem o que haviam de fazer com a rainha por direito juízo. E eles emitiram veredicto e disseram Agravaim e Morderete: — Este é o julgamento correto e não há outro: visto que, em lugar de tão alto homem como rei Artur meteu outro cavaleiro, deve ser queimada. [479] Com isto concordaram todos ou por vontade ou por força. Quando Galvão viu que davam tal julgamento, disse: — Se Deus quiser, nunca concordarei com tal julgamento, em que veja a morte da mulher do mundo que mais honra me fez. Então foi ao rei e disse-lhe: — Senhor, deixo-vos quanto de vós tenho, e jamais, enquanto viver, vos servirei. O rei não ligou a nada que lhe dissesse, porque muita outra coisa tinha em seu coração. E Galvão despediu-se dele e foi a sua pousada, fazendo o maior pranto do mundo. E o rei mandou fazer muito grande fogueira fora da vila no campo, e as lamentações e os prantos foram tantos e tão grandes pela vila, como se a rainha fosse mãe de todos. O rei mandou buscar a rainha, que viesse à sua frente, e ela veio chorosa, vestida de um pano de seda vermelho. E ela era tão formosa mulher e tão agradável, que no mundo não se acharia outra em sua idade. E quando o rei a viu, teve dela tão grande dó, que não podia deter nela o olhar, e mandou que a levassem de sua frente e lhe fossem fazer aquilo a que a condenaram. 637. Assim que a rainha saiu do paço e a levaram pelas ruas da vila, veríeis correr de todas as partes e sair moços e moças e velhos e velhas e ricos e pobres gritando e bradando e fazendo a maior lamentação do mundo, e diziam todos a uma voz: — Ai, boa senhora e de boa aparência e mais cortês e mais educada que outra mulher, em quem acharão depois os mais pobres conselho e piedade? Ai! rei Artur, que a fazes por deslealdade e bravura matar, pesar ainda te sobrevenha e sejas por isto destituído do reino, e os traidores que te levaram a fazer ainda morram de má sorte! Assim diziam todos os da vila, quando passava por entre eles; e depois iam todos atrás dela, gritando como se estivessem fora de juízo. LXXXII Lancelote arrebata a rainha O sofrimento de rei Artur 638. O rei ordenou a Agravaim e a seus irmãos que pegassem oitenta cavaleiros para guardar o campo onde a fogueira estava, de modo que, se Lancelote viesse, não a pudesse livrar. — Senhor, disse ele, se quiserdes que eu vá, ordenai a meu irmão Gaeriete que vá conosco. [480] E o rei ordenou, e Gaeriete disse que não o faria, mas tanto o ameaçou o rei que disse que iria. Então armou-se e todos os outros que Agravaim escolheu e Agravaim também se armou. E depois que ficaram armados e saíram da vila, disse Gaeriete a Agravaim: — Imaginais que venho aqui para me pegar com Lancelote, se ele socorrer a rainha? Sabei que não me esforçarei por isso porque, assim Deus me ajude, antes queria que outra coisa ele tivesse, enquanto vivesse, do que morte aqui. Assim falando, chegaram à fogueira. E Lancelote, que estava escondido na floresta, assim que viu seu donzel chegar, perguntou-lhe: — Que novas trazes da rainha? — Senhor, disse ele, más, porque a trazem para ser queimada. — Assim? disse ele. Ora cavalguemos, porque quem cuida matála morrerá por isso. E praza a Deus, se alguma vez ouviu oração de pecador, que ache lá Agravaim que armou isto. Então montaram e contaram-se e acharam trinta e três, e foram muito bem armados o mais que puderam para onde viram o fogo. E quando as pessoas que estavam no campo os viram vir, gritaram aos que guardavam a rainha: — Fugi, fugi! Vedes aqui Lancelote que vem libertar a rainha. E Lancelote, que vinha à frente dos outros, deixou-se correr para Agravaim, porque bem o reconheceu por suas armas, e feriu-o tão violentamente, que lhe não valeu escudo e loriga, que não metesse a lança por ele, de modo que o ferro apareceu da outra parte, e meteu-o por terra, e, ao cair, quebrou-lhe a lança. E Boorz se deixou ir a Guerrees e feriu-o com uma lançada, que o meteu em terra de tal modo que não houve mister mestre. E os outros, que com Lancelote vinham, foram ferir os outros e derribaram muitos deles; depois, meteram mão às espadas e começaram sua luta muito brava e muito feroz. Mas quando Gaeriete viu que seus irmãos estavam por terra, ficou muito sanhudo, porque bem cuidou que estavam mortos. Então se deixou ir a Meliaduz, o negro, que se esforçava muito por ajudar Lancelote e por vingar a honra da rainha, e deu-lhe uma tal lançada, que deu com ele e o cavalo na fogueira; e depois meteu mão à espada e feriu outro com tal golpe, que o meteu morto aos pés de dom Lancelote. E quando este, que muito observava Gaeriete viu que lhes fazia tal dano, disse consigo mesmo que, se muito durasse, muito os atrapalharia, e por isso mais valeria o matarem, se pudessem, embora fosse o cavaleiro da corte que os da linhagem de rei Bam mais amavam. Então foi dar-lhe tão forte espadada, que lhe deitou o elmo da cabeça no chão. [481] E quando ele sentiu a cabeça descoberta, ficou todo espantado. E Lancelote, que ia de uns a outros e andava correndo as fileiras de uma parte e da outra e não o reconhecia, feriu-o tão violentamente por cima da cabeça, que o fendeu até os dentes e o meteu morto por terra. E isto foi muito grande dano, porque era um dos bons cavaleiros da corte, e amara sempre Lancelote, mais do que outro cavaleiro da corte que alguma vez tivesse visto. Com este golpe ficaram os do rei apartados e desbaratados, de modo que de oitenta que eram, não escaparam senão três, que fugiram para a cidade. Um foi Morderete e os outros dois da távola redonda. E quando Lancelote isto viu, foi à rainha e disse-lhe: — Senhora, o que quereis que vos façamos? E ela respondeu muito alegre: — Queria que me levásseis a um lugar onde o rei não me pudesse fazer mal. — Senhora, disse ele, montai e vamos àquela floresta, e tomaremos lá conselho do que será bom fazer. E ela concordou. Então a puseram num cavalo, porque havia bastantes sem dono; depois foram à floresta onde a viram mais espessa e contaram sua companhia e acharam menos quatro, e perguntaram-se o que fora feito deles, e disse-lhes Heitor: — Vi três que Gaeriete matou. — Como? disse Lancelote, estava Gaeriete nesta luta? — E que é isso que me perguntais, disse Heitor; vós o matastes. — Ora, disse Lancelote, bem podemos dizer que jamais teremos paz com o rei e com Galvão, por morte de Gaeriete, de que me pesa muito, assim Deus me ajude. E agora começará a guerra que não acabará em todos os dias de nossa vida. 639. Muito teve Lancelote grande pesar da morte de Gaeriete, porque era dos cavaleiros do mundo que ele sempre mais amara. E Boorz disse a Lancelote: — Senhor, haverá mister ficar a rainha a salvo em lugar onde não tivesse medo do rei. — Se a pudéssemos ter, disse Lancelote, num castelo que eu conquistei, lá estaria a salvo, porque o castelo é forte à maravilha e fica num lugar que não pode ser cercado; e depois que lá fôssemos e o tivéssemos abastecido, mandaria pedir ajuda a muitos cavaleiros, a quem ajudei muitas vezes, e a muitos que conquistei, e são tantos que, se os tiver em minha ajuda e ficarmos naquele castelo, com facilidade poderemos guerrear com um homem de grande poder. — E onde fica este castelo? disse Boorz. [482] — Perto da cidade de Longuefão e chama-se castelo da Joiosa Guarda; mas quando o conquistei, há muito tempo, quando era cavaleiro novo, chamava-se a Dolorosa Guarda. — Ai! disse a rainha, já vi este castelo, e é exatamente tão forte, que não teme nada a não ser traição. Concordaram com isto e andaram tanto que chegaram a um castelo que ficava no meio da floresta e tinha nome Caleque e era senhor dele um conde muito bom cavaleiro e de grande poder, que amava muito a Lancelote, e quando soube que vinha, ficou muito alegre e recebeu-o muito bem e lhe fez todo o serviço que pôde e toda honra, e prometeulhe que o ajudaria contra o rei Artur e disse-lhe: — Senhor, senhor, eu vos dou este castelo para vós e a rainha e o deveis receber, porque é tão forte, que não tereis aqui medo de rei Artur. E Lancelote agradeceu muito, mas disse que a outro lugar queriam ir. No outro dia, despediu-se do conde Dangis, que lhe deu quarenta cavaleiros e o fez jurar que o ajudasse, como o ajudaria ele. Então partiram e andaram tanto que chegaram ao castelo da Joiosa Guarda. E quando os do castelo souberam que Lancelote vinha, saíram para recebê-lo, fazendo tão grande alegria e tão grande festa, como se fosse Deus. E quando souberam que havia de morar como eles e por quê, juraram que o ajudariam contra todos os homens do mundo e ele se animou com isso. Mandou logo buscar todos os da terra, e eles vieram e eram muitos, depois fez abastecer muito bem seu castelo. Mas ora deixa o conto a falar dele e torna a rei Artur. 640. Naquela hora, diz o conto, em que rei Artur viu voltar seu sobrinho Morderete com muito pequena companhia, maravilhou-se e perguntou como era aquilo; e um donzel que esteve onde a batalha acontecera, disse-lhe: — Senhor, muito más novas vos direi, de que vos pesará e a quantos aqui estão. Sabei que de todos os cavaleiros que levaram a rainha à fogueira, não escaparam senão três, e destes três que escaparam, um é Morderete e os outros dois não sei quais são. — Ai! disse o rei, Lancelote esteve lá? — Por Deus, senhor, sim, disse ele. E ainda fez mais, que leva a rainha consigo e entrou na floresta com ela. Quando o rei estas novas ouviu, teve tão grande pesar, que não soube o que fizesse. Nisto chegou Morderete que disse ao rei: — Senhor, vai mal! Lancelote nos desbaratou a todos e levou a rainha consigo. [483] — Ora, atrás dele, disse o rei, porque não escapará, se depender de mim. Então fez armar cavaleiros, servos e todos aqueles que com ele estavam e cavalgaram o mais rápido que puderam e foram à floresta e olharam de uma parte e da outra. Mas aconteceu que não o acharam. Então mandou o rei que se distribuíssem por muitas partes para ver se os poderiam achar. E rei Carados disse: — Senhor, isto não tenho por bem, porque se se dividirem e Lancelote os achar, a todos matará, porque traz boa companhia de bons cavaleiros. — Pois o que faremos? disse rei Artur. — Senhor, disse ele, vo-lo direi. Mandai vossos homens com cartas vossas a todos os desta terra, que ninguém ouse deixar passar Lancelote nem alguém de sua companhia, e assim, terá de ficar na terra; e depois que ficar e soubermos onde está, iremos a ele e poderemos facilmente pegá-lo e vos vingareis dele. 641. Fez o rei suas cartas e mandou a todos os portos de Logres para que ninguém ousasse deixar passar Lancelote ou alguém de sua companhia. E depois que enviou os mensageiros, dirigiu-se para onde fora a derrota e viu Agravaim, seu sobrinho, que Lancelote matara, e tinha um pedaço da lança no meio do peito, de modo que o ferro aparecia da outra parte. E teve tão grande pesar, que não pôde manterse em sela, e caiu sobre ele desfalecido e ficou assim muito tempo, e quando acordou e pôde falar, disse: — Ai, bom sobriilho! mortalmente vos desamava aquele que este golpe vos deu e grande dor meteu no meu coração quem tal cavaleiro abateu de minha linhagem. E depois que isto disse, tirou-lhe o elmo da cabeça e beijou-lhe os olhos e a boca; depois o fez levar à cidade. E depois percorreu todos os outros, e achou Guerrees, que Boorz matara, e tinha uma lançada pelo meio do peito. Ali veríeis o rei lamentação fazer e dizer que muito vivera quando via a morte dos homens do mundo que mais amava e com que pesar isto via. E depois fez levar Guerrees em seu escudo. E andou olhando os outros e olhou à esquerda e viu Gaeriete, que Lancelote matara, e este era o sobrinho que ele mais amava, afora Galvão. E quando viu aquele que tanto amava, não se comparou a dor que dos outros tivesse à deste. Então foi a ele e abraçou-o, e caiu desfalecido sobre ele, que os que estavam no lugar cuidavam que tivesse morrido. E depois que ficou assim o tempo que andaram uma meia légua, acordou e disse: — Ai, morte! como me tardas, porque me parece que já vivi muito. Ai, Gaeriete, meu sobrinho, se tenho de morrer de pena, [484] morrerei com pena de ti, porque nunca vi morte de que tanto me pesasse. Ai, bom sobrinho e bom amigo, em má hora foi feita aquela espada que assim te feriu e maldito seja o braço que tal golpe te deu, porque confundiu a mim e a toda a minha linhagem. Depois beijou-lhe os olhos e a boca e o rosto ensangüentado como estava, e fez tal pranto, porque todos o amavam e o prezavam, tanto era bom cavaleiro e bom cortesão. 642. Grandes foram os lamentos e os gritos que faziam por ele os mais, tanto parentes como amigos, e tomaram Gaeriete em seu escudo e o levaram à vila, e quando os da vila souberam que esta morte fora feita, veríeis o pranto violento e cada um pegava seu amigo e levava ao paço. A estes gritos saiu Galvão de sua pousada, que bem cuidava que a rainha já estava morta e este tão grande pranto era por ela. E estando na rua perguntando, disseramlhe: — Ai, dom Galvão, se quereis ver vosso grande pesar e a destruição de vossa linhagem, ide ao paço e lá vereis o maior pesar que nunca vistes. E ele teve grande pesar destas novas e não respondeu a nada que lhe dissessem, e baixou a cabeça muito triste e começou a dirigir-se ao paço, mas não cuidou que o pranto era senão pela rainha e olhou à direita e à esquerda e viu as pessoas todas chorarem e carpirem; e cada um lhe dizia: — Ide, dom Galvão, ide, e vereis vosso mui grande pesar e vossa mui grande pena. Quando ouviu que todos falavam daquilo, cresceu-lhe muito maior pesar, mas não o ousou mostrar e foi triste e pensativo. E, quando entrou no paço, achou todos tão grande pranto fazendo como se todos os parentes do mundo vissem diante de si mortos. E quando o rei viu Galvão, disse-lhe em alta voz: — Galvão, Galvão, vedes aqui vossa grande dor e minha; vedes, aqui está vosso irmão Gaeriete morto, o mais prezado cavaleiro da nossa linhagem. E mostrou-o todo ensangüentado, como o tinha reclinado em seu peito. Quando isto viu, Galvão não teve força para falar nada, nem para se manter de pé, porque lhe faltou o ânimo e o corpo fraquejou e caiu no meio do paço como morto, e ficou muito tempo desfalecido. E os ricos-homens, que lá estavam com grande pesar, que jamais cuidavam ter prazer, quando viram que era Galvão, foram pegá-lo e o seguraram em seus braços chorando muito sentidos e dizendo: — Ai, Deus! Como aqui há grande dano de todas as partes! [485] E depois que Galvão ficou assim muito tempo e acordou, levantou-se e voltou a Gaeriete, que estava morto e retirou-o do rei e abraçou-o e começou a beijá-lo e tomou-se-lhe de tão grande dor o coração, que não pôde se manter de pé e caiu por terra com Gaeriete e ficou maior tempo que antes, e depois que acordou, sentou-se e começou a olhar Gaeriete, e quando lhe viu tão grande golpe, disse: — Ai, bom irmão! maldito seja o braço que tal golpe vos deu, porque matou a mim e a toda a minha linhagem, e não vale mais por isso, porque, depois do que vejo, não quero mais viver, ai bom irmão, senão até que vos vingue do traidor que isto vos fez e me deu tão grande dor no coração. 643. Tal lamento fez Galvão e maior fizera, se pudesse, mas apertou-se-lhe o coração com pesar, de modo que o não pôde fazer senão tarde. E depois que esteve assim muito tempo, olhou a sua direita e viu jazerem Guerrees e Agravaim diante do rei sobre seus escudos em que os trouxeram. E quando os reconheceu, disse em muito alta voz: — Ai, mesquinho! em má hora vivi tanto, que vejo mortos de má morte meus irmãos! Então foi a eles e deixou-se cair sobre eles, e abraçou-os e beijouos ensangüentados como estavam e desfaleceu sobre eles muito amiúde, de modo que os altos homens que lá estavam cuidaram que morreria entre seus irmãos. 644. O rei, que estava tão abatido que não sabia o que pudesse fazer nem dizer, perguntou aos ricos-homens: — O que faremos? Porque se deixarmos aqui muito tempo Galvão, cuido que morrerá de pesar. — Senhor, disseram eles, acharíamos bom afastá-lo daqui e o guardarmos numa câmara até que estejam enterrados, porque, sem falha, se ficar muito tempo aqui, morrerá. E o rei concordou com este conselho, e levaram-no os ricos-homens a uma câmara desfalecido como estava. E todo aquele dia e aquela noite dormiu que nada falou. Todo aquele tempo foi grande a dor no paço e pela vila. E os cavaleiros mortos foram desarmados e enterrados cada um como valiam. Para Guerrees e Agravaim tão ricos túmulos fizeram e tão formosos, como se fossem para filhos de rei. E puseram-nos ambos juntos e meteram-nos dentro do mosteiro de Santo Estevão de Camalote, que então era Sé. Assim estes dois deitaram e à cabeceira destes, puseram outro tuniulo muito melhor e mais rico que algum daqueles e fizeram nele meter [486] Gae|riete. Mas ao enterrar, poderíeis ver o grande dó e o grande pranto, porque todos os arcebispos e bispos da terra foram lá e todos os altos homens bons, que puderam, chegaram a sua sepultura e fizeram tanta honra aos mortos quanto mais puderam, mas muito mais a Gaeriete. E porque era tão bom homem, fizeram erguer seu túmulo mais que todos os outros, e fizeram escrever um letreiro que dizia: “Aqui jaz Gaeriete, sobrinho de rei Artur, que Lancelote do Lago matou.” E também fizeram sobre as lápides dos outros escrever o nome daquele que julgavam que os matara. 645. Depois que os arcebispos e bispos e clérigos fizeram -tudo o que deviam fazer, voltou o rei a seu paço e sentou-se diante de seus ricoshomens com grande pesar, como não teria, se perdesse a metade de seu reino; e também estavam todos tristes, que não sabiam o que dizer e fazer. No paço estavam todos os ricos-homens e muitos outros cavaleiros e muita gente, mas tão calados estavam, que parecia que não havia ninguém lá. O rei estava na parte mais alta do paço muito triste, e depois que ficou muito tempo, disse tão alto que todos o ouviram: — Ai, Deus! quão longamente me suportastes e mantivestes em grande honra e grande altura, e agora estou em pouco tempo rebaixado e aviltado por desgraça. Nunca alguém perdeu tanto como perdi, porque esta é perda superior a todas as perdas; porque se alguém perde terra, pode recuperá-la, como muitas vezes acontece, mas se alguém perde amigo ou parente, não pode recuperar de nenhum modo. Senhores, esta perda sofri como vedes, e não por vontade de Nosso Senhor, mas pela soberba de Lancelote do Lago. E se esta perda me viesse por vingança de Deus, a suportaria com honra, mas veio por aquele que pusemos em mais alto lugar de honra que achamos, e recebemos em nossa terra tão honradamente como se fosse meu filho. Aquele nos fez este dano e esta desonra. E tendes todos de mim terra e sois meus vassalos, porque me fizestes homenagem e juramento, e por isto vos rogo, pelo direito que deveis cumprir, que me ajudeis e aconselheis como homens bons devem aconselhar seu senhor, de modo que minha desonra seja vingada e tenhais honra em quebrar e confundir aqueles que esta desonra me fizeram. 646. Depois que o rei isto disse, calou-se e esperou até que seus ricoshomens respondessem. E começaram a olhar-se e a dizer um ao outro o que falar. E depois que ficaram muito tempo calados, levantou-se rei Iom e disse ao rei: [487] — Senhor, sou vosso vassalo e de bom grado devo aconselhar-vos o que seja em vossa honra e em proveito do reino. Nossa honra, sem falha, é vingar com a nossa força, mas quem em proveito do reino quisesse olhar, não cuido que começasse guerra contra a linhagem de rei Bam de Benoic, porque vemos que Nosso Senhor os exaltou tanto sobre todas as outras linhagens, que se sabe que em força de gente e de boa Qavalaria e de boa linhagem, não há, que eu saiba, quem no mundo lhes pudesse muito prejudicar, estando eles em sua terra, senão vós; e, senhor, por isso vos rogo, por Deus, que não comeceis guerra contra eles, se não virdes que a podeis acabar muito bem, porque, certamente, a meu ciente, difícil será desbaratá-los. 647. Então foi grande o rebuliço no paço e falaram que rei Iom nada dissera e que o dizia por covardia. — Certamente, disse ele, não o digo por pavor maior que algum de vós, mas sei verdadeiramente que, depois de começada a guerra, e se recolherem eles a sua terra, nos temerão muito menos do que cuidais. — Certamente, dom Iom, disse Morderete, nunca de tão bom homem saiu tão mau conselho. Mas se o rei confiar em mim, de nenhum modo deixará de ir e de vos levar consigo, ainda que vos pese. — Morderete, Morderete, disse rei Iom, por certo irei com mais boa vontade do que vós. E vá o rei quando quiser, que, de bom grado, irei com ele. — E o que discutis? disse Mador da Porta. Se quereis a guerra, muito perto a achareis, porque Lancelote está num castelo que conquistou logo que foi cavaleiro quando andava nas primícias das aventuras pelo reino de Logres e o castelo tem nome a Joiosa Guarda e o conheço bem e sei onde fica e tenho o dever de saber, porque estive lá muito tempo preso e tinha grande pavor da morte, quando me livrou Lancelote a mim e a outros cavaleiros daqui que lá estavam presos. — Por Deus, disse o rei, esse castelo conheço muito bem, mas cuidais que está lá a rainha com ele? — Senhor, digo-vos verdadeiramente que a rainha está lá, e Lancelote com todos os seus parentes, assim como aqui estava e não vos aconselho que vades lá desta vez para lhes fazer mal, porque o castelo é tão forte, que nunca alguém o cercou; e eles são tão bons cavaleiros, que não recearão vos fazer guerra e desonra. 648. Quando o rei isto ouviu, respondeu: [488] — Por boa fé, Mador, verdade me dizeis do castelo, que é forte, e da soberba deles. Mas bem sabeis e quantos aqui estão que, desde que fui coroado rei, não comecei guerra a que não desse cabo à minha honra e de meu reino. Por isso vos digo que não deixarei de nenhum modo de fazer guerra contra aqueles que me têm feito traição e tão grande perda e rogo-vos primeiramente a quantos aqui estais que me ajudeis nisso, assim como em vós confio. Também mandarei chamar os que mais longe estão que de mim têm terra; e depois que estiver toda nossa força reunida, e pode ser daqui a quinze dias, partiremos então. E porque quero que não vos afasteis, quero que me façais todos homenagem e me jureis que mantereis comigo esta guerra com toda vossa força até que nossa desonra seja vingada. E fez logo trazer os santos Evangelhos e recebeu logo homenagem e juramento. Depois mandou dizer por toda sua terra, perto e longe, aos que dele tinham terra, que viessem a ele e marcou o dia em que estivessem com ele com toda sua força na Joiosa Guarda. Com isto concordaram todos e prepararam-se para ir lá e cuidaram levar a cabo facilmente o que diziam. 649. Quando Lancelote ouviu estas novas, mandou dizer ao reino de Benoic e ao reino de Gaunes, e aos ricos-homens que dele terra tinham, que guarnecessem bem os castelos, de modo que, se porventura tivessem de partir da Grã-Bretanha e ir para Gaula, tivessem seus castelos bem guarnecidos contra rei Artur. Depois, mandou a rainha para o reino de Sorelois, e mandou dizer à terra Forânea e a todos os cavaleiros que ele ajudara e a quem demonstrara amor muitas vezes, que viessem ajudálo contra rei Artur. E porque ele era o cavaleiro do mundo mais amado e que maior amor e honra fazia aos cavaleiros, e por aquele rogo com que os mandou rogar, vieram tantos cavaleiros em sua ajuda que, se Lancelote fosse rei coroado, seria grande coisa reunir tão grande cavalaria como reuniu na Joiosa Guarda. Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a rei Artur e sua companhia. LXXXIII Desfecho da guerra de rei Artur e de Lancelote 650. Conta a estória que aquele dia que o rei marcou para seus ricoshomens que estivessem reunidos em Camalote, o foram e houve [489] lá tão grande ajuntamento, que muito tempo havia que não se ajuntara tão grande cavalaria. Neste ínterim, ficou curado Galvão, que tivera muito grande enfermidade com o pesar da morte de seus irmãos. Aquele dia que foram reunidos, disseram ao rei: — Senhor, antes que partais daqui, teríamos por bem e seria assim como nos parece, que destes fidalgos que aqui estão, escolhêsseis tantos quantos mataram pela rainha e os metêsseis na távola redonda no lugar dos que mataram, de modo que a conta de cento e cinqüenta fosse preenchida, e bem vos dizemos que, se o fizésseis, nossa companhia seria mais temida. 651. O rei concordou com isto e disse que era bem, e chamou seus ricos-homens e ordenou-lhes pelo juramento e pela homenagem que lhe haviam feito, que escolhessem os melhores cavaleiros de bondade e de boas habilidades que achassem e não os deixassem por pobreza e por não serem de alta linhagem e os metessem na távola redonda. Então saíram à parte superior do paço e souberam primeiramente quantos eram os que faltaram, e acharam na contagem que faltavam setenta e dois e escolheram outros tantos que mereceram. Mas, sem falha, o maior assento da távola redonda, que continuavam a chamar o assento perigoso, não houve tão ousado que ousasse nele sentar. Mas no assento de Lancelote sentou um cavaleiro que tinha nome Elians e era o melhor cavaleiro e o mais afamado de toda a Irlanda e era filho de rei. No assento de Boorz sentou outro cavaleiro que tinha nome Balinor e era filho do rei das Estranhas Ilhas; aquele, sem falha, era muito bom cavaleiro e, por rogo de seus amigos, ganhou o assento de Boorz. E o assento de Heitor teve outro de Escócia, que era bom cavaleiro e poderoso de armas e amigos, e era grande de corpo e muito valente à maravilha e chamava-se Vadans, o negro, e era de muito alta posição, mas era tão bravo e tão invejoso, que não se conhecia cavaleiro que o fosse tanto. O lugar de Gaeriete teve um cavaleiro que se chamava Gaeris de Norgales e era jovem e muito bom cavaleiro; depois, os melhores dos outros cavaleiros que acharam meteram nos outros assentos. 652. Quando isto fizeram, as mesas postas, assentaram-se para comer e serviram aquele dia a mesa de rei Artur sete reis seus vassalos, e aquele dia ajeitaram seus feitos para que partissem no outro dia de manhã. No outro dia, ouviram missa e saíram e chegaram nesse dia a um castelo que tinha nome Lambor. No outro dia, partiram daí e andaram tanto por suas jornadas, que chegaram a meia légua da Joiosa Guarda, e porque viram o castelo tão forte que não [490] temia força de gente e não podia ser cercado, senão de longe, pousaram na margem do Ombre, e puseram a sua frente, enquanto se preparavam, cavaleiros armados de modo que, se viessem os do castelo, fossem tão bem recebidos como se deve receber inimigos. Deste modo se prepararam os da hoste para receberem seus inimigos. Mas os do castelo, que eram bons cavaleiros, mandaram boa parte de sua cavalaria que se escondesse numa floresta, que ficava perto dali, para terem condição de ataque imprevisto na guerra, quando vissem que fosse azado, de modo que fossem atacados pelos da floresta e pelos do castelo, e não deram nada por seu cerco, antes os deixaram pousar muito em paz e disseram que no outro dia atacariam. sairiam, assim que a guerra fosse empreendida por ambas as partes. Como disseram, assim o fizeram. Quando viram que os deixavam pousar em paz, ficaram muito seguros e disseram muitos deles que, se Lancelote tivesse grande companhia, não deixaria de nenhum modo de atacar, porque não era cavaleiro que suportasse mal que lhe fizesse seu inimigo. Quando Lancelote viu que rei Artur o havia cercado e era o homem do mundo que ele mais amara e lhe fizera mais honra, teve tão grande pesar que não soube o que fizesse, não por medo, mas porque amara o rei mais que outra pessoa que não fosse seu parente. E por isso pegou uma donzela e apartou-se com ela numa câmara e disse-lhe: — Donzela, ireis a rei Artur e lhe direis da minha parte que me maravilho muito, porque começou esta guerra contra mim, porque bem cuido que nunca tanto o afrontei por que o devesse fazer. Se vos disser que o faz pela rainha e que o afrontei como alguns dizem, dizei que me defenderei contra os dois melhores cavaleiros de sua corte que injustamente me recriminam, e pela honra dele e por seu amor que perdi por falsa acusação, dizei-lhe que me meterei em juízo diante de sua corte, se lhe aprouver. E se disser que começou esta guerra pela morte de seus sobrinhos, dizei-lhe que daquela morte não sou culpado por que me devesse desamar tão mortalmente, porque eles mesmos foram culpados de sua morte. Donzela, dizei ao rei, meu senhor, que não me sinto tão culpado contra ele, que não me submeta a julgamento em sua corte. E, se ele não quiser concordar com nenhuma destas coisas que lhe mando dizer, [491] resistirei a sua força com maior pesar que ele ou outrem cuidaria pensar. E saiba que, depois que a guerra começar, todo o mal que puder fazer aos seus, farei. E ele, verdadeiramente, porque o tenho por senhor e amigo, embora não me venha ver como amigo, mas como inimigo mortal, asseguro-lhe que não se guarde de mim, antes o guardarei sempre de todos aqueles que vir que lhe querem fazer mal. Donzela, isto lhe dizei. E ela disse que aquela ordem cumpriria tão bem que depois não pudesse ser culpada. A donzela se despediu dele e saiu do castelo, de modo que ninguém o ouviu. Isto foi à hora de vésperas. Naquela hora estava o rei ceando, e porque ouviram que era mensageira, assim que lá chegou, levaramna ao rei, e chegou-se ao rei e disse-lhe quanto Lancelote mandou. 653. Os cavaleiros da floresta eram em número de duzentos, muito bons cavaleiros e muito valentes, e Boorz e Heitor eram capitães deles; e os do castelo combinaram com eles este sinal: assim que de manhã vissem uma senha vermelha na maior torre, logo saíssem e fossem atacar, porque logo 654. Galvão, que estava perto do rei, ouviu quanto a donzela lhe disse e falou antes que os outros falassem e disse de modo que todos os ricoshomens o ouviram: — Senhor, senhor, está na hora de vingar vossa vergonha e o grande dano que recebestes de vossos sobrinhos por Lancelote, e tendes poder e força para fazer o que tínheis dentro do coração em Camalote: confundir e reduzir a nada a linhagem de rei Bam, que, por sua soberba e desmedida ambição, vos fez tão grande mal e tão grande dano, que jamais poderá ser vingado, senão por Deus. E isto vos digo, porque se agora fizésseis paz estando na hora de vos vingardes, vo-lo teriam por mal os vossos e os estranhos. — Galvão, disse à rei, o preito já está de tal modo que, enquanto viva, por cousa que Lancelote possa dizer ou fazer, jamais terá paz comigo, embora seja o homem do mundo a quem eu mais devia perdoar um grande erro, porque, sem falha, ele fez mais por mim do que qualquer outro cavaleiro. Mas, enfim, me fez um tão grande mal que vos prometo como rei que nunca comigo terá paz. 655. Então dirigiu-se à donzela e disse-lhe: — Donzela, dizei a vosso senhor que, de quanto me mandou dizer, nada farei e jamais, enquanto viva, não terá paz comigo. — Por certo, disse a donzela, senhor, isto é grande dano, mais para vós do que para outrem, porque vós, que sois agora o homem mais poderoso do mundo e o mais afamado, sereis por isso destruído e morto e os homens sisudos, que muito falaram do vosso fim, não estavam enganados, porque, quanto a isto, não há dúvida de que os sisudos adivinhadores que houve em nosso tempo, que sabiam grande parte das coisas que haviam de vir, disseram que, no fim, havia a linhagem de rei Bam de trazer mal e vencer e [492] asse|nhorear-se de todos os seus inimigos. E vós, dom Galvão, que devíeis ser sisudo, sois mais néscio do que eu cuidava, porque buscais vossa morte a ainda o podeis ver. A donzela despediu-se então do rei e foi para seu senhor e contou-lhe quanto lhe disse o rei, e ele teve grande pesar. 656. No outro dia, pela manhã, mandou Lancelote erguer a senha vermelha na torre, e os da floresta a viram logo e saíram e Lance-lote saiu àquela hora do castelo, e começaram a batalha muito violenta de ambas as partes. Naquela batalha, perdeu o rei Artur muito, e muito mais que os outros, porque os da linhagem de rei Bam eram de tão grande bondade de armas, que o rei e seus homens não lhes podiam resistir sem perder muito cada vez que se enfrentavam, e isto era muito amiúde. E no fim, perdera o rei tudo, se não fosse o arcebispo de Cantuária, que era parente da rainha, e excomungou todo o reino de Logres, porque o rei não queria voltar a sua mulher, mas quando o rei viu que a santa Igreja o constrangia deste modo, pegou-a. E ficou muito mais alegre do que parecia, porque ele amava a rainha sobre todas as coisas do mundo. E sabei verdadeiramente que Lancelote não a entregara, se não fosse que as pessoas percebessem que era verdade o que diziam. E ele se desculpava a respeito para muitos homens bons. 657. Depois que Lancelote deu a rainha, retirou-se de todo o reino de Logres com toda sua linhagem, e passou o mar e foi para Gaunes e fez reis coroados seus primos: a um deu o reino de Gaunes, e a outro o de Benoic e toda a Gaula, como lhe dera rei Artur. Naquele tempo podiam dizer bem os do reino que eram ricos de bom senhor e de boa cavalaria; porque tinham bom senhor, que bem mantinha a terra e o reino em paz. Mas aquela paz não demorou muito, porque depois veio aí rei Artur, com todo seu exército para vingar a morte de seus sobrinhos e isto foi por conselho de Galvão; e cercou a cidade de Gaunes, onde estava Lancelote com toda sua linhagem. E depois que a teve cercada, perdeu lá mais do que ganhou, porque sobejo tinham grande poder os de dentro. E, se Lancelote quisesse, muitas vezes o vencera e o prendera, mas não quis, porque amava rei Artur com muito grande amor. 658. Quando o rei viu que nada podia fazer naquele cerco para sua honra, disse um dia a Galvão: — Matastes-me, porque me fizestes aqui vir, porque os de dentro não dão nada por nós. Quando isto ouviu Galvão, teve grande pesar, e tão grande foi o pesar, que mandou dizer a Lancelote: [493] — Lancelote, se és tal que digas que não mataste meus irmãos, à traição, eu te provarei. E Lancelote quando isto ouviu, teve grande pesar e disse que se defenderia. E foi à batalha diante da cidade de Gaunes; e quando foram metidos no campo, fez Galvão seu tio prometer que, se Lancelote o vencesse, rompessem o cerco de Gaunes e dessem a Lancelote por quite de todo queixume que dele tinham; e Lancelote também fez sua linhagem prometer que, se Galvão o vencesse, todos se tornassem vassalos de rei Artur exceto rei Boorz e rei Leonel: estes dois ficassem livres desta convenção, porque eram reis. 659. Então foram combater ambos os cavaleiros, e durou a batalha muito tempo. Mas no fim, ficou Galvão tão ferido, que não pôde mais; e matara-o então Lancelote, se não fosse por amor do rei e de todos os ricos-homens do reino de Logres. E sabei que, naquela batalha, recebeu Galvão um tal golpe de que depois não pôde curar-se, antes o levou aquela chaga à morte. Quando a batalha foi encerrada, rei Artur deu por quite Lancelote e toda sua linhagem de quanto queixume dele tinha. Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a rei Artur, por falar como teve sua batalha com o imperador de Roma. 660. Nesta parte diz o conto que, assim que o pacto de rei Artur e de Lancelote foi feito, chegaram umas novas de que teve grande pesar e muito grande sanha, porque lhe disseram que o imperador de Roma estava na Bretanha com muito grande gente e queria tomar Gaula e depois passar ao reino de Logres e conquistá-lo. E o rei tinha muitos cavaleiros feridos e demorou até que sararam. Quando viu que Galvão e outros cavaleiros estavam já sãos, saiu com todo seu exército contra o imperador de Roma e lutou com ele e venceu-o e matou-o, e pegou muitos dos melhores de Roma e os fez jurar sobre os santos Evangelhos que o levassem a Roma; e, ao partir, disse-lhes: — Levareis aos romanos, de minha parte, o imperador, e lhes direis que esta é a renda- que lhes devo. LXXXIV Levante de Morderete Rei Artur na capela Veira 661. Aquele dia que os romanos foram vencidos, chegaram a rei Artur umas novas muito más, porque um escudeiro lhe disse: [494] — Senhor, perdestes o reino de Logres. Morderete, vosso sobrinho, sé virou com todos os homens bons da terra contra vós e é rei coroado de toda vossa terra, e cercou a rainha Genevra no aicácer de Logres e ameaçou que a mataria, porque o não queria receber por marido. E quero-vos contar como. Digo-vos que, quando rei Artur partiu de Logres sobre Lancelote, recomendou, sem falha, sua terra e sua mulher e sua gente, que ficava, a seu sobrinho Morderete e fez jurar sobre os santos Evangelhos que fizessem por Morderete tanto como por seu corpo. Quando Morderete viu que a terra estava em seu poder, logo pensou que faria de modo que seu tio não tivesse como voltar a ela. E ele amava a rainha como nunca Lance-lote a amou mais. E mandou então fazer uma carta falsa que fez trazer como a caminho de onde estava, perante os homens bons de Logres, que fizessem Morderete rei e lhe dessem a rainha por mulher. Os de Logres, que verdadeiramente cuidavam que era como a carta dizia fizeram Morderete rei; e quando lhe quiseram dar a rainha por mulher, não quis ela, porque o desaniava muito e meteu-se no aicácer de Logres, com gente de sua linhagem. E Morderete fez combater a torre, mas não a pôde tomar, porque os que dentro estavam eram muito bons e a defenderam bem. 662. Esta foi a traição que Morderete fez a seu tio, de que o rei teve grande pesar, quando a respeito ouviu as novas, e disse: — Agora cavalguemos, porque, se Deus quiser, não descansarei até que esteja em Logres. Quéia, o mordomo, fizera muito bem na batalha, mas saiu ferido de morte, e também Galvão e muitos outros bons cavaleiros. Quéia, que bem viu que não poderia ir à batalha, fez-se levar à Normandia, à casa de uma mulher que fora sua amante. Ali morreu Quéia e fizeram os da linhagem do rei, por amor de Quéia, uma vila que tem o nome Caião. 663. O rei chegou ao mar e passou-o com tanta gente como trazia. Galvão, assim que chegou à terra, morreu logo, e levaram-no ao castelo de Cros. Morderete, logo que assumiu o poder, fez-se amar tanto por todos, pelo muito bem que nele havia de muitas coisas, que todos o amavam muito. Por isso aconteceu que lhe disseram, quando souberam que vinha rei Artur: — Senhor, não tenhas medo, mas cavalga e defende o que nós te demos, porque temos gosto de receber morte por defender tua honra. [495] 664. Morderete fez então armar toda sua gente, e partiu de Logres, onde mantinha a rainha cercada. E assim que ele partiu, meteu-se a rainha num mosteiro de mulheres e pensou que, se Morderete vencesse, não seria tão mau que dali a tirasse, e se Morderete fosse vencido, iria para seu senhor. Morderete cavalgou com toda sua companhia tanto que alcançou rei Artur com muita gente. Quando os dois exércitos se encontraram, muito foi dito de uma parte e da outra, se poderiam meter nisso a paz. Mas não pôde ser, porque o rei não concordou. Todas estas coisas que aqui convém que vos não revele amplamente, achareis no conto do Brado, porque não me comprometi a revelar exaustivamente as grandes batalhas que houve entre a linhagem de rei Bam e de rei Artur, e o imperador de Roma e rei Artur, porque seriam mais que as três partes do livro. 665. Quando os exércitos foram ajuntados no campo de Salaber, lá se poderia ver bons cavaleiros de um lado e de outro. Por isso aconteceu que, assim que se feriram às lanças, veríeis tantos jazer em terra mortos e feridos, que maravilha era. E naquela batalha havia sete reis da parte de rei Artur. E o conto do Brado diz quais eram. Ali morreu Ivã, filho de rei Urião. Ali morreu Quéia Destrais e Dondinax, o selvagem, e Brandeliz e bem vinte da távola redonda, dos quais o que menos valia era tido por muito bom cavaleiro e por bom homem. Naquela batalha fez Morderete tão bem em armas e tanto se defendeu maravilhosamente, que não houve quem o visse naquele dia, que o não tivesse por muito bom cavaleiro estranhamente. E sabei que a estória diz que, em toda sua vida, não fez tanto em armas como naquele dia só, porque por suas mãos matou seis companheiros da távola redonda, de quem o conto do Brado conta os nomes e os feitos. E rei Artur também fez tão bem aquele dia, que todos os seus consideraram façanha e nunca mais cansava de ferir com a espada. Por isso Lucão, que estava perto dele e via as maravilhas que fazia,. disse a Gilfrete: — Dom Gilfrete, estejamos seguros de que venceremos esta batalha; vedes aqui rei Artur que boa figura nos faz. Bem ensina a vencer e matar seus inimigos. Bem deve ser chamado rei quem assim sabe ajudar sua gente. Isto disse Lucão, o copeiro, de rei Artur, quando viu que tão bem o fazia. E rei Artur andou tanto pela batalha, que achou Morderete e deu-lhe por cima do elmo um tão grande golpe, que o meteu em terra estonteado, e cuidou que estava morto, e disse-lhe: [496] — Morderete, muito mal me tens feito, mas não se tornou em teu proveito. 666. Rei Artur derribou Morderete como vos digo. Mas não ficou em terra nada, porque seus vassalos o ergueram. Mas quando montou o cavalo, teve grande vergonha de ter caído diante de seus homens. E deixou-se correr a Sagramor, e deu-lhe um tão grande golpe, que lhe deitou a cabeça longe, e o corpo caiu no chão. E quando o rei viu este golpe, disse: — Ai, Deus, como é grande a má andança do traidor, matar os bons cavaleiros e os leais. O rei recuperara já sua lança boa e forte e deixou-se correr a Morderete, que nada temia, tanto era de bom ânimo, e feriu-o tão rijamente, que lhe meteu a lança pelo peito e o cabo apareceu da outra parte. E diz a estória que, depois que tirou a lança dele, passou pelo meio da chaga um raio de sol, tão claramente, que bem o viu Gilfrete; por isso os da terra, depois que a respeito ouviram falar, disseram que era milagre de Nosso Senhor e sinal de pesar. Morderete sentiu bem que estava ferido de morte e feriu o rei, seu tio, tão violentamente que elmo nem almofre não prestou que a espada não fizesse entrar até o osso, e do osso lhe cortou grande pedaço. Daquele golpe, caiu o rei no chão e também Morderete. 667. De tal modo como vos conto, matou rei Artur Morderete e Morderete o feriu de morte. E isto foi grande mal e grande dano, porque não houve, depois de rei Artur, rei cristão tão venturoso e que tão bem fizesse seus feitos e que tanto amasse e honrasse cavalaria. Quando Bliobleris, que diante dele estava, viu este golpe, disse com muito grande pesar: — Ai, Deus! Agora vejo a profecia cumprida que os homens sisudos desta terra disseram muitas vezes, que rei Artur morreria pela mão de seu filho. Ai, Deus! que dano e que perda! Então apeou e aproximou-se do rei e o pôs em seu cavalo. E o rei estava ainda tão estonteado do golpe, que dificilmente se podia manter, no entanto, assim que acordou e viu Morderete jazer por terra, disse: — Morderete, em má hora te fiz cavaleiro. Tu me confundiste a mim e ao reino de Logres, e por isso estás morto. Maldita seja a hora em que nasceste! E aquela hora que o rei isto disse, estava já a batalha acabada, porque de sessenta mil, que aquele dia foram lá ajuntados, não ficaram senão sessenta, que não morreram. E Bliobleris, que fizera [497] tão bem de armas, que ninguém o fizera melhor, depois que pôs o rei em seu cavalo, desceu para Morderete, à vista de quantos lá estavam, e atou-o à cauda de seu cavalo e começou a arrastá-lo pelo meio da batalha. Então o levou de modo que ficou todo despedaçado. Do exército de Morderete não ficou ninguém vivo, nem do exército de rei Artur, senão quatro: o arcebispo de Cantuária e Bliobleris e Gilfrete e Lucão, que ainda estavam a cavalo. E rei Artur, que ainda estava a cavalo, mas bem sentia que estava ferido de morte. Quando viram que não ficara ninguém com quem pudessem combater e viram o campo de Salaber coberto em todas as partes de cavaleiros mortos, disseram entre si chorando: — Ai, Deus! Como há grande dano e grande perda! Ai, Deus! que não poderíeis mais mal nos fazer do que vermos aqui todo o mundo lazer morto de sofrimento e de dor! 668. Depois que fizeram seu pranto, despediram-se do campo doloroso. E o rei fazia tão grande dó, que morria, e o arcebispo o confortava quanto podia e disse: — Ai, senhor! se perdestes vossos amigos, por outro lado, graças a Deus, tivestes sorte, e escapastes vivo e vencestes esta mortal batalha e matastes vossos inimigos. — Ai! disse o rei, se escapei vivo, de que me adianta? Porque minha vida não é nada, pois bem vejo que estou ferido de morte. Ai, Deus! que sofrimento provocou tão grande desgraça a uma grande terra, pela traição de um mau homem! 669. Deste modo partiu rei Artur do campo de Salaber, e Bliobleris trazia ainda trás de si a cabeça de Morderete, porque, sem falha, o corpo estava todo despedaçado. O rei perguntou a Bliobleris: — Ficou-vos algo do traidor que tão mal nos confundiu? — Senhor, disse Bliobleris, sim, esta é a cabeça de Morderete. — Muito me apraz, disse o rei; faremos colocá-la em lugar onde possa ver quem quiser. E vós e o arcebispo ficareis neste campo e fareis uma grande torre em que deitem as cabeças dos que aqui morreram. E pendurai alto numa grande corrente a cabeça de Morderete e fazei escrever o grande sofrimento que neste campo aconteceu por ele, de modo que os que depois de nós vierem, quando souberem pelo letreiro o mal que por ele aconteceu, maldigam todos sua alma. 670. Bem como o rei ordenou o fizeram o arcebispo e Bliobleris, porque fizeram no campo uma grande torre e puseram-lhe o nome [498] a Torre dos mortos. E puseram nela a cabeça de Morderete, e ficou lá pendurada até que Carlos Magno passou à Inglaterra e foi ver a torre. E quando Galarão, o traidor, que depois fez tanto mal como o conto relata, soube por que a cabeça de Morderete estava lá. pendurada, pareceu-lhe que fora lá posta por injúria e por lembrança dos traidores todos do mundo e pesou-lhe muito, porque se tinha por tal. E foi lá de noite, e retirou-a e meteua em lugar onde não souberam depois o que dela foi feito. A torre ficou, sem falha; ainda hoje há muros dela. Mas ora deixa o conto a falar da torre e torna a rei Artur. 671. Ora diz o conto que, depois que rei Artur se retirou do campo onde a batalha foi tão mortal e tão dolorosa e se foram com ele Lucão e Gilfrete, cavalgou tanto que chegou a uma capela. E aquela capela tinha nome capela Veira. Mas de onde teve este nome, o romance do Brado o revela, porque diz mais respeito a seu conto do que a este. Quando chegaram à capela, o rei, que se sentia muito ferido, apeou e os outros com ele entraram na capela e o rei ficou de joelhos no chão diante do altar. E Lucão, que estava a seu lado também de joelhos, não demorou muito que viu o estrado ao redor do rei cheio de sangue. Então entendeu pela primeira vez, que o rei estava ferido de morte e dela não podia escapar, e não se pôde conter que não dissesse chorando: — Ai, rei Artur, como é grande o dano de vossa morte! Jamais tal homem devera morrer! E o rei ficou espantado com esta fala, como alguém se espanta quando ouve falar de sua morte. E respondeu: — O dano não será só meu; mas muitos homens bons perderão com isso. Então se deixou cair de costas; e ele era grande e pesado e estava armado. E aconteceu, quando caiu, que atingiu entre si e a terra Lucão, que já estava desarmado. E estendeu-se sobre ele tão violentamente, que o apertou muito em baixo de si, não por raiva que dele tivesse, mas pela grande dor que sentia, que o quebrou, de modo que logo morreu. 672. O rei, depois que ficou assim muito tempo, ergueu-se, mas não cuidou que matara Lucão. E Gilfrcte que viu que Lucão estava morto, disse-o ao rei. Ao rei pesou muito e disse como quem tinha grande dor: — Gilfrete, não sou rei Artur, a quem costumavam chamar rei venturoso, pelas boas venturas que tinha. Mas agora quem me chamar por meu correto nome me chamará mal-aventurado e [499] mês|quinho. Isto me fez a ventura, que se me tornou madrasta e inimiga. E a Nosso Senhor apraz que viva em dó e tristeza este pouco que hei de viver; bem o mostra ele, porque como ele quis e foi poderoso para me elevar por muitas formosas aventuras e sem meu merecimento, assim é poderoso para me derrubar por aventuras feias e más, por meu merecimento e por meu pecado. Assim disse rei Artur quando viu que matara Lucão. E ficou lá aquela noite com grande pesar e tão sofrido, que bem entendeu que pouco duraria. Quando chegou o dia, disse a Gilfrete: — Cavalguemos e vamos diretamente ao mar, porque tanta desgraça me sobreveio desta vez em Logres, que não queria aqui morrer. E bem assim como minha vida andou sempre em aventura, assim será a minha morte. Porque minha morte ficará tão em dúvida para todas as gentes, que ninguém poderá se gabar de saber com certeza a verdade do meu fim. Então cavalgaram e afastaram-se da capela e foram diretamente para o mar. Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e de Gilfrete e torna a Bliobleris e ao arcebispo. LXXXV Combate de Bliobleris e Artur, o pequeno 673. Diz o conto que, depois que Bliobleris e o arcebispo fizeram a torre, como rei Artur lhes mandou, partiram de lá. E Bliobleris disse ao arcebispo: — Senhor, o que fareis? — Por certo, disse o arcebispo, desde que começamos esta torre a que demos cabo, ouvi dizer muitas vezes a muitos dignos de crença, que rei Artur estava perdido de tal modo que não sabiam onde andava. E visto que sei com certeza que nunca mais terei a companhia de tão bom homem, não quero mais viver no século. E o século não valerá daqui adiante, senão pouco, pois tal homem como este está perdido, porque este era o esteio do mundo e honra do século e já que está perdido, eu me farei ermitão numa ermida e rogarei a Nosso Senhor por rei Artur, que lhe faça merca à alma e pelos outros bons cavaleiros que morreram na dolorosa batalha de Salaber. — De me fazer ermitão, disse Bliobleris, não tenho intenção, porque ouvi dizer que meu senhor dom Lancelote logo há de passar por aqui com muita gente para tomar esta terra, pelo que ambos os filhos de Morderete já vão se entregando. [500] — Pois recomendo-vos a Deus, disse o arcebispo, porque quero ir àquela ermida. E disse-lhe onde ficava a ermida. — Conheço bem esta ermida, disse Bliobleris, porque já fui lá. E sabei que, se ventura me trouxer por aqui, vos quereria ver. 674. Deste modo se despediram. O arcebispo foi para a ermida e Bliobleris foi sozinho à aventura pelo reino de Logres, munido de todas as armas como cavaleiro andante. Um dia aconteceu que topou com Artur, o pequeno, também armado de todas as armas. E quando se viram, não se reconheceram, porque muito havia que tinham trocado suas armas. Mas bem julgaram ambos de si mesmos que eram cavaleiros andantes e, assim que se aproximaram, pararam; e cada um estava com tal pesar, que, por um tempo, não se falaram, lembrando-se daquele sofrimento e daquele martírio em que os cavaleiros andantes e os homens bons do reino de Logres morreram e a que estava o reino de Logres reduzido. Depois disse Bliobleris: — Por Deus, dizei-me quem sois, porque muito o queria saber, porque julgo que fostes dos cavaleiros de Artur. E ele respondeu com mui grande dificuldade, porque sobejo teve grande pesar, quando ouviu falar de seu pai, e disse chorando: — Tenho nome Artur, o pequeno. Muito tempo estive na corte de rei Artur. E tanto lá estive que aprouve a Deus que fosse companheiro da távola redonda. Agora dizei-me quem sois. — Sou, disse ele, Bliobleris, que bem deveis conhecer, porque sou da távola redonda como vós. Quando Artur, o pequeno, o ouviu, disse: — Sois dos inimigos de rei Artur, porque sois da linhagem de rei Bam. Por aquela linhagem estão mortos e destruídos todos os do reino de Logres, porque começaram a guerra e por isso sou vosso inimigo mortal, e vos digo que vos guardeis de mim, porque não há aqui senão morte. 675. Quando Bliobleris isto ouviu, respondeu: — Ai, dom Artur! Isto não fareis, se Deus quiser; porque sabeis que seríeis perjuro e desleal. — Isto não há mister, disse Artur. Defendeivos, se quiserdes, se não vos achareis mal. Quando Bliobleris viu que não podia outra coisa fazer, deixou-se correr a ele. E feriram-se ambos tão violentamente, que se meteram em terra e os cavalos sobre si. E ficaram ambos muito feridos, [501] mas eram de tão bom ânimo e de tão grande força, que se levantaram o mais rápido que puderam e meteram mão às espadas e deixaram-se ir e deramse tantos golpes, que se fizeram tais os escudos e as lanças, que valiam muito pouco perto do que antes eram, porque bem perceberia quem lá estivesse, que bem entendiam ambos de espadas. Que vos direi? Antes que daquela vez se cansassem, foram tais os golpes que Outro cavaleiro se teria por muito ferido. Mas eles tinham os ânimos tão fortes e a raiva tão desmedida, que o não sentiam. Depois que ficaram cansados, descansaram para recobrar força. E depois que descansaram um pouco, disse Bliobleris: — Dom Artur, vós me acometestes sem motivo e combatestes comigo e nada ganhastes. Rogo-vos, por Deus e por cortesia, que deixeis esta batalha e vos darei por quite de quanto nela errastes. E Artur disse que não o faria até que um deles morresse. — E se me matardes, disse Bliobleris, que bem vos advirá? Porque quem quer que o saiba vos terá por perjuro e desleal; e além disso, sabeis que nunca mereci morte de vós. — Sim, merecestes, disse Artur, e vos direi como. Bem sabeis que tal é o costume dos cavaleiros andantes, que, se algum cavaleiro é traidor de seu senhor natural, e alguém ajudasse aquele cavaleiro contra ele, seria por isso traidor. Pois agora me dizei, disse Artur, bem sabeis que ajudastes Lancelote do Lago, que era traidor de seu senhor, porque foi achado com a rainha Genevra. E o ajudastes em toda aquela guerra que por ele começou. Pois então não sois traidor por ajudardes contra vosso senhor o traidor? Por isso vos ataquei agora e porque matastes diante da Joiosa Guarda o cavaleiro do mundo que eu mais amava. E agora vos acho aqui e quero vos dar o galardão. — Certamente, dom Artur, disse Bliobleris, vós vos conduzis por mau conselho. E já que vejo que não posso convosco fazer paz, digo-vos uma coisa, mas não para me louvar, não vos temo, porque verdadeiramente sei que sou tão bom cavaleiro como vós ou melhor. E bem vos mostrarei que é verdade, porque vos matarei ou vencerei, antes que de vós me separe e, assim Deus me ajude, me pesa muito, mas pois que outra coisa não posso fazer, o farei. Porque antes quero que morrais nas minhas mãos do que eu nas vossas. 676. Depois disto, sem mais, deixaram-se correr um ao outro e meteram mão às espadas e deram-se os maiores golpes que puderam. E demorou tanto aquela batalha que não houve quem não tivesse [502] medo da morte, porque ambos se sentiam feridos, mas muito mais estava ferido Artur, o pequeno, do que Bliobleris, de modo que via que não podia escapar, porque tinha bem doze feridas, sendo que a menos perigosa era mortal. E quando viu que não podia suportar a batalha, afastou-se um pouco e disse: — Bliobleris, como vos sentis? — Bem, disse ele, graças a Deus, segundo o preito, porque estou muito ferido, mas não de morte. — Não? disse Artur. Por Deus, o mesmo não digo de mim, porque me sinto ferido de morte por minha loucura; e não me pesa tanto de minha morte, como de que me não vinguei. E depois que disse isto, caiu por terra de costas. E Bliobleris, que teve grande pesar, meteu a espada na bainha, porque lhe não quis mais mal fazer. E foi a ele e tirou-lhe o elmo e o almofre, para lhe dar algum ar que o alentasse mais. E Artur, quando isto sentiu, cuidou que o fazia para lhe cortar a cabeça e disse-lhe: — Ai, Bliobleris! Não me façais mais mal, porque me matastes por minha soberba, e se vos afrontei, bem vos vingastes. Apressaivos, se vos aprouver, e deixai-me soterrar inteiro. — Assim Deus me ajude, disse Bliobleris, não tenho vontade de vos fazer mais mal, pesa-me de quanto fiz. — Por Deus, disse Artur, não deveis ser culpado, porque tudo foi por minha soberba. Mas uma coisa que nunca disse a ninguém vos quero dizer, porque vejo que estou morto e quero que o mundo saiba. Sabei que rei Artur era meu pai, e por isso tenho nome Artur, o pequeno. E isto, se vos aprouver, fazei escrever sobre meu túmulo. E assim que isto disse, morreu. E Bliobleris o pôs diante de si sobre seu cavalo e o levou a uma abadia e o fez enterrar muito honradamente e fez escrever sobre o túmulo o que lhe rogara, e partiu. Ora deixa o conto a falar dele e torna a rei Artur. LXXXVI Morte de rei Artur 677. Quando rei Artur partiu da capela Veira como já vos disse, foi com Gilfrete em direção ao mar, com muito grande pesar das aventuras que aconteciam e das desgraças que lhe sobrevinham re- centemente, uma atrás das outras. [503] Quando chegou ao mar, isto foi hora de meio-dia, apeou e sentou-se na praia e descingiu a espada e tirou-a da bainha e viu a cinta vermelha de sangue daqueles que matara. E depois que a olhou muito tempo, disse suspirando: — Ai, Excalibur, espada boa e honrada, a melhor que alguma vez entrou no reino de Logres, fora a da estranha cinta, agora perderás teu dono, mas onde acharás em quem tão bem empregada sejas, como eras em mim, se não vens às mãos de Lancelote? Ai, Lancelote, o melhor homem e o melhor cavaleiro que alguma vez vi, fora Galaaz, que foi o melhor dos melhores! Ora aprouvesse a Nosso Senhor que esta espada tivesses e eu o soubesse! Certamente a minha alma estaria mais satisfeita com isso para sempre. Então chamou Gilfrete e disse-lhe: — Tomai esta espada e ide sobre aquele outeiro e achareis lá um lago; e jogai-a nele, porque não quero que os maus, que depois de nós reinarão, tenham esta espada. — Senhor, disse ele, cumprirei vossa ordem, mas antes queria, se vos aprouvesse, que ma désseis. — Não o farei, disse ele, porque não será em vós empregada segundo minha vontade, porque não tendes muito a viver. 678. Então tomou Gilfrete a espada e foi ao outeiro e achou o lago e tirou a espada da bainha e olhou-a e viu-a tão boa e tão rica, que lhe pareceu que seria dano sobejo jogá-la no lago e era melhor jogar a sua e pegar aquela para si e diria ao rei que a jogara no lago. Então tomou a sua e jogou-a no lago e escondeu a do rei nas ervas e voltou para o rei e disse que a jogara no lago. — Pois que viste então? disse o rei. — Senhor, não vi nada. — Ai, disse o rei, muita mágoa me dás. Volta lá e joga-a, porque ainda não a jogaste. E ele voltou lá e pegou a espada e olhou-a e fez seu lamento e disse que seria grande dano se fosse perdida; e pensou que jogaria a bainha e teria a espada, porque ainda poderia ter proveito a ele ou a outrem; e pegou a bainha e jogou-a no lago e voltou para o rei e disse que deitara a espada. E o rei de novo lhe perguntou o que vira. — Senhor, disse ele, não vi nada. E o que havia de ver? — O que havias de ver? disse o rei. Não a jogaste ainda. Por que me fazes tanto mal? Vai e joga-a. Então verás o que acontecerá, porque, sem grande maravilha, ela não pode ser perdida. Quando viu que tinha que fazer, voltou ao lago e pegou a espada e disse: [504] — Ai, espada boa e rica, como é grande dano que algum homem bom não te tome na mão! Então a lançou o mais que pôde; e quando chegou perto da água viu uma mão sair do lago que aparecia até o cotovelo, mas do corpo não viu nada. A mão recebeu a espada pelo punho e brandiu-a três vezes ou quatro; depois que a brandiu, meteu-se com ela na água. Ele esperou muito tempo se se lhe mostraria mais. 679. Depois partiu do lago e voltou ao rei e disse-lhe como deitara a espada e o que vira. — Por Deus, disse o rei, tudo isto sabia que aconteceria. Agora sei bem que minha morte se aproxima muito. Então vieram-lhe as lágrimas aos olhos e pensou muito tempo e disse: — Ai, Gilfrete! longo tempo me servistes e me tivestes companhia. Mas agora chegou já o fim em que nos convém já que eu parta. E bem vos podeis orgulhar de que sois o companheiro da távola redonda que mais longamente me teve companhia. Mas agora vos digo que vos vades, porque de hoje em diante não quero que fiqueis comigo, porque meu fim se aproxima; e não é conveniente que alguém saiba a verdade de meu fim, porque assim como aqui porventura fui rei, passarei deste reino porventura, porque ninguém poderá se gabar, doravante, de com certeza saber o que será de mim. E por isso quero que vos vades; e depois que estiverdes de mim separado, se vos perguntarem novas de mim, respondei-lhes que rei Artur veio porventura e porventura partiu, e só ele foi rei venturoso. — Ai, senhor! mercê, disse Gilfrete. Por Deus, deixai-me que vos faça companhia até que seja o vosso fim. — Nunca vos amarei, disse o rei, se não fordes e vos dou certeza de que mal vos advirá, se não fordes. — Ai, senhor, disse Gilfrete, irei, pois vos apraz, mas sabei que nunca fiz nada de que tanto me pesasse, como me separar de vós, porque vos amei sempre sobre todas as coisas. Mas por Deus e por vossa bondade, isto me dizei, se vos aprouver, cuidais que de novo vos veja, depois de partir agora? — Por certo, disse o rei, nunca mais me vereis. E ele respondeu então: — Senhor, quanto é maior meu pesar! Então foi a seu cavalo e montou e disse chorando com tão grande dificuldade como a quem bem parecia que o coração se lhe queria partir: — Senhor, recomendo-vos a Deus. — Deus seja convosco, disse o rei. [505] E deixou-o Gilfrete. Então começou a chover muito e a fazer mau tempo. E foi Gilfrete para um outeiro o mais depressa que pôde, porque pensou que do outeiro conseguiria ver para onde rei Artur iria. 680. Quando Gilfrete chegou ao outeiro, parou em baixo de uma árvore até que passasse a chuva, e começou a chorar e olhar aquele lugar onde deixara o rei. E não ficou lá muito tempo, que viu vir pelo meio do mar uma barqueta em que vinham muitas mulheres. A barca aportou diante do rei Artur e as mulheres sairam e dirigiram-se ao rei. E andava entre elas Morgana, a fada, irmã de rei Artur, que dirigiu-se ao rei com todas aquelas mulheres que trazia, e rogou-lhe então muito, que, por seu rogo, teve o rei que entrar na sua barca. E depois que estava dentro, fez meter lá seu cavalo e todas as suas armas; depois começou a barca a ir pelo mar com ele e com as mulheres, em tal hora, que não houve depois cavaleiro nem outrem no reino de Logres que dissesse depois, com certeza, que o tivesse visto. Quando Gilfrete, que estava no outeiro, viu que o rei entrara na barca com as mulheres, desceu do outeiro e dirigiu-se para lá, quanto o cavalo o pôde levar, porque julgou que, se chegasse a tempo, se meteria com seu senhor na barca e não se separaria dele por nada que acontecesse, a não ser por morte. E quando chegou ao mar, a barca estava já afastada da praia e viu o rei entre as mulheres e reconheceu bem Morgana, a fada, porque muitas vezes a vira. E a barca estava da praia tanto como um lance de besta. E quando Gilfrete viu que assim perdera o rei, começou a fazer o maior pranto do mundo e ficou ali todo aquele dia e toda aquela noite, que não comeu nem bebeu, e já o dia anterior não comera. 681. No outro dia, quando o sol estava já levantado, montou Gil-frete muito sofrido e com grande pesar e partiu dali e cavalgou tanto que chegou a um mato pequeno, e morava lá um ermitão que era muito seu conhecido, e contou-lhe então o que vira de rei Artur, quando o vira entrar no mar com as mulheres. Ao terceiro dia, partiu dali e foi à capela Veira para saber se estava já Lucão enterrado, e chegou iá à hora de meio-dia e apeou e atou seu cavalo a uma árvore e entrou e achou dois túmulos diante do altar, muito formosos e muito ricos. Mas um era muito mais rico do que o outro. Sobre o que era menos rico havia um letreiro que dizia: “Aqui jaz Lucão, o copeiro, que rei Artur matou em baixo de si.” Sobre o outro mais rico que era maravilha, havia.um letreiro [506] que dizia: “Aqui jaz rei Artur que, por sua proéza e por sua bondade, conquistou doze remos.” 682. Quando leu os letreiros, desfaleceu sobre o túmulo, e quando acordou, beijou-o chorando muito sentidamente, e ficou lá até a tarde, quando um homem bom chegou, que servia o altar da capela. E assim que o viu, Gilfrete perguntou-lhe: — Senhor, por Deus, é verdade que aqui jaz rei Artur? — Certamente, disse o homem bom, creio que sim, porque há pouco traziam aqui mulheres o corpo de um cavaleiro num leito, e faziam pranto muito grande à maravilha, e quando lhes perguntei quem era aquele por quem tal pranto faziam, me disseram que era rei Artur; e metemo-lo então neste túmulo. Depois foram elas em direção ao mar e não voltaram. E Gilfrete julgou então que aquelas eram as mulheres que vira meter rei Artur na barca, mas disse no seu íntimo que ainda queria saber verdadeiramente se era rei Artur quem no túmulo jazia. 683. Então foi Gilfrete ao túmulo, estando diante dele o homem bom. Então mandou erguer a lápide e quando olhou dentro, nada viu, senão o elmo de rei Artur, aquele mesmo que trouxera na dolorosa batalha. Quando viu que o corpo do rei não estava lá, mostrou ao homem bom o túmulo vazio e disse-lhe: — Aqui não jaz meu senhor, quero que sejais testemunha. E tornou a lápide sobre o túmulo, como antes estava; depois pergun-tou outra vez: — Vistes aqui meter bem o corpo de meu senhor? — Por Deus, disse o homem bom, metemos aí um corpo e as mulheres me fizeram saber que era rei Artur. Outra verdade não vos saberia dizer a respeito. — Assim? disse Gilfrete; em vão me esforçarei por perguntar como rei Artur morreu. Verdadeiramente, este é o rei venturoso, cuja morte ninguém saberá; e disse bem a verdade, que como veio ao reino de Logres porventura, assim se foi ele porventura. Mas pois vejo que não é proveito procurá-lo, pois achado não pode ser, nunca mais viverei no século, antes quero ficar aqui nesta ermida e viver aqui, enquanto viva. Então rogou ao homem bom, que o recebeu em sua companhia. Deste modo como vos digo, ficou Gilfrete com aquele homem bom e serviu a Deus na capela Veira e levou vida muito santa e boa. Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e da morte de Gilfrete, para contar de Lancelote e dos filhos de Morderete. [507] LXXXVII Últimos feitos de Lancelote 684. Conta a estória que, enquanto Gilfrete foi à ermida, ambos os filhos de Morderete foram a Ginzestre para guardar a vila. Quando souberam da morte de seu pai e de rei Artur e de outros homens bons, que morreram na batalha dolorosa, ficaram muito confortados. Eram ambos bons cavaleiros e conheciam muito o mal, como seu pai, e prometeram tanto e deram aos de Ginzestre, que os receberam por senhores, como fizeram a seu pai. E reuniram logo quanta gente puderam e foram pela terra assenhoreando-se dela. E isto podiam facilmente fazer, porque todos os homens bons foram mortos na batalha. Quanto a rainha soube a verdade da batalha que acontecera no campo de Salaber e lhe disseram que o rei estava morto e todos os homens bons de Logres, teve tão grande pesar que bem quisera estar morta. E quando lhe disseram que os filhos de Morderete iam se assenhoreando da terra e tinham tanta gente, que logo teriam todo o reino, teve tão grande pesar, que não poderia maior, porque teve medo de a matarem. E por isso tomou hábito de ordem e fez-se monja. 685. Enquanto isto, chegaram as novas a Lancelote, que estava em Gaunes com grande companhia de homens bons de seu reino. Depois também contaram-lhe como os filhos de Morderete, que não estiveram na batalha, andavam se assenhoreando da terra. E destas novas teve grande pesar Lancelote e fez muito grande pranto por rei Artur, porque não havia ninguém no mundo que mais amasse. E perguntou por novas da rainha. Mas não lhe soube nada dizer quem as novas lhe dava, porque poucos havia na terra que soubessem o que fora feito dela, porque, sem falha, ela pensava esconder-se o mais que pudesse, com medo de sua morte. Muito teve Lancelote grande pesar daquelas novas e tomou conselho com rei Boorz e com rei Leonel do que poderiam fazer, porque não desamava nada do mundo tanto como Morderete e seus filhos. Respondeu rei Boorz: — Senhor, teria por bem que nos reuníssemos e passássemos à Grã-Bretanha; e, se nos esperarem, matemo-los com alguma morte estranha, porque não vejo como deles possamos nos vingar de outro modo. Lancelote concordou com seu conselho. Então mandaram mensageiros ao reino de Benoic e ao reino de Gaunes e ao de Gaula [508] e reuniram na cidade de Gaunes mais de vinte mil homens tanto a pé como a cavalo. E depois que foram reunidos, Lancelote e rei Boorz e rei Leonel e Heitor, com toda sua companhia, partiram de Gaunes e andaram tanto por suas jornadas, que chegaram ao mar e acharam suas naves preparadas e entraram e tiveram tão bom vento que, nesse dia mesmo, aportaram na Grã-Bretanha e desceram e pousaram na praia. 686. No outro dia, chegaram as novas aos filhos de Morderete, que Lancelote estava na terra com muita gente. Quando isto ouviram, ficaram muito espantados e decidiram se ajuntar e lutar com ele. Com isto concordaram, porque tinham mais gente do que Lance-lote. Assim disseram, assim fizeram, porque se reuniram em Ginzestre e tanto fizeram em tão pouco tempo por sua grandeza e proeza, que todos os homens do reino de Logres lhes fizeram homenagem e contavam com a ajuda de muitos cavaleiros estranhos. Depois que estavam reunidos, saíram de Ginzestre e indo, no outro dia, pela manhã, logo lhes chegou um mensageiro que lhes disse: — Mortos estais e confundidos, porque Lancelote vem aqui com grande companhia e não está daqui mais de seis léguas, e asseguro-vos que muito cedo estará convosco. Quando isto ouviram, disseram que o aguardariam lá e lá combateriam com ele; e apearam para descansar a eles e os cavalos. Assim ficaram os de Logres diante de Ginzestre. E Lancelote com toda sua compahia cavalgou, mas com muito grande pesar sobejo, porque aquele dia lhe chegaram novas de que a rainha estava morta, havia três dias. Mas porque o nosso conto não revela como morreu, contaremos aqui de outra maneira. 687. Nesta parte, diz o conto que, depois que a rainha Genevra entrou no convento com pavor dos filhos de Morderete, ela, que sempre fora feliz com todas as alegrias do mundo, e teve de sofrer as penitências da ordem, de que não tinha costume, caiu logo de cama enferma, e todos os que a viam tinham muito cuidado com sua morte e com sua vida. E tinha consigo uma donzela de alta posição e que tomara hábito por amor dela. Esta donzela fora amante de Gilfrete, filho de Dondinax. E porque a rainha ouvira dizer que Gilfrete fizera mais longamente companhia a rei Artur do que outro cavaleiro, amava tanto a companhia desta donzela, que mais não podia. E confortavam-se e choravam muito amiúde, quando lhes lembravam as grandes alegrias e a grande nobreza e o grande poder em [509] que estiveram, e agora estavam no convento com pavor da morte. A rainha, embora no convento, não deixava de fazer grande pranto por Lancelote que não dissesse alguma vez: — Ai, meu senhor Lancelote, dom Lancelote! Como esquecestes de mim que jamais cuidei que me deixásseis. Se levásseis em conta vossa bondade, vosso prazer e o grande poder que Deus vos deu, vos lembraríeis alguma vez de mim e vingaríeis a morte de rei Artur e conquistarieis o reino de Logres e me alegraríeis desta dor em que estou e deste poder alheio em que estou, em que me meti com pavor da morte. Isto dizia a rainha de Lancelote, quando estava doente, e a donzela a confortava muito, quanto ela podia. E dizia que não tivesse pavor, que bem soubesse que verdadeiramente Lancelote não tardaria muito a vir, porque dele já ouvira novas. E a rainha respondeu: — Sobejo me tarda, e sei que em sua tardança, morro. 688. Naquela abadia, havia uma monja que entrara no convento, porque amara Lancelote e não a quisera, e desamava a rainha muito profundamente, porque a deixara Lancelote por amor da rainha. Um dia aconteceu que disse esta monja à amiga de Gilfrete, aquela que guardava a rainha, e fingiu que não queria que a rainha ouvisse: — Ai, donzela, más novas vos trago! Dom Lancelote, que vinha com grande força para conquistar o reino de Logres, perdeu-se no mar com toda sua gente. — Por Deus, disse a amiga de Gilfrete, grande perda é esta. Mas como sabeis se é verdade? — Sei bem, disse ela, por quem o viu. A rainha, que estava doente, quando ouviu estas novas, teve tão grande pesar que, por pouco, não ficou louca; mas disfarçou bem, com medo daquela que as novas dizia. E depois que partiu, disse a rainha com grande pesar: — Ai, mar amargoso e maldito, cheio de amargura e de dor, néscio, mau e desconhecido, mal me mataste, porque me tiraste o mais leal amante do mundo e tiraste-me seu amor. Depois que disse isto, calou-se com tão grande pesar, que não pôde mais comer nem beber, e ficou assim três dias. Ao quarto dia, chegaram novas de que Lancelote, sem falha, aportara na Grã-Bretanha com tão grande cavalaria e tão boa, que não há quem no mundo o ousasse esperar em campo. 689. A donzela, que guardava a rainha, ficou muito alegre com estas novas e foi correndo à rainha e disse-lhe: [510] — Senhora, muito vos trago boas novas. Sabei verdadeiramente que dom Lancelote está na Grã-Bretanha com tanta gente que em pouco tempo a correrá toda. A rainha, que perto estava de morta, quando estas novas ouviu, respondeu com grande dificuldade: — Donzela, tarde mo dissestes, e já não me vale nada sua vinda, porque estou quase morta. Mas, porque dom Lancelote é o homem do mundo que mais amo, rogo-vos que façais pelo meu amor e pelo seu, o que vos quero rogar. E ela lhe prometeu lealmente que o faria a todo seu poder. — Pois ora vo-lo direi, disse a rainha. Bem vejo que estou morta e não hei amanhã de chegar à manhã e bem vos digo que nunca fiquei tão alegre como com estas novas. E de outra parte, pesa-me sobejo que o não posso ver antes de morrer, porque se o visse, parece que minha alma ficaria mais alegre. E porque quero que ele veja e saiba que sua vinda me apraz e que morro com pesar e de bom grado o que queria ver, se pudesse, por isso vos rogo que, tão logo eu morra, me tireis o coração e o leveis para ele neste elmo que foi dele; e lhe digais que, em lembrança de nossos amores, lhe envio meu coração que nunca o esqueceu. Aquele dia mesmo passou a rainha Genevra e a donzela cumpriu sua ordem, mas não achou Lancelote e por isso não deu cabo a tudo que a rainha mandara. Mas ora deixa o conto a falar dela e torna a Lancelote e aos filhos de Morderete. 690. Aqui diz o conto que, depois que Lancelote ouviu as novas da rainha, que estava morta, teve tão grande pesar que era maravilha, e contudo partiu e andou aquele dia e sua companhia até que chegaram a Ginzestre. E os outros, que os esperavam, quando os viram, cavalgaram a ajuntaram-se com eles. Naquele ajuntamento, muitos ficaram mortos e feridos e foi grande o desamor entre eles. Depois que quebraram suas lanças, meteram mão às espadas e começaram a ferir o mais que puderam, de modo que, por este preito, veríeis muitos mortos de uma parte e da outra e muitos feridos. A batalha durou até hora de noa e aconteceu que Meliante, o filho de Morderete, tinha uma lança pequena e grossa e de ferro muito cortador e ele era muito bom cavaleiro de armas; e deixou-se correr a Leonel e feriu-o de modo que escudo e loriga não lhe prestaram que a lança não fosse do outro lado, pelo meio do peito, e meteu-o em terra do cavalo, e ao cair, quebrou-lhe a lança, de modo que o ferro com pedaço da haste ficou nele. Este golpe viu [511] rei Boorz e bem reconheceu, sem falha, que seu irmão estava ferido de morte, e teve tão grande pesar, que bem cuidou da morte com pena. Então se deixou correr rei Boorz a Meliante e foi lhe dar uma espadada, como quem muito grande golpe havia já dado, e lhe quebrou o elmo e o almofre e o fendeu até as espáduas, e caiu Meliante em terra morto. E quando o viu em terra morto disse: — Ai, traidor! Que mal hoje cobro o dano que me fizeste! Certamente meteste em meu coração tão grande dor que jamais sairá. Então se deixou correr aos outros, onde via maior aperto para matar e derribar quantos podia, de modo que não há quem não se maravilhasse das maravilhas que faziam os cavaleiros de Gaunes. Quando viram cair rei Leonel, apearam e livraram- no do aperto e deitaram-no sob uma árvore. E embora o vissem tão ferido, não ousaram fazer lamento para que seus inimigos não tivessem prazer. 691. Assim foi diante de Ginzestre a batalha começada, má e dolorosa, que durou até hora de noa tão obstinadamente que, com dificuldade se podia reconhecer quem levava a melhor. Depois da hora de noa, aconteceu que Lancelote topou com aquele que era o filho maior de Morderete, e era sem falha bom cavaleiro. Lancelote o reconheceu, porque trazia tais armas como seu pai costumava trazer, e deixou-se correr a ele com a espada na mão. E o outro não o receou, antes ergueu o escudo contra o golpe, quando viu vir a espada. E Lancelo.te, que mortalmente o desamava, feriu-o tão violentamente que lhe fendeu o escudo até o centro, de modo que lhe cortou o punho com que o segurava. E quando ele sentiu que tinha perdido a mão, quis fugir para uma floresta, que ficava perto dali, porque bem sabia que não podia resistir a Lancelote. Mas Lancelote o reteve em tão grande dor, que não teve força para escapar, e deu-lhe um tão grande golpe, que lhe fez a cabeça com seu elmo voar do corpo em terra mais longe que uma lança. Quando os outros viram este morto, não souberam como recuperar-se e tomar conselho, e começaram a fugir e os outros começaram a ir atrás deles matando-os e derribandoos por esses caminhos. E Lancelote, que os ia alcançando à frente de toda sua companhia, matava e feria e derribava tão violentamente, que bem se poderia ver o rastro atrás dele dos que derribava mortos e feridos. Tanto andou assim que alcançou um duque de Gorra, que sabia que era traidor e desleal e fizera muitas vezes pesar aos da linhagem de rei Bam. 692. Quando Lancelote o alcançou e o reconheceu, disse-lhe: [512] — Ai, traidor e desleal! Certamente estais morto, porque não há nada no mundo que vos salve, senão Deus. E o outro olhou atrás de si e quando reconheceu que era Lancelote e que deste modo o ameaçava, teve grande pavor, porque bem sabia que verdadeiramente era o melhor cavaleiro do mundo e bem viu que estava morto se o alcançasse. E começou a ir quanto o cavalo podia levar em direção a uma montanha. E andava em muito bom cavalo, e Lancelote também, de modo que bem correram duas léguas. Então cansou o cavalo do duque, de modo que, de cansado, caiu morto em baixo dele. E Lancelote, que ia perto, quando o viu em terra, foi a ele como estava, a cavalo, e deu-lhe uma espadada por cima do elmo, que o fendeu até os dentes. Depois não o olhou mais e começou a ir quanto pôde, mas quanto mais cuidava aproximar-se da companhia, tanto mais se afastava dela. 693. Tanto andou Lancelote perdido, que chegou a um vale muito fundo. Então achou lá um escudeiro que vinha de Ginzestre, e perguntou-lhe de onde vinha. E ele lhe disse que vinha do campo onde fora a dolorosa batalha. — E cuido, a meu ciente, disse o escudeiro, que não escapou de lá ninguém vivo, senão vós. E isto dizia ele, porque cuidava que Lancelote era do reino de Logres. — Mas isto vos digo: os outros têm muito grande pesar de rei Leonel, que perderam na batalha. — Como? disse Lancelote, é verdade que rei Leonel está morto? — Verdade, disse o escudeiro; eu o vi morto, e nunca vistes tão grande pranto como os seus por ele faziam. — Certamente, disse Lancelote, aqui há grande dano, porque muito era bom cavaleiro. Nosso Senhor lhe tenha merca à alma. Então começou a chorar muito violentamente; e o escudeiro lhe disse: — Senhor, onde cuidais hoje albergar? porque é muito tarde. — Não sei, disse ele, não daria nada por pousada, tão grande é meu pesar. — E o escudeiro lhe perguntou como se chamava. — Tenho nome Lancelote, disse ele. — E o escudeiro começou a fugir assim que o ouviu dizer que era Lancelote, porque tinha muito grande pavor que o matasse. E Lancelote começou a andar triste e muito sofrido. E andou já aquela noite e todo aquele dia, que não comeu ele nem seu cavalo. De manhã, aconteceu que a ventura o levou a uma ermida, onde achou [513] o arcebispo de Cantuária e Bliobleris, que se meteram lá para servir a Nosso Senhor. E quando os achou, ficou muito alegre; e eles quando o viram também ficaram muito alegres e o desarmaram. E assim que ficou desarmado, foi a um altar de Santa Maria, que lá havia, e ficou de joelhos diante dele e jurou que, se Deus e Santa Maria e os santos o ajudassem, jamais se afastaria do serviço de Nosso Senhor, mas ficaria naquela ermida, enquanto vivesse. E como jurou, assim o fez, porque ali morreu em serviço de Nosso Senhor. Mas ora deixa o conto a falar dele e torna a Boorz e a sua companhia. 694. Depois que os de Gaunes terminaram sua batalha e desbarataram os de Ginzestre e viram rei Leonel morto, tiveram grande pesar, e decidiram entre si o que fariam. — Certamente, disse rei Boorz, tanto tenho perdido no reino de Logres depois que perdi meu irmão, que não tenho mais vontade de morar aqui, antes quero ir embora. Mas não sabia ainda que Lancelote estava separado deles, e mandou meter seu irmão num leito e partiu do campo em que fora a batalha e cavalgou tanto até que chegou ao mar, e lhe disseram os de sua companhia: — Senhor, fizemos mal, porque já dois dias andamos e não temos conhecimento de nenhum recado de Lancelote. Então mandou a metade das pessoas com o corpo de rei Leonel e a outra metade ficou. — Porque nunca, disse rei Boorz, tanto amei esta terra como agora desamo pela morte de meu irmão que aqui perdi. 695. Do modo como rei Boorz lhes mandou fizeram: a metade ficou com Heitor e a outra metade foi com rei Boorz. Os que ficaram permaneceram quatro dias num castelo chamado Ambenic e esperaram lá, se poderiam ter novas de Lancelote; e Heitor ficou com eles, com grande pesar de seu irmão, de quem não podia ter nenhuma nova. Eles assim esperando, eis que vem um ermitão que disse a Heitor: — Em vão esperais aqui vosso irmão, porque não tem prazer de vir aqui, porque se meteu numa ermida, de que não sairá jamais, porque o prometeu a Nosso Senhor; e está com ele o arcebispo de Cantuária e Bliobleris. Estes dois também são ermitães. — E onde estão? disse Heitor, poderia encontrá-los? — Isto vos não direi, disse o ermitão. — Se não me quiserdes dizer, disse Heitor, não será por isso que não vá buscá-lo até que o ache. [514] 696. Então fez diante de si vir toda sua companhia e os fez jurar que cumprissem todos sua ordem, e depois que juraram, disse-lhes: — Agora ordeno que saiais do reino de Logres e vades para vossas terras. — E vós, disseram eles, senhor, o que fareis? — Ficarei, disse ele, e se depois me der vontade de ir, irei atrás de vós. E assim fizeram, porque se meteram no mar e foram para suas terras, e Heitor ficou. Então rogou ao ermitão, por Deus, que o levasse onde estava seu irmão, que queria lá servir a Deus como ele. Então partiram e levou-o à ermida onde seu irmão estava e os outros de quem vos disse. Assim que os irmãos se viram, choraram de alegria, porque muito se amavam. E Heitor disse a Lancelote: — Senhor, pois vos acho em serviço de Jesus Cristo e vos apraz ficar, quero convosco ficar para nunca de vós me separar. Quando os outros isto ouviram, ficaram muito alegres de que tão bom cavaleiro entrava no serviço de Deus e receberam-no muito bem, dando graças a Nosso Senhor. Deste modo ficaram ambos os irmãos na ermida e dai em diante esforçaram-se por fazer serviço a Nosso Senhor. Quatro anos e mais ficou Lancelote na ermida de modo que ninguém poderia suportar mais canseira e esforço do que ele sofria em jejuar e em velar, em fazer preces e oraçães e em mortificar seu corpo de todas as maneiras que podia. Ao quarto ano, passou Heitor e soterraram-no na ermida. 697. Ao quinto ano, quinze dias antes de maio, deu tal enfermidade em Lancelote, que bem viu que não podia escapar, e rogou ao arcebispo e a Bliobleris que, assim que passasse, o levassem à Joiosa Guarda e o metessem naquele túmulo onde jazia Galeote, o senhor das longas ilhas. E eles prometeram que o fariam. Quatro dias depois deste rogo viveu Lancelote e, ao quinto dia, cessou. Mas àquela hora em que passou não estava com ele o arcebispo nem Bliobleris, antes dormiam fora sob um olmo. E aconteceu então que Bliobleris despertou primeiro e viu o arcebispo dormindo perto, e dormindo ria e tinha o maior aspecto de alegria que nunca vistes. E dizia por sonho: — Ai, Deus, bendito sejais, porque agora vejo quanto desejava ver e saber! Quando Bliobleris viu que ele dormia deste modo e ouviu o que dizia, teve o maior medo de que o demo tivesse entrado nele e despertou-o. — Ai, senhor! disse ele, por que me tirastes de tão grande alegria em que estava? [515] — Em que alegria estáveis? disse Bliobleris. — Estava, disse ele, em tão grande festa e em tão grande companhia de anjos, que nunca vi tão grande reunião. E levavam com tio grande alegria e com tão grande festa como vos digo, a alma de dom Lancelote. Agora vamos ver se está morto. — Vamos, disse Bliobleris. E foram logo onde deixaram Lancelote, e acharam que a alma já se havia separado dele. — Ai, Deus! disse o arcebispo, bendito sejais! Agora sei verdadeiramente que aquela grande festa que os anjos faziam era com sua alma. Agora posso dizer que a penitencia vale mais que todas as coisas do mundo. De hoje em diante, enquanto viver, não me separarei da penitencia. — Agora convém, disse Bliobleris, que o levemos à Joiosa Guarda, por que lhe prometemos. — verdade, disse o arcebispo. Então prepararam uma padiola e deitaram nela o corpo de Lancelote. E pegou um de um lado e outro de outro e partiram da ermida e andaram tanto por suas jornadas, que chegaram à Joiosa Guarda. Mas sabei que foi muita canseira e grande esforço. 698. Quando os do castelo souberam que aquele era o corpo de Lancelote, saíram em direção dele com grande pranto e chorando muito e fazendo grande lamento, como se todos vissem sua linhagem morta diante de si. E levaram-no à maior igreja do castelo e fizeram-lhe quanta honra mais puderam e quanta deviam fazer a tal homem. Aquele dia mesmo, aconteceu que rei Boorz chegou lá muito pobremente, acompanhado de um só cavaleiro e de um só escudeiro. E quanto soube que o corpo de Lancelote estava na igreja foi lá e o fez descobrir e tanto o olhou e observou que bem reconheceu que era seu senhor. E assim que o reconheceu, caiu desfalecido sobre ele; e quando acordou, começou a fazer seu pranto o maior do mundo. Todo aquele dia e aquela noite, foi muito grande o pranto no castelo e fizeram abrir o túmulo de Galeote, que era tão rico, que mais não podia. E de manhã, meteram-no lá. Depois fizeram sobre a lápide entalhar um letreiro, que dizia: “Aqui jaz Galeote, o senhor das longas ilhas, e com ele, Lancelote, o melhor cavaleiro que alguma vez trouxe armas na Grã-Bretanha, fora somente Galaaz, seu filho.” Depois que o meteram no túmulo, veríeis mais de mil ao redor dele fazer lamentação. E o arcebispo perguntou ao rei Boorz como lhe acontecera que chegara na hora do enterro de Lancelote. [516] — Por certo, senhor, disse rei Boorz, um ermitão de santa vida que há no reino de Gaunes, me disse, não há um mês que, se neste dia, pudesse yir a este castelo, acharia meu senhor ou morto ou vivo. E aconteceu como ele disse. Mas, por Deus, se soubésseis onde morou até aqui, dizei, porque muito o desejo saber. E o arcebispo lhe contou a vida que Lancelote sempre teve desde que partiu da batalha de Giftzestre e o formoso fim que teve o seu passamento e quanto a respeito viu. 699. Quando Boorz, que de muito bom grado escutava o que o arcebispo dizia, ouviu toda sua vida, respondeu: — Senhor, pois ele convosco viveu até seu fim, eu sou aquele que no lugar dele vos farei companhia, enquanto viver, porque jamais, sem falha, me afastarei de penitencia, antes quero ir convosco. E viverei em vossa companhia todos os dias de minha vida. E o arcebispo e Bliobleris agradeceram muito. E no outro dia, partiram do castelo da Joiosa Guarda e rei Boorz mandou seu escudeiro e seu cavaleiro dizerem aos de Gaula e aos de Gaunes que fizessem rei a quem quisessem, porque jamais voltaria lá. E foi com o arcebispo e com Bliobleris a pé e mui pobremente de modo que quem bem olhasse sua alta posição de rei de tão rico reino, bem poderia entender que tinha boa vontade com Deus para servi-lo. 700. Um dia aconteceu que, quando iam assim para sua ermida, acharam Meraugis de Porlegues armado de todas as armas. quando ele viu os três homens bons, embora não os reconhecesse, teve deles grande pena, porque os viu andar descalços e bem lhe pareceu que eram bons e honrados e de vida boa e, estando a cavalo, lhes perguntou: — Quem sois? E respondeu o arcebispo: — Somos pecadores que fazemos penitencia de nossos pecados. E bem nos adviria, se por tão pouca miséria, pudéssemos salvar nossas almas. E Meraugis olhou bem e pareceu-lhe que o vira já outra vez, mas não o pôde reconhecer. Por isso lhe disse: Rogo-vos, pela fé que deveis àquele que servis, que me digais quem sois. E ele disse: — Sou ermitão, mas já fui arcebispo de Cantuária e naquele dia o era ainda em que foi a dolorosa batalha de Salaber, pela qual o reino de Logres foi destruído. E por aquele mau dia que vi, entrei numa ermida, e fiquei lá até agora e ficarei, enquanto viver. [517] — E quem são estes outros dois? disse Meraugis, que andam encobertos? E ele os nomeou. Quando Meraugis isto ouviu, ficou maravilhado da maravilha que teve, porque não há nada por que ele cuidasse tão honrados cavaleiros e de tão alta posição se metessem tão cedo no serviço de Deus. E desceu logo de seu cavalo e disse: — Senhores, pois vejo que deixastes a cavalaria para servir a Nosso Senhor, eu a deixo, porque hei bem mister de minha alma salvar como vós, e não tomarei mais armas, a não ser que grande cuidado me obrigue. Então se desarmou e deixou todas as suas armas no meio do caminho e foi com eles. Quando os outros três isto viram, tiveram grande prazer e agradeceram a Nosso Senhor. Depois começaram a andar juntos até que chegaram a sua ermida. E Meraugis lhes perguntou se sabiam algumas novas de Lancelote. E eles lhe contaram quanto a respeito sabiam e como fora ermitão com eles. Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a rei Mars para dizer como teve conhecimento das mortes dos cavaleiros do reino de Logres e como eram todos da távola redonda. LXXXVIII Vingança de rei Mars 701. Assim que as novas da morte de Lancelote Foram sabidas por toda Grã-Bretanha e por Gaula e por Gaunes e por Benoic e pela Pequena Bretanha e por Escócia e por Irlanda e por Cornualha, rei Mars estava ainda vivo e era tão velho que, àquele tempo, não havia rei no mundo de tão avançada idade, e cavalgava ainda animadamente e mantinha bem sua terra, que não temia vizinho que tivesse; mas tanto estava sua linhagem rebaixada, que Tristão, seu sobrinho, estava morto. Mas não tinha ele disso grande pesar. Mas da morte da rainha Isolda andava ele muito triste, tão sobejamente a amava muito. Mas da morte de seu sobrinho não estava triste, mas muito alegre. Quando ouviu falar da morte de Lancelote, ficou muito alegre e disse então: — De hoje em diante, não vejo quem me possa impedir de ter o reino de Logres, pois os da linhagem de rei Bam estão mortos. E ainda que estivessem vivos, a morte deste só me bastaria. Mas vivendo este, não há quem no mundo o pudesse acabar. Então reuniu quanta gente pôde ter e passou o mar e foi à GrãBretanha. E depois que saíram das naves e tiraram o que tinham de tirar, disse rei Mars: [518] — Agora estou na terra em que recebi mais desonra e dano que em qualquer lugar onde tenha estado. Agora quero que alguma vez me tenham por rei, se não me vingo. Então ordenou aos seus uma crueldade que nunca rei cristão fez: que não deixassem de matar homem e mulher que achassem. — Tampouco quero, disse ele, que quanto rei Artur tenha feito, fique, mas que tudo seja destruído; e quantas igrejas e quantos mosteiros ele fez, sejam destruidos, porque já tantos não destruireis que eu não faça mais e melhores. E faço esta destruição, porque não quero que depois de minha morte apareça neste reino nada que rei Artur tenha feito. Isto mandou rei Mars fazer. Por isso aconteceu que o reino de Logres chegou perto de ser destruído. 702. Depois que isto foi ordenado, começaram a ir pela terra, estragando-a toda por onde iam; e tanto andaram, que chegaram numa meia-noite à Joiosa Guarda, entraram e destruíram-na, de forma que nunca depois valeu senão pouco. Quando rei Mars soube que ali estava o corpo de Lancelote, foi ver o túmulo onde jazia, e quando o viu tão formoso e tão rico, disse: — Ai, Lancelote, quanto mal me fizeste enquanto viveste! E nunca me pude vingar. Mas agora me vingarei quanto posso. Então fez perfurar o túmulo, que era tão rico e tão formoso, que todo o haver de Cornualha não seria seu preço, e o fez deitar fora do castelo num lago, de onde ninguém o pudesse tirar. E tomou o corpo de Lancelote, que ainda estava inteiro, e mandou fazer uma grande fogueira, e mandou deitar nela os ossos de Galeote e deixou-os arder até que viraram cinza. E bem vos digo que estavam lá muitos homens bons, a quem pesava muito. 703. Depois que rei Mars isto fez, foi para Camalote, porque eram muito poucos contra os seus, mas eram de forte ânimo e de muita fama e disseram que não se deixariam cercar. E sairam logo todos da vila e combateram com eles. Mas eram tão poucos, que logo foram todos mortos, de modo que ninguém escapou; e, sem falha, isto os fez morrer, porque eram de tão forte ânimo, que não quiseram fugir. Rei Ma2rs entrou na cidade e destruiu o resto dela. E quando foi à távola redonda e viu o lugar de Galaaz, disse: — Este foi o lugar daquele que destruiu num só dia a mim e aos do reino de Sansonha. E destruirei por desamor dele, a távola redonda e seu lugar primeiramente, e depois todos os outros. E bem como o disse, fez, que mandou tudo destruir, que não ficou nada. [519] 704. Naquela hora que rei Mars isto fez, veio a ele um cavaleiro de Cornualha, que sempre desamara rei Artur e a linhagem de rei Bam, e disselhe: — Senhor, nada tereis feito, se não matardes rei Boorz e Bliobleris e o arcebispo de Cantuária e Meraugis; aqueles foram da távola redonda e vivem nesta terra, e se vos escapam, buscarão gente com que vos farão muito mal a vós e a todos os do vosso lado. E o rei lhe perguntou onde estavam. Eele lhe contou todos os feitos dos quatro cavaleiros. — Isto não há mister, disse rei Mais; nestes convém que vingue minha sanha. Agora cuidai de os buscar, e a quem até eles me levar, darei tal riqueza, que se terá por bem recompensado. Por esta promessa que ouviram, foram muitos cavaleiros pelas ermidas buscá-los. 705. Da linhagem de rei Mars foram àquela demanda quatro cavaleiros. E um dia aconteceu que chegaram perto da ermida onde os quatro cavaleiros moravam e acharam diante de uma fonte Meraugis dormindo, muito pobremente vestido e magro e amarelo e muito mudado do que costumava ser, porque muita miséria sofrera. E despertaram-no para perguntarem a respeito do que buscavam. E ele lhes disse: — Nesta ermida os achareis. E eu sou Meraugis, um dos quatro cavaleiros que buscais. Depois, disseram: — Levai-nos lá. E ele o fez. E quando viram os dois companheiros, que foram tão bons cavaleiros de armas e tão poderosos de tudo, e assim se meteram no serviço de Nosso Senhor, tiveram deles muita pena e saíram da ermida e disseram entre si: — Matá-los-emos ou não? E foi assim afinal que concordaram em não matá-los, mas em contar ao rei. Depois voltaram ao rei e disseram-lhe o que acharam. — Assim? disse o rei: estas são boas novas. Estes muitas vezes me afrontaram; eu me vingarei. Então pegou um dos quatro cavaleiros e disselhe: — Levai-me lá. E ele disse que o faria. Então se separou o rei de sua companhia todo armado e não quis que ninguém soubesse, fora aquele que o guiava; e ele desamava tanto aqueles quatro, que os poderia matar com sua mão. Quando chegou à ermida, achou dentro um cavaleiro da linhagem de rei Bam, que chamavam Paulas, mas estava ainda armado, e quando viu que não era aquele que buscava, [520] saiu da ermida e andou ao redor procurando os quatro ermitães que estavam fazendo sua alegria pelo hóspede que chegara. Quando rei Mars foi a pé onde estavam, perguntou qual deles era rei Boorz. E rei Boorz disse: — Senhor, que vos apraz? — Apraz-me algo que se tornará em vosso dano, disse ele. Sabeis quem sou? Sou rei Mars de Cornualha, que aqui vim para me vingar de vós. 706. Então meteu mão à espada, e quando o arcebispo viu que os queria matar, meteu-se entre o golpe, e deu-lhe o rei por cima da cabeça tão grande golpe, que o meteu morto. Quando Paulas viu isto, ergueu-se com grande pesar e disse: — Ai, rei Mars, bravo e desleal! Fizeste-me a maior traição que nunca rei fez. Mas te acharás por isso mal, se eu posso. Então meteu Paulas mão à espada e deixou-se ir a rei Mars e feriu-o tão violentamente como quem era de muita força, que lhe não valeu elmo nem almofre, que o não fendesse todo até os dentes, e o corpo caiu por terra. Quando o cavaleiro que viera com o rei, viu este golpe, pediu-lhe merca que o não matasse. — Pois promete-me, disse Paulas, que desta morte não dirás a ninguém. E ele prometeu e partiu. E os ermitães pegaram o corpo de rei Mars e enterraram-no diante da ermida, fora de sagrado, porque o tinham por um dos desleais homens do mundo. Deste modo como vos digo, morreu rei Mars de Cornualha; e os ermitães ficaram na ermida em serviço de Deus. E assim acabemos nós. Amém. 50 - AMADIS DE GAULA O ROMANCE DE AMADIS. Reconstituição doAmadis de Gaula dos Lobeiras (sécs. XIII-XIV) porAffonso Lopes Vieira. São Paulo: Martins Fontes,1995.135p. [1] 1. Perion Senhores, ouvide o Romance de Amadis, o Namorado. Escreveu-o um velho trovador português, mas depois um castelhano, trocando-lhe a língua e o jeito, da terra lusa o levou. Porém as mais nobres mentes de Espanha já por nosso o dão. Em Portugal tem a segunda pátria o espírito heróico e amoroso da Távola Redonda. E o conto é de amor fino e fiel, de português amor, rendido como ele é só. Ao começar o Romance, invoco a memória do cavaleiro-poeta que o compôs, para que me alumie. Invoco a alma do Portugal que aprendeu com Amadis a ser gentil e forte e a prezar a flor da Honra. E vós que amais com amor heróico e fiel, que amais o amor, ouvide a história como eu a senti. Não muitos anos depois da Paixão do nosso Salvador e Redentor Jesus Cristo, [2] houve na Pequena Bretanha um rei, por nome Garinter, bom cristão e de lhanas maneiras. Teve este rei duas filhas, de sua mulher, boa dona. A mais velha casou com Languines, rei de Escócia; e a essa se chamou a Dona da Guirlanda, porque de uma grinalda mui rica quis seu marido que ela sempre cobrisse os formosos cabelos, tanto gosto lhe dava olhá-los; e por filhos houveram Agrajes e Mabília, de quem menção se fará. A outra filha, chamada Elisena, era muito mais linda que a irmã e tão virtuosa, que parecia ser Deus o único senhor capaz de estimar tal criatura. Bem haviam pedido a sua mão muitos príncipes dignos de a esposar, os quais demandavam a corte da Pequena Bretanha, sabedores da formosura e virtude que nela resplandeciam. — Filha — dizia-lhe el-rei Garinter, a quem dava desgosto esta isenção da infanta —, estou já de muitos dias e quisera, antes de dar contas a Deus, deixar-te segura nas voltas do mundo. Porém ela só aos gozos da religião se inclinava, sem mostrar outro fito que o do Céu. E tanta esquivança deu azo a que a apelidassem Devota perdida. Ora, este rei Garinter, quando o tempo ia brando, saía algumas vezes a montear, para espalhar cuidados. Uma vez que se apartara dos monteiros e pela espessura andava a rezar suas Horas, viu um cavaleiro que com [3] dois outros pelejava, nos quais reconheceu dois vassalos, de quem, por soberbos e descorteses, el-rei muitas queixas havia. Mui bravo era o que acometia sozinho os dois juntos, pois, com tão natural galhardia se guardava e investia com eles, que da sua parte mais parecia desenfado que peleja, seguro como se achava de si o cavaleiro desconhecido. El-rei Garinter, que se arredara, olhava o combate desigual, no fim do qual foram mortos os maus vassalos. Isto feito, veio o cavaleiro a el-rei e, vendo-o só, perguntou-lhe: — Bom homem, que terra é esta em que os cavaleiros são salteados? — De isso não hajais espanto — retrucou elrei —, que em todas as terras bons e maus cavaleiros há; e desses que dizeis muitos tinham agravos, e até seu mesmo rei. — A esse rei quero falar — tornou o cavaleiro —, e, se sabeis onde pára, peço-vos o .digais. Não quis el-rei manter por mais tempo o engano. E respondeu: — Pois, seja como for, sabei que tal rei eu o sou. Ouvindo estas palavras, entregou o cavaleiro ao escudeiro o escudo e o elmo e foi abraçar el-rei Garinter, dizendo-lhe que era el-rei Perion de Gaula e que muito quisera conhecê-lo. Ao som deste nome, deveras folgou o senhor bretão. Conhecia ele Perion [4] por sua fama alta e honrada, pela bravura e gentileza da sua cavalaria, as quais, sendo aquele rei moço como era, tão celebradas andavam por todos os remos da Pequena e da Grã Bretanha. E, do coração, deu-lhe as boas-vindas. Ledos se juntaram os senhores e dispuseram-se a procurar os monteiros, para se recolherem à vila de Alima, donde el-rei Garinter partira para montear. Prosseguiam os dois, discorrendo sobre coisas aprazíveis. El-rei Garinter ouvia com gosto quanto lhe ia dizendo o senhor de Gaula, em cujas palavras a cortesia emparelhava com o nobre juízo. — Tão moço é ainda — pensava o da Pequena Bretanha —, e assim na bravura é ousado como na mente esclarecido. Ditoso será o pai que a este houver de dar filha! Súbito, pelo caminho saltou-lhes um veado escapo da montaria e atrás do qual correram os reis, a fim de o lancear. Mas um leão, que das brenhas saíra, alcançou o veado, atassalhou-o e pôs-se a olhar sanhudo os cavaleiros, como quem preara coisa que julgava ninguém disputaria. Vendo o quê, desmontou el-rei Perion do cavalo, que a vista do leão espantara: — Pois não há de ser teu! — disse Perion. Sem que o estorvassem as vozes de el-rei Garinter, com as quais lhe pedia não desse batalha a tão bruto inimigo, Perion endireitou à fera, com o escudo embraçado e a espada na mão. Logo o leão deixou a presa e, [5] furioso de ver que o contestavam, arremessou-se contra quem lhe negava os direitos de tomador. Juntando-se ambos, o leão o teve debaixo, prestes a esquartejá-lo. Mas el-rei, não perdendo o ânimo no apuro, ensopou-lhe a espada no ventre e o matou. Perto soaram as buzinas dos monteiros que logo vieram e rodearam a seu senhor. E do que viu se admirou el-rei Garinter, entre si dizendo que não sem causa el-rei Perion era tido pelo mais esforçado cavaleiro do mundo. [7] II. Darioleta Carregados em dois palafréns o leão e o veado, para a vila se encaminharam com grande prazer os senhores; do que sendo avisada a rainha, de muitos e ricos atavios se enfeitaram os paços e foram postas as mesas. Quando foram comer, sentaram-se a uma mais alta os dois reis e a minha, com Elisena em outra a par desta; e ali foram servidos como em casa de tão bom senhor convinha. Mas, sendo a infanta assim virtuosa e ei-rei Perion tão alto cavaleiro, em tal hora se olharam, que o grande recato dela não pôde tanto que de mui grande amor presa nao fosse; e Perion também da infanta, pois seu próprio coração livre o havia. De maneira que um e outro todo o tempo ali estiveram fora de si. Recolhendo-se a rainha à sua câmara, levantou-se Elisena e, caindo-lhe do regaço um anel que tirara para se lavar, a fim de o apanhar se baixou, quando Perion o tomou e lho deu. [8] No dar e receber o anel, as mãos deles encontraram-se e Perion apertou a da infanta, que, olhando-o com amorosos olhos, lhe agradeceu, corando. — Ai, senhora! O último serviço não será que vos eu farei, pois toda a vida a quero empregar em vos servir! Tão turbada se foi Elisena, que a vista quase perdia. Desconhecia-se a si própria a infanta. É que o efeito do amor, em alma tão isenta, ia lavrando com dobrado lume. Não podendo calar dor tão nova, descobriu seu segredo a uma donzela de quem muito se fiava e se chamava Darioleta. E, com pranto dos olhos e mais do seu coração, pediu-lhe conselho sobre como poderia saber se Perion amava outra mulher, e se aquele amoroso rosto, com que a estivera olhando, seria prova de amor igual ao seu. Pasmou a donzela com tal mudança em pessoa para quem estas coisas eram tão desusadas. Teve por caso peregrino que assim, de súbito, quisesse saborear o humano, quem até ali desdenhara de alguma vez o provar. Porém logo prometeu servi-la, vendo que o amor não deixara em sua senhora lugar para caberem razão ou aviso. Determinando-se, pois, a ajudar sem detença a nova enamorada, encaminhou-se Darioleta para a câmara de el-rei Perion, a tempo que o escudeiro ia levar os vestidos do seu senhor. Pediu-lhos a donzela, dizendo que ela mesma os levaria. [9] Tomando por maior honra o que a seu senhor se fazia, deu-lhos o escudeiro. E Darioleta, entrando na câmara de el-rei, por esse foi reconhecida como a donzela da infanta: — Boa donzela, que me quereis? — Senhor, dar-vos de vestir. — Nu de alegria está meu coração. — Mas por quê? — Porque sempre livre fui, a esta terra livre vim, e agora, em casa de vosso senhor, ferido estou de ferida mortal. E, se para ela remédio me achásseis, eu vos daria bom galardão. Respondeu Darioleta que contente seria de servir a tão bom senhor, se soubesse em quê. Ora, Darioleta sabia muito bem aquilo em que poderia servir a el-rei Perion. Mas alegrava-se de o ouvir falar do amor que Elisena lhe merecia, comparava as palavras dele com as que lhe ouvira a ela, e tudo ia encaminhando ao ponto que desejava. Respondeu-lhe el-rei: — Se me prometeis, como leal donzela, guardar segredo do que vos eu disser, descobrindo-o só onde de razão, então direi. E, prometendo-lho Darioleta, disse-lhe que vivera até ali sem haver empregado o coração, costumado a correr aventuras, mas não a penar cuidados; que em forte hora olhara a grande formosura de Elisena, cuja presença lhe havia ensinado o que era o verdadeiro amor, pois tão cuidoso estava agora, que se julgava a ponto de morrer, e [10] enfim que morreria se algum remédio não achasse. Tornou-lhe a donzela: — Se me prometeis, como rei, guardando em tudo a verdade a que mais obrigado sois, de, a seu tempo, a tomar por mulher, então eu farei coisa que não só o coração vos contente, mas também o dela, onde mora amor igual ao vosso. Porém, se o não prometerdes, por mulher a não lograreis, nem vossas palavras haverei como de honrado amor. El-rei Perion, que obedecia também ao mando de Deus para que tudo sucedesse como adiante ouvireis, pôs a mão na cruz da sua espada e jurou: — Juro nesta cruz e espada, com que a Cavalaria recebi, de isso fazer que me pedis, donzela, e quanto por vossa senhora requerido me for. — Pois folgai ora, que eu farei o que vos disse! Buscando a infanta, contou-lhe o que com elrei Perion concertara e repetiu-lhe as palavras de tão seguro amor que tinha ouvido a el-rei. Elisena abraçou-a, tomada de uma alegria como jamais a havia iluminado: — Minha amiga verdadeira! Mas quando soará a hora em que em meus braços aperte aquele que por senhor me foi dado? Explicou-lhe Darioleta que, dando a câmara de el-rei Garinter para o pomar, a ela [11] iriam seguras quando todos estivessem dormindo. E, lembrando-lhe Elisena que, na mesma câmara, el-rei, seu pai, dormia, a donzela prometeu que tudo faria bem. Quando caiu a noite, Darioleta apartou-se com o escudeiro de el-rei Perion e perguntou-lhe quem era a mulher que seu senhor amava com entranhado amor. — O meu senhor — respondeu o escudeiro — a todas ama,mas a nenhuma como dizeis. Ficou a donzela contente de receber esta resposta, que tão bem se ajustava com o que a tal respeito lhe havia dito el-rei Perion. Neste ponto acercou-se el-rei Garinter e, vendo os dois conversando, perguntou àdonzela que tinha ela que dizer àquele escudeiro. — Por Deus, senhor, eu vo-lo direi: ele me chamou e disse que seu senhor costuma dormir sozinho em sua câmara, e vossa companhia certo o estorvará. El-rei Garinter, muito honrado com o seu hóspede e querendo que ele se achasse bem, foi dizer a el-rei Perion que, levantando-se a matinas, por ter muito em que cuidar, o deixaria só para estorvo lhe não fazer. Quando Darioleta viu que os reposteiros levavam de ali a cama de el-rei Garinter, foi contar à infanta quanto sucedia. [12] — Boa amiga — disse-lhe Elisena —, creio que Deus assim o quere! O que parece agora erro será ao depois grande serviço seu. E deste modo estiveram elas, até que todos foram dormir. [13] III. Elisena Como tudo estivesse sossegado e o ermo silêncio da noite lhes fosse aconselhando ânimo, a donzela encaminhou a infanta e saíram ambas ao pomar. Fazia um luar muito claro. Darioleta, olhando Elisena, abriu-lhe o manto, remirou-lhe o corpo, que ela trazia nu, só com camisa, e disse, rindo: — Senhora, em boa hora nasceu aquele que vos vai ter! Sorriu a infanta e tornou-lhe: — Amiga, dizei antes que bem-aventurada fui em me dar Deus tal senhor. Com passadas tão cautas quanto lho ia pedindo o melindre da empresa, foram as duas andando à surda, sob a Lua. Perion, com a queixa do coração e a esperança que a donzela nele lhe fora plantar, não havia podido dormir. Caíra em modorra e sonhava. Padecia aflito os tratos que lhe estavam dando, pois é maravilha da mente [14] representar-nos tão vivo o que só nela própria se engenha. Sonhava que alguém entrara por uma porta falsa naquela câmara, sem que se ele pudesse defender do inimigo agora vindo à sua ilharga. Este fora-se ao que ali jazia e abrira-lhe as costas com as mãos , remexendo até lhe agarrar o coração. — Por que me fazeis tal crueza? — dizia Perion, a labutar nas vascas do pesadelo. Afogado em dor, vira el-rei o seu próprio coração levado a uma janela, donde fora lançado às águas de um rio. Enquanto el-rei Perion pelejava no sonho, a infanta e a sua guia haviam chegado à porta da câmara. Elisena tremia toda. Ao tocarem na aldrava, o ferro tiniu. Perion acordou espavorido e benzeu-se. Neste ponto iam entrar as donzelas, e, havendo-as ele sentido, temeu-se de traição e saltou do leito, empunhando a espada contra os vultos. — Senhor, isso que é? — segredou-lhe Darioleta. Reconhecendo então Elisena, foi tomá-la Perion nos braços. Darioleta disse à infanta: — Ficai, senhora, que, ainda que vos defendestes de muitos, e ele de muitas também se defendeu, mandou Deus que vos não defendêsseis um do outro. E, vendo a espada de el-rei, tomou-a em sinal da jura feita e saiu. [15] Perion, olhando Elisena à luz das tochas que ardiam, parecia-lhe que nela se ajuntara toda a formosura do mundo. Antes da alva romper, veio Darioleta pela infanta e, indo as duas dormIr, nada se soube em palácio. Assim, por espaço de dez noites se amaram Perion e Elisena. Em cada uma guiava Darioleta a infanta até a câmara onde os desígnios do Senhor se cumpriam. Por isso o Senhor juntara os dois, mudando para tal fim a um e a outro: a ele, tirando-lhe a liberdade com que correra aventuras; fazendo-lhe a ela baixar os formosos olhos à terra. Em uma noite, perguntou Elisena ao seu amigo: — E, quando vos fordes, que há de ser de mim? Respondeu-lhe el-rei, sentindo já também a dor da próxima ausência: — Quando me eu for, deixo-vos o coração, e ele, junto ao vosso, nos dará forças, a vós para esperar um tempo, a mim para cedo tornar. Ao cabo daqueles dias el-rei Perion acordou e forçou sua vontade, decidindo-se a partir. Bem se pode dizer que acordara, porque o verdadeiro amor, ao encher coração de homem, de tal sorte o eleva e embala, que o livra do peso do mundo. Além da pena principal que lhe fazia o deixar Elisena, sentia el-rei outro grande cuidado, e este lho dava o sonho que tivera. Queria [16] sa|ber como os sábios do seu reino entenderiam aquilo do coração deitado ao rio, pois, desde que tal coisa sonhara, não havia podido recobrar o ânimo seguro. Despedindo-se de el-rei Garinter, com palavras de muita cortesia, e tendo ouvido outras de grande estimação, quando quis cingir a espada, não a achou. Não se atreveu a pedi-la, o que muito lhe custava, porque era boa e formosa. E partiu daquele reino. Porém antes falara com Darioleta, com quem desabafou a pena em que ia e lhe contou aquela em que sua senhora ficava. — Ai, minha amiga, eu vo-la recomendo como ao meu próprio coração! E, tirando do dedo um formoso anel, de dois iguais que trazia, deu-lho para que lho levasse por seu amor. [17] IV. Amadis sem tempo Com que saudade e dor Elisena ficou do seu amigo! Em tão breve tempo, e tão pouco propensa como havia sido às coisas do amor, provara a infanta toda a alegria e toda a pena. Só falando com Darioleta algum alívio achava. Passando foram os dias, uns menos tristes que outros, porém povoados todos de cuidados. O mais do tempo levava-o Elisena a cismar, e, recolhida na própria alma, ia escutando as vozes das lembranças, que são consolo e amargura de quem lhes dá ouvidos. Até que a infanta se sentiu grávida, perdendo o comer e o dormir e a sua formosa cor. Cresceram então os temores, e não sem grande razão, porque era lei naquele tempo que não escapasse à morte, por maior que fosse seu estado e senhorio, mulher que cometesse culpa. Culpa, não a cometera Elisena, pois o que elrei Perion jurara sobre a cruz [18] santifi|cava para Deus o amor que haviam. Mas isto era para Deus, não para os homens. E durou esta lei cruel até a vinda do mui virtuoso Rei Artur, que a revogou ao tempo em que matou Floyan em batalha, às portas de Paris. Mas aquele poderoso Senhor Deus, por cuja permissão todas estas ações se faziam para seu santo serviço, tão discreta tornou Darioleta, que a donzela tudo remediou, como agora ouvireis. Havia em palácio uma apartada câmara de abóbada, sobre um rio que por ali passava, e ao rés do qual se abria uma portinha de ferro, por onde às vezes as donzelas entravam na água para folgar. Por conselho de Darioleta, pediu Elisena esta câmara a seus pais, a fim de melhorar a saúde e rezar suas horas, sem que a estorvasse ninguém, levando Darioleta para que a servisse. Tendo-lho eles consentido, ali se aposentou a infanta, e alguma coisa descansou de seus temores. Um dia, perguntou à donzela que se havia de fazer ao que nascesse. — Quê, senhora? Que padeça para que vos livreis! — Ai! Santa Maria! E como deixarei matar o que aquele que mais amo fez? — Disso não cureis — tornou-lhe a donzela —, porque, se a vós matassem, a ele não poupariam. [19] Mas o coração da que ia ser mãe é que se não podia conformar com tais juízos. Do fundo das entranhas, Elisena exclamou: — Ainda que eu como culpada morra, não quero que o inocente padeça! — Pois grande loucura seria que, para salvar coisa sem proveito, vos perdêsseis e a vosso senhor, que viver sem vós não poderia. Mas, vivendo ambos, outros filhos vireis a ter, que a pena deste vos farão passar. Como à donzela era Deus quem a guiava, antes do aperto quis o remédio. Buscou quatro tábuas tão grandes, que com elas fez uma arca do comprimento de uma espada, e com betume as ligou tão bem, que toda a água vedavam. Mostrando a Elisena o que fizera, disse-lhe que a seu tempo saberia para que era aquilo. A pobrezinha respondeu-lhe: — Pouco se me dá saber o que se faz ou se diz, que perto estou de perder minha alegria e meu bem! Doeu-se de pena a donzela, vendo-a tão triste e chorando, pois bem lhe custava ter de ser crua por força. E foi-se para que a infanta a não visse também chorar. Pensava Elisena em Perion, de quem não houvera mais novas. E, embora cresse no amor dele e em que ele nunca a esquecia, pesava-lhe muito a ausência, para mais em tão incerta hora. Uma vez, perguntou a Darioleta: — Por que não virá o meu senhor? [20] Sossegou-a a donzela, respondendo-lhe o que a infanta a si mesma dizia quando cuidava naquela ausência: — Senhora, por tudo será, menos porque vos esqueça, pois no juramento feito sua palavra empenhou. Não tardou muito que a Elisena chegasse a hora de ser alumiada; e, como não podia gemer, dobradamente sofria. Enfim quis Nosso Senhor que um filho nascesse, e, tomando-o a donzela nos braços, viu que era vivo e formoso! Porém logo tratou de fazer o que convinha, segundo o que antes determinara: batizou o menino como se fora em artigo de morte, e, depois de o embrulhar em ricos panos, trouxe a arca. Elisena, abraçada ao filho, não entendia estes preparos: — Que ides fazer? — Pô-lo aqui e deitá-lo ao rio! A mãe apertava-o ao peito, chorava que se matava: — Meu menino! Meu rico filhinho! Mas o temor do risco em que se achavam aguçava a ligeireza da donzela. Darioleta escreveu num pergaminho: Este é Amadis sem tempo, filho de Rei. O nome era o de um santo de muita devoção, a quem o encomendou; e dizia “sem tempo” porque cuidava que ele ia logo morrer. Pendurou a carta ao pescoço do menino e Elisena enfiou na mesma fita o anel que [21] Perion lhe havia dado. Deitado o menino na arca, puseramlhe ao lado a espada de seu pai — e a donzela deitou a arca ao rio... Como a corrente era forte, depressa chegou ao mar. E, sendo já manhã, aconteceu um daqueles sucessos que Nosso Senhor ordena quando lhe apraz. No mar navegava uma nau em que um cavaleiro de Escócia partia da Pequena Bretanha, com sua mulher, que dera à luz pouco havia; e de bordo viram a arca e mandaram recolhê-la. Trazida esta pesca de nova feição, o cavaleiro, que se chamava Gandales, abriu a arca e viu o menino, sorrindo, deitadinho ao lado da espada. — Este é filho de algo. E que espada formosa! Apertou-o ao peito, com dó e encanto do que, por milagre, assim lhe vinha. Maldizia o cavaleiro a mãe que a tal criatura pudera enjeitar e pediu a sua mulher que o criasse. Logo esta lhe deu o seio da ama que a seu filho Gandalim aleitava e onde o menino mamou com vontade, do que os bons senhores se alegraram. Era brando o coração de Gandales, e também o de sua mulher. Custoso seria, com efeito, não sentir piedade de quem fora deitado às ondas em tão frágil embarcação, mal havia aberto os olhos para sorrir ao mundo cru. E logo a bordo da nau o menino foi querido, no que o ajudava o mistério de sua origem. [22] Assim foram Gandales e os seus navegando até Antália, cidade de Escócia, e, de ali partidos, chegaram a um castelo que tinham e era dos bons do reino. Aí foram criando o menino como seu filho. E todos creram que o era, porque pelos marinheiros nada se soube, tendo eles navegado a outras partes. [23] V O Donzel do Mar Partindo el-rei Perion da Pequena Bretanha, como já se vos contou, quanta saudade de sua senhora havia! Pelo caminho por onde antes tinha ido solto, voltava agora cativo. E que também Perion, como Elisena viera a conhecer o que até ali havia ignorado: o verdadeiro amor. E também ele pensava na infanta, temendo que se ela achasse em perigo. Chegado que foi ao seu reino, enviou recado aos homens-bons para que lhe mandassem os mais sabedores, a fim de lhe explicarem um sonho que tivera. Vieram os vassalos mui desejosos de o ver, que de todos el-rei era querido; e, depois que tratou das coisas do reino e do que ã sua fazenda cumpria, a cada um despachou para as suas terras. Passado tempo, chegaram a palácio três homens entendidos naquilo que a el-rei tornava cuidoso, por serem práticos na leitura dos astros. Tendo-[24] os levado à capela, onde lhes fez jurar que toda a verdade diriam , sem lhe esconderem dura verdade, contou-lhes elrei o sonho, guardando-se de dizer onde e como o tivera. E começaram os mestres a futurar. Com as razões dos primeiros não pôde Perion satisfazer-se: tão embrulhada saía a explicação, que não entrevia luz o entendimento. Ungan, o Picardo, que era o mais avisado, sorria de ouvi-los e, quando lhe chegou a vez, começou de dizer: — Senhor, porventura vi eu já coisas que é melhor guardar para nós. Saíram os outros, conforme o desejo mostrado. Quando ficou só com el-rei Perion, Ungan, o Picardo, falou-lhe assim: — Ora vos posso dizer, senhor, o que encobris: amais e já vossa vontade cumpristes. O sonho do coração deitado ao rio, quere dizer que na água~ será achado um filho que haveis de ter. Agora sabei que o donzel que em casa de Gandales se criava, e ao qual chamavam o Donzel do Mar, em tanta formosura crescia, que a todos maravilhava. Uma vez, indo Gandales seu caminho, apareceu-lhe uma donzela que lhe disse: — Ai, Gandales! Se muitos altos senhores soubessem o que eu sei, cortavam-te a cabeça... Pasmou o bom cavaleiro. Acrescentou aquela: [25] — Porque em tua casa guardas a morte deles. — Donzela, por Deus rogo vos expliqueis! Então ouviu Gandales tais palavras maravilhosas: — Digo-te que aquele que achaste no mar será a flor da Cavalaria: fará tremer os fortes, humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará com honra. E será também o cavaleiro que com mais bela lealdade há de manter seu amor! — Ah! senhora, dizei-me quem sois! — Sou Urganda, a Desconhecida, mas não me busques que me não acharias. E, ao passo que assim dizia, de moça formosa se mudou em velha trôpega. Isto vendo, teve Gandales a Urganda por uma daquelas mulheres que possuem saber de sortes e encantamentos, conhecem a virtude das palavras, das águas e das ervas e guardam o segredo de manter mocidade, beleza e poderio. Voltando ao castelo, tomou Gandales nos braços o Donzel e beijou-o, com lágrimas nos olhos. E o menino, que tinha três anos e era formoso à maravilha, quis enxugar o pranto do bom senhor, do que este se alegrou, pensando que na velhice lhe seria doce. Quando o Donzel fez cinco anos, deu-lhe Gandales um arco à sua altura, e outro a seu filho Gandalim, com os quais os fazia atirar. [26] E assim o foi criando até que ele fez sete anos. A este tempo el-rei Languines, de jornada no seu reino, albergou-se com a rainha no castelo de Gandales, que lhe ficava em caminho. Mas os donzéis mandou-os Gandales para um pátio, no propósito de que olhos alheios não vissem o que, cioso, guardava. Ora, a rainha, olhando de um eirado, viu-os embaixo jogando e, entre eles, o Donzel do Mar, de cuja formosura tanto se maravilhou, que chamou as aias para que o admirassem também: — Vinde cá e vereis a mais linda criatura que nunca foi vista! Estavam a rainha e as aias debruçadas a admirar o que viam, enquanto os donzéis iam atirando ao arco. O donzel formoso, que parecia senhor dos outros, não só por lindeza e garbo, senão porque trazia vestes mais ricas, foi-se a uma bica de água beber e, enquanto se arredou, um, mais crescido, quis atirar a Gandalim o arco com que este atirava. — Acode-me, Donzel do Mar! — gritou Gandalim. Logo o mais pequeno se foi ao maior e, como o visse lutar com Gandalim, bateu-lhe com o arco na cabeça e derribou-o. Saiu o donzel ferido, a fim de se queixar ao aio; e, vindo este com as correias para dar castigo, ajoelhou o Donzel do Mar e disse: [27] — Mais quero que me castiguem que ver padecer meu irmão. Do eirado onde estava, a rainha viu tudo. E tanto se agradou do rasgo do Donzel como se admirou do seu nome e maravilhou de sua formosura. Neste ponto chegava el-rei, acompanhado de Gandales; e perguntou a rainha: — Dizei-me, Gandales, é vosso filho aquele formoso donzel a quem chamam o Donzel do Mar? Sobressaltou-se o coração do bom senhor, vendo já descoberto o que ele, por acautelado, escondera. E respondeu pouco seguro, como quem nunca mentia: — Senhora, sim... Continuou a rainha, curiosa: — E por que tem tal nome? — Porque no mar nasceu, quando eu tornava da Pequena Bretanha. — Pois, amigo, não se parece convosco — disse a rainha, sorrindo e pensando que o seu vassalo Gandales, se era muito abastado em bondades, pouco devia à formosura. — Chamai-o para que eu o veja — prosseguiu ela. Dissimulando a nenhuma vontade com que o fazia, mandou Gandales chamar o Donzel do Mar. Logo que ele veio e ajoelhou diante da rainha, disse esta a Gandales: — Sou eu que o quero criar! [28] Dorido no coração e escondendo as lágrimas, perguntou Gandales ao Donzel: — Queres ir com a rainha, meu filho? Pôs este os olhos em seu senhor e respondeu, com firmeza de varão: — Irei onde me mandardes, mas vá meu irmão comigo. — Nem eu o deixaria! — acrescentou Gandalim, que o acompanhava. — Senhor — disse Gandales a el-rei —, tão amigos são um do outro, que haveis de os levar aos dois. Chamou el-rei Languines seu filho Agrajes e, mostrando-lhe os donzéis, recomendou-lhe: — Filho, quero que sejas muito amigo destes, pois que muito o sou eu do pai deles. Mas, vendo el-rei os olhos de Gandales rasos de água, sorriu do seu vassalo: — Amigo, nunca eu cuidei que tão louco fôsseis! — Senhor, não o sou tanto quanto cuidais. Então, a sós com seus senhores, pediu Gandales lhe perdoassem o haver encoberto a verdade, ao que o levara o mimoso amor que votava àquele que havia criado e amava como a filho. E contou-lhes a história do Donzel: de como o tinha achado boiando no mar com uma espada formosa, de como julgava que ele vinha de grande linhagem e o que havia profetizado Urganda, que o bom senhor tinha por fada. [29] Com cativado respeito, como quem ouvia coisas em que a vontade do Céu se entremostrava, iam os senhores escutando o que lhes contava o bom vassalo. Também seus corações movia ao amor a história do menino deitado às ondas. — Por meu o quero, se vos apraz — disse a rainha. — E, pois Deus tanto cuidado teve em o guardar, razão é para lhe querermos mais. Porém Gandales é que se não consolava de saber que o Donzel se iria de sua casa, na real companhia. — Filho formoso — pensava ele —, que tão cedo começaste a correr perigo e aventura, a quem logo amei quando te vi na arca, deitadinho ao lado da espada, e agora vais servir quem talvez devera servir-te, Deus te abençoe e eu chegue a ver as maravilhas que te prometidas são! Passados dias, partiram. Criava a rainha o Donzel do Mar como a seu próprio filho Agrajes, e afeiçoara-se-lhe Mabília como terna irmã. De tão bom engenho era ele, que tudo aprendia melhor e mais depressa que os outros: tão certeiro cravava uma seta como lia direito umas horas ou cantava uma canção. A caça do monte tanto lhe aprazia, que, se pudera, nunca a deixara. E a rainha queria-lhe tão grande bem, que sempre a par de si o havia. [31] VI. Oriana, a Sem-Par Soube el-rei Perion, por carta de Elisena, que el-rei Garinter morrera, e, como em cada dia a lembrava com fiel amor, logo partiu ansioso de a esposar. Não a esquecera Perion um só dia, ainda que um tempo tardara; nem o juramento lhe saíra da memória, como cumpria a quem tanto zelava sua honra. Mas haviam-no demorado promessas antigas de cavaleiro, e só queria partir para receber, conforme a lei de Cristo, aquela que esposara já no seu coração, depois de pagar tais promessas, a fim de levar a alma segura. Concertados os negócios do reino e feitas as festas das bodas, vieram ao reino de Gaula, onde depressa a rainha foi querida. E de Perion houve dois filhos, que se chamaram Galaor e Melícia. Mas quantas vezes pensava Elisena naquele menino formoso que a força das coisas lhe fizera enjeitar! Padecia de o haver perdido, mal o chegara a ter. Temia que [32] Deus lhe não perdoasse o feito, inda que o Senhor bem vira como ela sofrera em seu coração. Doía-lhe a maldade de haver exposto aquela vida às ondas do mar, em cujo deserto escumoso havia perecido, por força, a tenra criatura. Via-o deitadinho na arca, sorrindo a quem lhe estava preparando a morte, e tão esperto e lindo como quem vinha viver para em tudo vencer e brilhar! E, muitas vezes, rodeada de seus filhos, entristecia a rainha com saudades do outro. Enquanto estes casos se passavam, Lisuarte, grande cavaleiro e rei da Grã Bretanha, aportava ao reino de Escócia, com sua mulher Brisena, e de elrei Languines e da rainha eram recebidos com muita honra. Traziam consigo sua filha Oriana. Ah!, senhores, dizendo este nome, bate-me o coração mais apressado! É que, toda esta história que se vos conta, por amor dela se pôde contar. E, entre todas as bemamadas, nenhuma foi mais bem-amada. Nem Genevra, a quem tanto amou Lançarote do Lago; nem Brancaflor, a quem tanto quis Flores, nem a própria loira Iseu, por quem morreu Tristão de Leonis, foram mais adoradas que Oriana. E, sobretudo, em nenhum desses amores houve a candura deste e sua graça de mocidade em flor. A infanta ia nos dez anos e era a mais linda criatura da Terra — tão linda, que foi [33] chamada a Sem-Par. Ora, como Oriana andasse enjoada do mar, el-rei Lisuarte, que navegava para o seu reino, deixou-a entregue a el-rei Languines e à rainha, dizendo-lhes que a mandaria buscar quando ela tivesse cobrado mais forças. A este tempo o Donzel do Mar tinha doze anos e, em altura e força, mostrava quinze. Servia a rainha, mas, pois chegara Oriana, deu-lho a rainha para que a servisse. E ela disse que o Donzel lhe agradava, e ele guardou no coração tais palavras. De como as guardaria, esta história vo-lo mostra, porque o mais belo amor aqui deles se conta. Mas o Donzel do Mar, não sabendo o que a infantinha sentia, tinha-se por ousado em pensar nela, vista sua grandeza e formosura. E Oriana, que tanto lhe queria, não falava ao Donzel mais que a outro, por já temer que a suspeitassem. Assim viviam encobertos, e um para o outro viviam. Ora, o Donzel do Mar, pensando em sua senhora, e que esta mais lhe viria a querer se em seu serviço praticasse grandes feitos, ou por ela morresse a praticá-los, desejou ser armado cavaleiro e de isto deu parte a el-rei Languines. Sorriu el-rei do desejo do Donzel: — A Cavalaria é leve de ter e pesada de manter! E prometeu-lhe que o armaria quando azado ensejo houvesse. [34] Ao mesmo tempo enviou el-rei Languines recado a Gandales, a quem estas novas muito alegraram. E o bom senhor, que havia guardado como a um tesouro o anel, o pergaminho e a espada, mandou-os a el-rei, contente de saber que o Donzel tanto merecia a estima de seus senhores e desejoso de que ele sempre crescesse de bem em melhor. Em breve chegou à corte o mensageiro de Gandales, trazendo as coisas em que se continham todos os haveres do que ia recebê-las. — Senhor Donzel do Mar — disse o mensageiro —, vosso amo vos saúda como àquele a quem muito quere e envia-vos este anel, esta carta e esta espada, pedindo-vos que a espada useis sempre pela grande amizade que vos ele tem. Descobriu Q Donzel a espada, tirando-a do pano que a envolvia e admirado de que a não encerrasse bainha. E, tomando-a na mão, sorriu àquela luminosa nudez. — Donzel — disse-lhe el-rei Languines, depois que com ele se apartou —, querei ser cavaleiro e vossa mesma história ignorais. Há doze anos vi eu essa espada, assim nua e formosa; e, pois hoje a tendes por vossa, vos convém saber como a haveis. Contou-lhe então como ele havia sido achado no mar, com o anel ao pescoço e aquela espada ao lado. — Senhor, já entendo por que meu amo Gandales me não mandou tratar por filho... [35] Mas agora mais me convém a Cavalaria, para ganhar honra e preço como aquele que não sabe donde vem! Ora, el-rei Perion veio neste comenos àcorte de el-rei Languines, para pedir-lhe ajuda contra elrei Abies de Irlanda, que o guerreava e lhe andava tomando terras e senhorios. Prometeu el-rei Languines ajudá-lo como pudesse; e Agrajes, que já era cavaleiro, rogou ao pai o deixasse ir também. Olhava o Donzel do Mar a el-rei Perion e nele admirava a grande fama que el-rei havia. Olhava-o: e, à vista de el-rei, crescia-lhe a vontade de ser ilustre, mantendo-se virtuoso; de ser famoso, guardando a honra com tal apuro que nenhum bafo pudesse jamais embaciar-lha. Cismava em sua origem misteriosa, que mais o estava obrigando a ir servir, em nome de Deus, as causas da virtude perseguida, da inocência desamparada. Entre estes pensamentos que lhe vinham, não tirava de Oriana o seu melhor cuidado, e como o tiraria, se por ela, afinal, é que tudo era? E pensava que da mão de el-rei Perion, mais que de outra nenhuma, gostaria de receber as armas. Lembrou então que por Qriana poderia alcançar o seu grande desejo. Procurou a infanta, esperando que estivesse apartada dos mais, ajoelhouse-lhe aos pés e disselhe, tremente: [36] — Senhora, muito queria eu pedir-vos uma mercê... Qriana, que via ali diante quem mais que a si própria amava, sorriu-lhe graciosa e respondeu de alvoroçado coração: — Donzel, dizei! — Mas não sou tão ousado que pedir-vo-la possa, senão digno de fazer quanto por vós me for mandado. — Pois tão fraco é o vosso coração, que se não atreva a pedir? Ao ver o sorriso que o convidava a falar, ganhou ânimo o Donzel: — Senhora, pois el-rei, meu senhor, me não quis armar cavaleiro, nunca tão bem o poderia eu ser como por mão de el-rei Perion, a vosso rogo. Sentiu-se Oriana encantada com o desejo que animava o seu encoberto amigo. E, com o aguçado sentido que torna adivinhos os corações das mulheres, entendia que era por ela que o Donzel aspirava ao lustre e à fama: — E a primeira coisa que me pedis, Donzel do Mar, e fazer-vo-la quero de boa mente. Combinou Oriana com Mabília que o Donzel viria à capela da rainha, à hora em que todos estivessem recolhidos; e ficaram de mandar recado a el-rei Perion, quando este se levantasse para partir, antes da alva. Encontrando-se com Gandalim, disselhe o Donzel: [37] — Irmão, espero receber as armas esta noite. Ora dize-me se, quando eu abalar, queres ir comigo onde eu for. — Mas eu — respondeu Gandalim — nunca vos deixarei! Beijou-o o Donzel do Mar na face, e, encaminhando-se para a capela, quedou-se ante o altar, rezando. Pedia a Deus, pois lhe fora o Criador tão benigno salvando-o, destinando-lhe por amos tão bons senhores e mandando que ali tivesse vindo aquela por quem o seu coração batia, que no amor de Oriana e na glória das armas lhe desse mercês de vitória. Depois que a rainha foi dormir, Oriana, Mabília e outras donzelas vieram acompanhá-lo. E, quando chegou el-rei Perion, a quem Mabília tinha enviado aviso, disse-lhe esta: — Senhor, fazei o que vos pedir Oriana, filha de el-rei Lisuarte. Perion olhou Oriana e achou-a formosa sem par. Sorrindo com graça a el-rei, a infanta rogou- lhe: — Senhor, o dom que vos peço é que façais cavaleiro o meu donzel. Viu então el-rei Perion o Donzel do Mar, que aos pés do altar estava ajoelhado. Viu-o e maravilhou-se de sua formosura. — Senhora — disse el-rei a Oriana —, de boa mente vos farei tal dom, primeiro porque vós o desejais, depois porque para este [38] o pedis. E pesar-me-ia de não ser mais rica a cerimônia, se não estivésseis presente, enriquecendo-a tanto. Acercou-se el-rei Perion do altar e perguntou: — Donzel, quereis receber a Ordem da Cavalaria? — Senhor, eu o quero. — Em nome de Deus, e que o Senhor Deus mande que tão bem empregada seja quanto vos fez formoso! Calçou-lhe a espora direita e disse-lhe: — Ora cavaleiro sois. Tomai a espada! E, entregando-lha, mal cuidava que era a sua, que por perdida houvera quando se despedira de Elisena. Oriana sorria. El-rei Perion partiu. [39] VII. Amadis de Gaula Armado cavaleiro, quis o Donzel do Mar partir na mesma noite. Tardava-lhe empregar aquela espada que de tão boas mãos tinha recebido e com que havia sido achado no mar. E olhava Oriana, a desperdir-se... Olhava-a muito, a dizer-lhe adeus até não sabia quando! Ela sentia o coração aos saltos, e os seus olhos respondiam aos dele, e tudo um ao outro descobriam. Despedindo-se, disse-lhe Oriana: — Donzel, por tão bom vos tenho, que vos não creio filho de Gandales... — Senhora, no mar fui achado e vivo para vos servir! Então Oriana encomendou-o a Deus. E Mabília, que já era e sempre havia de ser tão doce amiga dele, disse-lhe adeus também. À saída dos paços esperava-o Gandalim, com os cavalos e as armas. [40] E, sem que de ninguém fossem vistos, cavalgaram e abalaram. Pouco adiante amanheceu-lhes e, como era no mês de abril, estavam as árvores em flor e cantavam as aves à porfia. Lembrando-se da sua amiga, ia o Donzel do Mar pensando: — Pobre Donzel sem linhagem nem bem, como ousaste escolher aquela que em linhagem e formosura todas as outras vale? Mais formosa é que o mais belo cavaleiro armado, brilha mais sua bondade que a riqueza dos maiores tesouros — e tu, pobre Donzel, não sabes sequer quem és, e só te cabe calar o amor, morrer de amor antes de o confessar! E, com estes e outros pensamentos, cavaleiro e escudeiro meteram-se a caminho de aventuras. Senhores, não nos demoraremos nos primeiros feitos do Donzel do Mar. Se eu vos contasse, agora ou mais tarde, todas as ações do herói, a história alongar-se-ia e encurtava-se a vontade de a ouvir. Quando me decidi a contá-la, logo pensei em a não fazer comprida, a fim de que a escutásseis de boa mente. Mas sabei que sem demora praticou belas proezas o moço cavaleiro, e que aquela desconhecida Urganda, que havia aparecido a Gandales para profetizar a glória do menino, lhe apareceu também a ele e lhe fez dom de uma lança. [41] Embarcando para a Pequena Bretanha tempos depois foi o Donzel ter a um castelo em torno do qual se pelejava bravamente. E viu que eram muitos contra um só, que já mal se guardava de tantos golpes. Mandado por íntima força que lhe nascia do amor da lealdade, e quem sabe de que outra origem proviria, correu logo o Donzel a defender o cavaleiro cercado, derribando à sua volta muitos que o acometiam. E no cavaleiro reconheceu el-rei Perion de Gaula. Vendo-se socorrido, el-rei Perion cobrou novo ânimo, e o Donzel e ele desbarataram os covardes que haviam feito a traição e eram por el-rei Abies de Irlanda. Quando o Donzel do Mar tirou o elmo, por muito lho pedir el-rei Perion, este reconheceu no seu salvador o moço a quem, tempos antes, dera as armas. — Amigo, louvo a Deus de por vós haver feito o que fiz! — Senhor, logo vos reconheci. Se vos aprouver, servir-vos-ei na guerra de Gaula e até lá não quisera eu dar-me a conhecer. — Amigo, parece pura maravilha o que acontece! Juntos seguiram para palácio, onde o Donzel foi agasalhado com muita honra e curado das feridas que recebera. E logo se aperceberam para a guerra que el-rei Abies fazia àquele reino, estando já com sua hoste às portas do burgo. [42] Travada a batalha, por três dias pelejaram com sanha os de um e outro campo. Aos senhores de Gaula tinham vindo juntar-se os de Normandia contra os de Irlanda, e a estes levava-os el-rei Abies. Era este rei de tão desmarcada estatura, que excedia um palmo os mais altos cavaleiros. No seu escudo figurava, em campo azul, uma cabeça de gigante decepada, em memória da que el-rei decepara àquele com quem combatera. E, enorme no seu grande cavalo, coberto com o escudo sangrento, el-rei Abies era medonho. Num passo da batalha, quando os de Irlanda carregavam os de Normandia e Gaula e estes já recuavam, encontraram-se frente a frente o Donzel do Mar e aquele rei: e entre o fragor da peleja requereram-se os dois ao combate. À pesada pujança de el-rei Abies respondia a esbelteza forte do Donzel, e carregavam-se ambos de golpes que amolgavam os elmos, cortavam os escudos, desguarneciam os arneses. Resfolegando furioso sob os golpes que recebia e vendo que os que dava não derribavam aquele inimigo fino e de aço, el-rei Abies gritara-lhe: — Tanto te desamo quanto te prezo! Prosseguia entanto a batalha, e os de Gaula com os de Normandia carregavam agora os de Irlanda, aos quais minguava o esforço do seu rei. [43] Mais furiosos que antes, atacaram-se o Donzel do Mar e el-rei Abies. Desconcertava-se a rude força com tanta móbil destreza que a acometia. Rachou-se de um golpe o escudo sangrento, e Abies recuou furibundo e envergonhado, dando-se já por perdido. Enfim, um golpe o lançou do cavalo, e, vendo-o por terra, bradou-lhe o Donzel: — Abies, dá-me a tua espada ou morres! — Morro, mas é de vergonha! — tornou-lhe ele, rendendo a alma. Já os de Irlanda viam perdidos os seus melhores cavaleiros, e os de Normandia e Gaula haviam desbaratado os invasores. Ao lado de el-rei Perion, entrou o Donzel do Mar na cidade em festa. Os moradores tinham enfeitado as janelas, e as ruas estavam juncadas de cheirosa verdura. Ao ver passar o moço, salvava-o o povo e dizia: — Mantenha-vos Deus, Donzel! E exclamava, maravilhado: — Deus! Como é formoso! O Senhor lhe dê ajuda e honra para que sempre como hoje batalhe! Enquanto o Donzel do Mar livrava a terra de Gaula, depois de haver mantido a vida do rei dela, chegavam à corte de el-rei Languines cem cavaleiros de el-rei Lisuarte e muitas donas e donzelas, que iam buscar Oriana. [44] Partiu a infanta, acompanhada também de Mabília. Mas, antes, vira o pergaminho enviado por Gandales e alegrou-se de saber que o Donzel era filho de rei e se chamava Amadis. Ora, senhores, decerto vos lembrais daquele anel que Perion deu a Elisena, no tempo dos seus amores. E, como Elisena se pejara de contar a el-rei Perion que tinha tido um filho e o deitara ao mar, desculpara-se com dizer que havia perdido esse anel. Uma vez, passando o Donzel do Mar por uma sala dos paços, viu Melícia chorando e perguntou-lhe o que tinha. A menina respondeu-lhe que perdera o anel que seu pai lhe tinha dado a guardar enquanto dormia a sesta. Tirou o Donzel do Mar o que trazia no dedo e deu-lho para a consolar da pena em que a via. — Mas esse é o que eu perdi! — Não é; mas, se tanto se assemelha, melhor vos remediará. Quando el-rei Perion quis o anel, Melícia deulho e calou-se. Mas Perion achou o outro, que era, como sabeis, igualzinho. Chamando à parte a menina, mostrou-lhe os dois anéis, ordenando lhe explicasse como houvera o outro e olhando-a com tão carregado cenho, que ela, temendo castigo, contou-lhe logo como houvera um deles. Então teve Perion um mau pensamento, quanto injusto e cruel para Elisena! Com o [45] sem|blante mudado, buscou a rainha e, dando-lhe mostras do que suspeitava, ameaçou-a de morte. Ouvindo Elisena a horrenda suspeita, feriu com as mãos o rosto e, chorando, não podendo mais, contou-lhe que tivera um filho e o deitara ao mar, com a espada ao lado e aquele anel ao pescoço. — Por Santa Maria! — disse el-rei Perion. — Creio que este é o nosso filho. Num súbito recordo, veio-lhe à memória o sonho que tivera aquela noite, quando esperava Elisena e ela viera a ele. Lembrou-se do coração deitado ao rio e viu como certo saía o que Ungan, o Picardo, havia futurado. Foram-se logo à câmara onde o Donzel do Mar ficava; e o Donzel dormia. Mas, enquanto dormia, chorava, do que eles se maravilharam — sabei, senhores, que eram saudades de Oriana. Olhou Perion a espada pendida à cabeceira e logo a reconheceu por sua, que nunca outra tão boa houvera. Neste ponto acordou o Donzel do Mar, que se ergueu e ficou turbado de os ver. — Ai!, senhor! — bradou a rainha —, acudime na dor que tenho! — Senhora, se o meu serviço vos pode remediar, explicai-vos, que o farei até a morte! — Dizei-me: de quem sois filho? — Senhora, por Deus que o não sei. Acharamme no mar por grã ventura... [46] Então exclamou a rainha, chorando: — Vês aqui teu pai e mãe! E, ajoelhada ante Amadis, a mãe beijou-lhe as mãos, dando graças a Deus. El-rei Perion fez cortes e apresentou-lhes Amadis de Gaula. Depois seguiram-se grandes festas em louvor daquele milagre que Nosso Senhor obrara, e ordenou el-rei Perion muitos jogos e alegrias e concedeu muitos dons. Sentia o povo a boa ventura que lhe viera com tal herdeiro do reino. Mas Amadis só pensava em partir. Bem fizeram pai e mãe por o guardar, tão felizes se achavam de ali ter o filho que lhes lembrava aquele amor que súbito os unira. Mas Amadis pensava em Oriana — senhores, com que saudades! E, acompanhado do fiel Gandalim, embarcou para a Grã Bretanha. [47] VIII. Na corte de el-rei Lisuarte Ia Amadis a caminho da corte de el-rei Lisuarte e de longada praticava belos feitos, de sorte que, por onde o Namorado passava, ficava melhorada a justiça e remediada a fraqueza. Ora, uma noite, não achando pousada, e vindo de atravessar uma floresta, foi bater a um castelo que tinha luz e de onde saía alarido de festa, com rija matinada de quem ia bebendo. Era o castelo de Dardan, o Soberbo, o mais fero cavaleiro da Grã Bretanha, e tão mau homem quanto esforçado em batalha. Pediu Amadis pousada, como quem, à lei da cortês hospitalidade, pretendia ali recolher-se. Porém o próprio Soberbo, respondendo das altas ameias com a soberba voz, negou-se a albergar a quem lho estava pedindo. Enfureceu-se o moço cavaleiro, que era flor de cortesia; e a Dardan prometeu que inda em outro lugar se haviam de ver. [48] Ao romper de alva, e depois que passou a noite na floresta, veio Amadis a saber, por umas donzelas com quem foi de caminho, a feia história de Dardan, o Soberbo. Amava Dardan uma dona daquela terra, a qual, resistindo ao desejo do que a requeria e valendo-se da fama de bravo que ele tinha, lhe fizera prometer ruim serviço. Porque esta dona tanto desamava a sua madrasta viúva, que queria haver por seus os bens que eram daquela. E ao Soberbo dissera a sua amiga que só dele havia de ser no dia em que a levasse à corte de ei-rei Lisuarte, aí dissesse que a ela pertenciam os bens de sua madrasta e o provasse em batalha a quem dissesse o contrário. E Dardan assim o prometera fazer no seguinte dia. Mas — prosseguiam, com lástima, as donzelas a quem Amadis ouvia estas coisas — a dona viúva não viria a ter quem combatesse por ela, pois a todos Dardan metia respeito. Alegrou-se Amadis com tais novas, e logo determinou combater com o Soberbo. E sorria de pensar que a batalha se daria diante de Oriana! Assim foi andando até chegar a Vindilisora, que era onde estava el-rei Lisuarte. Torneando a cidade, sem que o houvessem descoberto, subiu a um outeiro; e de aí, sentado à sombra de uma árvore, via embaixo o castelo e ficava-se a olhar, com lágrimas nos olhos. Era ali que estava Oriana: e o Namorado tanto a queria ver, que se arreceava também de a encontrar. Só por ela viera, como só por ela vivia; e agora, sabendo-a tão perto, quase quisera partir, morrendo de a não ter visto... Mas Dardan, o Soberbo, chegara à corte para dar sua batalha. El-rei Lisuarte, com a companhia de homensbons, encaminhou-se para o campo cerrado. E Dardan entrou, trazendo à rédea o cavalo da sua amiga, que vinha soberba também. — Senhor — disse ele a el-rei —, mandai entregar a esta dona o que outra guarda e lhe não pertence. E, se houver quem diga o contrário, comigo combaterá! Perguntou el-rei Lisuarte à viúva: — Dona, haveis quem combata por vós? — Senhor, não — tornou-lhe ela, chorando que el-rei houve pena, porque era boa dona. Olhava Dardan em roda e não via quem combatesse com ele. Todos lhe queriam mal, mas todos o temiam. E, seguro de sua esperava o juízo de el-rei, dado contorme o costume. Então, da orla da floresta um cavaleiro Cavalgava um formoso corcel branco, resplandecia-lhe o elmo, e as armas brilhavam-lhe à luz. À sua vista todos se [50] maravi|lhavam e diziam que jamais haviam posto os olhos em cavaleiro tão belo. O cavaleiro foi direito a Dardan, a que dava surpresa e gosto este inimigo: surpresa porque a sua força não admitia contrário gosto porque era bravo e apetecia lidar. — Dardan, defendo quem tu acusas! E ora cumpro a promessa que te fiz. Perguntou el-rei Lisuarte à dona viúva se outorgava seu direito àquele defensor. — Senhor, sim! E que Deus o ajude! El-rei mandou que pelejassem. Arremessando-se de espaço um contra o outro, Amadis e Dardan quebram as primeiras lanças. Depois, como os cavalos já cansam, acometem-se à espada e dão tão feros golpes, que o aço dos elmos faísca e parece que as cabeças ardem! Começa Dardan a deter-se, e Amadis carrega-o de golpes. — Mas quem será o cavaleiro — pensava o povo, seguindo a luta — que à força soberba de Dardan opõe tanta força gentil? E, a alguns que o estavam vendo e reparavam no que Amadis tinha a modo de resplandecente, afigurava-se que ele seria da Cavalaria do Céu. Sob os golpes que Lhe chovem e Lhe cegam a sanha, vai Dardan recuando até debaixo das janelas onde as damas assistem ao combate. E eis que, erguendo os olhos, Amadis vê Oriana! [51] Ah!, senhores, podeis sentir tudo o que estas palavras guardam? Amadis viu Oriana! Não a havia ele olhado desde a noite em que recebera as armas e em que, por causa dela e para ir merecendo o dom do seu amor, tinha partido a caminho de aventuras, cavaleiro pobre e sem nome. E voltava agora a vê-la e, de olhá-la, esquecia o fero inimigo que tinha ali diante, naquele campo cerrado. Já Amadis fere poucas vezes, e cresce Dardan na sezão do furor! Cuida o Soberbo que a vitória é sua e a espertar-lhe a sanha, pensa que da vitória depende o haver o corpo da sua amiga, por que viera ali a manter dolo e mentira. El-rei e o povo, que olham a batalha, por momentos descoroçoam de que ela acabe como no íntimo o estão pedindo a Deus. É que o Namorado ergueu os olhos e não os pode despregar de onde os tem... — Se eu morrer — pensava ele —, morro por ela e a vê-la! Mas, ah! senhores, assim como Oriana o ia perdendo, Oriana o salvou: porque Amadis lembrou que a fraqueza podia ser julgada covardia. Então, como acordado de sonho, sente que lhe aflui ao sangue uma força invencível. Cresce para Dardan, que recua temente; arranca-lhe o elmo de um golpe, a espada cintila ao Sol, e o Soberbo rolou morto no chão! [52] Quando o combate acabou, com grande alegria de todos, disse Oriana a Mabília: — Adivinha-me o coração que este cavaleiro é Amadis, pois tempo é de me ele buscar! — Assim o cuido também — respondeu Mabília, contente de ver contente a sua amiga e por ser tão amiga de Amadis, que o era tanto ou mais que de Agrajes, seu irmão. — Não vistes como parou, em meio do combate, a olhar para a vossa banda? — Se vi! — tornou-lhe Oriana. — E batia-me o coração que perdia quase o acordo! — Pois, se ele é Amadis, não tardará com recado. Ao mesmo tempo, Amadis, descansando na floresta, dizia a Gandalim: — Amigo, vai a palácio sem que te veja ninguém: que Oriana saiba que estou aqui e me diga que farei. Gandalim, a furto, falou a Mabília, que o levou em segredo à infanta: — Onde está teu senhor? Que é feito dele? — Senhora, dele será o que quiserdes, pois por vós morre de amor! Então Oriana ensinou-lhe que nessa noite viria Amadis ao vergel para onde deitava a câmara em que ela dormia, e que a uma janela de rexas de ferro se poderiam falar. Quando a noite caiu, penetrou Amadis no vergel, seguido de Gandalim, que ficou de esculca, vigiando. Olhou por todos os [53] baixos do alcáçar, buscando a lucerna prometida, e em breve lobrigou a janela onde ela luzia e o chamava. Acercou-se e, através da grades, viu Oriana! Vestia a infanta um brial de seda azul com flores de ouro e estava formosa sem par. — Meu senhor, sede bem-vindo... Ele olhavaa, e o coração não o deixava falar. — Meu senhor, sede bem-vindo e sabei que alegria tive com as boas novas que da vossa fortuna me chegaram. Disse-lhe então Amadis: — A mercê que vos peço não é para meu descanso: é que me deixeis servir-vos e viver só para vós! Oriana tornou-lhe: — Mas de mim não hajais tal cuidado que eu vos dê tristeza e dor. — Senhora, em tudo obedeço, nisso não posso... Com os seus olhos formosos, os mais formosos da Terra, olhava-o Oriana, revendo-se no perfeito Namorado. — Meu senhor, e que vos impede? Beijando aquelas mãos, as mais lindas mãos que havia, e estavam fora das grades a falar também para ele no fino gesto dos dedos, Amadis respondeu: — O meu coração! E, levando as mãos de Oriana aos próprios olhos, Amadis banhou-as de lágrimas, feliz de tanto sofrer o gozo do seu desejo. [54] Neste ponto apareceu Gandalim e disse que a alva não tardava. No outro dia entrou Amadis em Vindilisora, e todos o salvavam ledos e diziam: — E o cavaleiro que venceu Dardan! Saiu elrei Lisuarte a recebê-lo com honra, acompanhado de muitos homens-bons. — Amigo, sede bem-vindo! — Senhor, Deus vos dê alegria! E, como Oriana o quisera, ficou Amadis na corte para servir a rainha — senhores, para a servir a ela! [55] IX. Arcalaus Determinou el-rei Lisuarte fazer cortes, a fim de bem ordenar as coisas do seu reino, por grande honra e proveito de todo aquele senhorio. Mandou el-rei aperceber os homens-bons, para que com ele fossem em Londres, no dia de Santa Maria de Setembro, e a rainha enviou recado às donas e donzelas. Ora, sabei que havia na Grã Bretanha um artemágico, votado às malas-artes e em más obras useiro. Enredado uma vez em suas manhas, tinha Amadis derrotado o poder do encantador. E Arcalaus, que assim se chamava o feiticeiro, jurara vingar-se dele e perder el-rei Lisuarte, a quem grande ódio havia. Ouvide a traição que ele fez, e que a graça do Senhor seja conosco. A fim de melhor tecer a trama que fazia, procurou Arcalaus a Barsinan, senhor de Sansonha, convencendo-o a que se levantasse contra o poder de el-rei. Ao cabo de muito falar, dissera Arcalaus, em segredo: [56] — Barsinan, senhor, queira-lo tu e serás rei da Grã Bretanha! Respondeu Barsinan que lhe convinha, porque era homem afeito à deslealdade a seu senhor; e quis saber como faria naquele tredo negócio. Mas, para lhe espertar a sanha da traição, Arcalaus só lhe dissera mais: — E terás Oriana por mulher! Estava el-rei Lisuarte na sua corte, apercebendo-se para partir para Londres, quando chegou um rico mercador que muito lhe queria falar. Ajoelhando diante de el-rei, disse o mercador: — Senhor, eu vos trago aqui o que a um grande rei como vós convém! E, abrindo uma arquinha que trazia, tirou uma coroa tão esplendente, que a el-rei foram-se-lhe os olhos nela. A coroa era bela à maravilha. No seu ouro finamente lavrado resplandeciam as pedras mais formosas. — Senhor — disse o mercador —, crede que esta obra é tal, que nenhum dos que hoje lavram ouro e cravam pedras a poderia fazer de suas mãos. A rainha, que estava olhando, atalhou logo: — Certo, senhor, esta formosa coroa vos convém! Continuou o mercador: [57] — E para vós, senhora, trago este manto! Isto dizendo, tirou da arquinha um manto tão bem obrado como a coroa e formoso como outro jamais fora visto. Era orvalhado de aljôfares e nele se viam brilhar todas as aves do mundo, bordadas na mais rica pedraria. A rainha não se pôde ter que não confessasse: — Assim Deus me valha, amigo, que este manto parece que o bordou a mão daquele Senhor que tudo pode! Contente do que ouvia, e ofertando à cobiça dos olhos a deslumbrante fazenda, sorriu-se o mercador e respondeu: — Senhora, bem podeis crer que a este manto o bordou mão da Terra, porém outro não há assim formoso e, por o eu saber, vo-lo trouxe. Tornou logo a rainha a el-rei: — Certo, senhor, este formoso manto me convém! E, assim como el-rei Lisuarte e a rainha Brisena admiravam o manto e a coroa, assim os cavaleiros e as damas os admiravam também, encandeados todos no brilho das pedras e no fulgor dos bordados. Disse então o mercador, falando a el-rei diante de toda a companhia: — Senhor, não sei eu quanto valem estes dons nem tempo tenho para me agora deter. Mas levai-os às cortes de Londres, que eles vos darão mor alteza. Basta-me a vossa [58] palavra, cujo preço, senhor, se conhece. E por isto me dareis o que vos eu lá pedir, ou, não mo querendo dar, a coroa e o manto me restituireis. Disse el-rei que aceitava — foi o brilho das pedras que o cegou! E, pelo haver aceitado, vereis que dores lhe hão de vir. [59] X. O primeiro beijo Fizeram-se as cortes em um grande campo bem plantado de árvores, e a cadeira real, em meio do campo, estava coberta com um pano de sirgo, semeado de tantas estrelas quantas nele podiam caber. Em redor havia muitos panos ricamente lavrados com variadas histórias e lavores. Quando todos se acharam ali juntos, el-rei Lisuarte falou aos homens-bons: — Senhores, assim como Deus me fez rei, assim eu devo, para seu santo serviço, fazer coisas mais louváveis que nenhum outro, em prol do comum e proveito da terra. Dizei-me, pois, o que os vossos juízos alcançarem, para, por mim e por vós, senhores, ganhar mais honra. Na tenda onde el-rei se achava, estavam com ele Amadis, seu irmão Dom Galaor —que Amadis trouxera àquela corte, depois de o haver socorrido em muitos perigos —, e estava também Barsinan, senhor de Sansonha e homem tredo. [60] Mas el-rei, que falava seguro, tinha no coração grande cuidado. Havia ele trazido às cortes o manto e a coroa esplendentes, e bem guardados os tivera, como era de razão com coisas tão preciosas. Porém, naquela manhã, quando fora abrir a arquinha para tirar manto e coroa, achara a arqulnha vazia, inda que cerrada estava. Depois que el-rei falou, começaram a falar os homens-bons. Ele a todos ouvia, e resolviam-se os pleitos. Já porém sobre o rei, tão gracioso e leal, e sobre os seus, a quem muito queria, pesa a traição de Arcalaus, que tece o fio da trama. Assim foi que uma donzela, em pranto e toda coberta de dó, se foi queixar a el-rei de males que lhe faziam. Contou como seu pai fora preso no castelo de Guldenada, ele sem culpa e sem defesa ela. Vendo ali aqueles senhores a inocência desamparada e mostrando-lhes lágrimas de aflição, a todos moveu à piedade e à vontade de a servir. — Escolhei destes cavaleiros — disse el-rei — quais hão de ir em serviço vosso. — Senhor, sou de terra estranha e escolhê-los não sei; mas peço à rainha mos dê, que bem os conhece por seus. A rainha, que houve piedade, escolheu Amadis e Dom Galaor. Começa Arcalaus a vencer, porque Amadis deixa as cortes e Oriana fica só! [61] Ora, ao quarto dia da partida de Amadis, estando el-rei Lisuarte com muitos homens-bons e donas e donzelas, adiantou-se o mercador, que ajoelhou e lhe disse: — Senhor, por que não trouxestes a coroa e o manto que vos entreguei? Calou-se el-rei, turbado. — Senhor — continuou o mercador —, aprazme que mos pagueis ou mos tomeis a dar, à fé do que tratamos. Para encurtar razões, e como quem ia direito à verdade, atalhou el-rei Lisuarte: — Amigo, não vo-los posso dar porque os perdi. Fingiu logo o tredo Arcalaus que lhe doía a nova como indo nisso a sua mesma vida! Dando-se por perdido, maldizia a sua sorte e arrepelava os cabelos, com dor: — Senhor, que me desgraçastes! Em má hora vos confiei meus tesouros! E, se me não valeis, morro mesquinho! Tornou-lhe el-rei: — Mas dizei-me já seu preço, que vo-lo pagarei de contado. Recolheu-se a pensar consigo o afligido mercador, ao tempo que já uma dor surda ralava os corações dos que se ali achavam. Ao cabo de haver avaliado a sua fazenda, disse o traidor a el-rei: — Senhor, bem me custa alegar-vos quanto me a mim deveis: mas sabei que só salvarei a vida se me derdes o manto e a coroa, ou, por escambo de eles, a vossa filha Oriana! [62] À roda os homens-bons, as donas, as donzelas, tinham agora os corações cheios de lástima. E, havendo escutado tal despropósito, alguns iam arrancar das espadas, quando el-rei, com um sinal, ordenou que estivessem quedos. Então, ao mercador que esperava, e refreando a dor do coração e a sanha do logro, el-rei Lisuarte respondeu: — Amigo, demais me pedis! Mas antes eu perca a filha que a palavra. Porque, perdendo a filha, perco o que a mim e a mais alguns custa e dói: porém, perdendo a palavra, a todos faria dano, dando exemplo com que ninguém doravante respeitasse as leis da honra. E, mostrando-lhe Oriana, que desfalecera, el- rei disse a Arcalaus: — Eis o preço que requereis! Podeis levá-la! Arcalaus tomou a infanta nos braços e, seguido de cinco cavaleiros, entre o pasmo de quantos ali estavam, cavalgou e desapareceu. Entretanto Amadis e Galaor sofriam traição no castelo de Guldenada e, com a ajuda de Deus, escapavam às tramas do encantador. Já a caminho de Londres, recebeu Amadis o ansioso recado de Mabília e por ele soube que Oriana era roubada. — Ai! Santa Maria, valei-me! Corre Amadis em busca do seu bem. [63] Interroga no chão o rasto dos cavalos, uma traça e corre, e perde-a e descoroçoa, e cuida mais adiante ir já por ela... Mas o Senhor Deus não deixa sem amparo as almas puras nem sem ajuda contra as malas-artes os bons filhos seus que elas enredam. Ao fim de muito andar, encontrou Amadis um lenhador que tinha a cabana à borda do caminho. Como era noite fechada, ali se recolheu e deitou o cavalo a pastar. Contou-lhe aquele homem que vira passar de longada cinco cavaleiros armados, com um à frente que levava uma donzela. — Amigo, e como era a donzela? — Senhor, formosa sem par! Mais lhe disse que tinham atalhado ao caminho do castelo de Grumen, um primo de Dardan, o que fora morto em casa de el-rei Lisuarte. Neste passo a alva rompia. Amadis cavalgou e partiu a caminho do castelo de Grumen. Enchia-lhe agora esperança nova o coração. De toda a sua alma, elevava para o Céu a mais acesa prece, e sentia que o Senhor lhe advogava a pura causa. Escondido na espessura de uma cerrada mata, espiava Amadis desde as árvores o castelo, torvo nos muros grossos. Estando assim em desvelada vigia, não tardou muito em ver um cavaleiro que a uma torre viera mirar o campo em roda. Depois a porta do castelo abriu-se, saíram cinco cavaleiros [64] bem armados, e Amadis viu Oriana nos braços do encantador. — Ai! Santa Maria, valei-me! Ora julgai como seriam os golpes de Amadis! Ao primeiro, que era Grumen, o senhor do castelo, trespassou-o com a lança, de sorte que ferro e fuste lhe saíram a outra parte; tomando a espada que lhe fora companheira no mar, fendeu ao segundo a cabeça traidora; ao terceiro, que resistir-lhe queria, derribou-o com sanha pelos peitos; e aos outros dois, que já desandavam, acutilou-os pelas espáduas refeces. Deste modo ficaram os cinco semeando o caminho, com bravas feridas abertas. A Arcalaus não o pode Amadis ferir como aqueles, porque ele foge e leva consigo — Senhor! — todo o seu bem! Mas persegue-o, ladeia-o, envolve-o e, como o tredo se teme da espada cristã que rebrilha, Amadis arrebata-lhe dos braços Oriana — Oriana, a Sem-Par!... Diante dos maus cavaleiros, mortos por terra com disformes gestos, Oriana estremeceu; e Amadis, ajoelhado a seus pés, disse-lhe com doçura: — Quanto mais custa morrer de amor! — Fazei como quiserdes — respondeu-lhe a infanta —, que bem fareis; e, se parecer pecado, não o será para Deus. [65] Eis, aí vai Amadis gozando, pela vez primeira, este bem sem igual de se achar só com a bem-amada. Ali com ela, tendo-a salvo do horrendo a que a arrastara mal precavida promessa e conquistando-a em batalha no momento em que ia perder o seu bem, sentia Amadis no coração tão bela ventura, que esta quase o empecia de a gozar, tamanha era. E ainda ali Amadis amava a furto, se não já por temor dos homens, por temor do amor. Assim foram andando até a orla da mata, levando Amadis à rédea o cavalo em que a infanta havia montado. Mas sentia-se Oriana tão cansada, como quem não dormira a passada noite, que Amadis se encaminhou para um vale onde corria um ribeiro, entre a erva viçosa. — Passai aqui a calma; descansai nesta frescura. Enquanto Amadis se desarmava, Oriana adormeceu à sombra das árvores. Chegou-se Amadis devagarinho e, vendo-a tão linda e ali sozinha, ficou-se a olhá-la. Com os cotovelos fincados no macio chão da ribeira, o rosto encostado nas mãos, gozando o fresco repouso após tão ásperos dias, ia Amadis olhando a bem-amada, serena dormindo sob a guarda adoradora dos seus olhos. Oriana, acordando, sorriu. [66] E, então, mais por ela o querer que por ele o ousar, a donzela se fez dona sobre aquela cama verde. Bem abraçados se tinham, e do amor o amor crescia — puro amor, amor sem fim! [67] XI. Briolanja Oriana voltou logo à casa de seus pais, salva de tantos perigos e traições. El-rei Lisuarte, contra quem Barsinan tramara aleivosia, retomou seu senhorio com maior alteza e honra e castigou o tredo senhor de Sansonha. Junto da sua amiga, goza Amadis com ela o bem do amor escondido. Porém a Cavalaria é oficio que sempre está obrigando a quem o pratica, e que a Amadis obriga mais que a outro nenhum. Assim a honra da palavra dada lhe manda que se aparte do seu bem — senhores, com que saudades! Porque — sabei-o — um dia Amadis fora ter ao castelo de Grononesa e aí soubera a triste história da linda princesinha Briolanja. Havia esta sido esbulhada do seu reino por horrenda felonia, quando tivera o pai morto às mãos de um próprio irmão que cobiçava a coroa. E, como não havia mais filhos, ali ficara a linda princesinha sem [68] de|fensão nem amparo. Para memória daquela traição, tinham alguns vassalos fiéis levantado no castelo uma figura de pedra que representava o rei morto, coroado e de espada na mão. Bem estava requerendo desagravo a alma alçada naquela imagem. Mas ainda ali não viera cavaleiro que pelejasse pela princesinha. E esta, tão triste em tenros anos, vivia esperando por ele, olhando a estátua de pedra. Tinha então dito Amadis que havia de ser ele o cavaleiro desejado; e prometeu a Briolanja voltar, para lhe reaver o reino de seu pai. Ah!, em má hora fora prometer estes leais serviços Amadis. E, quando a Oriana rogou lhe deixasse ir fazê-los, mal sabia que dor lhe viria, e quanto injusta, Senhor! Vai Amadis nos vinte anos. A formosura que tem realçam-na agora os nobres sinais das armas, que lavram para lembrança os momentos de glória. E é já sua fama tão grande, que com ele resplandece. Desde que o havia olhado, sendo tão menina, quis-lhe Briolanja com perdido amor; e agora, tornando a vê-lo, sente que lhe quere mais. Junto dela, servindo-a na guerra, guarda Amadis a fé do seu amor. E nem um breve momento, à luz do Sol ou da Lua, deixa de só viver para Oriana, a Sem-Par. Mas ao amor depressa vem o enredo, até ao amor de Amadis, fiel como outro não há. Assim foi que um pajem contou na cor~e de el-rei Lisuarte — e não o dissera por mal, mas porque certo o julgava — que seu senhor Amadis amava a linda princesinha Briolanja e por amor se fora a reaver-lhe o reino. Quando a Qriana chegaram estes dizeres do pajem, sentiu no coração queixa mortal. Em vão Mabília, a de fiel conselho, lhe apontava a razão e a verdade. Debalde com palavras de claro entendimento lhe mostrava o que tão certo era: — Pois podeis crer em tão feia coisa e tão impossível como essa? Como vos trocaria, se vive de vós? Porém Oriana crera na traição e não ouvia conselho nem a razões atendia. Ora, enquanto Oriana padece e guarda no coração injusta sanha, ouvide como Amadis padecia por lhe ficar fiel até a morte. O amor de Briolanja, que ele não quere, quere-o a ele com mais amor, a que se acresce a gratidão que lhe tem, senhora do seu reino como é já. E tanto se dói de lhe querer, que o senhor infante Dom Afonso de Portugal — filho do Rei-trovador, e que depois foi tão belo cavaleiro no Salado — se amerceou da linda princesinha e, por piedade dela, até queria pôr no Romance um passo de sua feição. [70] E bem podemos cuidar que ao trovador de Amadis dissera o bravo infante, dando mostras de fino coração, o mesmo que, mais tarde, havia de sangrar ao ter de ser cruel para o Colo de Garça: — Amigo, hei grande sabor dos feitos de Amadis e de tudo o que haveis bem contado. Mas por minha fé juro que, por sua grande bondade e formosura, não há de ser Briolanja tratada de tal guisa! — Senhor — tornara-lhe sério o cavaleiropoeta —, mas vossa mercê bem sabe que até a morte será fiel Amadis à sua senhora Oriana! — Pois, amigo, cobremos o remédio, e isto mudai na história que vos fará sempre louvado dos homens-bons que vos agora lêem e lerão adiante. Queria o senhor infante que Amadis, preso em uma torre até que a Briolanja aceitasse por amiga, enviasse recado a Qriana, pedindo-lhe licença para se resgatar. E que Qriana, outro modo não vendo de o livrar, desse a licença requerida, do que Briolanja haveria dois filhos de um só ventre. Remediava desta guisa a ambos o senhor infante Dom Afonso de Portugal: a Amadis, por não quebrar fé jurada; a Briolanja, por a servir no desejo. Mas, ah! senhores, é outra a verdade. Não entendeu neste ponto o infante ao trovador. Se tal coisa se pusesse na história, ir-[71] senos-ia grande encanto dela. A verdade éque Amadis, preso em uma torre pelo que ouvistes, perdeu o comer e o dormir e perto estava da morte. Então, temendo matá-lo, Briolanja soltou-o. E Amadis foi fiel a Oriana, a Sem-Par! [73] XII. As penas de Amadis Aconselhada pela sem-razão e escondendo a Mabília o que fazia, escreveu Oriana a Amadis. Chamou Durim — irmão de uma boa donzela da Dinamarca que na corte havia muito morava — e ordenou-lhe que levasse a carta ao reino de Briolanja, a entregasse, mas lhe não trouxesse resposta. Entretanto Amadis, com seus irmãos Galaor e Florestan, com Agrajes e outros belos cavaleiros, ganhara a Ilha Firme, que fora de Apolidon, ali outrora arribado, vindo das ilhas da Grécia, e dela tomara senhorio com seus palácios e tesouros. Partiu Durim e, chegado que foi à Ilha Firme, chamou Amadis a furto, onde não fossem vistos, e deu-lhe a carta. Quando o Namorado acabou de a ler —tão crua era! —, sentou-se nas ervas do chão, perdida a cor e a firmeza. — Amigo, mandaram-me outro recado? [74] — Senhor, não. — Mas levareis meu mandado? — Senhor, não o levarei. Releu Amadis a regra que dizia: “Não vos quero ver mais, nem me busqueis, nem me deis novas”. Então suspirou assim o Namorado: — Senhor Deus! Por que vos apraz matar-me? Ao fiel, caro Gandalim, que chorava de o ver chorar, Amadis, despedindo-se, dissera: — Gandalim amigo! Criou-nos o mesmo leite, e teus pais me quiseram como a filho, desde que recolheram aquele pobre menino achado a boiar nas ondas. Agora, que vou morrer, ouve a minha vontade: esta Ilha Firme, que eu ganhei, a ti a dou para que a ela tragas como senhores teu pai e mãe. De ti me despeço com pena, pois tão leal me foste. Mas sabe que já não tenho cabeça, nem coração, nem nada! Tudo perdi ao perder o amor de quem amo. Amigo, não me procures, que não nos veremos mais! E Gandalim, transido de dor, viu-o partir sem elmo, nem escudo, nem lança, nem espada! Segue-o com os olhos e a própria dor o segura, tão súbita o feria. E, quando busca partir, Amadis já vai longe. Vai Amadis andando e não sabe aonde. É o cavalo sem governo que o guia. [75] Amadis não tem rumo porque o perdeu com o amor. Descem dos montes, lentas, as sombras e deitam-se ao comprido na terra solitária. Amadis caminha e alonga no meio delas a aparência do seu vulto. — O meu amor — pensava ele, ao passo que a luz desfalecia — é como a sombra: quanto vai sendo mais tarde tanto vai sendo maior! O cavalo endireitou a uma floresta e penetrou na funda espessura. Deixa-se ir Amadis ao sabor das suas penas. Anoiteceu. Assim vagueia metade da noite na rumorosa escuridão das árvores. E desta noite em que vai, mais cerrada que a outra que o cerca, só acorda quando um ramo lhe bate rijo nos olhos. Apeia-se, deita-se, e no escuro a voz misturase ao pranto que chora à maravilha: — Ó meu senhor Gandales, bom, leal cavaleiro meu amo! Por que te aprouve recolher aquela pequena coisa que lá ia sobre as águas do mar? Ao outro dia, caminhando à ventura por uma verde campina, encontrou Amadis um ermitão que descansava ao pé de uma fonte, onde dera de beber ao seu asno. Cobria-o um pobre hábito tecido de lã de cabra, e espalhavam-se-lhe nos peitos as cãs mui alvas. [76] Perguntou-lhe Amadis se ele era monge, e, como o bom velho lhe tornasse que ha, via quarenta anos o era, apeou-se o cavaleiro e, de joelhos, beijou os pés do homem de Deus. Doeu-se o velho monge da pena que via em tão moço e formoso senhor: — Meu filho, se de arrependido chorais por pecados que hajais cometido, boas as lágrimas são. Pediu-lhe Amadis que o ouvisse de confissão e consolava-se de contar ao servo Deus os passos da sua vida, agora tão mesquinha, e que tão boa fora quando o amor lhe mostrava a razão de viver e vencer. Narrou-lhe como o haviam recolhido no mar, no que o monge entreviu sinal de favor divino. E, vindo do que há mais tempo sucedera até ao que mais próximo soara, ali lhe contou da sua vida assim o bem como a dor. Ao cabo da confissão, disse-lhe o monge: — Meu filho, se os bens temporais são fumo que o vento semeia, que serão prazeres de mulheres senão um fumo mais vão? E foi-o admoestando com palavras sisudas, que lhe a idade e estado aconselhavam, mas também com o jeito brando que rende almas queixosas. Disse-lhe que cuidados tais os reprovava ele por desgarrados; que a mocidade e o valoroso rasgo o deviam de consolar de semelhantes males, os quais, em verdade, provinham de coisas [77] que não acrescentavam o serviço de Deus; que o pecado começa por fazer doce o que depois com seu travor tão amargoso torna. E mais lhe disse que não havia no mundo mulher nenhuma merecedora de que por ela se viesse a perder um homem como ele. — Meu pai, nessa parte não vos peço eu conselho; só vos peço que cureis da minha alma. Rogou-lhe então Amadis que o levasse consigo onde fosse, pois, sentindo-se a ponto de morrer, precisava do socorro divino. — Meu filho, moro em lugar esquivo e trabalhoso em uma ermida posta em alta penha que se adianta sete léguas no mar. Para se lá viver, é mister despedirmo-nos do mundo, dos prazeres e vícios que tem. Como quereis acompanhar-me em tal lugar da penitência, vós, mimoso da corte, costumado a brilhar na paz e na guerra? Aquela terra é deserta e, do lado da água, só em tempo macio de verão se logra desembarcar. E eu vivo de esmolas... Respondeu Amadis que muito lhe aprazia quanto escutava, pois para si se acabara o mundo. E tornou a rogar-lhe que o levasse, ou iria morrer nos algares dos montes, desesperado e sozinho, perdendo a alma. Movido de tais razões, conveio por fim o monge em o levar; e, erguendo a mão, abençoou-o. Rezou o ermitão as vésperas e, ao cabo, tirou de um alforje uma escassa merenda, [78] que repartiu com Amadis. Não comia este havia dois dias, mas recusou o bocado, do que o santo homem lhe ralhou, fazendo-o comer um pouco: — Filho, comei para cobrardes forças, pois muito temos que andar até chegarmos ao ermo. Sabei que o vosso desespero não édo agrado do Senhor, antes receio que a seu juízo altíssimo venha a parecer ingratidão. Anoitecia entrementes, O ermitão deitou-se a dormir no seu manto, e Amadis, a seus pés, adormeceu também. E Amadis teve um sonho. Sonhou que estava encerrado em câmara tão negra, que não entrava nela alguma lembrança do dia; e, não achando por onde saísse, arquejava-lhe o coração, às pancadas na arca do peito! Do meio da temerosa escuridade, parecia-lhe que vinham a ele sua prima Mabília e a Donzela da Dinamarca, e que um raio de Sol bailava diante delas... Tomavam-lhe elas as mãos e diziam-lhe: — Senhor, saí e buscai a luz! E, saindo, vira Oriana, que estava cercada de fogo... E, passando através do fogo, sem sentir que ele o queimasse, tomara Onana nos braços e a levara a um formoso vergel... Com aflitos brados, acordou; o ermitão despertou com eles, e, como a alva vinha rompente, dispôs-se a ir de longada. Queria Amadis deixar ali o cavalo, para seguir, apeado e humilde, o seu virtuoso [79] companheiro. Mas não lho consentiu o ermitão. — Meu pai — disse—lhe Amadis — , mais uma coisa vos peço: que a ninguém digais quem sou nem me chameis por meu nome. Sorriu-se o santo homem e tornou-lhe que a tão moço e formoso senhor, carregado de tanta pena, daria nome que quadras-se à gentileza e à dor. E pôs-lhe o nome de Beltenebros. Então, indo o monge no asno e no corcel o cavaleiro triste, tomaram ambos o caminho da soledade. [81] XIII. Beltenebros Enquanto Beltenebros e o ermitão iam de longada, chegava à corte de el-rei Lisuarte um nobre senhor que andava jomadeando naquele reino. Acompanhado de dez escudeiros, anunciou-se a elrei o poderoso cavaleiro e deu-se a conhecer como o príncipe de Roma, filho do Imperador e herdeiro do Império, que de seu velho pai receberia. Acolheu-o el-rei Lisuarte como requeria a alteza deste hóspede; e, abraçando-o, rogou-lhe se albergasse na corte, do que el-rei e os seus haveriam prazer. Achando-se todos juntos para comer, viu o príncipe romano Oriana, a Sem-Par, e tão espantado foi de sua formosura, que se não pôde ter que não dissesse a el-rei Lisuarte: — Senhor, muitas belezas vi e admirei no mundo e muito ouvira eu louvar a formosura da princesa Oriana, vossa filha: porém, agora que a vejo com meus olhos, por mesquinhos tenho os louvores. [82] Sorriu el-rei Lisuarte, satisfeito do que o príncipe dizia. Mas Oriana, que, apesar da crueza com que tratara Amadis, não pensava senão nele e morria por novas, fingiu não ter visto esse olhar lisonjeador. Nos dias que esteve na corte, não buscava o príncipe senão servir a infanta, por mais que esta lhe mostrasse uma esquivança que aquele parecia não alcançar, pois, como era soberboso, avaliava em grande conta o serviço próprio. E Oriana, a quem o cuidado do amor tornava triste, tinha por castigo as finezas do romano e suspirava por vê-Lo abalar. Também o príncipe não aprouve aos cavaleiros que com ele tratavam; e todos o julgavam mais bravo em polir as palavras que em praticar os feitos. Antes de deixar a corte, dissera o príncipe a el-rei Lisuarte, encobrindo nas palavras um claro pensamento: — Senhor, de vossa corte não me poderei eu esquecer. E, um dia, espero mandar-vos de Roma novas minhas... Chegados que foram à Penha Pobre o ermitão e Beltenebros, aos marinheiros que os passaram na barca deu este as vestes e o cavalo, recebendo um tabardo de lã meirinha, com que se cobriu. Agradou-se Beltenebros da braveza de tais lugares. — Filho — disse-lhe o ermitão —, eis aqui a Penha Pobre, e esta é a ermida onde a [83] Vir|gem Nossa Senhora vai ter mais um servidor, do que pagado sereis por sua fina bondade. Assim muitas vezes socorre aos navegantes a Senhora da Penha, quando dessas ondas, achando-se eles em perigo, por ela bradam e lhe rezam com devoção. Para aqui me passei, deixando sem saudade os enganos do mundo, depois de haver gastado a flor da idade em desvairos de mancebo. E aqui me acompanhou, sempre fiel, a solidão destes sítios, a qual em trinta anos só uma vez deixei, e agora foi, para ir ao enterro de uma irmã. E ali começou Beltenebros a fazer penitência, para que Oriana, um dia, o quisesse. Entretanto Durim, correndo a galope desapoderado, voltara em dez dias à corte de el-rei Lisuarte. Ardia Oriana por novas e, encerrando-se com ele, perguntou-lhe logo o que dissera Amadis e que fazia, e se Durim vira Briolanja e a achara tão formosa como era fama. Mas Purim respondeu-lhe, com tristeza: —. Senhora, tudo direi. Mas sabei antes que, crueza como a vossa, nunca no mundo se viu! E, depois de lhe contar os feitos de Amadis, que havia ganhado o rico senhorio da Ilha Firme, e de gabar a formosura de Briolanja — a qual, tirante Oriana, a Sem-Par, era a mais formosa que jamais vira —, contoulhe de como Amadis ficara dorido e triste da cruel sem-razão; de como propusera [84] en|viar resposta àquela mensagem, durante a leitura da qual havia perdido as forças; e como desesperado tinha abalado ou morrido, sem se saber onde parava, se acaso ainda vivia... Quando isto ouviu, Oriana sentiu que a ira quebrava e que, no lugar onde ela ardera, estava agora piedade que a derretia em amor. Vendo-a chorar grossas lágrimas, Durim compadeceu-se e chamou Mabília e a irmã para que confortassem a infanta. Como sucede com corações de mulher, que vão de extrema a extrema sem mais guarte, tudo nela era chorar, arrepender-se e doer-sé, desafogando-se em vozes de aflição: — Ai! coitada sem ventura, que matei o que mais amava! E a morte de meu senhoi mal vingada será com a minha! Foram-na as duas boas donzelas sossegando, e com isto lhe davam prova do mais fino bem-querer, pois ambas haviam por cru o que ela em segredo fizera, sem olhar aos perigos da crueza. E aconselharam-na a que a Amadis enviasse doce recado sem detença — ponto era saber-se onde ele estava! Concertaram que, a seu tempo, Oriana o iria esperar no castelo de Miraflores, para onde Mabília seguiria com ela. E que a Donzela da Dinamarca partiria, acompanhada de Durim, para o reino de Escócia, em demanda do castelo de Gandales, onde Amadis talvez se houvesse recolhido, a buscar consolação. Uma vez, na soledade da Penha Pobre, fez o ermitão sentar a Beltenebros no poial da ermida e perguntou-lhe: — Bom filho, que sonho tivestes quando ao pé da fonte dormíamos e me acordastes com brados? Muitas vezes cismara Beltenebros naquele sonho que Amadis tivera, sem que alcançasse o que ele dizia: se lhe era aviso de novos males ou vinha por esperança de remédio. E, alegrando-se de que o ermitão lhe falasse do sonho, contou-lho sem lhe esquecer nenhum passo, tão certo se lembrava de tudo pelo rebate que lhe dera. E foi dizendo de como naquela câmara negra entrara um raio do Sol, e as donzelas que lhe haviam falado, e o fogo que vira ardente, e o vergel onde fora ter, levando nos braços Oriana... Ia o ermitão ouvindo, com os olhos estendidos àquele grande ermo vivo do mar que tinham diante, e ali era toda a companhia. Respondia o marulho das águas à voz de um e ao silêncio do outro; e, quando Beltenebros acabou de o contar, pediu ao santo homem lho explicasse, ainda que a seu juízo fosse o sonho prenúncio de outras penas. Pensou o ermitão um bocado, como quem soletrava sua leitura naquelas imaginações que, em verdade, ficavam da outra banda da vida. [86] E, ao cabo, disse-lhe, contente: — Beltenebros, bom filho, muito me haveis alegrado; e, se, contra meu costume, vos falo de semelhantes coisas, é porque julgo melhor serviço de Deus o dizer-vos palavra certa que vos ajude a alar-vos desta tristeza, que o deixar-vos correr à morte desesperada. Caiu Beltenebros de joelhos aos pés do ermitão, regando-lhe as mãos de lágrimas e achando que doce lhe era, em dor tão áspera, ter o mimo daquele companheiro. E o santo homem, que muita amizade votava a Beltenebros, continuou, sorrindo: — Bom filho, ainda que as idéias do mundo não devam de andar-me na mente, ora ouvireis como entendo o que diz esse sonho: era a câmara negra o cuidado; as donzelas, amigas vossas que trabalham por vosso bem; aquele raio do Sol, bom mandado que recebereis; e o fogo que cercava a vossa amiga é a pena em que ela vive por vos. Partiram em demanda de Amadis, para o reino de Escócia, a Donzela da Dinamarca e seu irmão Durim. Levavam consigo uma carta, mas, a esta, Oriana fizera-a tão doce quanto a outra era crua. Navegaram com ventos fagueiros e, ao cabo de sete dias, arribaram a Peligez, de onde foram seguindo ao castelo de Gandales. [87] Voltava da caça o bom senhor e, mal soube de onde chegavam, com grande amizade e alegria falou do seu criado Amadis: — Que novas dele me dais, pois tanto me alegram sempre? Por onde logo conheceram, com tristeza, que Amadis ali não fora. A este tempo, Dom Guilan, o Cuidador, que estivera na Ilha Firme, trouxe piedosamente a el-rei Lisuarte as armas de Amadis, que achara ao abandono. Tendo Amadis por morto, choraram-no todos. E Oriana, encerrada em uma câmara, maldizia como doida a sua ventura e quena morrer. Mas a boa Mabília consolava-a e, com palavras que sabia, tão doces, convencia-a de que Amadis não morrera, de que haviam de saber novas dele. Não havia Deus de permitir mal tão grande. O Senhor o teria em sua santa guarda! Ora, um dia aportou à Penha Pobre uma nau em que vinha a condessa Corisanda, acompanhada de suas damas e cavaleiros. Correndo o tempo macio, quiseram desembarcar para folgar uns dias, e ao ermitão pediu a nobre dama aposento para se albergar. Como na cela do santo homem jamais este consentiria que entrasse mulher, ofereceu Beltenebros a sua, para onde Corisanda fez levar a cama em que dormia. E [88] ele entanto ficava ao relento, como muitas vezes costumava. Alegrou-se então com a leda companhia aquela solidão da Penha Pobre. Trazia luzidos cavaleiros e formosas damas a nobre Corisanda, donairosos de suas armas eles, garridas elas de mocidade e lindeza. E, nesses dias em que todos descansavam das fadigas da viagem, espalhavam-se pela praia ou pelas rocas, folgando em jogos, tangendo música. E Beltenebros, olhando na ribeira do mar os cavaleiros e as damas, cismava em tudo o que fora, em tudo o que perdera, e remirava de longe as armas, com saudades! Uma vez, estava ele a remirá-las do adro da capela, onde o ermitão entrara para rezar as vésperas; e, como este deixara encostado ao muro o cajado a que se arrimava, pegou Beltenebros no bordão e floreou-o no ar como uma espada. Ao sair da ermida, viu o monge aquela ação, sem que o houvesse pressentido Beltenebros; e, como do coração desejava que o seu bom filho abalasse daquele deserto, pondo cobro à penitência, sorriu satisfeito e teve por bom agouro que em tais mãos se houvesse feito espada um bordão de pobre velho. À missa, que o ermitão dizia, Corisanda e os seus repararam naquele homem moço, tão triste e choroso, que ajoelhava como penitente aos pés da Virgem Maria. [89] — Quem será — pensavam os cavaleiros — este que desdenha dos gostos do amor e das alegrias da guerra? — Não haveriam sido penas de amor — cismavam as damas — que para aqui o trouxeram? E, uma noite, ouviram que Beltenebros cantava uma canção tão saudosa, que nao mais lhes esqueceu. Passados dias, de novo se embarcaram. E a Penha Pobre ficou mais triste e só. Mas Corisanda navegava com rumo a corte de el-rei Lisuarte. Chegada que foi aí, contou a Mabília, quando conversavam a respeito da viagem, que havia encontrado na Penha Pobre um penitente cuja dor lhe cortara o coraçao. Era moço e tão triste, que muitas vezes lhe vira lágrimas; tinha maneiras corteses; decerto fora formoso; como quem desesperara do mundo, arredava-se de toda a companhia. E, como ainda lhe soava aos ouvidos a voz de Beltenebros, contou que o ouvira cantar uma canção saudosa, que não mais lhe esquecia. Ouvindo falar daquele penitente, deu rebate o fiel coração de Mabília, e, enquanto Corisanda continuava, ia pensando a boa donzela: — E se aquele penitente fosse Amadis, a penar penas tão duras por pecados que não fez? [90] Seguindo o rasto do pensamento que lhe viera, disse Mabília a Corisanda: — Senhora, mal cuidais como me prende o que me dizeis; e, se vos lembrais da canção, muito quisera eu ouvi-la. Vendo quanto a Mabília cativava o que ia contando, adivinhou Corisanda haver ali mágoa de amor de que a infanta de Escócia sabia. E, para satisfazer Mabília, cantou a saudosa canção de Beltenebros. Escutando-a, com o coração a saltar-lhe, conheceu-a Mabília por uma canção de amor que Amadis fizera a Oriana. Então correu à infanta e disse-lhe de um fôlego: — Amadis vive e está na Penha Pobre! E Oriana e Mabília, abraçadas, confundiam as lágrimas, sorrindo. [91] XIV. A senhora da Penha No reino de Escócia, descoroçoados com seu despacho, embarcaram Durim e a boa Donzela da Dinamarca. Da corte de el-rei Languines traziam para Mabília as lembranças da rainha, sua mãe. Traziam também os recados do bom cavaleiro Gandales. Mas o que mais queriam trazer, que eram novas de Amadis, não o traziam eles. Agora ouvireis como o Senhor dispõe graciosamente as coisas, quando tem piedade das suas pobres criaturas. No mar levantou-se uma grande tormenta, e ficou a nau rota, sem aparelho, e já não sabiam caminho nem carreira. Jogados iam ao gosto das vagas, altas como serras de água, e davam-lhes em cima os borbotões do vento. Cuidando já todos que morreriam, faziam promessas a Nossa Senhora e rezavam em coro — Virgem Madre de Deus, rogai por nós! [92] Apertando ao peito a carta de Oriana, a Donzela da Dinamarca chorava e pensava consigo: — Ai, coitada! De que serviu minha amizade a minha senhora, que lá ficou curtindo suas penas, mas esperançada no remédio que eu viria a dar-lhes? Não encontrei Amadis e agora morro, levando comigo a carta que salvaria o melhor cavaleiro do mundo! — Destino cru! — ia pensando Durim, à sua parte. — Foi por minha mão que Amadis recebeu aquela carta que o perdeu. Se lha entreguei sem suspeitar que desespero lhe daria, para que obedeci no mais, não lhe aceitando a resposta? E vou morrer sem poder resgatar esta maldade! O bom Durim recordava aquele dia da Ilha Firme e revia Amadis como este havia ficado após a leitura da carta: sentado nas ervas do chão e muito branco. Assim os dois leais servidores se lastimavam, enquanto a flor do escarcéu fazia peninha da nau. Mas, passados dias, o mar e o vento amainaram e, na torna da manhã, avistaram terra. Então conheceram de bordo a ermida da Penha Pobre. Logo determinaram os mareantes desembarcar, a fim de ouvirem missa e renderem suas graças à Senhora, pela milagrosa salvação que lhes dera. Ordenados em procissão desde a praia, seguiam os marinheiros a cruz que um [93] gru|mete, vestido em uma sobrepeliz, levava alçada; atrás da cruz ia uma folia e uma dança, por festejar o escape da perdição, e no coice da procissão ia o monge da. Penha Pobre, com o Santíssimo Sacramento e os cantores. Desembarcaram também a Donzela e Durim. E, depois que o ermitão disse a missa, encontraramse no adro com Amadis e não o reconheceram, tão dessemelhado e descarnado estava, com cabelos e barba ao desdém. Mas ele, quando os encarou, caiu como morto no chão! É que a surpresa de tal encontro lhe dera no coração com o ímpeto mais grave das lembranças. Achar ali aqueles amigos era de alguma sorte ver Oriana, pois quem ama respira o amor em tudo o que toca ao objeto dele. Vendo o ermitão a Beltenebros por terra, cuidou que para este soara a derradeira hora, e corriam-lhe os prantos pelas cãs: — Senhor poderoso, por que vos não amerceastes de quem por vosso serviço tanto ainda poderia fazer? E pediu aos mareantes que o ajudassem a levar ao catre aquele penitente. Apiedada do que via, perguntou a Donzela ao ermitão quem aquele homem era. Ao que o monge, fiel à promessa que havia feito, apenas respondeu, dorido como estava: [94] — É um cavaleiro que aqui faz penitência... — Se tão áspero lugar buscou, grandes devem de ser seus pecados! — tornou-lhe a mensageira de Oriana. — Mas, pois é um valeiro, deixai-me falar com ele, e das coisas que trago em a nau o poderei remediar. Entrou a Donzela na cela do penitente, e, quando a viu ao pé do seu catre, Amadis tão turbado foi, que não sabia que fizesse: porque, se se lhe desse a conhecer, rompia a vontade de sua senhora cruel, e, se a deixasse partir, com ela se lhe ia a esperança. Entretanto a Donzela falava piedosa ao que ali jazia: — Bom homem, pelo ermitão soube eu que sois cavaleiro, e, como nos cumpre servir quem a nós outras serve em tantos perigos, dizei-me que farei por vossa saúde. Chorando, calava-se Amadis, para que o som da voz lhe não traísse o segredo. Bem lhe estava o coração pedindo desfizesse o engano daquela que a Providência lhe enviava. Porém como se atreveria a nomear-se, se Oriana lhe havia ordenado que lhe não desse novas nem mandados? Suspeitou a Donzela que o penitente estaria morto. Havendo pouca luz na cela, abriu uma fresta para ver melhor. Mas, então, afirmando-se em Beltenebros, conheceu-lhe no rosto o sinal de uma lançada — e caiu de joelhos, soluçando e beijando as mãos de Amadis! [95] XV. No castelo de Miraflores Ao deixar a Penha Pobre, despediu-se Amadis do santo ermitão, beijando aquelas mãos que na má ventura lhe haviam sido amparo. E rogou-lhe com muita amizade que fosse à Ilha Firme, a fim de reformar um convento de monges que em suas terras mandara edificar. Sorria satisfeito o bom velho, pois já sabeis como tinha criado afeição àquele que, por mando da Providência, havia colhido à beirinha do desespero: satisfeito de o ver, enfim, sair desses lugares, onde só alma embebida em pensamentos de Deus poderia achar o cristão contentamento das agruras. Depois, passando na barca, meteu-se Amadis a caminho com a Donzela e Durim. Tão fraco, porém, se sentia, que não pôde ir muito além. E, achando eles um lugar que bom lhes pareceu para cobrar a saúde com o descanso, ali ficou Amadis, servido pela Donzela, enquanto Durim partia a [96] le|var recado a Oriana. Era, em verdade, deleitoso o sítio, com árvores de meiga sombra e claras águas correntes. Ali falavam os dois do muito que sucedera, das dores padecidas, dos cuidados que todos tinham sofrido quando Amadis se sumira. Contava-lhe a boa Donzela de como Galaor, Florestan e Agrajes haviam partido a buscá-lo por longes terras; a dor do fiel Gandalim, que voltara chorando à corte, como doido, e a de Durim, que a custo obedecera à ordem que levava e tanto se lamentara de a haver cumprido. Mas era de Oriana que os dois falavam sem fim. Contava-lhe a Donzela como se ela arrependera logo da sem-razão e crueza e como quisera ter morrido, julgando perdido o seu senhor. Para mais lhe mostrar o arrependimento de Oriana, referia a Donzela a palidez da infanta, mortificada de pena, ralada de remorso, e tendo de esconder quanto sofria, lágrimas e cuidados. E dizia-lhe de como Oriana agora partiria para o castelo de Miraflores, ansiosa do seu perdão, ansiosa do seu amor! Lá no lindo castelo — ia dizendo a Donzela — esperava-o Oriana, que com Mabília aí fora, para a bom recato receber a quem sempre quisera, até quando fora mais crua. Porque, pensando bem, que havia sido tal crueza, senão sinal do amor mais fino? Deitado à sombra gostosa, ouvindo o tom da água que chalreava brincando, ia Amadis relendo a carta de [97] Oria|na, em que a bem-amada lhe pedia perdão e ainda duvidava de que ele lho desse. Beijando as doces palavras, sentindo o que a bem-amada padecera, padecia o Namorado por ela, sem mais lembrar a dor que lhe tinha vindo e a ponto estivera de matá-lo. E, pensando no castelo de Miraflores, pedia a Deus lhe tornasse a saúde, para depressa partir e viver! Com tão quieto descanso e, mais que tudo, com certeza tão deleitosa, cobrara Amadis as forças. Já não podia com mais esperas: o desejo aguçava-lhe a saúde e estavam-lhe os braços pedindo o peso glorioso das armas. A Donzela da Dinamarca, vendo como ele melhorara, disse-lhe adeus até Miraflores. Partiu de ali Amadis e, na primeira vila, por dinheiro que lhe emprestara a boa Donzela, teve armas e um cavalo. E então foi o cavaleiro Beltenebros. Ficava o castelo de Miraflores a duas léguas de Londres e, sendo pequeno, era o mais lindo que havia para uma saborosa morada. Rodeado de vergéis, assentava numa encosta toda coberta de árvores tão boas, que todo o ano davam fruto e flor. Dentro, tinha câmaras de rico lavor e pátios onde as fontes murmuravam. Uma vez que el-rei Lisuarte ali fora caçar e havia levado a rainha e Oriana, esta, [98] ain|da tamanina, tanto se agradou do castelo que el-rei lho deu de presente. E ali viera agora Oriana, sentida das dores que sofrera, trazendo no rosto formoso o sinal descorado das penas. Com a fiel Mabília, sentava-se a infanta num patiozinho ensombrado de frondosas árvores, debaixo das quais uma fonte cantava por bica melodiosa. Aí confessava Oriana o seu temor de lhe não perdoar Amadis a crueza com que fora tratado; e contava-lhe de como o amava mais, depois que tanto o havia feito penar. Sorria Mabília e dizia que, se ela duvidava do perdão do seu amigo, é que ainda lhe não conhecia o maravilhoso amor. E explicava-lhe de como ele mais a amaria, depois que tanto havia penado por ela. Animava-se Oriana com tais doces palavras. E as duas amigas, Oriana ainda magoada, Mabília com jeito brando, passeavam os vergéis de Miraflores, floridos de moitas de rosas e borbulhantes de fontes. Voltava ao rosto de Oriana a cor viçosa, pois já dentro do corpo formoso a fé do amor derramara a graça. E, como cuidavam não tardaria Amadis, combinavam ledas de que modo entraria a furto o cavaleiro que vinha da amorosa penitência: — Esta varanda é alta — dizia Oriana —, e não poderá subir! — Sim, subirá — tornava Mabília, rindo —, porque nós lhe daremos as mãos! [99] Entrementes, e para que todos fossem mais alegres, chegaram ao castelo os amigos fiéis: a Donzela da Dinamarca, Gandalim e Durim. Havia Gandalim chegado depois dos outros e, como o porteiro o viera anunciar àinfanta, logo esta ordenou: — Que entre o bom amigo que tão bom escudeiro é e foi criado conosco, para mais irmão de leite de Amadis, a quem Deus guarde! — Senhora — disse o porteiro —, sim, a quem Deus guarde, pois grande perda seria se tão bom senhor se perdesse. — Não vedes — disse Oriana a Mabília, quando o porteiro saiu — como a Amadis amam todos, até os mais simples como este? E como o não amaria eu? Fechados com segurança no patiozinho da fonte formosa, falavam todos de Amadis, em breve dia esperado, segundo as novas trazidas pela Donzela da Dinamarca. — Gandalim amigo — disse uma vez Orla-na ao escudeiro fiel —, ainda me queres mal pelo mal que eu fiz, sem saber? — Senhora — respondeu Gandalim —, quero-vos grande bem por meu senhor, inda que mal vos quis quando perdido o julguei. E vós, para o receberdes, tomai ora todo o brilho e cor! — Tão feia te pareço? — tornou Oriana, rindo. — Foi por me achar feia, amigo, depois de tanto sofrer, que eu vim a este [100] cas|telo esperar a Amadis, meu senhor, de soi que, vendo-me ele, não possa fugir de mina Uma tarde, penetrando na floresta, foi-se Amadis acostando à parte de Miraflores; e deixando o cavalo pastar, esperava que anoitecesse. Tão perto estava agora da ventura, que as dores passadas lhe semelhavam sonho que tivera. Lembrava como tantas vezes quisera ter morrido e agradecia a Deus qu~ lhe fora tão cortês e benigno senhor. Entretanto a noite caía, e com a sombra vinha o segredo propício ao desejo dos namorados. Quando anoiteceu, Amadis saltou o mu~ ro, caminhou pelo vergel e, vendo Gandalim, chamou-o baixinho. Correu o amigo e foi avisar Oriana, que veio à varanda com as suas fiéis. Então, sustido por Gandalim e Durim, que o tinham posto nos ombros, e ajudado de cima pelas mãos de Oriana, de Mabília e da Donzela, entrou Amadis no castelo — e fi~ cou preso num beijo à boca da bem-amada! [101] XVI. A espada e a guirlanda Amadis, que todos julgavam perdido ou tinham por morto, fizera a el-rei Lisuarte serviços assinalados, combatendo por sua glória. Tamanha fama havia ganho, que já diziam alguns que, a fama de Amadis, Beltenebros a ofuscava. Mas, como não tirara o elmo e ninguém lhe pudera ver o rosto, guardava o nome de Beltenebros. Entretanto, quando a noite descia, entrava em Miraflores. Ora, estando ele aí uma vez junto da bemamada, veio da corte Gandalim com grandes novas. Um velho escudeiro grego, por nome Macandon, mostrara a el-rei Lisuarte maravilhosas coisas, as quais trouxera à corte da Grã Bretanha por ser afamada em gentileza. E, depois que el-rei disse lhe aprazia que à sua corte a buscassem por gentil, mostrara-lhe o escudeiro uma espada como outra jamais fora vista. Encerrava-a uma bainha [102] transparente, cor de esmeralda, e a folha de aço era, até metade, tão limpa como água cristalina, e na outra metade tão ardente e vermelha como de fogo. Depois que esta espada havia mostrado, descobrira o escudeiro uma guirlanda tão maravilhosa como aquela: metade das flores que a entreteciam estavam frescas como se acabassem de abrir, e na outra metade tão murchas que parecia que se iam desfolhar. — Senhor — dissera Macandon —, há sessenta anos ando eu vagamundo, em cata daqueles cujo Perfeito Amor logrará vencer o encanto do que vos mostro. Desses só, de mais ninguém, por mando de altos desígnios, poderei receber as armas e, enfim armado cavaleiro, subir neste cabo da vida ao trono que há tanto me espera. Mas, como a esses não achei, nem nos remos distantes nem nas ilhas do mar, à vossa corte vim para que nela ordeneis uma prova, e, se me prometeis que a ordenais, direi o mais que não disse. Ouvindo tais maravilhosas palavras, arderam todos por saber o mais que Macandon calava. — Senhor — disseram a el-rei os cavaleiros, que olhavam a espada encantada —, ordenai, pois, essa prova, e tentemo-la todos, não sendo contra a lei de Cristo. E as damas, que remiravam curiosas a encantada guirlanda, disseram à rainha: [103] — Senhora, pois que esta guirlanda nos respeita como toucado de flores, ordene el-rei essa prova para que a tentemos também. De boa mente o prometera el-rei Lisuarte. Continuou, então, o velho Macandon: — Senhor, esta espada que vedes, ninguém nunca a tirou da bainha, donde só poderá arrancá-la aquele que à sua bem-amada quiser com Perfeito Amor. E esta guirlanda, quando posta na cabeça daquela que a seu amado quiser com amor igual, então se verá que reverdece e ficará toda em flor. Ouvira Amadis estas novas e quedara-se a pensar nelas. Contara depois Gandalim que, tendo ei-rei já marcado o dia da prova, todos os cavaleiros fariam por desembainhar a espada, do mesmo modo que a guirlanda seria posta em cabeças de donas e donzelas. E, como então estivessem na corte os melhores cavaleiros da Pequena e Grã Bretanha e a rainha Briolanja — que Oriana queria ver mais que a ninguém no mundo! — ali havia chegado, coberta de luto por Amadis, a grande prova respeitava a todos e todos queriam tentá-la. Disse então Amadis à bem-amada: — À prova iremos também! Pasmou Oriana do que ouviu, tão impossível lhe pareceu por perigoso e louco. Respondendo ao espanto que lia nos formosos olhos da sua amiga, beijou-lhe Amadis as mãos e explicou seu pensamento: [104] — Mas ireis rebuçada de guisa que ninguém saiba quem sois. Comigo sereis diante de vosso pai, e faremos a prova da Espada e da Guirlanda! Na véspera da prova na corte enviou Oriana recado a el-rei, dizendo que, por estar doente, naquele dia ficava deitada. E, depois, Mabília e a Donzela da Dinamarca disfarçaram a infanta à maravilha. Tão bem disfarçada ficou, vestida em uma capa mui rica, mas desusada no reitio, e com a cara encoberta com um rebuço, que Amadis, sorrindo, disse quando a viu: — Nunca eu cuidei que tanto folgaria de vos não conhecer! E, antes da alva do dia, saíram de Mira-flores e cavalgaram para a corte em festa. Levava Amadis as mais formosas armas, pusera Oriana as mais formosas jóias, e eram ambos o Perfeito Par: Na sala grande dos paços, e depois d~ ouvida missa, el-rei Lisuarte e ~ rainha Brisena vão presidir à prova. Todos os cavaleiros cercam o trono, e, sorrindo para eles, estão presentes todas as donas e donzelas. Guardadas numa arqueta de jaspe chapeada de ouro, vêem-se a meio da sala a Espada e a Guirlanda. Quando el-rei Lisuarte soube que Beltenebros ali chegava para concorrer à prova, alegrou-se e recebeu-o com honra. [105] E o cavaleiro Beltenebros, que não havia tirado o elmo, foi saudar el-rei, levando pela mão a dama rebuçada... (Ah! senhores, como Oriana tremia!) Dado sinal, a prova começou. Primeiro tentou-a el-rei e, pegando na espada, não a pôde tirar da bainha, Seguiram-se Dom Galaor, que amava Briolanja, e Brunéu de Bonamar, que amava Melícia, e Arban de Norgales, que amava Grindalaia: e não desembainharam a espada. Depois foi Florestan, o outro irmão de Amadis, tão leal e gentil, que amava Corisanda: e a espada não saiu da bainha de esmeralda. Seguiram-se Galvanes Sem-Terra, e Brandoivas, e Grumedan, e Ladasim, que todos tinham amores: e a espada ficou-se na bainha. Logo a provou Guilan, o Cuidador, que amava Brandaía, depois de a haver provado Agrajes, que amava Olinda: e não saiu da bainha aquela espada. E assim foi com Polomir, com Dragonis, com todos que a provaram: pois, se todos, uns mais, outros menos, arrancaram da espada algum tanto, nenhum pôde arrancar a espada toda. Então adiantou-se Beltenebros, levando pela mão a bem-amada: e, pegando na espada, arrancou-a da bainha! Fez-se depois a prova da guirlanda. A rainha, primeiro, pôs na cabeça as flores: e as flores não refloriram. Seguiu-se-lhe [106] Briolanja, formosa no seu luto — e para quem Oriana olhava muito —, e não floriu a guirlanda. Depois foram Estreleta e Brandaía, e foi Aldeva, e foi Olinda, e Grindalaia, e foram todas: e as flores não refloriam. Quando postas naquelas cabeças, mais em umas, noutras menos, refloriam algumas flores, mas nunca toda a guirlanda. Então adiantou-se a Dama de Beltenebros, levada pela mão do seu amado: e, quando a pôs na cabeça, toda a guirlanda floriu! [107] XVII. A canção de Leonoreta Acabada a prova da espada e da guirlanda, foi o velho Macandon armado cavaleiro por Beltenebros, e, bendizendo o Perfeito Par cujo Perfeito Amor lhe havia enfim quebrado o fadário, recebeu as armas das mãos daquela dama rebuçada. Muito festejou a rainha a Dama de Beltenebros, e elrei Lisuarte, para fazer mais honra ao cavaleiro e à bem-amada, saiu a despedi-los, levando à rédea o cavalo daquela em cuja cabeça florescia a guirlanda, assim como na mão de Beltenebros rebrilhava a espada. Voltando a palácio, quis el-rei Lisuarte ofertar aos cavaleiros e às donas e donzelas um mimo gracioso e que a todos deu prazer. Depois que Amadis se havia perdido — e alguns dos que ali estavam bem o tinham buscado por longes terras —, era a primeira vez que se davam mostras de alegria. Chamou el-rei Leonoreta, sua filha ainda menina, e pediu-lhe que viesse cantar e [108] dançar, com seu coro de donzelinhas, aquela canção que Amadis, sendo seu cavaleiro, havia feito por amor dela. Fora o caso que uma vez, estando Amadis a falar com el-rei e a rainha, convenceram Oriana, Mabília e Olinda a Leonoreta a que escolhesse Amadis por seu cavaleiro, para que ele mui bem a servisse, sem olhar para mais nenhuma dama. Riram-se os reis e Amadis; e este, pegando ao colo na infantinha, sentara-a no estrado e dissera-lhe, muito sério: — Pois para cavaleiro me quereis, bem éme deis uma jóia, a fim de me eu ter por vosso. E a infantinha, tirando dos cabelos um alfinete de ouro cravado de pedras preciosas, dera-lho por amoroso penhor. Tendo el-rei Lisuarte contado esta lembrança engraçada, todos sorriram ouvindo-a.t Mas o que el-rei não sabia era que essa canção a fizera Amadis para Oriana e que, enquanto falava a Leonoreta, brincando com ela no estribilho, em verdade dizia como amava a furto a Sem-Par. Entrementes entrou Leonoreta, e seguiam-na doze damizelas. Vinham todas vestidas por igual, de telas ricas, e traziam grinaldas nas cabeças. E Leonoreta e o coro cantaram e dançaram a formosa canção: [109] Senhor genta, min tormenta voss’a mor en guisa tal, que tormenta que eu senta, outra non m’é ben nen mal, mais la vossa m’é mortal. Leonoreta, fin roseta, bela sobre toda fror, fin roseta, non me meta en tal coita vosso amor! Das que vejo non desejo outra senhor se vós non. E desejo tan sobejo mataria un leon, senhor do meu coraçon! Leonoreta, fin roseta, bela sobre toda fror, fin roseta, non me meta en tal coita vosso amor! Mha ventura en loucura me meteu de vus amar. [110] É loucura que me dura, que me non poss’én quitar. Ai fremosura sem par! Leonoreta, fin roseta, bela sobre toda fror, fin roseta, non me meta en tal coita vosso amor! [111] XVII. As sete partidas Depressa foge ao amor a alegria, e deste modo fugiram ligeiros os dias de Miraflores. Conheceu Amadis que não podia encontrar-se aí mais com a adorada, por tão perigoso ser. Então se despediu de sua boa ventura. Doces horas vividas a furto entre os amigos fiéis, no coração dos quais demorava o segredo escondido e amado; doces horas de tanto sabor na câmara de Oriana, ao tomar rijo nos braços a esbelteza do corpo de ouro; doces horas em que ambos passeavam à sombra rescendente dos vergéis: adeus! Dera-se então Amadis a conhecer a el-rei Lisuarte e a todos, e em batalha o fizera, salvando el-rei da perdição em que estava e mantendo-lhe a vida com a vitória. Não mostrara, porém, el-rei Lisuarte tão agradecido coração como devera, fosse que já invejasse glória que tanto brilhava, fosse que a seus ouvidos ousassem segredar [112] bo|cas enredadoras que Amadis lhe cobiçava a coroa. Saudoso de Miraflores, desgostoso da cone, e não, como todos cuidavam, por desejo de andar terras estranhas e ver várias gentes e leis, foi Amadis correr as sete partidas do mundo. — Amiga adorada — dissera ele a Oriana, falando a furto com ela uma última vez —, pois elrei assim o quere, assim me convém fazê-lo e voume para que a glória, que por ti só ganhei, se não perca com minha honra. Amiga, como sou mais teu que meu, não me mandes ficar, inda que eu morra de dizer-te adeus! — Amigo — respondera-lhe Oriana, a quem o coração também se partia —, a mim era, e não a elrei, meu pai, que tu servias. Mas pois da tua honra me falas — até um dia e até sempre! Nesses remos distantes, para onde se fora depois de visitar o seu bom senhor Gandales e a corte de Gaula, praticou Amadis grandes feitos, para glória de Deus e da bem-amada. Um dia, navegando diante de uma ilha que lhe pareceu bem vestida de arvoredo, apeteceu a Amadis desembarcar, por descansar um pouco em sombra mansa. — Senhor — disse-lhe mestre Elisabat, que era o patrão da galera, homem sábio em experiência e conselho —, esta é a Ilha Triste e de nela desembarcar nos guardemos nós. [113] E contou-lhe mestre Elisabat de como ali reinava Madarque, o gigante cruel de cuja ira lhe foi narrando os malefícios, contra a lei de Cristo praticados, e em cujos cárceres penavam cativos que Madarque pusera a ferros. Mas a Amadis respeitava limpar o mundo de traição, de maldade e de erro; e, alcançando terra em um batei onde levava o cavalo, foi subindo um escarpado monte, coroado no cimo por um castelo. Logo de uma torre do alcáçar deu sinal o fero som de uma buzina, cujo clangor foi tangendo o recôncavo das furnas. Não tardou Madarque em descer a terreiro, e viu-o Amadis vestido de aço no possante ginete, trazendo a cabeça coberta com uma capelina coruscante e na mão um venábulo de guerra. — Ora me valha aqui, minha senhora Oriana! — rezou Amadis no íntimo do coração. E mestre Elisabat ouvira, desde a galera ancorada, o estrupido da batalha, que atemorizava os ecos. Enfim, roto dos golpes se abatera por terra o gigante Madarque, e, vencido e repeso, prometera ao vencedot abraçar a lei de Cristo. Então libertara Amadis dos cárceres do castelo os cativos que neles penavam, e agora bendiziam o salvador! Outra vez, indo com rumo a Constantinopla, e depois de uma tormenta que lhes dera, passaram a certa ilha que, por tão despovoada e agreste, entristecia os olhos [114] que a abrangiam. E mestre Elisabat contara que aquela era a Ilha do Diabo, ainda mais temerosa que a Ilha Triste, porque ali havia senhorio, não já criatura com forma humana, mas uma alimária horrenda, em cuja fábrica metera mão o Demônio e a quem o pavor das gentes nomeava por Endriago. Tinha o corpo veloso e escamoso, a modo de rocha felpuda; corria voante como touro alado em asas de morcego, chamejando pela goela peçonha de vapores; e todo o seu prazer era devorar gente, da qual pouca restava naquela ilha. Ouvia Amadis tais temerosas coisas, e, enquanto olhava a ilha renegada, pensava que em combater o próprio poder do Demônio daria grande lustre ao seu amor. — Gandalim amigo — disse Amadis ao escudeiro fiel, quando saiu a combater o monstro —, uma coisa te rogo muito: e é que, se eu aqui morrer, leves à minha senhora Oriana o que eu trago e dela é — o meu coração! Ficara-se Gandalim em lastimoso pranto, porque a grande afeição que a Amadis votava sobrelevava nele ao desejo de ver o seu senhor colher mais glória. E temia ter de cumprir tão doloroso mandado, levando a Oriana a flor dos corações! Fora-se Amadis a desafiar a medonha bestafera no seu fojo de rochas taciturnas, dando vozes com que eia saiu a terreiro mais sanhuda. [115] Como a Endriago assistia o poder do Demônio e como este via que o cavaleiro invocava, antes do nome de Deus, o nome da bem-amada, já festejava raivoso o desbarate do inimigo. Mas o nome de Oriana, junto ao nome de Deus, ainda ali salvara o que o invocava em batalha. E, após o combate, destroçado o monstro, recolhera Gandalim a Amadis meio morto à galera, onde mestre Elisabat, com sutis medicinas, lhe foi curando as feridas e a peçonha. E, por memória do grande feito, se ficou chamando aquela ilha — Ilha de Santa Maria. Depois, em Constantinopla, que era naquele tempo a cabeça da Cristandade, recebera-o o Imperador fazendo-lhe muitas honras — e quanto desejara que em suas terras ficasse demorando o Paladim! Mas tanto se lembrava sempre Amadis da bem-amada, que, vendo entrar a infanta, linda à maravilha, se recordou do tempo em que Oriana era da idade dela e ele o Donzel do Mar — e chegaramlhe as lágrimas aos olhos. Repararam todos naquele pranto represo, admirados de verem lágrimas nos olhos do vencedor de Endriago. Porém todos calaram por cortesia a estranheza. O Imperador, a quem Amadis mais agradava que nenhum outro senhor que até então tivesse conhecido, falou à puridade com mestre Elisabat: [116] — Mestre, por que razão choraria o amo a quem bem servis? — Senhor, como o saberei? Só sei que mais formoso e esforçado cavaleiro não há! — Seria por esconder mágoa de amor? — Senhor, se ele a esconde, bem encerrada a tem, pois só quando dorme suspira, inda que às vezes as cismas o tragam por longe. Mas a princesa, a quem mais que a todos aquelas lágrimas haviam chegado ao coração, perguntou a Amadis, piedosamente, uma vez que junto ao seu estrado não estava por então mais ninguém: — Senhor, por que haveis chorado? Recobrou-se Amadis do enleio em que o deixara a pergunta e, não sabendo mentir nem querendo passar além, disfarçou com alegre semblante: — Foi porque me lembrei de um tempo saboroso! Ao despedir-se Amadis da corte, juntaram-se na sala grande dos paços, que era toda forrada de ouro, com figuras mui ricas de embrechados, os altos senhores do Império, e o Imperador ofertou a Amadis muitas pedras preciosas que provinham dos tesouros dos reis da Judéia. Mas Amadis escusou-se a aceitá-las. A infanta, a quem aquele adeus custava, trouxe duas coroas do mais rico lavor e pedraria: — Dois dons vos peço, senhor — disse a bela princesa —, que a coroa em que [117] alvore|ce este branco rubim a deis à donzela mais linda que conhecerdes e estoutra em que esplende um rubim vermelho à mais formosa dona a oferteis. Então pusera Amadis a coroa do branco rubim na cabeça da infanta de Constantinopla, e a coroa do rubim vermelho guardou-a para Oriana, a Sem-Par. Assim por espaço de três anos andou Amadis de terra em terra e de glória em glória, em Alemanha, em Romania, em Grécia, protegendo os fracos, abatendo os soberbos, reparando agravos, emendando erros, aprendendo as linguagens dos povos, conhecendo peregrinos costumes. Às vezes, quando mais lhe pesava o lembrarse, fugia aos louvores — pois nunca lhe agradava que o louvassem — e ao saudar de príncipes e senhores, e buscava solidão de floresta, para aí, a sós com o seu coração, sozinho com Gandalim, pensar em Miraflores. Como é sina e magia de saudosos irem ante si figurando o que adoram, assim via Amadis os olhos de Qriana, a boca de Oriana, suas mãos, seus cabelos, seus pés mimosos nos chapins pontiagudos, todo o seu corpo de ouro, que ele tivera. E, como o que via estava animado daquela luz de dentro que é a alma, via também a alma de Oriana, tão finamente trajada no vestido do seu corpo e formosa como ele. [118] Quantas vezes, no albergue dos castelos ou na riqueza das cortes, sentira Amadis que o buscavam o sorriso de muitas bocas formosas e a luz de muitos olhos lindos! Mas, se os olhava, nem bem os via, pois tão cerrado guardava o segredo do seu amor, como mantinha fiéis corpo e alma à bem-amada. E, sem nunca ter novas de Oriana, teve-a sempre presente na sua alma, porque sempre houve nela — a Saudade. [119] XIX. Imperatriz de Roma Mas não fora esquecida Oriana em Roma, e o novo Imperador que aí reinava mandou a el-rei Lisuarte uma poderosa embaixada, a pedir-lhe a mão desta infanta, sua filha. Assim, desde que partira da corte da Grã Bretanha, não havia esquecido aquele príncipe a formosa Sem-Par, cuja arredia esquivança lhe não dera algum azo a determinar-se de tal modo. Logo que subiu ao trono, o seu primeiro cuidado foi pedi-la, fiado na boa menção que el-rei fizera às palavras da sua despedida e, mais que tudo, fiado na soberba de crer que nenhuma princesa da Cristandade recusaria sentar-se à sua ilharga, no sólio daquele Império. Arribaram à Grã Bretanha as naves romanas, aparelhadas com grande riqueza, e delas desembarcaram grandes senhores. Agasalhou el-rei Lisuarte com muita honra os nobres embaixadores, entre os quais [120] mandara o Imperador a rainha Sardamira de Sardenha — a fim de acompanhar a Imperatriz a Roma —, o príncipe Salustanquídio, senhor de Calábria, Brondajel de Roca e o bispo de Tulância. E, quando eles lhe pediram para o Imperador de Roma a mão da infanta Qriana, ficou el-rei Lisuarte de dar a resposta ao cabo de um mês. Mas logo teve el-rei por graciosa fortuna que o Imperador mais poderoso da Terra lhe mandasse pedir uma filha. E, antes que ouvisse conselho, prometeu a si mesmo que a daria. Quando Oriana soube que os romanos vinham com tal recado e sua mãe lhe disse que el-rei se inclinava a dar-lhes favorável despacho, ficou tolhida de espanto e dor! Jamais lhe havia lembrado que sucesso semelhante se poderia armar, para vir pôr em tanto risco a fidelidade do seu juramento. Não sabia a fiel Mabília defender agora Oriana contra perigo que era maior por tão traiçoeiro ser. Apartadas de todos na câmara da infanta, desafogavam-se em palavras, já de furor, logo descoroçoadas, do que ambas iam sofrendo, cada uma de seu mal, que ao mesmo ia dar. E lembravam com sanha e desdém o príncipe néscio e inchado, que em má hora tinha vindo à corte da Grã Bretanha. — Ai! — gemia Qriana. — Por que se foi Amadis e me deixou sozinha, ele, o lume das coitadas? [121] Não podendo mais calar a angústia que a trespassava e esperançada em que atalharia o mal acudindo-lhe com remédio, foi Oriana ter com seu pai, ajoelhou-se-lhe aos pés e disse-lhe, chorando: — Havei piedade desta filha! Levantou-a el-rei a ponto que Oriana lhe ia beijar os pés: — Filha, a tudo que disserdes ouvirei com amor de pai. — Meu pai e senhor, se é vossa vontade mandar-me ao Imperador de Roma, apartando-me de vós, de minha mãe e da terra onde nasci, sabei que tal vontade se não poderá cumprir, porque antes morrerei ou me darei a morte! Isto dizendo, ficara Oriana aos pés do pai, aguardando, chorosa, o requerido conforto. Porém el-rei não tomou tão grave dor por sentimento assim fundo como era. Tornou-lhe que forte loucura seria não subir ao trono mais poderoso da Terra, não fruir as grandezas do Império, desdenhar de seu senhorio e enjeitar reis e rainhas por vassalos. Em ela chegando a Roma, logo aprovaria o que el-rei desejava para bem de sua filha, a quem muito queria, e para bem da sua coroa, a que muito lustre dava. Junto de sua mãe recebia Oriana piedade e carinho. Mas que podia a rainha senão acompanhá-la na dor? [122] E, porque el-rei cuidou que a seus fins convinha, mandou Oriana para o castelo de Miraflores, onde a rainha Sardam ira a foi acompanhar. No castelo das lembranças caras, mais padeceu Oriana a grande pena em que se via. Tudo ali lhe espertava a memória dos dias encantados, tudo, desde o mavioso chalreio das fontes até ao aceno das árvores que aos dois haviam coberto. Em tudo lia Oriana os sinais do seu amor, surgia de cada canto o vulto de Amadis, a todo o sítio o marcava lembrança de afago ou beijo. E, à noite, sozinha em sua câmara, via a seu lado no leito o lugar do seu amado. Falava-lhe a rainha Sardamira das grandezas de Roma e do senhorio imperial. Com palavras copiosas, e sem suspeitar que afligia aquela a quem as estava dizendo, encarecia a soberba da cidade, contava a riqueza da corte. Mas, enquanto a rainha falava, ia Oriana cismando em seu amigo, que saudoso andava por longes terras; pensava na fidelidade de Amadis, no que havia por ela penado — e sentia no corpo formoso derreter-se-lhe a alma por ele. Louvava-lhe a rainha Sardamira o belo amor do Imperador, que tanto lhe queria desde que a vira na corte, nunca a pudera esquecer e dela fazia a senhora mais poderosa do mundo, soberana dos príncipes da Cristandade [123] Mas Oriana, olhando o vergel, lembrava-se da noite em que Amadis havia entrado no castelo — e tinha ficado preso à sua boca! Quis el-rei Lisuarte ouvir os homens-bons e a palácio os chamou, com o conde Argamon, seu tio, a fim de receber juízos avisados. Era o velho conde senhor de mente arguta e tinha muito mundo. Ainda que se achava doente de gota, não quisera faltar ao chamamento; e, sabedor do que a todos constava, vendo os modos de el-rei, logo o teve por já determinado e por pouco inclinado a escutar razões. Como havia conhecido muitas cortes e servido a bastos senhores, bem sabia que aos reis não apraz que os atalhem nos intentos, até por serem de humana condição. Mas o conde Argamon vinha seguro de sua causa e, depois, já por tão velho ser, desapegado das coisas do mundo, não se lhe dava dizer aos mais o que tinha por direita verdade. Juntos que foram nos paços, falou el-rei Lisuarte aos homens-bons. Disse-lhes que havia aquele casamento por coisa louvável e da qual poderiam todos ter aprazimento; que o Imperador, escolhendo Oriana entre as princesas da Cristandade, dera mostras de honrar a coroa da Grã Bretanha, aliando o esplendor do Império ao da Cavalaria deste reino; e que esperava, em seu coração de rei [124] e de pai, que a infanta, sua filha, fosse ditosa em Roma, alçada ao trono por Imperatriz. Ouvira o velho conde as razões de el-rei e fora-o olhando com finos olhos em cuja chama, que a idade tinha amortecido, brilhava ainda a luz das mentes claras. Quando el-rei acabou, começou ele: — Sobrinho e senhor, custoso é dar conselho em casos tais, pois, se por vossa vontade formos, a nós mesmos podemos enganar, e, se contra ela nos pusermos, vos agastar-vos-eis. E foi advertindo que semelhante casamento não era de razão se o não desejava Oriana, e que ele suspeitava que a infanta se não sentia leda de se alçar por Imperatriz; que por esse casamento perderia o reino de que era herdeira e de direito lhe pertencia, de sorte que, mandando-a ao Imperador, el-rei Lisuarte a deserdava e dava a coroa a Leonoreta; que também tal casamento viria a pôr o reino em perigo, pois o Imperador, por morte de sua mulher, acaso se julgaria com direitos a esta coroa, acontecendo que os teria deveras; e que, sendo o Imperador poderoso como era, sem grande trabalho o reino viria tomar. Todas estas avisadas coisas as dissera o conde Argamon por amor da verdade e também porque sabia que Oriana padecia e chorava de casar, e o discreto senhor sentia pela formosa infanta um afeto que se revia em sua beleza dela. [125] Doeu-se el-rei Lisuarte com o arrazoado do seu velho tio. Retrucou que a mocidade, pelo ser, não sabe o que mais convém ao bem próprio e que a muita crescença dos anos, com escurecer o mundo, levanta perigos onde se eles não acham. E, assim como não atendera aos homens-bons, por cujas bocas tinha falado o conde, não atendia elrei Lisuarte a sua mulher, a rainha Brisena, que chorava de saber que Oriana partia e contra vontade casava. O conde Argamon, com quem el-rei se mostrava agastado, retirou-se para as suas terras. Já nos corações dos mais leais cavaleiros lavrava a tristeza de tal noivado. E Dom Galaor, que, além de ser dos mais leais, suspeitava que Amadis e Oriana se amavam, falou por todos a el-rei. — Senhor, amanhã, se Deus quiser, sairemos deste reino, que em vossa corte nos não apraz mais servir. Perguntou el-rei Lisuarte a razão por que o queriam deixar. — Senhor, porque a vossa filha fazeis o que não devíeis fazer à mais miseranda mulher. E Galaor, Florestan, Agrajes, e com eles todos os leais, deixaram a corte de el-rei Lisuarte e passaram-se à Ilha Firme. Ao cabo do prazo marcado, chamou el-rei a Brondajel de Roca e deu-lhe a sua resposta: [126] — Amigo, sabei que este casamento não édo agrado de alguns, que, por muito estimarem minha filha, a custo a vêem partir. Mas, pois eu julgo que a faço feliz, muito me apraz a mim; e, em ela chegando a Roma, logo me aprovará. Aparelhai, pois, vossas naus, para levardes a Imperatriz ao Imperador. Então, no a perto de tão duro transe, e por conselho da fiel Mabília, mandou Oriana por Durim à Ilha Firme o seu recado de dor, pedindo aos cavaleiros de Amadis que lhe acudissem na aflição. E, enquanto se aparelham as naves da embaixada, que já balouçam no porto ansiosas da partida, roga Oriana a Deus lhe traga o seu amigo a tempo de a salvar! [127] XX. A Ilha Firme Quando Amadis entrou no mar Oceano, palpitou-lhe com ânsia o coração! Vindo de tão longe, e de tão variadas terras, lembrava que, entrando a navegar naquelas águas, voltava aos caros lugares onde ficara Oriana. E mais viva se lhe acendia no coração a saudade da bem-amada. Agora que a idade verde fugira, fazendo amor mais pensado, apetecia Amadis a bênção da Igreja, que, diante de Deus e dos homens, juntaria o seu coração ao de Oriana, senhora da Ilha Firme — a qual, por alta proeza, ele havia ganho — e futura rainha de Gaula. Cuidava que, não por merecimentos próprios, senão porque lho permitira a divina bondade, havia merecido Oriana desde aquela manhã de abril em flor em que tinha abalado, a caminho de aventuras, tão pobre que nem nome tinha, levando a alma tão cheia de amor tal a sentia agora. [128] Assim vinha Amadis imaginando, enquanto a nau singrava ligeira, e ele olhava, entrevendo-as a distância, as costas dos reinos e as areias das praias. Nas horas de folgança, com o vento a acompanhar nas enxárcias as vozes, os marinheiros cantavam: Lá no meio desse mar ouvi cantar, escuitei: saiu-me a senhora sereia lá no palácio de el-rei. Ouvindo-os cantar, acudiam-lhe as lembranças e as saudades cresciam. Lembrava-se dos amigos fiéis cujo amparo tivera em horas de tanta dor: da sua doce prima Mabília, de tão fina amizade, es-pena sempre em bem-querer; da donzela da Dinamarca, a qual, pela mão de Nossa Senhora, o tinha ido buscar à penitência; do certo amigo Durim. Como em névoa de sonho, revia a soledade da Penha Pobre, em cujos rigores se havia apurado; recordava o ermitão que lhe fora abrigo e santo companheiro. E, por cima das ondas, mandava um pensamento de terna afeição ao seu querido senhor Gandales. Um dia, encontraram uma fusta e chegaram à fala com uns mercadores da Grã Bretanha, que partiam para traficar em outras terras. Como lhes pedissem novas do reino, e sendo a maior delas o casamento de [129] Oria|na,contaram os mercadores o despacho que el-rei Lisuarte dera à embaixada, contra a vontade de muitos e, ao que eles tinham ouvido, contra a vontade da infanta. Por todo o reino ia azáfama festiva. Houvera belos torneios para celebrar os esponsais. E os soberbos romanos aparelhavam as naus para levar a Imperatriz... Ouvindo Amadis que a Oriana já a tratavam por Imperatriz de Roma, ficou um tempo sem acordo nos braços de Gandalim. Ao ver desfalecido o mais forte cavaleiro, a quem apenas derribava o cuidado da bem-amada, considerava o escudeiro, com pranto enternecido, o maravilhoso amor de seu senhor e amigo. — Este que vai aqui desacordado — pensava Gandalim — aquele é que venceu Dardan, o Soberbo, desbaratou Abies de Irlanda, converteu o gigante Madarque, matou o demoníaco Endriago! Tornando em si, sentiu Amadis crescerlhe. a sanha contra el-rei Lisuarte e mais se doeu de ele tão ingrato haver sido à leal companhia de armas que o servira, dando ouvidos a vozes de traição, nascidas só da inveja. Recordou que a el-rei tinha prestado serviços tão grandes, que destes proviera nova honra e glória à Grã Bretanha, e que o próprio rei lhe devia a vida, que lhe ele salvara em arriscado perigo. Porém, mais pungente que todas, uma idéia lhe atravessava a mente: Oriana! [130] Oria|na a padecer na pura fidelidade do seu coração, forçada a dar-se por noiva, calando o amor que lhe tinha, decerto apetecendo a morte! E da sua alma, que a angústia agora toda revolvia, ergueu-se prece fervorosíssima: que o vento lhe inchasse as velas, para a tempo chegar! O mar era chão, sopravam os ventos fagueiros e, ao cabo de alguns dias, gritou um gajeiro que subira ao tope real: — Alvíssaras, alvíssaras! Já vejo a Ilha Firme!... Receberam os da Ilha Firme com grande glória a seu senhor, aclamando quem tão desejado e amado era. E, depois de ter agradecido a Deus o haver-lhe permitido que a tempo viesse, juntou Amadis seus irmãos e pares e cavaleiros e assim lhes falou: — Bons senhores e amigos, depois que de vós me apartei, muitas terras estranhas andei e muitas aventuras corri. Passei grandes perigos e trabalhos, dos quais saí com a ajuda de Deus. Porém, aqueles em que o meu coração mais folgou, eu os passei levando socorro a donas e donzelas a quem agravo e sem-razão se faziam, e a que elas respondiam com lágrimas e suspiros, que são as armas das mulheres. Ora, sabeis que sem-razão e agravo faz el-rei Lisuarte à sua filha Oriana, deserdando-a do reino da Grã Bretanha e mandando-a, contra seu mesmo querer, ao [131] Imperador de Roma. Se el-rei Lisuarte comete esta crueza contra Deus e contra seus naturais, digo-vos que a nós compete remediá-la. Agora diga cada um seu parecer, que o meu, amigos, já vo-lo dei! Ouviram com grande louvor todos os leais as palavras de Amadis: acendia-se-lhes nos olhos a chama do valor que brada — avante! — e ansiavam em cada bainha as espadas por verem a luz. Pediram os cavaleiros a Agrajes que, em nome de todos, respondesse: — Bom senhor e primo, sabei que, ainda que com a vossa presença se nos dobrassem as forças, até sem vós, que por apartado tínhamos, determinados éramos ao remédio! E Agrajes, assim falando, por seu próprio coração também falava, porque o príncipe Salustanquídio, senhor de Calábria, movera el-rei Lisuarte a que mandasse Olinda para Roma, a fim de casar com ela. Quando chegou o dia aprazado e aborrecido, desceu Oriana à praia, entre o grande cortejo que a levava. Ordenara el-rei Lisuarte que naquela despedida concorresse grande brilho, já por honrar ledamente a noiva, já porque às grandezas do Imperador queria ele responder com as próprias. Vestia Oriana panos de ouro, bordados de pedraria e pérolas, e assentava-lhe nos formosos cabelos uma coroa que cintilava. Alegravam a marcha do cortejo as cores [132] de|senroladas dos pendões, e o clangor das trombetas varava o ar, do burgo à praia. As damas, montadas em finos palafréns, iam levadas à rédea pelos pajens; revestiam os cavaleiros as suas armas mais ricas, e toda esta companhia luzia de esplendor. Ia a infanta a par de el-rei e montava um soberbo palafrém ricamente ajaezado, com freio, peitoral e estribo de ouro a martelo, cravejado de pedras finas, presente de seu pai, e em que devia fazer a sua entrada em Roma. E já a aguardavam os nobres embaixadores, ora mais orgulhosos com o despacho. Mostrava el-rei Lisuarte bom semblante, posto que em seu coração pesava nuvem grossa: não estava ali a flor dos seus cavaleiros, e havia muitos olhos rasos de água. Doía uma pena escondida nos corações dos homens-bons, e a arraia-miúda murmurava de ver partir a infanta. — Contra vontade vai ela — pensavam as mulheres do povo, a quem a vista de Oriana movia a doce piedade —, e que lhe faz a riqueza, à Bela mal mandada? — Também se nos vai com ela a segurança do reino — pensavam outros, a quem a formosura da infanta tocava o coração — e em má hora vieram os romanos para levar-nos quem nos pertencia! Com Oriana quisera ir Mabília, a sempre doce e fiel; a Donzela da Dinamarca não deixara também a pobre de sua senhora; e Olinda, toda chorosa, embarcava com elas. [133] Abraçou-se Oriana em sua mãe, ambas confundindo as lágrimas: — Filha, eu me fio em Deus de que isto que te manda el-rei é por teu bem! Receberam enfim os embaixadores a formosa Sem-Par. E, dando ao vento as velas, alongam-se as naus da vista — e todos os olhos as seguem, e os corações todos choram! Já as proas romanas fendem as ondas, e navegam soberbas as naves. Dispostas vão de maneira que, no meio delas, guardam a mais soberba, em cujo tope se desfralda a insígnia do Imperador. Fechada a cadeado em uma câmara rica, nessa vai Oriana a caminho de Roma. Mas à frente da frota roubadora surge outra que o amor comanda e guia. — Gaula, Gaula! Aqui vai Amadis!... Rompe fera a batalha entre as naus abordadas. Combatem pelos da Ilha Firme os nobres aliados, e Briolanja mandou os seus melhores cavaleiros. Ao cabo de brava peleja, rendem-se as naves romanas. Então sobe Amadis àquela em cujo tope flutua a insígnia imperial e onde Oriana, dando graças a Deus, posta em joelhos, tinha ouvido, sorrindo, a voz do seu amado! E Amadis liberta e leva para a Ilha Firme — Oriana, Oriana, a Sem-Par!... TEATRO DE GIL VICENTE VICENTE, Gil. OBRAS-PRIMAS do teatro vicentino; ed. organizada, prefaciada e comentada pelo Segismundo Spina. 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1983. 329p. 51 - AUTO DA BARCA DO INFERNO [107] Diabo. Comp. Diabo. À barca, à barca, hou-lá! que temos gentil maré! — Ora venha a caro29 a ré! Feito, feito! Bem está! 5 30 Vai tu muitieramá , e atesa [estica] aquele palanco [corda] e despeja aquele banco, para a gente que virá. À barca, à barca, uuh! Asinha [depressa], que se quer ir! Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! 10 — Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esse leito! [108] Comp. Diabo. Comp. Diabo. Em bonora! Feito, feito! 15 Abaixa aramá [em má hora] esse cu! Faze aquela poja lesta e alija aquela driça31. Oh caça! Oh! iça! Iça! Oh, que caravela esta! 20 Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique! — Ó preciso dom Anrique, cá vindes vós?... Que cousa é esta?... Fidal. Diabo. Parece-me isso cortiço... Porque a vedes lá de fora. Fidal. Diabo. Fidal. Diabo. Fidal. Porém, a que terra passais? Para o inferno, senhor. Terra é bem sem-sabor. Quê?... E também cá zombais? E passageiros achais para tal habitação? Vejo-vos eu em feição para ir ao nosso cais... Diabo. 35 40 Fidal. Diabo Fidal. Parece-te a ti assi!... Em que esperas ter guarida? Que deixo na outra vida quem reze sempre por mi. Diabo. Quem reze sempre por ti?!.. 45 Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi!... E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer por que rezam lá por ti?!... [109] Embarca — ou embarcai... 50 que haveis de ir à derradeira [afinal]! Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai. Fidal. Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?! Diabo. Vai ou vem! Embarcai prestes! 55 Segundo lá escolhestes, assi cá vos contentai. Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz: Fidal. Diabo. Fidal. Diabo. 29 Esta barca onde vai ora, que assi‟stá apercebida? Vai para a ilha perdida [inferno], e há-de partir logo ess‟ora. Para lá vai a senhora? Senhor, a vosso serviço. 25 Fidal. Diabo. 30 a caro: expressão enigmática. Seria o mesmo que a carom, termo náutico, com o valor de em frente? 30 muitieramá: em hora muito má. 31 poja: corda que serve para virar a vela; driça: corda para levantar a vela. Fidal. Diabo. Fidal. Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio. Não há aqui outro navio? Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me destes logo sinal. Que sinal foi esse tal? Do que vós vos contentastes. A estoutra barca me vou. — Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Hou-lá! Hou!... — Por Deus, aviado estou! 60 65 70 Quanto a isto é já pior. Que gericocins, salvanor! Cuidam cá que são eu grou? Diabo. Anjo. Fidal. Anjo. Fidal. Anjo. Fidal. Anjo. Fidal. Que quereis? Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais. Esta é; que demandais? Que me deixeis embarcar. sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais. Não se embarca tirania neste batel divinal. Não sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria... Pra vossa fantasia mui estreita é esta barca. Para senhor de tal marca não há aqui mais cortesia? 75 Fidal. 80 85 Diabo. Fidal. Diabo. Fidal. Diabo. Anjo. Venha a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira! Não vindes vós de maneira para entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo [cauda] caberá e todo vosso senhorio. Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, cuidando na tirania do pobre povo queixoso; e porque, de generoso, desprezastes os pequenos, achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso. Diabo. (cant.): Fidal. À barca, à barca, senhores! Oh! que maré tão de prata! Um ventozinho que mata e valentes remadores! Vós me veniredes a la mano; a la mano me veniredes, e vos veredes peixes nas redes. Ao Inferno, todavia! Inferno há aí para mi?! Ó triste! Enquanto vivi não cuidei que o aí havia: Tive que era fantasia! Folgava ser adorado, confiei em meu estado e não vi que me perdia. 90 Fidal. Diabo. Venha essa prancha e veremos esta barca de tristura. Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos... Tomareis um par de remos, 130 veremos como remais; e, chegando ao nosso cais, todos bem vos desembarcaremos. Mas esperai-me aqui: tornarei à outra vida, ver minha dama querida que se quer matar por mi. Que se quer matar por ti?!... Isto bem certo o sei eu. Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi!... Era tanto seu querer [amor] que me escrevia mil dias? Quantas mentiras que lias, e tu... morto de prazer!... Para que é escarnecer, que não havia mal nem bem? Assim vivas tu, amém, como te tinha querer! 135 140 145 95 Fidal. Diabo. Fidal. 100 Diabo. 105 110 [112] Fidal. Diabo. Fidal. Diabo. Fidal. Diabo. 115 Fidal. 120 Isto quanto ao que eu conheço... 150 Pois, estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos preço. Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher. 155 E ela, por não te ver, despenhar-se-á dum cabeço [cume]! Quanto ela hoje rezou, entre seus gritos e gritas, foi dar graças infinitas a quem na desassombrou. 160 Quanto a ela, bem chorou! Não há aí choro de alegria?! E as lástimas que dizia? Sua mãe lhas ensinou... 165 Entrai, meu senhor, entrai! — Venha a prancha! — Ponde o pé! Entremos, pois que assim é... Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai; 170 Em tanto virá mais gente. Ó barca, como és ardente! Maldito quem em ti vai! Diz o Diabo.. ao Moço da cadeira: Anjo. Diabo. Não entras cá! Vai-te daí, que a cadeira é cá sobeja. Cousa que esteve na igreja não se há-de embarcar aqui. Cá lha darão de marfi, marchetada de dolores, com tais modos de lavores, que estará fora de si... — À barca, à barca, boa gente, que queremos dar à vela! Chegar a ela! Chegar a ela! Muitos e de boa mente! Oh! que barca tão valente! 175 Onz. Anjo. 180 Onz. Anjo. Onz. Diabo. 185 Onz. Diabo. [113] Onz. Diabo. Onz. Diabo. Onz. Diabo. Onz. Diabo. Onz. Diabo. Onz. Hou-lá! Hou Demo barqueiro! 230 Sabeis vós no que me fundo? Quero lá tornar ao mundo e trazê-lo meu dinheiro; que aqueloutro marinheiro, porque me vê vir sem nada, 235 dá-me tanta borregada [pancada] como arrais lá do Barreiro. Diabo. Entra, entra e remarás! Não percamos mais maré! Todavia... Per força é! Que te pês [custe], cá entrarás! Irás servir Satanás, pois que sempre te ajudou. Oh! Triste, quem me cegou? Cal‟te, que cá chorarás. 195 Onz. Diabo. E para onde é a viagem? Para onde tu hás-de ir; estamos para partir, não cures de mais linguagem. Mas pra onde é a passagem? Pera a infernal comarca. Disse, não vou em tal barca. Estoutra tem avantagem. 200 Hou da barca! Hou-lá! Hou! Haveis logo de partir? E onde queres tu ir? Eu pra o Paraíso vou. Onz. Diabo. 240 245 Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete: 205 Onz. Fidal. Diabo. 210 Santa Joana de Valdês! Cá é vossa senhoria? Dá ao demo a cortesia! Ouvis? Falai vós cortês! Vós, fidalgo, cuidarês que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada c‟um um remo que arreneguês! 250 Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno: Vai-se à barca do Anjo., e diz: Anjo. Onz. Onz. 190 Nem tão só para o barqueiro não me deixaram nem tanto. Ora entrai, entrai aqui! Não hei eu i de embarcar! Oh! que gentil recear, e que cousas para mi!... Inda agora faleci, deixa-me buscar batel! Pesar de João Pimentel! Porque não irás aqui? 225 Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz: Para onde caminhais? Oh! que má-hora venhais, onzeneiro, meu parente! Como tardastes vós tanto? Mais quisera eu lá tardar. Na safra do apanhar me deu saturno quebranto. Ora mui muito me espanto não vos livrar o dinheiro!... Por que? Porque esse bolsão tomará todo o navio. Juro a Deus que vai vazio! Não já no teu coração. Lá me ficam de roldão vinte e seis milhões nũa arca. Pois que onzena tanto abarca não lhe deis embarcação. 220 [114] Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo: Onzen. Diabo. Pois quanto eu bem fora estou de te levar para lá. Essoutra te levará. Vai para quem te enganou! Parvo. Diabo. Parvo. 215 Diabo. Parvo. Hou daquela! Quem é? Eu sô. É esta a naviarra nossa? De quem? Dos tolos. 255 [115] Diabo. Parvo. Diabo. Parvo. Diabo. Parvo. Diabo. Parvo. Diabo. Parvo. Diabo. Parvo. Diabo. Parvo. Vossa, entrai. De pulo ou de vôo? Oh! Pesar de meu avô! Soma [em suma]: vim a adoecer e fui má-hora morrer; 260 e nela, pera mim só. De que morreste? De quê? Samicas [talvez] de caganeira. De quê? De caga merdeira! Má rabugem que te dê! 265 Entra! Põe aqui o pé! Hou-lá! Não tombe o zambuco [batel]! Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré! Parvo. Anjo. Parvo. Anjo. Parvo. Anjo. Aguardai, aguardai, hou-lá! E onde havemos nós de ir ter? Ao porto de Lucifer. Hã? Ao inferno, entra cá. Ao inferno, ieramá?! Hiu! Hiu! Barca do cornudo, Pêro Vinagre, beiçudo, rachador de Alverca, huhá! Sapat. Diabo. 270 Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha! De pica naquela! Hiu! Hiu! Caga na vela, ó dom Cabeça-de-grulha! Perna de cigarra velha, caganita de coelha, pelourinho da Pampulha! rabo de forno de telha! Chega o Parvo ao batel do Anjo. e diz: 305 310 Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal e diz: Sapat. [117] 275 Diabo. Sapat. Sapateiro da Candosa! Entrecosto de carrapato! Hiu! Hiu! Caga no sapato, 280 filho da grande aleivosa! Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo chantado [pregado] no guardanapo! Neto de cagarrinhosa! 285 Furta cebolas! Hiu! Hiu! ‟xcomungado nas igrejas! [116] Burrela, cornudo sejas! Toma o pão que te caiu! a mulher que te fugiu 290 para a Ilha da Madeira! Ratinho da Giesteira, o demo que te pariu! Hou da barca! Tu que queres? Queres-me passar além? Quem és tu? Não sou ninguém. Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres por malícia não erraste. Tua simpleza te baste para gozar dos prazeres. Espera entanto por aí: veremos se vem alguém, merecedor de tal bem, que deva de entrar aqui. Diabo. Sapat. Diabo. Sapat. Diabo. Sapat. 295 Diabo. Sapat. 300 Diabo. Sapat. Hou da barca! Quem vem aí? — Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado? Mandaram-me vir assi... E para onde é a viagem? Para a terra dos danados. E os que morrem confessados onde têm sua passagem? Não cures de mais linguagem, que esta é a tua barca, esta! Renegaria eu da festa e da barca e da barcagem! Como poderá isso ser, confessado e comungado?! Tu morreste excomungado: Não no quiseste dizer. Esperavas de viver, calaste dez mil enganos, tu roubaste bem trinta anos o povo com teu mester. Embarca, eramá para ti, que há já muito que te espero! Digo-te que re-não quero! Digo que si, re-si! Quantas missas eu ouvi, não me hão elas de prestar? Ouvir missa, então roubar — é caminho para aqui. 315 320 325 330 335 340 E as ofertas que darão? E as horas dos finados? E os dinheiros mal levados — 345 que foi da satisfação? Oh! Não praza ao cordovão [couro], nem à puta da badana [couro mole], se é esta boa traquitana [trapalhada?] em que se vê João Antão! 350 Ora juro a Deus que é graça! Vai-se à barca do Anjo e diz: Anjo. Sapat. Anjo. Sapat. Anjo. Sapat. Anjo. Frade. Diabo. Frade. Hou da santa caravela, podereis levar-me nela? A cárrega [carga] te embaraça. Não há mercê que me Deus faça? 355 Isto onde quer irá. Essa barca que lá está Leva quem rouba de praça. Ó almas embaraçadas! Ora eu me maravilho 360 haverdes por grão peguilho [estorvo] quatro forminhas cagadas que podem bem ir chentadas [metidas] num cantinho desse leito! Se tu viveras direito, 365 elas foram cá escusadas. Diabo. Assim que determinais que vá cozer ao inferno? Escrito estás no caderno das ementas infernais. Frade. Diabo. Frade. Frade. Diabo. 370 Pois, diabos, que aguardais? Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo! Para que é aguardar mais? Vem um Frade com ũa Moça pela mão e um broquel e a espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa começou de dançar, dizendo: Frade. Diabo. Frade. Diabo. Frade. Diabo. Frade. Diabo. Frade. [119] Diabo. Frade. Diabo. Tai-rai-rai-ra-rã; taririrã; 375 tarai-rai-rai-rã; tairirirã: tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhã! Que é isso, padre?! Que vai lá? Deo gratias! Sou cortesão. Sabeis também o tordião [dança]? 380 É mal que me esquecerá. Essa dama há-de entrar cá Não sei onde embarcarei. Ela é vossa? Não sei; 385 por minha a trago eu cá. E vos punham lá grosa [censura] nesse convento sagrado? Assim fui bem açoitado. Que coisa tão preciosa! 390 Juro a Deus que não te entendo! E este hábito no me val‟? Gentil padre mundanal, a Belzebu vos encomendo! Corpo de Deus consagrado! Pela fé de Jesus Cristo, que eu não posso entender isto! Eu hei-de ser condenado?!... Um padre tão namorado e tanto dado à virtude? Assim Deus me dê saúde, que estou maravilhado! Torna-se à barca dos danados e diz o Sapateiro: Sapat. Entrai, padre reverendo. Para onde levais gente? Para aquele fogo ardente que não temestes vivendo. Diabo. Frade. Diabo. Não façamos mais detença. Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos. Não ficou isso na avença. Pois dada está já a sentença! Por Deus! Essa seria ela? Não vai em tal caravela minha senhora Florença. Como?! Por ser namorado e folgar com uma mulher se há um frade de perder, com tanto salmo rezado?!... Ora estás bem aviado! Mais estás bem corrigido! Devoto padre e marido, haveis de ser cá pingado... 395 400 405 410 415 420 [120] Descobriu o Frade a cabeça tirando o capelo e apareceu o casco, e diz o Frade: Frade. Diabo. Frade. Diabo. 32 Mantenha Deus esta c‟oroa! Ó padre frei-capacete! Cuidei que tínheis barrete... 425 Sabei que fui da pessoa [importante]! Esta espada é roloa e este broquel rolão32. Dê Vossa Reverença lição de esgrima, que é cousa boa! 430 Os termos rolão e roloa parecem aludir a Rolando, personagem da gesta francesa, cuja arma (a Durindana) se tornou famosa. Começou o frade a dar lição de esgrima com a espada e broquel que eram de esgrimir e diz desta maneira: Frade. Que me praz! Demos caçada [assalto]! Então logo um contra, sus! Um fendente [golpe], ora sus! Esta é a primeira levada [bote]. Alevantai a espada! — — Metei o diabo na cruz como o eu agora pus... — Sai coa espada rasgada e fique anteparada. Talho largo, um revés [golpe], e logo colher os pés, que todo o al no é nada! 435 Daqui saio c‟uma guia e um revés da primeira. Esta é a quinta verdadeira. — Oh! quantos daqui feria!... Padre que tal aprendia no inferno há-de haver pingos?! Ah! Não praza a São Domingos com tanta descortesia! [122] Frade. Diabo. Frade. [121] Diabo. Frade. Parvo. 440 Quando o recolher se tarda o ferir não é prudente. Eia, sus! Mui largamente, 445 cortai na segunda guarda! — Guarde-me Deus de espingarda ou de varão denodado mais aqui estou guardado como a palha na albarda. 450 Saio com meia espada... Hou-lá! Guardai as queixadas! Oh que valentes levadas! Inda isto não é nada... Demos outra vez caçada: Contra, sus! Ora um fendente! E, cortando largamente, eis aqui sexta guarda. huhá! Brís. Diabo. Brís. Diabo. Comp. Diabo. Brís. Diabo. Brís. Diabo. Brís. Diabo. Brís. 465 Prossigamos nossa história, não façamos mais detença. Daí cá a mão, senhora Florença: vamos à barca da Glória! 470 Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira: Frade. Tarararairão, tariririrão, tairairão, taririrão, taririrão, 480 Vamos onde havemos de ir, não praza a Deus coa a ribeira! Eu não vejo aqui maneira senão, enfim... concrudir [aceitar]. Padre, haveis logo de vir? 485 Sim, tomai-me lá Florença, e cumpramos a sentença: ordenemos de partir. Hou-lá da barca, hou-lá! Quem chama? Brísida Vaz. Eia! Aguarda-me, rapaz! Por que não vem ela já? Diz que não há de vir cá sem Joana de Valdeis. Entrai vós, e remareis. Não quero eu entrar lá. 490 495 Que saboroso arrecear!... Não é essa barca a que eu cato. E trazeis vós muito fato? O que me convém levar. 500 Que é o que haveis de embarcar? Seiscentos virgos [himens] postiços e três arcas de feitiços que não podem mais levar. Três armários de mentir, e cinco cofres de enleios, e alguns furtos alheios, assi em jóias de vestir; guarda-roupa de encobrir, enfim — casa movediça; um estrado de cortiça com dez coxins de embair. Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo: Frade. Senhora, dá-me à vontade que este feito mal está... Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira, per nome Brísida Vaz, a qual chegando à barca infernal diz desta maneira: 455 460 Deo gratias! Há lugar cá para minha reverença? E a senhora Florença 475 pelo meu entrará lá! Andar, muitieramá! Furtaste esse trinchão [facão], frade? 505 510 [123] A mor cárrega que é: essas moças que vendia. Daquesta mercadoria trago eu muita, à bofé! 515 Diabo. Brís. Diabo. Brís. Ora ponde aqui o pé. Hui! E eu vou para o paraíso! E quem te disse a ti isso? Lá hei-de ir desta maré. Eu sou a mártir tal, açoites tenho eu levados e tormentos suportados que ninguém me foi igual. Se eu fosse ao fogo infernal, lá iria todo o mundo! A estoutra barca cá em fundo, me vou eu, que é mais real. Diabo. 520 Anjo. Brís. [123] Anjo. Brís. Anjo. Brís. Barqueiro mano, meus olhos, prancha a Brísida Vaz. Eu não sei quem te cá traz... Peço-vo-lo de giolhos! Cuidais que trago piolhos, anjo de Deus, minha rosa? Eu sou Brísida, a preciosa que dava as moças a molhos. 525 Judeu. Que vai lá, hou marinheiro! Diabo. Oh! que má-hora vieste! 570 Judeu. Cuja [de quem] é esta barca que preste? Diabo. Esta barca é do barqueiro. Judeu. Passai-me por meu dinheiro. Diabo. E esse bode há cá de vir? Judeu. O bode também há-de ir. 575 Diabo. Oh! Que honrado passageiro! 530 Judeu. Diabo. Judeu. 535 A que criava as meninas para os cônegos da Sé... Passai-me, por vossa fé, meu amor, minhas boninas, 540 olho de perlinhas finas! E eu sou apostolada, angelada e martelada [martirizada], e fiz obras mui divinas. Santa Úrsula não converteu 545 tantas cachopas como eu: todas salvas pelo meu que nenhuma se perdeu. E prouve àquele do Céu que todas acharam dono. 550 Cuidais que dormia eu sono? Nem ponta!... E não se perdeu! Ora vai lá embarcar, não estês importunando. Pois estou-vos alegando o porque me haveis de levar. Não cures de importunar, que não podes vir aqui. E que má-hora eu servi, pois não me há-de aproveitar! Diabo. [125] Judeu. Porque não irá o judeu onde vai Brísida Vaz? Ao senhor meirinho apraz? Senhor meirinho, irei eu? Diabo. E ao fidalgo quem lhe deu... o mando, dizeis, do batel? Judeu. Corregedor, coronel, castigai este sandeu! Azará, pedra miúda, lodo, chanto, fogo, lenha, caganeira que te venha! Má corrença que te acuda! Par el deu, que te sacuda com a barca nos focinhos! Fazes burla dos meirinhos? Dize, filho da cornuda! 555 Parvo. 560 Diabo. Hou barqueiros da má-hora, ponde a prancha, que eis me vou, e tal fada me fadou e pareço mal cá de fora. Sem bode, como irei lá? Pois eu não passo cá cabrões. Eis aqui quatro tostões e mais se vos pagará. Por vida do semifará que me passeis o cabrão! Quereis mais outro tostão? Nem tu não hás-de vir cá. 580 585 (Fala ao Fidalgo) Torna-se Brísida Vaz à barca do inferno dizendo: Brís. 565 Tanto que Brísida Vaz se embarcou veio um Judeu com um bode às costas; e chegando ao batel dos danados, diz: E chegando à barca da glória diz ao Anjo.: Brís. Ora entrai, minha senhora, e sereis bem recebida... Se vivestes santa vida, vós o sentireis agora... Parvo. 590 595 Furtaste a chiba [cabra], cabrão? 600 Pareceis-me vós a mim carrapato de Alcoutim enxertado em camarão. Judeu, lá te levarão, porque hão-de ir descarregados. 605 E ele se mijou nos finados no adro de São Gião! Diabo. E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor! E mais ele, salvanor, 610 cada vez mija naquela! Ora, sus! Demos à vela! Vós, judeu, ireis à toa [sem rumo], que sois mui ruim pessoa. Levai o cabrão na trela! 615 Vem um Corregedor carregado de feitos, com sua vara na mão, e chegando à barca do inferno diz: [126] Corr. Hou da barca! Diabo. Que quereis? Corr. ‟Stá aqui o senhor juiz? Diabo. Ó amador de perdiz, quantos feitos que trazeis! Corr. No meu ar conhecereis 620 que eles não vêm de meu jeito.. Diabo. Como vai lá o direito? Corr. Nestes feitos o vereis. Diabo. Corr. Diabo. Corr. Diabo. Corr. Diabo. Corr. Diabo. Corr. ser]. Diabo. Ora, pois, entrai, veremos que diz i nesse papel. E onde vai o batel? No inferno vos poremos. Como?! À terra dos demos há-de ir um corregedor? Santo descorregedor, embarcai, e remaremos! Corr. [127] 630 Oh! Renego da viagem e de quem me há-de levar! 640 Há aqui meirinho do mar? Não há tal costumagem. Não entendo esta barcagem, nem hoc nom potest esse {Isto não pode Se ora vos parecesse 645 que não sei mais que linguagem [portu- Entrai, entrai, corregedor! Hou! Videtis qui petatis! Super jure majestatis Oh! que isca esse papel para um fogo que eu sei! Correg. Domine, memento mei! 36 Diabo. Non es tempus, bacharel! Imbarquemini in batel quia judicastis malitia.37 Correg. Sempre ego in justitia fecit, e bem por nível.38 E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava? Correg. Isso eu não no tomava eram lá percalços seus. Nom sunt pecatus meus, peccavit uxore mea.39 Diabo. Et vobis quoque cum ea, nemo temuistis Deus.40 650 655 660 Diabo. 665 670 625 Ora, entrai, pois que viestes! Non est de regulae juris, não! Ita, Ita! Dai cá a mão! Remaremos um remo destes. Fazei conta que nascestes 635 para nosso companheiro. — Que fazes tu, barzoneiro [vadio]? Faze-lhe essa prancha prestes! guês]!... Diabo. tem vosso mando vigor33? Quando éreis ouvidor non ne accepistis rapina? 34 Pois ireis pela bolina onde nossa mercê for. 35 A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum. Ut quid eos non audistis?41 Correg. Vós, arrais, non legistis que o dar quebra os penedos? [128] Os direitos estão quedos, sed aliquid tradidistis... Ora entrai, nos negros fados! Ireis ao lago dos cães e vereis os escrivães como estão tão prosperados. Correg. E na terra dos danados estão os Evangelistas? Diabo. Os mestres das bulras vistas lá estão bem fragoados. 675 Diabo. 33 680 685 Vede o que reclamais! — Acaso o vosso poder está acima do direito de majestade? 34 Acaso não recebeste rapina? 35 Para onde nós determinarmos. 36 Senhor: lembra-te de mim! 37 porque sentenciastes com malícia. 38 com justiça e eqüidade 39 Minha mulher é que pecava. 40 Tu pecavas com ela e não temias a Deus. Latim macarrônico. 41 O Diabo diz que o Corregedor enriqueceu a valer, à custa do sangue dos lavradores, pecadores ignorantes, sem atendê-los sequer. Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal, chegou um Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador: Correg. Ó senhor Procurador! Procur. Beijo-vo-las mãos, juiz! Que diz esse arrais? Que diz? Diabo. Que sereis bom remador. 690 Entrai, bacharel doutor, e ireis dando à bomba. Procur. E este barqueiro zomba... Jogatais [gracejais] de zombador? E essa gente que aí está para onde a levais? Diabo. Para as penas infernais. Procur. Disse, não vou eu para lá! Outro navio está cá, muito milhor assombrado. Diabo. Ora estás bem aviado! Entra, muitieramá! 695 700 Correg. Confessaste-vos, doutor? Procur. Bacharel sou... — Dou-me ao demo!: Não cuidei que era extremo, 705 nem de morte minha dor. E vós, senhor Corregedor? [129] Correg. Eu mui bem me confessei, mas tudo quanto roubei encobri ao confessor... 710 Porque, se o não tornais, não vos querem absolver, e é mui mau de volver depois que o apanhais. Diabo. Pois porque não embarcais? Procur. Quia speramus in Deo.42 Diabo. Imbarquemini in barco meo... para que esperatis mais? 715 Vão-se ambos ao batel da glória, e chegando diz o Corregedor ao Anjo: Correg. Hou arrais dos gloriosos, passai-nos nesse batel! Anjo. Oh pragas para papel, para as almas odiosos! Como vindes preciosos, sendo filhos da ciência! Correg. Oh! Habeatis clemência e passai-nos como vossos! Parvo. Hou, homens dos breviários, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum43 720 e mijais nos campanários! 730 Correg. Anjos, não nos sejais contrários, pois não temos outra ponte! Parvo. Belequinis ubi sunt? Ego latinus macarios.44 Anjo. A justiça divinal 740 vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal. [129] Correg. Oh! não praza a São Marçal! coa ribeira, nem co rio! 745 Cuidam lá [na terra] que é desvario haver cá tamanho mal! Procur. Que ribeira é esta tal! Parvo. Pareceis-me vós a mi como cagado nebri [falcão], mandado no Sardoal. Embarquetis in zambuquis! Correg. Venha a negra prancha cá! Vamos ver este segredo. Procur. Diz um texto do degredo... Diabo. Entrai, que cá se dirá!... Porque esperamos em Deus. 755 E tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brísida Vaz, porque a conhecia: Correg. Esteis muito aramá, senhora Brísida Vaz! Brís. Já sequer estou em paz, que não me deixáveis lá. Cada hora encoroçada45: “Justiça que manda fazer...” Correg. E vós... tornar a tecer e urdir outra meada... Brís. Dizede, juiz de alçada: vem lá Pero de Lisboa? Levá-lo-emos à toa e irá nesta barcada. 760 765 Vem um homem que morreu enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o Arrais tanto que chegou: Diabo. Venhais embora, enforcado! Que diz lá Garcia Moniz?46 770 725 43 Recebestes como propinas coelhos e pernas de perdi- zes. 44 Onde estão os beleguins? Com a carocha à cabeça, um barrete de papelão que a justiça impunha como castigo às alcoviteiras. 45 42 750 [131] Enforc. Eu vos direi que ele diz: — que fui bem-aventurado que, pelos furtos que eu fiz, sou santo canonizado, pois morri dependurado como o tordo na boiz. 775 Diabo. Entra cá, governarás até às portas do Inferno. Enforc. Não é essa a nau que eu governo. Diabo. Entra, que inda caberás. 780 Enforc. Pesar de São Barrabás! Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz são livres de Satanás... E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado; e que fosse Deus louvado que em boa-hora eu cá nascera; e que o Senhor me escolhera; e por bem vi beleguins; e com isto mil latins, como se eu latim soubera... E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro; nem guardião do mosteiro não tinha tão santa gente como Afonso Valente o que é agora carcereiro. Dava-te consolação isso, ou algum esforço? Enforc. Co o baraço [corda] no pescoço, mui mal presta a pregação... E ele leva a devoção que há-de tornar a jantar... Mas quem há-de estar no ar aborrece-lhe o sermão. [132] Diabo. Entra, entra no batel, que ao inferno hás-de ir! Enforc. O Moniz há-de mentir? Disse-me: — “Com São Miguel jantaria pão e mel como fores enforcado”. Ora, já passei meu fado, e já feito é o burel. não me falou em ribeira, nem barqueiro, nem barqueira, senão — logo ao paraíso. E isto muito em seu siso, e que era santo o meu baraço. Porém não sei que aqui faço, ou se era mentira isso. 785 790 795 800 820 Diabo. Falou-te no Purgatório? 825 Enforc. Diz que foi o Limoeiro, e ora por ele o salteiro e o pregão vitatório [pena final]; e que era mui notório que aqueles disciplinados 830 eram horas dos finados e missas de São Gregório [Purgatório]. Diabo. Ora entra, pois hás-de entrar, não esperes por teu pai... Enforc. Entremos, pois que assim vai... Diabo. Este foi bom embarcar! — Eia! Todos apear, que está em seco o batel! Vós, doutor, bota batel! Fidalgo, saltai ao mar! 835 840 Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de [133] sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da paixão daquele por quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja; e a cantiga que assim cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte: Diabo. À barca, à barca segura! Guardar da barca perdida, à barca, à barca da vida! 805 810 815 Agora não sei que é isso. 46 te. Funcionário da casa da moeda ao tempo de Gil Vicen- Senhores que trabalhais pela vida transitória, memória, por Deus, memória deste temeroso cais! À barca, à barca, mortais, Barca bem guarnecida, à barca, à barca da vida! Vigiai-vos, pecadores, que, depois da sepultura, neste rio está a ventura de prazeres ou dolores! À barca, à barca, senhores, barca mui nobrecida, à barca, à barca da vida! 845 850 855 E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira: Diabo. Cavaleiros, vós passais e não me dizeis para onde is? Caval. Vós, Satanás, presumis? Atentai com quem falais! Outro Cav. Vós que nos demandais? Sequer conheceis-nos bem: morremos nas partes de Além, e não queirais saber mais. Diabo. Entrai cá! Que cousa é essa? Eu não posso entender isto! Caval. Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca como essa! 860 865 Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da glória, e tanto que chegam diz o Anjo.: [134] Anjo. Ó cavaleiros de Deus, 870 a vós estou esperando, que morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, santos por certo sem falha, 875 que quem morre em tal peleja merece paz eternal. E assim embarcam. TEATRO DE GIL VICENTE VICENTE, Gil. Auto de Inês Pereira. In: BERARDINELLI, Cleonice. Gil Vicente: autos. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1974. p. 19-66. 52 - FARSA DE INES PEREIRA Feita por Gil Vicente, representado ao muito alto e mui poderoso Rei D. João, o terceiro, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. As figuras são as seguintes: Inês Pereira, sua Mãe; Lianor Vaz; Pero Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; [Luzia e Fernando]. Entra logo Inês Pereira, e finge que está lavrando só, em casa, e canta esta cantiga: Inês (canta). Quien con veros pena y muere que hará cuando no os viere?47 (fala). Renego deste lavrar e do primeiro que o usou! Ao diabo que o eu dou, que tão mau é d‟aturar! Ó Jesu! Que enfadamento, e que raiva, e que tormento, que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira d‟algum outro aviamento. 5 10 encerrada nesta casa como panela sem asa que sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados dous dias amargurados, que eu posso durar viva? E assi hei d‟estar cativa em poder de desfiados? Antes o darei ao diabo que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida cansada de jazer sempre dum cabo. Todas folgam, e eu não; todas vêm e todas vão onde querem, senão eu. Hui! que pecado é o meu, ou que dor de coração? Esta vida é mais que morta. São eu coruja ou corujo, ou são algum caramujo que não sai senão à porta? E quando me dão algum dia licença, como a bugia, que possa estar à janela, é já mais que a Madanela quando achou a alelúia. 15 20 25 30 35 Coitada, assi hei d‟estar 47 Quem, vendo-vos, sofre e morre, que fará quando não vos vir? Vem a Mãe, da Igreja, e, não na achando lavrando, diz: Mãe. Inês Logo eu adivinhei, lá na missa onde eu estava, como a minha Inês lavrava a tarefa que lhe eu dei... Acaba esse travesseiro! Hui! naceu-te algum unheiro? ou cuidas que é dia santo? Praza à Deus que algum quebranto me tire do cativeiro! Mãe. Toda tu estás aquela... Choram-te os filhos por pão? Inês. Prouvesse a Deus! Que já é razão de não estar tão singela. Mãe. Inês. Olhade lá o mau pesar! Como queres tu casar com fama de preguiçosa? Mas eu, mãe, sou aguçosa, e vós dai-vos devagar. 40 45 Diz que havia de saber se era eu fêmea, se macho. 90 Mãe. Hui! Seria algum muchacho que brincava por prazer? Lianor. Si, muchacho sobejava... Era um zote tamanhouço!... E eu andava no retouço, 95 tão rouca que não falava. Quando o vi pegar comigo, que me achei naquele perigo: — Assolverei! — Não assolverás — Tomarei! — Não tomarás! 100 — Jesu! Homem! que hás contigo? 50 55 Mãe. Mãe. Inês. Mãe. Inês. Ora espera, assim vejamos! Quem já visse esse prazer! Cal‟-te, que poderá ser, que “ante Páscoa vêm os Ramos.” Não te apresses tu, Inês: “maior é o ano que o mês.” Quando te não precatares, virão maridos a pares e filhos de três em três. Quero-m‟ ora alevantar. Folgo mais de falar nisso, — assi Deus me dê o Paraíso! — Mil vezes que não lavrar. Isto não sei que me faz... Mãe. Aqui vem Lianor Vaz. Inês. E ela vem-se benzendo. Lianor. Jesus, que me eu encomendo! Quanta cousa que se faz! Mãe. Lianor Vaz, que é isso? Lianor. Venho eu, mana, amarela? Mãe. Mais ruiva que uma panela! Não sei como tenho siso! Lianor. Jesu! Jesu! Que farei? Não sei se me vá a el-Rei, se me vá ao Cardeal. Mãe. E como? Tamanho é o mal? Lianor. Tamanho? Eu to direi: vinha agora por ali, ò redor da minha vinha, e um clérigo, mana minha, pardeus!, lançou mão de mi. Não me podia valer: Eu cuidei que era jogo e ele... dai-o vós ò fogo! Tomou-me tamanho riso, riso em todo meu siso, e ele leixou-me logo. 60 65 70 75 80 85 — Irmã, eu t‟assolverei c‟o breviairo de Braga. — Que breviairo, ou que praga! Que não quero! Aque-d‟el-Rei! Quando viu revolta a voda, foi e esfarrapou-me toda o cabeção da camisa. Assi me fez dessa guisa outro, no tempo da poda. Lianor. Si, agora, ieramá! Também eu me ria cá das cousas que me dizia: chamava-me “luz do dia”. — “Nunca teu olho verá!” Se estivera de maneira sem ser rouca, bradara eu! Mas logo o demo me deu cadarrão e peitogueira, cócegas e cor de rir, e coxa pera fugir, e fraca pera vencer. Porém pude-me valer sem me ninguém acudir... O demo, e não pode al ser, se chantou no corpo dele. Mãe. Mana, conhecia-t‟ele? Lianor. Mas queria-me conhecer! Vistes vós tamanho mal? Lianor. Eu me irei ao Cardeal, e far-lhe-ei assi mesura e contar-lhe-ei a aventura que achei no meu olival. Mãe. Não estás tu arranhada de te carpir nas queixadas. 105 110 115 120 125 130 135 140 Lianor. Eu tenho as unhas cortadas e mais estou trosquiada. E mais pera que era isso? E mais pera que é o siso? E mais, no meo da requesta, veo um homem de a besta, que em vê-lo vi o Paraíso. E soltou-me, porque vinha, bem contra sua vontade. Porém, a falar verdade, já eu andava cansadinha. Não me valia rogar, nem me valia chamar: — “Aque de Vasco de Fóis! Acudi-me, como sóis!” E ele... senão pegar! 145 150 155 Lianor. Eu vos trago um bom marido, rico, honrado, conhecido; diz que em camisa vos quer. Inês. Primeiro eu hei de saber se é parvo, se sabido. Lianor. Nesta carta, que aqui vem pera vós, filha, d‟amores, veredes vós, minhas flores, a descrição que ele tem. Inês. Mostrai-ma cá, quero ver, Lianor. Tomai. E sabedes vós ler? Mãe. Hui! ela sabe latim, e gramáteca, e alfaqui e sabe quanto ela quer! Deras-lhe, maora, boa e mordera-lo na coroa. Lianor. Assi? Fora excomungada! 160 Mãe. Não lhe dera um empuxão, porque sou tão maviosa que é cousa maravilhosa: e esta é a concrusão. Leixemos isto! Eu venho com grande amor que vos tenho, porque diz o exempro antigo que “amiga e bô amigo mais aquenta que o bom lenho”: 165 170 195 200 Lê Inês Pereira a carta, a qual diz assi: Inês. — Mais mansa, Lianor Vaz, assi Deus te faça santa. — Trama te dê na garganta! Como! Isto assi se faz? — Isto não releva nada... — Tu não vês que são casada? 190 “Senhora amiga Inês Pereira, Pero Marques, vosso amigo, que ora estou na nossa aldea, mesmo na vossa mercea me encomendo. E mais digo, digo que benza-vos Deus, que vos fez de tão bom jeito: bom prazer e bom proveito veja vossa mãe de vós e de mi também assi, ainda que eu vos vi, estoutro dia de folgar, e não quisestes bailar nem cantar presente mi...” Na voda de seu avô ou onde me viu ora ele? Lianor Vaz, este é ele? Lionor. Lede a carta sem dó, que ainda eu são contente dele. 205 210 215 220 Inês Pereira a prosseguir com a carta: Inês está concertada pera casar com alguém? Até‟gora com ninguém não é ela embaraçada. Lianor. Em nome do anjo bento, eu vos trago um casamento. Filha, não sei se vos praz. 175 Inês. Mãe. 180 Inês. E quando, Lianor Vaz? Lianor. Já vos trago aviamento. Inês. Porém, não hei de casar senão com homem avisado; ainda que pobre e pelado seja discreto em falar, que assi o tenho assentado. 185 “... Nem cantar presente mi. Pois Deus sabe a rebentinha que me fizestes então. Ora, Inês, que hajais benção de vosso pai e a minha, que venha isto a concrusão. E rogo-vos como amiga, que samicas vós sereis, que de parte me faleis, antes que outrem vo-lo diga. E, se não fiais de mi, esteja vossa mãe aí, a Lianor Vaz de presente: veremos se sois contente que casemos na boa hora.” 225 230 235 Inês Des que naci até agora não vi tal vilão com‟este, Nem tanto fora de mão! Lianor. Não queiras ser tão senhora. Casa, filha, que te preste, não percas a ocasião. Queres casar a prazer no tempo d‟agora, Inês? Antes casa em que te pês, que não é tempo d‟escolher. Sempre eu ouvi dizer: “ou seja sapo ou sapinho, ou marido ou maridinho, tenha o que houver mister”. Este é o certo caminho. Mãe. Pardeus, amiga, essa é ela! “Mata o cavalo de sela e bô é o asno que me leva.” Lianor. Filha, “no Chão do Couce quem não poder andar, choute”. E “mais quero eu quem me adore que quem faça com que chore”. Chamá-lo-ei, Inês? Inês. Si. Venha e veja-me a mi. Quero ver, quando me vir, se perderá o presumir logo em chegando aqui, pera me fartar de rir. Mãe. Inês. Touca-te bem, se vier, pois que pera casar anda. [Pero.] Digo que esteis muito embora. Folguei ora de vir cá... Eu vos escrevi de lá 285 240 Assi que... e de maneira... 245 Mãe. Tomai aquela cadeira. Pero. E que val aqui a destas? 290 Inês [à parte]Ó Jesu! que Jão das Bestas [= bobalhão]! Olhai aquela canseira! Assentou-se com as costas pera elas, e diz: 250 Pero. Mãe. Pero. 255 Mãe. Eu cuido que não estou bem... Como vos chamam, amigo? Eu Pero Marques me digo, como meu pai, que Deus tem. Faleceu, perdoe-lhe Deus!, que fora bem escusado, e ficamos dous heréus. Perém meu é o mor gado. De morgado é vosso estado? Isso veria dos céus. 295 300 260 Pero. 265 Essa é boa demanda [= recomendação]! Cerimônias há mister homem que tal carta manda? Eu o estou cá pintando... 270 sabeis, mãe, que eu adevinho? Deve ser um vilãozinho... Ei-lo se vem penteando: será com algum ancinho? Mais gado tenho eu já quanto, e o mor de todo o gado, digo maior algum tanto. E desejo ser casado, prouguesse ao Espírito Santo, com Inês, que eu me espanto quem me fez seu namorado. Parece moça de bem, e eu de bem, er também Ora vós ide lá vendo se lhe vem milhor ninguém, e segundo o que eu entendo. Cuido que lhe trago aqui peras da minha pereira... Hão d‟estar na derradeira. Tende ora, Inês, per i. Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo: Inês. Pero. E isso hei de ter na mão? Deitai as peas no chão. Pero. Inês. As perlas pera enfiar Três chocalhos e um novelo, e as peas no capelo... E as peras? Onde estão? Pero. Nunca tal me aconteceu! Algum rapaz mas comeu... que as meti no capelo, e ficou aqui o novelo, e o pentem não se perdeu. Pois trazi‟-as de boa mente... Homem que vai aonde eu vou 275 não se deve de correr [= envergonhar]. Ria embora quem quiser, que eu em meu siso estou. Não sei onde mora aqui... olhai que me esquece a mi!... 280 eu creo qu‟é nesta rua... Esta parreira é sua. Já conheço que é aqui. Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz: 305 310 315 320 325 330 Inês. Pero. Fresco vinha o presente, com folhinhas borrifadas! Não, que elas vinham chentadas cá no fundo, no mais quente. entonces veremos nós... [Vai-se Pero Marques e diz] Inês Pereira: Inês. Vossa mãe foi-se? Ora bem... Sós nos leixou ela assi?... Cant‟eu quero-me ir daqui, não diga algum demo alguém... Inês. E vós que havies de fazer, nem ninguém que há de dizer [à parte]. O galante despejado! Pero. Se eu fora já casado, doutra arte havia de ser, como homem de bom recado. 335 Inês. Quão desviado este está! [à parte]. Todos andam por caçar suas damas sem casar, e este... tomade-o lá! Pero. Vossa mãe é lá no muro? Inês. Minha mãe eu vos seguro que ela venha cá dormir. Pero. Pois, senhora, quero-m’ir antes que venha o escuro Virá cá Lianor Vaz, veremos que lhe dizeis... Inês. Homem, não aporfieis, que não quero, nem me praz. Ide casar a Cascais! Pero. Não vos anojarei mais, ainda que saiba estalar; e prometo não casar até que vós não queirais. 345 340 Mãe. Inês. Mãe. Inês. 350 355 360 Mãe. [Pero vai-se, dizendo:] [à parte] Estas vos são elas a vós! Anda homem a gastar calçado, e, quando cuida que é aviado, escarnefucham de vós! [a Inês] Não sei se fica lá a pea... Pardeus! Bô ia eu à aldea! 380 365 Inês. Mãe. Pessoa conheço eu que levara outro caminho... Casai lá com um vilãozinho, mais covarde que um judeu! Se fora outro homem agora, e me topara a tal hora, estando assi às escuras, falara-me mil doçuras, ainda que mais não fora... Vem a mãe e diz: Pero Marques foi-se já? Pera que era ele aqui? Não te agrada ele a ti? Vá-se muitieramá, que sempre disse e direi mãe, eu não me casarei senão com homem discreto, e assi vo-lo prometo; ou antes o leixarei. Que seja homem mal feito, feo, pobre, sem feição, como tiver descrição, não lhe quero mais proveito. E saiba tanger viola, e coma eu pão e cebola. Siquer a canteguinha! Discreto, feito em farinha, porque isto me degola. Sempre tu hás de bailar, e sempre ele há de tanger? Se não tiveres que comer, o tanger te há de fartar? “Cada louco com sua teima.” Com «a borda de boleima e a vez d‟água fria, não quero mais cada dia. Como às vezes isso queima! 385 390 395 400 405 410 415 Voltando atrás: Inês. Pero Senhora, cá fica o fato [= objetos pessoais]? Olhai se o levou o gato... 370 Inda não tendes candea? Ponho per cajo [= suponhamos] que alguém vem como eu vim agora, e vos acha só a tal hora; parece-vos que será bem? 375 Ficai-vos ora com Deus: çarrai a porta sobre vós com vossa candeazinha. E siquais sereis vós minha: Inês. E que é desses escudeiros? Eu falei ontem ali que passarão por aqui os Judeus casamenteiros e hão de vir logo aqui. 420 Aqui entram os Judeus casamenteiros, chamados, um, Latão, e, o outro, Vidal, e diz Latão: Latão. Hou de cá! Inês. Quem está lá? Vidal. Nome dei Deu, aqui somos! Latão. Não sabeis quão longe fomos. Vidal. Corremos a irama. Este e eu. Latão. Eu, e este... [Vidal]. Pola lama e polo pó, que era pera haver dó, com chuiva, sol e nordeste. Latão. Vidal. Latão Vidal. Latão. Vidal. Latão. Vidal. Latão. Foi a coisa de maneira, tal friura é tal canseira, que trago as tripas macadas. Assi me fadem boas fadas que me saltou caganeira! Pera vossa mercê ver o que nos encomendou O que nos encomendou será se hoiver de ser. Todo este mundo é fadiga.... Vós dissestes, filha amiga, que vos buscássemos logo E logo pujemos fogo... Cal-te! Não queres que diga? Não sou eu também do jogo? Não fui eu também contigo? Tu e eu não somos eu? Tu judeu e eu judeu, não somos massa dum trigo? Si, somos. Juro al Deu! Leixa-me falar. Já calo. Senhora, há já três dias... Falas-lhe tu ou eu falo? Ora dize o que dizias: que forte, que fomos, que ias buscá-lo, esgaravatá-lo... Vidal. Vós, amor, quereis marido discreto, e de viola? Latão. Esta moça não é tola, que quer casar per sentido... Vidal. Judeu, queres-me leixar? Latão. Leixo, não quero falar Vidal. Buscamo-lo... Latão. Demo foi logo! Credo que vosso fogo vencerá o Tejo e o mar. Eu cuido que falo... e calo. Calo eu agora ou não? Ou falo, se vem à mão? Não digas que não te falo... Inês. Jesu! Guarde-me ora Deus! Não falará um de vós? Já queria saber isso. Mãe. Que siso, Inês, que siso tens debaixo desses véus... Inês. Diz o exemplo da velha: “o que não haveis de comer 425 430 435 440 445 leixai-o a outrem mexer”. Mãe. Eu não sei quem t‟aconselha... Inês. Enfim, que novas trazeis? Vidal. O marido que quereis, de viola e dessa sorte, não no há senão na corte que cá não no achareis. Falamos a Badajoz, músico, discreto, solteiro; este fora o verdadeiro, mas soltou-se-nos da noz. Fomos a Vilhacastim e... falou-nos em latim: — Vinde cá daqui a a hora, e trazei-me essa senhora.” Inês. Tudo é nada, enfim? Vidal. Esperai, aguardai ora! Soubemos dum escudeiro, de feição de atafoneiro que virá logo essora, que fala... e com‟ora fala! estrugirá esta sala. E tange... e com‟ora tange! Alcança quanto abrange, e se preza bem de gala. 480 485 490 495 500 Vem o Escudeiro com seu Moço, que lhe traz a viola, e diz, falando só: 450 455 Escudeiro. Se esta senhora é tal como os judeus ma gabaram, certo os anjos a pintaram, e não pode ser i al. Diz que os olhos com que via eram de Santa Luzia, cabelos, da Madanela... Se ela fosse donzela tudo essoutro passaria... 460 Moça de vila será ela, com sinalzinho postiço, e sarnosa no toutiço como burra de Castela. eu, assi como chegar, compre-se bem atentar se é garrida, se honesta, por que o melhor da festa é achar siso e calar. 465 505 515 Mãe [falando para Inês]: 470 Mãe. Se este escudeiro há de vir e é homem de discrição hás-te de por em feição. e falar pouco, e não rir. E mais, Inês, não muito olhar, 520 e muito chão o menear. porque te julguem por muda, porque a moça sesuda é a pena pera amar. 525 Escudeiro [falando para o Criado]: Escudeiro. Olha cá, Fernando, eu vou ver a com que hei de casar. Avisa-te que hás de estar sem barrete onde eu estou. Moço. Como a Rei! Corpo de mi! [à parte] Mui bem vai isso assi... Escudeiro. E se cuspir, pola ventura, põe-lhe o pé e faze mesura. Moço [à parte]. Ainda eu isso não vi! Escudeiro. E se me vires mentir, gabando-me de privado, está tu dissimulado, ou sai-te lá fora a rir; isto te aviso daqui, faze-o por amor de mi. 530 535 540 Moço. Porém, senhor, digo eu que mau calçado é o meu pera estas vistas assi. Escudeiro. Que farei, que o sapateiro não tem solas, nem tem pele? Moço. Sapatos me daria ele, se me vós désseis dinheiro... Escudeiro. Eu o haverei agora. 550 E mais, calças te prometo. Moço[à parte]Homem que não tem nem preto [moeda de cobre] casa muito na maora. Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e alevantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro: Escudeiro. Antes que mais diga agora, Deus vos salve, fresca rosa, e vos dê por minha esposa, por mulher e por senhora. Que bem vejo nesse ar, nesse despejo, mui graciosa donzela, que vós sois, minha alma, aquela que eu busco e que desejo. Obrou bem a Natureza em vos dar tal condição que amais a discrição muito mais que a riqueza. Bem parece que só discrição merece gozar vossa fermosura, 555 560 565 que é tal que, de ventura, outra tal não se acontece. Senhora, eu me contento receber-vos como estais: se vós vos não contentais, o vosso contentamento pode falecer, nô mais. Latão. Como fala! Vidal. Mas ela como se cala! Tem atento o ouvido... Este há de ser seu marido, segundo a coisa s‟abala. Escudeiro. Eu não tenho mais de meu, somente ser comprador do Marichal meu senhor e são escudeiro seu. Sei bem ler e muito bem escrever, e bom jugador de bola, e quanto a tanger viola, logo me ouvireis tanger. Moço, que estás lá olhando? Moço. Que manda Vossa Mercê? Escudeiro. Que venhas cá! Moço. Pera quê? Escudeiro. Pera fazeres o que mando! Logo vou. Moço. O diabo me tomou: [à parte]. O diabo me tomou: tirar-me de João Montês, por servir um tavanês, mor doudo que Deus criou! Escudeiro. Fui despedir um rapaz, que valia Perpinhão!, por tomar este ladrão... Moço! [Moço!] Moço. Que vos praz? Escudeiro. A viola! Moço. Oh como ficará tola, [à parte] se não fosse casar ante c‟o mais sáfeo bargante que cebola pão e cebola! [ao escudeiro] Ei-la aqui bem temperada: não tendes que temperar. Escudeiro. Faria bem de ta quebrar na cabeça, bem migada. Moço [à parte].E se ela é emprestada, quem na havia de pagar? [ao escudeiro] Meu amo, eu quero-m‟ir. E quando queres partir? Moço. Ante que venha o inverno, porque vós não dais governo pera vos ninguém servir. Escudeiro. Não dormes tu que te farte? Moço. No chão... e o telhado por manta, e çarra-se-m‟a garganta 570 575 580 585 590 595 600 605 610 615 620 com fome... Escudeiro. Isso tem arte... Moço. Vós sempre zombais assi. Escudeiro. Oh que boas vozes tem esta viola aqui! Leixa-me casar a mi, depois eu te farei bem. Agora vos digo eu que Inês está no paraíso. Inês. Que tendes de ver com isso? Todo o mal há de ser meu. Mãe. Quanta doudice! Inês. Como é seca a velhice! Leixai-me ouvir e folgar, que não me hei de contentar e casar com parvoíce. Pode ser maior riqueza que um homem avisado? Mãe. Muitas vezes, mal pecado!, é melhor boa simpreza. Latão. Ora oivi, e oivireis; escudeiro, cantareis alg a boa cantadela. Namorai esta donzela, Esta cantiga direis. Canta o Judeu: Canas do anuir, canas, canas do amor. Polo longo de um rio, canaval vi florido, canas do amor. 625 Mãe. 630 635 640 645 650 Canta o Escudeiro o romance de “Mal me quieren en Castilla”, e diz Vidal: Vidal. Latão, já o sono é comigo como oivo cantar guaiado que não vai esfandegado. Latão. Esse é o demo q‟eu digo! 655 Viste cantar Dona Sol: Pelo mar vai a vela, vela vai pelo mar? Vidal. Filha Inês, assi vivais, que tomeis esse senhor, 660 escudeiro, cantador, e caçador de pardais, sabedor, rebolvedor, falador, gracejador, afoitado pela mão, 665 e sabe de gavião. Tomai-o, por eu amor! Podeis topar um rabugento, desmazelado, baboso, descancarrado [boçal], brigoso, 670 medroso, carrapatento. Este escudeiro, a osadas!, onde se derem pancadas, ele as há de levar boas: senão apanhar... Nele tendes boas fadas. Mãe. Quero rir, com toda a mágoa, destes teus casamenteiros: nunca vi judeus ferreiros aturar tão bem a frágua. Não te é melhor, mal por mal, Inês, um bom oficial que te ganhe nessa praça, que é um escravo de graça? E casarás com teu igual. Latão. Senhora, perdei cuidado: o que há de ser, há de ser, e ninguém pode tolher o que está determinado. Vidal. Assi diz Rabi Zarão. Inês, guar-te de rascão! Escudeiro queres tu? Inês. Jesu, nome de Jesu, quão fora sois de feição! Já, minha mãe adevinha, houvestes por vaidade casar à vossa vontade; eu quero casar à minha. Mãe. Casa, filha, muito embora! Escudeiro. Dai-me essa mão, senhora. Inês. Senhor, de mui boa mente. Escudeiro. Per palavras de presente vos recebo desd‟agora. Nome de Deus, assi seja! Eu, Brás da Mata, escudeiro, recebo a vós, Inês Pereira, por mulher e por parceira, como manda a Santa Igreja. Inês. Eu aqui, diante Deus, Inês Pereira, recebo a vós, Brás da Mata, sem demanda, como a Santa Igreja manda. Juro al Deu! Aí somos nós! 675 680 685 690 695 700 705 710 Os Judeus ambos: Judeus. Alça manim, dona ò dono, ha! Arrea espeçulá! Bento o Deu de Jacob, bento o Deu que a Faraó espantou e espantará! Bento o Deu de Abraão! Benta a terra de Canão! Pera bem sejais casados! Vidal. Dai-nos cá senhos ducados! Mãe. Amenhã vo-los darão. Pois assi é, bem será que não passe isto assi; eu quero chegar ali, chamar meus amigos cá, 715 720 725 e cantarão de terreiro. Escudeiro. Oh! quem me fora solteiro! Inês. Já vós vos arrependeis! Escudeiro. Oh, esposa, não faleis, que casar é cativeiro. Inês. 730 Aqui vem a Mãe com certas Moças e Mancebos, pera fazerem a festa, e diz a delas, per nome Luzia: Luzia. Inês, por teu bem te seja! Oh, que esposo e que alegria! Inês. Venhas embora, Luzia, e cedo te eu assi veja. Mãe. Ora vai tu ali, Inês, e bailareis três por três. Fernando. Tu conosco, Luzia, aqui, e a desposada ali: ora vede qual dirês. 735 740 Cantam todos a cantiga que se segue: Mal ferida va la garça enamorada; sola vá, y gritos dava. A las orillas de um río la garça tenía el nido; ballestero la há herido en el alma; sola va, y gritos dava. Fernando. Ora, senhores honrados, ficai com vossa mercê, E Nosso Senhor vos dê com que vivais descansados. Isto foi assi agora, mas melhor será outrora; perdoai pelo presente: foi pouco e de boa mente... Com vossa mercê, senhora. Luzia. Ficai com Deus, desposados, com prazer e com saúde, e sempre Ele vos ajude com que sejais bem logrados. Mãe. Ficai com Deus, filha minha, não virei cá tão asinha. A minha benção hajais. Esta casa em que ficais vos dou, e vou-me à casinha. Senhor filho e senhor meu, pois que já Inês é vossa, vossa mulher e esposa, encomendo-vo-la eu. E pois que, des que naceu, 745 750 755 760 765 770 a outrem não conheceu, senão a vós, por senhor, que lhe tenhais muito amor, que amado sejais no Céu. 775 Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro, e senta-se Inês Pereira a lavrar, e canta esta cantiga: Si no os huviera mirado, no penara, pero tampoco os mirara. O Escudeiro, vendo cantar a Inês Pereira, mui agastado lhe diz: Escudeiro. Vós cantais, Inês Pereira? Em vodas me andáveis vós? Juro ao Corpo de Deus que esta seja a derradeira! Se vos eu vejo cantar, eu vos farei assoviar... Inês. Bofé, senhor meu marido, se vós disso sois servido, bem o posso eu escusar. Escudeiro. Mas é bem que o escuseis, e outras cousas que não digo, Inês. Por que bradais vós comigo? Escudeiro. Será bem que vos caleis. E mais, sereis avisada que não me respondais nada, em que ponha fogo a tudo; porque o homem sesudo traz a mulher sopeada. Vós não haveis de falar com homem nem mulher que seja; nem somente ir à igreja não vos quero eu leixar. Já vos preguei as janelas, porque vos não ponhais nelas; estareis aqui encerrada, nesta casa tão fechada, como freira d‟Oudivelas. Inês. Que pecado foi o meu? Por que me dais tal prisão? Escudeiro. Vos buscastes discrição... que culpa vos tenho eu? Pode ser maior aviso, maior discrição e siso, que guardar eu meu tisouro? Não sois vós, mulher, meu ouro? Que mal faço em guardar isso? Vós não haveis de mandar em casa somente um pelo; se eu disser: “Isto é novelo”, havei-lo de confirmar. 780 785 790 795 800 805 810 815 E mais, quando eu vier de fora, haveis de tremer; e cousa que vós digais não vos há de valer mais que aquilo que eu quiser. — Moço, às partes d‟além me vou fazer cavaleiro. Moço.[parte. Se vós tivésseis dinheiro, não seria senão bem. Escudeiro. Tu hás de ficar aqui; olha por amor de mi o que faz tua senhora: fecha-la-ás sempre de fora. — Vós, lavrai, ficai per i. Moço. Com o que me vós leixais não comerei eu galinhas... Escudeiro. Vai-te tu per essas vinhas, que diabo queres mais? Moço. Olhai, olhai, como rima! E depois de ida a vendima? Escudeiro. Apanha desse rabisco. Moço. Pesar ora de São Pisco! Convidarei minha prima... E o rabisco acabado, ir-m‟ei espojar às eiras? Escudeiro. Vai-te per essas figueiras e farta-te, desmazelado! Moço. Assi! Escudeiro. Conheces túbaras da terra? Moço. (I-vos vós embora à guerra, que eu vos guardarei oitavas...). Senhora, o que ele mandou não posso menos fazer. Inês. Pois que te dá de comer, faze o que te encomendou. Moço. Vós fartai-vos de lavrar; eu me vou desenfadar com essas moças lá fora. Vós perdoai-me, senhora, porque vos hei de fechar. 820 825 830 835 Juro em todo meu sentido que, se solteira me vejo, assi como eu desejo, que eu saiba escolher marido, à boa fé, sem mal engano pacifico todo o ano, que ande a meu mandar... Havia-me eu de vingar deste mal e deste dano! 870 875 880 885 840 Entra o Moço com 845 a carta de Arzila, e diz: Esta carta vem d‟além, creo que é de meu senhor. Mostrai cá, meu guarda-mor, veremos o que i vem. 890 Lê o sobrescrito. 850 855 860 Aqui fica Inês Pereira só, brechada, lavrando e cantando esta cantiga: Inês. Inês. e em suas casas macios, e na guerra lastimeiros. Vede que cavalaria! Vede já que mouros mata quem sua mulher maltrata, sem lhe dar de paz um dia! E sempre ouvi dizer que homem que isto fizer, nunca mata drago em vaie, nem mouro que chamem Ale, e assim deve de ser. Quem bem tem e mal escolhe, por mal que lhe venha, não s’anoje. (falado) Renego da discrição, comendo ao demo o aviso, que sempre cuidei que nisso 865 estava a boa condição; cuidei que fossem cavalheiros fidalgos e escudeiros não cheos de desvarios, “A mui prezada senhora Inês Pereira de Grã, à senhora minha irmã.” Inês. De meu irmão! Venha embora! Moço. Vosso irmão está em Arzila? Apostarei que i vem nova de meu senhor também. Inês. Já ele partiu de Tavila? Moço. Há três meses que é passado. Inês. Aqui virá logo recado se lhe vai bem ou que faz. Moço. Bem pequena é a carta assaz! Inês. Carta de homem avisado... 895 900 905 Lê Inês Pereira a carta, a qual diz: “Muito honrada irmã, esforçai o coração e tomai por devação de querer o que Deus quer.” Inês. E isto que quer dizer? (prossegue) “E não vos maravilheis de causa que o mundo faça, que sempre nos embaraça com cousas. Sabei que, indo vosso marido fugindo 910 915 de batalha pera a vila, a mea légua de Arzila, o matou um mouro pastor.” Moço. Oh meu amo e meu senhor! Inês. Dai-me vós cá essa chave, e i buscar vossa vida. Moço. Oh que triste despedida! Inês. Mas que nova tão suave! Desatado é o nó! Se eu por ele ponho dó, o diabo m‟arrebente! Pera mi era valente e matou-o um mouro só! Guardar de cavaleirão, barbudo, repetenado, que em figura d‟avisado é malino e sotrancão. Agora quero tomar, pera boa vida gozar, um muito manso marido; não no quero já sabido, pois tão caro há de custar. Pereira só, dizendo: Inês. 920 925 O que havedes de fazer? Casede-vos, minha filha. Inês. Jesu, Jesu! Tão asinha! Isso me haveis de dizer? Quem perdeu um tal marido, tão discreto e tão sabido, e tão amigo de minha vida... Lianor. Dai isso por esquecido e buscai outra guarida. Pero Marques tem que herdou fazenda de mil cruzados; mas vós quereis avisados... Inês. Não, já esse tempo passou! Sobre quantos mestres são, a experiência dá lição. Lianor. Pois tendes esse saber, querei ora quem vos quer, dai ò demo a opinião! 970 Vem Lianor Vaz com Pero Marques, e diz Lianor 930 935 Aqui vem Lianor Vaz, a finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz: Lianor. Como estais, Inês Pereira? Inês. Muito triste, Lianor Vaz. Lianor. Que fareis ao que Deus faz? Inês. Casei por minha canseira. Lianor. Se ficastes prenhe, basta. Inês. Bem quisera eu dele casta, mas não quis minha ventura. Lianor. Filha, não tomeis tristura, que a morte a todos gasta. Andar! Pero Marques seja! Quero tomar por esposo quem se tenha por ditoso de cada vez que me veja. Por usar de siso mero, asno que me leve quero, e não cavalo folão; antes lebre que leão, antes lavrador que Nero. 940 945 Lianor. Nô mais cerimónias agora; abraçai Inês Pereira por mulher e por parceira. Pero. Há homem empacho, maora!, quant‟a dizer abraçar; depois que a eu usar, entonces poderá ser. Inês. Não lhe quero mais saber; já me quero contentar. Lianor. Ora dai-me essa mão cá. Sabeis as palavras, si? Pero. Ensinaram-mas a mi, perém esquecem-me já. Lianor. Ora dizei como digo... Pero. E tendes vós aqui trigo pera nos jeitar por cima? Lianor. Inda é cedo, como rima! Pero. Soma, vós casais comigo e eu convosco, pardelhas! Não compre aqui mais falar, e quando vos eu negar, que me cortem as orelhas! Lianor. Vou-me, ficai-vos embora. 975 980 985 990 995 950 Vai-se e diz Inês Pereira: Inês. 955 Pero. 960 965 Vai Lianor Vaz por Pero Marques, e fica Inês Inês. Pero. Inês. Pero. Marido, sairei eu agora, que há muito que não sai? Si, mulher, saí-vos i, que eu me irei para fora. Marido, não digo disso. Pois que dizeis vós, mulher? Ir folgar onde eu quiser. I onde quiserdes ir, vinde quando quiserdes vir, estai quando quiserdes estar. Com que podeis vós folgar que eu não deva consentir? 1000 1005 Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz: pois que Deus vos trouxe aqui. Ermitão. Sea por amor de mí vuestra buena caridad. Ermitão. Señores, por caridad, dad limosna al dolorido ermitafio de Cupido, para siempre en soledad, pues su siervo soy nacido. Por exemplo me meti en su santo templo ermitaño en pobre ermita, fabricada de infinita tristeza en que contemplo; adonde rezo mis horas, y mis dias y mis años, mis servicios y mis daños; donde tú, mi alma, lloras ei fin de tantos engaños. Y acabando las horas, todas llorando, tomo las cuentas una a una, con que tomo a la Fortuna cuenta del mal en que ando, sin esperar paga alguna. Deo gratias! mi señora, la limosna mata el pecado; pero vos tenéis cuidado de matarme cada hora. Devéis saber, para merced me hazer, que por vos soy ermitaño. Y aun más os desengaño, que esperanças de os ver me rizieron vestir tal paño. Inês. Jesu, Jesu! Manas minhas! Sois vós aquele que, um dia, em casa de minha tia, me mandastes camarinhas e quando aprendia a lavrar, mandáveis-me tanta cousinha? Eu era ainda Inesinha, não vos queria falar. Ermitão. Señora, tengoos servido y vos a mi despreciado; hazed que el tiempo pasado no se cuente por perdido. Inês. Padre, mui bem vos entendo ò demo vos encomendo!, que bem sabeis vós pedir! Eu determino lá d‟ir, à ermida, Deus querendo. Y así, sin esperança de cobrar lo merecido, sirvo allí mis dias Cupido com tanto amor sin mudança que soy su santo escogido. O señores, los que bien os va d‟amores, dad limosna al sin holgura... que habita en sierra escura, uno de los amadores que tuvo menos ventura. Yo rogaré al dios de mí, en quien mis sentidos traigo, que recibais mejor pago de lo que yo recebí en esta vida que hago. Y rezaré con gran devoción y fe que Dios os libre d‟engaño; que eso rue hizo ermitaño, y para siempre seré, pues para siempre es mi daño. Inês. Inês. Olhai cá, marido amigo, eu tenho por devação dar esmola a um ermitão, e não vades vós comigo I-vos embora, mulher, não tenho lá que fazer. Tomais a esmola, padre, lá, 1010 1015 1020 1025 1030 1035 1040 1045 1060 1065 1070 1075 1080 1085 Ermitão. Y quando? Inês. I-vos, meu santo, 1090 que eu irei um dia destes, muito cedo, muito prestes. Ermitão. Señora, vo me voy eu tanto Inês.[à parte].Em tudo é boa a concrusão. Marido, aquele ermitão 1095 é um anjinho de Deus... Pero. Corregê-vos esses véus e ponde-vos em feição. Inês. Sabei vós o que eu queria? Pero. Que quereis, minha mulher? 1100 Que houvésseis por prazer de irmos lá em romaria 1050 Pero. Inês. Pero. Inês. 1055 Pero. Inês. Seja logo sem deter! Este caminho é comprido; contai a estória, marido 1105 Bofá que me praz, mulher. Passemos primeiro o rio, descalçai-vos E pois como? E levar-me-eis ao ombro, não me corte a madre [útero] o frio. 1100 Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz: Inês. Pero. Inês. Pero. Inês. Pero. Inês. Pero. Inês. Inês. Marido, assi me levade! Ides à vossa vontade? Como estar no paraíso! Muito folgo eu com isso. Esperade ora, esperade! Olhai que lousas aquelas pera poer as talhas nelas! Quereis que as leve? Si: a aqui e outra aqui. Oh, como folgo com elas! Cantemos, marido, quereis? Eu não saberei entoar... Pois eu hei só de cantar e vós me respondereis, cada vez que eu acabar: Pois assi se fazem as cousas. Pero. Inês. 1115 Pero. Inês. 1120 Pero. 1125 Marido cuco me levades, e mais duas lousas. Pois assi se fazem as cousas. Bem sabedes vós, marido, quanto vos amo; sempre fostes percebido pera gamo. Carregado ides, noss’ amo, com duas lousas. Pois assi se fazem as cousas. Bem sabedes vós, marido, quanto vos quero; sempre fostes percebido pera cervo. Agora vos tomou o demo com duas Lousas. Pois assi se fazem as cousas. 1135 1140 1143 E assi se vão, e se acaba o dito Auto. LAUS DEO. Canta Inês Pereira: 1130