TCC – Patrícia Fernandes Franco
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TCC – Patrícia Fernandes Franco
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Centro de Estudos Gerais Instituto de Artes e Comunicação Social EU E O OUTRO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE EM UMA ANÁLISE SEMIÓTICA DO FILME MULAN Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social – habilitação Jornalismo da Universidade Federal Fluminense como requisito à obtenção do título de bacharel. Autora: Patrícia Fernandes Viana Franco Castro Orientador: Prof. Dr. Guilherme Nery Atem - UFF IACS/UFF Niterói Outubro/2015 AGRADECIMENTOS Meu mais sincero “obrigada” aos meus pais que, longe de criticarem minha incessante busca identitária traduzida na peregrinação por cursos de graduação, me apoiaram continuamente. Por causa deles, o discurso recorrente em minha casa não foi do tipo “Três faculdades pra quê?!”, mas um muito significativo “Estamos orgulhosos de você.” Em segundo lugar, gostaria de agradecer aos professores das duas habilitações em Comunicação Social da UFF. Obrigada por participarem de minha formação, o que, para alguém que estuda identidade há tantos anos, representa mais do que adquirir conhecimentos sobre o mundo; significa aprender mais sobre si mesma... Agradeço, ainda, a professora Renata Mancini por me apresentar a Semiótica, sem a qual não conseguiria levar à frente essa análise; e ao professor Dante Gastaldoni, que, sem saber, me ajudou a definir o objeto de pesquisa em uma de suas aulas de Fotojornalismo. Sem alguns professores mais do que especiais não teria decidido continuar os estudos em Comunicação e ainda sonhar com um mestrado na área. Portanto, Ana Paula Bragaglia, João Alt, Lilian Ribeiro, Larissa Morais, Carla Baiense e Helen Britto, agradeço por terem sidos mais do que professores, por me adotarem em alguns momentos, por me ensinarem dentro e fora da sala de aula e por participarem de momentos marcantes de minha vida (pessoal, profissional, acadêmica), como a primeira colação de grau, o primeiro estágio e o primeiro congresso. Minha profunda gratidão, também, ao professor Guilherme Nery: uma de minhas maiores inspirações na UFF desde o primeiro período, avaliador de minha monografia em PP e, finalmente, meu orientador em Jornalismo. Obrigada pelas divertidas aulas, pelas maravilhosas indicações quando não conseguia decidir o direcionamento teórico para esse trabalho e, especialmente, obrigada por não rir de mim quando decidi estudar a Mulan! Agradeço, ainda, aos amigos que fizeram parte desses muitos anos de IACS, desde os vitaminados e os integrantes do LLC até os vários jornalistandos que conheci na vida de estudante em um período fatorial. Ah, e como não poderia faltar, aquele obrigadíssima especial a minha irmã e assistente oficial por digitar minhas citações e por assistir Mulan comigo mais vezes do que era saudável... 2 RESUMO Essa pesquisa se propõe a estudar as relações entre as identidades contemporâneas e as produções da mídia, buscando compreender o processo de construção de identidade no contexto atual associado aos conceitos de Sociedade de Consumo, Cultura da Mídia e Sociedade do Espetáculo. Mais especificamente, objetiva-se analisar como narrativas clássicas são revisitadas por produtos midiáticos em um movimento de negociação entre estruturas passadas e presentes na construção de identidades coletivas ou individuais. Para tal, escolheu-se o caso do filme Mulan (Disney, 1998), inspirado no poema chinês do século VII, Ballad of Mulan. A análise é feita a partir de aspectos da Semiótica Greimasiana, tais como, o quadrado semiótico, os principais programas narrativos e os recobrimentos temático-figurativos de atores discursivos previamente selecionados. Palavras-Chave: Contemporaneidade; Identidade; Produtos Midiáticos; Semiótica. 3 ABSTRACT This research aims to study the relationship between contemporary identities and media productions, trying to understand the identity-building process in the current context associated with the concepts of Consumer Society, Media Culture and Society of the Spectacle. More specifically, the objective is to analyze how classical narratives are revisited by media products in a movement of negotiation between past and present structures in the construction of collective or individual identities. To do so, it was chosen the case of the animation movie Mulan (Disney, 1998), inspired by the Chinese poem of the seventh century, Ballad of Mulan. The analysis is made from aspects of Semiotics such as the semiotic square, the main narrative programs and the thematic-figurative coverings of discursive actors previously selected. Key Words: Contemporaneity; Identity; Media Products; Semiotics. 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 8 CAPÍTULO 1. “CONTEMPORANEIDENTIDADE” 10 1.1 A crise da experiência e o espaço de ação no presente 10 1.2 Produtos midiáticos e memória coletiva 13 1.3 Identidade repensada midiaticamente 16 CAPÍTULO 2. EU E O OUTRO: ANALISANDO MULAN 21 2.1 O poema 22 2.2 O filme 23 CAPÍTULO 3. TORNANDO-SE MULAN 28 3.1 Nível fundamental 28 3.2 Nível narrativo 29 3.2.1 A narrativa em teia de Mulan 33 a) PN Mushu 33 b) PN Yao, Chien-Po e Ling 36 c) PN Shang 38 d) PN Shan-Yu 40 e) PN Mulan 42 3.3 Nível discursivo 49 a) Mulan 50 b) Mushu 55 c) Shang 57 d) Chien-Po, Ling e Yao 58 e) Shan-Yu 58 CONCLUSÃO - THE JOURNEY IS THE DESTINATION 61 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 65 ANEXOS 70 Poema Ballad of Mulan 70 Músicas do filme Mulan 72 6 SUMÁRIO DE IMAGENS Figura 1 (noivas) 51 Figura 2 (leque) 52 Figura 3 (Mulan com espada) 53 Figura 4 (modelo masculino segundo Mushu) 55 Figura 5 (Mulan e Mushu) 56 Figura 6 (Capitão Shang) 57 Figura 7 (Mulan e Shang) 57 Figura 8 (Chien-Po) 58 Figura 9 (Ling) 58 Figura 10 (Yao) 58 Figura 11 (Shan-Yu e os hunos) 59 Figura 12 (Shan-Yu “matador de criancinhas”) 59 Figura 13 (Ling, Chien-Po e Yao femininamente caracterizados) 60 7 INTRODUÇÃO Essa pesquisa parte de um projeto de análise de questões relativas à identidade na contemporaneidade iniciado em outro curso, com um tema distinto, mas um objetivo comum. Ele amadureceu para, atualmente, centrar-se na avaliação de possíveis respostas de produtos midiáticos a uma demanda identitária característica da fluidez temporal e espacial dada pela aceleração da história e pela globalização, com a jornada de autodescobrimento do herói na narrativa contribuindo para tal demanda. Assim, o primeiro capítulo está fragmentado em três subcapítulos: “A crise da experiência e o espaço de ação no presente”, “Produtos midiáticos e memória coletiva” e “Identidade repensada midiaticamente”. Em suma, traça-se o contexto, para chegar ao caso específico. Primeiramente, tem-se reflexões sobre a aceleração da história e a relação memóriaesquecimento. Em seguida, observa-se a necessidade do estudo de produtos midiáticos dada a lógica do consumo-espetáculo (Cultura da Mídia). Fecha-se o capítulo com as considerações sobre o resgate midiático de narrativas culturalmente tradicionais vinculado à representação coletiva. O capítulo dois apresenta a proposta de estudo, explicando as relações na análise comparada poema-filme, as ferramentas aplicadas e a hipótese que a norteou. De forma complementar, há a contextualização das obras1, com a exposição de informações técnicas advindas de pesquisas em sites da web. Vale ressaltar que, por razões de disponibilidade material e linguística, explicita-se mais profundamente o filme do que o poema. Por conseguinte, observando-se as relações entre os atores discursivos que recobrem os sujeitos, nega-se a hipótese original (identidade de Mulan construída em oposição à alteridade dos soldados) e chega-se à de que a identidade de Mulan é formada entre a identificação e alteridade. Além disso, na apreciação pareada das obras, nota-se o objeto-valor construção da identidade presente de maneira mais eloquente no filme do que no poema. Já o capítulo 3 constitui-se na análise propriamente dita. Nele, há uma breve apresentação do esquema semiótico utilizado, das personagens investigadas e da composição básica de cada 1 Ballad of Mulan é um poema chinês do século VII sobre a jovem Hua Mulan, figura lendária que haveria se caracterizado masculinamente para tomar o posto militar de seu pai contra invasores e, assim, poupar sua vida. Mulan é um filme da Disney, de 1998, baseado na conhecida história e com enredo semelhante em muitos pontos, como a motivação para ida à guerra. 8 um dos três níveis semióticos. Inicialmente, no nível fundamental, utiliza-se o quadrado semiótico dos temas alteridade vs. identidade. Em seguida, encontra-se o nível narrativo, que é melhor desenvolvido com a expressão de que o filme é uma narrativa em teia e a subsequente construção do programa narrativo de cada personagem avaliada neste. No nível discursivo, são elencados os principais recobrimentos temático-figurativos de cada um dos atores discursivos selecionados e como se modificam no relacionamento com os demais. Nesse subcapítulo foram adicionadas imagens (frames do filme) para resgatar na memória do leitor momentos específicos da obra cinematográfica nos quais determinado comportamento ou traço de personalidade daquele ator discursivo foi mais acentuado. Reitera-se que essas figuras estão ali apenas como recurso mnemônico e que não são analisadas per si. A metodologia utiliza nessa pesquisa constitui-se de uma pesquisa bibliográfica interdisciplinar, buscando na História, Sociologia, Antropologia e Comunicação o ferramental teórico para compreender o movimento de aceleração da história, as reflexões acerca da Contemporaneidade e as consequências sociais e culturais do fenômeno da Globalização. A esse panorama intentamos aliar os conceitos de Sociedade de Consumo, Cultura da Mídia e Sociedade do Espetáculo. Ademais, fez-se buscas em distintos sites da Internet sobre a produção e recepção do filme no país original, na nação em que se inspira e em território nacional. Finalmente, a parte analítica do caso selecionado (Mulan, Disney, 1998), conta com leituras teóricas simplificadas (introdutórias) de Semiótica Greimasiana (manuais de análise semiótica) e análise comparativa das estruturas semióticas básicas do filme e do poema em que foi inspirado. Objetiva-se, assim, compreender: a) os principais temas e figuras aparentes nas narrativas, as relações narrativas entre os atores e a construção dos atores dicursivos; e b) como alguns desses aspectos foram adaptados na produção da obra cinematográfica visando ao público atual. Na conclusão, faz-se uma ligação mais consistente das análises até então apresentadas. Dessa maneira, assimila-se que Mulan representa em ambas as produções (poema e filme) a quebra de expectativa do que seria o modelo de feminino em sua sociedade e ainda assim, obtém seu “lugar ao sol”. Além disso, há a constatação de que a devoção familiar da protagonista contribui para a construção de um laço afetivo com a mesma e de uma admiração a ela dedicada pelos leitores e espectadores das obras nela baseadas. 9 CAPÍTULO 1. “CONTEMPORANEIDENTIDADE” A crise da experiência e o espaço de ação no presente Entre o final do século XIX e ao longo do XX, alguns filósofos observaram que as bases para compreensão do mundo eram afetadas pela quebra da tradição, provocada por um rompimento da organização prévia de como o passado era compreendido. Com a chamada modernidade, tinha-se, então, a aceleração da história, pois, a partir do momento em que acontecia algo imprevisto, uma nova experiência, o passado deixava de esclarecer.2 O filósofo alemão Friedrich Nietzsche3 afirmava que o preceito estruturante da tradição estava demasiadamente enfraquecido, sendo necessário o desenvolvimento de novas premissas. Essas circunstâncias propiciavam, portanto, a emergência de novas possibilidades. Por esse motivo, o pensador alemão censurava a modernidade, com sua perseguição de certezas e verdades duras e irrefutáveis, que resultavam na negação mesma da vida pelo imperativo dos valores morais. Assim, ao refutar os movimentos de exaltação e afirmação desses empoeirados princípios4, Nietzsche se empenhava no resgate do valor e da dinâmica da própria vida.5 O filósofo explicava que, para as ações (o agir e avançar da vida), algum grau de esquecimento era necessário, pois o homem se constituia limitando o histórico (lembrança) em prol do a-histórico (esquecimento). Concomitantemente, não deveria afundar-se nesse ahistórico, de modo a não restringir, opor-se à ação. Portanto, esses processos precisariam estar atrelados, constituindo um duplo movimento, que primasse pelo equilíbrio: o sentido histórico (lembrar) sendo tão necessário quanto o a-histórico (esquecer). Lembrar e esquecer seriam, então, o mesmo movimento, não havendo um sem o outro.6 O equilíbrio parece, portanto, a chave para o pensamento e ação humanas. Desse modo, nos legou uma importante lição sobre o equilíbrio entre memória e esquecimento, pois, para ele, uma função plausível para a história seria a de uma representação do passado. Isso estaria relacionado a configuração de uma identidade histórica, a partir da qual 2 CASTRO, Patrícia Fernandes Viana Franco. O cavaleiro perfeito: da construção idealizada na Idade Média à revisitada na Pós-Modernidade. Monografia de conclusão de curso em História. Rio de Janeiro: UFRJ, Departamento de História, 2013, pp. 12-13. 3 NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2003. 4 Ele falava aos que usavam a História como instrumento de construção e ratificação de nacionalismos. 5 CASTRO, op. cit. p. 23. 6 Ibidem, pp. 24-26. 10 poderiam ser orientadas as ações de grupos apelando ao passado em uma corrida pela memória para a composição de sua identidade atual.7 Igualmente para o filósofo alemão de origem judaica Walter Benjamin8, o conceito de tempo progressivo parecia inadequado. Produzindo no entre-guerras, ele notou que as experiências não eram mais comunicáveis, transmissíveis, evidenciando o fim da tradição, da herança do passado.9 Assim como para Nietzsche, para Benjamin, não ter as referências tradicionais representava um novo começo, no qual a experiência precisaria ser construída de outra maneira, repensada por outras bases. O presente seria, então, diferente, novo, dado por sua relação própria e com um passado outro (não apenas o já dado), quebrando o contínuo histórico.10 O fim da tradição (e não do passado) motivaria a criação de novas experiências e novas modos de se relacionar com o passado. Por conseguinte, contemplando-o de outra forma, enquanto descontinuidade, nos seria revelado um espaço de ação no presente, possibilitando, assim, a contrução de um novo futuro (não o previamente dado). A também filósofa, judia e alemã Hannah Arendt pensava o sentido do tempo questionando sua herança para, então, começar algo diferente, tendo em vista que, com a modernidade, dilacerou-se a continuidade do passado. Assim, sem a tradição que estruturava o passado, deixava de haver iluminação também para o futuro. Esse é o significado da crise da experiência: quando ela já não faz sentido e o passado já não esclarece nada sobre o presente ou o futuro.11 Como esclarece Bauman, no clássico Modernidade Líquida: Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado de constante transgressão (...) também significa ter uma identidade que só pode existir como projeto não realizado. Duas características, no entanto, fazem nossa situação – nossa forma de modernidade – nova e diferente. A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um estado de perfeição a ser atingido amanhã (...). 7 Ibidem, p. 27. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas; v. 1). Rio de Janeiro: Editora brasiliense, s/d. 9 CASTRO, op. cit, p. 17. 10 Ibidem, p. 20. 11 Ibidem, p. 21. 8 11 A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energia individuais e deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. 12 Os pensadores vislumbravam esse passado em ruínas sob a ótica de novas possibilidades, permitindo uma reconstituição a partir desses destroços deixados pela ação do homem no tempo. Portanto, o fim da tradição não significava o fim do passado, mas o fim da organização prévia de como entendíamos o passado.13 Nessas circunstâncias está inserida a compreensão de um outro alemão, o historiador Reinhart Koselleck14, de reciprocidade entre experiência e expectativa. Ela é observada sob a perspectiva de relação integrada espaço-tempo-experiência, que precisa ser historicizada. “Assim, quanto maior nosso espaço de experiência, menor nosso horizonte de expectativa; ao passo que, quanto menor nosso espaço de experiência, maior nosso horizonte de expectativa.”15 Nas sociedades tradicionais, havia maior espaço de experiência e menor horizonte de expectativa, pois não era possível entender o futuro como novo porque o status social/ as relações sociais eram muito estáticas; havia um ritmo temporal comum, sem grande diferença de ação entre o passado e o presente. Já na modernidade, as relações sociais se aceleraram, o tempo se acelerou e o passado deixou de ser experiência. O espaço de experiência encolheu, com o futuro se tornando imprevisível; nascia a era do “novo”. 16 Desse modo, ainda que cada um discorresse de seu pequeno pedaço no palco da história, os intelectuais fizeram um movimento similar ao procurar avaliar a passagem para o conceito moderno de História. Suas reflexões foram instigadas, especialmente, pela análise do efeito mais aparente de tal processo: a sensação de orfandade em relação a uma tradição que não mais sistematizava ou significava o passado, deixando aos homens um passado sem herança. Nesse sentido, o epílogo que suas obras deixam para a humanidade é a responsabilidade de dedicar-se a constituição de uma nova experiência com base nas ruínas do passado. Dessa forma, o presente estudo se insere em um projeto de busca pela compreensão de como se dão as releituras, reinterpretações e relações nesse movimento de, na falta de um melhor termo, 12 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, pp. 37-38. CASTRO, op. cit., p. 21. 14 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 15 CASTRO, op. cit., pp. 30-31. 16 Ibidem, p. 31. 13 12 negociação, entre estruturas passadas e presentes na tentativa de encontrar novos sentidos que se adequem às necessidades atuais e (com alguma sorte) futuras de definição de identidades (coletivas ou individuais). É justamente isso que buscamos entender: como, nessa situação de orfandade na qual o homem se encontra na pós-modernidade, sem poder contar a fundo com as experiências do passado e temendo as expectativas do futuro, ele recorre ao passado, mas com ponderações, fazendo reinterpretações de categorias sociais que, muitas vezes, destoam da compreensão que o próprio passado tinha delas.17 Seguindo essa perspectiva, nos parece necessária uma investigação sobre a utilização e ressignificação de um poema antigo na produção de um filme contemporâneo. Assim, propomos uma análise semiótica do filme Mulan (Disney, 1998), inspirado no poema Ballad of Mulan, buscando avaliar em que medida esse resgate memorialístico por produtos midiáticos pode caber em uma demanda identitária contemporânea e como a jornada de autodescobrimento do herói (no caso, heroina) na narrativa pode contribuir para a mesma. Produtos midiáticos e memória coletiva Conforme Ana Paula Ribeiro, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, destaca ao final de seu artigo para o livro Mídia e Poder, o nó que ata História e Jornalismo é mais firme do que gostaríamos de admitir. Portanto, acreditamos que, quase da mesma forma que o historiador, o jornalista também possui uma obrigação de respeitar os traços da memória coletiva que se inserem nas atividades que realiza no cumprimento da profissão. Os vínculos entre jornalismo e passado são, entretanto, bem mais estreitos do que podem parecer à primeira vista. A formalização e o registro da memória social, mesmo não sendo a função primeira do jornalismo, acaba sendo sua função secundária, uma espécie de efeito colateral extremamente importante, inclusive no próprio processo de legitimição de sua função “principal”. Os jornalistas percebem a dimensão memorialista de sua prática e a utilizam para fundamentar seus valores, para justificar sua deontologia.18 Por essa razão, acreditamos na profunda relevância da análise de produtos midiáticos (abarcando o campo da Comunicação como um todo e, não apenas, o estritamente “jornalístico”, 17 Ibidem, pp. 31-32. RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Os meios de comunicação e as políticas de memória e esquecimento. In: COUTINHO, Eduardo Granja; FREIRE FILHO, João e PAIVA, Raquel (Orgs.). Mídia e Poder: ideologia, discurso e subjetividade. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008, p. 203. 18 13 informativo) em sua relação com o passado. Esses elementos constituem um entremeio de memória e esquecimento que culminam com a construção ou destruição de identidades coletivas e individuais. Desse modo, é necessário resgatar as implicações éticas do fazer comunicacional, uma vez que o grande simulacro de autoridade que reveste os meios e veículos midiáticos contribui para diversos processos sociais de legitimação. Assim, “entender os processos de legitimação dos meios de comunicação e sua relação com as políticas da memória e do esquecimento é fundamental para entender o lugar que a mídia ocupa na sociedade hoje e exige, com urgência, o desenvolvimento de estudos mais aprofundados.”19 Além disso, conforme as contribuições de Guy Débord para o modo de pensar a sociedade, a produção midiática, em suas mais diversas configurações (informativa, publicitária, de entretenimento)20 faz parte de uma lógica do espetáculo, a qual está presente desde os mecanismos de produção desses artigos até seu consumo. Sob todas as formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha.21 Complementarmente, nossas reflexões buscam as análises de Baudrillard sobre o que convencionou denominar “Sociedade do Consumo”. Para o autor, esta se configura, entre outros fatores, na inversão da relação temporal entre os seres e os objetos, pois, ao contrário do que ocorria nas sociedades tradicionais, as pessoas inseridas nessa estruturação social marcada pelas relações consumistas não vêem a sobrevivência das coisas, mas sua sucessão permanente. Por isso, segundo ele, vivemos o tempo dos objetos... Vivemos o tempo dos objetos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sucessão permanente. Atualmente, somos nós que os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as civilizações anteriores eram os objetos, instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas. 22 19 RIBEIRO, ibidem, p. 203. À parte o fato de que essas esferas se interconectam e se complementam. RAMONET, Ignacio. O poder midiático. IN: MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2010, pp. 246-247. 21 DÉBORD. Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, tese 6, pp.14-15. 22 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1975, p. 16. 20 14 Por conseguinte, seguimos os argumentos de Baudrillard que, com base na compreensão de uma lógica da “Sociedade de Consumo”, esclarece que o processo de consumo pode ser verificado enquanto significação e comunicação, com suas práticas configurando-se como um código, quase uma linguagem, que revela, então, sentidos. E, ainda dentro desse pensamento, exprime que o consumo pode ser observado, igualmente, sob a perspectiva de classificação e diferenciação social, a partir da qual os objetos ultrapassariam o papel de demarcadores de um código, resgatando, também, valores fundamentais, que escorreriam para esferas sociais complexas, tais como o saber e a cultura. O processo de consumo pode ser analisado (...) sob dois aspectos fundamentais: 1.Como processo de significação e de comunicação, baseado num código em que as práticas de consumo vêm inserir-se e assumir o respectivo sentido. O consumo revela-se aqui como sistema de permuta e equivalente de uma linguagem, sendo abordado nesse nível pela análise estrutural. (...) 2.Como processo de classificação e de diferenciação social, em que os objetos/ sinais se ordenam, não só como diferenças significativas no interior de um código mas como valores estatutários no seio de uma hierarquia. Nesta acepção, o consumo pode ser objeto de análise estratégica que determina o seu peso específico na distribuição dos valores estatutários (com a implicação de outros significantes sociais: saber, poder, cultura, etc.).23 Inseridos na sociedade chamada de consumo, do espetáculo, ou, como expresso pelo filósofo americano Douglas Kellner, em uma Cultura da Mídia, os produtos midiáticos são mais um ator na longa obra que fala sobre a desintegração da tradição e os movimentos pelo preenchimento do vazio por ela deixado.24 Na verdade, eles se comportam como mais um autorator da dissolução da força das tradições e das grandes ideologias e suas consequências. Assim, é importante reconsiderar e refletir sobre as mensagens midiáticas, pois elas podem funcionar como orientação de certas maneiras de pensar e estímulo de determinados modos de se comportar.25 Como apresenta Kellner, no contexto de uma cultura de consumo e midiática, os referidos produtos midiáticos podem, mesmo, participar da constituição da identidade: Nas sociedades de consumo e de predomínio da mídia, surgidas depois da Segunda Guerra Mundial, a identidade tem sido cada vez mais vinculada ao modo de ser, à produção de uma imagem, à aparência pessoal. É como se cada um tivesse de ter um jeito, um estilo e uma imagem 23 Ibidem., p. 83. CASTRO, Patrícia Fernandes Viana Franco. Comportamentos de consumo da ‘Geração Z’ e seu papel na construção da identidade hipermoderna: a identidade da marca Converse All Star. Monografia de conclusão de curso em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Niterói: UFF, Departamento de Comunicação Social, 2013, p. 13. 25 CASTRO, ibidem, p.13. 24 15 particulares para ter identidade, embora, paradoxalmente, muitos dos modelos de estilo e aparência provenham da cultura de consumo; portanto, na sociedade de consumo atual, a criação da individualidade passa por grande mediação.26 Identidade repensada midiaticamente As análises deste trabalho estão ambientadas, assim, nas relações memória-esquecimento e consumo-espetáculo, que são perpassadas e que perpassam os produtos midiáticos. Conjuntamente, observa-se a adequação ao presente estudo de análises originalmente concebidas para tratar das imbricações sócio-temporais com que se depara o historiador ao buscar compreender os olhares que uma sociedade lança sobre si mesma, bem como os que suas sucessoras lançam sobre ela. Nesse sentido, as reflexões de Chartier27 funcionam como um farol, guiando o pensamento sobre o resgate midiático de um narrativa culturalmentre importante (isto é, a reconfiguração do poema Ballad of Mulan no filme da Disney) ao articular modalidades de relação com o mundo social a partir da “noção de representação coletiva”: grupos sociais construindo múltiplas realidades; práticas sociais demarcando uma significação simbólica, uma identidade; institucionalização de uma comunidade. Este retorno a Marcel Mauss e Emile Durkheim e à noção de “representação coletiva” autoriza a articular, sem dúvida melhor que o conceito de mentalidade, três modalidades de relação com o mundo social: de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais “representantes” (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe. 28 Buscando usufruir do extenso leque teórico e conceitual possibilitado pela interdisciplinaridade, este estudo se enquadra na perspectiva dos Estudos Culturais, ponto de convergência (e integração) entre diversas disciplinas, objetivando a investigação de questões culturais da sociedade contemporânea. Além dos benefícios teórico-metodológicos, esse campo traz, ainda, a valiosa compreensão de que cultura, poder e sociedade estão intrinsecamente 26 KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pósmoderno. Bauru: EDUSC, 2001, p. 297. 27 CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. In: Estudos Avançados 11(5), 1991. 28 Ibidem, p. 183. 16 relacionados, o que amplia o horizonte da pesquisa comunicacional, ao abranger objetos relativos às culturas ditas populares, aos meios de comunicação e às temáticas identitárias a eles vinculadas. Os Estudos Culturais não configuram uma “disciplina”, mas (...) um campo de estudos em que diversas disciplinas se interseccionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea, constituindo um trabalho historicamente determinado. (...) A multiplicidade de objetos de investigação também caracteriza os Estudos Culturais. Isto resulta da convicção de que é impossível abstrair a análise da cultura das relações de poder e das estratégias de mudança social. [Assim,] faz com que, de forma geral e abrangente, o terreno de sua investigação circunscreva-se aos temas vinculados às culturas populares e aos meios de comunicação e massa e, posteriormente, a temáticas relacionadas com as identidades (...).29 A proposta dos Estudos Culturais se desenvolve, portanto, para avaliações sobre a fragmentação das identidades intensificada, sobretudo, pela marcha da globalização. Nessas circunstâncias, os aportes de pesquisadores como Stuart Hall30 tendem para a ponderação sobre a composição de novas identidades para ocupar o lugar deixado pelos ídolos caídos e por instituições esvaziadas. A partir dos anos 80, (...) nota-se a expansão do projeto dos Estudos Culturais (...), principalmente, de uma observação sobre a desestabilização das identidades sociais, ocasionada, sobretudo, pela aceleração do processo de globalização. O foco central passa a ser a reflexão sobre as novas condições de constituição das identidades sociais e sua recomposição numa época em que as solidariedades tradicionais estão debilitadas. Enfim, trata-se de uma ênfase à dimensão subjetiva e à pluralidade dos modos de vida vigentes em novos tempos (...).31 Esse contexto é apresentado, ainda, por Bauman32, que resgata o discurso de fragmentação e seu impacto na configuração da identidade, traços característicos da modernidade fluida: Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência: todas as coisas parecem - para nosso desespero eterno - faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absolver. Mas as identidades, 29 ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os estudos culturais. In: HOHLFELDT, A.; MARTINO, L. C.; FRANÇA, V. V. (orgs.) Teorias da comunicação conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 159-160. 30 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. 31 ESCOSTEGUY, op.cit., p. 164. 32 BAUMAN, op. cit. 17 que não tornam o fluxo mais lento e muito menos o detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se. Então há necessidade de outra tentativa, e mais outra - e isso só é possível se nos aferrarmos desesperadamente a coisas sólidas e tangíveis e, portanto, que prometam ser duradouras, façam ou não parte de um conjunto, e dêem ou não razões para que esperemos que permaneçam juntas depois que as juntamos. Nas palavras de Deleuze e Guattari, “o desejo constantemente une o fluxo contínuo e objetos parciais que são por natureza fragmentários e fragmentados.”33 Em vista disso, parece essencial ressaltar as considerações de Ribeiro34, de que há uma crescente “indústria da memória”. A pesquisadora avalia que o passado tem se tornado gradativamente rentável para os campos da comunicação, como o jornalismo e o entretenimento e se questiona sobre esse resgate público do memorialístico. Ela assume, então, a posição de uma cultura da mídia concomitantemente amnésica e mneumônica, em um duplo (e imbricado) movimento de esquecimento e lembrança, que se insere na perspectiva das reações à chamada aceleração da história. Ou, como já observado em Koselleck, o encurtamento do espaço de experiência, que se reflete no alargamento do horizonte de expectativa. Dessa maneira, a autora utiliza as reflexões do historiador Pierre Nora para explicar o processo: Para Pierre Nora (1984), a obsessão pela memória não é nova e está relacionada à amplitude das mudanças do mundo que nos cerca – a chamada aceleração da história. Desde o início da modernidade, o presente se tornou cada vez mais volátil. A consequência mais imediata desse fenômeno seria a perda dos quadros de referência que no passado teriam fornecido aos indivíduos sólidas localizações no mundo social. Devido a isso, há a necessidade de se criarem em profusão “santuários de memória”. As pessoas precisam lembrar para se protegerem contra a obsolescência do mundo e combaterem sua ansiedade pela velocidade das transformações. 35 Por isso, argumenta Ribeiro, é indispensável o combate ao esquecimento, seguindo uma vontade de memória que busca pluralizar os lugares de rememoração em uma tentativa de fincar estacas no maleável terreno da mudança por que passa o mundo. Portanto, a “memória é cada vez mais necessária, porque as mudanças sociais aceleradas e as identidades cambiantes resultam numa sensação de insegurança e angústia.”36 33 Ibidem, pp. 97-98. RIBEIRO, op. cit. 35 Ibidem, p. 199. 36 Ibidem, p. 200. 34 18 A autora resgata, ademais, a crítica feita por Huyssen de que a memória não deve ser observada apenas sob uma lógica da reparação, razão pela qual ele se opõe ao enunciado de desorientação e acata a noção de uma alteração nos condições de assimilação do afeto, da percepção e da experiência. Contudo, esse posicionamento censurador (quase) se justifica, quando são analisadas as concepções espetacularizadoras que regem a sociedade contemporânea, tornando necessária a relativização de qualquer imperativo absoluto no campo midiático. É necessário lembrar que, na contemporaneidade, a própria memória se espetaculariza e se torna objeto da sociedade de consumo. A tese da compensação deve ser relativizada porque, afinal, a própria indústria da memória desestabiliza o senso seguro do passado e a musealização é sugada pelo veloz redemoinho de imagens, espetáculos e eventos. É difícil imaginar lugares que sejam capazes de garantir a estabilidade cultural a longo prazo.37 Ribeiro denota a importância (e a possibilidade) de encontrar um ponto médio entre os argumentos polarizados de Nora e Huyssen. Ela declara, assim, que narrativas midiáticas podem reproduzir experiências. Mais profundamente, explicita que há uma vinculação ao contexto e às estratégias de representação, assim como aos emprego da memória. Dizer que as práticas mnemônicas da contemporaneidade são marcadas pela mercantilização e espetacularização, afirmar a impossibilidade de construção de lugares que funcionariam como oásis em meio à fragmentação e instabilidade, não significa, no entanto, acreditar que inevitavelmente todas as práticas de memória contemporâneas banalizem o passado. Não se está afirmando, de forma alguma, que é impossível, no âmbito da cultura da mídia, a constituição de narrativas que reproduzam de forma profunda as experiências vividas. Tudo depende do contexto e das estratégias específicas de representação mobilizadas e dos usos específicos que se fazem da memória.38 Da mesma forma, nos parece importante não refutar completamente nem uma tese, nem outra. Nora tem seu mérito ao avaliar as circunstâncias, iniciadas na modernidade e, posteriormente, acentuadas, de aceleração da história e fluidez das identidades, que permitem a ebulição de produtos midiáticos “resgatantes” de certezas passadas como forma de combater ou, ao menos, sobreviver à liquidez dos tempos atuais. Da mesma forma, Huyssen traz um aspecto importante, que não pode ser apagado: a observação de uma reformulação das estruturas gerais de percepção e expressão. 37 38 Ibidem, p. 200. Ibidem, p. 200. 19 O presente não é um acontecimento ordinário, ele é espetacular. E a lógica do consumo perfaz as mais profundas camadas de interação social. Gostemos ou não, somos parte da Cultura da Mídia e ela é parte de nós. Por isso, a insistência na relação memória-identidade mediada pelos artigos midiáticos: Acreditamos que o tema da memória é de extrema relevância para os estudos da comunicação [pois] a mídia exerce um papel crucial na constituição da memória social na contemporaneidade. [Além disso,] a memória ocupa um lugar central na cultura contemporânea; é uma dimensão fundamental na constituição dos sujeitos e de suas identidades.39 39 Ibidem, p. 201. 20 CAPÍTULO 2 - EU E O OUTRO: ANALISANDO MULAN O interesse pelo objeto de pesquisa foi intensificado com a descoberta de que Mulan, uma animação musical produzida pela Walt Disney Feature Animation em 1998, se inspirou no poema Ballad of Mulan. A obra literária original data do século VII e traz valores que contribuem para moldar a cultura chinesa há gerações. Por essa razão, pretendemos analisar o filme Mulan (Disney, 1998) a partir do quadrado semiótico (Alteridade vs. Identidade). Seguindo a lógica expressa por Bauman de que “Não há afirmação que não seja autoafirmação, nem identidade que não seja construída.”40, propomos o desenho de um programa narrativo em teia, cujo principal Programa Narrativo (a partir de agora, PN) é aquele em que Mulan reveste o actante sujeito e cujo objeto valor é a construção de sua identidade. Para tal, serão utilizados, ainda, os recobrimentos temático-figurativos dos principais atores discursivos da história, avaliando-se seus próprios PN’s, isto é quando cada um recobre o actante narrativo sujeito. Nossa hipótese inicial era a de que Mulan obtinha sua identidade pela alteridade, isto é, que, em oposição aos demais atores discursivos, a jovem contruía o seu eu. Contudo, ela foi reformulada de modo que, com base na inter-relação entre os atores que recobrem os sujeitos, tencionamos exprimir que a construção da identidade de Mulan se dá por um jogo de identificação e alteridade em relação tanto ao modelo de jovem chinesa quanto aos demais atores com os quais ela lida ao longo da maior parte da narrativa (guerra). Assim, na análise do filme Mulan buscamos demonstrar a simbiose entre aspectos femininos e masculinos na configuração de seu eu. Em uma análise paralela, a composição do objeto valor de Mulan (construção de sua identidade) é mais expressivo no filme do que no poema original. Isso se deve ao fiasco na casamenteira, quando deveria se portar como uma jovem chinesa modelo, destinando a jovem a buscar um lugar para si, tendo em vista que não havia espaço para ela na categoria social de noiva modelo. É por essa razão que, ao longo da narrativa cinematográfica, o espectador é guiado para um ponto além da “iluminação”, do encontro de um importante elemento que se havia perdido, a 40 BAUMAN, op. cit., p. 205. 21 própria formação de Mulan, em sua versão mais madura e segura. Portanto, mais do que buscar sua identidade, Mulan a constrói ao longo da narrativa. Optamos por trabalhar com o filme no idioma original e não com a tradução em português, pois o primeiro se mantém muito mais fiel à temática identitária, subjetiva do que o segundo. A tradução se centra, em muitos momentos, no amor romântico, como podemos notar em uma breve análise comparativa entre os refrões das músicas “True to your heart” e de sua versão brasileira, “O Seu Coração”41. Original Seja verdadeiro com o seu coração Você deve ser verdadeiro com o seu coração É quando o paraíso vai se abrir E mostrar ao mundo Aquilo em que você acredita Abra os seus olhos O seu coração não pode te dizer mentiras E quando você é verdadeiro com o seu coração Então você tem tudo o que precisa Para superar42 (tradução livre) Versão brasileira Seu coração, escute o seu coração Não fuja dessa paixão Porque o amor não tem limites Veja então que só o seu coração Irá mostrar a você a estrada que vai te levar a mim 2.1.O poema Ballad of Mulan é um poema tradicional chinês que narra a história de Hua Mulan. Essa jovem é uma figura lendária da China antiga que teria se disfarçado de homem para assumir o lugar de seu pai no exército durante a luta contra invasores nômades. Não há definição consensual do contexto histórico de Hua Mulan, que varia desde a Dinastia Wei do Norte (386-536) até a Dinastia Tang (618-907). A coleção de cantos do século VII se perdeu, mas, preserva-se uma versão posterior, compilada entre os séculos XII e XIII em uma antologia de poemas líricos e baladas chinesas tradicionais. Há séculos é discutido se Hua Mulan foi uma personagem histórica ou criação fictícia. Entretanto, até os dias atuais ainda não foram encontradas evidências que possibilitem determinar a base (histórica ou não) do poema. 41 O seu coração In: Mulan, Disney, 1998. Disponível em: http://letraclub.com/disney/mulan-o-seu-coracao.html. Mulan, Disney, 1998: “Be true to your heart/ You must be true to your heart/ That’s when the heavens will part/ And show the world/ What you believe in/ Open your eyes/ Your heart can tell you no lies/ And when you’re true to your heart/ Then you’ve got all you need/ To make it through”. 42 22 Na balada, a jovem é apresentada dentro dos preceitos femininos (tecendo em silêncio e sem contestações de qualquer natureza). Contudo, ao saber da convocação militar de seu pai, Mulan pondera que ele não tem um filho adulto para substituí-lo e seu amor filial a impulsiona a comprar equipamento militar e se despedir de sua família. Assim, ela vai à guerra disfarçada como um homem e luta no Exército Chinês sem ser descoberta por muitos anos. Em seu retorno, são distribuídos méritos e recompensas e o Khan (Imperador) lhe pergunta ao que almeja, ao que ela responde que um alto posto oficial não teria nenhuma utilidade para ela, pois tudo o que deseja é um cavalo rápido o bastante que a leve de volta para casa. Chegando a seu lar, Mulan reencontra sua família e reincorpora os estereótipos femininos de sua identidade anterior à guerra. Então, ocorre o grande momento tensivo do poema: seus companheiros de guerra, que a esperavam do lado de fora de sua casa, se chocam ao descobrir que, por tantos anos, ela havia personificado um soldado. Eles não sabiam, mas Mulan era, na realidade, uma mulher. Uma mulher que havia vivido com as vestes de sua alteridade. Assim, o poema termina em quatro estrofes bem ambientadas na filosofia chinesa. Metaforicamente, apresenta que, mesmo com diferenças de identidade fundamentais, em uma situação de pareamento (como aquela do serviço militar), identidade e alteridade se confundem e se torna difícil discernir personalidades. Os pés do coelho macho chutam para cima e para baixo, Os olhos do coelho fêmea estão aturdidos. Dois coelhos correndo no chão, Como podem dizer se eu sou homem ou mulher 43 (tradução livre) 2.2.O filme Mulan foi a primeira das três animações produzidas nos estúdios Disney-MGM em Orlando, Flórida, é o trigésimo sexto filme de animação da Disney e faz parte da era renascentista44 dos estúdios. Dirigido por Tony Bancroft e Barry Cook, ganhou o sétimo lugar no 43 Ballad of Mulan: “The male rabbit's feet kick up and down,/ The female rabbit's eyes are bewildered./ Two rabbits running close to the ground,/ How can they tell if I am male or female?” 44 No mundo Disney, a década entre 1989 e 1999 é conhecida como Disney Renaissance, período em que o Walt Disney Feature Animation, posteriormente renomeado Walt Disney Animation Studios (2006), produziu animações de grande sucesso (em seus lançamentos e em toda a história da empresa). Trata-se da produção e lançamento de 23 ano de seu lançamento em um ranking de filmes mais vistos em todo o mundo e o segundo lugar entre as animações. Foi originalmente planejado para ser um curta de animação chamado China Doll, sobre uma menina chinesa muito pobre que encontra a felicidade ao ser levada para o Ocidente por um príncipe encantado inglês. Contudo, Robert San Souci, consultor Disney e escritor de histórias infantis sugeriu reformular o projeto, combinando-o a uma história inspirada no poema chinês que conta a história de Mulan. Desse modo, foi criada a personagem Disney Fa Mulan, cujo nome Fa é a pronúncia cantonesa para o mandarim Hua do poema original. Assim, uma equipe da Disney foi enviada para a China por três semanas para uma imersão cultural, na qual fotografaram e desenharam marcos locais para inspiração. O projeto levou quase cinco anos para ser completado, envolvendo uma equipe de, aproximadamente, 700 pessoas. Com um orçamento estimado em 70 milhões de dólares, Mulan foi um sucesso de bilheteria, arrecadando mais de 300 milhões de dólares somente nos cinemas. Entre Oscar, Globo de Ouro, prêmios locais e internacionais, o filme recebeu vinte nominações. Venceu dezesseis, especialmente nas categorias de Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original. O longa foi lançado originalmente em junho de 1998 (EUA), vindo para o Brasil no mês seguinte. Curiosamente, cerca de um ano após sua estreia nas telonas, foi uma das últimas edições em VHS, como parte das coleções: Walt Disney Masterpiece Collection e Walt Disney Gold Classic Collection. E, em abril de 2013, pela primeira vez em Disney Blu-ray, Mulan foi apresentado em conjunto com sua sequência, Mulan II: A Lenda Continua. A história do filme Mulan se passa durante a dinastia Han. O pontapé inicial é a invasão da China Imperial por um grupo de hunos, uma vez que seu líder, o vilão Shan-Yu, se sente insultado pela construção da Grande Muralha da China, cujo objetivo era proteger o Império de invasores. Ao ser comunicado de tais acontecimentos, o Imperador chinês dá as ordens para a convocação de um homem de cada família para servir ao exército imperial, visando expulsar os invasores antes que alcancem a capital, causando destruição material e perda da vidas civis. The Little Mermaid (1989), The Rescuers Down Under (1990), Beauty and the Beast (1991), Aladdin (1992), The Lion King (1994), Pocahontas (1995), The Hunchback of Notre Dame (1996), Hercules (1997), Mulan (1998) e Tarzan (1999). Baseadas em histórias bem conhecidas, as produções fazem parte de um boom criativo que resultou na restauração do interesse pela The Walt Disney Company. 24 Então, quando há a convocação geral de guerreiros para conter a invasão huna, a história começa, de fato, para a personagem principal. Fa Mulan é filha de um guerreiro cuja saúde está fragilizada pela idade (Fa Zhou), o que a impele a se passar por um homem, tomando emprestadas armadura e espada para tomar o lugar de seu pai na guerra e impedir sua morte nos campos de batalha. Entretanto, caso seu segredo seja descoberto, ela será levada a morte por desrespeitar os valores tradicionais e, consequentemente, desonrará toda a sua linhagem. Assim, a fim de resolver tal dilema e para se enquadrar na “magia Disney”, a animação apresenta uma reunião extraordinária dos ancestrais da família Fa, para discutir as escolhas e atitudes de Mulan e como elas impactarão no “nome” da família. Como resultado das deliberações, fica decidido o envio do “Grande Dragão de Pedra” como guardião da jovem. Seu objetivo é trazê-la para casa sã e salva, sem que sua verdadeira identidade seja conhecida pelos demais membros do Exército Imperial. Contudo, o responsável por acordar o Grande Dragão, o adorável dragãozinho Mushu, consegue a proeza de estragar a simples tarefa de soar o gongo e acaba por quebrar a estátua a qual deveria despertar. Desse modo, as esperanças de uma ajuda divina para Mulan caem por terra até que, em um diálogo (que mais parece um monólogo) com o grilo da sorte, Cri-Kee, Mushu decidi tentar a sorte como guardião da jovem, com esperança de que, ao ser bem sucedido em sua missão, escapará da ira dos ancestrais e se tornará um guardião definitivo da família Fa. A personagem Mulan é apresentada como uma jovem corajosa que, apesar de ter desrespeitado as regras de toda a sociedade e mentido para seus “superiores” (os homens em geral e, mais especificamente, seu pai, seu capitão e o imperador), usando a astúcia e a inteligência, consegue “fazer a diferença” na expulsão dos invasores hunos pelo exército imperial chinês. 45 No universo “mágico” dos estúdios, Mulan é considerada uma Princesa Disney, ainda que não seja real por nascimento ou casamento. Assim, faz parte de uma “subfranquia” de grande sucesso da mega empresa que a criou, posando como garota propaganda de diversos produtos e servindo de modelo físico e psicológico para crianças em todo o mundo.46 45 Sinopse do filme no IMDB: “To save her father from death in the army, a young maiden secretly goes in his place and becomes one of China's greatest heroines in the process.” 46 Loja online ‘Princesas Disney’. 25 A recepção da animação foi, em sua maior parte, positiva. Segundo o site IMDB47, recebeu, uma média de 7 a 8 pontos em uma base de 10 e os comentários dos espectadores se concentram, especialmente, na exploração dos temas de dever familiar e honra. Os temas abrem, portanto, novas possibilidades para filmes da Disney, sem perder, contudo, as características mais estabelecidas nas produções dos estúdios, isto é, animações vibrantes e personagens joviais. Por outro lado, as críticas negativas apontam para uma simplificação de aspectos da cultura chinesa... Os estúdios utilizaram a “magia Disney” para recontar a história de Mulan. Assim, ela foi transformada em um desenho animado musical, que ainda garantiu à personagem principal a ajuda de seus ancestrais e de seres místicos para completar suas tarefas ao longo da narrativa. Entretanto, parte da licença poética, ainda que cuidadosamente trabalhadas, as reinterpretações de aspectos culturais e sociais geraram certo desconforto entre o público chinês. Associadas ao difícil relacionamento entre os estúdios e o governo chinês, as “liberdades” tomadas na confecção da animação constituíram uma Mulan muito “ocidentalizada”, de difícil reconhecimento para aqueles familiarizados com a história original, o poema. Assim, apesar de ser uma das mais bem sucedidas produções Disney em todo o mundo, Mulan foi recebida de forma pouco calorosa em sua terra natal.48 Além disso, alguns críticos resgatam a expressão de um diálogo feminista na obra. Nesse ponto, há uma divisão de opiniões. As declarações favoráveis observam a ampliação de horizontes no universo das Princesas Disney, pois, dessa vez, a princesa salva o príncipe. Enquanto isso, as demais apontam que Mulan precisou se tornar um homem para alcançar seus feitos. 49 Nesse sentido, a produtora Pam Coats argumenta que o filme objetiva apresentar uma personagem que exiba fortes influências físicas e mentais tanto masculinas quanto femininas. Isso é notável em uma das últimas cenas da animação, quando, enquanto os homens usam a força bruta, Mulan usa a inteligência para salvar o Imperador. Ela mostra, assim, que a astúcia é tão valorável quanto os músculos e que as mulheres podem ajudar tanto quanto os homens. Segundo a descrição do site brasileiro da Disney... 47 IMDB – user ratings. Críticas do filme nas publicações The Baltimore Sun, BBC News e Slant Magazine. 49 Who’s Your Heroine? In: PopPolitics e Mulan: ideias feministas e ênfase no machismo In: Blogueiras Feministas. 48 26 Mulan, uma garota rebelde e diferente das outras meninas dessa sociedade tão tradicional, descobre que seu pai, já ancião, é convocado a se alistar no exército para defender a China dos terríveis invasores Hunos! Em uma ato de valentia e generosidade, Mulan se disfarça de homem e toma o lugar do pai no Exército Imperial. Uma antiga lenda chinesa magicamente se transforma em uma aventura inesquecível, repleta de emoção, heroísmo e humor (...). 27 CAPÍTULO 3 - TORNANDO-SE MULAN... Como anteriormente explicitado, utilizamos as ricas ferramentas da semiótica greimasiana para analisar algumas personagens (atores discursivos) do filme (Mulan; Shang; em conjunto, Yao, Ling e Chien-Po; Mushu; Shan-Yu). Nos baseamos, assim, em algumas estruturas semionarrativas e discursivas dos componentes sintático e semântico do texto de Mulan, conforme esquematização de Fiorin50: Nível Fundamental (nível profundo) Componente Componente Sintático Semântico Sintaxe fundamental Semântica fundamental Sintaxe narrativa Semântica narrativa Estruturas Semionarrativas Nível Narrativo (nível intermediário) Sintaxe discursiva Estruturas Nível Discursivo [Actorialização, Discursivas (nível superficial) Temporalização, Espacialização] Semântica discursiva [Tematização, Figurativização] 3.1. Nível Fundamental O nível fundamental abriga categorias semânticas básicas contrárias entre si. Primeiro nível do percurso gerativo de sentido, exprime a camada base do texto, com representações binárias, que propõem a chegada a um tema a partir da negação de seu contraditório. 50 FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2013, p. 20. 28 No caso dos objetos analisados, que se concentram na personagem Mulan, há, nessa categoria de análise, a oposição semântica /alteridade/ versus /identidade/. A sintaxe do nível fundamental abrange a negação e a asserção, indicando que, dadas as categorias inversas /alteridade/ e /identidade/, podem nascer as relações [+ /alteridade/, - /alteridade/, + /identidade/] e [+ /identidade/, - /identidade/, + /alteridade/].51 Desse modo, infere-se que /não alteridade/ implica /identidade/ e /não identidade/ implica /alteridade/. Ao longo da narrativa cinematográfica, a /alteridade/ é afirmada quando Mulan aparece como o claro contra modelo da noiva chinesa perfeita e, após esse momento, com sua ida para o Exército Imperial e o confronto com os estereótipos masculinos representados pelos soldados. A essa apresentação do ideal masculino, segue a negação da /alteridade/, com cenas em que a protagonista não aprecia os comportamentos estereotipadamente masculinizados nem se reconhece neles. Finalmente, após suas conquistas militares, com o ganho do respeito de seus iguais militares, de seu comandante e mesmo do imperador, a personagem retorna para casa, para seu posto de filha. Aqui ocorre a afirmação da /identidade/, quando a heroína encontra um lugar confortável para si, ao mesmo tempo, refutando alguns elementos e bebendo de outros das duas identidades que lhe haviam sido apresentadas anteriormente (lidas por ela como alteridades), a de noiva e a de soldado. O termo /alteridade/ é o elemento semântico que, no texto, é considerado disfórico, enquanto a /identidade/ é vista como eufórica, ou seja, o primeiro tem um valor negativo, enquanto o segundo tem um valor positivo.52 3.2. Nível Narrativo O programa narrativo é a transformação de um sujeito em busca de um objeto-valor. Ele se dá no nível narrativo do Percurso Gerativo de Sentido, um “simulacro metodológico”, para análise do Plano de Conteúdo, que, articulado ao Plano de Expressão, forma o texto na Função Semiótica. Esta é uma evolução da expressão do signo de Saussure, que trabalhava, somente, com a oralidade. 51 52 Ibidem, p.23. Ibidem, p.19. 29 No caso de Mulan, observa-se a apresentação de enunciados de estado, que estabelecem relações de junção (disjunção ou conjunção) entre os sujeitos e seus objetos de valor, gerando narrativas de privação ou de aquisição. A narrativa central, do ator discursivo Mulan enquanto actante narrativo sujeito, é marcada por importantes momentos narrativos: fracasso na casamenteira (era o oposto do modelo feminino); ida à guerra (algo que uma mulher não fazia); contato com soldados (estereótipo do homem “másculo”); volta da guerra como uma heroína, com sua identidade definida (que difere das convenções sociais). A estrutura de uma narrativa engloba as fases de manipulação, competência, performance e sanção. Na primeira, o sujeito é manipulado pelo destinador ou manipulador, modalizado segundo um dever ou um querer, os quais, por sua vez, dividem-se em quatro esferas, esquematizadas a seguir: Positiva Querer Dever Negativa Tentação Intimidação (recompensa) (ameaça) Sedução Provocação (juízo positivo sobre a (juízo negativo sobre a competência do manipulado) competência do manipulado) Observamos, então, nos atores discursivos do filme Mulan aqui analisados, os diferentes tipos de manipulação. Elas podem, ainda, ser combinadas para destinar um mesmo sujeito a buscar conjunção ou disjunção com determinado objeto-valor. No caso da protagonista, Mulan, nota-se manipução pela provocação, isto é, há um juízo de valor negativo sobre a competência da jovem de ser uma noiva perfeita e honrar a sua família. Nesse caso, trata-se de seu fiasco na casamenteira, quando esta lhe diz “Você pode parecer uma noiva... Mas você nunca trará à sua família honra!”53 (tradução livre). Enquanto isso, para Mushu, há uma combinação de três tipos de manipulação. Primeiramente, ele é provocado com a fala do ancestral “Mushu, esses são os guardiões da 53 Mulan, Disney, 1998: “You may look like a bride... But you will never bring your family honor!” (0:11:17) 30 família...”54 (tradução livre), quando nota-se um juízo de valor negativo sobre sua competência como guardião da família. Em seguida, o dragãozinho encontra-se em uma situação de intimidação, sentindo-se ameaçado pelo destruição do Grande Dragão de Pedra: “Eles vão me matar.”55 (tradução livre). Finalmente, o pequeno tem uma espécie de “iluminação”, pois, somado ao seu já existente desejo de ser guardião, destina a si mesmo pela tentação, com a possibilidade de receber uma recompensa, ao imaginar “Eu farei de Mulan um herói de guerra e eles irão me implorar para voltar para o trabalho.”56 (tradução livre). Shang, por sua vez, é manipulado pela sedução. Um juízo de valor positivo sobre sua competência como líder das tropas lhe é oferecido por seu pai: “Eu acredito que Li Shang vai fazer um excelente trabalho.”57 (tradução livre). No caso das personagens Yao, Chien-Po e Ling, atenta-se para uma relação de complementaridade, pois cada um possui as características que faltam no outro (por exemplo, a calma de Chien-Po soma-se à raiva de Yao e a predisposição a novas amizades de Ling atrela-se a sisudez de Yao). Portanto, opta-se por analisar o conjunto das personagens, tendo em vista que são percebidos como unidade. Portanto, para o trio, verifica-se a combinação de três tipos de manipulação. A intimidação se apresenta quando há a convocação para guerra, pois “Por ordem do Imperador, um homem de cada família deve servir no Exército Imperial.”58 (tradução livre). A ameaça justifica-se uma vez que o não cumprimento dessa ordem imperial traria consequências nefastas, dentre as quais a desonra da família, um dos valores base na configuração daquela sociedade, segundo contextualização observada na própria obra cinematográfica. A seguir, identifica-se a sedução. Ela é autoimposta, pois Yao faz um juízo de valor positivo de si mesmo, acreditando que é capaz de realizar as tarefas do treinamento militar sem dificuldades: “E eu posso fazer isso sem tirar a camisa.”59 (tradução livre) (referência ao nosso difundido “sem suar”). 54 Mulan, Disney, 1998: “Mushu, these are the family guardians...” (0:21:14) Mulan, Disney, 1998: “Oh, man, they’re gonna kill me” (0:24:00) 56 Mulan, Disney, 1998: “I’ll make Mulan a war hero and they’ll beg me to come back to work.” (0:25:00) 57 Mulan, Disney, 1998: “I believe Li Shang will do an excellent job.”(0:31:49) 58 Mulan, Disney, 1998: “By order of the Emperor, one man from every family must serve in the Imperial army.” (0:14:43) 59 Mulan, Disney, 1998: “And I’ll do it with my shirt on.” (0:37:06) 55 31 Finalmente, há a tentação, com a possibilidade de uma recompensa sendo levantada por Ling em conversa com os demais, que dá origem a canção “A girl worth fighting for”60. Nela, ele assinala o apelo positivo da posição de guerreiro em um momento futuro, de busca por uma noiva, conforme aprecia-se nos versos selecionados: Minha garota vai se maravilhar com minha força Venerar minhas cicatrizes de batalha61 (tradução livre) Para Shan-Yu, o grande vilão dos chineses, segundo a história contada pela animação, a destinação das ações ocorre por outro tipo de manipulação, a provocação. Ele parece acreditar que o Imperador fez um juízo de valor negativo do manipulado, acreditando que a construção da muralha que impediria a entrada deste em terras chinesas seria aceita de bom grado. A Grande Muralha representa, portanto, uma afronta a Shan-Yu, conforme sua fala “Ao construir sua muralha, ele (Imperador) desafiou minha força.”62 (tradução livre). Voltando à estrutura canônica das narrativas, na segunda fase, a competência, o adjuvante ou o destinador modaliza o sujeito pela doação de um saber e/ou poder. Trata-se de saberes ou poderes adquiridos ao longo da narrativa, nas interações com cada uma das personagens. Após esse momento, constata-se a terceira fase, a performance, momento da transformação central. O sincretismo entre o sujeito operador da transformação e o sujeito que sofre conjunção ou disjunção com o objeto-valor em questão não é obrigatório. Eles podem ser representados pelo mesmo ator discursivo ou por atores distintos. Por fim, tem-se a sanção, nessa última fase da estrutura narrativa há a constatação da performance, com reconhecimento do sujeito responsável pela transformação e eventuais premiações e/ou punições. “É na fase da sanção que ocorrem as descobertas e as revelações. É, nesse ponto da narrativa, por exemplo, que os falsos heróis são desmascarados e os verdadeiros reconhecidos.”63 Nem sempre essas fases se apresentam dessa forma. Elas podem não estar explicitadas, fazendo parte da narrativa pressuposta a qualquer texto, na qual o enunciador destina o 60 Ver a letra completa em Anexos. Mulan, Disney, 1998: “My girl will marvel at my strength/ Adore my battle scars.” (0:48:09) 62 Mulan, Disney, 1998: “By building his wall, he challenged my strength.” (0:26:30) 63 FIORIN, op. cit. p. 31. 61 32 enunciatário a entrar em conjunção com os valores do texto. Além disso, há narrativas incompletas e aquelas que privilegiam uma ou outra fase. Compreende-se, então, que a sintaxe narrativa é formada pelo encadeamento de papéis narrativos, estes formam enunciados, os quais constituem sequências, e essas podem ser simples ou, dependendo de outras sequências para se realizar, complexas.64 “As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a história do homem em busca de valores ou à procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos.”65 3.2.1. A narrativa em teia de Mulan Trata-se de uma narrativa em teia, com actantes variando de acordo com os programas narrativos (sujeito em um, destinador em outro, adjuvante em um terceiro...). Os atores discursivos (figuras que recobrem semanticamente os actantes narrativos) também se deslocam na teia conforme os PNs vão acontecendo e redefinindo os actantes (funções narrativas). a) PN Mushu desejo de ser guardião Fiasco com outro membro da família Mushu resgatar o posto de guardião Mulan (Sujeito: Mushu; Objeto: resgatar o posto de guardião; Destinador: desejo de ser guardião; Antissujeito: fiasco com outro membro da família; Adjuvante: Mulan) Manipulado pelo desejo de ser guardião, o sujeito Mushu busca o objeto valor resgatar o posto de guardião, contando com o adjuvante Mulan para sobrepor o antissujeito fiasco com outro membro da família e entrar em conjunção. Mushu sofre certo grau de intimidação ao imaginar a sanção negativa que sofrerá pela destruição do Grande Dragão de Pedra, mas é destinado, prioritariamente, pelo desejo de ser guardião. Isso é mais expressivamente denotado quando, ao acordar, diz: 64 65 Ibidem, p. 36. BARROS, D. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Editora Ática, 2005, p.20. 33 Então, diga-me que mortal precisa de minha proteção, Grande Ancestral. (...) Qualquer um tolo o bastante para ameaçar nossa família, a vingança será minha!66 (tradução livre) Dessa forma, desejar um objeto-valor é o que manipula Mushu a buscar a conjunção com tal objeto, nesse caso, tornar-se guardião. Esse processo pode ser observado quando o dragãozinho expõe seus pensamentos para Mulan, após a descoberta pelos soldados de que Ping era, na verdade, a jovem: Eu estava perto assim. Perto assim de impressionar os ancestrais, conseguir a prateleira mais alta, [onde ficam os guardiões] um séquito.67 (tradução livre) Contudo, antes que possa entrar em conjunção com seu objeto-valor, Mushu deve sobrepor o antissujeito de seu antigo fiasco na posição de guardião. Esse episódio fez com que os ancestrais da família de Mulan não confiassem nele e o colocou em um cargo rebaixado, no qual apenas soava o gongo para acordar os ancestrais e um verdadeiro guardião, o Grande Dragão. É possível compreender o destino sombrio imposto ao mascote da animação na cena em que os ancestrais se dirigem a ele e dizem: Você teve sua chance de proteger a família Fa. Sua desorientação levou Fa Deng ao disastre.68 (tradução livre) 66 Mulan, Disney, 1998: “So, tell me what mortal needs my protection,/ Great Ancestor./ (…) Anybody who’s foolish enough to/ threaten our family,/ vengeance will be mine!” (0:20:58) 67 Mulan, Disney, 1998: “I was this close./ This close/ to impress the ancestors/ getting the top shelf,/ an entourage.” (01:02:02) 68 Mulan, Disney, 1998: “You had your chance to protect/ the Fa family./ Your misguidance led Fa Deng to/ disaster.” (0:22:45) 34 Felizmente, para o pequeno dragão, Mulan é adjuvante em sua narrativa rumo ao posto de guardião. Isso ocorre quando, para escapar da punição por destruir o Grande Dragão, ao qual deveria acordar, Mushu resolve atuar como guardião da jovem. Desse modo, ele espera que, ao retornar com a protagonista sã e salva e, mais ainda, condecorada, terá, em lugar do castigo, o reconhecimento por seu belo trabalho e uma “promoção” ao almejado ofício de guardião da família. Em conversa com o “grilo da sorte” CriKee, Mushu tem a brilhante ideia que resolveria todos os seus problemas, o imediato (repreensão pelo desmoronamento do dragão de pedra) e o contínuo (sonho de ser guardião que não se realizaria após o fiasco com Fa Deng): Eu farei de Mulan uma heroína de guerra e eles me implorarão para voltar ao trabalho.69 (tradução livre) A posição da jovem heroína como adjuvante do PN de Mushu é expressa novamente (e, talvez, de modo ainda mais explícito) mais à frente na narrativa, quando Mushu confessa toda a trama para Mulan: Seus ancestrais nunca me mandaram. Eles nem gostam de mim. Você arriscou sua vida para ajudar as pessoas que você ama. Eu arrisquei sua vida para me ajudar. Pelo menos você tinha boas intenções.70 (tradução livre) 69 Mulan, Disney, 1998: “I’ll make Mulan a war hero/ and they’ll beg me/ to come back to work.” (0:25:00) Mulan, Disney, 1998: “Your ancestors never sent me./ They don’t even like me./ You risked your life/ to help people you love./ I risked your life/ to help myself./ At least you had good intentions.” (1:03:25) 70 35 b) PN Yao, Chien-Po e Ling convocação para a guerra despreparo Yao, Chien-Po, Ling ser bons soldados e uma esposa ao retornar da guerra treinamento de Shang; força de vontade para superá-lo; incentivo de Mulan (como Ping) (Sujeitos: Yao, Chien-Po e Ling; Objeto: ser bons soldados e uma esposa ao retornar da guerra; Destinador: convocação para a guerra; Antissujeito: despreparo; Adjuvantes: treinamento de Shang, força de vontade para superá-lo e o incentivo de Mulan – Ping). Manipulados pela convocação para a guerra, os sujeitos Yao, Chien-Po e Ling buscam o objeto valor ser bons soldados e uma esposa ao retornar da guerra, contando com os adjuvantes treinamento de Shang, força de vontade para superá-lo e o incentivo de Mulan (como Ping) para sobrepor o antissujeito despreparo e entrar em conjunção. Os três sujeitos são destinados pela convocação para a guerra, conforme o discurso do porta-voz imperial: Por ordem do Imperador, um homem de cada família deve servir no Exército Imperial.71 (tradução livre) Além disso, em outro momento do filme, o ator discursivo Ping traz a possibilidade de recompensa feminina em caso de retorno vitorioso, o que poderia já estar em sua mente. Por essa razão a vontade de encontrar um noiva pode ser vista como um destinador, enquanto a performance de tal manipulação, isto é, a recompensa em si, pode ser compreendida como um dos objetos-valor do trio. Para tal, utilizamos versos da canção “A girl worth fighting for”: E aposto que as damas amam 71 Mulan, Disney, 1998: “By order of the Emperor,/ one man from every family/ must serve in the Imperial army.” (0:14:43) 36 Um homem de armadura.72 (tradução livre) Enquanto isso, o objeto-valor encontrar boas esposas ao retornar vitoriosos está associado ao tornar-se homens através da boa performance militar. Assim, a canção “A girl worth fighting for” assinala o apelo positivo da posição de guerreiro em um momento futuro, de busca por uma noiva: Mas quando nós voltarmos para casa vitoriosos Elas vão fazer uma fila na porta.73 (tradução livre) Contudo, não é sem dificuldades que os soldados percorrem o caminho da guerra rumo ao amor. O mesmo antissujeito que assola Shang, se coloca no caminho de conjunção com o objeto-valor de seus soldados. Trata-se do despreparo desses para a guerra. Como observa-se na canção “I’ll make a man out of you”: Vocês são fracos pálidos, um grupo patético E vocês não sabem nada.74 (tradução livre) Entretanto, felizmente, assim como para Shang, Mulan vai representar o adjuvante principal dos soldados Yao, Chien-Po e Ling ao servir de exemplo, com seu primeiro impulso de superação das dificuldades do treinamento. Situação expressa na canção “I’ll make a man out of you” quando o tom já é mais confiante e todos se unem ao capitão, cantando juntos o refrão, ao mesmo tempo em que o plano visual expõe a realização das atividades de treinamento com destreza: Ser um homem Você deve ser veloz como um rio Ser um homem Com toda a força de um grande tufão Ser um homem Com toda a força de um fogo furioso 72 Mulan, Disney, 1998: “And I’ll bet the ladies love/ A man in armor” (0:48:37) Mulan, Disney, 1998: “But when we come home in victory/ They’ll line up at the door” (0:49:27) 74 Mulan, Disney, 1998: “You’re spineless/ Pale, pathetic lot/ And you haven’t got a clue” (0:38:54) 73 37 Misterioso como o lado escuro da lua75 (tradução livre) c) PN Shang exemplo de seu pai despreparo de seus soldados Shang ser um bom líder Mulan (Sujeito: Shang; Objeto: ser um bom líder; Destinador: exemplo de seu pai; Antissujeito: despreparo de seus soldados; Adjuvante: Mulan). Manipulado pelo exemplo de seu pai, o sujeito Shang busca o objeto valor ser um bom líder, contando com o adjuvante Mulan para sobrepor o antissujeito despreparo de seus soldados e entrar em conjunção. Shang é destinado pelo discurso motivador de seu pai: Número um em sua classe, extensivo conhecimento de técnicas de treinamento... Uma impressionante linhagem militar. Eu acredito que Li Shang vai fazer um trabalho excelente.76 (tradução livre) O objeto-valor ser um bom líder é explicitado em seu monólogo, após receber as ordens de seu pai e general para treinar os novos recrutas: Capitão Li Shang Líder das melhores tropas chinesas. Não. As melhores tropas de todos os tempos.77 (tradução livre) 75 Mulan, Disney, 1998: “Be a man/ You must be swift as a coursing river/ Be a man/ With all the force of a great typhoon/ Be a man/ With all the strength of a raging fire/ Mysterious as the dark side/ of the moon.” (0:39:27) 76 Mulan, Disney, 1998: “Number one in his class,/ extensive knowledge of training techniques…/ An impressive military lineage./ I believe Li Shang will do an excellent job.” (0:31:41) 77 Mulan, Disney, 1998: “Captain Li Shang./ Leader of China’s finest troops./ No. The greatest troops of all times.” (0:32:10) 38 Contudo, ele deve enfrentar o antissujeito despreparo de seus soldados, expresso na canção “I’ll make a man out of you”78, na qual Shang reclama dos soldados que recebeu e deve preparar para as batalhas. Ele vai mostrando seu desânimo conforme os versos se desenvolvem... Eles me enviaram filhas quando eu pedi por filhos? Vocês são o grupo mais triste que eu já encontrei Mas vocês podem apostar Antes de que nós terminemos Senhor, eu farei de você um homem (...) Vocês são fracos pálidos, um grupo patético E vocês não sabem nada De alguma forma, eu farei de você um homem (...) Você não serve para o furor da guerra Então junte suas coisas, vá para casa Você está acabado Como eu poderia fazer de você um homem79 (tradução livre) Para superar as adversidades, ele conta com um adjuvante, expresso, concomitantemente, nos planos verbal oral e visual. Quanto ao primeiro, nota-se uma progressiva mudança no tom da canção “I’ll make a man out of you”, tornando-se mais confiante e com a adição de um coro no refrão, o que denotaria que Shang não estaria mais sozinho em sua missão de tornar aqueles homens verdadeiros soldados, símbolo por excelência do masculino. Quanto ao visual, o papel de adjuvante se centra em Mulan, na cena80 em que contribui para a superação das dificuldades dos soldados ao ser capaz de realizar a prova de resgate da flecha lançada pelo capitão no topo de um tronco, enquanto carrega dois medalhões representando disciplina e força. Para tal, a jovem usa a inteligência, atando as cordas que prendem os dois objetos e utilizando-os para impulsioná-la. 78 Ver letra completa em Anexos. Mulan, Disney, 1998: “Did they send me daughters/ When I asked for sons/ You’re the saddest bunch/ I ever met/ But you can bet/ Before we’re through/ Mister, I’ll make a man/ Out of you”/ (…)/ You’re spineless/ Pale, pathetic lot/ And you haven’t got a clue/ Somehow I’ll make a man/ Out of you/ (…)/ You’re unsuited for the rage of war/ So pack up, go home/ You’re through/ How could I make a man/ Out of you”. (0:38:12) 80 Mulan, Disney, 1998 (0:40:17). 79 39 Já nesse momento, observa-se uma das principais características de Mulan, que a distingue dos demais e prova-se a conjunção de sua identidade a partir das relações travadas com os demais atores discursivos: inteligência, destreza. Portanto, ela não sucumbe ao papel de fraqueza feminina que dela esperavam, nem mergulha na brutalidade estereotipada do universo masculino. d) PN Shan-Yu construção da muralha da China Mulan Shan-Yu vingança habilidades de seus soldados (Sujeito: Shan-Yu; Objeto: vingança; Destinador: construção da muralha da China; Antissujeito: Mulan; Adjuvante: habilidades de seus soldados). Manipulado pela construção da muralha da China, o sujeito Shan-Yu busca o objeto valor vingança, contando com o adjuvante habilidades de seus soldados para sobrepor o antissujeito Mulan e entrar em conjunção. Shan-Yu, o líder huno, é destinado pela construção da Grande Muralha da China, fato que vê como afronta, um desafio a sua autoridade segundo seu diálogo com um soldado chinês: “Ele (Imperador) me convidou. Ao construir sua muralha, ele desafiou minha força. Bem, eu estou aqui para jogar o jogo dele.”81 (tradução livre). Portanto, seu objeto-valor é a vingança pelo desafio à sua força e autoridade, como nota-se no diálogo entre o grande vilão e o Imperador chinês: Sua muralha e soldados cairam... E agora é a sua vez. Curve-se a mim. (…) Eu estou cansado da sua arrogância, velho. 81 Mulan, Disney, 1998: “He invited me./ By building his wall, he challenged my strength./ Well, I’m here to play his game.” (0:26:26) 40 Curve-se a mim!82 (tradução livre) Para tentar alcançar seu objetivo, o líder huno conta com o adjuvante habilidades de seus soldados, como observa-se na cena em que o falcão de Shan-Yu traz uma boneca encontrada em uma vila e seus homens decifram de onde ela veio e o que significa em relação ao Exército Imperial e suas estratégias. Shan-Yu: O que você vê? Huno 1: Pinho negro, das montanhas. Huno 2: Crina de cavalo branco, garanhões imperiais. Huno 3: Enxofre, de canhões. Shan-Yu: Essa boneca veio de um vilarejo na Passagem Tung Shao, onde o Exército Imperial está esperando por nós.83 (tradução livre) Entretanto, nessa busca por vingança, Shan-Yu enfrenta um grande antissujeito, o Exército Imperial chinês. Mais especificamente, as tropas de Shang e, surpreendentemente, seu melhor “homem”, Ping (Mulan), devido aos aspectos especiais do (a) jovem que já foram destacados, a inteligência e a coragem. Isso é comprovado em dois momentos. Primeiramente, na cena84 em que Mulan (como Ping) mira o último canhão imperial na montanha, provocando uma avalanche massiva, que destrói o exército de Shan-Yu, garantindo a vitória aos homens de Shang, apesar de estarem em indiscutível minoria. (Ou, pelo menos é o que pensavam os chineses até o reaparecimento de Shan-Yu e outros cinco hunos nas celebrações pela vitória imperial sobre os invasores). Em seguida, no momento da invasão do palácio imperial, quando Shan-Yu, Mulan e Shang estão lutando no terraço e afastam o vilão do Imperador, gerando uma reação raivosa no huno: Shan Yu (direcionando-se a Shang): Você tirou minha vitória! Mulan: Não, eu tirei! 82 Mulan, Disney, 1998: “Your walls and armies have fallen.../ And now it’s your turn./ Bow to me. (1:10:35)/ (…)/ I’m tired of your arrogance, old man./ Bow to me!” (1:10:33) 83 Mulan, Disney, 1998: “What do you see?”/ “Black pine, from the high mountains./ “White horse hair, Imperial stallions.”/ “Sulphur, from cannons.”/ “This doll came from a village in the Tung Shao Pass, where the Imperial Army is waiting for us.” (0:41:28) 84 Mulan, Disney, 1998 (0:55:21) 41 Shan-Yu: O soldado das montanhas…85 (tradução livre) e) PN Mulan Fiasco na casamenteira convenções sociais Mulan identidade Mushu, Shang, Yao, Chien-Po, Ling e Shan-Yu (Sujeito: Mulan; Destinador: fiasco na casamenteira; Objeto: identidade; Antissujeito: convenções sociais; Adjuvantes: Mushu, Shang, Yao, Chien-Po, Ling e Shan-Yu) Manipulada pelo fracasso na casamenteira, o sujeito Mulan busca o objeto-valor temático identidade, contando com os adjuvantes Mushu, Shang, Yao, Chien-Po, Ling e ShanYu para sobrepor o antissujeito convenções sociais e entrar em conjunção. A narrativa de Mulan é destinada pela fiasco na casamenteira, deixando claro que a jovem não representa bem o papel que a sociedade lhe confere de noiva modelo para trazer honra ao nome de sua família. Observa-se o deslocamento entre a representação do real e o real para a figura da protagonista na fala da casamenteira “Você pode parecer uma noiva... Mas você nunca trará à sua família honra!”86 (tradução livre). Além disso, a própria Mulan deixa claro a polaridade quem deveria ser e quem sou nas duas versões da canção “Reflection”, apresentadas na cena imediatamente após a volta do encontro com a casamenteira e, posteriomente, nos créditos do filme. Foram selecionados alguns versos da canção (em suas duas versões) que exprimem mais abertamente esse conflito por que passa a jovem: Olhe para mim, eu nunca vou passar por noiva perfeita, ou filha perfeita. Pode ser que 85 86 Mulan, Disney, 1998: “You took away my victory!/ “No, I did!”/ “The soldier from the mountains…” (1:12:58) Mulan, Disney, 1998: “You may look like a bride... But you will never bring your family honor!” (0:11:17) 42 eu não seja feita para atuar nesse papel?87 (tradução livre) Todos os dias é como se eu representasse Agora eu vejo Se eu usar uma máscara eu posso enganar o mundo Mas eu não posso enganar meu coração Quem é essa menina que eu vejo me encarando diretamente Quando meu reflexo vai mostrar Quem eu sou por dentro Eu estou agora Em um mundo onde Eu tenho que esconder meu coração E aquilo em que acredito (...) Eu devo fingir que sou outra pessoa o tempo todo (...) Deve haver um eu secreto que Eu sou forçada a esconder?88 (tradução livre) A canção dá, ainda, indicativos de que a jovem pretende agir no sentido de resolver sua crise de identidade, buscando um lugar a que realmente pertença, em que se sinta confortável. Uma relação espaço-tempo própria para ela: onde possa ser, verdadeiramente, Mulan; quando seu reflexo mostrará quem é por dentro: Mas de alguma forma Eu vou mostrar ao mundo O que está dentro do meu coração E ser amada por quem eu sou (...) Quando meu reflexo vai mostrar quem eu sou Por dentro, há um coração Que deve ser livre para voar E eu queimo com a necessidade de saber 87 Mulan, Disney, 1998. Reflection (versão L. Salonga): “Look at me,/ I will never pass for a perfect bride,/ or a perfect daughter./ Can it be,/ I'm not meant to play this part?” (0:11:56) 88 Mulan, Disney, 1998. Reflection (versão C. Aguilera): “Every day/ It’s as if I play a part/ Now I see/ If I wear a mask/ I can fool the world/ But I cannot fool my heart/ Who is that girl I see/ Staring straight back at me/ When will my reflection show/ Who I am inside/ I am now/ In a world where/ I have to hide my heart/ And what I believe in/ (…)/ Must I pretend that I’m/ someone else for all time/ (…)/ Must there be a secret me/ I’m forced to hide?” (1:24:19) 43 a razão por que por que nós todos devemos esconder O que pensamos Como nos sentimos89 (tradução livre) Dessa maneira, ao analisar o filme, nos parece plausível compreender a convocação de Fa Zhou para a guerra como a circunstância na qual a jovem vai exercitar a construção de sua identidade. Salvar seu pai, portanto, não seria o fim, mas o meio pelo qual, dadas as condições iniciais (desilusão e desapontamento após a visita à casamenteira), Mulan vai em busca de seu objeto-valor último, sua identidade. Tal interpretação da narrativa parece ser justificada pelo diálogo entre Mulan e Mushu, após a descoberta de seu segredo pela tropa da qual fazia parte: Talvez eu não tenha ido por meu pai. Talvez o que eu realmente quisesse fosse provar que eu poderia fazer as coisas darem certo... Então, quando eu olhasse no espelho... Eu veria alguém que valesse a pena.90 (tradução livre) Entretanto, a busca de Mulan por uma identidade mais adequada para ela (sob sua perspectiva) esbarra, obviamente no fato de que tal identidade não parecia adequada a uma jovem sob a perspectiva das convenções sociais do que seria o modelo, o ideal de jovem chinesa. Observa-se essa divergência na canção “Honor to us all”, quando a jovem está sendo preparada para a visita à casamenteira e recebe as instruções do que é esperado da posição de noiva: Acredite em minha receita para noiva instantânea Você vai trazer honra para todos nós (...) Com boa sorte E um ótimo penteado Você trará honra para todos nós 89 Mulan, Disney, 1998. Reflection (versão C. Aguilera): “But somehow/ I will show the world/ What’s inside my heart/ And be loved for who I am/ (…)/ When will my reflection show/ who I am/ Inside, there’s a heart/ That must be free/ to fly/ And I burn/ with a need to know/ the reason why/ why must we all conceal/ What we think/ How we feel” (1:25:14) 90 Mulan, Disney, 1998: “Maybe I didn’t go for my father./ Maybe what I really wanted was/ to prove I could do things right…/ So when I looked in the mirror…/ I’d see someone worthwhile.” (1:02:37) 44 Uma menina pode trazer para a sua família Grande honra de um jeito Conseguindo um bom par (...) Homens querem mulheres com bom gosto Calmas Obedientes Que trabalham rapidamente Com boa educação E uma cintura fina91 (tradução livre) Para sobrepor o conjunto das convenções sociais (não exatamente cada uma das regras, mas o que o conjunto delas representa), Mulan conta, especialmente, com os atores discursivos aqui analisados. Eles atuam como adjuvantes, cada um a sua maneira, contribuindo para o jogo de identificação e alteridade que vai levar a jovem a composição de sua própria versão de si. Em relação a Mushu, nota-se a alteridade quanto a figurativização do modelo masculino na cena cômica em que Mulan chega ao acampamento militar em uma postura completamente “alienígena” após as instruções de Mushu: “Ombros para trás, peito estufado, pés separados, cabeça erguida e ande confiante”92 (tradução livre). Além disso, também a figurativização do modelo feminino para o dragãozinho se opõe ao feminino representado por Mulan. Essa divergência é melhor expressa na cena em que a jovem busca manter seus “hábitos de garota”, sua preocupação com a higiene, apesar da discordância de seu pequeno guardião. Mulan: Não é por que me pareço com um homem que tenho que cheirar como um. (...) Mushu (imitando, de forma irônica, uma voz afeminada): Fique e vigie, Mushu, enquanto eu estrago nosso segredo com meus estúpidos hábitos de garota. [Suspiro] Higiene.93 (tradução livre) Entretanto, Mulan se identifica com sua amizade. Mushu é um bom amigo e se esforça em ajudá-la, havendo quase uma sintonia entre os dois. Um dos momentos mais icônicos de seu relacionamento é a cena em que Mulan o pede que pegue fogos de artifício para combater ShanYu sem precisar, contudo, “falar”, de fato, do que precisava: 91 Mulan, Disney, 1998: “Trust my recipe/ for instant bride/ You’ll bring honor/ to us all/ (…)/ With good fortune/ And a great hairdo/ You’ll bring honor to us all/ A girl can bring her family/ Great honor in one way/ By striking a good match/ (…)/ Men want girls with good taste/ Calm/ Obedient/ Who work fast-paced/ With good breeding/ And a tiny waist” (0:06:32) 92 Mulan, Disney, 1998: “Shoulders back, chest high, feet apart, head up and strut.” (0:29:16) 93 Mulan, Disney, 1998: “Just because I look like a man, I don’t have to smell like one.”/ “Stand and watch, Mushu, while I blow our secret with my stupid girlie habits. [Suspiro] Hygine. (0:42:15) 45 Mulan: Mushu. Mushu: Já entendi, irmã.94 (tradução livre) Em contrapartida, Mushu aprende, com ela, a coragem, a cumplicidade e o altruísmo: Você arriscou sua vida para ajudar as pessoas que você ama. Eu arrisquei sua vida para me ajudar. Pelo menos você tinha boas intenções.95 (tradução livre) Em relação a Yao, Chien-Po, Ling a alteridade é apresentada na visão da jovem de que os soldados são brutos, violentos, sujos: Mulan: Eles são nojentos. Mushu: Não, eles são homens.96 (tradução livre) Além disso, possuem uma visão muito estreita do feminino, como expresso na reação negativa à tentativa de Mulan de expor seu ideal de mulher, participando da canção “A girl worth fighting for”: Que tal uma garota que tem um cérebro que sempre diz o que pensa? 97 (tradução livre) Todavia, o trio presenteia a protagonista com a identificação aos valores de amizade e confiança. Ela pode contar com eles, que se vestem de concubinas para participar de seu plano de resgate do imperador98. O filme se ocupa, ainda, em reafirmar a questão da cumplicidade entre a jovem e os três, colocando o refrão da música “I’ll make a man out of you” como parte da 94 Mulan, Disney, 1998: “Mushu.”/ “Way ahead of you, sister.” (1:13:29) Mulan, Disney, 1998: “You risked your life/ To help people you love./ I risked your life/ to help myself./ At least you had good intentions.” (1:03:29) 96 Mulan, Disney, 1998: “They’re disgusting.”/ “No, they’re man.” (0:29:29) 97 Mulan, Disney, 1998: “How about a girl who’s got a brain/ Who always speaks her mind?” (0:48:59) 98 Mulan, Disney, 1998 (1:09:51) 95 46 cena, de modo a não deixar em dúvida suas masculinidades. Sua participação no plano de Mulan se deve exclusiva e profundamente à credibilidade que esta ganhou ao longo da convivência na guerra em suas atuações táticas e estratégicas. Em compensação, Yao, Chien-Po e Ling aprendem com Mulan a usar a astúcia e a inteligência como parte de seu arsenal. A própria cena acima descrita comprova que, com ela, eles entendem que os músculos são importantes, mas que o cérebro pode ser decisivo quando bem empregado. Quanto a Shang, ele se mostra um exemplo, um bom líder, o que gera admiração e identificação na jovem. “Eu acho que você é um ótimo capitão.”99 (tradução livre). Contudo, há contradição entre os dois, pois ele é preconceituoso, não confiando em Mulan após saber que ela é uma mulher: “Você disse que confiava em Ping. Por que com Mulan é diferente?”100 (tradução livre). Entretanto, ainda observa-se o jogo de identificação e alteridade entre Mulan e Shang quando essa volta para casa, para sua família e seu papel de filha. Com a visita do capitão, fica claro que Mulan pode tomar, novamente, o posto de noiva, ao qual ela não se opõe completamente. Todavia, esse lugar vai ser reformado, para comportar as características peculiares desta noiva e não aquelas dadas pelas convenções sociais. Por outro lado, Shang aprende com Mulan (em sua versão masculina, Ping) os valores da coragem e da amizade: Você é o homem mais louco que eu já conheci. E por isso eu devo a você minha vida. De agora em diante, você tem minha confiança. 101 (tradução livre) Além disso, com Mulan, ele percebe que deve usar a astúcia e a inteligência para complementar suas habilidades físicas, como denota a já retomada cena em que todos (Shang, Yao, Chien-Po e Ling) se unem ao plano da destemida chinesa para salvar o Imperador, cujo palácio foi invadido pelos hunos. Mulan foi, portanto, a responsável final pela derrota do 99 Mulan, Disney, 1998: “I think you’re a great captain.” (0:45:27) Mulan, Disney, 1998: “You said you’d trust Ping./ Why is Mulan any different?” (0:06:59) 101 Mulan, Disney, 1998: “You are the craziest man I’ve ever met./ And for that I own you my life./ From now on, you have my trust.” (0:59:07) 100 47 inimigo, apesar de, em um primeiro momento, Shang não lhe dar crédito quando ela tentava alertá-lo sobre o iminente ataque dos hunos. Seguindo o exemplo da protagonista, o capitão quebra a rígida hierarquia chinesa, se interpondo entre Mulan e a fúria do conselheiro imperial e, até mesmo, mentindo para o Imperador, ao assumir qualquer culpa, de modo a salvar a célebre chinesa. Shang compreende, enfim, que, menosprezando o feminino, perdia grande parte do que ele tinha a oferecer; que seu olhar extremamente focado restringia seu horizonte. Desse modo, ele enxergava apenas a ponta de um icerberg que, de outra maneira, poderia ver como um todo. De qualquer forma, essa percepção era partilhada por outros, como o próprio Imperador, que, enigmaticamente, aconselha Shang a seguir a jovem, que retornava para sua família. O que o simpático senhor expressa em poéticas palavras é que a heroína tinha muito mais a oferecer enquanto Mulan do que enquanto estereótipo feminino ou masculino: A flor que desabrocha na adversidade... É a mais rara e bonita de todas. Você não encontra uma menina como aquela em toda dinastia.102 (tradução livre) Finalmente, na interação com Shan-Yu, Mulan constrói uma relação de alteridade. Com ele, aprende o que não ser, isto é, sua configuração de homem cruel, que, opostamente aos soldados com os quais a jovem conviveu, não se interessa pelo papel de herói, salvador ou defensor de um povo. Exatamente o contrário. Shan-Yu é um poder vingativo, razão que o leva a invadir a China e, posteriormente, a desferir um golpe de espada em Mulan, pois ela havia provocado a avalanche que (quase) o derrotaria. O líder huno não mede suas ações, não se importando, assim, com as vidas que destrói para alcançar seus objetivos. A vida não parece ser um valor eufórico para a quase “personificação do mal” que é Shan-Yu. Não importa, portanto, se são as vidas de um pai ou de uma criança, como configurado 102 Mulan, Disney, 1998: “The flower that blooms/ in adversity.../ Is the most rare/ and beautiful of all./ You don’t meet a girl like that/ every dynasty.” (1:18:29) 48 na cena em que o grupo de Mulan chega ao vilarejo destruído pelos hunos, contabilizando, entre as mortes, os civis que lá habitavam e os militares liderados pelo general, pai de Shang. 3.3. Nível Discursivo O texto é um diálogo entre enunciador e enunciatário, isto é, entre a imagem do autor construída pelo texto e a imagem do leitor construída pelo texto. O nível discursivo é, então, aquele em que o enunciador mais se mostra, pois, na semântica discursiva, há a escolha dos temas e figuras centrais do texto, ou seja, das isotopias temático-figurativas, que reiteram traços semânticos. A isotopia é a recorrência de dado traço semântico ao longo do texto. Ela ajuda a definir a leitura a se fazer desse texto, a qual está inscrita nele e não no leitor. 103 Desse modo, o conceito de isotopia possibilita a definição dos planos de leitura de textos, o monitoramento das interpretações de textos plurissignificativos e a precisão dos mecanimos de construção de determinados perfis de discurso.104 Assim, nesse nível (discursivo), “as formas abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhes dão concretude.”105 Em vista disso, elementos, tais como, projeções da sintaxe do discurso, procedimentos de argumentação e escolha de temas e figuras impulsionada por formações ideológicas106 acabam por denunciar as intenções da enunciação. Dessa forma, é “nas estruturas discursivas que a enunciação mais se revela e onde mais facilmente se apreendem os valores sobre os quais ou para os quais o texto foi construído.” 107 A relação entre figuras e temas denota, portanto, o perfil ideológico dos sujeitos da enunciação (enunciador; enunciatário), com base no revestimento dos actantes narrativos, comumente conhecidos com atores discursivos. Uma vez que o nível discursivo apresenta maior riqueza de detalhes na caracterização das personagens, não encontrada no poema original, optou-se por analisar nesse aspecto, apenas a obra cinematográfica. Nessa perspectiva, compreende-se que a tradução do poema em filme 103 FIORIN, op.cit., p.113. Ibidem, p.117. 105 Ibidem, p.41. 106 BARROS, op. cit., p.78. 107 Ibidem, pp.53-54. 104 49 pressupõe transformações no conteúdo da narrativa, já que cada suporte possui linguagem, limitações e possibilidades próprias. Sobre isso, Fiorin afirma que é plenamente possível um conteúdo ser apresentado em distintos planos de expressão e que, quando isso ocorre, tal conteúdo sofre alterações, dados os efeitos estilísticos da expressão e as coerções do material. Ademais, explica que, no caso de o plano de expressão não somente veicular um conteúdo, mas recriá-lo, novos sentidos acabam sendo adicionados ao conteúdo pela expressão.108 Por conseguinte, faz-se uma breve descrição dos recobrimentos temático-figurativos das principais personagens do filme, bem como, uma sucinta análise das isotopias ali presentes. a) Mulan Mulan tem uma família carinhosa e que se preocupa com ela, com seus sentimentos e seu futuro, mas também leva muito a sério seus deveres sociais e geracionais e as noções de responsabilidade, lugar social e, principalmente, honra (em relação a família – antepassados e aqueles com os quais convive). De tal forma, desde a apresentação do modelo feminino (para o qual Mulan representa o quase contra modelo) até a finalização da narrativa com uma jovem que retorna da guerra, mas ainda busca a segurança de sua família, há uma longa lista de características que podem ser associadas à personagem. Inicialmente, é apresentado o recobrimento temático-figurativo do modelo de jovem chinesa109: quieta, reservada, graciosa, educada, refinada, equilibrada, pontual, bela, calma, obediente, com habilidades domésticas e serena. Esses traços de caráter são bem explicitados no trecho da canção “Honor to us all”: “uma perfeita boneca de porcelana” 110 (tradução livre). Ademais, há a advertência que deve ser recitada pelas futuras noivas: “Cumpra seus deveres calma e respeitosamente. Reflita antes de agir. Isso deve trazer honra e glória.”111 (tradução livre). E, indispensável na construção do modelo e, por conseguinte, em sua avaliação, 108 FIORIN, op.cit., p.45. Vide Figura 1 (Créditos: arquivo.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/filme/ver.php?cdfilme=532) 110 Mulan, Disney, 1998: “(…) a perfect porcelain doll.” (0:08:47) 111 Mulan, Disney, 1998: “final admonition (...) Fulfill your duties calmly and respectfully. Reflect before you act. This shall bring you honor and glory.” (0:09:39) 109 50 os conselhos da casamenteira: “Para agradar seus futuros sogros, você deve demonstrar um senso de dignidade e refinamento. Você também deve ser preparada e silenciosa!”112 (tradução livre). Figura 1 O ideal de noiva de acordo com as convenções sociais é esperado de Mulan (por sua família), mas ela não consegue alcançá-lo, criando, ao invés disso, seu próprio modelo identitário. Assim, buscando simplificar a relação de adjetivos, assinalamos aqueles que se tornaram mais representativos ao longo da narrativa, no processo de formação da personagem. As características em negrito são as que foram se acentuando com sua entrada no Exército e a formação de sua identidade a partir da identificação e da alteridade no contato com os soldados imperiais. Recobrimento temático-figurativo de Mulan: bonita jovem chinesa, boa filha, esforçada, atrasada, faladeira, brincalhona, bagunceira, respeita os ancestrais, “não sabe seu lugar” (como mulher naquela sociedade), inquieta, desajeitada, simpática, preocupada com sua família, dedicada, ousada, sociável (se dá bem com crianças e idosos; e, no final, acaba fazendo amizades improváveis, como os soldados Yao, Ling e Chien-Po, que conhece no Exército Imperial), persistente, decidida, lutadora (luta pelo que quer e em que acredita), fiel, amiga, corajosa, surpreendente, esperta, inteligente, astuta, improvisadora (sempre tem um plano, tem ideias criativas) e heroína. 112 Mulan, Disney, 1998: “To please your future in-laws… you must demonstrate a sense of dignity… and refinement. You must also be poised. (…) And silent!” (0:10:13) 51 Mulan representa a simbiose das identidades estereotipadas masculina e feminina. As imagens abaixo denotam muito bem essa integração da jovem nos dois universos e deles nela. Em continuidade ao traço marcante da heroína, de somar a astúcia a seus feitos musculares, notase, ainda mais profundamente, o uso de um objeto típico do mundo das mulheres (que, de fato, serve para “escondê-las” no espaço público), o leque, que é usado para tomar a arma do vilão e, assim, “salvar o dia”.113 Em seguida, em um momento exatamente posterior ao desarmamento espetacular e inesperado do líder huno, a chinesa é apresentada em mais uma pose icônica114: ela aparece com vestimentas femininas, mas impunhando uma espada, símbolo último do poderio militar e, portanto, do ambiente masculino. Figura 2 113 114 Vide Figura 2 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/File:Mulan-disneyscreencaps.com-8770.jpg) Vide Figura 3 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/File:Mulan-disneyscreencaps.com-8778.jpg) 52 Figura 3 Conforme pode ser deduzido das reflexões apresentadas no nível narrativo, a definição identitária de Mulan não ocorre de forma simples nem instantânea. Seu caminho é árduo e conta com muitos obstáculos, marcados no e pelo relacionamento com as demais personagens da narrativa cinematográfica. Logo após a caracterização física de Mulan como um soldado, a jovem começa a desenhar o que, em sua mente, constitui o modelo comportamental masculino. Assim, o estereótipo e o pré concebido são elevados na figurativização do modelo de masculino, pois, na tentativa de se passar por um homem, ela demonstra o que acredita ser o distintivo de masculinidade através do “falar grosso”, “ter atitude” e ser “durão” (apelando para a rudeza e certa dose de violência). Em um discurso desajeitado justifica: “impulsos masculinos (...) você tem de matar algo”115 (tradução livre). Ainda mais irônico e icônico é o modelo de masculino idealizado pelo dragãozinho Mushu (o desastrado guardião que substitui a ajuda enviada pelos ancestrais de Mulan para garantir sua proteção). Ele exalta a selvageria como padrão de comportamento dos homens e critica Mulan por tentar manter alguns de seus hábitos que ele julga por demais femininos (leiase: a higiene). 115 Mulan, Disney, 1998: “Manly urges (...) you gotta kill something.” (0:33:23) 53 Portanto, a figurativização do modelo de masculino, segundo Mushu é constituída da imagem de um guerreiro “durão”116 (tradução livre), assustador, que foi à guerra querendo “destruir pessoas” e com a seguinte postura “ombros para trás, peito estufado, pés separados, cabeça para cima e ande de forma confiante”117 (tradução livre). Para não estragar esse espécime tão cuidadosamente criado118, Mushu reclama da insistência de Mulan em banhar-se, bufando “higiene – hábito de meninas”119 (tradução livre) e argumentando que isso não faz parte do “ser homem” quando a personagem principal se choca ao ver o caos e a sujeira em uma refeição no acampamento militar com o diálogo: Mulan: Eles são nojentos. Mushu: Não, eles são homens.120 (tradução livre) 116 Mulan, Disney, 1998: “(…) though looking warrior.” (0:35:47) Mulan, Disney, 1998: “Shoulders back, chest high, feet apart, head up and strut.” (0:29:16) 118 Vide Figura 4 (Créditos: www.pinterest.com/glogirl93/3-mulan-3) 119 Mulan, Disney, 1998: “Hygine – girlie habits.” (0:42:20) 120 Mulan, Disney, 1998: Mulan: They’re disgusting./ Mushu: No, they’re man. (0:29:29) 117 54 Figura 4 b) Mushu Recobrimento temático-figurativo de Mushu121: dragãozinho irritado e falante, engraçado, pronto para provar seu valor e defender sua família. Em posição subalterna, não é um dos guardiões, só é responsável por tocar o gongo que acorda os ancestrais e os guardiões – e mesmo isso ele consegue estragar, após o que expressa: “Eu teria que trazê-la pra casa com uma medalha para voltar para o templo”122 (tradução livre). Ele é motivo de piada e ninguém acredita que ele possa ser um bom guardião, trazendo Mulan de volta em segurança. 121 122 Vide Figura 5 (Créditos: http://disney.wikia.com/wiki/File:Mulan-disneyscreencaps.com-9592.jpg) Mulan, Disney, 1998: I’d have to bring her home with a medal to be back in the temple. (0:24:55) 55 Mushu já teve sua chance, mas não cumpriu seu papel, provocando um desastre (a morte de um membro da família), o que o rendeu o estigma de que “não é um dragão de verdade” e “não merece o lugar de guardião”. Desajeitado, quer uma chance para provar seu valor à família. Ele é um troublemaker, piadista, improvisador, brincalhão, convencido, inquieto e persistente. O pequeno dragão tem grande imaginação e é decidido; assim, resolve: “Eu farei de Mulan um herói de guerra e ela vão me implorar para voltar ao trabalho.”123 (tradução livre). Em toda essa caracterização, talvez a mais interessante seja a diferença entre como ele se vê, isto é, a imagem que faz de si mesmo (tão diferente da que os outros têm dele) e o que se observa em seu relacionamento com Mulan. Mushu se imagina poderoso, indestrutível, intimidador, inspirador e amedrontador. Contrariamente ao seu próprio discurso, ao longo da trajetória em comum com a jovem, o pequeno dragão é ensinado a repensar seus valores e objetivos, de forma que o direcionamento de suas ações (anteriormente por ambição) passa a se dar por fidelidade e amizade. Assim, na e após a interação com Mulan, as descrições, aparentemente, mais adequadas para ele são: confiável, protetor, amigo, útil, maternal e companheiro. Figura 5 123 Mulan, Disney, 1998: I’ll make Mulan a war hero and they’ll beg me to come back to work. (0:25:00) 56 c) Shang Recobrimento temático-figurativo de Li-Shang124: bonito, forte, inteligente, amigável, bondoso, honrado, corajoso e filho devotado, ou seja, o modelo de “príncipe encantado”... Contudo, sua postura muda completamente quando o assunto é militar e, mais ainda, a participação de uma mulher nesse mundo125. Nesse contexto, o capitão Shang é autoritário, imponente, astuto, disciplinado, decidido, habilidoso, estratégico e incansável. Nas palavras de seu pai e general, “número um em sua turma, com conhecimento extensivo em técnicas de treinamento e uma impressionante linhagem militar”126 (tradução livre). Entretanto, assim como Mulan está aprendendo algo sobre si mesma na relação com cada uma das personagens (ele inclusive), Shang também parece aprender com a jovem novos valores (amizade e fidelidade) e questionar outros127. Dessa forma, o homem que guarda profundo respeito pelas hierarquias (familiares, sociais e militares) chega a enfrentar o Imperador para defender a chinesa após as ações que resgataram o ancião do líder huno, mas culminaram em destruição de parte do palácio imperial. Figura 6 Figura 7 124 Vide Figura 6 (Créditos: images4.fanpop.com/image/polls/680000/680055_1301813525351_full.jpg) Mulan, Disney, 1998: “Did they send me daughters when I asked for sons?” (0:38:12) 126 Mulan, Disney, 1998: “Number one in his class,/ extensive knowledge of training techniques…/ An impressive military lineage.” (0:31:41) 127 Vide Figura 7 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/File:Shang_and_mulan.jpg) 125 57 d) Chien-Po, Ling e Yao Recobrimento temático-figurativo de Chien-Po128, Ling129 e Yao130: “os três patetas” (o gordo, o magro e o baixinho); estão sempre juntos e se completam; são corajosos e bons amigos, quebrando a hierarquia militar pela amizade; são persistentes e trabalham duro. Vale ressaltar que Yao é o estereótipo do “machão”, sendo irritadiço, interessado em brigas, debochado e “durão”, com uma dose extra de auto-confiança que beira a arrogância. Os três têm uma imagem bem definida do ideal feminino e da posição das mulheres na sociedade. Elas precisam achá-los másculos, bonitos e fortes; além de serem boas cozinheiras e donzelas pelas quais devem lutar. Figura 8 Figura 9 Figura 10 e) Shan Yu Recobrimento temático-figurativo de Shan-Yu: intrinsecamente mau, assustador, violento, sádico, vingativo e destruidor. O vilão é construído como um homem debochado e ousado, um hábil soldado e líder131, imponente e destemido invasor. Ainda mais esclarecedor, fica implícito (ou quase explícito) que ele mata “criancinhas” sem piedade132 para alcançar seu objetivo de vingança, pois vê na construção da muralha da China um desafio à sua autoridade e força. 128 Vide Figura 8 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/Yao,_Ling_and_Chien_Po) Vide Figura 9 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/Yao,_Ling_and_Chien_Po) 130 Vide Figura 10 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/Yao,_Ling_and_Chien_Po) 131 Vide Figura 11 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/Shan_Yu/Gallery) 132 Vide Figura 12 (Créditos: disney.wikia.com/wiki/File:Mulan-disneyscreencaps.com-4884.jpg) 129 58 Figura 11 Figura 12 Dessa forma, ele é apresentado como a versão mais exacerbada do “machão”, também vista em Yao, mas sem os atenuantes da amizade e de uma afetividade latente que fica sob a superfície para este. Shan-Yu é, então, o não exemplo. Ele denota para Mulan (e para os espectadores do filme) as várias nuances possíveis dentro do mesmo grupo de características ditas “masculinas”. Ademais, observando-o, fica expressa a necessidade de atentar para os riscos ao assumi-las de maneira exagerada. 59 Nesse sentido, é considerado essencial na configuração identitária de Mulan, uma vez que, para opor-se a Shan-Yu, não apenas Mulan, mas também Yao, Chien-Po e Ling133 (e, em alguma medida, mesmo Shang) utilizam-se de atributos femininos. À vista disso, a ideia de feminino, até aquele momento disfórica entre os soldados (entre a descoberta de que Mulan era uma mulher se passando por soldado e o desfile da vitória, imediatamente precedente ao novo ataque do huno), ganha um novo contorno, fazendo a “donzela em perigo” converter-se em heroína e imprimindo na personagem principal e no público da obra cinematográfica uma ruptura na dicotomia de gênero e a ideia de conciliação entre os mundos e identidades masculinos e femininos. Figura 13 133 Vide Figura 13 (Créditos: www.fanpop.com/clubs/yao-ling-and-chien-po/images/24835950/title/disguisedwomen-screencap) 60 CONCLUSÃO “THE JOURNEY IS THE DESTINATION” Ambos, poema e filme, trazem o ator discursivo Mulan em uma jornada de autodescobrimento. De forma mais enfática no segundo, trata-se da definição de quem ela é em seu interior e não de que deveria ser de acordo com as convenções sociais. Alguém que foi forte o bastante para driblar seus próprios medos e agir por amor alheio: Mulan. Centro de um poema chinês do século VII (que não sabemos se retrata uma personagem histórica ou fictícia), ganhou ampla disseminação com a animação dos estúdios Disney iniciada em 1994. Narra a linda história de uma jovem chinesa que decidiu ir à guerra para preservar a vida de seu pai, o que sempre me conquistou, pois não conseguia conceber um sentimento mais forte do que o amor, que justificasse colocar a vida de outro acima da própria e a concordância em fazer parte de algo tão vazio de sentido como uma guerra. Nesse sentido, via a guerra como sinônimo de morte, razão pela qual não consigo visualizar, senão, dois sujeitos: os que objetivam matar e os que (simplesmente por estar no lugar errado e na hora errada - civis) acabam morrendo. Mulan ressalta um terceiro lado da guerra: aqueles que estão ali por amor e por essa razão são capazes de dar suas vidas.134 Assim, pretendíamos analisar o filme partindo do quadrado semiótico, dos recobrimentos temático-figurativos dos principais actantes narrativos e do desenho de um programa narrativo do sujeito Mulan, no qual o objeto valor seria a construção de sua identidade. Em um nível fundamental, observamos que as narrativas traçam o caminho da alteridade para chegar a formação de sua identidade. Observamos, ainda sua relação com cada uma das personagens listadas, cujo conjunto dos programas narrativos configuram uma narrativa em teia, configurando-se, portanto, o sincretismo actancial (em especial, mas não exclusivamente) do ator discursivo Mulan, que recobre diferentes actantes narrativos nos diversos PNs. Assim, nossa hipótese inicial consistia em explicitar que a construção da identidade de Mulan se daria pela alteridade em relação aos demais actantes com os quais ela lidava ao longo das narrativas. Ao longo da análise, partindo da mesma metodologia, observamos que, ao menos no filme, há um programa narrativo do sujeito Mulan cujo objeto valor é a construção de sua identidade. Isso se revela, mais claramente, no diálogo que tem com o dragãozinho Mushu, quando fala de quais poderiam ser suas razões para ter entrado na guerra no lugar de seu pai (à parte de salvar a vida dele). 134 O subtítulo e a subsequente citação foram retirados de um trabalho da disciplina Fotojornalismo, do professor Dante Gastaldoni, de 2014.2, no qual comparei a personagem Mulan e o fotojornalista Dan Eldon, por suas participações em uma guerra da qual faziam parte com o objetivo de salvar alguém. 61 Talvez eu não tenha ido por meu pai Talvez o que eu realmente quisesse fosse provar que eu podia fazer as coisas darem certo... Então quando eu olhasse no espelho... Eu veria alguém que valesse a pena.135 (tradução livre) Por outro lado, o poema deixa transparecer a questão identitária mais expressivamente apenas em suas últimas estrofes, ressaltando, então, a característica de piedade filial como recobrimento temático-figurativo essencial da personagem principal. Ademais, tal atributo é o destinador de uma narrativa em que Mulan busca a preservação da vida de seu pai e o conflito alteridade vs. identidade apenas aparecerá ao longo de sua jornada: Meu pai não tem um filho adulto, Mulan não tem um irmão mais velho. Eu gostaria de comprar uma sela e um cavalo e servir no lugar de meu pai.136 Além disso, a descoberta fundamental a que chegamos através da apreciação semiótica dos dois objetos é que a identidade da personagem é formada não somente em sua relação com as personagens masculinas que ela encontra no exército. Pode-se exprimir, portanto, que a construção da identidade de Mulan (tanto no poema original quanto no filme) se dá por um jogo de identificação e alteridade em relação tanto ao modelo de jovem chinesa quanto aos demais actantes com os quais ela lida ao longo da narrativa. No poema, o processo se expressa em Mulan como a jovem modelo, que se transforma em um soldado para servir no lugar de seu pai e, ao retornar para seu lar, retoma as características precedentes: Eu tiro minha vestimenta de guerra E coloco minhas roupas antigas Olhando a janela, ela arruma o cabelo como uma nuvem, Olhando o espelho, ela aplica pó de flores amarelo. 137 135 Mulan, Disney, 1998: “Maybe I didn’t go for my father./ Maybe what I really wanted was/ to prove I could do things right…/ so when I looked in the mirror…/ I’d see someone worthwhile.”(1:02:37) 136 Ballad of Mulan: “Father has no adult son/ Mulan has no older brother./ Wish to buy a saddle and horse,/ and serve in Father's place.” 62 Já no filme, esse processo de autodescobrimento pode ser observado em um diálogo de Mulan e Mushu no qual ela diz “Só porque eu me pareço com um homem, não significa que eu tenho que cheirar como um”138 (tradução livre). Observa-se, assim, que Mulan mantém certa “feminilidade” ao longo da construção de sua identidade, mesmo estando em meio aos homens do Exército Imperial. Pode-se representar as transformações (físicas e psicológicas) por que passa a personagem da seguinte forma: Mulher Mentir para os homens Mentir para os recrutadores e generais do Exército Imperial Retorno ao feminino (lugar (passando-se (passando-se (estabelecimento socialmente por um deles) por um soldado) de um novo definido) lugar social) A dupla ofensa aos padrões estabelecidos na antiga sociedade chinesa, passível de punição com a morte e desonra para toda a linhagem familiar (expressos apenas no filme, mas deduzíveis historicamente) configuram, em certo nível, múltiplos conflitos de identidade da personagem Mulan (tanto no poema, quanto no filme). No filme, os primeiros quinze minutos, aproximadamente, retratam o conflito entre quem ela deveria ser, de acordo com as convenções sociais de como pensava e agia uma jovem chinesa em sua época, e quem ela era – sua personalidade que se distinguia, se não se opunha ao esperado. Contudo, Mulan tem uma “marca registrada”, que não pode deixar de ser notada e que direciona uma construção afetiva na interação obra-público (enunciador-enunciatário): a preocupação com o bem-estar familiar. Apesar de ser o contramodelo, a personagem nos conquista por direcionar suas ações e pensamentos em favor de sua família. Isso se apresenta desde a tentativa de “se passar por 137 Ballad of Mulan: “I take off my wartime gown/ And put on my old-time clothes./ Facing the window she fixes the cloudlike hair on her temples,/ Facing a mirror she dabs on yellow flower powder.” 138 Mulan, Disney, 1998: “Just because I look like a man, I don’t have to smell like one.” (0:42:15) 63 perfeita noiva”, “encenando um papel”, para trazer honra à sua família, até se disfarçar de homem e soldado para tomar o lugar de seu pai na guerra que, com certeza o mataria, arriscando, portanto, a própria vida. A análise buscou, portanto, na medida do possível, trabalhar em perspectiva comparada, de modo a melhor compreender os processos internos que estruturam a história da jovem chinesa em suas duas narrativas (poema e filme). Contudo, como já apontado, não é uma tarefa simples analisar semioticamente os dois objetos, tendo em vista que a semântica discursiva e a sintaxe narrativa do filme é bem mais complexa do que as observadas no poema. Entretanto, é possível explicar o funcionamento dessas “fronteiras” sob a ótica da linguagem: como se poema e filme fossem idiomas diferentes tentando passar a mesma ideia, a mesma mensagem. Essas linguagens podem se aproximar, mas jamais serão as mesmas devido às possibilidades e limitações características de cada língua. Portanto, ao ser apresentado em diferentes planos de expressão, o conteúdo sofre alterações por causa dos efeitos estilísticos da expressão e das coerções do próprio material. “Quando o plano de expressão não apenas veicula um conteúdo (...), mas recria-o (...), novos sentidos são agregados pela expressão ao conteúdo.”139 Desse modo, compreende-se que Mulan acaba por representar, tanto no poema, quanto no filme, uma expressiva quebra de expectativa do que significava o papel feminino em uma sociedade na qual as mulheres não tinham espaço na hierarquia militar. Isso é exaltado por seus supostos grandes feitos, desde representar um homem nos campos de batalha por dez anos sem ser descoberta até retornar para seu lar vitoriosa e condecorada. Em um nível ainda mais profundo, observa-se na obra original, que as características da personagem de resolução pela devoção familiar a redimem de suas subversões e aumentam a admiração a ela destinada, colocando-a, então, como modelo da cultura tradicional chinesa. Esse modelo é perpassado e, mais ainda, ampliado, quando de sua tradução para a linguagem cinematográfica, especialmente, tendo em vista que sua produção e distribuição estiveram a cargo de um dos maiores estúdios cinematográficos do mundo atual. 139 FIORIN, op.cit., p.45. 64 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Monografias, Dissertações, Teses CASTRO, Patrícia Fernandes Viana Franco. Comportamentos de consumo da ‘Geração Z’ e seu papel na construção da identidade hipermoderna: a identidade da marca Converse All Star. Monografia de conclusão de curso em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Niterói: UFF, Departamento de Comunicação Social, 2013. CASTRO, Patrícia Fernandes Viana Franco. 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They ask Daughter who’s in her thought, “No one is on Daughter’s thought, No one is on Daughter’s memory. Last night I saw the army notices, The Khan is calling for a great force. The army register is in twelve scrolls, and every scrolls has Father’s name. Father has no adult son, Mulan has no older brother. Wish to buy a saddle and horse, and serve in Father’s place.” In the East Market she buys a steed, In the West Market she buys a saddle and saddle blanket, In the South Market she buys a bridle, In the North Market she buys a long whip. At dawn she bids farewell to Father and Mother, In the evening she camps on the bank of the Yellow River. 140 Disponível em: http://www.yellowbridge.com/onlinelit/mulan.php. 70 She doesn’t hear the sound of Father and Mother calling for Daughter, She only hears the Yellow River’s flowing water cry jian-jian. At dawn she bids farewell to the Yellow River, In the evening she arrives at the summit of Black Mountain. She doesn’t hear the sound of Father and Mother calling for Daughter, She only hears Mount Yan’s nomad horses cry jiu-jiu. She goes ten thousand miles in the war machine, She crosses mountain passes as if flying. Northern gusts carry sound of army rattles, Cold light shines on iron armor. Generals die in a hundred battles, Strong warriors return after ten years. On her return she sees the Son of Heaven, The Son of Heaven sits in the ceremonial hall. Merits are recorded in twelve ranks And grants a hundred thousand strong. The Khan asks her what she desires. “Mulan has no use for a high official's post. I wish to borrow a ten-thousand mile camel To take me back home.” Father and Mother hear Daughter is coming They go outside the city wall, supporting each other. When Older Sister hears Younger Sister is coming Facing the door, she puts on rouge, 71 When Little Brother hears Older Sister is coming He sharpens the knife, quick, quick, for pig and sheep. “I open the door to my east room, I sit on my bed in the west room, I take off my wartime gown And put on my old-time clothes.” Facing the window she fixes the cloudlike hair on her temples, Facing a mirror she dabs on yellow flower powder She goes out the door and sees her comrades. Her comrades are all shocked. Traveling together for twelve years They didn't know Mulan was a girl. “The male rabbit's feet kick up and down, The female rabbit's eyes are bewildered. Two rabbits running close to the ground, How can they tell if I am male or female?” Músicas do filme Mulan (Disney 1998) I’ll make a man out of you Let’s get down to business To defeat the Huns Did they send me daughters When I asked for sons You’re the saddest bunch I ever met But you can bet Before we’re through 72 Mister, I’ll make a man Out of you Tranquil as a forest But on fire within Once you find your center You are sure to win You’re spineless Pale, pathetic lot And you haven’t got a clue Somehow I’ll make a man Out of you I’m never gonna catch my breath Say goodbye to those who knew me Boy, I was a fool in school For cutting gym This guy’s got them scared to death Hope he doesn’t see right through me Now I really wish that I knew how to swim Be man You must be swift as a coursing river Be a man With all the force of a great typhoon Be a man With all the strength of a raging fire Mysterious as the dark side Of the moon Time is racing toward us Till the Huns arrive Heed my every order 73 And you might survive You’re unsuited for the rage of war So pack up, go home You’re through How could I make a man Out of you Be a man You must be swift as a coursing river Be a man With all the force of a great typhoon Be a man With all the strength of a raging fire Mysterious as the dark side Of the moon Be a man You must be swift as a coursing river Be a man With all the force of a great typhoon Be a man With all the strength of a raging fire Mysterious as the dark side Of the moon A girl worth fighting for For a long time We’ve been marching off to battle In a thundering herd We feel a lot like cattle Like a pounding beat Our aching feet 74 Aren’t easy to ignore Think of instead A girl worth fighting for That’s what I said A girl worth fighting for I want her paler than the moon With eyes that shine like stars My girl will marvel at my strength Adore my battle scars I couldn’t care less what she’ll wear Or what she looks like It all depends on what she cooks like Beef, pork, chicken Bet the local girls Thought you were quite the charmer And I’ll bet the ladies love A man in armor You can guess what We have missed the most Since we went off to war What do we want? A girl worth fighting for My girl will think I have no faults That I’m a major find How about a girl who’s got a brain Who always speaks her mind? Nah… My manly ways and turn of phrase Are sure to thrill her 75 He thinks he’s such a lady-killer I’ve got a girl back home Who’s unlike any other Yeah, the only girl Who’d love him is his mother But when we come home in victory They’ll line up at the door What do we want? A girl worth fighting for Wish that I had A girl worth fighting for A girl worth fighting… True to your heart Whenever you feel your world is crashing down on you Whenever you don’t know Where to turn or what to do Don’t look too far You’ve got the guide To find your way Let your heart decide Be true to your heart You must be true to your heart That’s when the heavens will part And show the world What you believe in Open your eyes Your heart can tell you no lies And when you’re true to your heart 76 Then you’ve got all you need To make it through Be true To your heart Someone you know is on your side Can set you free I can do that for you If you believe in me Why second guess What feels so right Just trust your heart And you’ll see the light Be true to your heart You must be true to your heart That’s when the heavens will part And show the world What you believe in Open your eyes Your heart can tell you no lies And when you’re true to your heart Then you’ve got all you need To make it through You know it’s true It’ll see you through You’ve got to be true To your heart Be true to your heart You must be true to your heart That’s when the heavens will part And show the world 77 What you believe in Open your eyes Your heart can tell you no lies And when you’re true to your heart Then you’ve got all you need To make it through You’ve got to be true To your heart When things are getting crazy And you don’t know where to start Keep on believing, baby Just be true to your heart When all the world around you It seems to fall apart Keep on believing, baby Just be true to your heart You’ve got to be true To your heart O Seu Coração141 Quando te vi, sabia que ia ser assim Eu e você É tudo o que sonhei pra mim Pra que fingir, tentar negar? Não pense mais Deixe o amor chegar Vejo o seu futuro Sempre junto ao meu Sei que você procura 141 Disponível em: letraclub.com/disney/mulan-o-seu-coracao.html 78 Um amor só seu Pra que mentir, se enganar? Não sofra mais Deixe o amor entrar Seu coração, escute o seu coração Não fuja dessa paixão Porque o amor não tem limites Veja então que só o seu coração Irá mostrar a você a estrada que vai te levar a mim Ah! Quando você procura alguém pra conversar E o destino une os dois num só olhar Não tem porque se iludir Não espere mais Deixe o amor surgir Seu coração, escute o seu coração Não fuja dessa paixão Porque o amor não tem limites Veja então que só o seu coração Irá mostrar a você a estrada que vai te levar a mim Meu coração Ouça a voz do coração Ouça bem Ele mostra a direção seu coração ele vai brilhar Ouça bem seu coração Meu coração me leva junto de você Fomos feitos um pro outro Todo mundo vê Agora vem me enlouquecer 79 Só com você não vou mais sofrer Seu coração, escute o seu coração Não fuja dessa paixão Porque o amor não tem limites Veja então que só o seu coração Irá mostrar a você a estrada que vai te levar a mim Seu coração, escute o seu coração Não fuja dessa paixão Porque o amor não tem limites Veja então que só o seu coração Irá mostrar a você a estrada que vai te levar a mim Se tudo dá errado E não acha a solução Ele está do seu lado Ouça o seu coração Num mundo agitado Ninguém pra dar a mão Ele está do seu lado Ouça o seu coração Honor to us all This is what you give me To work with Well, honey I’ve seen worse We’re gonna turn This sow’s ear Into a silk purse We’ll have you washed and dried 80 Primped and polished till you glow with pride Trust my recipe for instant bride You’ll bring honor to us all Wait and see When we’re through Boys will gladly go to war for you With good fortune And a great hairdo You’ll bring honor to us all A girl can bring her family Great honor in one way By striking a good match And this could be the day Men want girls with good taste Calm Obedient Who work fast-paced With good breeding And a tiny waist You’ll bring honor to us all We all must serve our Emperor who guards us from the Huns A man by bearing arms A girl by bearing sons When we’re through you can’t fail Like a lotus blossom, soft and pale How could any fellow say no sale You’ll bring honor to us all 81 There, you’re ready not yet. An apple for serenity, A pendant for balance Breads of jade For beauty You must proudly Show it Now add a cricket Just for luck And even you can’t blow it Ancestors, hear my plea Help me not to make a fool of me And to not uproot my family tree Keep my father standing tall Scarier than the undertaker We are meeting our Matchmaker Destiny Guard our girls And our future as it fast unfurls Please look kindly On these cultures pearls Each a perfect porcelain doll Please bring honor to us Please bring honor to us Please bring honor to us Please bring honor to us Please bring honor to us all Reflection (versão L. Salonga) 82 Look at me, I will never pass for a perfect bride, or a perfect daughter. Can it be, I'm not meant to play this part? Now I see, that if I were truly to be myself, I would break my family’s heart. Who is that girl I see, staring straight back at me? Why is my reflection someone I don’t know? Somehow I cannot hide who I am, though I’ve tried. When will my reflection show, who I am, inside? When will my reflection show, who I am, inside? Reflection (versão C. Aguilera) Look at me You may think you see who I really am But you’ll never know me Every day It’s as if I play a part Now I see If I wear a mask I can fool the world But I cannot fool my heart 83 Who is that girl I see Staring straight back at me When will my reflection show Who I am inside I am now In a world where I have to hide my heart And what I believe in But somehow I will show the world What’s inside my heart And be loved for who I am Who is that girl I see Staring straight back at me Why is my reflection Someone I don’t know Must I pretend that I’m someone else for all time When will my reflection show who I am Inside, there’s a heart That must be free to fly And I burn with a need to know the reason why why must we all conceal what we think how we feel Must there be a secret me 84 I’m forced to hide I won’t pretend that I’m Someone else for all time When will my reflection show Who I am inside When will my reflection show Who I am inside 85