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ÍNDICE Págs. Introdução …………………………………………………………………………… 7 1. Enquadramento do tema …………………………...…………………………... 7 2. Indicação de sequência e método ……………………………………………. 12 PARTE I: A renúncia a direitos fundamentais Capítulo I: Conceito de renúncia a direitos fundamentais ………………… 15 1. Aproximação ao conceito ……………………………………………………… 15 2. A renúncia enquanto exercício e afectação negativa de direitos fundamentais …………………………………………………………………… 20 3. Distinção de figuras afins ……………………………………………………... 27 3.1. A perda e o não-exercício de direitos fundamentais …………… 27 3.2. A autolesão …………………………………………………………. 32 3.3. O mero exercício de direitos ………………………………………. 35 4. Possíveis configurações da renúncia ………………………………………... 46 4.1. A renúncia ao exercício e a renúncia à titularidade dos direitos fundamentais: negação da distinção ……………………………………. 47 4.2. A renúncia total e a renúncia parcial ………………………………. 51 1 Capítulo II: Controvérsias jurídicas sobre a renunciabilidade e a fundamentação do poder de renúncia ………………………………………... 53 1. A indisponibilidade dos direitos fundamentais ………………….…. ……… 54 2. A fundamentação jurídica da renúncia ……………………………………… 67 2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana ………………….…... 67 2.2. O direito ao desenvolvimento da personalidade …………………... 84 2.3. Posição adoptada: o concurso de direitos fundamentais ………… 98 Capítulo III: Condições da renúncia …………………………………………...107 1. A voluntariedade da declaração de renúncia …………………...…………. 107 2. A capacidade para dispor sobre posições subjectivas de direitos fundamentais …………………………………………………………………... 123 PARTE II: Os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares Capítulo I: Os limites da renúncia no contexto de um Estado de Direito plural ………………………………………………………………………………...127 1. A defesa da pessoa contra si própria e o paternalismo estadual………...129 2. Liberalismo versus comunitarismo ……………………………….…………. 133 3. Liberalismo neutral versus liberalismo perfeccionista ……………………. 138 4. Perfeccionismo versus paternalismo ………………………………………. 151 5. O dever do Estado de proteger a pessoa contra si própria ……………….169 2 Capítulo II: A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no âmbito da renúncia a direitos fundamentais ………………………………. 175 1. Apresentação do problema …………………………………………………. 176 2. Posição adoptada: a vinculação directa prima facie dos particulares aos direitos fundamentais ……………………………………………………………. 184 3. Consequências para o problema da renúncia nas relações entre particulares…………………………………………………………………………. 194 Capítulo III: Os limites da renúncia propriamente ditos …………………. 197 1. Considerações prévias: os direitos fundamentais enquanto princípios … 199 2. Tópicos de argumentação ……………………………………………………. 207 2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite … 210 2.2. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso … 227 2.3. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais ………………. 239 2.4. A ordem pública e os bons costumes ……………………………. 245 2.5. A maior ou menor disponibilidade dos direitos fundamentais … 251 2.6. A exigência de acto legislativo prévio …………………………….. 260 Capítulo IV: Tendências paternalistas na doutrina e na jurisprudência: análise de alguns casos ……………………………………………………….. 270 Síntese conclusiva ………………………………………………..………….…. 286 Bibliografia citada ………………………………………………………….…….297 3 Abreviaturas e siglas AcP – Archiv für die Civilistische Praxis AöR – Archiv des öffentlichen Rechts art. – artigo arts. – artigos BGHSt – Entscheidungen des Bundesgerichtshof in Strafsachen BMJ – Boletim do Ministério da Justiça BVerfG – Bundesverfassungsgericht BVerfGE – Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht BverwG – Bundesverwaltungsgericht BVerwGE – Entscheidungen des Bundesverwaltungsgerichts coord. – coordenador coords. – coordenadores DAR – Diário da Assembleia da República DJAP – Dicionário Jurídico da Administração Pública DöV – Die öffentliche Verwaltung DVBl – Deutsches Verwaltungsblatt ed. – editor eds. – editors ERCL – European Review of Contract Law GewArch – Gewerbearchiv JA – Juristische Arbeitsblätter JURA – Juristische Ausbildung JuS – Juristische Schulung JZ – Juristen Zeitung LR – Law Review NJW – Neue Juristische Wochenschrift NVwZ – Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht NZV – Neue Zeitschrift für Verkehrsrecht org. – organizador orgs. – organizadores 4 OVGE – Entscheidungen des Oberverwaltungsgerichts p. – página pp. – páginas REDC – Revista Española de Derecho Constitucional Rev. trim. dr. h. – Revue Trimestrielle des Droits de l'Homme RLJ – Revista de Legislação e Jurisprudência RMP – Revista do Ministério Público RRJ – Revue de la Recherche Juridique – Droit Prospectif ROA – Revista da Ordem dos Advogados ss. – seguintes trad. – tradução v. – versus VerwArch – Verwaltungsarchiv ZG – Zeitschrift für Gesetzgebung ZRP – Zeitschrift für Rechtspolitik 5 (…) os que se interessam pela boa legislação indagam acerca das virtudes e dos vícios cívicos. A conclusão clara é a de que a cidade que é verdadeiramente cidade, e não apenas de nome, deve preocupar-se com a virtude. Se assim não fosse, a comunidade política decairia numa aliança que apenas se distinguiria pela contiguidade territorial de outras alianças em que os membros vivem a uma certa distância uns dos outros. E a lei tornar-se-ia um simples convénio – ou na frase do sofista Licofronte “uma garantia dos direitos dos homens” – mas incapaz de tornar bons e justos os cidadãos. Aristóteles, Política “In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign.” John Stuart Mill, On Liberty Nota prévia: não foram acrescentadas ou actualizadas quaisquer referências bibliográficas desde Maio de 2010. Quanto às traduções de Autores estrangeiros, exceptuando os casos em que expressamente se refira o contrário, são todas da nossa responsabilidade. 6 Introdução 1. Enquadramento do tema Escolhemos para este estudo o tema dos limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares. Em termos muito gerais, temos como objectivo determinar os limites dentro dos quais o titular de um direito fundamental pode validamente dele dispor, enfraquecendo a sua posição jurídica subjectiva perante outro ente privado. A problemática da renúncia a direitos fundamentais1, seja na relação Estado/cidadãos, seja nas relações entre particulares, é um tema com uma grande actualidade, na medida em que contende com uma série de questões controvertidas que hoje se colocam e para as quais não existe (e provavelmente nunca existirá) uma única resposta. Serão “casos difíceis”2, por exemplo, as situações de renúncia ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada em reality shows3, a renúncia ao direito à integridade física através da castração química de autores de crimes sexuais4, do consentimento na 1 Tratando o tema sob esta designação, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 263 – 335 (também in Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 211 – 282); JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia aos direitos fundamentais”, in DJAP, 1.º Suplemento, Lisboa, 1998, pp. 409 – 425. 2 Sobre o conceito de hard cases, ver RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously, 2.ª impressão (com resposta a críticas), Duckworth, London, 2009, pp. 81 ss; RONALD DWORKIN, A Matter of Principle, Clarendon Press, Oxford, 1985, pp. 119 ss; ANABELA LEÃO, “Em torno dos conceitos de regra e de princípio. A polémica entre Hart e Dworkin”, in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2008, p. 66. GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, (trad. MARINA GASCÓN), 8.ª Edição, Editorial Trotta, Madrid, 2008, p. 139, utiliza a expressão “casos críticos” e considera que estes são os casos sobre os quais não existe acordo (…) entre os intérpretes acerca do sentido e do valor que se lhes deve atribuir”. O Autor dá como exemplos as questões que se relacionam com os temas da vida (a concepção, o aborto), da morte (a eutanásia), da saúde (os transplantes, a engenharia genética) e da bioética em geral. 3 Sobre esta questão, ver BENEDITA MAC CRORIE, “A renúncia ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in DJAP, 3.º Suplemento, Lisboa, 2007, pp. 618 ss. 4 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1997, p. 72. 7 participação em experiências médicas5 ou na doação de órgãos6, e a renúncia ao direito à vida nos casos de eutanásia7 ou quando se admitem disposições antecipadas da vontade8. Estes exemplos são reconduzíveis à figura da renúncia e é comum a todos eles a presença de um interesse do titular do direito fundamental em dispor desse direito de modo a tomar uma decisão que considera relevante para a conformação da sua própria existência9. Como primeira delimitação do tema, vamos tratar esta figura do ponto de vista do Direito Constitucional10, referindo essencialmente situações de 5 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, GCA-Verlag, Herdecke, 1999, p. 2. 6 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 252 ss e 323 ss, considera ainda como exemplos de renúncia à integridade física a análise consentida do genoma (embora entenda que não seja de excluir que possam estar aqui em causa outros direitos, como o direito à identidade genética e o direito à autodeterminação informacional genética, que abrange um direito a não saber) e a manipulação genética. 7 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 272 e 273, refere como exemplos de situações de renúncia ao direito à vida os casos de doentes em estado terminal que pedem auxílio para pôr termo à sua vida ou o caso de uma mãe, doente terminal sem possibilidades de recuperação que, para salvar a vida do filho lhe pretende doar um órgão, o que irá inevitavelmente provocar a sua própria morte. 8 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 2. OLIVIER DE SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism under the European Convention on Human Rights“, in Northern Ireland Legal Quarterly, Vol. 51, n.º 3, 2000, pp. 507 e 508, considera, no entanto, que nestes casos apenas mediatamente se renuncia ao direito à vida. O que está aqui em causa é essencialmente o exercício do direito a recusar tratamento médico, que terá como consequência a morte, mas não implica admitir-se um direito geral de renúncia à vida. 9 ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, in ERNST BENDA – WERNER MAIHOFER – HANS-JOCHEN VOGEL – KONRAD HESSE – WOLFGANG HEYDE, (trad. ANTONIO LÓPEZ PINA) Manual de Derecho Constitucional, 2.ª Edição, Marcial Pons, Barcelona, 2001, p. 141. 10 As raízes históricas da renúncia remontam ao direito romano: “cuique licet his quae pro se introducta sunt renunciare”. Ver HELMUT QUARITSCH, “Der Verzicht im Verwaltungsrecht und auf Grundrechte”, in PETER SELMER – INGO VON MÜNCH (orgs.), Gedächtnisschrift für Wolfgang Martens, Walter de Gruyter, Berlin, New York, 1987, p. 407; também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 6. De facto, “a origem e o desenvolvimento dogmáticos do conceito de renúncia a direitos podem ser localizados quer no Direito Civil (…) quer no Direito Penal”, existindo uma “íntima conexão da problemática da renúncia com a máxima ‘volenti non fit injuria’”. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 264 e 265. Assim sendo, não podemos deixar de, ao longo deste trabalho e sempre que tal se justifique, recorrer aos contributos do Direito Civil e do Direito Penal, nos quais “[a] ideia da limitação voluntária dos direitos e a relevância do consentimento como causa geral de exclusão da ilicitude” está há muito afirmada”. Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 312, nota 114. De todo o modo, apesar de ter surgido inicialmente no direito privado, a renúncia, enquanto instituto jurídico, desempenha hoje um papel relevante nos diferentes domínios jurídicos. Ver KNUT FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, Würzburg, 1968, pp. 13 ss. 8 renúncia a posições subjectivas protegidas pelas normas constitucionais que são designadas, entre nós, por direitos, liberdades e garantias, uma vez que é sobretudo em relação a estas que dizem respeito os denominados “casos difíceis”11. Tal não significa, no entanto, que não se possa colocar a questão da renúncia a direitos económicos, sociais e culturais e, em particular, aos chamados direitos derivados a prestações12. Não existe no Direito Constitucional “um princípio geral segundo o qual o consentimento funcione como justificação de intervenções, de outra forma ilegítimas, do poder público [ou de entes privados] na esfera dos particulares”13. De facto, a Constituição da República Portuguesa (CRP) não regula expressamente o problema da admissibilidade da renúncia e das suas “condições e limites”, pelo que, em geral, a resposta para estas questões não decorre imediatamente do texto constitucional, o que não significa, no entanto, que dos seus preceitos não se possam retirar alguns indícios úteis14. A questão de saber quais os limites do “poder individual de dispor das 11 Tomando a parte pelo todo vamos, ao longo deste trabalho, utilizar indistintamente as expressões direitos fundamentais e direitos, liberdades e garantias. 12 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 465, parece efectivamente admitir a possibilidade de renúncia (autolimitação) a direitos sociais. Não está subjacente a esta distinção “uma diferenciação essencialista entre direitos, liberdades e garantias e direitos sociais”. Ela assenta apenas nos seguintes “critérios estruturais: o critério da determinabilidade e o critério da natureza dos condicionamentos que afectam a realização dos direitos fundamentais por parte dos poderes públicos”. Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 147. O Autor defende “uma dogmática unitária aplicável a todos os direitos fundamentais”. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., pp. 133 e ss; JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Wolters Kluwer – Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 344 ss. 13 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 265. Considerando que também no ordenamento jurídico austríaco não existe esse princípio geral para o direito privado e, consequentemente, ainda menos para o direito público, ver GABRIELE KUCSKOSTADLMAYER, “Der Verzicht auf öffentliche Rechte”, in HEINZ SCHÄFFER – WALTER BERKA – HARALD STOLZLECHNER – JOSEF WERNDL (orgs.), Staat – Verfassung – Verwaltung, Festschrift anlässlich des 65. Geburtstages von Prof. DDr. DDr. h.c. Friedrich Koja, Springer Verlag, Wien, New York, 1998, p. 581. Por seu lado, GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 54 e 55, entende que os “pressupostos de base” do princípio volenti non fit injuria não são aplicáveis ao Direito Constitucional, onde “a vontade do indivíduo não tem um significado decisivo, mas apenas deve entrar no jogo conjunto entre interesses individuais e interesses públicos”. Daí que, para o Autor, a vontade do indivíduo não possa ter, nesta sede, o mesmo significado que tem no direito privado. 14 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 311 e 312. 9 posições jurídicas próprias tuteladas por normas de direitos fundamentais”15 adquire uma relevância acrescida no contexto social presente, no qual se tem vindo a entender que a agressão a direitos fundamentais poderá resultar também da actuação de entidades privadas16. Apesar de o problema da renúncia ser sobretudo abordado na perspectiva das relações Estado/cidadãos, o que reflecte a concepção tradicional de que os maiores perigos para a esfera subjectiva dos indivíduos advêm da acção dos entes públicos e não da acção de outros sujeitos privados, cada vez mais se constata que esta problemática tem uma importância análoga ou até superior no âmbito das relações entre particulares17. Assim, julgamos pertinente abordar a questão da renúncia por este prisma por duas ordens de razões: por um lado, porque se trata de uma questão carecida de tratamento mais aprofundado, uma vez que não há sequer consenso na doutrina sobre se a renúncia a direitos fundamentais tem algum significado nas relações que os cidadãos estabelecem entre si18. Por outro lado, porque nos parece fundamental indagar se os limites da renúncia no âmbito das relações que se estabelecem entre o Estado e os particulares são 15 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271. 16 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, in Rivista di Diritto Civile, n.º 6, 2002, p. 804; KONRAD HESSE, “Significado de los derechos fundamentales”, in ERNST BENDA – WERNER MAIHOFER – HANSJOCHEN VOGEL – KONRAD HESSE – WOLFGANG HEYDE, Manual de Derecho Constitucional, (trad. ANTONIO LÓPEZ PINA), 2.ª Edição, Marcial Pons, Barcelona, 2001, p. 107. Considerando também que num Estado democrático os perigos para os direitos dos indivíduos advêm “cada vez mais dos poderes privados”, ver JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever de Legislar e Protecção Jurisdicional contra Omissões Legislativas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2003, p. 44. 17 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 804, nota 5. Defendendo que a renúncia “tanto pode surgir no quadro das relações entre o Estado e o cidadão como no âmbito das relações jurídicas privadas (onde aliás ocorrem as hipóteses mais frequentes)”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, Principia, Estoril, 2007, p. 136. Alguns dos “casos difíceis” que referimos consubstanciam-se, de facto, em situações de renúncia nas relações entre particulares e outros ainda poderão ocorrer quer perante o Estado quer perante entes privados. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 265 e 266, dá também alguns exemplos de renúncia nas relações entre particulares: será o caso dos contratos celebrados por jogadores de futebol, nos quais estes se vinculam a respeitar determinadas exigências estabelecidas nos regulamentos dos clubes ou quando se obrigam a não jogar em determinados clubes caso regressem a Portugal; o caso dos trabalhadores de uma dada empresa que se vinculam a não fazer greve; ou ainda quando alguém se sujeita a ensaios clínicos com medicamentos. Para o Autor, em qualquer destas situações está “directa ou indirectamente em causa um problema de renúncia a direitos fundamentais”. 18 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 215. 10 extensíveis às relações jurídicas privadas. O tratamento do problema da renúncia nesta perspectiva implica que analisemos previamente a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais19. De facto, só faz sentido falar de um poder de disposição individual nas relações entre privados se efectivamente se considerar que existe uma eficácia horizontal destes direitos. Torna-se, por isso, imprescindível uma tomada de posição quanto à questão de saber em que termos os direitos fundamentais são também aplicáveis nas relações jurídicas privadas20. Finalmente, a resposta ao problema que vamos estudar depende, em grande medida, da concepção de Estado que se defende e do papel que se considera que este deve (ou não) ter na condução da vida dos cidadãos. Pensamos que há uma tendência dos poderes públicos para limitar excessivamente o poder de dipor sobre os direitos fundamentais21, pelo que procuraremos estabelecer alguns critérios que nos permitam aferir com maior clareza até onde pode o Estado ir quando interfere nesse poder. Na medida em que a renúncia “tem ainda justificação lógica no pressuposto filosófico da não compossibilidade da realização simultânea de todos os bens ou interesses da liberdade” deve, em regra, ser reconhecido ao titular dos direitos “um poder de definição de prioridades na realização concreta da sua esfera de liberdade”22. Consequentemente, é fio condutor deste trabalho a finalidade de alargar o campo da renúncia, o que implica que tenhamos em consideração os problemas mais gerais do paternalismo estadual e da defesa da pessoa contra si própria23, uma vez que aquele que renuncia a um direito fundamental e 19 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 266. 20 LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, in Persona y Derecho, n.º 45, 2001, p. 137. 21 Como nos diz ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, 2.ª Edição, Tenacitas, Coimbra, 2008, pp. 154 e 155: “O direito derrama-se sobre sectores até hoje subordinados a outros quadros normativos, cuja estabilidade interna e equilíbrio relativo ficam assim gravemente prejudicados. (…) O legislador (…) julga(-se) autorizado a submeter a regras jurídicas comportamentos dos domínios do económico, da cultura ou do foro da personalidade, tradicionalmente regulados por normas específicas ou por preceitos de moralidade, de cortesia ou de conveniência política. Torna-se imperioso perguntar sempre em cada caso se essas invasões se justificam pela sua indispensabilidade”. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, no prefácio desta obra, considera que “nesta mensagem ainda não estamos próximo da ‘lucidez do desespero’, mas convém ficar de sobreaviso. Os Big Brother espreitam”. 22 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 139 e 140. 23 Defendendo que é de distinguir as situações de renúncia das situações de defesa da pessoa 11 permite que um terceiro restrinja a sua esfera juridicamente protegida por esse direito está, ainda que de forma indirecta, a lesar-se a si mesmo. A ideia de que o Estado tem um dever de proteger a pessoa contra si própria encontra-se muitas vezes explícita ou implicitamente na base dos limites que se estabelecem à liberdade de renúncia24, pelo que nos parece essencial, antes de analisarmos os limites propriamente ditos, tratar o problema da legitimidade dessa defesa. É que “se tal protecção é justificável, isso significa que se admite, pelo menos em alguma medida, que o indivíduo não pode dispor à sua vontade dos direitos e liberdades de que é titular, mesmo quando ao agir de determinado modo não esteja a prejudicar outras pessoas”25. É nosso desiderato encontrar uma resposta a estas questões que se coadune com aquela que consideramos ser a imagem de Homem e do mundo subjacentes à Constituição da República Portuguesa, isto é, que seja consentânea com um “Estado que permite (…) [ao] Homem sê-lo, o mais completamente que é possível”26. 2. Indicação de sequência e método Agora que já vimos com mais cuidado qual o problema de que nos pretendemos ocupar vamos, na Parte I da tese, definir o conceito de renúncia a direitos fundamentais, distinguindo a renúncia de figuras afins, de modo a delimitar o objecto do nosso estudo e a compreender que situações são, de facto, recondutíveis a esta figura jurídica. Veremos, depois, quais as possíveis contra si própria, uma vez que a renúncia a direitos fundamentais se refere a uma situação de “’protecção aceite contra si mesmo’, (…) o que permite fazer a distinção com uma protecção imposta”, ver JÜRGEN SCHWABE, “Der Schutz des Menschen vor sich selbst”, in JZ, n.º 2, 1998, p. 68. 24 Considerando que na renúncia a direitos fundamentais “se coloca a questão da protecção de direitos fundamentais contra o próprio titular”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463. 25 PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, Éditions Bruylant, Bruxelles, 2001, p. 361. Colocando a questão de saber se “a intenção última do direito é a construção de uma sociedade moral ou a ordenação da convivência”, ver EULALIA PASCUAL LAGUNAS, Configuración Jurídica de la Dignidad Humana en la Jurisprudência del Tribunal Constitucional, Bosch Editor, 2009, p. 23. 26 FRANCISCO LUCAS PIRES, Uma Constituição para Portugal, Coimbra, 1975, p. 4. 12 configurações que a renúncia pode assumir, para, em seguida, tratar as objecções usualmente apontadas à renunciabilidade, bem como a fundamentação jurídica do poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais. Para terminar, atentaremos nas condições da renúncia. Na Parte II propomo-nos analisar os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas, o que, conforme já referimos, pressupõe a apreciação prévia dos problemas da legitimidade do paternalismo estadual e da defesa da pessoa contra si própria, bem como da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Interessa-nos, fundamentalmente, perceber quais os topoi a ter em conta na ponderação a fazer para aferir a validade de uma renúncia concreta. Para ilustrar as nossas posições vamos ainda referir alguns casos que reflectem aquilo que pensamos ser uma abordagem tendencialmente paternalista da doutrina e da jurisprudência quanto ao alcance do poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais. Neste trabalho faremos apelo a direitos estrangeiros bem como ao direito internacional, através do recurso à doutrina e jurisprudência de diferentes ordens jurídicas e também, quando tal for oportuno, à jurisprudência de instâncias internacionais, maxime do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Optámos por não fazer um trabalho de Direito Comparado, o que exigiria uma análise pormenorizada da figura da renúncia a direitos fundamentais nas diferentes ordens jurídicas a comparar27. Tal não nos pareceu a melhor via porque a figura da renúncia tem sido tratada sobretudo na Alemanha e é com base na doutrina alemã que a nossa ordem jurídica tem abordado a questão28, pelo que haverá na tese um diálogo constante com essa 27 Ver CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução ao Direito Comparado, Almedina, Coimbra, 1998, p. 12. 28 Também nos Estados Unidos se discute este problema, embora se entenda que existe um “paradoxo" no Direito Constitucional no que se refere à possibilidade de os indivíduos poderem renunciar a direitos fundamentais em troca de determinados benefícios do Estado, uma vez que existem duas doutrinas constitucionais distintas relativamente a esta questão: a que diz respeito à renúncia a garantias do procedimento criminal e a que trata da renúncia a outras disposições, que se designa “doutrina das condições inconstitucionais”. Em geral há uma grande abertura no que diz respeito a acordos extrajudiciais no procedimento criminal, não se verificando contudo o mesmo no que se refere aos restantes direitos constitucionalmente protegidos. Tem-se, por isso, defendido que ao analisar a renúncia sob duas perspectivas diferentes, com diferentes pressupostos e preocupações, os tribunais e a doutrina têm falhado em pensar cuidadosa e coerentemente acerca do problema da renúncia a direitos 13 mesma doutrina. Entre nós o tema tem merecido pouco desenvolvimento, com excepção do artigo de Jorge Reis Novais29, que assume um lugar incontornável nesta matéria. Finalmente, procurando evitar intrusões abusivas em áreas que não são estritamente do âmbito do direito, não poderíamos, ainda assim, ignorar os contextos filosóficos e políticos em que se inscreve esta problemática. Na medida em que as questões que vamos analisar pressupõem uma determinada concepção do Estado e do papel que este deve (ou não) ter na condução da vida dos cidadãos, uma análise daquilo que mais recentemente tem vindo a ser discutido no âmbito da filosofia política torna-se, por isso, indispensável. fundamentais. Sobre esta questão, ver JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, in Northwestern University LR, Vol. 97, n.º 2, 2003, pp. 801 – 803 e 848. Sobre a renúncia no procedimento criminal, ver MICHAEL E. TIGAR, “Waiver of constitutional Rights: disquiet in the citadel”, in Harvard LR, Vol. 84, n.º 1, 1970/1971, pp. 1 ss; WILLIAM J. STUNTZ, “Waiving Rights in Criminal Procedure”, in Virginia LR, Vol. 75, 1989, pp. 761 ss. Sobre a doutrina das condições inconstitucionais, ver KATHLEEN M. SULLIVAN, “Unconstitutional Conditions” in Harvard LR, Vol. 102, n.º 7, 1989, pp. 1415 ss; RONALD B. STANDLER, “Doctrine of Unconstitutional Conditions in the USA”, http://www.rbs2.com/duc.pdf (última visita a 12.04.2010). JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, in Der Staat, n.º 17, 1978, p. 547, enquadra a doutrina das “condições inconstitucionais” no problema das relações especiais de poder, considerando que nestes casos estão em causa sobretudo restrições heterónomas e não verdadeiras renúncias. Quanto às relações especiais de poder e a sua relação com a problemática da renúncia, ver infra p. 47. 29 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit.. 14 PARTE I: A renúncia a direitos fundamentais Capítulo I – Conceito de renúncia a direitos fundamentais 1. Aproximação ao conceito Não há consenso entre os diferentes Autores quanto ao que se deve entender por renúncia30, pelo que vamos, num primeiro momento, procurar delimitar a figura, para depois podermos desenvolver mais aprofundadamente o problema dos seus limites. Na primeira parte da tese temos sobretudo uma intenção de revisitação crítica da doutrina, em particular, portuguesa e alemã, relativa a este tema. Assumindo a definição dada por Jorge Reis Novais, a renúncia a direitos fundamentais traduz-se no “enfraquecimento voluntário de uma posição jurídica individual protegida por uma norma de direito fundamental, determinado por uma declaração de vontade do titular que o vinculou juridicamente a aceitar o correspondente alargamento da margem de actuação da entidade pública [ou privada] face às pretensões que decorriam daquela posição”31. No direito privado a figura da renúncia implica a extinção de um direito32, uma vez que se trata de um “acto voluntário pelo qual uma pessoa perde um direito de que é titular, sem uma concomitante atribuição ou transferência dele 30 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, in JuS, n.º 12, 1985, p. 925. 31 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 285; ver também JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 531. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 136, define renúncia como “a afectação de uma posição de direito fundamental, traduzida na redução dos efeitos de protecção desse direito, por força da vontade do respectivo titular”. Considerando que não pode haver renúncia a direitos fundamentais a favor do Estado, uma vez que isso “equivaleria a admitir a sua desvinculação dos direitos fundamentais, direitos cuja função primordial é precisamente limitar os poderes públicos”, ver LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, cit., p. 135. 32 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 270; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 371. Sobre a renúncia abdicativa e o seu efeito extintivo do direito, ver, mais desenvolvidamente, FRANCISCO MANUEL PEREIRA COELHO, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1995. 15 para outrem”33. Já a renúncia a direitos fundamentais normalmente não se traduz na extinção do direito em causa. Neste âmbito, a questão que se costuma colocar é a de “um compromisso individual e voluntário de um cidadão não invocar temporariamente (…) uma determinada posição jurídica tutelada por uma norma de direito fundamental”34. Em consequência disso, surgem diversas posições que sugerem o abandono da fórmula “renúncia a direitos fundamentais”, propondo a sua substituição por outras designações. Parece-nos ser esse o caso de Gomes Canotilho, que considera que, no que se refere à problemática da renúncia, a orientação a seguir deve ser diferenciada. Assim, entende que “é irrenunciável qualquer direito medularmente inerente à dignidade da pessoa humana” e que “os direitos fundamentais, como totalidade, são irrenunciáveis”. Por outro lado, defende que “os direitos, liberdades e garantias, isoladamente considerados, são também irrenunciáveis, devendo distinguir-se, no entanto, entre renúncia ao núcleo substancial do direito (constitucionalmente proibida) e limitação voluntária ao exercício (aceitável sob certas condições) de direitos”. Finalmente, considera ainda que “os direitos fundamentais dos trabalhadores e das suas organizações são, na ordem constitucional portuguesa, irrenunciáveis, sobretudo quando se trata de direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores”35. Gomes Canotilho considera, então, que não pode haver renúncia a direitos fundamentais mas apenas “limitação voluntária ao exercício de alguns direitos”. Ora esta contraposição estabelecida pelo Autor entre renúncia e limitação voluntária parece pressupor uma interpretação do conceito de renúncia como implicando necessariamente a extinção de direitos36. 33 ANA PRATA, Dicionário Jurídico, Almedina, Coimbra, 1995, p. 848. 34 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 270 e 271. 35 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 464. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 454, entendem que o direito à integridade física e psíquica é “um direito pessoal irrenunciável, a não ser nos casos em que o consentimento seja aceitável (…) ou haja necessidade de intervenções e de tratamento médico-cirúrgicos”. Defendendo também que os direitos fundamentais são irrenunciáveis mas que a limitação ao exercício do direito é “aceitável sob certas condições”, ver CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 275. 36 Também LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 372, considera a renúncia um “acto essencialmente unilateral com o qual o titular de uma 16 Jorge Miranda, por seu lado, entende que os direitos fundamentais “são indisponíveis e irrenunciáveis”, pelo que “[n]inguém pode, por qualquer forma, ceder ou abdicar da sua titularidade”. Tal não significa, no entanto, “que os seus titulares não possam ou não devam aceitar a sua restrição; ou que não possam, por sua vontade, suspender o exercício de alguns desses direitos”. Assim, considera que, por princípio, ninguém pode renunciar a direitos fundamentais, apenas se concebendo que o próprio titular deste ou daquele direito venha a estabelecer uma “auto-restrição” ou “auto-suspensão”, para fins não contrários aos princípios do Estado de Direito democrático37. Este Autor entende ainda que a forma como os defensores do conceito de renúncia o definem mostra que, na realidade, não se trata de uma verdadeira renúncia, na medida em que o que está em causa é a vinculação jurídica do indivíduo “a não invocar o seu direito fundamental perante as entidades públicas, nomeadamente, comprometendo-se, em geral, a não exercer, temporária ou pontualmente, algumas das pretensões, faculdades ou poderes incorporados no seu direito”38. Jost Pietzcker, por sua vez, considera que “em rigor o conceito de ‘renúncia a direitos fundamentais’ implica a renúncia total a um direito fundamental como um todo”. Partindo desta definição, para o Autor o conceito posição de poder dele se despoja voluntariamente, dada a (…) intransmissibilidade dos direitos da personalidade”. 37 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 384 e 385. Para o Autor, “auto-restrição é (…) o que se verifica com a integração em estatutos especiais como os dos militares e dos agentes de forças de segurança (art. 270.º) ou em estatutos como os dos juízes, dos magistrados do Ministério Público, dos diplomatas ou dos dirigentes da Administração Pública. Pretendendo fazer parte de determinadas instituições, com as contrapartidas de serviço público e de autoridade os cidadãos, necessariamente aceitam subordinar-se às exigências próprias do seu funcionamento. De todo o modo, como as restrições provêm da Constituição, em rigor, não se trata senão de uma auto-restrição indirecta ou consequencial”. Como hipóteses de “autosuspensão” ou “auto-suspensão aparente” refere a possibilidade “de prescindir de advogado durante uma diligência judicial (art. 20.º, n.º 2, 2.ª parte); fazer esterilização por razões médicas (art. 25.º); dispor-se ao transplante de órgão ou tecido para salvar a vida de outrem (art. 25.º); solicitar a entrada da polícia no seu domicílio (art. 34.º), comprometer-se, enquanto membro de uma associação, a não se pronunciar sobre ela fora da assembleia-geral (art. 37.º); concordar em não exercer determinada profissão (art. 47.º) ou em não residir em certos lugares ou regiões (art. 44.º); não exercer direito de greve durante a vigência de certa convenção colectiva de trabalho (art. 57.º); não exigir o pagamento de pensões da segurança social (art. 63.º); aceitar, sendo professor ou aluno, não participar na gestão da sua escola (art. 77.º); pedir a intervenção do Estado na sua empresa (art. 86.º), etc”. 38 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 385, nota 3. 17 de renúncia não é o mais adequado, uma vez que defende que uma tal renúncia raramente ocorre e que, a ocorrer, deve ser considerada ilegítima. Segundo ele, a utilização deste conceito remete-nos para o conceito de renúncia de Direito Civil, com o qual não se identifica, uma vez que deve ser mais amplamente compreendido. Em consequência disso, entende que a designação mais correcta é a de “disposição individual acerca de posições de direitos fundamentais”39. Finalmente, Knut Amelung considera pertinente a distinção entre renúncia (que considera implicar a extinção do direito) e “consentimento para a lesão de um bem jurídico jusfundamental”. Segundo ele, o critério distintivo prende-se com a força vinculante da renúncia que não existe no consentimento, uma vez que este último é livremente revogável. Assim, a renúncia a um direito de liberdade significa a perda de um direito, enquanto o consentimento, pelo contrário, se traduz num exercício de autonomia individual, uma vez que quem consente mantém o domínio dos acontecimentos40. Não estamos, no entanto, de acordo com estas posições. Com todo o respeito pelas outras opiniões referidas, pensamos que faz sentido manter o conceito de renúncia a direitos fundamentais41, uma vez que o conceito em 39 JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 531. Também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, Verlag C. H. Beck, München, 1994, pp. 887 e 906, ainda que não pondo de lado o conceito de renúncia, uma vez que esta é a designação mais corrente utilizada pela doutrina, julgam preferível a designação de “renúncia a fazer valer a protecção de um direito fundamental”. Seguindo a posição de Pietzcker, para os Autores o conceito de renúncia é “pouco feliz”, na medida em que nos reconduz ao conceito mais restrito de renúncia do Direito Civil, com o qual não tem necessariamente de se identificar. Também KLAUS RÜDIGER WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche Rechte, Hamburg, 1966, pp. 78 ss; ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2002, p. 89. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 371, considera que entre a “renúncia” e a “autolimitação” existe “uma distinção de grau, entre o que seja uma redução parcial ou uma ablação total (…) do exercício do direito”. Ver também, sobre a posição de Pietzcker, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271, cuja tradução da expressão “individuelle Verfügung über Grundrechtspositionen” utilizamos. 40 KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, Duncker & Humblot, Berlin, 1981, pp. 14 ss. Parece ser também esse o caso de HANS D. JARASS – BODO PIEROTH, Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, 9.ª Edição, Verlag C. H. Beck, München, 2007, p. 31. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 33, sustenta, no entanto, que não existem diferenças tão significativas entre os conceitos de renúncia e de consentimento, tal como Amelung os utiliza nestes casos, que justifiquem a não utilização do conceito de renúncia. 41 Pensamos que será também o caso de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 308 e 309, que embora utilize 18 Direito Constitucional não tem de corresponder ao conceito de direito privado, devendo a renúncia necessariamente significar a extinção de um direito. Esta é também a posição defendida por Jorge Reis Novais, pois segundo o Autor, “o menor denominador comum das situações de renúncia é (…) esse poder individual de dispor das posições jurídicas próprias tuteladas por normas de direitos fundamentais, de cujo exercício resulta, como consequência jurídica, uma diminuição da protecção do indivíduo”42. Assim definida a renúncia, o exercício do poder de disposição sobre uma posição subjectiva de direito fundamental não extingue inevitavelmente o direito e não tem de ser irrevogável. Por outro lado, ao delimitarmos à partida o conceito de renúncia, no sentido de considerar que não pode haver uma “renúncia total a um direito fundamental como um todo”43, estamos a restringir o poder de disposição em que se traduz a renúncia, poder esse que, como teremos oportunidade de desenvolver mais à frente, é também jusfundamentalmente protegido, antes sequer de atentarmos nas condições e limites dessa mesma renúncia. Consequentemente, estamos de acordo com Jorge Reis Novais, na medida em que considera que não faz sentido adoptar “uma concepção restritiva a priori do conceito de renúncia”, devendo este também abarcar, pelo menos à partida, as situações de renúncia que impliquem a extinção do direito. Uma concepção não restritiva é justificada, uma vez que, de outro modo, “as modalidades mais ‘ambiciosas’ de renúncia seriam, imediatamente, ou inviáveis ou inadmissíveis”. É fundamental estabelecer uma distinção entre, por um lado “o conceito de renúncia”, cujo “núcleo essencial é a existência de uma decisão voluntária que produz um enfraquecimento da protecção de direito fundamental”, e, por outro lado, a extensão do “correspondente poder de disposição individual”44. Estamos de acordo com estas considerações, pelo que pensamos que faz sentido seguir um entendimento amplo do conceito, não sendo, então, de preferencialmente a designação de “autolimitação de direitos”, admite também outras formulações, como é o caso de “formas de disposição limitadora” ou “renúncia ao exercício de um direito”. 42 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271. 43 JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 531. 44 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 270 - 272. 19 excluir aprioristicamente situações de renúncia que possam consubstanciar-se na extinção do direito. Finalmente, parece-nos que, apesar da oposição por parte de alguma doutrina em relação ao conceito de renúncia, não se trata de um conceito novo na dogmática dos direitos fundamentais e é, por outro lado, um conceito utilizado e enraizado noutras ordens jurídicas (em particular na alemã) e em instâncias internacionais, como é o caso do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Em consequência disso, parece-nos que faz mais sentido manter esta designação – ainda que tal não nos exima da tarefa de definir com precisão os contornos da figura – do que criar novos conceitos que, receamos, possam conduzir a uma maior ambiguidade45. Assim, utilizaremos este conceito não no sentido de a renúncia necessariamente provocar a extinção do direito, que é o sentido atribuído pelo Direito Civil, mas antes implicando “uma diminuição da protecção” do direito do indivíduo46 que poderá, em alguns casos, levar à sua extinção. Nessa medida, a renúncia a direitos fundamentais é o “poder individual de dispor das posições jurídicas próprias, tuteladas por normas de direitos fundamentais, de cujo exercício resulta, como consequência jurídica, uma diminuição da protecção do indivíduo”47. 2. A renúncia enquanto exercício e afectação negativa de direitos fundamentais A renúncia caracteriza-se também por uma “dupla dimensão”, uma vez que se traduz simultaneamente em exercício e afectação negativa de direitos fundamentais48. É, por um lado, expressão do exercício de direitos porque “a realização de um direito fundamental inclui, em alguma medida, a possibilidade 45 Parece-nos ser esse o caso do conceito de “auto-suspensão de direitos” utilizado por JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 384 e 385. 46 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271. 47 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271 (itálico nosso). 48 Considerando que a renúncia se consubstancia simultaneamente em exercício e restrição de direitos, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 287 ss. 20 de se dispor dele, inclusive no sentido da sua limitação”49. A pessoa que renuncia fá-lo porque espera obter um benefício com o acto de renúncia, benefício esse que considera ser mais valioso do que a preservação do direito fundamental em si mesmo50. Por outro lado, uma vez que “determina objectivamente um enfraquecimento das posições individuais de direitos fundamentais”51, a renúncia implica também uma afectação negativa dos direitos em causa. Na renúncia perante o Estado parece ser de entender que está em causa uma restrição de direitos, pelo menos quando se adopta um conceito abrangente de restrição52. Se por esta entendermos a “acção ou omissão estatal que, eliminando, reduzindo, comprimindo ou dificultando as possibilidades de acesso” e “fruição” por parte dos titulares do direito “ao bem jusfundamentalmente protegido” ou “enfraquecendo os deveres e obrigações, em sentido lato, que dele resultam para o Estado, afecta desvantajosamente o conteúdo ou o efeito de protecção de um direito fundamental”53, não vemos 49 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287. KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 895, defendem também que a renúncia se consubstancia em exercício de direitos, uma vez que esta é um acto de exercício de liberdade, “imanente à essência dos direitos fundamentais”. 50 OLIVIER DE SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism under the European Convention on Human Rights“, cit., p. 483; também JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287. 51 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 288. 52 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 288 e 289. Também MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 22 e 23, considera uma restrição “qualquer actuação do Estado que torne impossível um comportamento do indivíduo que caia no âmbito de protecção de um direito fundamental, independentemente de esse efeito ter lugar voluntária ou involuntariamente, directa ou indirectamente, de facto ou de direito, com ou sem imposição ou coacção. Esta definição deixa de considerar o elemento da coacção como uma característica essencial do conceito”. KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 918, entendem, inclusivamente, que a renúncia se traduz numa restrição quer se siga um conceito mais restrito ou abrangente de restrição. 53 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 247. SÉRVULO CORREIA, O Direito de Manifestação. Âmbito de Protecção e Restrições, Almedina, Coimbra, 2006, p. 61, define como restrição “toda a compressão do âmbito de protecção do direito, traduzida na desconsideração de elementos do objecto de protecção, ou na recusa da titularidade ou exercício de meios jurídicos destinados à respectiva fruição, operada por acto do poder público de natureza geral e abstracta ou individual e concreta”. Sobre o conceito de restrição, ver ainda JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 267 e 279 ss; JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, in Separata do II Suplemento do DJAP, 2001, p. 456; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de 21 razões para não considerar que, neste âmbito, a renúncia tem também uma dimensão restritiva. Ainda assim, dependendo das circunstâncias dos casos concretos pode haver algumas diferenças quanto ao maior ou menor grau de intrusão, uma vez que estamos perante situações em que se verifica a anuência do particular, ao contrário do que acontece com a generalidade das medidas estaduais restritivas. A “dupla dimensão da renúncia”54, enquanto exercício e restrição de direitos, é fundamental para compreendermos quer a fundamentação jurídica do poder de disposição, quer os limites que normalmente se têm estabelecido a este poder. Não é, no entanto, consensual na doutrina que nas situações de renúncia perante o Estado estejam em causa verdadeiras restrições, uma vez que alguns Autores entendem que o acto de disposição do titular retira, do âmbito de protecção do direito, um sector que deixa de gozar de protecção, pelo que quando há uma ingerência estadual nesse sector tal já não se traduz em ingerência num direito fundamental55. Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1996, p. 323; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 469 – 471. 54 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 289. 55 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 289. É o caso de ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, in JZ, n.º 2, 1988, p. 57 ss. Este Autor considera, no entanto, que “a renúncia a direitos fundamentais é mal interpretada se se entende que esta recorta um sector do âmbito de protecção do direito com a consequência de, no caso de haver uma intervenção nesse sector, não serem aplicáveis as garantias de Estado de Direito. A questão decisiva é sobretudo a de saber se perante o consentimento do indivíduo o sentido e a finalidade das garantias do Estado de Direito se mantêm”. Considerando que a renúncia a direitos fundamentais admissível elimina o carácter restritivo da intervenção no âmbito de protecção do direito, na medida em que o conceito de restrição pressupõe uma actuação contra a vontade do titular do direito, sendo o elemento da coacção componente essencial deste conceito, ver JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, Darmstadt, 1977, pp. 99 e 100; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 175; GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, in GERHARD LEIBHOLZ – HANS J. FALLER – PAUL MIKAT (orgs.), Menschenwürde und Freiheitliche Rechtsordnung. Festschrift für Willi Geiger zum 65. Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1974, p. 190. Ver ainda KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 65 e 66, que defende que nas situações de consentimento há, de facto, uma “lesão do direito fundamental”, mas não já uma verdadeira restrição. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 24, critica esta última posição, na medida em que sustenta que não é óbvio o que distingue uma lesão de uma restrição. 22 A crítica que se costuma apontar a estas posições é a de que não é correcto considerar o âmbito de protecção do direito fundamental restringido através da renúncia. Uma vez que entendemos por âmbito de protecção uma “dimensão da vida humana que a Constituição entendeu considerar digna da tutela dos direitos fundamentais e elevar à categoria de bem jurídicoconstitucional”56, pensamos que este não deve determinar-se de forma subjectiva, apenas atendendo à vontade afirmada pelo seu titular57, excepto nos casos em que o bem jurídico tutelado é, em primeira linha, a própria autonomia. Por outro lado, defende-se que estas posições não têm suficientemente em conta os perigos que poderão resultar do exercício de um direito fundamental que afecte a própria liberdade do indivíduo. É que se se entender que só se verifica uma restrição nos casos de afectações negativas não consentidas “desvaloriza [-se], inconvenientemente, a dimensão objectiva do conceito de restrição e (…) desloca [-se] a perspectiva de apreciação da intervenção do plano em que se deveria verificar – o da sua eventual justificação material - para o plano formal do seu conceito”58. Finalmente, tem-se ainda entendido que não colhem porque não admitem, “pelo menos fundadamente, o recurso às garantias materiais de Estado de Direito no controlo da legitimidade da intervenção”59. Parece, no 56 ANDREIA SOFIA PINTO OLIVEIRA, O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa. Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 11. 57 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 23. 58 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 290. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 138, entende que é, por isso, “duvidoso que o carácter voluntário da renúncia justifique, por si só, que os instrumentos constitucionais de garantia dos direitos fundamentais percam os seus efeitos”. Para o Autor “é essencial ter também em conta o segundo elemento constitutivo de uma restrição, que é a intrusão do Estado na esfera jurídica do indivíduo”. Também GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz,’ volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 295 e KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 918, que consideram que ainda que haja consentimento se mantém o carácter restritivo da medida. Estes Autores entendem que “se o consentimento for válido retira a contrariedade à lei da actuação em causa”, mas não deixa de haver uma restrição. 59 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 77, defende que “se se considerar que a renúncia se consubstancia num mero exercício de direitos, sem mais, tal significa que não há propriamente limites, na medida em que não se trata de disposição de poder soberano, que deve ser justificada e fundamentada, mas apenas de exercício de um direito de liberdade”. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 539, considera que 23 entanto, que não temos de retirar necessariamente destas perspectivas tal consequência, na medida em que, como nos estamos a referir à renúncia perante o Estado, mesmo que se defenda que não está em causa uma restrição de direitos e, em virtude disso, não sejam de aplicar os limites aos limites, as entidades públicas não deixam de estar vinculadas, em toda a sua actuação, aos princípios constitucionais estruturantes60. Já a renúncia entre particulares não implica uma restrição de direitos fundamentais em sentido próprio, uma vez que este conceito pressupõe o Estado61. A definição de que partimos diz expressamente que a restrição se consubstancia numa afectação negativa do direito que deriva de uma acção ou omissão do Estado62. Ora na renúncia entre particulares tanto quem renuncia compreender-se a renúncia como mero exercício de direitos é insuficiente, uma vez que não se têm em conta os casos em que esse exercício se transforma em “negação de direitos”. 60 Utilizamos aqui a designação dada por Jorge Reis Novais aos princípios jurídicoconstitucionais ínsitos na ideia de Estado de Direito. Ver JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2004. JORGE REIS NOVAIS, “Direito, liberdade ou garantia: uma noção constitucional imprestável na justiça administrativa?” in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 73, 2009, referindo-se à distinção entre direitos de liberdade e direitos sociais diz-nos que “a Constituição pareceu aparentemente reservar para esses direitos a protecção conferida pelos princípios da igualdade, da proibição do excesso, da protecção da confiança legítima, da garantia do conteúdo essencial (…), quando, obviamente, todos esses princípios e garantias são igualmente aplicáveis, por definição, às afectações negativas dos direitos sociais pelo simples facto de estes serem também direitos fundamentais constitucionais”. Seguindo esta ordem de ideias, pensamos que o Estado está, em toda a sua actuação, mesmo que não esteja em causa uma afectação negativa, vinculado a estes princípios, pelo que o facto de se considerar que a renúncia não implica uma restrição do direito não deve desobrigar o Estado desse respeito. 61 Considerando também que apenas os “actos e omissões do poder público” se consubstanciam em restrições, ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 157. Nesse sentido, ver também ROLF ECKHOFF, Der Grundrechtseingriff, Carl Heymanns Verlag KG, Köln, Berlin, Bonn, München, 1992, pp. 288 ss. Em sentido contrário, referindo a possibilidade de restrições através de privados, ver BERNHARD SCHLINK, “Freiheit durch Eingriffsabwehr – Rekonstruktion der klassischen Grundrechtsfunktion”, in EuGRZ, n.º 17, 1984, p. 464; ECKART KLEIN, “Grundrechtliche Schutzpflicht des Staates”, in NJW, n.º 27, 1989, p. 1636. 62 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 247. Não é também relevante nesta sede a distinção entre restrições em sentido restrito e intervenções restritivas. Segundo esta distinção, enquanto “as restrições em sentido restrito têm uma vocação normativa geral e abstracta”, o que se traduz numa “redução, amputação ou eliminação do conteúdo objectivo do direito fundamental (…) restringindo-se o seu âmbito de protecção”, na “intervenção restritiva afecta-se negativamente o conteúdo da posição individual que resulta da titularidade de um direito fundamental, permanecendo, todavia, em princípio inalterada a norma de direito fundamental e o correspondente conteúdo objectivo do direito”. Ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 193,194 e 205 ss. No entanto, também as intervenções restritivas partem necessariamente de alguma 24 como os destinatários da renúncia são entidades privadas. Assim sendo, coloca-se a questão de determinar que papel devem desempenhar “as garantias materiais de Estado de Direito”63 na aferição da admissibilidade dessa mesma renúncia. É que se os limites que se aplicam na renúncia perante o Estado derivam do facto de esta se traduzir (também) numa restrição de direitos fundamentais (ou, pelo menos, do facto de uma das partes da relação ser um ente público), não poderemos aplicá-los, sem mais, nas relações entre particulares. Parece-nos, no entanto, que tal não invalida que estes possam ser, pelo menos em alguma medida, transponíveis para a renúncia nas relações entre particulares. É que ainda que a renúncia entre particulares não envolva uma restrição em sentido próprio, não deixa de se verificar uma afectação negativa de uma posição individual de direitos fundamentais, pelo que caberá ao Estado garantir que essa afectação não vai para além do que é constitucionalmente admissível. De facto, mesmo a renúncia entre particulares implica o enfraquecimento de uma posição subjectiva do titular do direito fundamental, vinculando-o juridicamente. Assim, o poder de dispor sobre direitos fundamentais consiste na possibilidade de determinar a ausência ou a limitação de determinados efeitos jurídicos, que são os efeitos da protecção que se quer descartar64. Através de uma renúncia válida a medida que seria ilegal sem a anuência do titular torna-se legal, sendo esta a consequência jurídica que dela decorre. A renúncia pressupõe, então, o Estado, que “empresta” força jurídica ao acto de disposição e que poderá, por isso, impor determinadas exigências para que este acto se verifique65. autoridade pública. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Vol. I, cit., pp. 451 e 1265, distingue também restrições de intervenções restritivas, defendendo que estas últimas “consistem em actos jurídicos ou actuações das autoridades públicas restritivamente incidentes de modo concreto e imediato sobre um direito”. Ver ainda JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 388. 63 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. 64 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 140, refere precisamente que na renúncia está em causa a “presença, numa determinada situação, do poder jurídico de dispor, no sentido da sua redução, numa certa parcela, dos efeitos jurídicos de protecção de um determinado direito fundamental”. 65 Parece-nos relevante nesta sede a distinção de ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, 3.ª Edição, Suhrkamp, Frankfurt-am-Main, 1996, pp. 171 ss, entre direitos a algo, liberdades e 25 Convém, no entanto, não esquecer que o poder de renúncia “é um poder de disposição inerente à própria titularidade de direitos fundamentais”, pelo que o Estado só poderá impor certas exigências para que o acto de renúncia tenha lugar se se apurar a necessidade de garantir outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que se sobreponham ao poder de dispor, e apenas na estrita medida dessa necessidade66. De tudo o que vimos retiramos que a renúncia a direitos fundamentais para além de exercício de direitos implica também uma afectação negativa desses mesmos direitos e, nessa medida, justifica “o recurso às garantias competências. Segundo Alexy, as competências concedem a “possibilidade de o indivíduo praticar determinados actos jurídicos e, consequentemente, alterar, através desses actos, determinadas posições jurídicas”, dele ou de terceiros. Nesse sentido, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Vol. I, cit., pp. 1260 e 1261. As acções que são exercício de competências são “acções institucionais”, ou seja, são “acções que não podem ser levadas a cabo com base numa capacidade natural, antes pressupõem regras, para elas constitutivas”, designadas “normas de competência”. Estas “criam a possibilidade de actos jurídicos e, consequentemente a capacidade de modificar posições jurídicas através de actos jurídicos”. Ver, mais desenvolvidamente, ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 211 – 223. Sobre este assunto, ver também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pp. 133 – 135. Trata-se de um “’poder jurídico’ e não, como no caso da permissão, (…) de ter licença de fazer alguma coisa que facticamente já [se] podia realizar”. Nesse sentido, JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, Coimbra Editora, 1995, p. 190. Seguindo esta ordem de ideias, parece-nos que a renúncia a direitos fundamentais se consubstancia num direito a competências jurídicas, na medida em que a liberdade para realizar o acto jurídico, neste caso, renunciar a uma posição subjectiva de direito fundamental, pressupõe necessariamente a competência para o fazer. A renúncia a direitos fundamentais consiste na possibilidade de o indivíduo praticar determinados actos jurídicos e, consequentemente, alterar, através desses actos, determinadas posições jurídicas. Considerando que, “em última análise, (…) as consequências jurídicas produzidas pelo acto de vontade individual só o [são] porque a ordem jurídica lhe reconhece, expressa ou implicitamente, tal capacidade”, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274, nota 16. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 128 e 149 ss, entende, no entanto, que esta classificação de Alexy “tem a vantagem de cobrir analiticamente (…) todas as eventuais posições jurídicas sustentáveis em normas de direitos fundamentais”, mas “carece de ser complementada por uma tipologia que atenda à diferente natureza, função, estrutura e consistência jurídico-formal dos direitos fundamentais quando perspectivados já não em termos de cada posição jurídica concreta a se, mas enquanto complexo de posições jurídicas diferenciadas mas referenciáveis à mesma norma de direito fundamental”. Por outro lado, “tende a ignorar a relação entre direito principal e direitos ou pretensões instrumentais, funcionalmente subordinadas ou derivadas do mesmo direito fundamental principal”. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 125, nota 569, sustenta que esta crítica não colhe, uma vez que não existe incompatibilidade nem qualquer insuficiência da tipologia de Alexy, na medida em que esta é apenas “uma construção dogmática analítica”, sem prejuízo de poder ser complementada por outras tipologias. 66 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 333. 26 materiais de Estado de Direito no controlo da legitimidade da intervenção”67. Quanto à renúncia entre particulares, veremos em que termos na Parte II da tese. 3. Distinção de figuras afins 3.1. A perda e o não-exercício de direitos fundamentais Devemos, antes do mais, distinguir a renúncia da perda e do nãoexercício de direitos fundamentais. Como acabámos de ver, na renúncia estamos perante um compromisso jurídico assumido pelo particular de não recorrer ao seu direito fundamental, ou seja, normalmente está em causa uma vinculação deste “a não exercer, temporária ou pontualmente, algumas das pretensões, faculdades ou poderes que integram o direito”. Há, nestas situações, “uma decisão voluntária do particular que produz consequências jurídicas na sua própria esfera jurídica”68. Também na perda de um direito se dá “um enfraquecimento da posição jurídica” do titular do direito, só que, neste caso, não se trata já de uma decisão voluntária, mas sim de uma imposição externa. Nesta última situação a ordem jurídica estabelece como consequência de uma determinada acção ou omissão do titular, independentemente da sua vontade, a perda do direito fundamental69. Finalmente, nos casos de não-exercício não há qualquer vinculação pela parte do particular, uma vez que estamos perante “uma posição jurídica que a ordem jurídica lhe permite exercer ou não exercer, sendo que ambas as possibilidades podem ser configuradas como modalidades de exercício, em sentido lato, do direito fundamental”70. Quem paga um imposto inconstitucional 67 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. 68 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 273 e 274. 69 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274; MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 173. 70 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 273. Também distinguindo a 27 e não recorre judicialmente não está a renunciar a um direito fundamental. Através da renúncia, uma medida que era, à partida, ilegal converte-se numa medida legal. Pelo contrário, ao não accionar um direito mantém-se a ilegalidade da intervenção e o direito fundamental poderá ainda ser feito valer71. Aquilo que distingue a renúncia do não-exercício é, então, essencialmente o facto de nas situações de não-exercício não haver qualquer vínculo jurídico assumido pelo titular do direito72. O mero não-exercício carece de uma declaração de vontade73, pelo que “não vincula e é reversível no quadro da ordem jurídica”74. Nessa medida, ao contrário da renúncia, o nãoexercício “tem natureza de facto e não de direito”75. renúncia do “não exercício-fáctico”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 385; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 904 e 905; PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 17; CHRISTOPH LEUENBERGER, Die unverzichtbaren und unverjährbaren Grundrechte in der Rechtsprechung des Schweizerischen Bundesgerichtes, Verlag Stämpfli & Cie AG, Bern, 1976, p. 49; KEVIN HOPKINS, “Constitutional Rights and the question of waiver: how fundamental are fundamental rights?”, in South Africa Public Law, Vol. 16, n.º 1, 2001, p. 127. 71 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 925. Jorge Miranda, na 3.ª Edição do Manual de Direito Constitucional, falava de “direitos de exercício não obrigatório”, como o direito de acção judicial e o direito de resposta, considerando que nestes casos não havia uma renúncia. (Ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 358). 72 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 274. 73 RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, Schulthess Polygraphischer Verlag AG, Zürich, 1992, p. 10. 74 GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 185 - 186; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 309; RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10; KLAUS BUSSFELD, “Zum Verzicht im öffentlichen Recht am Beispiel des Verzichts auf eine Fahrerlaubnis”, in DöV, n.º 22, 1976, p. 769. Também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 47 e 48, julga que “o nãoexercício não implica qualquer vinculação jurídica porque lhe falta uma declaração de vontade”. 75 DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, in HANS-DETLEF HORN, Recht Im Pluralismus, Festschrift für Walter Schmitt Glaeser zum 70. Geburtstag, Duncker und Humblot, Berlin, 2003, p. 54. Ver também PHILIPP S. FISCHINGER, “Der Grundrechtsverzicht”, in JuS, n.º 9, 2007, p. 808. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 385, como já referimos, entende que não se deve falar em renúncia porque o modo como o conceito tem sido densificado demonstra que não há renúncia, na medida em que o que normalmente está em causa é um compromisso do particular “a não exercer, temporária ou pontualmente, algumas das pretensões, faculdades ou poderes incorporados no seu direito”. Destas considerações parece que se poderia retirar que estaríamos perante mero não-exercício e não já verdadeira renúncia. No entanto, também o Autor distingue destas situações aquelas outras em que há uma 28 Aos direitos-liberdades está inerente a possibilidade de não-exercício, uma vez que a vertente negativa é também um seu elemento essencial. As atribuições negativas de liberdade não consubstanciam uma renúncia a direitos fundamentais, devendo qualificar-se apenas como não-exercício de direitos fundamentais. A liberdade jurídica pressupõe uma “alternativa de acção”, ou seja, uma “liberdade negativa”76. Ora o gozo de uma liberdade negativa implica que se possa, a qualquer momento, decidir pelo pelo seu gozo positivo, sem que tal acarrete quaisquer consequências. Já a renúncia envolve a assunção de um vínculo jurídico (ainda que, em princípio, passível de revogação)77. A liberdade de reunião, por exemplo, comporta uma dimensão negativa que se concretiza na liberdade de não fazer parte de nenhuma reunião. Será também esse o caso quando alguém decide “não participar numa manifestação [ou] não entrar num partido político”78. Estas não são situações de renúncia mas sim “derivações” do próprio direito79. “A componente negativa das liberdades constitui uma dimensão fundamental” dessas mesmas liberdades80 e mesmo os autores que recusam a possibilidade de renúncia não visam estabelecer quaisquer obrigações ao exercício de direitos fundamentais81. A situação já não será a mesma quando uma pessoa renuncia, de forma “manifestação negativa de exercício de certos direitos, como, por exemplo, não exercer direito de resposta [ou] não invocar objecção de consciência”. 76 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 198. 77 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 29. 78 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465. 79 GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 185. Ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 48. 80 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1260. JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., pp. 166 e 167, faz a destrinça entre dois tipos de bens jurídicos: bens jurídicos subjectivos e bens jurídicos objectos: “nos bens subjectivos o direito de defesa protege não apenas a religião ou a opinião enquanto tais, mas sim a liberdade de exercer essa mesma religião ou manifestar a opinião. A previsão normativa (âmbito de protecção) do direito fundamental tem, aqui, duas componentes: a garantia da liberdade e a especificação do âmbito objectivo (religião, opinião, etc.). Nos bens jurídicos objectivos, trata-se apenas, no âmbito de protecção, da determinação da substância física ou ideal que é inviolável pelo Estado”. Sobre esta distinção, ver também ANDREIA SOFIA PINTO OLIVEIRA, O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa. Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, cit., p. 11. 81 GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 186. 29 juridicamente vinculante, a participar em reuniões ou a integrar uma associação, por exemplo. Estes já serão casos de verdadeira renúncia82, o que significa que nas liberdades referidas não se exclui a possibilidade de renúncia uma vez que esta depende essencialmente da existência de um vínculo jurídico. Assim, uma coisa será alguém não fazer parte de uma associação porque assim o decidiu sem a isso se ter vinculado juridicamente, podendo, a qualquer momento passar integrá-la, e outra diferente obrigar-se efectivamente a não o fazer, renunciando a esse direito83. Do mesmo modo deverá distinguirse a situação em que uma pessoa não exerce de facto o seu direito de acção judicial ou o seu direito de resposta da situação em que alguém se vincula juridicamente a não exercer o seu direito de acção judicial ou o seu direito de resposta84. Esta diferenciação aparentemente clara entre renúncia, perda e nãoexercício parece, no entanto, esbater-se nos casos em que o ordenamento jurídico faz derivar de uma dada conduta do indivíduo um enfraquecimento da sua posição jusfundamental. Essa conduta pode consubstanciar-se quer num “exercício positivo” quer num “não-exercício de um direito fundamental”85. Um exemplo da primeira situação é a possibilidade de perda de direitos fundamentais (Grundrechtsverwirkung)86, que implica que o particular se veja privado, de forma involuntária, das suas pretensões de direitos fundamentais. O nosso ordenamento jurídico não prevê este instituto, que está consagrado no art. 18.º da Constituição alemã e que estabelece que um cidadão pode ser privado de alguns direitos quando deles abusar para combater “a ordem fundamental livre e democrática”87. A declaração de perda tem como 82 BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, (trad. ANTÓNIO FRANCO – ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA), Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2008, p. 42. 83 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 29. 84 O BVerfG teve oportunidade de se pronunciar acerca da admissibilidade da renúncia a recursos judiciais. Este Tribunal entendeu que a renúncia a uma acção administrativa é admissível, tendo em conta a 4.ª parte do art. 19.º da Constituição alemã. Ver BVerfGE 9, pp. 194 ss; também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 69. 85 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274. 86 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274. 87 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 461 e 462; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 30 consequência que o destinatário do direito fundamental em causa não pode invocá-lo para se defender de intervenções estaduais enquanto durar essa perda88. Ainda assim, na perda de direitos fundamentais em virtude de utilização abusiva, tal como esta figura está consagrada no ordenamento jurídico alemão, trata-se ainda do “enfraquecimento de um direito fundamental por motivo de acto culposo do seu titular”, o que nos permite distinguir este instituto da renúncia. Torna-se, no entanto, mais complicado manter esta diferenciação quando a perda de direitos é determinada por “um comportamento eventualmente voluntário - não-culposo do titular do direito fundamental”, como acontece com o direito de recurso aos tribunais, direito este que tem um prazo para ser exercido89. De facto, o não-exercício em determinadas circunstâncias 378. Na Alemanha defende-se que esta figura é também relevante para o tema que estamos a tratar na medida em que poderia ver-se na perda de direitos fundamentais “o reflexo da renúncia” e, através da “relação sistemática com o art. 18.º da Constituição alemã”, estabelecer-se um limite para a renúncia, considerando que esta não deveria ir mais além do que a perda. No entanto, entre estas duas figuras existe uma diferença muito significativa que é a voluntariedade da renúncia, pelo que a questão que se coloca é a de saber “por que razão não poderá o próprio titular de um direito fundamental voluntariamente limitá-lo mais do que um Tribunal está autorizado coactivamente a fazê-lo”. Sobre essa questão ver, mais desenvolvidamente, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 173. 88 MICHAEL BRENNER, “Artikel 18”, in CHRISTIAN STARCK – HERMANN VON MANGOLDT – FRIEDRICH KLEIN (orgs.), Das Bonner Grundgesetz Kommentar, Vol. 1, 4.ª Edição, Verlag Franz Vahlen, München, 1999, p. 2152. O número de direitos abrangidos por este instituto é limitado, uma vez que se estabelece uma “enumeração taxativa” dos direitos que podem ser “abusados para combater a ordem fundamental democrática”. Ver REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, 31.ª Edição (da obra fundada por THEODOR MAUNZ), Verlag C. H. Beck, München, 2005, p. 194. Os direitos previstos nesta disposição são a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de ensinar, a liberdade de reunião, a liberdade de associação, o segredo da correspondência, dos correios e das telecomunicações; a propriedade e o direito de asilo. Esta limitação “explica-se pela finalidade do art. 18.º da Constituição alemã, que é fazer face a agressões individuais à Constituição. Ora esse perigo de agressão advém sobretudo do exercício de determinados direitos políticos”. Sobre esta questão ver, mais desenvolvidamente, KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 957. 89 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 275. Considerando também ser de distinguir a “aceitação do acto administrativo” (que se traduz num acto jurídico de um particular com efeito preclusivo do recurso administrativo ou contencioso) das figuras da renúncia ao recurso e do decurso do prazo de impugnação, ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “A aceitação do acto administrativo”, in Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2003, pp. 914 ss. Para o Autor, enquanto “a renúncia implica uma manifestação de vontade do titular dirigida ao não-exercício do direito de impugnar, (…) a aceitação do acto é uma manifestação de vontade positiva, expressa ou tácita, relativamente ao conteúdo do acto e, portanto, aos seus efeitos substanciais”. Assim, sustenta que a aceitação deve ser entendida como “um mero acto jurídico, perante cuja verificação a lei determina a produção de um efeito – a perda da faculdade de impugnar – independentemente 31 ou a partir de um certo tempo pode efectivamente determinar a perda do direito. Apesar disso, continua a fazer sentido separar estas duas situações. Na renúncia o que motiva o enfraquecimento da posição subjectiva do titular do direito é a sua declaração de vontade, que é juridicamente vinculante. Na situação de perda que referimos, esta não é já uma consequência directa de uma vinculação do particular, antes decorre de uma decisão do ordenamento jurídico de, por razões de certeza e segurança jurídicas, fazer derivar a perda do direito de um dado comportamento (ou ausência de comportamento) do particular90. Assim, aquilo que efectivamente faz com que estejamos perante uma situação de renúncia é a decisão voluntária do particular que produz consequências jurídicas. 3.2. A autolesão Pensamos fazer sentido ainda distinguir a renúncia a direitos fundamentais da autolesão. Se um indivíduo dispõe unilateralmente de posições jurídicas de direitos fundamentais, lesando-se a si próprio, tal não se consubstanciará numa renúncia, uma vez que entendemos que esta pressupõe a intervenção de terceiros91. Podemos exemplificar a distinção confrontando a eutanásia activa com o suicídio92. do conteúdo da vontade do particular quanto à produção desse resultado”. 90 Ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 276 e 277; JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 533. 91 Nesse sentido, RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 49 e 50; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, Verlag Franz Vahlen, München, 1992, pp. 82 e 137. 92 RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10. Em sede jurídico-penal, são ainda de mencionar as situações de “autocolocação em risco” e “heterocolocação em risco consentido”. É hoje mais ou menos consensual na doutrina que estes casos não são de enquadrar no consentimento, uma vez que se tem vindo a entender que a autocolocação em risco não cai sob o tipo de homicídio ou de ofensas corporais se se concretiza o risco conscientemente assumido com essa autocolocação em perigo. Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 278. Nestes casos a vítima coproduz “o resultado típico através da sua conduta”. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio 32 Em sentido contrário, tem-se considerado que não é de excluir essa referência a terceiros nos casos da autolesão, uma vez que o Estado, obrigado pelos direitos fundamentais, deveria ser chamado através da ideia de deveres de protecção. Em virtude disso, a renúncia no quadro de uma autolesão teria como consequência jurídica o afastamento de um dever do Estado de impedir essa autolesão, passando a haver também um terceiro vinculado a direitos fundamentais93. Não estamos, no entanto, de acordo com estas considerações. Uma vez que entendemos que, em princípio, não há um dever do Estado de proteger a pessoa contra si própria, questão que desenvolveremos oportunamente, não nos parece que se possa considerar o Estado, nestes casos, um terceiro vinculado a direitos fundamentais. Também no âmbito do Direito Penal se tem considerado que entre autolesão e heterolesão existem intransponíveis “elementos de alteridade, descontinuidade e diferenciação”. “Por autolesão deve entender-se “uma acção cuja trajectória significativa se circunscreve no interior do sistema pessoal. Pressuposta a autonomia (…) daquele sistema será normal concluir-se pela irrelevância da acção no contexto do sistema social”. Por seu lado, “a heterolesão consentida configura (…) uma interacção complexa”. É fundamental, aqui, a circunstância de “um dos pólos da interacção” se Corpo, cit., p. 345. O mesmo se poderá dizer quanto às situações de heterocolocação em risco de modo consentido, uma vez que “também aqui não se integra o tipo-de-ilícito criminal de ofensas à integridade física, desde que (…) a lesão ocorrida seja a consequência do risco assumido e a pessoa colocada em perigo seja igualmente responsável no projecto comum, exigindo-se ainda que ‘o ofendido’ represente o perigo na mesma medida em que o faz aquele que detém o domínio da acção”. RUI MEDEIROS – PEDRO GARCIA MARQUES, “Artigo 25.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 270. Nestes casos a pessoa em causa não se coloca deliberadamente em perigo, mas, consciente dos riscos que corre, deixa-se pôr em perigo pela acção de terceiros. Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 279; também MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 272. Aqui não é, no entanto, “a homenagem à autonomia individual que reclama a relativização da tutela penal (…). Em certo sentido é mesmo a inversa que se dá. A ordem jurídica não pode desatender o significado da opção do lesado que se dispõe a participar em actividades que implicam riscos para os seus bens”. Assim, “se, no contexto do consentimento, o recuo da ordem jurídico-penal configura uma solução de autonomia, já no caso da heterocolocação em perigo consentida a mesma solução pode emergir como uma resposta de heteronomia”. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 294 – 297. 93 Nesse sentido, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 31. 33 encontrar “fora do sistema pessoal”, ou seja, “aquele sobre o qual o sistema penal pode fazer recair o controlo penal”. Assim, ao contrário do que sucede em caso de mera autolesão, “a heterolesão configura invariavelmente uma relação social”. Para além disso, também releva aqui “a autenticidade e seriedade da vontade e do exercício de autonomia”. Pois se na autolesão estamos perante “a radical autenticidade de uma vontade que se exprime na acção autolesiva”; já “do lado do consentimento [temos] uma mera declaração que pode estar inquinada por vícios de vária ordem”94. Consequentemente, partindo da ideia de que a autolesão é ainda manifestação da autonomia individual do sujeito, a nossa ordem jurídica em regra não a considera criminalmente punível95. Pensamos que estas considerações são extensíveis para a problemática da renúncia. Também aqui deverá relevar o facto de, nos casos de autolesão, estarmos a falar de uma acção que é levada a cabo pelo próprio indivíduo, ou seja, trata-se de uma acção que começa e termina “no interior do sistema pessoal”, com tudo o que isso implica quanto à garantia da “autenticidade e seriedade da vontade e do exercício de autonomia” (pressupondo, obviamente, que estamos a falar de uma pessoa capaz). Por outro lado, nas situações de autolesão estamos a falar do exercício de um poder fáctico, enquanto a renúncia a direitos fundamentais implica um poder jurídico96, exigindo o reconhecimento do Estado. Nessa medida, parece que devemos efectivamente distinguir estas duas figuras, pois “ao não se admitir o autoprejuízo, transformar-se-iam os direitos fundamentais em deveres fundamentais”, o mesmo já não se devendo dizer em relação a todas as proibições de intervenções de terceiros, ainda que 94 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 213 – 217. 95 HELENA PEREIRA DE MELO, “A igualdade de oportunidades para quem opta pela ‘Estrada do Tabaco’” in RUI NUNES – MIGUEL RICOU – CRISTINA NUNES (orgs.), Dependências Individuais e Valores Sociais, Gráfica de Coimbra, Coimbra, 2004, p. 166. 96 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, Oxford University Press, New York, Oxford, 1986, p. 156, considera que “os genuínos casos em que estão duas pessoas envolvidas são aqueles em que uma parte B consente que outra parte A pratique um acto que poderá lesar ou colocar em perigo B; já nos casos paradigmáticos em que está apenas uma pessoa em causa é o próprio que pratica a acção lesiva ou perigosa, ainda que haja outra pessoa envolvida em alguma medida, por exemplo, como encorajador, incitador, espectador, beneficiário, etc”. 34 consentidas97. Assim, para que estejamos perante uma situação de renúncia a direitos fundamentais terá que estar em causa, necessariamente, uma intervenção de terceiros. 3.3. O mero exercício de direitos Parece-nos ainda relevante ter em consideração a diferença entre a disposição de “direitos relativos a bens individuais, cujo conteúdo, âmbito e grau de protecção constitucional é estabelecido primacialmente em função da vontade do titular (…) e aqueles outros direitos que se referem a bens que, sendo pessoais, constituem simultaneamente ou estão intimamente associados a valores comunitários”98. Esta perspectiva parte da distinção que alguma doutrina penalista (e também civilista, uma vez que, como veremos, também no âmbito do Direito Civil se tem considerado útil esta diferenciação) estabelece entre consentimento e acordo, pelo que vamos fazer uma breve incursão por estas figuras para compreendermos melhor em que medida é que podem ser úteis para o problema da renúncia a direitos fundamentais99. No Direito Penal distingue-se entre consentimento, como causa de exclusão da ilicitude, e acordo, que exclui a própria tipicidade da ofensa. O consentimento surge como um caso de colisão de interesses em si mesmos dignos de tutela penal. A par do “interesse jurídico-penal (…) na preservação de bens jurídicos,” que não deixa de existir mediante o consentimento, “está o interesse, também jurídico-penalmente relevante, de preservação (…) da auto-realização do titular do bem jurídico lesado, da sua 97 Nesse sentido, RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 49 e 50; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, Verlag Franz Vahlen, München, 1992, pp. 82 e 137. 98 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 312. 99 Referindo as semelhanças da posição que considera que nos casos de renúncia não há restrição a direitos com a doutrina penalista sobre a relevância do consentimento como causa de exclusão da tipicidade, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 289, nota 42. 35 autonomia pessoal e de vontade”100. Tal acontece porque há bens jurídicos, mesmo disponíveis, que são penalmente tutelados em si (…) e posta entre parênteses a atitude do portador concreto. As correspondentes incriminações originam uma relação de descontinuidade entre a autonomia pessoal e o bem jurídico típico: a autonomia não esgota o bem jurídico, não podendo identificarse a livre disposição do bem jurídico com a sua plena realização”101. Em virtude disso, “mesmo quando o respeito pela autonomia individual (…) impõe o recuo da ilicitude e da punibilidade, tal não deixa de configurar uma certa frustração do programa político-criminal”102. Assim, nas situações de consentimento a acção consentida levada a cabo, ainda que desejada pelo próprio não deixa de provocar um “dano”, que este considera ser, ainda assim, preferível suportar, dentro da margem de disponibilidade que detém103. Ainda que haja consentimento, “a lesão da integridade física [por exemplo] não deixa de representar o sacrifício do bem jurídico protegido e, nessa medida, uma manifestação de danosidade social”104. Já “nos crimes contra a liberdade não há lugar ao consentimento enquanto causa de exclusão de ilicitude, devendo antes falar-se em acordo, cuja ausência dará lugar ao não preenchimento do tipo”105. No caso do acordo 100 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 472. 101 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 516. 102 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 362. Sustentando que o consentimento só será “causa de justificação quando constitua uma circunstância exterior ao tipo legal e a ordem jurídica considere que a renúncia pelo titular do bem protegido à sua protecção merece relevância em termos de afastar a tutela contra a própria vontade do titular do bem”, ver GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português. Parte Geral, Vol. II, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 2005, p. 140. 103 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 512. Ver também PAULO SOARES DO NASCIMENTO, “Transplantes de órgãos humanos: a natureza do cadáver e dos órgãos e tecidos à luz do Direito Privado”, in Homenagem ao Prof. Doutor André Gonçalves Pereira, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 1044 e 1045. 104 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 362. 105 CARLOTA PIZARRO DE ALMEIDA, “O crime de lenocínio no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/04”, in Jurisprudência Constitucional, n.º 7, 2005, pp. 34 e 35. A Autora estabelece que “a tese da irrelevância da vontade de quem se prostitui só é sustentável quando se entenda que o exercício da prostituição ofende outro valor, ultrapassando o próprio sujeito, como seja o princípio da dignidade da pessoa humana”. Essa é a posição do Tribunal Constitucional da África do Sul que, no caso Jordan v. State, http://www.constitutionalcourt.org.za/Archimages/661.PDF (última visita a 12.04.2010), utilizou o princípio da dignidade da pessoa humana para defender a 36 é impossível “referenciar – à margem da atitude do portador concreto do bem jurídico – condutas com uma expressividade ético-social unívoca, susceptível de fundamentar um juízo de danosidade social e, nessa medida, apontar um sentido à valoração jurídica”. Nestas situações “a violação da vontade do portador do bem jurídico pertence já à fundamentação do ilícito, uma vez que, para além dela, não subsiste qualquer outro substrato para o ilícito”106. Desta feita, o acordo não implica qualquer dano no bem jurídico, antes traduzindo a sua realização107. Consequentemente, nos crimes susceptíveis de acordo o bem jurídico protegido é uma manifestação da liberdade individual, pelo que se estabelece “uma relação de congruência entre a autonomia individual e o sistema social. O desempenho do sistema social sobrepõe-se e confunde-se com a expressão da liberdade individual, realiza-se na e pela maximização desta liberdade”108. Tem-se, por isso, considerado que “[à] luz desta compreensão material teleológica e psicológica do acordo”, não há “nada mais equívoco e desajustado do que expressões como lesado, ofendido ou renúncia para conceptualizar e dar nome à situação e à atitude do portador do bem jurídico”109. O que daqui retiramos é que tanto o consentimento como o acordo assentam na autonomia individual, mas que nestas duas situações estão em causa “expressões ou afloramentos da autonomia com uma estrutura normativa claramente diferenciada”. No acordo há uma identificação entre a proibição da prostituição. Segundo este Tribunal, a dignidade de quem se prostitui não se vê diminuída pela proibição da prostituição mas sim pela prostituição em si mesma. Sobre este caso, ver STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, EUI Working Paper Law n.º 2008/18, http://hdl.handle.net/1814/9009 (última visita a 12.04.2010), p. 13. Considerando também que “a reivindicação de um ‘direito a se prostituir’, como expressão do direito fundamental de cada um dispor do seu próprio corpo, envolveria a legitimação de direitos fundamentais atentatórios da dignidade humana”, ver PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, Almedina, Coimbra, 2007, p. 531. 106 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 363; ver também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 474. 107 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 507 e 508. 108 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 484 e 485. 109 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 508. 37 autonomia e o bem protegido, sendo que o mesmo já não acontece no consentimento, onde claramente se distinguem. “Posta entre parênteses a postura do portador concreto, aquele bem jurídico continua a denotar uma irredutível valência sistémico-social, digna de tutela penal”, pelo que “não estão excluídas, ao contrário do que acontece no acordo, situações de desencontro e frustração e, por isso, de antinomia e conflito”110. Assim, com o consentimento não se afasta “a danosidade social implicada na acção consentida”. O que acontece é que a “autodeterminação do titular do bem jurídico lesado” se sobrepõe a esta “danosidade”111. No Direito Civil, tem-se entendido que o consentimento pode assumir a forma de “consentimento vinculante (que origina um compromisso jurídico autêntico, irrevogável, designadamente um contrato)”, de “consentimento autorizante (constitutivo de um compromisso jurídico sui generis, que atribui a outrem um poder de agressão)”, ou ainda de simples “consentimento tolerante (que não atribui poder de agressão, mas justifica implicitamente a mesma)”112. Parece, no entanto, que o critério de distinção entre estes tipos de consentimento é impreciso, uma vez que há situações que não se enquadram claramente numa destas categorias113. Tal implica divergências na doutrina na subsunção de determinadas realidades às diferentes modalidades de consentimento114, pelo que se tem entendido que também neste âmbito fará 110 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 513. 111 AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, Vol. II, Universidade Católica, Porto, 2004, p. 278. 112 ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, Centelha, Coimbra, 1981, p. 91. 113 Nesse sentido, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2008, pp. 57 e 58, que coloca a questão de saber se “o consentimento para tratamentos médico-cirúrgicos em benefício próprio [é] autorizante (por atribuir um poder de agressão e por ser revogável) ou (…) tolerante (por não pressupor a capacidade de exercício)”. 114 Por exemplo, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 131 e 132, entende que o consentimento numa doação de órgãos ou tecidos não deve ser considerado um consentimento autorizante, uma vez que “pensar que a revogação do consentimento (…) pode levar à obrigação de indemnizar o prejuízo causado pelas legítimas expectativas da outra parte, ainda que cingido ao dano de confiança, iria inibir a livre revogabilidade desse consentimento”. Assim, defende que essa doação deve estar sujeita ao regime do consentimento tolerante. PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS – IRINEU CABRAL BARRETO – 38 talvez mais sentido distinguir-se entre “o consentimento que afasta ou exclui a tipicidade da agressão ou da ofensa e o consentimento que afasta ou exclui a ilicitude dessa agressão ou dessa ofensa”. Se estiver em causa um consentimento excludente da tipicidade da agressão “não há ofensa aos direitos de personalidade (ex: consentimento para uma intervenção médicocirúrgica conforme às leges artis exclui a tipicidade da ofensa)”; já se se verificar um consentimento excludente da ilicitude “há uma ofensa aos direitos de personalidade justificada e, por conseguinte, lícita”115. Assim, também no Direito Civil o consentimento pode determinar a inexistência da lesão ou a justificação desta116, podendo distinguir-se “entre ‘elementos negativos’ da previsão do direito, que o limitam e excluem a existência de uma violação e a verificação de causas justificativas, ou de exclusão da ilicitude, de actos lesivos de direitos subjectivos”. Nos casos em que o consentimento exclui a tipicidade considera-se que não há sequer uma lesão do direito, ainda que “não ilícita (assim afastando a possibilidade de recorrer a meios de tutela que nos seus pressupostos eventualmente possam dispensar a ilicitude)”117. Em nosso entender, os fundamentos que estão na base da distinção TERESA PIZARRO BELEZA – EDUARDO PAZ FERREIRA (orgs.), Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, p. 552, por seu lado, sustenta que na doação de um rim estamos perante um consentimento autorizante, uma vez que entende que não se trata de uma “mera tolerância justificativa da agressão”. 115 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2008, pp. 57 e 58. Também considerando relevante esta distinção, ver ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 91. 116 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 535. Também ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 141 e 142, parece entender que a distinção é relevante, embora na nota 297 da p. 138, refira que não irá tratar de saber se faz sentido no Direito Civil. O Autor estabelece que é fundamental diferenciar as intervenções terapêuticas das intervenções não terapêuticas, na medida em que as primeiras não estão sujeitas ao controlo dos bons costumes, uma vez que “o assentimento é um acordo que exclui a tipicidade e não está preso aos limites do art. 149.º do Código Penal (CP)”. Considera que “se assim é no Direito Penal, o princípio da unidade jurídica também argumenta (…) que assim seja no Direito Civil”. 117 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 534 e 535. O Autor defende, por exemplo, que o enquadramento correcto para a limitação voluntária do direito à reserva parece ser “não o do consentimento enquanto causa de justificação ou exclusão de ilicitude de um acto lesivo do direito (…), mas antes o do mero acordo que, pela limitação do direito, exclui a existência de lesão deste”. 39 entre consentimento e acordo relevam também na renúncia a direitos fundamentais. É útil para a problemática que estamos a analisar distinguir entre os diferentes tipos de direitos fundamentais, sendo essencial determinar se estamos perante uma disposição de direitos que protegem em primeira linha a autonomia individual ou se, pelo contrário, se trata de direitos relativos a bens que constituem também valores comunitários, protegendo algo que está para lá dessa autonomia118. Há, de facto, direitos fundamentais cujo bem jurídico é principalmente protegido na medida da vontade do titular, devendo essa diferenciação ter implicações quanto à sua maior disponibilidade119. No primeiro caso, poderá fazer sentido considerar que essa disposição se consubstancia num mero exercício de direitos, uma vez que há uma identificação, pelo menos tendencial, entre a autonomia e o bem jurídico protegido pela disposição jusfundamental. Nas situações em que estejam em causa direitos relativos a bens que também constituem valores comunitários já se tratará de renúncia. Tal não significa que esta não seja expressão do exercício de direitos, uma vez que, como vimos, “a realização de um direito fundamental inclui (…) a possibilidade de se dispor dele, inclusive no sentido da sua limitação”120. Mas, para além disso, a renúncia envolve um enfraquecimento das posições individuais de direitos fundamentais, implicando uma afectação negativa desses direitos. Estabelecendo um paralelo com o direito penal, nos casos de mero exercício de direitos fundamentais estamos perante um acordo que exclui a tipicidade e nos casos de renúncia perante um consentimento que afasta a 118 Considerando, pelo contrário, que para a dogmática dos direitos fundamentais não é relevante esta distinção, ver MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, 2.ª Edição, Springer Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, 2003, p. 110. No outro extremo, defendendo que o conceito de renúncia é supérfluo, uma vez que se trata sempre de mero exercício de direitos fundamentais, ver ANDREAS GEIGER, “Die Einwilligung in die Verarbeitung von persönlichen Daten als Ausübung des Rechts auf informationelle Selbstbestimmung”, in NVwZ, n.º 1, 1989, p. 37, Este Autor baseia-se na posição de DETLEF GÖLDNER, “Gesetzmässigkeit und Vertragsfreiheit im Verwaltungsrecht”, in JZ, n.º 11/12, 1976, p. 355, que entende que a criação de vínculos jurídicos, pelo menos no âmbito contratual, implica um mero exercício de direitos fundamentais e não renúncia. Nesse sentido, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 33. 119 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 313. 120 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287. 40 ilicitude121. Consequentemente, as situações de mero exercício não gozam da dupla natureza da renúncia enquanto exercício e afectação negativa de direitos. Também na Alemanha alguma doutrina considera que quando o elemento da vontade está expressamente previsto na disposição constitucional se trata de um acordo que exclui a tipicidade122. Julgamos, no entanto, que não é determinante o facto de a lei referir expressamente a “vontade ou o consentimento de quem de direito”, tratando-se essencialmente de uma questão de interpretação. “Serão mais esclarecedoras e consistentes as conclusões a esperar de uma leitura teleológica, orientada por e para o bem jurídico tutelado. Só identificando o bem jurídico protegido e a respectiva área de tutela se poderá, com efeito, definir (…) o papel reservado à vontade do portador concreto”123. No Direito Penal tem-se defendido, por exemplo, que no crime de introdução em casa alheia não existem, “à margem da atitude do portador concreto do bem jurídico”, comportamentos passíveis de “fundamentar um juízo de danosidade social”, pelo que a concordância do particular se traduz num acordo que exclui a tipicidade124. Entende-se que “não é possível referenciar aqui uma linha de fronteira entre a autonomia pessoal e o bem jurídico protegido”125, pelo que este consentimento deve ser considerado uma causa de 121 No direito penal retiram-se consequências desta distinção, na medida em que, “ao contrário do que sucede com o consentimento, a eficácia jurídico-penal do acordo não está sujeita a qualquer cláusula limitativa dos bons costumes”. Nesse sentido, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 559. 122 JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 542 e 543, considera que será o caso, por exemplo, da renúncia à cidadania, prevista na Constituição alemã. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 137 e 138, nota 414, defende ser um “mau exemplo” de renúncia a renúncia à cidadania. Neste caso entende que o problema se resolve “ao nível da previsão normativa, uma vez que a permanência da cidadania não constitui um elemento necessário da previsão (…), podendo a cidadania ser perdida (…) precisamente por efeito da vontade do titular – (…) hipótese consagrada entre nós, no art. 8.º da Lei da Nacionalidade”. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 267, nota 10, considera, por seu lado, que a possibilidade de renúncia à cidadania está “implícita no art. 26.º n.º 1 da CRP (…), até por força da necessária interpretação deste direito à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem onde a possibilidade de renúncia vem expressamente consagrada no art. 15.º, n.º 2”. 123 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 365 - 367. 124 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 362 e 363. 125 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 381. 41 exclusão da tipicidade126. Quando alguém permite que outra pessoa entre em sua casa, em princípio não considera que tal situação se consubstancia numa lesão do seu direito, pelo que estamos perante um caso de acordo. O mesmo já não se passa no consentimento justificante. “Quem autoriza [por exemplo] um sacrifício da sua saúde, confrontado com a mesma pergunta não deixará de responder: ‘estive de acordo com a lesão do meu direito’127.” Estas considerações parecem aplicáveis ao direito à inviolabilidade do domicílio128, uma vez que a própria disposição constitucional que o consagra diz expressamente que “a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e nas formas previstas na lei”129. Assim sendo, julgamos que este preceito visa proteger apenas, em princípio, a entrada no domicílio não-consentida. Quando alguém autoriza outrem a entrar no seu domicílio não está a renunciar a este direito, mas apenas a exercê-lo. 126 AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, cit., pp. 274 ss. Para este Autor “o consentimento pode constituir uma causa de exclusão da tipicidade (...), uma causa especial de justificação, uma causa de exclusão da ilicitude ou uma causa especial de diminuição do ilícito”. 127 H. J. HIRSCH apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 508. 128 Jorge Miranda, na 3.ª Edição do Tomo IV do Manual de Direito Constitucional (cit.), p. 358, referindo-se ao direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no art. 34.º da CRP, estabelece que quando alguém anui na entrada no seu domicílio está a usufruir de um direito e não a renunciar. Na última Edição, parece-nos que inclui este caso nas situações de “auto-suspensão aparente do exercício de direitos”. Nesse sentido, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 384 e 385. Considerando também que quando alguém autoriza uma busca policial não detendo a polícia um mandato para o fazer se trata de mero exercício de direitos e não já de renúncia, ver GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 185. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 542, julgam também que “o acordo dado à entrada no domicílio não representa qualquer ‘renúncia a um direito fundamental’, estando sujeito a um permanente ‘direito de revogação’” (o que, partindo da nossa definição de renúncia não deixaria em princípio de acontecer mesmo que se tratasse de uma situação de renúncia); JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 312 e 313, entende que dos n.ºs 2 e 3 do art. 34.º da CRP “se pode retirar o princípio da disponibilidade dos direitos em causa”. Ver ainda o Acórdão n.º 7/87 do TC (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º volume, 1987) no qual este estabelece que “consentindo os visados ou, por outras palavras, não se verificando a entrada no domicílio ‘contra a sua vontade’, não se viola o domicílio. 129 O mesmo acontece também no n.º 3 do art. 35.º, que proíbe o tratamento informático de dados sensíveis (convicções religiosas e políticas, vida privada, etc.) a não ser que haja o consentimento do titular, de onde se pode retirar “o princípio da disponibilidade” deste direito. Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 313. 42 Tem-se também considerado que “o enquadramento sistemático correcto para a limitação voluntária do direito à reserva” não é o do consentimento, mas sim o do acordo que, “pela limitação do direito, exclui a existência de lesão”. Para esta posição, “com a divulgação pelo próprio, ou com a autorização para a divulgação por terceiros, é ainda o próprio conteúdo do direito à reserva – a autodeterminação sobre informação relativa à vida privada – que obtém expressão”. Assim, a limitação voluntária deste direito traduz ainda uma forma de exercício, pelo que não se verifica uma violação do direito à reserva130. Temos, no entanto, algumas dúvidas quanto a considerar que a disposição do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada se consubstancia em mero exercício do direito. É, de facto, o indivíduo que, em certa medida, define a sua “vida privada”, pelo que terá um alcance diferente a vida privada de uma pessoa que tenha “reduzido ao mínimo a interacção social” e que “mantenha resguardada dos outros a sua esfera privada”, e a de alguém que leve uma vida “aberta a inúmeras pessoas”131. A noção de reserva é, assim, “subjectiva e variável em função dos sujeitos, dos lugares e dos momentos históricos. Os limites da esfera privada são elásticos, dependendo das circunstâncias, do contexto em que se encontra um determinado sujeito, das suas relações de poder”132. Esta elasticidade dos limites da intimidade não implica, no entanto, uma verdadeira renúncia ou uma limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada por parte do titular. A renúncia ou a limitação 130 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 534 – 536. MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 192.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 735, considera também que no crime de devassa da vida privada o consentimento se consubstancia num acordo que exclui a tipicidade. 131 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 531 e 532. O próprio art. 80º, n.º 2 do Código Civil (CC), manda o aplicador do direito socorrer-se de dois critérios para a determinação dos contornos do bem tutelado. Aí se dispõe que a extensão da reserva é definida conforme a “condição das pessoas” e a “natureza do caso”, o que mostra que “a valoração última do que seja o âmbito reservado terá de se fazer à luz do circunstancialismo do caso concreto”. Ver JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A reserva da intimidade da vida privada e familiar”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLIII, n.º 1, 2002, p. 17. 132 GREGÓRIO ARENAS apud JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, “Direito à informação, Protecção da Intimidade e Autoridades Administrativas Independentes”, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001, p. 627. 43 voluntária de um direito pressupõem a sua existência prévia. Ora “ao delimitar o objecto do direito com base nos critérios já apontados, a lei civil portuguesa considera-os relevantes no instante lógico da criação do direito, momento que, forçosamente, antecede o da renúncia” ou limitação voluntária133. Parece-nos, então, que se deve rejeitar uma total relativização da determinação do conceito de vida privada, sendo necessário o estabelecimento de alguns “critérios objectivos”. Esses critérios são os que decorrem das “valorações sociais correntes sobre a questão”134. A posição contrária defende uma completa relativização do conceito na medida em que considera que, “do ponto de vista jurídico-constitucional, uma pessoa que decide tornar públicos comportamentos geralmente protegidos pela reserva da intimidade da vida privada não está, por esse motivo, a renunciar a esse direito, mas sim a exercê-lo autonomamente de acordo com as suas próprias preferências”, sendo este direito “compatível com diversos modos de utilização”135. No entanto, parece-nos que quando alguém renuncia total ou quase totalmente à reserva da vida privada, por exemplo em reality shows (ainda que se trate de uma renúncia temporalmente delimitada), tal não deixa de configurar uma certa frustração de um bem jurídico constitucionalmente protegido. Quem autoriza um sacrifício da sua reserva da vida privada nesses casos e nesses termos não deixará de responder: “estive de acordo com a lesão do meu direito”. Finalmente, também se têm considerado exemplos de “direitos relativos a bens individuais, cujo conteúdo, âmbito e grau de protecção constitucional é estabelecido primacialmente em função da vontade do titular” os direitos à imagem, à palavra, à auto-determinação informativa e à propriedade136. 133 RITA AMARAL CABRAL, “O direito à intimidade da vida privada”, in Estudos em memória do Professor Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1989, p. 399; PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 532 e 533. 134 Nesse sentido, PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in Boletim da Faculdade de Direito, Volume LXIX, Coimbra, 1993, pp. 526 e 527. 135 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JÓNATAS MACHADO, Reality Shows e Liberdade de Programação, Argumentum 12, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 56 - 58 136 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 312 e 313. MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 199.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 832, entende também que no direito à 44 Esta distinção entre mero exercício e renúncia não deve, no entanto, ser encarada como uma distinção categórica, que implique uma diferenciação radical, sobretudo na renúncia perante o Estado. Antes do mais, graças à própria natureza dos direitos fundamentais, uma vez que as normas que os consagram se traduzem num feixe de pretensões e posições jurídicas muito distintas. Há uma multiplicidade de situações que se podem colocar e é difícil determinar, olhando apenas para o tipo de direito fundamental em causa, se estamos ou não perante uma afectação negativa do direito. Para essa avaliação devem, para além disso, considerar-se as diferentes situações relacionais em que tem lugar a renúncia, sendo de distinguir a renúncia perante uma autoridade dotada de poderes públicos, perante uma entidade privada ou indivíduo que detenha um poder jurídico ou de facto ou numa relação entre iguais. Consequentemente, este problema só é susceptível de uma solução definitiva nas circunstâncias dos casos concretos, devendo entender-se que há um “princípio de disponibilidade” dos direitos em causa nas situações que, à partida, reconduzimos ao mero exercício de imagem e no direito à palavra a anuência do titular do direito se traduz num acordo que exclui a tipicidade. Sobre o direito de propriedade, considerando que o Tribunal Constitucional “tem perfilhado uma concepção persistentemente comunitarista e objectivista da figura”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 656. Na p. 666, o Autor defende que “no direito de propriedade é dominante a dimensão pessoal (dado constituir ainda uma projecção e um instrumento da autonomia e do livre desenvolvimento da personalidade individual)”. Para além dos direitos referidos, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 140, sustenta ainda que o caso de colheita de órgãos em cadáver para transplante não se consubstancia numa renúncia a direitos fundamentais, uma vez que entende que “o nãoexercício do direito de autodeterminação - o único relevante nesta matéria - não implica de forma alguma um ‘enfraquecimento’ da ‘posição jurídica subjectiva tutelada por uma norma de direitos fundamentais’”. Quanto a tratamentos médico-cirúrgicos realizados de acordo com as leges artis, tem-se também entendido que estes não se traduzem numa lesão ao direito à integridade física, uma vez que o bem jurídico protegido nestes casos é a autonomia e não a integridade física em si mesma. Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 400 ss. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 137 e 138, por seu lado, considera como mau exemplo de renúncia a esterilização voluntária. Nestes casos defende que “a fenomenologia principal emergente não é a da renúncia, mas sim a do exercício de poderes e faculdades que recaem no âmbito de protecção de diversos direitos fundamentais e de diversas outras normas constitucionais de garantia”. Considerando, pelo contrário, na perspectiva do direito penal, que “[n]a esterilização sem indicação médica ou equiparada” está em causa uma agressão à integridade física, passível “de justificação mediante o consentimento do ofendido, suposto (…) o respeito pelos bons costumes”, ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 476. Quanto às operações cosméticas, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 471 e 472, entende que estas não se reconduzem “ao conceito e regime legal dos tratamentos médico-cirúrgicos”. 45 direitos137. Assim, esta distinção é útil porque pode ser decisiva para o estabelecimento de uma prevalência a favor da disponibilidade do bem num mundo de ponderação, mas não deve excluir que as situações de mero exercício estejam sujeitas a essa mesma ponderação. Por outro lado, se se tratar de uma situação de mero exercício de direitos que envolva o Estado, a distinção acaba por não ser tão relevante quanto à partida possa parecer, uma vez que, como já tivemos oportunidade de referir, o Estado está vinculado, em toda a sua actuação, aos princípios constitucionais estruturantes138. Nessa medida, quando actua partindo do consentimento (em sentido amplo) do particular, mesmo que não estejamos perante uma afectação negativa de direitos tal não exclui que o tenha de fazer respeitando esses princípios. Já serão de retirar maiores consequências desta diferenciação no que se refere à renúncia nas relações entre particulares. Em conclusão, em princípio só estamos perante um caso de renúncia quando se trate da disposição de direitos fundamentais que se referem a bens que, sendo pessoais, constituem simultaneamente valores comunitários. 4. Possíveis configurações da renúncia Muitas vezes distingue-se entre renúncia ao exercício e à titularidade do direito, assim como entre renúncia parcial e renúncia total, para aferir da admissibilidade do poder de disposição sobre posições subjectivas de direitos fundamentais. Para esta perspectiva, uma renúncia total ou à titularidade do 137 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 313 e 314. 138 Já no que se refere à exigência de respeito pelo princípio da reserva de lei, parece-nos que há efectivamente uma diferença. Não vamos desenvolver, neste momento, a questão de saber em que termos é que a reserva de lei deve ser respeitada nos casos de renúncia, uma vez que teremos oportunidade de tratar autonomamente essa questão. De todo o modo, para o problema que estamos agora a tratar convém referir que “a reserva de lei respeita à actividade da Administração, não ao exercício individual de direitos fundamentais”. Tal significa que “quando um particular renuncia a uma posição de direitos fundamentais (…) está a ampliar correspondentemente os poderes da entidade pública. Ou seja, trata-se de uma manifestação do seu poder de dispor sobre posições próprias de direitos fundamentais (…) que produz um enfraquecimento (…) da sua posição protegida de direito fundamental. Ora as exigências da reserva de lei dizem exclusivamente respeito a esta dimensão da renúncia” enquanto afectação negativa”. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 314 e 315. 46 direito deve considerar-se uma renúncia inadmissível. Vamos, então, ver em que é que se consubstanciam essas distinções e procurar responder à questão de saber em que medida são relevantes para o problema que estamos a tratar. 4.1. A renúncia ao exercício e a renúncia à titularidade dos direitos fundamentais: negação da distinção A distinção entre renúncia ao exercício e renúncia à titularidade relaciona-se originariamente com a problemática das relações especiais de poder139, na medida em que as restrições a direitos fundamentais decorrentes da entrada numa relação deste tipo se tentaram explicar através da figura da renúncia ao exercício de direitos140. Entendia-se que aquele que integrava voluntariamente uma relação especial de poder renunciava parcialmente ao exercício do seu direito fundamental e alargava, deste modo, a margem de intervenção no direito sem necessidade de fundamento legal141. Assim, as restrições não previstas na lei que resultavam dessas relações legitimavam-se através da figura da renúncia, partindo-se da distinção entre renúncia ao direito fundamental e renúncia ao exercício do direito fundamental. Esta perspectiva considerava inaceitável a renúncia ao direito fundamental enquanto tal, mas entendia que “a renúncia ao seu exercício seria, mesmo na ausência de lei autorizadora, justificável, por se considerar que o exercício do direito (…) era incompatível com a natureza e exigências do funcionamento da instituição a 139 Actualmente designadas “relações jurídicas especiais” ou “estatutos especiais”. Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 293, nota 72. Sustentando também que, “em rigor, é preferível falar em estatutos especiais, o que tem a vantagem de evidenciar que tais relações são jurídicas e até legislativas, nunca alheias ao Direito”, ver LUIS S. CABRAL DE MONCADA, Estudos de Direito Público, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 227. 140 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 31; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926 JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p.547; GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 177. Ver também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463. 141 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926. 47 que voluntariamente se aderia”142. A aplicação da doutrina da renúncia a direitos fundamentais às relações especiais de poder foi, contudo, criticada, uma vez que, em regra, faltava aqui uma declaração de vontade do visado143. Hoje é mais ou menos consensual que nestes casos não estamos perante situações de renúncia mas antes perante restrições heterónomas144. Há, no entanto, Autores que consideram relevante a distinção entre renúncia ao direito fundamental enquanto tal e renúncia ao mero exercício para além da problemática das relações especiais de poder145, posição que não seguimos. Para esta perspectiva “renunciar à titularidade de uma posição jurídica tutelada por uma norma de direito fundamental é renunciar total e irrevogavelmente à capacidade jurídica de exercício das faculdades ou poderes que decorrem dessa posição por todo o tempo previsto na declaração de renúncia”. Por sua vez, “a renúncia ao mero exercício nunca é, pelo menos, definitiva, uma vez que continuando o sujeito na titularidade da posição jurídica, pode sempre (…) reassumir a plenitude da capacidade de exercício, em última análise através da possibilidade de revogação da declaração de renúncia. Já no caso de uma renúncia válida à própria titularidade do direito, uma reassunção da plenitude dos poderes dele decorrentes já não dependeria só de uma decisão unilateral do próprio, mas antes e também de uma decisão heterónoma”146. Como exemplo refere-se a situação de um indivíduo consentir que a 142 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 278 e 279; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 48; também RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 73 e 74. 143 RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 64 e 65. 144 Considerando que esta é “uma concepção ultrapassada, (…) sendo o recurso à ideia de sujeição voluntária e de abdicação de direitos a face oculta de sobrevivência absolutista do «domínio do Estado» sobre os «súbditos» ao seu serviço”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463; também JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 384, que, como já referimos, entende que a restrição que se verifica com a integração em estatutos especiais provém da Constituição, pelo que, “em rigor não se trata senão de uma auto-restrição indirecta ou consequencial”. Ver ainda JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 279. 145 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 279 ss; KNUT FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, cit., p. 17; MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, in JA, 1974, p. 478. 146 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 279 – 283. 48 polícia efectue uma busca no seu domicílio, sem a tal estar obrigado. No caso entende-se que antes de a busca começar este deve poder revogar o consentimento, mas iniciada a busca já não poderá fazê-lo, pois “perde, pelo menos temporariamente, a titularidade da garantia da inviolabilidade de domicílio, não sendo então admitida a possibilidade de revogar a declaração de renúncia”147. Mesmo sem contestar a “possibilidade dogmática de distinção”148 entre renúncia à titularidade e renúncia ao exercício, parece-nos, no entanto, que esta diferenciação não tem utilidade para o problema que estamos a tratar, uma vez que não conseguimos encontrar um critério que a priori nos ajude a determinar se estamos perante uma renúncia à titularidade ou ao exercício149. No caso apresentado, a questão que se coloca é a de saber o que determina à partida se se trata de uma renúncia ao exercício ou uma renúncia à titularidade, ou quando é que uma se converte na outra150. Para além disso, não é claro que na situação referida não se deva admitir a revogabilidade do consentimento. Uma vez que consideramos que em princípio é inerente ao conceito de renúncia a possibilidade de revogação não nos parece que a consequência tenha de ser necessariamente essa151. Mas, ainda que se entendesse que iniciada a busca o indivíduo deveria perder a possibilidade de revogar a declaração, julgamos que o critério distintivo entre estas duas situações deveria ser o da legitimidade ou ilegitimidade da revogação. Ou seja, a declaração de renúncia deve pressupor, em princípio, a possibilidade da sua revogação, a não ser que essa revogação se traduza, efectivamente, num abuso do instituto. Ora se o problema que aqui 147 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 277, nota 22. 148 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 280. 149 Convém, no entanto, ressalvar que partindo do que dissemos quanto à distinção entre renúncia e mero exercício de direitos a disposição do direito à inviolabilidade do domicílio consubstanciar-se-á, em princípio, em mero exercício de direitos e não em renúncia propriamente dita. 150 Considerando que esta distinção não é relevante, na medida em que dificilmente se conseguiria delimitar a partir de que momento é que a renúncia ao exercício implica uma renúncia completa a direitos, ver KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 904. 151 Entendendo que, “uma busca sem autorização judicial, deverá imediatamente cessar a partir do momento em que quem a autorizou o pretender”, ver KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 916. 49 se coloca é, afinal, o da revogabilidade ou irrevogabilidade da renúncia, parece que fará mais sentido atender ao motivo da revogação e, eventualmente, admitir que em determinadas situações poderá haver um abuso do instituto152. Consequentemente, entendemos que esta distinção não é relevante para a problemática da renúncia a direitos fundamentais153. Por outro lado, a distinção entre renúncia à titularidade e ao exercício tem também sido utilizada no sentido de se considerar que a renúncia à 152 Também JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 270, defende que haverá casos em que a renúncia, “sob pena de permitir a manipulação ou o abuso do instituto, parece de revogação impossível, ou pelo menos discutível”. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 59, refere que a declaração de renúncia é, em princípio, revogável mas que, “por razões de confiança jurídica e no interesse do destinatário da renúncia se devem estabelecer limites”. Assim, entende que “seria contrário à boa fé revogar a renúncia após o acto que esta veio permitir ter sido já levado a cabo”. Nesse sentido, também MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 479 e 480. Julgamos ainda que poderá haver situações em que se pode justificar que o legislador exclua a possibilidade de revogação da renúncia por entender que há razões que justificam essa irrevogabilidade. Será esse o caso, por exemplo, da renúncia à cidadania, que envolve, efectivamente, a perda do direito. Considerando que a renúncia à cidadania implica a perda do direito, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 322. Ainda no que se refere à revogação do consentimento no caso de doação de órgãos, PAULO SOARES DO NASCIMENTO, “Transplantes de órgãos humanos: a natureza do cadáver e dos órgãos e tecidos à luz do Direito Privado”, cit., pp. 1047 e 1048, sustenta que mesmo no caso de órgãos não regeneráveis não deve ser de admitir a revogação após a colheita mas antes do implante do órgão no destinatário. 153 Considerando que não é relevante a distinção entre renúncia à titularidade e renúncia ao exercício, ver MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 27 e 28. Defendendo que não se pode separar o direito e o seu exercício, partindo da perspectiva de Günter Dürig, que considera que um direito que não pode ser exercido se trata de um nudum ius, ou seja, é um direito que, de facto, deixa de existir, ver KLAUS RÜDIGER WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche Rechte, cit., pp. 78 e 79; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 49; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 925; REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, in WILFRIED ERBGUTH – FRIEDRICH MÜLLER – VOLKER NEUMANN, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik im Austausch. Gedächtnisschrift für Bernd Jeand’ Heur, Duncker & Humblot, Berlin, p. 174; GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 185; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 903 e 904; JOST PIETZCKER “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 537 e 538; KLAUS BUSSFELD, “Zum Verzicht im öffentlichen Recht am Beispiel des Verzichts auf eine Fahrerlaubnis”, cit., p. 769. Quanto à questão da exigência de maioridade para a titularidade de direitos fundamentais, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 129 e 130, defende que “não tem sentido, relativamente aos direitos fundamentais, a distinção civilística entre capacidade de gozo e capacidade de exercício”. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO - VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, cit., p. 331, consideram que “não tem, em princípio, qualquer utilidade no Direito Constitucional a distinção entre capacidade de gozo de direitos (ou titularidade) e a capacidade de exercício”. Nesse sentido, ver também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 424 e 425; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 233 - 235; JORGE MIRANDA, “Artigo 12.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., pp. 112 e 113. 50 titularidade do direito é “irreparável”, ou seja, irreversível, o mesmo já não acontecendo com a renúncia ao seu exercício154. Normalmente esta diferenciação vem também associada à consequência de que a renúncia à titularidade do direito é inadmissível e a renúncia ao exercício (exceptuando uma renúncia total ao exercício que esvaziaria o direito) já será de aceitar155, posição a que também não aderimos. Apesar disso, pensamos que se justifica diferenciar entre renúncia definitiva ou irreversível e renúncia não definitiva ou reversível, uma vez que há direitos cuja natureza implica que a renúncia se traduz necessariamente na sua extinção, como será, por exemplo, o caso do direito à vida. Nessa medida, julgamos que esta distinção deve ser tida em conta na ponderação a realizar para aferir da admissibilidade de uma determinada renúncia. Não seguimos, no entanto, a perspectiva que exclui necessariamente a possibilidade de uma renúncia que seja definitiva156. Como vimos quando definimos o conceito de renúncia, não devem ser de afastar situações de renúncia que impliquem a extinção do direito. Este conceito deve também abarcar, pelo menos à partida, essas situações. 4.2. A renúncia total e a renúncia parcial Dentro da distinção entre renúncia total e renúncia parcial podemos autonomizar duas questões: por um lado, a questão de determinar se uma dada renúncia abrange todas as faculdades ou apenas algumas faculdades decorrentes do direito em causa; por outro lado, se se trata de uma renúncia 154 INGO VON MÜNCH, “Grundrechtschutz gegen sich selbst”, in ROLF STÖDTER – WERNER THIEME (orgs.), Festschrift für Hans Peter Ipsen zum siebzigsten Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1977, p. 127. 155 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 27. É o caso de MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 478; INGO VON MÜNCH, “Grundrechtschutz gegen sich selbst”, p. 127. 156 Considerando que não é permitido renunciar ao direito fundamental como um todo, no sentido em que não haverá mais nenhuma possibilidade de recurso a esse direito, ver MIGUEL ÁNGEL FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, “Renunciabilidad de los derechos fundamentales de contenido económico”, in JAVIER PÉREZ ROYO – JOAQUÍN PABLO URÍAS MARTÍNEZ – MANUEL CARRASCO DURAN (eds.), Derecho Constitucional para el Siglo XXI, Actas del VIII Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional, Aranzadi, Navarra, 2006, p. 1376. 51 temporária ou de duração indeterminada. Nesta diferenciação o que está em jogo é, então, em primeiro lugar, “a extensão material do bem a que se renuncia (um direito fundamental como um todo ou alguma(s) das faculdades que o integram)”. A titularidade de um direito fundamental envolve a disposição “de um feixe de posições jurídicas tuteladas por normas de direitos fundamentais, que se traduzem num conjunto de pretensões, faculdades e poderes (…) que se podem referir, na sua globalidade, ao mesmo direito fundamental”157. Assim sendo, num primeiro momento deve apreciar-se se o titular do direito está a renunciar ao direito na sua totalidade ou apenas a algumas das pretensões nele compreendidas. Em segundo lugar, esta distinção prende-se ainda com “a medida da extensão temporal da renúncia”. Aqui, trata-se de determinar se estamos perante uma renúncia por um tempo certo ou de duração indeterminada. Quando se fala em renúncia total neste sentido aquilo que se pretende dizer é que se trata de uma renúncia sem prazo definido ou sem limite de prazo; já a renúncia parcial é uma renúncia delimitada no tempo158. Alguma doutrina, partindo desta distinção, defende (tal como vimos relativamente à renúncia definitiva) a irrelevância de uma renúncia ao direito como um todo159 ou de uma renúncia que não seja temporalmente delimitada160. 157 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 284 e 285. O Autor dá como exemplo a possibilidade de renunciar, quando se ingressa num serviço público, a exercer o direito de petição sobre qualquer matéria, ou a exercer o direito de petição apenas sobre questões de serviço. Ver também JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 55. 158 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 284. Este Autor dá também como exemplo desta distinção o caso de, num divórcio por mútuo consentimento, um dos cônjuges se vincular a não viver na mesma localidade do outro, por um período de tempo determinado ou por toda a vida. 159 JÖRG EISELE, “Verzicht auf die Fahrerlaubnis als Instrument zur Beendigung von Strafverfahren”, in NZV, n.º 6, 1999, p. 236; JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 93; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 45 e 46. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 137, considera que “a admitir-se a renúncia, a mesma não ocorre no plano do direito fundamental como um todo, mas a outro nível: ao nível de uma posição concreta ou ao nível de determinados efeitos da protecção avaliados em concreto”. Para o Autor, “por se revelarem aí as características básicas da fundamentalidade, da permanência e do carácter pessoal, que fazem dos direitos fundamentais realidades juridicamente inseparáveis da própria pessoa (…) é em princípio inadmissível a renúncia à titularidade de qualquer direito fundamental”. 160 GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, in AöR, n.º 2, 1956, p. 153. 52 Não consideramos, no entanto, que a renúncia total ou por tempo indeterminado deva ser sempre considerada inadmissível, ainda que estas diferenciações sejam relevantes para aferir a admissibilidade concreta de uma dada renúncia, uma vez que é efectivamente diferente renunciar, por exemplo, a um direito fundamental como um todo ou apenas a algumas das pretensões dele decorrentes. Na ponderação de valores a fazer quando avaliamos essa admissibilidade, deve ter-se em conta se se trata de uma renúncia ao direito “como um todo” ou apenas a algumas posições jurídicas” que dele decorrem e também se é uma renúncia “temporária e qual a sua extensão”161. Mas uma coisa é entender que o alcance da renúncia deve ser tido em consideração quando ponderamos se uma dada renúncia é de admitir, (até porque esse alcance determina a maior ou menor afectação do direito a que se renuncia) e outra é excluir algum tipo de renúncia à partida162. Consequentemente, consideramos que é errado assumir, a priori, sem se levar a cabo uma análise das circunstâncias específicas do caso, que será necessariamente inadmissível alguma destas formas de renúncia. Capítulo II: Controvérsias jurídicas sobre a renunciabilidade e a fundamentação do poder de renúncia Depois de termos delimitado no capítulo precedente a figura da renúncia a direitos fundamentais, bem como visto quais as possíveis configurações que esta pode assumir, vamos agora ocupar-nos das controvérsias jurídicas em torno da renunciabilidade de partida dos direitos fundamentais bem como da fundamentação do poder de dispor, uma vez que se trata de questões que não REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 186, entende que os direitos de liberdade devem ser protegidos como direitos de “permanência” e, por isso, não permitem qualquer renúncia que não seja para uma situação concreta nem esteja delimitada temporalmente. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 385, defende, por seu lado, que a “auto-suspensão de direitos” deve ser admitida desde que obedeça a uma série de requisitos, sendo um deles a limitação no tempo. 161 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 284 e 285. O Autor refere ainda aqui como relevante o facto de se tratar de uma renúncia ao exercício ou à titularidade, mas, como já referimos, não estamos de acordo com essa distinção. 162 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 28. 53 reúnem o consenso da doutrina. Em virtude disso, procuraremos, num primeiro momento, determinar se os direitos fundamentais são sequer renunciáveis, ou seja, se há razões que obstem à sua renunciabilidade e que justifiquem que estes não se devam considerar direitos disponíveis163. Num segundo momento, vamos indagar em que preceito ou preceitos constitucionais se deve fundar o poder de dispor sobre estes direitos. 1. A indisponibilidade dos direitos fundamentais Pretendemos agora tratar o problema da admissibilidade da renúncia, uma vez que há várias perspectivas que defendem precisamente a irrenunciabilidade de partida de todos ou alguns direitos fundamentais, partindo da ideia de que não são direitos disponíveis pelo seu titular. Os Autores que sustentam essa indisponibilidade têm vindo a convocar diferentes argumentos para fundamentar a sua posição, pelo que vamos ver os que consideramos mais relevantes, de modo a avaliar se são ou não procedentes. Uma das razões invocadas para justificar a indisponibilidade dos direitos fundamentais refere-se à ideia de inalienabilidade destes direitos. Analisando os textos constitucionais dos Estados e, em especial, os instrumentos internacionais de protecção dos direitos do Homem164, constatamos que vários deles se referem, directa ou indirectamente, à inalienabilidade dos direitos e liberdades que proclamam e garantem165. 163 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. 164 Os Preâmbulos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Económicos Sociais e Culturais, por exemplo, dizem expressamente que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. 165 PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertes. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 468. Considerando que o conceito de inalienabilidade pode ter vários sentidos, significando por vezes “não transferível”, outras vezes “não vendável”, ou ainda “não disponível pelo seu titular”, ver MARGARET JANE RADIN, “Market Inalienability”, in Harvard LR, Vol. 100, n.º 8, 1986/1987, pp. 1849, 1850 e 1852 ss. Para a Autora é também relevante a questão de saber se a alienação é voluntária ou involuntária e ainda se a posição, direito ou atributo em causa vai parar às mãos de um terceiro ou pura e simplesmente se perde ou extingue. Se o que está em causa é a perda voluntária, 54 Não parece, no entanto, que se possa retirar do princípio da inalienabilidade uma “interdição absoluta” de renúncia166. Se atendermos à “história das ideias políticas” constatamos que este princípio “não se opõe a uma renúncia pontual e concreta, mas antes a uma renúncia total aos direitos humanos de direito natural, tal como decorrem das teorias do contrato social”167. Em virtude disso, tem-se entendido que mesmo nas ordens jurídicas que referem explicitamente a inalienabilidade dos direitos do Homem (é o caso da Constituição alemã), daí se tem feito derivar “a exclusão da possibilidade de renúncia à titularidade de alguns tipos de direitos fundamentais como um todo”, mas já não “a renúncia pontual e concreta a posições de direitos fundamentais”168. A inalienabilidade dos direitos fundamentais não deve, por isso, implicar a sua irrenunciabilidade169. Por outro lado, há quem defenda a indisponibilidade dos direitos fundamentais partindo da caracterização destes direitos como direitos subjectivos públicos. Tem-se entendido que “os direitos subjectivos públicos, diferentemente dos direitos subjectivos privados, não têm por base uma relação de vida prévia, sendo sobretudo uma criação intelectual através de preceitos jurídicos”170. Assim, os direitos subjectivos públicos fundam-se “não inalienável poderá significar não renunciável. Sobre esta questão, ver ainda SUSAN ROSEACKERMAN, “Inalienability and the theory of property rights”, in Columbia LR, Vol. 85, 1985, pp. 931 ss. 166 PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertes. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 468. 167 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 58. 168 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 292; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 908. Parece ser essa a perspectiva de JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465, ao propor “como eixo argumentativo a invocação do carácter inalienável dos direitos, liberdades e garantias”. No entanto, não exclui a possibilidade de “autolimitação voluntária ao exercício de um direito num caso concreto”, desde que seja livremente revogável. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 24, critica os Autores que consideram que da 2.ª parte do art. 1.º da Grundgesetz (GG) se retira que os direitos humanos são irrenunciáveis (porque inalienáveis). Segundo o Autor, não se percebe por que razão se devem considerar os direitos humanos irrenunciáveis mas não já os direitos do cidadão. Nessa medida, entende que dessa disposição constitucional não se devem retirar consequências tão amplas. 169 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 58. 170 É deste modo que GEORG JELLINEK, System der Subjektiven Öffentlichen Rechte, Mohr Siebeck, Tübingen, 1919, pp. 334 ss, caracteriza os direitos subjectivos públicos. Ver também MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 83. 55 em faculdades pré-existentes, mas antes numa exclusiva concessão do ordenamento jurídico positivo”171, pelo que constituem o âmbito do denominado poder jurídico. Baseando-se nesta caracterização, alguma doutrina considera que os direitos subjectivos públicos serão em princípio irrenunciáveis quando a possibilidade de renúncia não esteja expressamente consagrada. Para esta posição, uma vez que o direito subjectivo público, enquanto mero “poder jurídico”, é uma capacidade especial, ou seja, é uma “qualificação da personalidade”, nesse poder não reside “a capacidade de se eliminar a si próprio enquanto capacidade jurídica”172. Parece, no entanto, não fazer sentido a distinção entre “faculdades préexistentes” e “concessões do ordenamento jurídico”, uma vez que é o próprio ordenamento que determina aquilo que é juridicamente relevante, pelo que essa determinação “não pode logicamente precedê-lo”173. Para além disso, esta perspectiva assenta num conceito de direitos subjectivos públicos que se reconduz “a uma visão positivista e estatista que os amarra e condiciona”174, o que não corresponde ao entendimento actual dos direitos fundamentais. Assim, da caracterização dos direitos fundamentais enquanto direitos subjectivos públicos não se devem retirar quaisquer conclusões quanto à sua renunciabilidade175. A indisponibilidade dos direitos fundamentais tem também vindo a ser fundamentada através do recurso a diferentes teorias dos direitos fundamentais, segundo as quais estes direitos, para além de serem posições subjectivas reconhecidas aos indivíduos e das quais estes se podem valer, cumprem ainda outras funções, que se prendem com a prossecução de 171 JORGE REIS NOVAIS, Contributo para Uma Teoria do Estado de Direito, Almedina, Coimbra, 2006, p. 84, nota 176. 172 É o caso de WALTER SCHOENBORN, Studien zur Lehre vom Verzicht im öffentlichen Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, p. 71. Ver, sobre esta questão, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 84. 173 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 87. 174 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 64. 175 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 88; sobre esta questão, ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 56 – 58. 56 interesses públicos, o que os torna indisponíveis176. Uma teoria de direitos fundamentais é “uma concepção sistematicamente orientada acerca do carácter geral, os objectivos normativos e o alcance material” dos direitos177. Estas teorias, “elaboradas a partir de meados da década de setenta (…), tinham como objectivo esclarecer se a interpretação dos direitos fundamentais pressupunha ou não uma teoria capaz de fornecer uma compreensão lógica, global e coerente dos preceitos da constituição consagradores de direitos fundamentais”178. Ora se, por exemplo, se entender que subjacente à nossa ordem jurídica está uma teoria da ordem dos valores179, uma teoria institucional ou uma teoria democrático-funcional180, teorias que consideram que os direitos fundamentais “desempenham também, ou principalmente, (…) funções de carácter social, institucional ou estatal”181, dificilmente se poderá considerar admissível a renúncia a estes direitos182. 176 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 293. É o caso de GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 197 ss. 177 ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE, “Grundrechtstheorie und Grundrechtsinterpretation” in NJW, n.º 27, 1974, pp. 1529 e 1530. Este Autor identifica cinco diferentes teorias de direitos fundamentais: a “teoria liberal”, a “teoria institucional”, a “teoria dos valores”, a “teoria democratico-funcional” e a “teoria social”. 178 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1395. 179 Estamos aqui a pressupor que se trata de uma teoria da ordem dos valores que implica uma opção por determinados valores que limitam a liberdade individual. No entanto, esta “não tem necessariamente que ser assumida nesta sua versão de alguma forma funcionalizadora”. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 63. Que uma teoria é uma teoria axiológica diz apenas que é uma teoria sobre alguns valores mas não diz nada acerca de que valores se tratam. Nesse sentido, ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 511 e 512. 180 Apesar de todas as críticas a um entendimento democrático-funcional dos direitos fundamentais, não se pode deixar de admitir que estes direitos exercem uma função essencial no processo democrático. Assim, nos direitos de liberdade política a dimensão democráticofuncional deve ser tida em conta na ponderação a fazer para determinar a validade de uma dada renúncia. No entanto, a aceitação da irrenunciabilidade geral destes direitos fundamentais é desproporcionada. Ainda que não seja de excluir um eventual perigo para os interesses de uma ordem livre e democrática, deve sempre avaliar-se, por um lado, “o significado do direito fundamental em causa para a democracia” e, por outro, “a extensão da renúncia intencionada no caso concreto”. Nesse sentido, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 97. 181 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 293. 182 Para além destas têm-se ainda identificado outras teorias, como a conservadora, a social e a socialista. Sobre as teorias de direitos fundamentais ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 60 ss; também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito 57 No entanto, ainda que estas teorias tenham tido “importância na relativização ou atenuação de uma concepção liberal que, na sua redutora unilateralidade, se impedia de apreender a multifuncionalidade dos direitos fundamentais nas sociedades actuais”183, pensamos que é muito duvidosa a sua utilidade para, por si só, resolverem a questão da admissibilidade da renúncia184. As teorias de direitos fundamentais ressaltam uma determinada dimensão do direito, sem terem em conta as restantes funções que lhe podem caber185. Corre-se, consequentemente, o risco de a teoria em causa “assentar em pré-juízos sobre os direitos fundamentais e, desse modo, atribuir-se às disposições jusfundamentais significados que as normas não contêm”186. Nessa medida, utilizar alguma delas em exclusividade implica tanto descurar as raízes históricas dos direitos fundamentais como as diversas funções que estes devem prosseguir187. Num ordenamento jurídico pluralista, como é o nosso, tem de se atribuir aos direitos fundamentais “uma multifuncionalidade, para acentuar todas e cada uma das funções que as teorias de direitos fundamentais captavam unilateralmente”188. Qualquer uma Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1399 – 1401; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1032; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., pp. 76 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “O círculo e a linha. Da «liberdade dos antigos» à «liberdade dos modernos» na teoria republicana dos direitos fundamentais”, in Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 34; REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, (trad. KARIN PRAEFKE – AIRES COUTINHO; coord. J.J. GOMES CANOTILHO), 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, p. 392; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 927. 183 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 293. 184 Nesse sentido (referindo-se ao consentimento para a lesão de um bem jusfundamentalmente protegido, que vimos já ser o termo que o Autor considera mais adequado), KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 19. 185 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 303. 186 KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, pp. 60 e 61. 187 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 927. 188 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1402; MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 32. Também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1037, refere que “a multiplicidade de aspectos subjacentes aos vários tipos de direitos fundamentais é de tal ordem que não permite qualquer esforço de unificação”. 58 destas teorias tradicionais apenas pode auxiliar “na busca de uma compreensão material, constitucionalmente adequada, dos direitos fundamentais”189, pois as soluções encontram-se “no confronto dos princípios e preceitos com as situações da vida”190. Intimamente relacionada com a questão das teorias e funções dos direitos fundamentais está também a distinção entre diferentes tipos de direitos para justificar a sua indisponibilidade, uma vez que se entende que há direitos fundamentais que constituem simultaneamente ou estão intimamente associados a valores comunitários, pelo que devem considerar-se direitos “inimigos” da renúncia191. Segundo tal concepção, a renúncia será sempre inadmissível “quando o bem jurídico sobre o qual incide o consentimento é simultaneamente um bem jurídico da colectividade ou quando esta se contrapõe a interesses públicos”192. Aqui não se exclui já a renunciabilidade de todos os direitos fundamentais mas apenas de alguns. Pensamos, no entanto, que não se encontra a solução prática para a renúncia a direitos fundamentais através da mera divisão destes direitos em “direitos referenciados ao indivíduo” e “direitos referenciados à colectividade”. Esta divisão tem a virtualidade de realçar um elemento a ter em conta na decisão de ponderação, como teremos oportunidade de ver mais desenvolvidamente, mas em caso algum resolve o problema da renúncia a direitos fundamentais193. Existem efectivamente direitos fundamentais que, apesar de serem posições subjectivas dos indivíduos, visam também prosseguir outras funções 189 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1403. 190 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 62; Estas críticas não se aplicam, no entanto, às teorias que abarcam vários princípios, como é o caso da teoria de Alexy. De facto, o conceito de teoria dos direitos fundamentais não está limitado às teorias tradicionais que aceitam apenas um princípio, podendo também uma teoria dos direitos fundamentais partir de vários princípios jurídicos. Sobre esta questão ver, mais desenvolvidamente, ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 516. Para o problema que estamos a tratar, uma teoria dos direitos fundamentais nestes termos não implica, no entanto, a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais, antes favorecendo o poder de disposição individual em que se traduz a renúncia. 191 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 175. 192 Nesse sentido, GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., p. 930. 193 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 190 e 191. 59 (sociais, institucionais ou democráticas), que poderão ser perturbadas com a renúncia. Tal será o caso, por exemplo, do direito de voto. No entanto, estas considerações não são extensíveis a todos os direitos fundamentais, apenas se justificando em relação a alguns deles, como acontece com os direitos de participação política194. Para além disso, mesmo quanto a estes deve verificarse, na situação concreta, “se os interesses divergentes são harmonizáveis ou se a renúncia (…) se apresenta como factor de perturbação inadmissível”195. Por outro lado ainda, também a dimensão objectiva é muitas vezes invocada como argumento para fundamentar a indisponibilidade dos direitos fundamentais e negar a sua renunciabilidade de partida196. De facto, no pósguerra passou a reconhecer-se que estes direitos detêm, a par da sua dimensão subjectiva (enquanto posições subjectivas dos particulares), uma dimensão objectiva, pelo que se consubstanciam também numa ordem de valores objectiva que vincula todos os poderes públicos e que detém uma força irradiante para todos os ramos do direito197. 194 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 293 e 294. 195 RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 157. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 539 e 540, mostra-se céptico em relação a ponderações de interesses abstractas, uma vez que não é possível efectuar uma separação precisa entre interesses individuais e da colectividade. 196 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 296. Sobre a dimensão objectiva e subjectiva dos direitos fundamentais, ver também JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp.57 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 107 – 111; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1215 e 1216; PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 187 e 188; ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, Para o Consentimento do Particular em Direito Administrativo, Editora Danúbio, Lisboa, 1983, p. 45; VASCO PEREIRA DA SILVA, A Cultura a que Tenho Direito. Direitos Fundamentais e Cultura, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 114 e ss; ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., pp. 66 ss; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., p. 32 e 96 ss; INGO WOLFGANG SARLET, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 1998, pp. 138 ss. 197 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 57 e 58. REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., pp. 182 e 183, sustenta que “o entendimento dos direitos fundamentais enquanto elementos de uma ordem de valores objectiva é fruto da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão e remonta a uma decisão sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito privado. (…) A partir do momento que se reconhece que os direitos fundamentais devem ser também interpretados como elementos de uma ordem de valores objectiva, nada mais se opôs, na perspectiva do Tribunal, a uma irradiação destes direitos nas relações entre privados. Esta criação ‘mística’ de uma ordem de valores dos direitos fundamentais foi muito criticada, pelo que não constituiu 60 A doutrina tem vindo progressivamente a afirmar esta dimensão objectiva, o que se traduz num “alargamento das funções classicamente reconhecidas aos direitos fundamentais”. Partindo dela, passa a aceitar-se uma “’eficácia de irradiação’ [dos direitos fundamentais] para toda a ordem jurídica e, em especial, em relação a entidades privadas”. Para além disso, passa ainda a considerar-se que estes “não se resumem a direitos de defesa que impõem proibições (‘Abwehrrechte’), mas também importam uma função protectiva, de imperativo de tutela (‘Schutzgebot’), designadamente impondo deveres de protecção a entidades públicas”. Assim, a previsão da função objectiva tem sido “susceptível de fundar outros efeitos jurídicos, que constituem um ‘reforço de juridicidade’ dos direitos fundamentais”198. Tais direitos “valem juridicamente para âmbitos diferenciados e delimitados de vida onde garantem uma protecção variável e primariamente definida pelo chamado âmbito de protecção,” no qual “oferecem um conteúdo de protecção multifuncional que se desenvolve em torno” destas duas dimensões199. Esta distinção faz sentido para demonstrar “que os preceitos relativos aos direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares perante o Estado, (…) antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir”200. O reconhecimento da dimensão objectiva está também intimamente ligado com algumas das teorias de direitos fundamentais já referidas, que pretenderam superar uma “concepção liberal tradicional que, associada ao surpresa a posterior apresentação pelo Tribunal de uma nova variante na dogmática jurídica de direito objectivo: a doutrina dos deveres de protecção do Estado, desenvolvida no primeiro caso de interrupção da gravidez”. Entendendo que o BVerfG, em virtude das críticas à sua jurisprudência na qual se referia a uma ordem de valores objectiva, passou a utilizar formulações mais neutras, ver KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte”, cit., p. 75. Este Autor considera a designação “conteúdos de direito objectivo” a melhor. Também KONRAD HESSE, “Significado de los derechos fundamentales”, cit., pp. 92 e 93, considera que “esta interpretação foi criticada; e também subsistem discrepâncias quanto à relação entre as duas vertentes dos direitos fundamentais”. 198 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 187 – 189. 199 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 56. 200 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 109. 61 carácter negativo e de defesa dos direitos fundamentais, estava mais vinculada à dimensão puramente subjectiva”201. Vimos, no entanto, que estas teorias podem implicar uma excessiva “des-subjectivização” e uma “transformação tendencial da liberdade em liberdade-dever ou em liberdade positivamente orientada”202, perigo extensível à dimensão objectiva dos direitos fundamentais. Entendemos, por isso, que a dimensão objectiva dos direitos fundamentais não deve servir para diminuir o âmbito de autonomia do indivíduo, uma vez que tal implicaria uma “total desvirtuação da função primária desta dimensão, que é a de reforço dos conteúdos subjectivos”203. Nessa medida, a relação entre as duas dimensões é essencialmente uma relação de “complemento recíproco”204. A função objectiva dos direitos fundamentais visa “reforçar o direito fundamental de defesa e fazer face a lacunas na sua protecção”205, pelo que não parece fazer sentido justificar a inadmissibilidade de partida da renúncia a direitos fundamentais pelo facto de estes direitos constituírem uma ordem objectiva, contraposta à sua dimensão subjectiva, individual. Consequentemente, deve haver uma preponderância da dimensão subjectiva, que encontra a sua justificação “no valor outorgado à autonomia individual, na qualidade de expressão da dignidade da pessoa humana”206. Pode, assim, falar-se de “uma presunção a favor da dimensão subjectiva dos direitos fundamentais”207, pois apesar da sua relevância objectiva, estes 201 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 59. 202 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 63. 203 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 102. Afirmando também que a dimensão objectiva impõe ao legislador “deveres específicos de actuação e de protecção”, constituindo “uma forma de reforçar a garantia dos direitos fundamentais”, ver RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 229; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 130. 204 KONRAD HESSE, “Significado de los derechos fundamentales”, cit., p. 91. 205 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 191. 206 INGO WOLFGANG SARLET, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 153; DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 59. 207 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1257; ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., p., 67. 62 direitos continuam a ser o modo de o Estado defender e garantir a subjectividade208. Desta feita, os direitos fundamentais são, antes do mais, direitos subjectivos, uma vez que “a Constituição não abstrai da natureza da pessoa humana como ente relacionado com a comunidade e por ela vinculado, mas coloca acima disso a qualidade dessa pessoa como indivíduo autónomo”209. A dupla natureza dos direitos fundamentais e, em particular, o facto de se considerar que estes contêm também uma dimensão objectiva, não deve, consequentemente, implicar o enfraquecimento da protecção devida a estes direitos210. Em caso de conflito entre as duas dimensões, deve dar-se prevalência à dimensão subjectiva, graças à sua ligação estreita com a própria ratio dos direitos fundamentais211. Para além disso, “quando um particular renuncia a um direito fundamental só está (…) a renunciar a um direito fundamental na sua concreta conformação enquanto garantia subjectiva – e que respeita apenas à esfera jurídica do titular –,” o que não implica necessariamente que se atinja o direito fundamental “na sua relevância jurídica enquanto norma objectiva”212. Nem 208 JOSEF ISENSEE, “Grundrechtsvoraussetzungen und Verfassungserwartungen”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2.ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 465. 209 SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais. Sumários, cit., p. 82. 210 RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 229. 211 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pp. 384 e 385. 212 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 297. Também GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 190, considera que “os direitos fundamentais permanecem garantias de organização e também decisões de valor, ou seja, não são afectados na sua função de elemento de direito objectivo quando o cidadão renuncia vinculativamente a um exercício individual de um direito fundamental”. Para o Autor, “a renúncia apenas atinge os direitos fundamentais na sua feição concreta enquanto garantias subjectivas”. Nesse sentido, também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 158 – 162. Temos situações excepcionais, no entanto, em que a dimensão objectiva dos direitos assume uma importância tal que, mesmo tratando-se de direitos relativos a bens pessoais, a possibilidade de renúncia será, também, mais limitada. Parece ser esse o caso da proibição de desistência, confissão e transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos considerados indisponíveis, no processo civil. Estas acções versam sobre relações subtraídas ao domínio da vontade das partes, que são as que se referem ao estado das pessoas. Esta solução justificar-se-á pelo facto de nos direitos da família existir uma relação muito forte entre direito e dever. Ver ABÍLIO NETO, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 357; JOSÉ LEBRE DE FREITAS - JOÃO REDINHA – RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 531; 63 todas as renúncias a direitos fundamentais causam um dano na ordem objectiva geral estabelecida através dos direitos fundamentais. Não se nega, no entanto, de forma total e em qualquer circunstância uma repercussão da renúncia na dimensão objectiva dos direitos, pois como já referimos “entre a caracterização dos direitos fundamentais enquanto elementos da ordem objectiva, por um lado, e direitos subjectivos, por outro, se constitui uma relação de recíproca complementaridade e reforço”213. Tal não significa que a dimensão objectiva não possa ser relevante no estabelecimento de limites à renúncia. Se uma dada renúncia põe em risco a ordem de valor objectiva, essa consequência deve ser tida em conta na ponderação a fazer214, podendo até determinar que, no caso concreto, não possa haver renúncia pelas suas implicações “no sistema como um todo”215. Mas esse é já o problema da disponibilidade das posições de direitos fundamentais enquanto critério a valorar na ponderação a fazer quando se afere se uma renúncia concreta a direitos fundamentais é válida, questão que trataremos mais à frente. O que não se pode é dizer, à partida, que em virtude da sua dimensão objectiva todos ou alguns dos direitos fundamentais são indisponíveis e, consequentemente, irrenunciáveis. Também partindo do carácter comunitário dos direitos fundamentais se tem defendido que estes não são disponíveis porque devem ser entendidos simultaneamente como deveres. Esta perspectiva relaciona-se com a ideia de que os direitos fundamentais exercem funções supraindividuais para além da sua função de defesa, o que decorre do facto de estarem em causa direitos subjectivos públicos216, pelo que não se distingue completamente das outras que estivemos a ver até aqui. ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, Morais Editora, Lisboa, 1961, p. 52. 213 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 100. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 161, sustenta que deve ter-se em consideração o facto de a renúncia ter consequências na dimensão objectiva dos direitos se esta se tornar a regra e não for apenas um acto isolado. 214 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 214. 215 JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, in Houston LR, Vol. 40, n.º 281, 2003, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?Abstract_id=614522 (última visita a 12.04.2010), p. 300. 216 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 102 e 103; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 60 e 61. 64 Pensamos, no entanto, que uma interpretação dos direitos fundamentais enquanto deveres para o cidadão “perverte a concepção destes direitos”, uma vez que “deve estar em primeiro plano o seu carácter de direitos de liberdade”217, o que “exclui qualquer uso jurídico da pessoa para a prossecução de fins, bens, objectivos ou valores últimos que a ultrapassem. Não existe para o direito qualquer outro fim último, qualquer maior valor do que o Homem”218. Ainda que “a imagem de Homem da Constituição” seja também determinada pela ligação comunitária do indivíduo, não se pode olvidar que a Constituição coloca a dignidade da pessoa humana no centro do ordenamento constitucional. A aceitação de “deveres imanentes aos direitos fundamentais que vão ao ponto de tornar ilícita uma determinada forma de utilização da autonomia, nomeadamente a renúncia, não se compadece com uma tal imagem de Homem nem se justifica através da interpretação histórica ou teleológica do texto da Constituição”219. Uma perspectiva que constitui uma unidade entre direitos e deveres fundamentais e “funcionaliza” estes direitos transmutando-os em deveres, anula completamente a posição de destaque “que o indivíduo enquanto pessoa e a respectiva constituição devem ter na constituição global, passando esse lugar a ser ocupado pelo Estado e/ou pela sociedade e pelas correspondentes constituição política e constituição económica”220. Finalmente, a indisponibilidade dos direitos fundamentais tem ainda sido justificada através da sua caracterização como “normas de competência negativa”, dotadas da “função de regular a divisão de competências entre o Estado e o cidadão”221 e visando demarcar um espaço onde os poderes públicos já não podem interferir. Partindo da renúncia do particular “a 217 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 61. 218 HASSO HOFMANN, “Grundpflichten und Grundrechten”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF, Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2.ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 343. 219 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 106. 220 JOSÉ CASALTA NABAIS, “Dos deveres fundamentais”, in Por Uma Liberdade com Responsabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 216. Também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 156 e 157, refere que a nossa Constituição não estabelece “no campo dos direitos políticos e das liberdades de actuação (…) um modelo funcionalista”. 221 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 93. 65 autoridade pública pode fazer agora o que antes lhe estava absolutamente vedado pela norma de direito fundamental ou o que antes tinha o carácter de uma restrição do direito fundamental e que, portanto, só podia ser actuado por lei ou com base em lei e só nos casos expressamente previstos na Constituição”222. Segundo esta perspectiva há um “interesse geral na existência dos direitos fundamentais” que se contrapõe à sua renunciabilidade223. No entanto, ao justificar-se a impossibilidade da renúncia apelando à função dos direitos fundamentais enquanto normas de competência negativa para os poderes públicos, convertem-se estes direitos também em normas de competência negativa para os próprios particulares224. O facto de se verificar um “aumento de competências estatais” na sequência da renúncia não basta para que se afaste a dimensão de exercício do direito, que vimos já estar presente na renúncia. É que, por um lado, esse “aumento de competências não afecta a distribuição constitucional dos poderes públicos, dado que se esgota no momento e nas circunstâncias em que a renúncia se concretiza”. Por outro lado, “o princípio da tipicidade das competências em direito público tem (…) um carácter instrumental relativamente à garantia da liberdade individual”225. A parte organizatória da Constituição deve estar ao serviço dos direitos fundamentais226. É fundamental não esquecer que a renúncia a direitos fundamentais perante o Estado se consubstancia simultaneamente em exercício e restrição de um direito fundamental. Ora “o problema da admissibilidade abstracta (…) deve colocar-se no âmbito dessa dimensão da renúncia enquanto exercício do direito”. Já no que diz respeito ao facto de a restrição poder implicar uma “infracção ao princípio da reserva de lei, o problema (…) não deve discutir-se em sede de admissibilidade da renúncia, (…) mas sim no plano da legitimidade da restrição do direito fundamental”227. 222 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 297 e 298. Sobre esta questão, ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 61 e 62. 223 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 93. 224 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 93 e 94. 225 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 300. 226 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 94. 227 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 299 – 301. 66 Assim, partindo de tudo o que vimos, entendemos que o poder de disposição individual sobre posições subjectivas de direitos fundamentais deve ir até à admissibilidade da renúncia a direitos fundamentais. O que não quer dizer que não haja limites a esse poder de disposição, questão que será autonomamente tratada na Parte II da tese. Consideramos, então, que é de afastar a inadmissibilidade de princípio da renúncia a direitos fundamentais. 2. A fundamentação jurídica da renúncia A doutrina não é unânime na resposta a dar à questão de saber em que preceito ou preceitos se deve fundamentar o poder de disposição sobre posições protegidas por normas de direitos fundamentais. Tem-se entendido que o poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, de um autónomo direito ao desenvolvimento da personalidade, destes dois em conjunto, ou ainda do conteúdo de autonomia presente em cada um dos direitos fundamentais em especial228. Para avaliarmos estas diferentes posições e determinar aquela que nos parece a mais adequada, vamos, antes do mais, procurar densificar o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao desenvolvimento da personalidade. 2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana O princípio da dignidade da pessoa humana assume uma grande relevância em matéria de renúncia a direitos fundamentais, na medida em que tem sido simultaneamente considerado “limite absoluto da possibilidade de 228 Há ainda quem sustente que o fundamento de um direito à renúncia a direitos fundamentais decorre de uma norma de direito costumeiro que deriva do preceito latino volenti non fit iniuria. Ver GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 187 ss. No entanto, tem-se entendido que o princípio volenti non fit iniuria “nunca pretendeu ser uma resposta geral à questão da disponibilidade de bens jurídicos jusfundamentais e que o recurso a este princípio é um argumento meramente formalístico ao qual falta uma base jurídica suficiente”. Ver RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 47. Sobre esta questão, ver também MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 64 ss. 67 renúncia” e “fundamento do próprio poder de disposição sobre posições protegidas por normas de direitos fundamentais”229. Quanto ao princípio da dignidade enquanto limite da renúncia, teremos oportunidade de o desenvolver na Parte II. Nesta sede vamos tratá-lo na sua vertente de fundamento do poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais230. Ainda que a dignidade seja originariamente um valor moral, interessanos essencialmente a sua qualidade de princípio constitucional, ou seja, de “norma jurídico-positiva”231, “passível de produzir consequências jurídicas práticas”232. Até ao século XX este princípio não se encontra constitucionalmente previsto233, tendo sido sobretudo no pós-guerra, na sequência das atrocidades cometidas no período do nazismo, que adquiriu verdadeiro significado para o mundo do Direito234. O princípio da dignidade foi 229 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 327. Fazendo considerações semelhantes no que se refere ao papel do princípio da dignidade humana em relação à admissibilidade ou não admissibilidade da eutanásia, ver PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 273. 230 Considerando o princípio da dignidade fundamento do poder de disposição sobre posições de direitos fundamentais, ver GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, in AöR, n.º 2, 1956, p. 152, que afirma que o princípio “volenti non fit iniuria” se ancora na 1.ª parte do art. 1.º da Constituição alemã; no que diz respeito à renúncia total, também KNUT FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, cit., pp. 167 e 168; ainda REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 194. 231 ERNST BENDA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, in ERNST BENDA – WERNER MAIHOFER – HANS-JOCHEN VOGEL – KONRAD HESSE – WOLFGANG HEYDE, Manual de Derecho Constitucional, (trad. ANTONIO LÓPEZ PINA), 2.ª Edição, Marcial Pons, Barcelona, 2001, p. 120. Sobre a evolução histórica deste princípio, ver MATTHIAS MAHLMANN, “The Basic Law at 60 – Human Dignity and the Culture of Republicanism”, in German Law Journal, Vol. 11, n.º 01, 2010, www.germanlawjournal.com, pp. 13 ss. 232 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 51. 233 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS - JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JOSÉ FARIA COSTA, Ars Iudicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 714. No entanto, tal como nos diz este Autor, ainda que o termo seja “desconhecido no plano positivo, nem por isso se pode dizer que não há refracções matriciais através de outras fórmulas. (…) A ideia cristã de dignidade operará através da afirmação de um conjunto de princípios, como a igualdade e a afirmação de direitos naturais”. Referindo também que antes do século XX o conceito de dignidade da pessoa humana não fazia parte da linguagem do Direito, em nenhum lugar do mundo, ver PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, WGB, Darmstadt, 2006, p. 13. 234 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 51 ; CATARINA SANTOS BOTELHO, A Tutela Directa dos Direitos Fundamentais. Avanços e Recuos na Dinâmica Garantística das Justiças Constitucional, Administrativa e Internacional, Almedina, Coimbra, 2010, p. 96. STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent 68 inicialmente acolhido na Constituição Federal alemã, tendo várias Constituições seguido o exemplo tudesco, como é o caso da Constituição Portuguesa de 1976235. Entre nós, este princípio está consagrado no art. 1.º da Constituição e é considerado princípio estruturante do ordenamento jurídico, conferindo uma “unidade de sentido ao sistema de direitos fundamentais”236. “[A] imagem do Homem do ‘Estado de Direito’, essa que está em consonância com o espírito dos (nossos) tempos e que aparece nos textos contemporâneos, é a imagem da pessoa cuja dignidade tem de ser protegida pela constituição237.” A crescente importância deste princípio manifesta-se não só na disseminação da sua consagração expressa mas também na sua cada vez mais frequente invocação, tanto por parte da doutrina como da jurisprudência238. Não é, no entanto, comum existir um consenso tão alargado Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, EUI Working Paper Law n.º 2007/37, http://cadmus.iue.it/dspace/bitstream/ 1814/7664/1/LAW-2007-37.pdf (última visita a 12.04.2010), pp. 4 e 5, e, mais desenvolvidamente, STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ – CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche sur un Processus de Juridicisation, Presses Universitaires de France, Paris, 2005, pp. 24, 25 e 232 – 238, defendem que “a ideia do valor intrínseco da dignidade tem a ver com a ligação histórica que normalmente se estabelece entre a dignidade da pessoa humana e as reacções jurídicas à II Guerra Mundial”. No entanto, “tal foi apenas histórica e politicamente possível graças a um número de pré-condições que já haviam contribuído para a atribuição de conotações positivas à dignidade que esta não detinha ab initio”. Segundo as Autoras, este não é “um conceito puro a priori, ou univocamente positivo” pois, antes do mais, “o antepassado histórico do conceito de dignidade será o conceito de dignitas (…), que se relaciona com mandatos públicos ou oficiais e designa um número de deveres e obrigações específicos que decorrem do cargo”. Para além disso, “a dignidade humana aparece também em textos constitucionais não democráticos como uma referência fundamental”. 235 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 51. É também o caso, por exemplo, das constituições espanhola, grega, húngara, checa, polaca, estónia, lituana, eslovaca, sul-africana e israelita. Nesse sentido, CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, Oxford Legal Studies Research Paper n.º 24/2008, http://ssrn.com/abstract=1162024 (última visita a 12.04.2010), pp. 21 e 22. 236 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, cit., p. 197; também JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição e na Jurisprudência Constitucional Portuguesas”, in Direito Constitucional, Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Dialéctica, S. Paulo, 1999, p. 191. O Tribunal Constitucional di-lo expressamente, por exemplo, nos Acórdãos n.º 16/84, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Maio de 1984, e n.º 43/86, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 111, de 15 de Maio de 1986. 237 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 163; ver também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Direitos e garantias fundamentais”, cit., p. 688. 238 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 821 e 822. Sobre a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional, ver MARIA LÚCIA AMARAL, “O 69 em relação a um conceito jurídico, sobretudo tratando-se de um conceito tão pouco claro239, pois apesar da sua recepção em diferentes instrumentos de Direito Internacional e nas Constituições de vários Estados240, não é consensual o sentido a atribuir ao princípio da dignidade241. Se é incontestável que a dignidade “constitui uma das ‘pedras angulares’ do sistema” constitucional, “bem mais difícil é compreender quais são os seus efectivos usos jurídicos e condições de aplicabilidade”242. Por outro lado, a “omnipresença do tópico ‘dignidade’ no debate público tem o inconveniente de um uso excessivo, em muitas ocasiões meramente retórico e escassamente argumentado, que conduz de forma inevitável a uma menor clareza de um conceito por si só já impreciso”. É neste sentido que se fala de “uma ‘inflação da dignidade’, (…) pelo menos como tendência”243. princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência constitucional”, in Jurisprudência Constitucional, n.º 13, 2007, pp. 4 ss; também BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em Comemoração do Décimo Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 151 ss. 239 STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., p. 3. OTFRIED HÖFFE, “Menschenwürde als Ethisches Prinzip”, in OTFRIED HÖFFE – LUDGER HONNEFELDER – JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Gentechnick und Menschenwürde: an den Genzen von Ethik und Recht, DuMont, Köln, 2002, p. 111, considera que é de espantar que o princípio da dignidade ocupe uma posição fundamental na ética do Estado e do Direito e que não seja ainda claro nem seu o conteúdo nem o seu “status metodológico”. 240 Tendo “a presença deste substrato institucional e cultural comum” implicado, inclusivamente, a recepção do princípio na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Ver GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 823. 241 ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, http://www.perennis.de/public/Publikationen/Dokumente/MW-Leerformel.pdf (última visita a 12.04.2010), pp. 22 e 23. 242 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 823. 243 PEDRO SERNA, “La dignidad humana en la Constitución Europea”, in Persona y Derecho, n.º 52, 2005, pp. 41 e 42. Sobre o “uso inflacionado” do princípio da dignidade, ver também PAUL TIEDEMANN, “Vom inflationären Gebrauch der Menschenwürde in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, in DöV, n.º 15, 2009, pp. 606 ss. Na p. 610, este Autor refere o caso Luftsicherheitsgesetz, BVerfGE 115, pp. 118 ss (relativo a uma lei que previa a possibilidade de abate de aviões que tivessem sido desviados por terroristas com o intuito de matar outras pessoas), como uma das situações em que não estava em causa qualquer lesão da dignidade e que poderia ter sido resolvida pelo Tribunal, com os mesmos resultados e com um grau mais elevado de racionalidade, sem o recurso a este princípio. Sobre este caso, ver também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Algumas reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois”, in Anuário Português de Direito Constitucional, Vol. V, 2006, p. 134; OLIVER LEPSIUS, “Human Dignity and the Downing of Aircraft: The German 70 Muitas vezes a jurisprudência recorre à ideia de dignidade para que tenha algo a dizer quando se confronta com as questões realmente difíceis244. Este princípio é utilizado como um argumento “knock out”245 ou um “conversation stopper”246, o que significa que a partir do momento em que se invoca uma violação da dignidade deixa de ser necessário dar mais explicações, “contornando[-se] as dificuldades de uma discussão ética”247. Nessa medida, a interpretação judicial do conceito não tem sido muito profícua nem para a sua densificação nem “para resolver algumas das questões mais profundas de direitos fundamentais: qual o equilíbrio adequado entre o indivíduo e a comunidade, incluindo a questão de saber quais os limites adequados à liberdade individual (…); e até onde temos responsabilidades em relação à comunidade e a nós próprios”248. O Tribunal Constitucional tem invocado, de uma maneira geral, o princípio da dignidade da pessoa humana sem mais, isto é, não esclarecendo de uma forma explícita o conteúdo deste preceito, embora, como já referimos, reconheça o papel central assumido pela dignidade da pessoa humana enquanto princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico. No Acórdão n.º 101/09249, relativo à procriação medicamente assistida, a Conselheira Maria Lúcia Amaral diz precisamente no seu voto de vencida que “é compreensível que se seja prudente e parcimonioso quanto à densificação do conteúdo de um Federal Constitutional Court Strikes Down a Prominent Anti-terrorism Provision in the New Airtransport Security Act”, in German Law Journal, Vol. 7, n.º 9, 2006, www.germanlawjournal.com, pp. 761 ss. 244 CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit. p. 73. 245 HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, in HANS JÖRG SANDKÜHLER, (org.), Menschenwürde. Philosophische, theologische und juristische Analysen, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2007, p. 62 246 ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit., p. 29. 247 HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, cit., p. 62. Referindo-se à “permeabilidade a excessos objectivizantes que [o princípio da dignidade] (...) encerra”, ver CARLA AMADO GOMES, “Desclassificação e desqualificação do património cultural: ideias avulsas”, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Vol II, Almedina, Coimbra, 2005, p. 742. 248 CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit. pp. 63 e 64. 249 http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos09/101-200/10109.htm. 71 princípio que, como este, tem em si implicada uma fortíssima carga axiológica (porventura, e daí o seu alcance fundante, a mais forte carga axiológica no sistema dos princípios constitucionais); mas uma coisa é o ser-se prudente e outra o ser-se silente”. Assim, “enquanto princípio fundante, a dignidade da pessoa humana corre (…) o risco de ser remetida para o ‘céu dos conceitos’, daqueles que é de bom tom citar, mas que são desprovidos de qualquer efeito prático”250. Quando um conceito tem de servir para tudo acabam por se esbater os seus contornos e, em virtude disso, perde o seu rigor251. Consequentemente, para evitarmos esse risco e percebermos em que medida é que o princípio da dignidade da pessoa humana pode servir para fundamentar o poder de disposição em que se traduz a renúncia, torna-se necessário “um processo de concretização” que torne o seu conteúdo “juridicamente palpável e útil”252. Antes do mais, é incontestável que o sentido a atribuir ao conceito jurídico de dignidade é, necessariamente, influenciado pelo “património histórico e filosófico”253 que este contém, uma vez que se trata de um conceito “que assume um valor ‘eminentemente cultural’”254. Reconhecer a importância do contexto cultural no conceito da dignidade da pessoa humana não significa, no entanto, dizer que os contornos deste princípio são “intangíveis ou imutáveis”255. Quando na CRP se fala em respeito pela dignidade da pessoa 250 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 719. 251 ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit., p. 22. Reconhecendo que este conceito “não mereceu ainda (...) uma construção e sobretudo uma compreensão suficientemente sólida, nem no plano filosófico, nem muito menos no jurídico”, ver LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 22. 252 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 100. 253 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 164. 254 FRANK MODERNE, “La dignité de la personne comme principe constitutionnel dans les constitutions portugaise et française”, in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 207. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 105/90, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 19900105.html, diz precisamente que a ideia de dignidade “não é algo de puramente apriorístico e ou a-histórico, mas algo que justamente se vai fazendo (e que vai progredindo) na história, assumindo, assim, uma dimensão eminentemente cultural”. 255 Considerando que “os contornos do princípio da dignidade não são nem intangíveis nem imutáveis”, ver BERTRAND MATHIEU, “La dignité de la personne humaine: quel droit? quel titulaire”, in Recueil Dalloz, n.º 33, 1996, p. 286. 72 humana não se pretende “impor constitucionalmente uma ‘imagem unitária do Homem e do mundo’ nem ainda ‘amarrar’ ou encarcerar o Homem num mundo cultural específico”256. O conceito de dignidade é um “conceito dinâmico” e a sua determinação “é um processo que conhece várias etapas mas que nunca pode ser encerrado, da mesma forma que não se pode encerrar o desenvolvimento do próprio Homem enquanto ser sociocultural”257. Se procurarmos, em termos muito gerais, “sintetizar as raízes históricas da ideia de dignidade da pessoa humana”, parece ser de sustentar a presença de duas linhas relativamente bem definidas: uma “raiz não-ontológica” (pragmática) da ideia de dignidade258, na qual esta é essencialmente considerada “uma tarefa e uma missão”, “independentemente da essência da humanidade”; e uma “raiz ontológica” (metafísica)259, para a qual “a dignidade humana constitui uma essência, uma qualidade inata e inalienável do Homem, 256 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p. 35. 257 JOHANNES REITER, “Menschenwürde als Massstab”, in Aus Politik und Zeitgeschichte, Vol. 23/24, 2004, http://www.bpb.de/files/MDKH9O.pdf (última visita a 12.04.2010), p. 13. 258 Sendo de integrar nesta linha o pensamento de Confúcio, Pico della Mirandola e também de Hegel. Nesse sentido, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – PEDRO PAIS DE VASCONCELOS – PAULO COSTA E SILVA, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 489 – 492; HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, cit., p. 67. Este excerto da obra de Pico dela Mirandola é bastante expressivo desta concepção de dignidade: “Finalmente, pareceu-me ter compreendido porque razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos (...). Deus tomou o Homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo:” Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão(...). Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo. Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do Homem! Ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer.” GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a dignidade do Homem, Edições 70, Lisboa, 2006, p. 49 – 52. 259 Esta linha de pensamento, por sua vez, “começa a desenvolver-se com os estóicos, prossegue com os doutores da Igreja e vem alcançar o seu apogeu (…) sobretudo por obra de Immanuel Kant”. Nesse sentido, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., p. 492; HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, cit., p. 67. 73 uma coisa em si (…) incondicionada e imutável”. Segundo esta “raiz ontológica”, tal “qualidade dimana do Direito natural, da natureza ou mesmo de uma comparticipação dos homens na razão divina, ora porque a natureza sagrada do Homem resulta de este ter sido criado à imagem de Deus, ora porque a pessoa humana é concebida como um fim em si mesmo”260. Há ainda quem defenda que o antepassado histórico do conceito de dignidade é o conceito de dignitas que, no pensamento da Roma clássica, significava “status”. Aqueles que gozassem desse “status” deveriam ser tratados com a honra e o respeito devidos261. Este conceito estava associado ao exercício de funções públicas ou oficiais, implicando simultaneamente o cumprimento dos deveres e obrigações que decorriam do desempenho de um determinado cargo. Para esta perspectiva, o princípio da dignidade humana, tal como é hoje entendido na Europa, traduz-se na procura de generalização desse “status”, ou seja, de antigos privilégios de classe262. No entanto, tem-se vindo a entender que a generalização parcial de privilégios não se confunde com o desenvolvimento paralelo de um outro conceito de dignidade, assente na ideia de que “todos os seres humanos pertencem, em condições de igualdade, à espécie humana”. Assim, esta perspectiva não distingue entre a “noção de dignidade associada à ideia de status (por definição, desigual)” e a “noção de dignidade associada à ideia de igualdade”. Esta última, sendo “igualitária na sua essência”, não pode ser 260 Mais desenvolvidamente, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., pp. 489 – 492. 261 CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit. p. 2. 262 Nesse sentido, JAMES Q. WHITMAN, “On nazi ‘honour’ and the new European ‘dignity’”, in CHRISTIAN JOERGES – N.S. GHALEIGH (eds.), Darker Legacies of Law in Europe. The Shadow of National-Socialism and Fascism over Europe and its legal traditions, Hart Publishing, Oxford, 2003, p. 245; também JAMES Q. WHITMAN, “Human dignity in Europe and the United States: the social foundations”, in GEORG NOLTE, European and US Constitutionalism, Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p. 107 ss. É também esta a perspectiva de JEREMY WALDRON, “Dignity, Rank and Rights”, http://ssrn.com/abstract=1461220 (última visita a 12.04.2010), em particular pp. 22 ss. James Whitman considera ainda que existem linhas condutoras entre o que se pode designar “a era contemporânea da dignidade” e a “era fascista”. Assim, defende que a dignidade, tal como é protegida no direito alemão contemporâneo, não é apenas o produto de uma reacção contra o nazismo. Vista numa “perspectiva sociológica adequada” é o produto de uma evolução que teve parcialmente lugar no período nazi. 74 considerada sucessora da dignitas, tal como a definimos263. Partindo das “raízes histórico-filosóficas do princípio” existem distintas “conceptualizações jurídicas da dignidade da pessoa humana” que vão mais na linha de uma ou de outra destas raízes264. Entre as “construções teóricas relevantes para a interpretação constitucional [deste] conceito” é de referir, em primeiro lugar, o “conceito axiológico de dignidade de Dürig”265. O Autor considera que “todo o Homem é Homem em virtude do seu espírito, que o eleva da Natureza impessoal e lhe confere a capacidade de, por sua própria vontade, se tornar consciente, se autodeterminar e conformar o mundo que o rodeia”266. Assim, uma vez que entende que a dignidade “exprime ‘o valor intrínseco’ do ser humano”267, esta será “violada quando o Homem concreto é convertido em objecto ou em simples meio”268. Dürig é, consequentemente, um representante da corrente ontológica e com a fórmula do objecto, inspirando-se na filosofia moral de Kant, optou por uma perspectiva que procura estabelecer o objecto de protecção da dignidade da pessoa humana a partir da sua lesão269. É também muito relevante “o conceito sociológico de dignidade” de Niklas Luhmann, que “interpreta o conceito de dignidade como ‘prestação’: como o resultado da ‘auto-apresentação’ (…) do ser humano concreto na sua 263 STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., pp. 7 – 9. 264 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., pp. 499. 265 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 105. 266 GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, cit., p. 125. 267 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 106. 268 Ver, mais desenvolvidamente, Menschenwürde”, cit., p. 127. GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der 269 MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 169. Ver também GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. Constatando que o recurso a esta fórmula “não tem servido para definir ex positivo a dignidade humana, mas sim e apenas como orientação para determinar a existência de uma violação”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., pp. 484 e 485. Sobre a noção kantiana de dignidade, ver ainda PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., pp. 208 ss. 75 identidade e na sua individualidade”270. Sendo um dos mais importantes representantes da “corrente não-ontológica”271, o Autor opõe-se à caracterização da personalidade humana como “substância”272. Luhmann defende que a dignidade não consiste numa qualidade inata do Homem nem num valor273, sendo antes “uma aspiração”, “algo que deve ser construído”274 pelo próprio indivíduo, o que significa que os direitos fundamentais não têm como função garantir a dignidade, mas sim assegurar as condições da sua prestação275. Estas duas teses, aparentemente em confronto, têm em comum o papel central que atribuem à autonomia e à subjectividade individual, o que as distingue “de uma terceira forma de encarar a dignidade (…): a dignidade não como um valor ou prestação individual, mas como conceito relacional, como promessa e pretensão de reconhecimento recíproco, como fundamento de uma comunidade que se reconhece nos valores de solidariedade”276. Nessa medida, é de realçar o “conceito relacional de dignidade” de Hasso Hofmann277, “como reconhecimento e respeito recíprocos dos indivíduos 270 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 105 – 108. 271 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., p. 493. 272 NIKLAS LUHMANN, Grundrechte als Institution, Duncker und Humblot, Berlin, 1965, p. 58. 273 NIKLAS LUHMANN, Grundrechte als Institution, cit., pp. 63 e 70. 274 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., p. 494. 275 Ver, mais desenvolvidamente, NIKLAS LUHMANN, Grundrechte als Institution, cit., p. 72. Ver também ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, in RUDOLF WASSERMANN, Reihe Alternativkommentare, 2.ª Edição, Vol. I, Luchterhand, 1989, pp. 204 e 205; HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, cit., p. 67; PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., p. 36. 276 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. Afirmando que numa análise mais rigorosa não há conflito mas antes complementaridade entre a perspectiva da dignidade enquanto valor e a perspectiva da dignidade enquanto prestação, ver EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, 18ª Edição, Mohr Siebeck, Tübingen, 2002, pp. 227 e 228. Segundo os Autores, “a perspectiva da dignidade enquanto valor também abrange a protecção da personalidade individual, no sentido de o indivíduo poder exercer livremente as capacidades que constituem a sua personalidade. Nessa medida, tal implica a protecção dos pressupostos que a perspectiva da dignidade como prestação exige”. 277 Como tese relacional do conceito de dignidade é também relevante a tese de Maria Rosaria Marella, da dignidade da pessoa humana enquanto dignidade social, que se refere ao direito a 76 na sua qualidade de membros igualmente livres e igualmente valiosos na comunidade”278. Hasso Hofmann considera que as insuficiências das teorias anteriores (que designa teorias da dádiva e da prestação) são resultado da “ideia da singular subjectividade dos indivíduos”. A tese que o Autor contrapõe é a de que a dignidade se constitui no “reconhecimento social”. Neste sentido, o conceito de dignidade significa “o reconhecimento do outro na sua especificidade e na sua singularidade”279, defendendo, consequentemente, uma “corrente não-ontológica”. Finalmente, é de referir a posição de Podlech, que estabelece uma “grelha conceptual” segundo a qual a garantia da dignidade se consubtancia uma vida digna, em termos de condições materiais e económicas. Esta Autora sustenta que “encontramos, nas tradições constitucionais dos estados membros da União Europeia, duas noções diferentes de dignidade: a dignidade social e a dignidade humana”. Assim, defende que o princípio da dignidade tem sido utilizado, muitas vezes, de forma a justificar o sacrifício dos desejos individuais, tendo uma relação muito controversa e pouco clara com a liberdade, mesmo quando a actividade em questão é assumida pela pessoa cuja dignidade está em causa como constituindo a sua dignidade social. Ver, mais desenvolvidamente, MARIA ROSARIA MARELLA, “The old and the new limits to freedom of contract in Europe”, in ERCL, Vol. 2, n.º 2, 2006, pp. 269 – 274. Estabelecendo uma distinção entre concepções individualistas e concepções relacionais, incluindo nestas últimas a concepção de dignidade social de Maria Rosaria Marella, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Programa da disciplina de Direito das Pessoas, Ano Lectivo 2006/2007. 278 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 105 e 108. Considerando que se deve integrar num mesmo grupo (das “concepções funcionalistas”) as “teorias da prestação” e do “reconhecimento”, ou seja, o conceito social e relacional, ver H. SANDKÜHLER, “Menschliche Würde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, http://www.unesco-phil.uni-bremen.de/texte/Sandk%FChler,%20Menschliche%20W%F Crde.pdf, p. 9. 279 Ver, mais desenvolvidamente, HASSO HOFMANN, “Die Versprochene Menschenwürde”, in AöR, n.º 118, 1993, pp. 364 e 370; JOÃO LOUREIRO, “O direito à identidade genética do ser humano”, in Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 281; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 105 – 110; INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 4.ª edição, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2006, p. 48, nota 78; PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., pp. 35 e 36; GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64; FRANK DOMKE, Grundrechtliches System und systematisiertes Grundrecht, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1998, pp. 125 e 126; MATTHIAS MAHLMANN, “The Basic Law at 60 – Human Dignity and the Culture of Republicanism”, cit., p. 22; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004, p. 134. Também PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., pp. 563 e 565 – 566, sustenta que “a dignidade humana nunca pode deixar de ter presente a referência ao outro”, implicando sempre “uma dimensão relacional ou comunicacional, servindo de critério de ordenação das relações humanas, pressupondo um reconhecimento mútuo no relacionamento intersubjectivo das pessoas umas com as outras”. 77 em cinco elementos essenciais280: “a segurança da vida individual e social”; “a igualdade jurídica de todas as pessoas”; “a protecção da identidade e da integridade da pessoa humana”; “a limitação do exercício de poder pelo Estado”; e “o respeito pela contingência corporal da pessoa humana”281. Podlech não visa encontrar uma “justificação transcendental da dignidade”, mas antes identificar quais “as condições empíricas da sua manutenção”282. Esta tentativa de classificação coloca-se, num certo sentido, numa posição intermédia entre as acepções de dignidade de Dürig e de Luhmann283 e poderá considerar-se uma “reconstrução pragmática do conceito de dignidade”284. Apesar das divergências, não nos parece, no entanto, que não possamos ou não devamos retirar destas diferentes concepções pistas para a interpretação do conceito de dignidade da pessoa humana. Entre os critérios referidos nas diversas posições existem “relações de integração e de esclarecimento recíprocos: de cada uma das concepções indicadas podem e devem extrair-se elementos relevantes para a interpretação (…) do art. 1.º da CRP”285, uma vez que estas reflectem a “multidimensionalidade do conceito constitucional de dignidade” e não se excluem necessariamente umas às outras286. Em primeiro lugar, as posições defendidas (apesar de todas as diferenças) são unânimes num ponto: todas elas partem da ideia de que o que justifica a protecção da dignidade é a disposição do Homem para ser sujeito moral, podendo, na sua acção, optar entre o bem e o mal. Esta constatação 280 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. 281 Ver, mais desenvolvidamente, ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, cit., pp. 208 – 218; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 108; FRANK DOMKE, Grundrechtliches System und systematisiertes Grundrecht, cit., pp. 124 e 125. 282 TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, Duncker & Humblot, Berlin, 1990, p. 117. 283 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. 284 Nesse sentido, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Programa da disciplina de Direito das Pessoas, Ano Lectivo 2006/2007. 285 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 110. 286 TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, cit., p. 134. 78 vale “independentemente dos contextos filosóficos, religiosos, culturais e mundividenciais que condicionam os sistemas de valores morais concretos” 287. Olhando agora para cada uma das perspectivas referidas, parece-nos relevante, na teoria da dádiva, a identificação da dignidade com a autonomia ética da pessoa. Efectivamente, esta teoria tem na sua base a afirmação da centralidade da autonomia e da subjectividade individual. Apesar disso, através do recurso à fórmula do objecto ela tem vindo a servir para a imposição de uma ordem de valores transcendente e objectiva, que se impõe às próprias concepções de dignidade do indivíduo. Assim, a vantagem da teoria de Luhmann reside no facto de o Autor defender uma concepção de dignidade que enfatiza a possibilidade de realização pessoal288. Na verdade, esta teoria impede que se imponham determinadas “imagens de Homem” e “concepções de dignidade” aos cidadãos, evitando também a “identificação do Estado com uma qualquer teoria filosófica ou doutrina confessional”289. Resulta claramente desta concepção que é ao próprio indivíduo que cabe determinar o que constitui a sua dignidade290. Esta perspectiva tem, no entanto, vindo a ser criticada por se considerar que “não corresponde às exigências do Estado constitucional”, já que também aqueles que não têm capacidade para a construção da sua identidade, tal como acontece, por exemplo, com os nascituros ou os incapazes, não deixam, por essa razão, de ter dignidade291. A dignidade da pessoa humana é “uma dignidade 287 fundada numa capacidade abstracta e potencial de ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit., p. 65. 288 PETER HÄBERLE, “Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF, (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. I, C. F. Müller, Heidelberg, 1995, p. 836. 289 HASSO HOFMANN, “Die Versprochene Menschenwürde”, cit., p. 362. 290 BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, (trad. ANTÓNIO FRANCO – ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA), Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2008, p. 105. 291 INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., pp. 48 e 49; PETER HÄBERLE, “Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, cit., p. 838; REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 203; HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, cit., p. 11; HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, Vol. 1, 2.ª Edição, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004, p. 169. 79 autodeterminação, independentemente da capacidade ou vontade concreta da sua realização que pode mesmo nem sequer existir facticamente”, como é o caso das pessoas portadoras de deficiência292. Por outro lado, o problema desta perspectiva está sobretudo na circunstância de encarar a dignidade como “o resultado de um processo de formação da identidade”. Não cabe, no entanto, ao Estado, avaliar o sucesso de um determinado “processo de formação de uma personalidade”. O que lhe cabe é, essencialmente, proteger o próprio processo enquanto tal293. Nessa medida, a proposta de Hasso Hofmann (de dignidade enquanto reconhecimento recíproco) tem a vantagem de considerar que o Homem continua a ter dignidade autodeterminação294. mesmo Parece-nos que ainda não relevante tenha capacidade porque um de conceito relacional de dignidade realça o facto de o problema da liberdade e da dignidade só ter efectivamente sentido em sociedade. Para além disso, o entendimento da dignidade como conceito de relação aponta para uma outra dimensão essencial do princípio: a dimensão prestacional, que é uma exigência “de uma comunidade que se reconhece nos valores de solidariedade”295. A crítica que se faz a esta perspectiva é, no entanto, a de que a dignidade não é apenas o resultado de uma promessa mútua de reconhecimento comunitário, “antes constitui o direito à criação de determinadas formas de vida humanamente adequadas”, marcadas pela 292 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 59. Considerando que, “se não queremos despojar as pessoas marginalizadas da protecção constitucional, devemos conformar-nos com uma definição que parta da capacidade abstracta e potencial do ser humano para se realizar enquanto tal”, ver ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., pp. 124 e 125. 293 MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, in AöR, n.º 130, 2005, p. 92. 294 MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 92. Por outro lado ainda, a proposta de Maria Rosaria Marella aponta para a vertente social e prestacional decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, chamando a atenção para o conflito que pode existir entre a dignidade humana, quando interpretada no sentido de limitação da liberdade, e a dignidade social. 295 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. Ver também MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, in THEODOR MAUNZ – GÜNTER DÜRIG, (et al), Grundgesetz Kommentar, Vol. I, Verlag C.H. Beck, München, 2003, p. 57. 80 promessa de respeito pelo outro, uma vez que é inerente ao Homem296. Finalmente, a teoria de Podlech “parece adequada às sugestões normativas da constituição e ao contexto jurídico-cultural português”, fornecendo “tópoi de concretização jurídico-judicialmente controláveis”297. Assim, partindo destas diferentes perspectivas, entendemos que a dignidade da pessoa humana compreende “três dimensões” distintas: “a dignidade como dimensão intrínseca do ser humano, a dignidade como dimensão aberta e carecedora de prestações [e] a dignidade como expressão de reconhecimento recíproco”298. A dignidade da pessoa humana é, então, “o valor intrínseco, originariamente reconhecido a cada ser humano, fundado na sua autonomia ética e que alicerça uma obrigação geral de respeito da pessoa, traduzida num feixe de deveres e de direitos correlativos”299. Essa dignidade intrínseca é o fundamento de um dever de respeito, “independentemente das capacidades (…) do sujeito e que (…) funda, no essencial, deveres de omissão dos outros e do Estado, bem como um conjunto de deveres de protecção a cargo deste”. Por outro lado, é também da maior relevância a “dimensão prestacional” do princípio300. A dignidade contém simultaneamente uma “dimensão defensiva”, enquanto “instrumento de protecção do valor da pessoa contra acções invasivas do Estado” ou de terceiros, e uma “dimensão prestativa”, que exige uma actuação por parte do Estado de modo a garantir condições materiais mínimas aos seus cidadãos301. 296 MATTHIAS MAHLMANN, “The Basic Law at 60 – Human Dignity and the Culture of Republicanism”, cit., p. 22. 297 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 249. 298 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 199. LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 583 e 584, afirma que a dignidade “se projecta num princípio normativo de igualdade, num princípio de liberdade e num princípio de socialidade ou de solidariedade”. JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2005, p. 785, entende que a dignidade da pessoa humana “parte das características da liberdade e da racionalidade da pessoa, antropologicamente sustentada numa inserção social, garantindo o seu desenvolvimento pessoal”. 299 JOÃO LOUREIRO, “O direito à identidade genética do ser humano”, cit., p. 281. 300 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 718. 301 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., pp. 175 e 176. Sobre o direito ao mínimo de existência condigna, ver, mais desenvolvidamente, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “O 81 Passa a reconhecer-se, então, partindo do princípio da dignidade da pessoa humana, um “direito a um mínimo para uma existência condigna”302, que se traduz numa obrigação estadual de garantir condições materiais de vida303, “capazes de assegurar liberdade e segurança às pessoas”304. No entanto, para a questão da renúncia a direitos fundamentais interessa-nos fundamentalmente o princípio da dignidade enquanto instrumento de protecção do valor da pessoa contra acções invasivas do Estado ou de direito ao mínimo de existência condigna como direito fundamental a prestações estaduais positivas – uma decisão singular do Tribunal Constitucional”, in Jurisprudência Constitucional, n.º 1, 2004, pp. 4 ss; também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais no século XXI”, in JAVIER PÉREZ ROYO – JOAQUIN PABLO URÍAS MARTÍNEZ – MANUEL CARRASCO DURAN (eds.), Derecho Constitucional para el Siglo XXI. Actas del Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional, Aranzadi, Navarra, 2006, pp. 1066 e 1067; JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 291 ss; JORGE REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 189 ss; ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, Almedina, Coimbra, 2007, pp.124 ss. 302 Estamos de acordo com JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “O direito ao mínimo de existência condigna como direito fundamental a prestações estaduais positivas – uma decisão singular do Tribunal Constitucional”, cit., p. 29, que sustenta ser esta a expressão preferível. 303 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 64; PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., p. 556. Também noutros ordenamentos jurídicos se tem estabelecido uma relação entre dignidade da pessoa humana e a realização de direitos económicos sociais e culturais. Os Tribunais Constitucionais alemão, indiano, italiano e da África do Sul, por exemplo, têm recorrido ao princípio da dignidade para fundamentar as suas decisões relativas a direitos económicos, sociais e culturais. Ver CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit., pp. 44, 45 e 52. 304 JORGE MIRANDA, “Artigo 1.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 54. Na última década o TC foi alicerçando, progressivamente, um direito ao mínimo de existência condigna, “afirmando, primeiro, a garantia do mínimo de sobrevivência como fundamento de restrições legislativas a outros direitos e, depois, a existência de um direito subjectivo ao mínimo de sobrevivência condigna como limite negativo do poder estadual de execução patrimonial – o direito a não ser privado desse mínimo”. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “O direito ao mínimo de existência condigna como direito fundamental a prestações estaduais positivas – uma decisão singular do Tribunal Constitucional”, cit., p. 21. O TC deu um passo decisivo quando, no Acórdão n.º 509/02, http://www.tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/20020509.html, “optou por fundamentar a inconstitucionalidade da norma, que suprimia as anteriores ajudas e que não fornecia qualquer alternativa ou compensação eficaz, como resultando de uma violação directa do princípio da dignidade da pessoa humana. Significa isto que o Tribunal deduziu deste princípio, independentemente das debilidades notórias do nosso Estado social, uma obrigação, juridicamente exigível, de manutenção objectiva das prestações materiais destinadas a assegurar a existência condigna; essa passa, então, a constituir uma exigência mínima de garantia positiva da dignidade da pessoa humana por parte do Estado e que este fica vinculado a observar independentemente de dificuldades financeiras circunstanciais ou de particulares orientações políticas”. Ver JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 66 – 68. Sobre esta decisão, ver também ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., pp. 141 ss. 82 terceiros. Nessa vertente, e partindo de tudo o que vimos até aqui, julgamos que em Estado constitucional pluralista a dignidade é atribuída ao Homem porque ele se pode conceber como um ser autónomo, capaz de se autodeterminar305. A afirmação constitucional do princípio visa garantir “o respeito da unidade existencial de sentido que é cada Homem, enquanto ser que transcende cada um dos seus actos e atributos, através de um plano vital próprio, cuja autoria e responsabilidade só a ele mesmo se deve e imputa”306. Há, portanto, uma relação muito estreita entre autonomia e dignidade, sendo que esta última se traduz juridicamente “num ‘direito a ter direitos’ e na sua qualidade de ser sujeito jurídico: trata-se da dignidade como empowerment”307. Para além disso, ser-se humanamente digno significa “ser-se igual a todos os outros em capacidade de autonomia moral”308, isto é, ser-se dotado de igual liberdade para fazer as próprias opções de vida. Há, então, também uma ligação incindível entre o princípio da dignidade e o princípio da igualdade309, na medida em que a desigualdade é incompatível com a 305 MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 93. PAUL TIEDEMANN, “Vom inflationären Gebrauch der Menschenwürde in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, cit., pp. 612 e 613, afirma que na dignidade estão em causa “as condições pessoais da possibilidade de liberdade, desenvolvimento e autodeterminação”. 306 FRANCISCO LUCAS PIRES, Uma Constituição para Portugal, cit., p. 30. 307 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 719. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução. As Pessoas. Os Bens, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 71, refere que a dignidade implica a atribuição de direitos aos cidadãos, de modo a garantir essa mesma dignidade na vida social. PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., p. 119, considera que respeitar a dignidade significa respeitar a liberdade da vontade de cada pessoa. Limitações a essa liberdade da vontade implicam restrições na integridade da pessoa porque põem em risco a sua identidade e autenticidade. 308 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p.146. 309 Considerando inclusivamente que “o núcleo fundante e central do sistema de direitos fundamentais da Constituição de 1976 talvez seja melhor designado pela ideia de ‘igual dignidade’”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 313; LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 583, nota 1945, entende que o princípio da igualdade em dignidade, “enquanto princípio parametrizador [se] distingue (…) do princípio da igualdade enquanto princípio normativo”. No primeiro, “o que está em causa é um compromisso de nos respeitarmos uns aos outros como seres da mesma categoria essencial através da normatividade jurídica”. No segundo, “está em causa uma concretização desse compromisso plasmada na normatividade jurídico-constitucional”, que se traduz “na exigência de as vantagens e desvantagens a distribuir não o serem arbitrariamente”. 83 dignidade310. Quando se encara a igualdade como um dos elementos fundamentais da dignidade o que se procura “é conceder ao Homem o mínimo de igualdade imediata, que é a igualdade em dignidade”311. Assim, “o princípio da dignidade da pessoa humana articula-se nos valores da liberdade e da igualdade e implica a igual liberdade de todos os cidadãos”312. Quem defende que o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento da renúncia parte precisamente da ideia que a dignidade garante, enquanto elemento decisivo, a autonomia, sendo que é por força dessa autonomia que o indivíduo pode estabelecer limitações à sua liberdade que o Estado não está legitimado a impor unilateralmente313. 2.2. O direito ao desenvolvimento da personalidade Por outro lado, há quem entenda que o poder de disposição que caracteriza a renúncia se deverá ancorar num autónomo direito ao desenvolvimento da personalidade314. Este direito foi consagrado na nossa 310 GREGORIO PECES – BARBA, “Reflexiones sobre la evolución histórica y el concepto dignidad humana”, in MARÍA EUGENIA RODRÍGUEZ PALOP – IGNACIO CAMPO Y CERVERA – JOSÉ LUIS REY PÉREZ (eds.), Desafíos Actuales a los Derechos Humanos: la Violencia de Género, la Inmigración y los Medios de Comunicación, Dykinson, 2005, p. 32. 311 ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Princípio da consubstancialidade parcial dos direitos fundamentais na dignidade do Homem”, in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol. XLVII, 2006, p. 329. 312 JOSÉ DE SOUSA E BRITO, “Razão democrática e Direito”, in Ética e Futuro da Democracia, Edições Colibri, Lisboa, 1998, p. 149. 313 Ver REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 194. 314 Parece-nos ser essa a posição de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258. Também LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 34, que entende que “[a] esfera de liberdade e autonomia tem de, em última análise, em casos extremos, permitir o ‘não gozo’ ou a renúncia, em termos que decorrem do reconhecimento de um direito ao desenvolvimento da personalidade”. No ordenamento jurídico alemão, sustentando que a possibilidade de renúncia deriva do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto na 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã, ver HELMUT QUARITSCH, “Der Verzicht im Verwaltungsrecht und auf Grundrechte”, cit., p. 410; MICHAEL SACHS, “Volenti non fit iniuria – Zur Bedeutung des Willens des Betroffenen im Verwaltungsrecht”, in VerwArch, n.º 76, 1985, p. 411; ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59; e ainda MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht” cit., p. 478; CARL JOSEPH HERING, “Der Verzicht als intentionaler Faktor der freien Entfaltung der Persönlichkeit”, in H. KONRAD – H. JAHRREISS – P. 84 Constituição após a quarta revisão de 1997315, que passa a referir expressamente, no seu art. 26.º, o desenvolvimento da personalidade. No entanto, já antes dessa consagração o Tribunal Constitucional havia feito referência ao direito geral de personalidade como dimanação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana316. Vamos, então, procurar densificar o âmbito de protecção do direito ao desenvolvimento da personalidade, para o que releva particularmente a “elaboração doutrinal e jurisprudencial” alemã, não só pelo facto de a positivação constitucional do direito se ter inspirado no modelo da Grundgesetz, tal como vem expressamente referido nos trabalhos 317 preparatórios , mas também por ser nesse ordenamento jurídico que mais tem sido estudado. A presença “de um relativamente extenso catálogo de direitos de liberdade ‘especiais’” na nossa Constituição não é um entrave à compreensão do direito “como ‘direito fundamental fundante' (…) tal como na ordem jurídica alemã”, o que não implica que não atendamos às diferenças resultantes dessa previsão mais desenvolvida318. MIKAT – H. MOSLER – H. C. NIPPERDEY – J. SALZWEDEL (orgs.), Gedächtnisschrift Hans Peters, Springer Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, 1967, pp. 513 ss. 315 JORGE BACELAR GOUVEIA, “A quarta revisão da Constituição portuguesa”, in Estudos de Direito Público, Vol. I, Principia, Cascais, 2000, p. 87. 316 Ver, nesse sentido, o Acórdão n.º 6/84, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Maio de 1984; ver também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 79, nota 130; ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO – MÁRIO JOÃO DE BRITO FERNANDES, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, p. 111. 317 José de Magalhães, na revisão constitucional de 1997, DAR, 1.ª série, n.º 94, de 16 de Julho de 1997, p. 3396, diz que as fontes desta norma são públicas e confessas: a Constituição Espanhola de 1978 e a Lei Fundamental de Bona. 318 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in PortugalBrasil ano 2000 – Tema Direito, Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 156, nota 19 e 162. Em sentido contrário, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 463, defendem que o direito ao desenvolvimento da personalidade “não surge, no contexto constitucional português, como uma espécie de (…) ‘direito mãe’, à semelhança do que acontece na Constituição da República Federal da Alemanha”. No entanto, entendem que este direito “não pode ser encarado apenas como uma liberdade ou direito geral (‘direito geral de liberdade’) de natureza complementar ou subsidiária”, pelo que compreende as seguintes dimensões no seu âmbito normativo de protecção: a “formação livre da personalidade”; a “protecção da liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias”; e a “protecção da integridade da pessoa”. RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 286, consideram, por seu lado, que “diferenças significativas” separam os preceitos alemão e português. Na medida em que “no 85 Não é também um óbice à compreensão deste direito em termos análogos aos reconhecidos na doutrina e jurisprudência alemãs, o facto de o legislador constituinte não ter feito referência expressa ao adjectivo “livre”, porque a ideia de liberdade é inerente à “noção de desenvolvimento da personalidade”319. A consagração do direito ao desenvolvimento da personalidade “teve sobretudo em vista a tutela da individualidade e, em particular, das suas diferenças”320. Este direito visa salvaguardar “as singularidades da pessoa humana, naquilo que a caracteriza como diferente ou igual às demais, conferindo-se a cada um o direito de livremente optar pelo seu próprio projecto de vida”321. Está aqui em causa o direito de a pessoa escolher livremente o seu destino e de conduzir a sua vida com autonomia e responsabilidade, de acordo com as suas convicções322. No Acórdão n.º 288/98323, relativo ao referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, o TC diz precisamente que o direito ao desenvolvimento da personalidade compreende “a autonomia individual e a autodeterminação” e confere “a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida”. Convém, no entanto, realçar que “a liberdade constitucionalmente direito alemão este direito constitui o princípio de irradiação de todos os direitos pessoais não especificados, entre os quais se contam quase todos os que estão expressamente consagrados no texto português”, defendem que “o alcance prático” deste direito na nossa ordem jurídica “será muitíssimo mais restrito”. 319 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 160. RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 287, pelo contrário, estabelecem que “em termos literais a expressão portuguesa ‘desenvolvimento da personalidade’ parece ligada à ideia de ‘formação’ da personalidade”, enquanto “a expressão alemã Freie Entfaltung contém um sentido mais amplo que aponta para as ideias de autonomia e de livre ‘exteriorização’ e ‘realização’ da personalidade”. 320 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 157. 321 CATARINA SAMPAIO VENTURA, “Os direitos fundamentais à luz da quarta revisão constitucional”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXIV, 1998, p. 501. JOSÉ DE MAGALHÃES, DAR, 1.ª série, n.º 94, cit., p. 3397, diz precisamente que o direito ao desenvolvimento da personalidade é, “o direito que cada um de nós tem a ser um ente único e irrepetível, distinto ou igual aos demais, consoante delibere, queira e consiga”. Nessa medida, sustenta ainda que compreende “o direito à autodeterminação, ou seja, o direito a escolher livremente o destino pessoal e a decidir livremente em decisões de conflito que são fulcrais para a concretização da existência humana”. 322 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 127. 323 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980288.html. 86 garantida” é apenas “a liberdade juridicamente protegida”, o que implica que se tenha, antes do mais, de delimitar o âmbito de protecção do direito consagrado na Constituição. “Não há, em Estado de Direito, (….) o reconhecimento de qualquer direito – muito menos fundamental – a cada um poder fazer aquilo que quiser”324. De facto, “o compromisso com o Estado social impõe que se compreenda a liberdade como um espaço do sujeito reconhecido no quadro de uma comunidade ordenada e, simultaneamente, como uma finalidade a prosseguir pelo Estado (como liberdade jurídica (…) e não uma abstracta e ilimitada liberdade natural)”. Apesar disso, tal não significa “que seja lícito omitir a dimensão de liberdade no entendimento do direito ao desenvolvimento da personalidade”325. A delimitação do âmbito de protecção dos direitos fundamentais deve apenas excluir as situações que não podem ser entendidas “pela consciência jurídica própria de Estado de Direito como exercício jusfundamentalmente protegido”. Tal quer dizer que não são de considerar abrangidos nesse âmbito “todos os comportamentos ou acções que suscitem uma reprovação social e jurídica consensuais”. Este critério é mais limitado do que uma “mera remissão genérica para as leis penais enquanto fundamento de exclusão da protecção jusfundamental”, uma vez que não deve ser de afastar essa protecção quando esteja em causa “uma lei penal aprovada ou mantida em vigor num ambiente de grande controvérsia sobre a sua constitucionalidade”326. Assim, não deverão excluir-se, à partida, do âmbito de protecção do direito ao desenvolvimento da personalidade acções que não reúnam consenso social, “como a prática, em certas circunstâncias, do aborto ou da eutanásia, o consumo de álcool, tabaco ou drogas (…), na medida em que os valores que justificam a lei criminalizadora não apresentem face a elas uma supremacia de 324 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 412 – 414. RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 287, consideram que “mesmo admitindo (…) uma liberdade geral de acção, o critério dessa liberdade está não apenas na liberdade, mas também nos seus limites”. 325 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 161 e 162. 326 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 427 e 428. 87 tal forma constringente que assegure uma criminalização não controversa”327. Estas situações devem considerar-se abrangidas pelo direito ao desenvolvimento da personalidade quando não se reconduzam a outros direitos fundamentais em especial. Foi essa a posição assumida pelo TC no já citado Acórdão n.º 288/98, bem como no Acórdão 617/06328, ambos relativos ao referendo sobre o aborto, na medida em que o Tribunal considera que o direito da mãe a interromper a gravidez se funda no direito ao desenvolvimento da personalidade. Tal não significa que, uma vez delimitado o âmbito de protecção do direito, este não possa ser sujeito a restrições329. No Acórdão n.º 436/00330, relativo à Lei do Jogo, o Tribunal Constitucional vem dizer que o direito ao desenvolvimento da personalidade não é incompatível com limitações, desde que sejam “adequadas, necessárias e não alheadas da relação com o fim prosseguido”331. No entanto, “o ónus de fundamentar está do lado do poder 327 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 428 e 429. Considerando que o direito a fumar se encontra protegido pelo direito ao desenvolvimento da personalidade, ver RALF JAHN, “(Nicht-) Raucherschutz als Grundrechtsproblem”, in DöV, n.º 19, 1989, pp. 850 e 851. Em sentido contrário, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 465, defendem que é “insustentável que caibam no âmbito normativo constitucional do desenvolvimento da personalidade algumas ‘liberdades’ invocadas como dimensões lógicas deste princípio (‘direito a consumir drogas’, ‘direito a fumar’ (…), ‘direito à rejeição de cinto de segurança’, ‘direito à rejeição de capacete de protecção’ (…))”, etc. Parece-nos ser também essa a posição de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A dignidade da pessoa humana e o fundamento dos direitos humanos”, in ROA, Ano 68, Vol. I, 2008, p. 115, na medida em que refere que “sem uma tábua de valores haveria realização da personalidade na opção pela droga, na avareza, no isolamento e na agressividade por ódio à humanidade”. O BVerfG teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão do consumo de cannabis e considerou que a proibição legal desse consumo não é contrária ao direito ao desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido, BVerfGE 90, pp. 145 ss. 328 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html. 329 Não vamos aqui desenvolver o problema das restrições não expressamente consagradas na Constituição, uma vez que esse tema foi já tratado de forma exaustiva por JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit.. De todo o modo, para a questão de eventuais restrições a este direito, seguimos a perspectiva deste Autor quanto à existência de uma “reserva geral imanente de ponderação” enquanto fundamento constitucional implícito que pode, eventualmente, justificar restrições não expressamente previstas. 330 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000436.html. 331 Diz este Tribunal que “a liberdade geral de acção, que o direito ao desenvolvimento da personalidade subentende, veda ao legislador dispor do ‘espaço interno’ no qual cada indivíduo ‘pertence a si próprio’ – e que constitui o núcleo essencial de conformação privada da vida – mas nem por isso é incompatível com limitações, que não só haverão de respeitar o princípio da proporcionalidade, ‘assim assegurando o conteúdo da liberdade de acção em face dos 88 legislativo: é o poder que terá de justificar a coerção e não as pessoas, a sua liberdade”332. Consequentemente, as restrições ao direito ao desenvolvimento da personalidade devem justificar-se pela protecção de um bem jurídico constitucionalmente protegido333 e, como qualquer outra restrição, têm de respeitar o princípio da proporcionalidade, ou seja, “devem limitar-se ao mínimo indispensável para a protecção e satisfação das necessidades básicas da vida humana em uma sociedade pluralista”334. Através da consagração deste direito há uma “jusfundamentalização de uma liberdade geral de acção, mas com a natureza especial de só poder ser interpretada com tal alcance desde que acompanhada do reconhecimento expresso ou implícito dos limites ‘naturais’ que lhe são próprios: os direitos dos outros, a lei moral e a ordem constitucional”335. Este é “o tríplice limite (Schrankentrias)” que a Lei Fundamental alemã estabelece expressamente336 e que será aplicável também na ordem jurídica portuguesa, se o entendermos “em termos semelhantes aos propostos no contexto germânico”337. princípios materiais que o pretendam limitar’, como terão essas limitações de ser adequadas, necessárias e não alheadas da relação com o fim prosseguido, ‘exigindo-se uma apreciação da relação entre o sacrifício da liberdade em questão e o princípio que o justifica’, a ser ‘tanto mais estrita quanto mais a intervenção legislativa tocar formas elementares de manifestação de liberdade de acção humana, ou, em particular, aspectos de personalidade’”. 332 RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 286. 333 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 119. 334 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., pp. 261 e 262. 335 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 413. 336 Ver, sobre esta questão, JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa, 1995, pp. 214 ss. 337 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 222. Assim, segundo este Autor, a ordem constitucional deve ser “equiparada à totalidade da ordem jurídica conforme com a Constituição”. Quanto ao respeito dos direitos dos outros, tem-se entendido que esta exigência não tem importância autónoma decisiva, na medida em que é consumida pela exigência de respeito pela ordem constitucional. Os direitos subjectivos de terceiros apenas existem na medida em que são protegidos pela ordem jurídica. Ver REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 213; também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, Verlag C. H. Beck, München, 2006, p. 967; BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 116; HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 321. Quanto à exigência de respeito pela lei moral, afirmando que este conceito perdeu o seu” cunho religioso e filosófico pré-jurídico” através da sua positivação na Constituição, ver HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, in 89 Por outro lado, não se pode esquecer que “a própria noção de ‘desenvolvimento da personalidade’ requer uma indispensável dimensão social do direito em causa”, na medida em que “as possibilidades de realização do indivíduo isoladamente são, necessariamente, limitadas”. Com efeito, este direito “não se pode compreender apenas como importando uma ausência de interferência” na liberdade do indivíduo, envolvendo ainda “deveres de protecção a cargo do Estado”, que está vinculado a “consagrar formas de tutela da personalidade”338. O conteúdo deste direito suscitou, para além disso, discussão entre os defensores de duas concepções distintas “da ideia constitucional de liberdade: ‘a concepção ampla’ (…) e a ‘concepção restrita’”. Para a “’concepção ampla’”, o direito garantirá todas as condutas que possam ser relevantes para a JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. VI, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2001, p. 1202; também HANSUWE ERICHSEN, “Das Grundrecht aus Art. 2 Abs. 1 GG”, in JURA, n.º 7, 1987, p. 372. RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 287, entendem que à lei moral deve ser “atribuído um sentido especificamente jurídico que não se identifica (…) com as regras da moral vigente ou dominante”. Ver ainda MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 186 e CHRISTOPH DEGENHART, “Die allgemeine Handlungsfreiheit des Art. 2 I GG”, in JuS, n.º 3, 1990, pp. 164 e 165. Tem-se, para além disso, sustentado que também este limite não tem um papel autónomo relevante, na medida em que a ordem constitucional pode ser concebida como a positivação de exigências que se relacionam com a lei moral. Nesse sentido, BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 117. Em sentido contrário, ver CHRISTIAN STARCK, “Das Sittengesetz als Schranke der freien Entfaltung der Persönlichkeit”, in GERHARD LEIBHOLZ – HANS JOACHIM FALLER – PAUL MIKAT – HANS REIS (orgs.), Menschenwürde und freiheitliche Rechtordnung, Festschrift für Willi Geiger zum 65. Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1974, pp. 259 – 276. Segundo o Autor, “este limite apenas foi utilizado na jurisprudência do BVerfG para estabelecer limites à liberdade no caso dos homossexuais (BVerfGE 6, pp. 389 ss). No caso em análise o Tribunal estabelece que este tipo de relações vai contra a lei moral independentemente da questão de saber se a homossexualidade implica um prejuízo para a sociedade ou se a sua criminalização protege um bem jurídico”. RUPERT SCHOLZ, “Das Grundrecht der freien Entfaltung der Persönlichkeit in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, in AöR, n.º 100, 1975, p. 285, diz-nos, no entanto, que o BVerfG já teve posteriormente oportunidade de se pronunciar acerca da mesma questão (BVerfGE 36, pp. 146 ss) e, nessa decisão, evitou qualquer alusão à lei moral e à sua relação com a homossexualidade. Assim, na prática o limite mais relevante é o do respeito da ordem constitucional. Nesse sentido, REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., pp. 212 – 214; também EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., p. 248; ROLF SCHMIDT, Grundrechte, 5ª Edição, Verlag Rolf Schmidt GmbH, Grasberg bei Bremmen, 2004, pp. 130 e 131; PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 225. JOSÉ DE MAGALHÃES, Dicionário da Revisão Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, p. 154, diz-nos que na redacção que resulta da CRP “os limites são implícitos, decorrendo da concordância prática com outros direitos e com princípios essenciais da ordem constitucional”. 338 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 159 e 196. 90 formação da personalidade, mesmo as “que se revestem de ‘diminuta importância’”; para a “’concepção restrita’ (…), o conteúdo do direito em causa circunscrever-se-á às formas de conduta humana em que o ser humano expresse a ‘essência’ da sua personalidade”339. Hans Peters defende uma limitação do conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, sob pena de este se tornar um “instrumento de luta de interesses individuais egoístas”. O Autor considera que a invocação do direito ao desenvolvimento da personalidade “para fins banais faz com que este saia desvalorizado precisamente nos casos para os quais foi consagrado e que constituem o seu verdadeiro conteúdo: aqueles que são manifestação da verdadeira humanidade e que permitem a realização da personalidade atribuída pelo Criador”340. Estamos aqui perante a designada “teoria do núcleo essencial da personalidade”, uma vez que segundo esta perspectiva “o livre desenvolvimento da personalidade diz apenas respeito ‘ao desenvolvimento dentro de um núcleo da personalidade’ que ‘constitui a essência do Homem enquanto ser moral’”341. Não foi, no entanto, esta a posição seguida pelo BVerfG. O Tribunal defendeu, tanto no caso Elfes342 como no caso Reiten im Walde343, uma 339 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 78 – 80; MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 179. 340 HANS PETERS, “Die Freie Entfaltung der Persönlichkeit als Verfassungsziel”, in D. S. CONSTANTOPOULOS – HANS WEHBERG (orgs.), Gegenwartsprobleme des Internationalen Rechtes und der Rechtsphilosophie, Festschrift für Rudolf Laun zu seinem siebzigsten Geburtstag, Girardet & Co, Hamburg, 1953, pp. 669, 673 e 674; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 112 e 113. Também KONRAD HESSE Grundzüge des Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, 20.ª Edição, Verlag C. F. Müller, Heidelberg, 1999, pp. 183 ss, defende uma interpretação restritiva deste direito. Considerando que Hans Peters defende uma “variante filosoficamente sobrecarregada”, na medida em que considera que a Constituição alemã se fundamenta “sobre o conceito de ‘liberdade vinculada a valores’”, em contraposição a Konrad Hesse, que defende uma “variante filosoficamente neutral”, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 81. 341 BODO PIEROTH, “Der Wert der Auffangfunktion des Art. 2, Abs. 1 GG”, in AöR, n.º 115, 1990, p. 34. 342 BVerfGE 6, pp. 32 ss. Neste caso, Elfes era o líder de uma associação, Bund der Deutschen, que, nos anos cinquenta, contestava a política do Governo Federal. Este senhor havia já, por diversas vezes, manifestado publicamente a sua posição crítica tanto no país como no exterior. Tendo em consideração a sua actividade política foi-lhe negada a renovação do seu passaporte. O BVerfG considerou que a liberdade de viajar é protegida pela liberdade geral de acção (prevista na 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã). No entanto, a queixa constitucional acabou por não ter sucesso na medida em que se entendeu que se tratava de 91 concepção ampla do direito ao desenvolvimento da personalidade344. Poderá dizer-se que este Tribunal “estabelece, na prática, uma combinação entre a teoria da liberdade geral de acção e a teoria do núcleo essencial”, na medida em que “coloca o âmbito nuclear do desenvolvimento da personalidade sob uma protecção acrescida”345. Também na nossa ordem jurídica consideramos que fará mais sentido seguir uma concepção ampla, não se devendo limitar a protecção conferida pelo direito ao desenvolvimento da personalidade às actuações que se revistam de particular relevância para o desenvolvimento da personalidade. O “objecto de protecção” do direito não impõe “que se esteja perante situações em que se exprima de forma particular a personalidade”, abarcando ainda uma restrição legítima. Ver MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., pp. 179 – 180; sobre este caso, ver também BODO PIEROTH, “Der Wert der Auffangfunktion des Art. 2, Abs. 1 GG”, cit., p. 33. 343 BVerfGE 80, pp. 137 ss. Neste caso, a legislação de Nordrhein-Westfalen estabelecia que a circulação de cavaleiros em florestas só era permitida em caminhos identificados como tal. O BVerfG considerou que a 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã protege a liberdade de acção em termos amplos, não se tendo em consideração o peso que a acção concreta em causa tenha para o desenvolvimento da personalidade. No entanto, também esta queixa foi julgada improcedente por se entender que se estava perante uma restrição justificada. É muito relevante neste caso o voto de vencido do Juiz Dieter Grimm, no qual este considera que a 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã não protege qualquer comportamento, mas somente aqueles que sejam elementos particularmente importantes de expressão da personalidade. Ver MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 181. Sobre este caso, ver também BODO PIEROTH, “Der Wert der Auffangfunktion des Art. 2, Abs. 1 GG”, cit., pp. 34 e 35; PHILIP KUNIG, “Der Reiter im Walde”, in JURA, n.º 10, 1990, pp. 523 – 528. Este Autor, na p. 526, refere que Grimm, no seu voto de vencido, “explora uma ‘terceira via’, entre a jurisprudência do BVerfG e a designada teoria do núcleo essencial da personalidade (…)”. Assim, para Grimm “não é só o núcleo da personalidade que é protegido, mas entre este e ‘qualquer acção’ existe uma zona intermédia, que deve ser encontrada caso a caso”. 344 MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., pp. 179 e 180; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 114; HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, cit., p. 1191. Sustentando que o Tribunal Constitucional defendeu uma concepção ampla na medida em que “não seria compreensível que o desenvolvimento dentro deste núcleo essencial pudesse infringir direitos de terceiros, a lei moral ou a ordem constitucional”, ver THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, Vol. II, 3ª Edição, Carl Heymanns Verlag, Köln, Berlin, Bonn, München, 1985, pp. 29, 95 e 96. Sobre a jurisprudência do BVerfG acerca deste direito ver, mais desenvolvidamente, RUPERT SCHOLZ, “Das Grundrecht der freien Entfaltung der Persönlichkeit in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, cit., pp. 80 – 130 e 265 – 290. 345 EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., pp. 244 e 245. Considerando também que o BVerfG, numa tentativa de conciliar a protecção mais extensa da “teoria da liberdade geral de acção” com a protecção mais intensa da teoria do conteúdo nuclear recorre à “teoria da liberdade geral de acção com ‘conteúdo essencial’ inviolável”, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 82. 92 “formas banais de expressão da personalidade ou de acção, incluídas igualmente dentro do espaço livre de comportamentos pessoalmente imputáveis ao indivíduo”346. Esta liberdade, ou seja, a possibilidade de a pessoa agir de acordo com a sua vontade, é “um valor em si e é pura e simplesmente o valor de uma ordem estadual livre”347. Até porque as opiniões poderão divergir consideravelmente quando se trata de decidir o que é ou não insignificante para o desenvolvimento da personalidade348. Ao balizarmos a protecção concedida pelo direito a “uma esfera de vida pessoal mais próxima” deparamo-nos inevitavelmente com a dificuldade de determinar o que deve caber nessa esfera e o que dela deve ser excluído349. Pertence, assim, à autonomia do titular do direito fundamental determinar quais os comportamentos protegidos pela liberdade geral de acção, uma vez que “não é compatível com uma ‘sociedade aberta’, em permanente evolução”, que o desenvolvimento da personalidade tenha de caber num 346 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 168 – 171 e 199; também HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, cit., p. 1196; DETLEF MERTEN, “Das Recht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit”, in JuS, n.º 6, 1976, p. 346; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, Verlag C. H. Beck, München, 2006, pp. 889 e 890. Em sentido contrário, defendendo uma concepção restrita do direito ao desenvolvimento da personalidade, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., pp. 492 ss; também EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 52 ss. Relativamente ao direito geral de personalidade previsto no art. 70.º do CC, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 258, entende que está aí em causa “todo o poder de autodeterminação do homem, ou seja, todo o poder que o homem exerce sobre si mesmo, auto-regulando o seu corpo, o seu pensamento, a sua inteligência, a sua vontade, os seus sentimentos e o seu comportamento, tanto na acção como na omissão, nomeadamente auto-apresentando-se como ser livre, criando, aspirando ou aderindo aos valores que reputa válidos para si mesmo, escolhendo as suas finalidades, activando as suas forças e agindo, ou não agindo, por si mesmo”. Consequentemente, o Autor defende um conceito amplo deste direito, que abrange indistintamente as formas de conduta mais importantes e mais significativas para a formação e para a expressão da personalidade e as formas de conduta menos importantes e menos significativas para a sua formação e expressão. Nesse sentido, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 46 e 47. 347 WALTER SCHMITT GLAESER, “Schutz der Privatsphäre”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. VI, 2.ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2001, p. 54. 348 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 324 e 325. 349 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 170. 93 quadro pré-definido de pessoa350. O princípio da igualdade implica que este direito deve ser interpretado de forma a proteger todos os indivíduos e não apenas os que seguem um dado modelo de personalidade351. “A noção de desenvolvimento da personalidade” não deve ser determinada “por quaisquer concepções ideológicas, filosóficas”, ou de qualquer outra índole352. O Tribunal Constitucional Português parece também seguir uma concepção ampla do direito. Desde logo, no já referido Acórdão n.º 6/84, no qual se apreciava a eventual inconstitucionalidade da norma que sujeitava o pessoal adstrito ao Regulamento dos Transportes em Automóveis a apresentar-se em serviço “devidamente uniformizado e barbeado”, o TC entendeu não se estar perante o direito à imagem mas sim face ao direito à determinação da aparência externa, incluído no direito geral de personalidade, constitucionalmente garantido. O facto de o Tribunal considerar que o direito ao desenvolvimento da personalidade constitui norma relevante no caso parece implicar a defesa de uma concepção ampla deste direito353. Por outro lado ainda, “’as concepções amplas’ do direito ao desenvolvimento da personalidade distinguem (…) o ‘direito geral de liberdade’ (…) [d]o ‘direito geral de personalidade’354. Tem-se defendido que a protecção geral da personalidade “traduz sobretudo uma ‘protecção da integridade’, de 350 REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 211. PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 171, nota 65, estabelece ainda que “o perigo de ‘banalização’ de um direito geral de liberdade não deixará igualmente de existir nos direitos especiais de liberdade”. 351 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 58. 352 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 166 e 167. 353 Nesse sentido, também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 83 e 84. Já no Acórdão n.º 139/06, http://www.tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/20060139.html, relativo à exigência de os campos de tiro deverem respeitar uma distância mínima de 800 metros entre as origens do tiro e lugares habitados, o TC não responde directamente à questão de saber se tal actividade se encontra protegida pelo direito ao desenvolvimento da personalidade, na medida em que estabelece que “no presente caso, a intervenção questionada do legislador visou regular a compatibilização, por um lado, do direito à exploração e ao exercício de uma actividade desportiva – que, independentemente da sua qualificação, proposta pelo recorrente, como emanação do direito ao desenvolvimento da personalidade, sempre encontraria suporte constitucional, para a entidade exploradora do espaço, no direito à iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da CRP)”. 354 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87; ver também JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, cit., pp. 208 ss. 94 estados ou do substrato da actividade livre”. Já a liberdade geral de acção (direito geral de liberdade), realiza “uma ‘protecção da actividade’, sendo “o bem protegido (…) fundamentalmente a livre decisão sobre a acção ou omissão própria”, ou seja, a “liberdade comportamental”355. Segundo esta perspectiva, deveria, assim, distinguir-se entre o “desenvolvimento da personalidade em sentido amplo”356 – uma liberdade geral de acção que protege não apenas a actividade, mas também a passividade357 – e o “desenvolvimento da personalidade em sentido restrito, limitado a uma esfera de vida pessoal mais estreita”358. Também na jurisprudência do TC encontramos esta distinção. Nos Acórdãos n.º 486/04359 e n.º 589/07360, por exemplo, ambos relativos à caducidade de acção de impugnação da paternidade, o Tribunal determina que o direito ao desenvolvimento da personalidade comporta “dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da personalidade”361. 355 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 163 e 164. Este Autor considera que a protecção constitucional da liberdade geral de acção é retirada do art. 26.º, n.º 1 da CRP em conexão com o art. 27.º da CRP. 356 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 84. 357 DETLEF MERTEN, “Das Recht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit”, cit., p. 346; também JOHANNES HELLERMANN, Die sogenannte negative Seite der Freiheitsrechte, Duncker & Humblot, Berlin, 1993, pp. 180 e 181. No Acórdão n.º 155/07, http://w3.tribunalconstitucional.pt /acordaos/acordaos07/101-200/15507.htm, relativo à recolha de vestígios biológicos, o TC estabelece que na dimensão de liberdade geral de acção “o ‘direito ao desenvolvimento da personalidade não protege, nomeadamente, apenas a liberdade de actuação, mas igualmente a liberdade de não actuar (não tutela, neste sentido, apenas a actividade, mas igualmente a passividade, com uma garantia não unidimensional de actuação, mas pluridimensional, de liberdade de comportamento, enquanto decorrente da ideia de desenvolvimento da personalidade’”. 358 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 84. 359 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040486.html. 360 http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos07/501-600/58907.html. 361 Ver também o Acórdão n.º 338/06, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20060338.html, relativo à exigência de patrocínio judiciário no caso de constituição como assistente em processo penal, no qual o TC entende que “não se vê como é que, ao ser-lhe vedada a possibilidade de se representar a si próprio, como assistente no processo penal, lhe estejam a ser restringidos quaisquer direitos reconhecidos a título de pessoa, como o direito ao desenvolvimento da sua personalidade, em quaisquer das dimensões que esse direito comporta, entre as quais avultam o direito geral de personalidade e a liberdade geral de acção”. Já no Acórdão n.º 195/03, http://w3.tribunalconstitucional.pt/ acordaos/acordaos03/101200/19503.htm, sobre o direito a prestações por morte em caso de união de facto, o TC deixa o problema em aberto, ao considerar que “o mesmo deve dizer-se quanto a uma violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, quer este seja entendido como cláusula geral sem maior densificação, quer, como tem sido sustentado na doutrina (…) dele se extraia a 95 No entanto, a diferenciação entre “liberdade geral de acção” e “integridade” não se tem revelado completamente satisfatória para distinguir o direito geral de liberdade do direito geral de personalidade, porquanto há acções que devem gozar da protecção mais intensa conferida por este último. De facto, o direito geral de personalidade visa proteger a integridade do indivíduo, mas “poderá ser indispensável para a protecção dessa mesma integridade ter a faculdade de agir de um determinado modo”. As acções referentes “à sexualidade362, ao planeamento familiar, à escolha de emprego”, etc., são fundamentais para a integridade pessoal. Consequentemente, “a protecção da personalidade”, enquanto “protecção da integridade”, deve também ser “protecção da actividade”363. Assim, a destrinça entre direito geral de liberdade e direito geral de personalidade deverá partir de “critérios materiais”. Sendo que o direito geral de personalidade visa assegurar “a integridade da pessoa numa perspectiva psíquica e espiritual”, podemos considerar que essa integridade está garantida quando se protegem as condições e acções particularmente significativas para a realização do indivíduo364. Importa, neste âmbito, referir a perspectiva de Martin Koppernock365, que distingue o direito geral de liberdade do direito geral de personalidade partindo da “diferenciação terminológica de Habermas” entre “acções necessidade de consagração de uma tutela geral da personalidade e o reconhecimento de uma ‘liberdade geral de acção’.” 362 O TC afirma, efectivamente, que “a autodeterminação sexual” está abrangida no âmbito de protecção do direito ao desenvolvimento da personalidade. No Acórdão n.º 247/05, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos05/201-300/24705.htm, relativo à prática de actos homossexuais com adolescentes, o TC entende que “o bem jurídico protegido na Secção dos Crimes contra a autodeterminação sexual é também o da liberdade e da autodeterminação sexual, relacionado, de forma muito particular, com o bem jurídico do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, num exercício de ponderação dos diferentes graus de desenvolvimento desta personalidade.” 363 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, Duncker & Humblot, Berlin, 2005, pp. 60 – 62. 364 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 63. 365 Considerando que a tese de Koppernock permite uma “caracterização, em termos mais rigorosos, dos espaços ocupados pelo ‘direito geral de liberdade’ e pelo ‘direito geral de personalidade’, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87. 96 determinadas por razões pragmáticas, éticas ou morais”366. Para a questão em análise releva essencialmente a distinção estabelecida entre “razões pragmáticas” e “razões éticas”367. Segundo Koppernock, cabe ao direito geral de liberdade proteger as acções que se fundam em “razões pragmáticas” e que são, por isso, menos relevantes para a integridade do sujeito, enquanto o direito geral de personalidade abrange as acções “motivadas por razões éticas”. As “questões pragmáticas” com que o indivíduo se defronta colocam-se “na perspectiva de alguém que procura os meios mais adequados para concretizar as suas finalidades e preferências”368. Já as “questões éticas” prendem-se com as escolhas essenciais de vida, com aquilo que o indivíduo é ou deseja ser, ou seja, está aqui em causa a própria construção da sua 366 MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, Nomos Verlag, Baden-Baden, 1997, em particular pp. 76 ss. Segundo o Autor, esta diferenciação parte da distinção entre o domínio do “funcional”, do “bem” e do “justo”. Ver também KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 63 - 70. 367 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 63 - 69, refere que para Habermas as formas de conduta motivadas por razões morais tratam do que é “justo”, no sentido de “dever que vincula toda a comunidade”. Nessa medida, entende que não devem caber no direito ao desenvolvimento da personalidade as “condutas moralmente motivadas” uma vez que defende que estas caem no âmbito de protecção da liberdade de consciência. Sobre esta questão, ver também MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, cit., p. 81. Como exemplo, Kai Möller refere a possibilidade de objecção de consciência ao serviço militar. Esta possibilidade aplica-se àqueles que por razões de consciência se recusam a matar em tempos de guerra; não é possível, pelo contrário, estabelecer uma restrição relativamente a uma determinada guerra, arma ou situação. Através desta interpretação restrita retira-se ao indivíduo a possibilidade de fazer apelo a considerações éticas. Não nos parece, no entanto, que esta perspectiva seja unânime na doutrina, eventualmente por não se partir da distinção de Habermas entre ética e moral. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 609 e 610, consideram que “o bem fundamentalmente protegido pela liberdade de consciência é a convicção ética e a autónoma responsabilidade reivindicada por qualquer indivíduo para justificar o seu comportamento”. HERBERT BETHGE,“Gewissensfreiheit”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. VI, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2001, pp. 441 e 444, considera que “estamos perante uma questão de consciência quando uma decisão é significativa para a constituição ou desconstituição da pessoa”. Para este Autor, em relação à liberdade geral de acção, a liberdade de consciência é uma “lex specialis”. Sobre este direito ver também, mais desenvolvidamente, JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, Associação Académica da Faculdade de Direito, Lisboa, 1985. 368 Ver JÜRGEN HABERMAS, Between Facts and Norms. Contribution to a Discourse Theory of Law and Democracy (trad. WILLIAM REHG), MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1996, p. 159; também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 89; KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 65. 97 identidade369. De tudo o que vimos, podemos retirar que o direito ao desenvolvimento da personalidade deve ser interpretado segundo uma concepção ampla e, consequentemente, se desdobra num direito geral de liberdade e num direito geral de personalidade. O direito geral de liberdade garante “as formas de conduta motivadas, exclusiva ou preponderantemente, ‘por razões pragmáticas’”, enquanto “o direito geral de personalidade, protege “as formas de conduta motivadas, exclusiva ou preponderantemente, ‘por razões éticas’”370. Assim, quem defende que o direito ao desenvolvimento da personalidade é o fundamento do poder de disposição individual sobre posições jurídicas de direitos fundamentais parte de uma concepção deste direito como compreendendo a autonomia individual e a autodeterminação, conferindo a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida. Para esta posição o direito ao desenvolvimento da personalidade protege, em termos gerais, a faculdade de cada pessoa dispor das suas posições jurídicas de direitos fundamentais371. 2.3. Posição adoptada: o concurso de direitos fundamentais Como já tivemos oportunidade de referir, tem-se entendido que o poder 369 MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, cit., p. 76. Ver também JÜRGEN HABERMAS, Between Facts and Norms. Contribution to a Discourse Theory of Law and Democracy, cit., pp. 160 e 161. Dentro das questões éticas distingue-se ainda entre “’questões ético-existenciais’ e as ‘questões ético-políticas’. As questões ético-existenciais “referem-se ‘à apropriação consciente e autocrítica’ da história de vida individual’, as questões ético-políticas, ’à apropriação consciente e autocrítica’ da história de vida colectiva”, sendo que “[o] direito geral de personalidade, interpretado como direito de autodeterminação ético-existencial, [se] projecta (…) sobre as escolhas em que se encontra em causa o sentido da vida e da morte”. A “’concretização’ do direito geral de personalidade em tais casos” traduz-se na expressão “’direito de autodeterminação bioética’”. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 90, 96 e 97. 370 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” –Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87. 371 MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p.478; HELMUT QUARITSCH, “Der Verzicht im Verwaltungsrecht und auf Grundrechte”, cit., p. 410. 98 de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, de um autónomo direito ao desenvolvimento da personalidade, destes dois em conjunto, ou ainda do conteúdo de autonomia ínsito em cada um dos direitos fundamentais em especial. Agora que já densificamos o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao desenvolvimento da personalidade torna-se mais simples encontrar uma resposta para o problema da fundamentação jurídica do poder de disposição em que se concretiza a renúncia. Partindo das considerações que fizemos até aqui, constatamos que quem defende que o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento da renúncia considera precisamente que a dignidade visa garantir a autonomia, sendo que é no exercício dessa autonomia que o indivíduo pode estabelecer limitações à sua liberdade que o Estado não poderia impor unilateralmente. Já os que fundamentam o poder de disposição no direito ao desenvolvimento da personalidade partem da ideia de que este direito, uma vez que compreende a autonomia individual e a autodeterminação e confere a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida, protege também, em termos gerais, a faculdade de cada pessoa dispor sobre as suas posições jurídicas de direitos fundamentais. Há ainda quem defenda que o direito a renunciar assenta simultaneamente no princípio da dignidade e no direito ao desenvolvimento da personalidade. Para esta posição, se a dignidade da pessoa humana garante a autonomia pessoal e, consequentemente, serve o desenvolvimento da personalidade, fará sentido ancorar o direito a renunciar nestes dois preceitos372. Finalmente, quem funda o poder de disposição nos direitos 372 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 71. Será o caso de KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 907. Quer a doutrina quer a jurisprudência alemãs sustentam que o direito geral de personalidade resulta da conjugação do princípio da dignidade com o direito ao desenvolvimento da personalidade. Ver THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., p. 100; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 86; HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, cit., p. 1208. Assim sendo, quem entende que o poder de disposição individual é uma decorrência destas duas disposições vai no mesmo sentido dos que defendem que a renúncia se fundamenta no direito geral de personalidade. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 90, considera, por exemplo, que “a renúncia a direitos fundamentais obtém a sua legitimação constitucional através do direito geral de personalidade, que abrange uma esfera nuclear de autónoma autodeterminação”. 99 fundamentais em especial considera que as normas de direitos fundamentais encerram um “conteúdo de autonomia” específico, na medida em que o direito de autodeterminação, protegido em termos gerais pelo direito ao desenvolvimento da personalidade, se manifesta em cada um destes direitos373. Para esta perspectiva, “da própria dignidade e do princípio da autonomia e de auto-determinação individual - que integram e moldam de algum modo o cerne de todos os direitos fundamentais - decorre o poder de o titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a enfraquecer, quando desse enfraquecimento (…) espera retirar benefícios que de outra forma não obteria”374. Em consequência disso, os direitos fundamentais “garantem aos particulares (…) uma margem estatalmente indisponível e incomprimível de autonomia e liberdade individuais”375. Assim, todas estas perspectivas, quer as que baseiam o direito à renúncia no princípio da dignidade, quer as que o esteiam no direito ao desenvolvimento da personalidade, nestes dois em conjunto ou nos direitos fundamentais especiais, “partem fundamentalmente da mesma ideia: o que está na base da renúncia é a autonomia, o gozo da autodeterminação individual”. A divergência é apenas em qual dos direitos fundamentais deverá preferencialmente assentar a renúncia. Para a primeira perspectiva acentua-se “o significado da autonomia para a dignidade”, enquanto a segunda realça “o significado da autodeterminação para o desenvolvimento da personalidade”. Já quem sustenta que a renúncia se deve fundar nos próprios direitos 373 WOLFRAM HÖFLING – STEPHAN RIXEN, Verfassungsfragen der Transplantationsmedizin, Mohr Siebeck, Tübingen, 1996, p. 85; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 153. 374 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287. 375 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 602 e 603. Este Autor defende uma concepção dos “direitos fundamentais como trunfos”, partindo da ideia de Dworkin “segundo a qual ter um direito fundamental equivale, em Estado de Direito, a ter um trunfo num jogo de cartas.(…) Aplicada ao sistema jurídico de Estado de Direito (…) ter um direito fundamental significará, então, ter um trunfo contra o Estado” (e, para quem defende a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, contra particulares), o que significa “ter um trunfo contra a maioria”. Os direitos como trunfos valem “contra qualquer pretensão estatal em impor ao indivíduo restrições da sua liberdade em nome de concepções de vida que não são as suas e que, por qualquer razão, o Estado considere merecedoras de superior consideração”. JORGE REIS NOVAIS, “Direitos como trunfos contra a maioria”, cit., pp. 17 e 28. Ver também RONALD DWORKIN, A Matter of Principle, cit., p. 198. 100 fundamentais em causa salienta o facto de estes protegerem “o desenvolvimento autónomo do indivíduo num determinado âmbito específico da vida humana”376. Ora se, como vimos, existe uma relação incindível entre o princípio da dignidade e a autodeterminação individual e sendo os diferentes direitos fundamentais “derivações e concretizações da dignidade da pessoa humana, tal significa que a autonomia está presente no âmbito de protecção de todos os direitos fundamentais e cada uma das referidas perspectivas tem uma certa razão”. Sendo que “o comportamento, no qual se manifesta a renúncia, cabe no âmbito de protecção de todos os direitos aqui referidos, a questão que se coloca é a de saber se algum deles deve ter precedência ou se se devem aplicar todos em conjunto e lado a lado”377. A “concepção antropológica” consagrada na Constituição da República Portuguesa “é a do humanismo ocidental”, ou seja, é uma “concepção liberal moderna”, o que implica que “se deve entender o princípio da dignidade da pessoa humana (…) como o princípio de valor que está na base do estatuto jurídico dos indivíduos e confere unidade de sentido ao conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais”378. Sendo o princípio fundamento destes direitos379, tal implica que existe um conteúdo de dignidade ínsito em cada 376 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 75. 377 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 75. 378 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 cit., pp. 93 – 104; também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Direitos e garantias fundamentais”, in MÁRIO BAPTISTA COELHO (coord.) Portugal. O Sistema Político e Constitucional, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1989, pp. 688 – 690. Nesse sentido, ver também JOSÉ CASALTA NABAIS, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa”, in Por Uma Liberdade com Responsabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 72 e 73. Considerando que o princípio da dignidade vale como penhor da unidade de sentido de todos os direitos fundamentais, ver FRANCISCO LUCAS PIRES, Uma Constituição para Portugal, cit., pp. 17 e 27 ss; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 197; ISABEL MOREIRA, “Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais”, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – LUÍS MENEZES LEITÃO – JANUÁRIO COSTA GOMES, (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 124 e 125, defende que o princípio da dignidade da pessoa humana é o elemento unificador do sistema constitucional. 379 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 97, estabelece que “o princípio da dignidade (…) está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadores e dos direitos a prestações sociais”, embora possa “ser diferente o grau de vinculação dos direitos àquele princípio”. Ver também PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I, Identidade Constitucional, 101 direito fundamental em especial. Tem-se sustentado, no entanto, que não há, “na ordem constitucional portuguesa, um direito ‘subjectivo à dignidade’”, sendo que o sentido a conferir a este princípio “será antes do mais objectivo”, “na exacta medida em que são sempre objectivos os critérios últimos de legitimidade do poder político estadual”. Tal como está consagrado na nossa Constituição, “o princípio da dignidade acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (…) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento directo de posições jurídicas subjectivas”380. Assim, “só subsidiária e excepcionalmente (…) se poderá falar, Almedina, Coimbra, 2010, p. 35. Considerando, no entanto, “particularmente nebulosa (…) a ideia segundo a qual a dignidade da pessoa humana é a fonte de todos os direitos fundamentais”, por entender que nem todos os direitos fundamentais apresentam contacto directo com o princípio, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., pp. 325 e 326. 380 MARIA LÚCIA AMARAL, “O princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência constitucional”, cit., pp. 4 e 5. Essa é também a posição do TC, no já citado Acórdão n.º 101/09. Este Tribunal diz que “o princípio da dignidade da pessoa humana surge, não como um específico direito fundamental que poderia servir de base à invocação de posições jurídicas subjectivas, mas antes como um princípio jurídico que poderá ser utilizado na concretização e na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados ou na revelação de direitos fundamentais não escritos”. Nesse sentido, ver também JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”, in AAVV, O Provedor de Justiça – Novos Estudos, Provedoria de Justiça, Lisboa, 2008, p. 261; ANDREIA SOFIA ESTEVES GOMES, “A dignidade da pessoa humana e o seu valor partindo da experiência constitucional portuguesa”, in JORGE MIRANDA – MARCO ANTÓNIO MARQUES DA SILVA (coords.), Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Quartier Latin, S. Paulo, 2008, p. 32. Também na doutrina “mais consolidada” do Tribunal Constitucional espanhol se tem atribuído o “carácter de valor jurídico fundamental ou/e de bem constitucional, não de direito”. Nesse sentido, ver EULALIA PASCUAL LAGUNAS, Configuración Jurídica de la Dignidad Humana en la Jurisprudência del Tribunal Constitucional, cit., p. 34. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 315, sustenta que “só em termos de uma reserva última se poderia conceder que o princípio essencialmente objectivo da dignidade da pessoa humana pudesse ser configurável na CRP como direito fundamental”. Segundo o Autor, esta norma, “quando remotamente configurável como regra, à luz da praxis constitucional, (…) tem desempenhado um papel de critério último”. Em relação ao ordenamento jurídico alemão, ver também PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., pp. 183 e 184; JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, in AöR, Vol. 131, 2006, pp. 191 e 209. HORST DREIER (org.), Grundgesetz Kommentar, cit., pp. 208 e 209, considera que o afastamento da qualidade de direito fundamental “não implica qualquer défice de protecção jurídica”. Nesse sentido, também THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., pp. 82 – 84; CHRISTOPH ENDERS, Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung, Mohr Siebeck, Tübingen, 1997, p. 117. Defendendo, por outro lado, que o princípio da dignidade contém um direito subjectivo à dignidade, ver GERRIT MANSSEN, Grundrechte, Verlag C. H. Beck, München, 2000, p. 48, que entende, no entanto, que essa qualificação apenas releva para a possibilidade de recurso à queixa constitucional; também ROLF SCHMIDT, Grundrechte, cit., p. 117. ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 120, defende que parece dificilmente compatível com a ideia de que a dignidade é “o valor jurídico supremo protegido pela Constituição” considerar-se que o indivíduo que vê a sua dignidade afectada 102 no quadro da CRP, de uma violação autónoma da dignidade”, na medida em que este princípio se projecta “no âmbito de protecção dos direitos fundamentais”381. A partir do momento em que se considera que os direitos fundamentais em especial são “concretizações e manifestações da dignidade da pessoa humana”, parece que se deverá entender que não é necessário, em princípio, para a protecção dessa mesma dignidade, recorrer à disposição constitucional que a consagra382, uma vez que a autonomia está presente no âmbito de protecção de cada um dos direitos383. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento do poder de disposição sobre posições de direitos fundamentais, mas apenas indirectamente, na medida em que esse poder assentará sobretudo no conteúdo de dignidade presente nos próprios direitos384. Graças à maior concretização dos direitos fundamentais em especial, estes devem gozar de precedência na aplicação385. Esta precedência não significa, no entanto, “subsidiariedade em sentido estrito”. O princípio da dignidade não está, no que se refere aos restantes direitos fundamentais, “numa relação de concorrência equivalente” à que existe entre estes direitos e o direito ao desenvolvimento da personalidade. Na lesão de um bem jurídico protegido por uma norma de direitos fundamentais, que ponha em causa as “condições básicas da existência ou de desenvolvimento não tem um direito subjectivo público para se defender de tais agressões. Nesse sentido, ver ainda NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., p. 140. 381 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 720. 382 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 77. 383 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 75. Considerando que o princípio da dignidade é “critério teleológico de interpretação e aplicação dos direitos da pessoa como pessoa”, ver PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I, Identidade Constitucional, cit., p. 42. 384 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 77. 385 WOLFRAM HÖFLING, “Artikel 1”, in MICHAEL SACHS (org.), Grundgesetz Kommentar, 4.ª Edição, Verlag C. H. Beck, München, 2007; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., p. 483, afirma que “o conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana” está “distribuído pela generalidade das normas de direitos fundamentais da Constituição (através das quais é, aliás e em primeira mão esclarecido), normas estas que beneficiam de óbvia primariedade aplicativa”. 103 da pessoa”, está sempre presente “uma lesão inadmissível da dignidade”386. O princípio da dignidade não se encontra, por isso, numa “relação técnico-jurídica de subsidiariedade” com os restantes direitos fundamentais, mas antes numa “relação de fundamentalidade”. É “princípio orientador, máxima interpretativa e princípio condutor para a compreensão destes direitos”387. Por outro lado, alguma doutrina considera que só o direito ao desenvolvimento da personalidade poderia fundamentar o poder de disposição sobre posições de direitos fundamentais, pois uma coisa “é o exercício de direitos fundamentais, que é puramente fáctico, e outra a renúncia, que abrange a capacidade de regular os próprios assuntos de forma juridicamente vinculante”388. No entanto, se entendermos que o direito ao desenvolvimento da personalidade “visa proteger a esfera da vida pessoal, os seus pressupostos fundamentais e o livre desenvolvimento em autodeterminação dos perigos que não conseguem ser totalmente abarcados pelas garantias de liberdade concretas”, parece que fará sentido “recorrer primeiro aos vários direitos e só quando tal não seja possível ao direito geral da personalidade”389. Tendo em conta que a CRP previu direitos específicos para aspectos particulares da vida humana, será, em princípio, suficiente a autodeterminação 386 WOLFRAM HÖFLING, “Artikel 1”, cit., p. 97. Nesse sentido, também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 75. 387 HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 226. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 77, entende, por seu lado, que temos aqui uma relação que se pode, pelo menos, “equiparar à relação de especialidade que estabelece uma precedência na aplicação dos direitos especiais”. 388 Ver MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 79. Será o caso de GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 225, que considera, em consequência disso, que a renúncia a direitos fundamentais é garantida pelo direito geral de personalidade. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 26 ss, entende que é de afastar a ideia de que a liberdade para consentir na lesão de um bem é sempre protegida pelo direito fundamental especial que protege esse bem. Assim, a competência para “abandonar” um bem jurídico não se identifica com a sua protecção. Segundo ele, a liberdade para consentir funda-se na liberdade geral de acção. Nesse sentido, ver também MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 512, nota 443. 389 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 78. JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, cit., p. 211, defende também que “a liberdade geral de acção é concebida como tendo natureza subsidiária, só sendo aplicável quando não haja direitos fundamentais específicos que protejam os domínios considerados”. 104 presente nos vários direitos nela consagrados390. O direito ao desenvolvimento da personalidade só deve ser invocado se não se puder reconduzir a situação concreta ao âmbito de protecção de um direito fundamental em especial391. A relação que se estabelece entre o direito ao desenvolvimento da personalidade e os restantes direitos fundamentais é uma “relação entre lex generalis e lex specialis”392. Estamos perante “concorrência inautêntica (…) quando uma das várias normas consagradoras de direitos fundamentais é uma norma especial em relação às outras”393. Assim, caindo o caso em análise na previsão normativa de um direito especial de liberdade o direito ao livre desenvolvimento da personalidade não deve ser chamado, em virtude da regra da subsidiariedade394. Só quando se 390 Referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 79. 391 BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 111; ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, cit., p. 96. O TC diz expressamente, no Acórdão n.º 471/01, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/ acordaos01/401-500/47101.htm, que se torna “desnecessário o recurso ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade, enquanto cláusula geral da protecção da liberdade, quando as normas constitucionais «prevejam liberdades ‘especiais’, referidas a cada aspecto da vida», como é o caso, que expressamente refere, das ‘manifestações de liberdade pessoal, prevista no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição’”. 392 Nesse sentido, SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais. Sumários, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2002, p. 39; MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 187; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 53. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., pp. 557 e 558, relativamente ao direito geral da personalidade consagrado no art. 70.º do CC, entende que as normas “dos arts. 72.º a 80.º do CC, que reconhecem direitos especiais de personalidade”, “revestem manifestamente o carácter de leges speciales”. Este Autor refere ainda que, uma vez que os direitos, liberdades e garantias são também directamente aplicáveis nas relações entre particulares, “ao regularem especificamente e com efeitos civis, aspectos parcelares básicos da personalidade, acabam também por funcionar (…), num certo sentido, como leges speciales relativamente ao direito geral de personalidade”. Em sentido contrário, ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., p. 130; HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, cit., p. 1196; DETLEF MERTEN, “Das Recht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit”, cit., p. 347; ALBERT BLECKMANN, Staatsrecht II, Die Grundrechte, 4.ª Edição, Carl Heymanns Verlag, KG, Köln, Berlin, Bonn, München, 1997, p. 592. 393 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1269. 394 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 72. No caso da eutanásia, por exemplo, muitas vezes se diz, no entanto, que não se pode retirar da disposição que consagra o direito à vida um direito a morrer. Sobre esta questão, ver, por exemplo, o caso Pretty v. Reino Unido, http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item= 1&portal=hbkm&action=html&highlight=PRETTY&sessionid=46308854&skin=hudoc-en, relativo ao auxílio ao suicídio, no qual o TEDH entendeu que o direito à vida não consagra “um direito à morte”, mas considerou também “não estar preparado” para excluir que a proibição legal da 105 renuncia a posições jurídicas não protegidas por algum dos direitos fundamentais em especial é que se deve recorrer ao direito ao desenvolvimento da personalidade395. Quando seja pertinente chamar à colação este direito, a renúncia deverá fundamentar-se na liberdade geral de acção, no que se refere às formas de conduta “motivadas exclusiva ou preponderantemente por ‘razões pragmáticas’”, ou no direito geral de personalidade, no que diz respeito “às formas de conduta motivadas, exclusiva ou preponderantemente por ‘razões éticas’”396. eutanásia “possa constituir uma ingerência no direito ao respeito da vida privada”. Sobre esta decisão, ver ANA MARIA GUERRA MARTINS, Direito Internacional dos Direitos Humanos, Almedina, Coimbra, 2006, p. 203; IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 69. O direito aqui invocado é o do respeito da vida privada porque os órgãos da Convenção têm adoptado uma noção extensiva deste direito, salvaguardando não apenas a protecção do segredo da vida privada mas também a liberdade da vida privada. Ver ANDRÉ ROUX, La Protection de la Vie Privee dans les Rapports entre l’Etat et les Particuliers, Economica, Paris, 1983, p. 15; PIERRE KAYSER, La Protection de la Vie Privée, Presses Universitaires d’Aix Marseille, Marseille, 1995, pp. 16 e 17; G. COHEN JONATHAN, “Respect for Private and Family Life”, in R. ST. J. MACDONALD – F. MATSCHER – H PETZOLD (eds.), The European System for the Protection of Human Rights, Kluwer Academic Publishers, Netherlands, 1993, pp. 409 – 411. Sobre este direito, ver ainda, mais desenvolvidamente, CARLOS RUIZ MIGUEL, El Derecho a la Protección de la Vida Privada en la Jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, Editorial Civitas, S. A., Madrid, 1994. 395 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 927. Considerando que o direito geral de personalidade se traduz na “tutela abrangente de todas as formas de lesão de bens da personalidade independentemente de estarem ou não tipicamente consagrados”, ver RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 283. No que se refere ao Direito Civil, face ao direito positivo português parece-nos inegável a existência de um direito geral de personalidade, “que abrange todas as manifestações previsíveis e imprevisíveis da personalidade humana”. Nesse sentido, ORLANDO CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 90. A consagração desta protecção geral da personalidade permite, assim, conceder tutela “a bens da personalidade não tipificados”. Isto sem prejuízo da existência de direitos especiais de personalidade, sobre determinados bens jurídicos integrantes dessa personalidade. Ver PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 491; RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, “A Constituição e os direitos de personalidade”, in JORGE MIRANDA (coord.), Estudos sobre a Constituição, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, pp. 165 e 166; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 46 – 48; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., p. 98. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 516, entende que “seria sempre redutora, espartilhadora e heterónoma uma tutela juscivilística da personalidade assente em tipos legais ‘fechados’ mesmo que múltiplos”. Em sentido contrário, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 80 – 82; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução. As Pessoas. Os Bens, cit., pp. 87 e 88; GUILHERME MACHADO DRAY, Direitos de Personalidade. Anotações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2006. 396 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” –Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87. 106 O direito a renunciar deve, então, ancorar-se nos direitos fundamentais em especial397, ou seja, deriva do próprio direito renunciado, uma vez que o poder de disposição em que se traduz a renúncia se funda no conteúdo de autonomia ínsito em cada um destes direitos398. Capítulo III: Condições da renúncia Sendo que consideramos que o poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais vai até à admissibilidade da renúncia, vamos neste capítulo determinar quais as condições indispensáveis para que uma dada renúncia possa ter lugar. 1. A voluntariedade da declaração de renúncia Antes do mais, a renúncia a direitos fundamentais pressupõe “a existência de uma declaração de vontade dirigida e apta a produzir o enfraquecimento de uma posição jurídica protegida por norma de direito fundamental”399. É através dessa declaração que quem renuncia manifesta que autoriza a ingerência no seu bem jurídico por um terceiro. A declaração de vontade implica fundamentalmente “um momento de voluntariedade”400, pelo que se impõe que o titular do direito disponha sobre a 397 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 81; também JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 123; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., pp. 927. 398 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 285 ss e 299; WOLFRAM HÖFLING – STEPHAN RIXEN, Verfassungsfragen der Transplantationsmedizin, cit., p. 85. Sobre a posição destes dois últimos Autores, ver também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 153. ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 57, afirma que “para se poder construir correctamente o problema da renúncia a direitos fundamentais é necessário analisar mais de perto as estruturas dos direitos de liberdade”. Segundo o Autor, “estas liberdades, ao contrário do que considera a doutrina maioritária, não asseguram primariamente direitos de defesa. Com o seu âmbito de protecção asseguram em primeira linha, sobretudo, um espaço de liberdade determinado”. 399 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 302. 400 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 38. A Autora 107 sua posição jurídica de forma livre e autodeterminada401. Se, como vimos, a renúncia se funda no conteúdo de autonomia presente nos vários direitos fundamentais, o reconhecimento da faculdade de dispor apenas se justifica na medida em que esta seja ainda manifestação dessa mesma autonomia402. Partimos, obviamente, da possibilidade da voluntariedade da renúncia. Constatamos já que a Constituição “coloca a dignidade e com ela a autonomia em primeiro plano”. Deve, por isso, “para a interpretação do conceito normativo de voluntariedade” partir-se deste “axioma constitucional”, ou seja, “da possibilidade de princípio da liberdade e da autodeterminação de cada indivíduo e não de considerações deterministas”403. O sistema jurídico assenta na atribuição de responsabilidades aos actores pelas suas próprias decisões, desde que não existam “circunstâncias extremas que impliquem que as dificuldades em se ser responsabilizado por aquilo que se faz sejam de tal ordem (…) que a lei caracterize essas acções como sendo heteronomamente causadas em vez de autonomamente iniciadas ou pelo menos controláveis pelo indivíduo”404. Para a questão da voluntariedade da renúncia interessa-nos apurar quais os requisitos que os outros ramos do direito estabelecem quanto à relevância da vontade, para avaliarmos se podem ser transponíveis para a problemática que estamos a tratar405. Ainda que as normas de Direito Civil e de considera que, na medida em que uma renúncia não voluntária se traduz numa outra coisa que não numa renúncia, a característica da voluntariedade é relevante logo no momento da determinação do conceito. Nesse sentido, também MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 475 e 476; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 913 ss. Ver também, sobre esta questão, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 302, nota 71. 401 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ’volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926. 402 OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, in HUGUES DUMONT – FRANÇOIS OST – SÉBASTIEN VAN DROOGHENBROECK (eds.), La Responsabilité, Face Cachée des Droits de l’Homme, Bruylant, Bruxelles, 2005, p. 442. 403 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 39 e 40. Sobre os diversos sentidos da palavra liberdade e a dificuldade em determinar o seu significado, ver MAURICE CRANSTON, Freedom, 3.ª Edição, Longmans Green, London, 1967. 404 WINFRIED BRUGGER, “Dignity, Rights and Philosophy of Law within the Anthropological Cross of Decision-Making” in German Law Journal, Vol. 9, n.º 10, 2008, www.germanlawjournal.com, p. 1250. 405 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 40. 108 Direito Penal não possam ser encaradas “como parâmetros interpretativos das normas constitucionais (a proposição inversa é que é a correcta)” e não seja adequado transpor sem mais as exigências de outros ramos do direito para o Direito Constitucional, a verdade é que “a ideia da limitação voluntária dos direitos e da relevância do consentimento como causa geral de exclusão da ilicitude está há muito afirmada na legislação civil e penal (…), onde também surgem normas sobre as condições de validade e limites de relevância da disposição e do consentimento”. Essas normas “referem-se justamente às condições de vontade livre e esclarecida (…) em termos semelhantes aos propostos ao nível do Direito Constitucional”, pelo que iremos tê-las em conta, ainda que criticamente, para a análise dos requisitos a que deve obedecer a declaração de renúncia, uma vez que “revelam o resultado decantado da prática jurídica de séculos, que merece, em regra, uma presunção de constitucionalidade”406. Tanto o Direito Civil como o Direito Penal protegem, no seu domínio, bens jurídicos dos cidadãos garantidos pelos direitos fundamentais, pelo que “a congruência entre direitos fundamentais e ordem jurídica privada é, por isso, normal”407. Não pretendemos, obviamente, fazer uma análise desenvolvida destas questões, uma vez que cada uma delas justificaria um tratamento muito mais aprofundado. Para além disso, a nossa perspectiva é a do Direito Constitucional, pelo que não temos qualquer pretensão de tratar estes 406 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 312, nota 114. Considerando, no entanto, “que recorrer às normas de Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo relativas à renúncia de forma a retirar daí, pelo caminho da analogia jurídica, um princípio geral para o âmbito do Direito Constitucional não parece ser um caminho possível porque as regras de direito ordinário têm de legitimar-se através da interpretação do Direito Constitucional”, ver ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59. GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 187 e 188, entende que “qualquer solução para esta questão deve partir de um genuíno princípio de Direito Constitucional. O direito fundamental é distinto de todos os outros direitos subjectivos quanto à sua dignidade e essência, pelo que seria infrutífero (…) procurar paralelos nos modelos de solução do Direito Civil ou do Direito Administrativo para o problema da renúncia a direitos fundamentais”. Pelo contrário, é para ele relevante “o conceito de consentimento do Direito Penal como núcleo do princípio que constitui a ideia jurídica geral de que volenti non fit iniuria”. 407 WOLFGANG RÜFNER, ”Drittwirkung der Grundrechte, Versuch einer Bilanz”, in PETER SELMER – INGO VON MÜNCH (orgs.), Gedächtnisschrift für Wolfgang Martens, Walter de Gruyter, Berlin, 1987, pp. 216 e 217. 109 problemas autonomamente. Veremos apenas aquilo que nos parece relevante e eventualmente transponível para a problemática que nos ocupa. Julgamos, então, antes do mais, relevantes nesta sede as regras civilistas relativas à limitação voluntária de direitos de personalidade, até porque estes direitos são considerados “o correspondente privatístico para a tutela de certos bens da personalidade pela Constituição”408. Em termos muito gerais, os direitos de personalidade são um conjunto de direitos subjectivos que incidem sobre a própria pessoa ou sobre “os vários modos de ser, físicos ou morais”, dessa personalidade409. É entendimento dominante na doutrina que estes direitos não são alienáveis nem renunciáveis (significando aqui renúncia, como vimos, a extinção do direito por força do seu abandono voluntário)410, “devido ao seu carácter de ‘essencialidade’”411, 408 PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 483. Considerando que a maioria dos direitos, liberdades e garantias são direitos de personalidade, ver JOÃO CASTRO MENDES, “Direitos, liberdades e garantias – alguns aspectos gerais”, in Estudos sobre a Constituição, Vol. 1, Livraria Petrony, Lisboa, 1977, p. 111. No entanto, apesar de haver “largas zonas de coincidência”, direitos fundamentais e direitos de personalidade são realidades distintas. Por um lado, os direitos fundamentais “pertencem ao domínio do Direito Constitucional”, tendo mecanismos próprios de tutela constitucional, enquanto os direitos de personalidade pertencem ao Direito Civil. Ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 69. Tal leva a que as previsões do Código Civil referentes a direitos de personalidade valham apenas “nas relações paritárias entre os particulares, ou entre os particulares e o Estado, destituído do seu ius imperii”. Para além disso, são tutelados através dos mecanismos coercivos juscivilísticos. Por outro lado, há vários direitos fundamentais que, “por não terem como objecto tutelado directamente a personalidade humana”, não se reconduzem a direitos de personalidade. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., pp. 584 e 585. Sobre esta questão, ver ainda JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução. As Pessoas. Os Bens, cit., pp. 74, 75, e 102 ss. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Teoria da Constituição, Vol. II, Verbo, 2000, p. 228, sustenta que os direitos de personalidade são “a manifestação privatística dos direitos fundamentais”. No entanto, para o Autor estes não são “a sua versão publicística, mas antes os direitos fundamentais em geral”. 409 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição (por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO – PAULO MOTA PINTO), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 208. 410 Uma vez que, como já tivemos oportunidade de referir, julgamos que não faz sentido adoptar uma concepção restritiva a priori do conceito de renúncia, o que implica que não se devam excluir, à partida, situações de renúncia que impliquem a extinção do direito, levantamos a questão de saber se assumir de uma forma absoluta a irrenunciabilidade dos direitos de personalidade não será uma solução demasiado restritiva. As “normas positivas que no Direito ordinário admitem ou excluem a renúncia a direitos sobre bens protegidos por normas de direitos fundamentais são elas próprias sindicáveis à luz da sua conformidade aos os princípios constitucionais” relativos a esta matéria. Ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 264. 411 ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 53. 110 podendo o titular, no entanto, consentir em alguma medida na sua limitação412. Esta “faculdade de consentir a lesão de um direito está compreendida na faculdade de disposição, entendida (…) como faculdade de determinar o destino do direito subjectivo”413. Assim, tem-se defendido que a irrenunciabilidade dos direitos de personalidade não impede a relevância do consentimento do lesado. Este consentimento “é dado a uma ou mais pessoas, as quais poderão assim, legitimamente, efectuar a lesão sem que isso implique a extinção do direito”414. Sustenta-se que os direitos de personalidade, enquanto direitos subjectivos, se traduzem em “posições de liberdade” reconhecidas ao seu beneficiário, pelo que se devem considerar disponíveis415. O consentimento para a limitação voluntária dos direitos de personalidade exprime-se através de uma declaração negocial, estando sujeito ao regime geral previsto no Código Civil (CC). Assim sendo, defende-se que “são aplicáveis, quer o princípio da liberdade declarativa (…), quer o princípio 412 Estes direitos exprimem o “’minimum’ necessário e imprescindível” do conteúdo da personalidade, sendo, por isso, essenciais. Nesse sentido, ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 17. Trata-se, por outro lado, de direitos gerais, isto é, de direitos de que são titulares todos os seres humanos. Além disso, os direitos de personalidade são direitos absolutos porque se lhes contrapõe uma obrigação universal e são também direitos pessoais, ou seja, direitos ligados, directa e incindivelmente, à pessoa do seu titular, não sendo, por isso, transmissíveis, inter vivos ou mortis causa. Ver, mais desenvolvidamente, CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição (por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO – PAULO MOTA PINTO), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 207 ss; JOSÉ CASTAN TOBEÑAS, Los Derechos de la Personalidad, Instituto Editorial Reus, Madrid, 1952, p. 23; ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 89; PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 482 e 483; RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, “A Constituição e os direitos de personalidade”, cit., pp. 94 – 98; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 10 – 15. 413 ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 54. Sobre esta questão, ver também CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, cit., p. 215; ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 89. PAULO MOTA PINTO, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), A Constituição Concretizada, Construindo Pontes com o Público e o Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2000, pp. 81 e 82, defende que não é correcto falar (…) em disposição dos direitos de personalidade, pois a limitação é sempre revogável. Uma execução específica da limitação convencional atentaria contra os mais elementares direitos da pessoa”. Por outro lado, considera que “não se poderá recorrer a meios de coerção ao cumprimento, como a sanção pecuniária compulsória”. 414 ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 53. 415 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, cit., p. 107. 111 da liberdade de forma”. Para além disso, a declaração de consentimento para a limitação voluntária pode ser expressa ou tácita, impondo-se “que se preste especial atenção à verificação da integridade do consentimento”, atendendo à “natureza pessoal dos interesses em causa”416. Ainda que o consentimento seja válido, “não poderá ter lugar uma execução em forma específica” e este pode sempre “ser revogado, com indemnização dos prejuízos causados às expectativas legítimas da outra parte”417. Tem-se entendido que no consentimento para a limitação voluntária “a tutela dos interesses do comércio jurídico ou da contraparte não merece (…) a protecção que se dá no domínio dos negócios jurídicos em geral, admitindo-se (…) a livre revogabilidade do consentimento a todo o tempo418. Finalmente, a declaração de limitação voluntária pode “ser anulada ou objecto de uma declaração de nulidade (…) com fundamento nas regras sobre (…) falta ou vício de vontade”419. Quanto ao Direito Penal, vimos já que o consentimento é uma causa de exclusão da ilicitude. Este só constitui um verdadeiro acto de autodeterminação se, tal como refere o n.º 2 do art. 38.º do Código Penal (CP), traduzir “uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido”420. A disposição estabelece ainda que o consentimento pode ser dado por qualquer meio e revogado até à realização da actividade consentida421. Também neste âmbito se consagra a liberdade de forma e se realça a garantia da integridade do consentimento. Assim, fazendo o paralelo com as disposições relativas à declaração 416 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 539. 417 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 216; PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 552 – 554; FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 110. 418 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., p. 154; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 208 e 209. 419 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 540; FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., pp. 110 e 304. 420 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 484. 421 EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, p. 27. 112 negocial e ao consentimento, deverá entender-se que, em princípio, a forma jurídica da renúncia não é relevante desde que seja suficientemente explicitado o conteúdo da declaração422. Haverá, no entanto, excepções nos casos em que a lei exige uma determinada forma, como acontece, por exemplo, no consentimento para a prática de determinados actos médicos. A renúncia pode ser expressa ou tácita, mas já não ficta423, uma vez que “a dedução de uma vontade de actuação ou vontade contratual deve ser possível”424. Nas situações em que a renúncia se retira de um “comportamento concludente” esse comportamento tem de ser “claro ao ponto de que dele se possa inequivocamente inferir uma vontade de renúncia”425. Quando não se verifique “uma declaração de renúncia individual e concreta, expressa ou tácita, só em casos extremos a vontade de aceitação da restrição pode ser presumida”426. O “consentimento presumido” não é, por isso, em princípio, suficiente, “mesmo que aparentemente possa invocar-se o interesse da pessoa”427. Vimos já também que renúncia deverá ser, em princípio, livremente revogável428, o que poderá originar “uma obrigação de indemnizar os prejuízos causados”429. Há, no entanto, direitos que pela sua natureza excluem a livre 422 GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 184 e 185; também KNUT FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, cit., pp. 9 e 10. 423 Em sentido contrário, GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926. 424 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 37. 425 DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 68. Também JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 303, considera que a declaração de renúncia poderá ser expressa ou tácita, mas sempre inequívoca e concludente. 426 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 309. 427 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 310 e 311 e nota 111. Este Autor refere que “o consentimento presumido tem, [no entanto], uma larga aplicação em determinados domínios, como o dos tratamentos médicocirúrgicos”. 428 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 312; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465; LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, cit., p. 137. 429 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 312; LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, cit., p. 137. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 277, nota 22, defende que nos casos em que se considerasse admissível a renúncia à própria titularidade do direito esta implicaria também “a perda definitiva ou temporária do direito, 113 revogabilidade, implicando necessariamente uma renúncia definitiva. Para além disso, como também tivemos oportunidade de referir, poderá haver excepcionalmente situações nas quais a livre revogabilidade coloca algumas dúvidas, sob pena de estarmos perante uma situação de abuso do instituto. Por outro lado, “a renúncia manifesta-se sob a forma de uma declaração unilateral que pode, todavia, surgir como prestação ou contra-prestação no quadro de um contrato”430. Já no que se refere ao sentido a atribuir à declaração bem como ao regime da falta e dos vícios da vontade temos algumas dúvidas que se justifique, pelo menos sem as devidas adaptações, a aplicação a esse propósito dos “resultados apurados pela dogmática do direito civil”431. Segundo Paulo Mota Pinto, devemos entender por declaração negocial o “comportamento humano que, de um ponto de vista exterior, aparece como dirigido à produção de certos efeitos sob a tutela do Direito, adoptado com a consciência e intenção de incorrer por intermédio dele numa vinculação jurídico-negocial, ou da possibilidade de, aos olhos dos outros, ser visto como juridicamente vinculante”432. Há aqui claramente uma preocupação com exigências de certeza e segurança jurídicas que não devem ter a mesma relevância numa renúncia a direitos fundamentais433, pelo que a protecção plena do bem jurídico consoante o sentido temporal da renúncia, o que inibiria (…) a possibilidade da sua revogação a qualquer momento pelo titular do direito”. Vimos já, no entanto, que não estamos de acordo com esta posição. 430 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 303. 431 Em sentido contrário, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 303, sustenta que a “grande similitude da declaração de renúncia com o significado que apresenta a declaração negocial no contexto de um negócio jurídico de Direito privado (…) sugere e justifica a aplicação dos resultados a esse propósito apurados pela dogmática do Direito civil”.. RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 29, sustenta que, na medida em que a dogmática do direito público não está muito desenvolvida em matéria de vícios da vontade é de recorrer ao direito privado, onde estas questões foram mais desenvolvidas. Assim, entende que se deve aferir a vinculatividade da declaração de vontade de renúncia através dos “critérios clássicos do erro, do dolo e da coacção”. Também REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., pp. 183 e 189, considera que “a doutrina constitucional pode aproveitar os impulsos de direito privado”, uma vez que neste “se pensa desde há muito sobre os limites do poder de disposição individual”. 432 PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, Coimbra, 1995, p. 435, nota 491. 433 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., p. 139, por exemplo, no que se refere ao consentimento para a 114 autonomia, subjacente à renúncia, poderá efectivamente implicar o afastamento das regras de Direito Civil dirigidas à protecção das expectativas da contraparte434. Assim, parece fazer sentido procurar um conceito de declaração negocial funcionalmente adequado ao Direito Constitucional. Neste âmbito, as expectativas do declaratário não se devem sobrepor à vontade do declarante, pelo que estamos perante um equilíbrio de interesses distinto e que merece, um tratamento diverso435. Não podemos, por isso, aplicar sem mais à renúncia as regras de Direito Civil relativas à declaração de vontade, uma vez que temos de atender necessariamente à “especificidade, não só dos interesses que estão em jogo na renúncia a direitos fundamentais, como também da situação de desigualdade quase natural em que se encontram quem renuncia e quem beneficia da renúncia, ou a relevância das consequências jurídicas susceptíveis de serem produzidas na área de reserva absoluta que é a dignidade da pessoa humana”436. Parece-nos, portanto, que na renúncia poderá haver alguns desvios às regras civilistas relativas à declaração negocial, uma vez que não deve bastar a aparência da vontade para que se considere válida essa declaração. Quanto à interpretação da declaração negocial, “o objectivo da solução aceite na lei civil é [precisamente] o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir”, consagrando-se uma doutrina tendencialmente “objectivista”437. Não parece, prática de actos médicos, considera que este se consubstancia num “simples acto jurídico” e, nessa medida, não lhe são aplicáveis as normas da doutrina geral do negócio jurídico, que “são inspiradas pela tutela da confiança dos declaratários e dos interesses gerais do tráfico”. 434 PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, cit., pp. 426 e 427, entende que “a tutela das expectativas” está presente “na dogmática jurídico-negocial”. Ainda que o regime do negócio jurídico se inspire na ideia de autodeterminação, é evidente a preocupação do legislador com a “tutela da confiança especificamente negocial”. 435 Estas considerações poderão também ser extensíveis à limitação voluntária dos direitos de personalidade, questão que não iremos, no entanto, desenvolver, uma vez que ultrapassa o âmbito deste estudo. 436 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 304. 437 FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 223. O art. 236.º do CC estabelece que “o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal. (…) Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser 115 contudo, que tais considerações devam ser extensíveis à declaração de renúncia, uma vez que a “prevalência do sentido objectivo da declaração apenas se explica pela necessidade de proteger as legítimas expectativas do declaratário e não perturbar a segurança do tráfico”438. Em virtude disso, na interpretação da declaração de renúncia parece fazer sentido aplicar-se uma regra de interpretação mais subjectivista. A especificidade da renúncia tem também consequências no regime da falta e dos vícios da vontade, o que acarreta alguns desvios em relação ao regime de Direito Civil no sentido de alargar as possibilidades de invocação da invalidade da declaração439. imputável ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (…), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante”. 438 FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 223. Nessa medida, segundo os Autores, a orientação fixada neste artigo não vale em matéria de interpretação testamentária e também não deve considerar-se aplicável aos negócios que estão fora do comércio jurídico, nem aos actos jurídicos em que não procedam as razões justificativas do regime estabelecido. Assim sendo, parece-nos que também não deve valer na declaração de renúncia. 439 Ilustrando essa diferença, por exemplo, nos casos de erro na declaração (art. 247.º CC), a exigência da essencialidade do erro para a anulabilidade da declaração parece ser questionável nas declarações de vontade de renúncia. O mesmo se deverá aplicar aos casos de erro na transmissão (art. 250.º CC) e erro sobre a pessoa ou objecto do negócio (art. 251.º CC), na medida em que estas disposições remetem para o regime do erro obstáculo, ou seja, erro na declaração. Por outro lado, quanto ao erro sobre os motivos (art. 252.º CC), este só é relevante se as partes tiverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo. Ora temos também dúvidas que esse regime deva ser extensível à declaração de renúncia. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 47, considera, no entanto, que por razões de segurança jurídica um erro que se refira apenas a questões laterais não deve excluir a voluntariedade da renúncia. Também nos casos de dolo (art. 253.º CC), temos dúvidas que a distinção estabelecida nesta disposição entre dolus bonus e dolus malus seja relevante para a declaração de renúncia. Ainda nas situações de dolo de terceiro (art. 254.º, n.º 2) parece não haver razões para proteger expectativas do destinatário, assim como quanto à coacção moral (art. 255.º CC) deverá eventualmente considerar-se que qualquer das situações enunciadas no artigo poderá influenciar a formação da vontade. Finalmente, as exigências de gravidade do mal e fundamento do receio nos casos de coacção de terceiros parecem não fazem sentido para as situações de renúncia. Sobre a falta e vícios da vontade ver, mais desenvolvidamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, cit., pp. 575 ss; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral de Direito Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 653 ss; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 457 ss. Também no Direito Penal se entende que o consentimento não pode estar “inquinado por qualquer vício da vontade” para que seja eficaz. No que diz respeito à ameaça e coacção, tem-se considerado que deverão “conduzir à ineficácia do consentimento por meio delas obtido, se não em todos os casos (…) pelo menos sempre que a conduta tendente a obter o consentimento integre os tipos de crime de ameaça (art. 153.º CP) ou de coacção (art. 154.º CP)”, uma vez que “em casos deste teor será seguramente impossível considerar o consentimento como expressão da autonomia pessoal de quem ‘consente’”. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., pp. 485 e 486. Quanto ao engano (erro provocado), “só será eficaz o consentimento que, apesar do erro, 116 Assim, a renúncia só pode admitir-se se for resultado de uma “vontade livre, esclarecida”, “isenta de erro” e “inequívoca”440, mas essa voluntariedade pode, no entanto, ser por vezes dificilmente comprovável ou até duvidosa441. O problema está em determinar “quão voluntário é suficientemente voluntário”442. Para dar uma resposta a essa questão é, então, necessário aquilatar “a ausência de coacção”, seja “coacção física”, seja “coacção moral ou mesmo económica, quando se trate de uma pressão forte efectivamente exercida ou naqueles casos (…) em que exista um dever especial de protecção estadual”443. Com o reconhecimento de um direito a renunciar está-se simultaneamente a aumentar a “gama de alternativas” dos cidadãos, o que à partida parece favorecer a liberdade individual. Mas é preciso não esquecer que “este aumento de liberdade individual implica [simultaneamente] um aumento de vulnerabilidade”: tendo o indivíduo possibilidade de renunciar a possa ainda considerar-se expressão do exercício da autonomia pessoal sobre os bens jurídicos disponíveis”, ou seja, que “possa definir-se como manifestação de autonomia-referidaao-bem-jurídico”. Nesse sentido, mais desenvolvidamente, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 583 ss, em particular pp. 595 e 607, nota 108, onde o Autor refere que “não pode afirmar-se, sem mais, a irrelevância indiscriminada do erro não referido ao bem jurídico”, pois “tudo dependerá da circunstância de o erro precludir ou não o exercício de autonomia-referida-ao-bem-jurídico, que a incriminação visa em concreto preservar”. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 486, considera que nos casos de “estrito erro (espontâneo, não provocado), a doutrina se divide”. Para uns o erro será “irrelevante e, por conseguinte, o consentimento eficaz (salvo quando o erro seja conhecido do agente e por ele aproveitado ou quando sobre este impenda um dever jurídico de esclarecimento)”. Para outros, “deve valer para estas hipóteses uma doutrina paralela à que vale para o engano, sendo por conseguinte irrelevante para a questão da eficácia ou da ineficácia do consentimento o problema da origem do erro”. Seguindo esta última perspectiva, ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 616. 440 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 310; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 304; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 464. 441 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926. 442 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 113. Esta dificuldade está patente, por exemplo, no Zahnextraktionfahl. Neste caso, uma senhora que sofria de fortes dores de cabeça, ao contrário da indicação médica que lhe foi dada, pede que lhe retirem todos os dentes. A jurisprudência entendeu que a paciente que consentiu, devido às fortes dores crónicas de que padecia, não estava em condições de tomar essa decisão. Por outro lado, o Tribunal considerou que o consentimento dos pacientes deve visar uma intervenção curativa e, neste caso, não se tratou de uma intervenção curativa. Ver MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 263. 443 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 310. 117 direitos fundamentais, este poderá ser “objecto de pressões” que visem incitálo a fazê-lo. Apenas será possível avaliar se a renúncia se traduz num acréscimo ou numa diminuição de liberdade atendendo às circunstâncias do caso concreto444. Faz sentido distinguir neste âmbito entre “meios de coacção directa”, através dos quais o declarante é colocado “directa e evidentemente numa posição de pressão” e meios de “coacção indirecta”, que implicam uma “coacção 'de facto”, sendo que nem sempre é fácil determinar a fronteira entre eles. Na coacção indirecta não é utilizado um meio “inequivocamente reprovável”, mas há um efectivo condicionamento da voluntariedade445. Poderão ser exemplos de coacção indirecta os casos de existência de uma “posição de poder” sobre quem renuncia bem como a “ausência de alternativas reais de comportamento”446. Quanto a esta última situação, Gerd Sturm defende que, em rigor, só se pode falar de renúncia a direitos fundamentais quando se verificar um consentimento verdadeiramente livre. Se um dos argumentos centrais da tese da renunciabilidade destes direitos é o facto de este poder de disposição se traduzir num exercício de autonomia, torna-se patente a importância do “postulado da verdadeira liberdade”. Só o cidadão que pode realmente escolher não carece de protecção contra intervenções estaduais ou de terceiros. Nesse sentido, entende que “uma renúncia a direitos fundamentais só pode ser ‘livre’ e relevante em termos de Direito Constitucional quando se reconheçam verdadeiras alternativas de comportamento à autovinculação como emanação da autonomia do cidadão”447. 444 OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi et le règne de l’échange”, cit., p. 452. 445 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 48. No caso Schneckloth v. Bustamante, http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0412_ 0218_ZS.html, relativo à voluntariedade do consentimento numa busca a um automóvel, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos afirmou que uma renúncia não é válida se for consequência de uma coacção, explícita ou implícita. Sobre este caso, ver também JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 308. 446 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 49. A Autora considera, no entanto, que estas circunstâncias apenas podem excluir a voluntariedade da renúncia quando tenham uma influência tal sobre a livre vontade que se possam equiparar às situações de verdadeira coacção, na medida em que a pressão exercida seja equivalente. 447 GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 183 e 184. 118 O critério da existência de alternativas reais de comportamento tem sido, no entanto, criticado, pois não é de excluir a existência de situações em que o cidadão se encontre numa posição de vulnerabilidade e, ainda assim, tal não ser motivo para invalidar a renúncia. Poderá, pelo contrário, ser precisamente por se encontrar nessa posição que a renúncia seja a única via para a prossecução dos seus “fins pessoais”448. O conceito de voluntariedade deve, portanto, ser “adaptado a circunstâncias especiais”. A principal distinção que se impõe fazer é entre “standards de voluntariedade” que devem ser “aplicados a actos ou escolhas individuais que têm lugar em circunstâncias normais” e aqueles que se devem aplicar quando esteja em causa um “contexto específico”, como seja o facto de a pessoa estar presa ou internada num hospital. Nestes casos, ainda que segundo “os standards de voluntariedade” num contexto normal pareça que a pessoa não tem grandes alternativas de escolha, tendo em consideração a sua situação concreta poderá entender-se que, ainda assim, essa escolha é voluntária449. De todo o modo, mesmo admitindo a relevância de tais circunstâncias especiais, a renúncia tem de ser uma escolha consciente, que permita a prossecução de “fins pessoais” e que, na perspectiva do renunciante, lhe venha 448 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 305 e 306. Este Autor dá como exemplo “o caso de algumas injunções” que, em processo penal, podem ser “impostas ao arguido, com a concordância deste e do juiz de instrução”, e que implicam uma verdadeira renúncia a direitos. RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 23 e 24, refere ainda o caso de um paciente que pretende ser operado para salvar a sua vida. Se respeitássemos a exigência da necessidade de uma “alternativa real de comportamento”, ele não poderia ser tratado por falta de liberdade do consentimento na intervenção na sua integridade física. GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p. 50, defende que ter poucas opções não elimina necessariamente a autonomia porque mesmo alguém com poucas opções pode ter uma boa razão para considerar uma determinada escolha como preferível quando comparada com outras. Finalmente, KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 91, refere que no que diz respeito à renúncia a direitos fundamentais no caso de pessoas em situação de prisão, muitas vezes se tem considerado que o consentimento nunca é voluntário e, consequentemente, não é válido. No entanto, entende que esta é “uma solução demasiado simplista”, uma vez que “seria problemático retirar a um preso, apenas porque está preso, a possibilidade de decidir um determinado tratamento curativo ou medidas análogas”. 449 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 121 e 122. A jurisprudência alemã já teve oportunidade de se pronunciar sobre o consentimento na castração de um arguido por crimes sexuais e considerou que este era válido desde que respeitasse determinados pressupostos: ser o único meio de libertar o arguido em causa do seu instinto sexual e ser possível garantir a voluntariedade da decisão. Nesse sentido, ver BGHSt 19, pp. 201 ss; também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 72. 119 trazer algum benefício. É importante avaliar se o particular renunciou a um direito porque considera que a renúncia o conduzirá à prossecução dos seus objectivos, ou se o faz porque não lhe teve outra opção. Assim, “a importância do carácter voluntário da renúncia acaba por ser bastante relativizada” uma vez que só produz efeitos úteis em “casos extremos” ou nas situações em que a renúncia não se pode “objectivamente traduzir para quem renuncia em qualquer vantagem.”450. Tem-se defendido também que a renúncia não deve ser encarada como “uma verdadeira manifestação de autonomia individual” e, consequentemente, digna de tutela, quando a decisão de renunciar seja condicionada por necessidades económicas, uma vez que nesses casos “a pessoa não procura o seu desenvolvimento através de uma renúncia, mas pretende apenas fazer face a uma situação complicada, em particular uma situação económica difícil”. Para esta perspectiva, quando a renúncia é feita como “contrapartida de vantagens materiais” poderá supor-se que a escolha de renunciar tem como base algum constrangimento. É a “mercantilização do direito” que “torna a operação suspeita”451. Não estamos, no entanto, de acordo com esta posição, na medida em que julgamos que pode haver situações em que a renúncia seja contrapartida de vantagens materiais e, ainda assim, traduzir uma escolha voluntária452. Este 450 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 306 e 307. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 50 – 52, sustenta que as situações de uso de detector de mentiras se enquadram no problema da ausência de alternativas de comportamento. O BVerfG, na fundamentação da sua decisão e a par de outros argumentos, considerou que nestes casos “não havia verdadeira liberdade de escolha: quem se recusasse a fazer o teste ou não o requeresse havendo essa possibilidade tornar-se-ia suspeito”. A Autora entende, no entanto, que para a protecção dos interesses do acusado se deve permitir este meio de prova e garantir a voluntariedade da decisão através de uma proibição de valoração da prova (no caso de recusa). Este caso está disponível na NJW, n.º 8, 1982, pp. 375 ss. Ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 68. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 325, considera, pelo contrário, que este caso é um exemplo de uma situação em que se renuncia “a um bem eminentemente pessoal, mas com consequências repercutindo de forma tão relevante na comunidade que fundament[a]m um resultado de indisponibilidade daquele bem”. 451 OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 457 – 460. 452 Dando um exemplo extremo, “se considerarmos que o respeito pela pessoa implica proibir uma mãe de vender algo pessoal para obter comida para os seus filhos que passam fome, não se respeita mais a sua personalidade ao forçá-la a deixá-los morrer à fome”. De todo o modo, em Estado social de Direito o problema não se pode colocar exactamente nestes termos. Sobre esta questão, ver MARGARET JANE RADIN, “Market Inalienability”, cit., pp. 1910 e 1911. 120 critério deve ser considerado na avaliação da voluntariedade da renúncia, mas, por si só, não nos dá uma resposta conclusiva quanto a essa questão. O “grau de autonomia real das partes” deve ser ainda um critério a empregar para resolver a questão da voluntariedade do consentimento, pois “quanto menor seja a liberdade da parte débil da relação, maior será a necessidade de protecção”453. Só uma renúncia verdadeiramente livre merece a tutela do direito454. Em virtude disso, um dos dados a atender na avaliação da autonomia real das partes é o grau de desigualdade fáctica existente entre elas. É o “status de inferioridade” do indivíduo que torna particularmente necessária a sua protecção em relação a entidades dotadas de poderes de facto455. Não basta, no entanto, estarmos perante uma relação em que há uma desigualdade entre as partes para que a renúncia seja necessariamente involuntária. Para que a consequência seja essa é forçoso que o desequilíbrio de poderes seja aproveitado para influenciar a parte que renuncia e que “as consequências da renúncia, mesmo tendo em consideração eventuais vantagens que aquele que renuncia recebe como contraprestação, se traduzam num encargo excessivo”456. 453 JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, La Eficacia de los Derechos Fundamentales Frente a Particulares, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 1997, pp. 368 – 370. 454 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 224. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 549, considera também relevante a questão de saber se existe, no caso concreto, um perigo significativo de uma má utilização da possibilidade de renúncia. Se for esse o caso, por exemplo nas situações de renúncia por parte de detidos que se encontram numa posição de particular fragilidade, tal poderá implicar a não admissibilidade da renúncia. 455 ANDREAS KHOL, “The protection of Human Rights in relationships between private individuals: the austrian situation”, in RENÉ CASSIN, Amicorum Discipulorumque Liber, Vol. III, Éditions A. Pedone, Paris, 1971, p. 212. O BVerfG, no caso Unterhaltsverzichtsvertrag, BVerfGE 103, pp. 89 ss, teve que se pronunciar sobre a constitucionalidade de um contrato em que os cônjuges renunciaram ao seu direito a alimentos no caso de separação. Neste caso o Tribunal entendeu que a mulher (que estava grávida aquando da celebração do casamento) se encontrava numa posição de inferioridade porque a alternativa que tinha era casar nestes termos ou não casar. 456 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 53. No caso Deweer v. Bélgica, do TEDH, http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm &action=html&highlight=Deweer&sessionid=27938955&skin=hudoc-en, por exemplo, a Administração havia constatado uma infracção à regulamentação dos preços aquando de um controlo efectuado no estabelecimento comercial de que o requerente era dono, tendo sido ordenado o fecho provisório do estabelecimento. Mas foi-lhe proposta uma transacção: pagar dez mil Francos Belgas, com a consequência de não ser objecto de queixa e poder manter o estabelecimento comercial aberto. Ao pagar, o requerente está igualmente a renunciar a que a 121 Por outro lado, “deverão estabelecer-se maiores exigências quanto à aferição da voluntariedade da renúncia nos casos em que a renúncia serve essencialmente interesses de terceiros e não já interesses da própria pessoa que renuncia”, como sucede nas experiências médicas em pessoas saudáveis457. O mesmo deverá acontecer quando se tratar de condutas de especial risco. Quanto mais arriscada for a conduta em causa mais rigorosa tem de ser a avaliação da voluntariedade458. Deverá ainda ser exigido um maior cuidado quando se aquilata a voluntariedade de actos que conduzem a lesões irreversíveis, na medida em que um erro de avaliação nestes casos não é passível de ser corrigido459. Esse maior cuidado implica a apreciação das circunstâncias concretas em que a renúncia tem lugar. Assim, é fundamental perceber se se criaram mecanismos para garantir a voluntariedade da decisão de renúncia: interessa aqui determinar se a renúncia foi tomada rapidamente ou após um período de deliberação, se houve a necessidade de cumprir algum tipo de procedimento, se o indivíduo actuou sozinho ou na presença do advogado, etc460. Finalmente, é ainda importante apurar se houve um esclarecimento devido, na medida em que as “condições informacionais” podem ajudar a garantir a voluntariedade da renúncia. Aqui não se trata tanto da questão de saber se o consentimento é livre, mas sim esclarecido. Trata-se de aferir se foram criadas todas as condições “para o indivíduo em causa dispor da sua causa seja avaliada por um tribunal independente e imparcial. Perante o TEDH, o requerente pôs em causa a validade desta transacção, afirmando que deste modo havia sido privado do seu direito de acesso a tribunal e este Tribunal dá-lhe razão. Na sua fundamentação, o TEDH reconhece que o valor relativamente baixo que havia sido pedido ao requerente (se comparado com o valor máximo que este poderia ser obrigado a pagar) reforçou a pressão exercida pela ordem de fecho. O carácter módico da quantia, combinado com a ameaça de fecho, contribuíram para exercer uma pressão tal sobre o requerente que não se pode considerar que este tenha renunciado livremente ao seu direito de obter o exame da causa em tribunal. 457 JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 550. 458 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 118 e 119. 459 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 120 e 175. Este Autor considera que nos casos de renúncia ao direito à vida, por exemplo, “na medida em que a morte é irreversível, aquilo que significa ‘suficientemente voluntário’ deve ser determinado segundo critérios exigentes”, ou seja, deverão ser criados “procedimentos públicos e formais para determinar a voluntariedade”. 460 JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., p. 871. 122 informação necessária, de modo a decidir com pleno conhecimento de causa se pretende renunciar a um direito”461. 2. A capacidade para dispor sobre posições subjectivas de direitos fundamentais É ainda condição da renúncia “a capacidade para uma determinação livre da vontade”462. Para que o consentimento se consubstancie num “acto de auto-realização” é antes do mais indispensável “que quem consente seja capaz”463, ou seja, que se encontre em posição de “apreciar e compreender o alcance da sua decisão”464. Vamos, uma vez mais, indagar de que modo é que esta questão é resolvida no Direito Penal e no Direito Civil para determinarmos qual a solução que melhor se adequa à renúncia. Como já referimos, no Direito Penal, a matéria do consentimento do ofendido vem tratada nos arts. 38.º e 39.º do CP, em sede de causas de justificação465. O legislador penal admite uma margem de disponibilidade voluntária lícita por parte do titular do direito, estabelecendo o n.º 3 do art. 38.º que “o consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta”. Esta norma foi alterada recentemente, sendo 461 OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., p. 464. Esta exigência de que a renúncia seja esclarecida explica que no caso Pfeifer e Plankl v. Áustria, http://cmiskp.echr.coe.int/ tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Pfeifer&sessionid=46392510&ski n=hudoc-en, se tenha considerado que, no quadro de um processo judiciário, a renúncia a um dos direitos consagrados no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) não é admissível a não ser com a assistência de um advogado. HANS D. JARASS – BODO PIEROTH, Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 31, defendem também que “o consentimento deve ser suficientemente concreto de modo a que quem renuncia possa saber quais as consequências desse consentimento”. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 48, refere a existência de “deveres de esclarecimento” pela parte dos órgãos estaduais, de modo a evitar situações de erro. 462 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 94. 463 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 483. 464 DIETER DÖRR, Big Brother und die Menschenwürde, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2000, p. 69. 465 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 161. 123 que na versão anterior a idade mínima para consentir eram os catorze anos. No Direito Civil, embora não haja nenhuma disposição expressa nesse sentido, “a capacidade para consentir é um conceito que tem vindo a ser autonomizado face à capacidade negocial de exercício”. Tem-se entendido que não se deve aplicar o regime das declarações de vontade referentes a direitos patrimoniais a bens jurídicos como a honra, a saúde ou a vida, uma vez que estão em causa, nestes casos, bens jurídicos eminentemente pessoais. Para além disso, “os institutos tradicionais da representação dos incapazes (…) são demasiado rígidos”, uma vez que não têm em conta as diferentes “capacidades intelectuais, emotivas e volitivas [dos menores e] dos doentes psiquiátricos”. O consentimento para intervenções médico-cirúrgicas, por exemplo, não pode ser equiparado ao consentimento em questões do foro patrimonial, porquanto “afecta bens jurídicos pessoalíssimos, como a integridade física e a autodeterminação pessoal”466. No caso da limitação voluntária de direitos de personalidade sustentase, então, que se o incapaz for suficientemente maduro deverá ser ele, e não os seus representantes, a dar o consentimento, uma vez que o que está em causa é a “limitação de direitos que tutelam bens pessoais”. Por outro lado, poderá também obstar ao consentimento prestado pelo representante, “se tiver maturidade para avaliar o sentido e o alcance desse consentimento - tenha ou não ainda completado uma certa idade”467. Consequentemente, quanto à capacidade de exercício de direitos tem sido defendido que deve ser de erigir, “paralelamente às regras gerais do negócio jurídico”, um “regime específico para a limitação de direitos de personalidade”. Tal perspectiva implica transpor “uma aparente barreira do argumento literal do art. 123.º do CC”, onde está prevista a incapacidade de exercício de direitos. Esta norma consagra, para menores e interditos, “uma incapacidade geral de exercício” que se aplica quer a “direitos patrimoniais” quer a “direitos pessoais”. Apesar disso, a própria lei prevê excepções “no 466 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 148, 149 e 154; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, cit., pp. 200, 201 e 206. 467 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 543. 124 domínio dos actos pessoais”, uma vez que, por exemplo, para “casar, perfilhar, testar [ou] para a escolha de uma religião” se consagram regras especiais. Consequentemente, parece que o próprio “CC aponta para duas regras paralelas: uma para os actos jurídicos patrimoniais (art. 123.º) e outra para os actos jurídicos pessoais (onde impera o casuísmo, apontando-se por vezes para a idade dos catorze anos e outras para os dezasseis, mas dando sempre um relevo especial à fase da adolescência)”468. No entanto, as regras gerais do negócio jurídico podem servir de “ponto de orientação” quando se afere a capacidade para consentir, o que significa que as pessoas com capacidade negocial de exercício terão, em princípio, capacidade para prestar o seu consentimento. Ainda assim, a maioridade é somente “‘um indício’ dessa capacidade”. Partindo da alteração que sofreu a lei penal, no que diz respeito aos menores deve entender-se que as pessoas com mais de dezasseis anos são capazes de consentir, desde que compreendam “o alcance e o significado da intervenção e possam prever os seus riscos e não decidam precipitadamente ou de forma irrazoável”. Por outro lado, no que se refere aos incapazes adultos, as causas que podem levar à interdição justificam, em princípio, que se entenda que o interdito não está capaz para consentir, devendo, no entanto, fazer-se “uma ponderação casuística”. Mas ainda que seja confirmada essa situação, a opinião do incapaz deve ser sempre tida em conta. Finalmente, no que se refere aos inabilitados, uma vez que estes normalmente gozam “de capacidade geral para a prática de actos pessoais (…), a sua capacidade para consentir só deve ser questionada, quando na sentença de inabilitação haja referência expressa”469. Partindo destas considerações, julgamos que também fará sentido retirar os critérios para a determinação de uma fronteira de idade a partir da qual se pode admitir uma renúncia a direitos fundamentais daquilo que dissemos quanto ao consentimento no Direito Civil e no Direito Penal: esses critérios deverão ser “a maturidade, a compreensão, o tipo de intervenção e a 468 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 163 – 166; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, cit., pp. 216 – 218. 469 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 170 – 172; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, cit., pp. 221 - 223. 125 capacidade de ponderar as vantagens e as desvantagens dessa intervenção”470. A capacidade para consentir numa renúncia não tem de coincidir necessariamente com a capacidade negocial471. Tal não invalida, no entanto, que também neste âmbito as regras gerais do negócio jurídico possam constituir um “ponto de orientação” quando avaliamos a capacidade de consentir. Daqui decorre que as pessoas que gozam de capacidade negocial de exercício terão, em regra, capacidade para renunciar. Porém, a maioridade deve ser apenas considerada como um “indício” da capacidade para dispor sobre posições subjectivas de direitos fundamentais, podendo os maiores de dezasseis anos ser capazes de consentir, desde que compreendam o sentido e o alcance da sua decisão. Por outro lado, atendendo “à natureza incindível do poder de renúncia” em relação ao titular do direito a manifestação de vontade de renúncia tem de ser produzida pelo próprio. Assim, não devem “ser consideradas como verdadeiras renúncias, mas antes como restrições heterónomas, as situações em que (…) o pretenso consentimento é prestado pelos pais em nome do filho menor”472. 470 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 44. 471 Fazendo estas considerações em relação ao Direito Penal, ver TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, cit., p. 269. 472 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 302 e 303. Ver também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 310, que considera também indispensável que “a manifestação de vontade seja produzida pelo próprio titular, não sendo suficiente, em regra, o consentimento de alguém que exerça um poder de representação ou tutela”. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 46, defende que quanto à representação de menores pelos seus pais, estes só poderão renunciar em nome dos seus filhos nos casos em que a intervenção vise o bem-estar objectivo da criança. 126 PARTE II: Os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares Capítulo I: Os limites da renúncia no contexto de um Estado de Direito plural A Parte I deste trabalho foi dedicada ao tratamento da figura da renúncia a direitos fundamentais em geral. Para esse efeito, delimitámos o conceito de renúncia, distinguimos as diferentes configurações que esta pode assumir, afastámos as objecções à renunciabilidade dos direitos e vimos ainda qual o fundamento do poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais. Defendemos a “admissibilidade prima facie da renúncia” uma vez que esta é ainda expressão de exercício de direitos fundamentais473 e vimos quais as condições a preencher para que possa ter lugar. Na Parte II vamos restringir o objecto do nosso estudo de modo a dirigir a análise para o tema central da tese: os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares. Há, no entanto, algumas questões que se impõe abordar antes de tratarmos os limites propriamente ditos, uma vez que consideramos que a resposta ao problema que vamos analisar depende, em grande medida, da concepção de Estado que se sustente e do papel que se entende que este deve (ou não) ter na condução de vida dos cidadãos. Em Estado de Direito, “o respeito pela dignidade humana, pelo pluralismo democrático e pelo desenvolvimento da personalidade de cada um implica o reconhecimento de um espaço legítimo de liberdade e realização pessoal liberto de intervenção jurídica”474. Nesse sentido, é essencial que esteja assegurada “a possibilidade de exercício da liberdade individual” e a “garantia constitucional do princípio do pluralismo, no que diz respeito às visões do mundo e às concepções, sociais e individuais, do que seja uma vida boa”475. 473 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 301. 474 RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., pp. 287 e 288. 475 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 168. O Tribunal Constitucional diz 127 Este respeito da autonomia pessoal e o “elogio da tolerância” são elementos essenciais das instituições jurídicas, políticas e sociais em que hoje identificamos o Estado de Direito476. Em Estado plural, “a liberdade jurídica é pura e simplesmente liberdade, e não liberdade só, ou privilegiadamente, para prosseguir fins públicos ou objectivos pré-determinados pelo Estado”477. Deve, consequentemente, ser de afastar qualquer interpretação dos direitos fundamentais que os reduza a uma “determinada concepção de bem comum dotada de pretensões, de tipo metafísico, de objectividade e de essencialidade”478. Assim sendo e na medida em que, contrariando estas considerações, se verifica uma tendência cada vez maior para alargar indevidamente os poderes da sociedade sobre o indivíduo479, parece-nos essencial, antes de cuidarmos dos limites da renúncia propriamente ditos, debruçarmo-nos sobre o problema da admissibilidade da defesa da pessoa contra si própria no contexto de um Estado plural e não paternalista. Como já referimos, aquele que renuncia a um direito fundamental e permite que um terceiro restrinja a sua esfera juridicamente protegida por esse direito fundamental está, ainda que de forma indirecta, a lesar-se a si mesmo. Estando a protecção da pessoa contra si mesma e o paternalismo estadual muitas vezes implícitos nos limites que se estabelecem ao poder de disposição sobre posições subjectivas de direitos fundamentais, procuraremos, então, aquilatar se (e em que termos) é legítimo que o Estado crie normas que visam “uma protecção do titular dos direitos fundamentais quanto às expressamente, no Acórdão n.º 174/93, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos 93/101-200/17493.htm, a propósito da liberdade religiosa, que qualquer forma de dirigismo cultural fere o bem comum e mina os alicerces do Estado de direito, não podendo o Estado impor aos cidadãos quaisquer formas de concepção do Homem, do mundo ou da vida. 476 PEDRO CARLOS BACELAR DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Controlo Jurídico do Poder Público, cit., p. 28. 477 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 294 e 295. ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59, assumindo uma posição mais radical afirma que o interesse público se direcciona hoje para a realização dos direitos fundamentais, pelo que uma autodeterminação ampla do indivíduo está sobretudo ao serviço da colectividade. 478 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 382. 479 Ainda se mantendo actuais as palavras de JOHN STUART MILL, Sobre a Liberdade, (trad. ISABEL SEQUEIRA), Publicações Europa América, Mem Martins, 1997, p. 21. 128 consequências da sua decisão autónoma e livre”480. 1. A defesa da pessoa contra si própria e o paternalismo estadual Quando falamos do problema da admissibilidade da defesa da pessoa contra si própria, estamo-nos a referir à questão de determinar se é legítimo que o Estado proteja os direitos fundamentais do indivíduo para o seu próprio bem e contra a sua vontade, quando não se lesam quaisquer bens de terceiros ou da comunidade. Trata-se de ajuizar se o sistema jurídico tem legitimidade para proteger o indivíduo “contra o risco de um mau uso que este possa fazer da sua liberdade”481. Esta é uma questão controversa, na medida em que se refere à “relação entre a protecção legítima de bens jurídicos e o direito de autodeterminação do próprio titular do direito”482. Em Estado social, a protecção de terceiros face a comportamentos de risco é incontestável, porque o Estado tem como função “garantir a inviolabilidade da sua integridade física ou psíquica”483. Afasta-se, consequentemente “uma interpretação puramente individualista das normas de direitos fundamentais”484. No entanto, enquanto há consenso no sentido de o Estado poder justificadamente impor “os princípios de uma moral pública ou intersubjectiva, que avalia as acções de acordo com os seus efeitos nos interesses de terceiros”, o mesmo já não se poderá dizer quanto à possibilidade de o Estado impor, seja através do uso de coacção ou por outras vias, “standards de uma moralidade pessoal que avalia acções pelo seu efeito no carácter moral ou no valor da vida do próprio agente que as leva a cabo”485. 480 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 196. 481 OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., p. 446. 482 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 196. 483 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, in RMP, n.º 116, 2008, p. 137. 484 ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 120. 485 CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, Clarendon Press, Oxford, 1991, pp. 131 e 132. De todo o modo, convém ressalvar que a destrinça entre as situações em que há 129 Ainda que seja mais comum a referência ao problema da protecção da pessoa contra si própria na autolesão, a verdade é que também se poderá verificar uma tal protecção na renúncia486. Não se fala apenas de defesa da pessoa contra si própria quando o Estado pretende acautelar autolesões, como acontece, por exemplo, nos casos de obrigatoriedade do uso de cinto de segurança ou de capacete. Será também a defesa da pessoa contra si própria que está em causa (explícita ou implicitamente) nas situações em que o Estado não permite que o indivíduo disponha dos seus direitos fundamentais num determinado sentido, não havendo interesses públicos ou de terceiros que justifiquem essa restrição. Assim, a ideia de defesa da pessoa contra si própria pode também ser invocada para justificar restrições ao poder de disposição sobre posições jurídicas de direitos fundamentais pelos próprios titulares interesses públicos e de terceiros juridicamente tuteláveis e aquelas em que apenas estão em causa interesses do indivíduo não é simples, na medida em que facilmente se encontram razões de interesse público ou interesses de terceiros para justificar restrições. Nesse sentido, ver JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 290, nota 37. Uma vez que “nenhum homem é uma ilha, todas as acções individuais podem, pelo menos indirectamente, afectar outrem”. Parece, no entanto, ser de seguir a perspectiva de Mill, segundo a qual “quando não se esteja perante um dano, mesmo que a maioria das pessoas considere a conduta absurda, perversa ou errada (…), ‘com os gostos pessoais e as opções que dizem respeito ao próprio indivíduo a sociedade não se deve intrometer’”. Sobre esta questão ver, mais desenvolvidamente, LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 246. Também JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 22, entende que se pode considerar que “o interesse público está sempre em causa, pelo menos numa medida mínima, quando as pessoas se lesam a si próprias”. Este Autor considera, no entanto, que devemos assumir que “é possível traçar uma fronteira (…) entre comportamentos que afectam terceiros e condutas que dizem primaria e directamente respeito à própria pessoa, apenas afectando terceiros indirecta ou remotamente”. Se não fosse possível traçar esta fronteira, tal significaria que “o paternalismo estadual não levantaria problemas (…), na medida em que todas as restrições paternalistas poderiam ser defendidas por serem necessárias para proteger outras pessoas e, nessa medida, não seriam totalmente paternalistas”. Assim, para se poder considerar que há interesses públicos ou de terceiros a tutelar o prejuízo em causa deve ser suficientemente sério. Parece-nos ser também esse o sentido do voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes, no Acórdão n.º 423/08, http://www.tribunalconstitucional.pt/ tc/acordaos/20080423.html, no qual defende que o dever de protecção da saúde pública pelo Estado não depende apenas de um “juízo probabilístico geral” sobre a causalidade adequada da conduta de fumar para lesar abstractamente a saúde, mas sim da comprovação de que essa conduta é directamente responsável pela lesão da integridade física dos fumadores passivos. Colocando, por exemplo, a questão de saber se há direitos de terceiros ou bens jurídicos comunitários a proteger nas leis que criminalizam a aquisição e consumo de haxixe, ou determinados comportamentos homossexuais, lenocínio e proxenetismo, ver CHRISTIAN STARCK, “Das Sittengesetz als Schranke der freien Entfaltung der Persönlichkeit”, cit., p. 270. Sobre a questão do lenocínio ver, entre nós o Acórdão n.º 144/04, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20040144.html, no qual o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional a sua criminalização. 486 Quando definimos o conceito de renúncia distinguimo-lo do conceito de autolesão, uma vez que entendemos que a renúncia pressupõe necessariamente a intervenção de terceiros. 130 destes direitos487. Por outro lado, o problema da restrição legislativa da liberdade para protecção do próprio titular “não se reduz ao âmbito da renúncia” a direitos fundamentais, pois as “intervenções restritivas não se referem exclusivamente a situações em que haja uma manifestação de vontade negocial ou um consentimento dispositivos”488. Apesar disso, vamos limitar a nossa análise a esse âmbito mais restrito. Por outro lado ainda, o problema da defesa da pessoa contra si própria também se pode colocar no seio de relações jurídicas privadas489. Trata-se de aferir se é legítimo que o Estado proteja o particular de si mesmo, no sentido de não lhe permitir dispor do seu direito fundamental perante outro particular. A ideia de defesa da pessoa contra si própria está intimamente ligada com o paternalismo estadual, na medida em que com o termo paternalismo se pretende designar a “privação ou redução da liberdade de escolha do indivíduo operada pelo ordenamento a fim de assegurar uma particular protecção da pessoa ou de uma categoria de pessoas de actos contrários ao seu próprio interesse”490. Entende-se, assim, por paternalista “um comportamento que tem como finalidade impor a um terceiro protecção independentemente da questão de saber se essa protecção é ou não desejada. Quando o Estado age desta forma em relação aos seus cidadãos podemos falar de paternalismo estadual, ou, seguindo a expressão inglesa legal paternalism, de paternalismo jurídico”. 487 NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., p. 147, considera que no que diz respeito à defesa da pessoa contra si própria devem ser equiparadas as situações de autolesão e de consentimento em heterolesões. 488 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 299. 489 INGO VON MÜNCH, “Grundrechtschutz gegen sich selbst”, cit., p. 115. 490 FABRIZIO COSENTINO, “Il paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione dell’autonomia dei privati”, in Quadrimestre, n.º 1, 1993, p. 120. MARGARET JANE RADIN, “Market Inalienability”, cit., pp. 1898 e 1899, defende que o paternalismo normalmente “significa substituir o julgamento da pessoa em causa pelo julgamento de um terceiro ou do Estado para o bem dessa mesma pessoa”. Considerando também que o paternalismo “se sobrepõe à falta de consentimento para o bem da própria pessoa”, ver R. GEORGE WRIGHT, “Consenting Adults: the problem of enhancing human dignity non coercively”, in Boston University LR, Vol. 75, 1995, p. 1432. MARTIN HOCHHUTH, “Grundrechte und Grundfreiheiten als Schutzpflichten?” in MICHAEL ANDERHEIDEN – PETER BÜRKLI – HANS MICHAEL HEINIG – STEPHAN KIRSTE – KURT SEELMANN, Paternalismus und Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2006, p. 208, entende que o paternalismo se consubstancia em tutela para o bem do próprio tutelado. Ver ainda KATHLEEN M. SULLIVAN, “Unconstitutional Conditions”, cit., pp. 1479 e 1480. 131 O paternalismo estadual goza de uma característica que o distingue das restantes medidas restritivas do Estado: a “finalidade específica da restrição da liberdade”. Neste caso o fundamento invocado para a restrição é a protecção da pessoa contra possíveis “más escolhas” que esta possa fazer e não a defesa de interesses públicos ou de terceiros491. O paternalismo jurídico é, então, “a teoria ou o princípio que considera a necessidade de prevenir lesões auto-infligidas uma razão legitimadora de legislação coerciva”492. Uma vez que as políticas públicas que limitam a possibilidade de escolha contra a vontade do próprio carecem de justificação, é importante identificar o tipo de razões que as podem legitimar. Consequentemente, a análise do paternalismo é relevante porque é fundamental saber quais “os limites morais da autoridade governamental sobre as nossas escolhas”493. Ora se se restringe a possibilidade de renúncia para o bem dos próprios cidadãos, por se considerar que estes poderão não ter em devida conta a importância dos direitos fundamentais em causa, estamos perante uma medida paternalista494. Para aferirmos a legitimidade de medidas paternalistas nos diferentes ramos de direito devemos considerar “a posição de partida do Direito 491 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 11 e 12. 492 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 8. Este Autor distingue “normas paternalistas puras e mistas”. Estas últimas “justificam-se parcialmente pelo objectivo de prevenir as pessoas de sofrerem lesões pelas suas próprias mãos ou, com o seu consentimento, pelas mãos de terceiros e, em parte, por outras razões, como seja o desejo de também proteger outras pessoas ou o público em geral. As normas paternalistas puras não têm qualquer outra motivação para além da prevenção de autolesões ou lesões por terceiros consentidas”. 493 PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, in Philosophy & Public Affairs, Vol. 34, n.º 1, 2006, p. 76. 494 KATHLEEN M. SULLIVAN, “Unconstitutional Conditions”, cit., p. 1480. Considerando que “a finalidade do paternalismo consiste em evitar danos auto-infligidos pelo indivíduo ou infligidos por terceiros com o consentimento do indivíduo”, ver MACARIO ALEMANY, “El concepto e la justificación del paternalismo” in DOXA – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 28, 2005, p. 272. JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 9 e 172, entende também que se pode distinguir entre “normas paternalistas aplicadas a casos onde está apenas uma pessoa em causa (….) e normas paternalistas que se aplicam a casos onde estão duas pessoas envolvidas. Estas situações que envolvem duas pessoas são paternalistas quando o pedido (ou o consentimento) de uma das partes para a acção da segunda não é suficiente para permitir que esta possa efectivamente fazer o que a primeira pretendia”. Para este Autor “os dilemas do paternalismo legal surgem nas suas formas mais complicadas nos casos que envolvem duas partes”. 132 Constitucional”495. Efectivamente, no que se refere à renúncia a direitos fundamentais, se da interpretação de uma norma ordinária retiramos que esta se opõe à renúncia, coloca-se automaticamente a questão de saber se é inconstitucional, uma vez que as normas de direito ordinário que estabeleçam limitações ao poder de disposição do titular do direito “são elas próprias sindicáveis à luz da sua conformidade com os princípios constitucionais que (…) devam reger a renúncia”496. Assim, a proibição de renúncia tem de ser admissível do ponto de vista jurídico-constitucional, ou seja, deve garantir outros interesses constitucionais que se ancoram na Constituição, que aquela renúncia prejudica e que, no caso particular, devem ser valorados como prevalecentes497. Resta saber se o paternalismo estadual se pode justificar à luz dos princípios constitucionais e se pode servir de argumento para, por sua vez, justificar restrições à possibilidade de renúncia. O problema da “admissibilidade do paternalismo estadual pode compreender-se enquanto aspecto parcial do debate liberalismo – comunitarismo, que tem vindo a ter lugar há algumas décadas no quadro anglo-americano”498. Subjacente a esta discussão está o problema de determinar até onde pode o Estado ir ao realizar “concepções específicas de justiça, autoridade ou uma vida boa”499. É o que procuraremos agora ver com mais cuidado. 2. Liberalismo versus comunitarismo O comunitarismo, tal como o liberalismo, é um conceito que abarca várias correntes distintas. Em termos gerais, os comunitaristas opõem-se ao liberalismo na medida em que consideram que “a insistência liberal na 495 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 24. 496 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 264. 497 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 196. 498 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 18. 499 WILLIAM A GALSTON, “Value Pluralism and Political Liberalism”, in JOÃO CARLOS ESPADA (coord.), Liberdade, Virtude e Interesse Próprio, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 1997, p. 62. 133 tolerância implica também desvantagens que devem ser tidas em conta no quadro da moral política”500, uma vez que essa tolerância pode pôr em causa a comunidade, comunitaristas que é um defendem “código que ético cada partilhado”501. indivíduo está Assim, muitos “irremediavelmente comprometido com a cultura, tradição e perspectivas partilhadas pela sociedade mais ampla”502. Para esta perspectiva, o principal problema do liberalismo assenta no facto de “não reservar grande espaço (…) para as comunidades em que nos inserimos” e “os princípios, inclusivamente morais, que as consubstanciam”503. Deste modo, o comunitarismo propõe-se “superar, ou pelo menos reconceptualizar, o liberalismo político que tem vindo a dominar o discurso (…) jurídico-constitucional desde o advento da época moderna”. O pensamento comunitarista parte da natureza social do indivíduo, defendendo que não se pode negar a importância da sua “inserção comunitária”, uma vez que esta é essencial para a própria formação da identidade de cada um504. Apesar disso, “em boa parte, a crítica comunitarista parte da tradição liberal procurando o seu aperfeiçoamento e não o seu derrube”505. Winfried Brugger defende que o comunitarismo faz a ponte “entre o indivíduo isolado e o poder estadual centralizado e defende que são precisamente as realizações e formas de vida intermédias que potenciam o autodesenvolvimento individual e evitam excessos de poder estadual”506. O 500 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 18. 501 Defendendo que uma das críticas apontadas ao liberalismo é precisamente a de considerar que a “tolerância liberal” deteriora a comunidade porque o que caracteriza essa comunidade é um “código ético partilhado”, ver RONALD DWORKIN, Sovereign Virtue, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, London, England, 2002, pp. 211 ss. Como defensores das teorias comunitaristas podemos referir, entre outros, Charles Taylor, Alasdair Maintyre, Michael Sandel e Michael Walzer. Nesse sentido, CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, in Revista del Centro de Estúdios Constitucionales, n.º 1, 1988, pp. 363 e 364. 502 GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 156. 503 CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, in JOÃO CARDOSO ROSAS (org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 89. 504 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 157. 505 CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 104. 506 WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, in AöR, n.º 123, 1998, p. 342. 134 Autor estabelece uma distinção entre “comunitarismo conservador”507, “comunitarismo universalista”508 e, finalmente, “comunitarismo liberal”509, fazendo a apologia deste último. Brugger considera que o comunitarismo liberal oferece a melhor teoria comunitarista constitucional, uma vez que é aquela que “mais cabalmente realiza e explica as normas constitucionais nas suas relações”. O comunitarismo liberal parte da ideia de que, “em regra, os homens necessitam de criar comunidades e de criar laços nessas comunidades para levarem uma vida realizada”, o que não envolve qualquer forma de “repressão ou pressão”. Para o comunitarismo liberal “a liberdade de escolha individual é um valor importante mas não absoluto”, o que significa que “uma Constituição pode acentuar e promover formas particularmente importantes e marcantes da vida em comum, mesmo quando não haja o acordo de todos”. Isto quer ainda dizer que “uma comunidade política se pode distanciar de modos de 507 O comunitarismo conservador “vê a ligação do homem à comunidade como forte”. A “liberdade humana traduz-se na liberdade para a auto-realização através dos modos de vida tradicionais”. Este tipo de comunitarismo considera que “há uma maior racionalidade e conveniência em instituições e modos de vida que se prolongam no tempo”. Esta “precedência (não absoluta) das tradições e convenções também se manifesta no entendimento da moral”. No entanto, “o erro do modelo conservador é o facto de organizar o Estado na perspectiva do grupo homogéneo e visível no horizonte próximo”. Ver, mais desenvolvidamente, WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, cit., pp. 344 – 349; ver também WINFRIED BRUGGER, “Communitarianism as the social and legal theory behind the German Constitution”, in International Journal of Constitutional Law, Vol. 2, n.º 3, 2004, p. 438. 508 O comunitarismo universal defende que “os homens são sobretudo indivíduos autónomos dotados de racionalidade e que podem e devem decidir plenamente por si”. Uma “vida realizada é, nesta perspectiva, uma vida que se caracteriza pela liberdade de escolha e essa liberdade estende-se a todas as formas sociais”. O “entendimento moral aparece, correspondentemente, com uma postura crítica em relação à moral convencional tradicional”. O Autor entende que o comunitarismo universal vai longe demais, uma vez que se “fixa no horizonte longínquo da humanidade no seu conjunto e esquece que o Estado detém uma posição intermédia ou de mediação importante e irrenunciável entre o horizonte próximo e o longínquo”. Ver, mais desenvolvidamente, WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, cit., pp. 349 – 353; WINFRIED BRUGGER, “Communitarianism as the social and legal theory behind the German Constitution”, cit., pp. 438 – 440. 509 O comunitarismo liberal “evita a unilateralidade das duas outras variantes e procura trabalhar e conciliar o núcleo legítimo de ambas”. Este tipo de comunitarismo “vê em todas as formas de comunitarização potenciais para uma vida realizada, uma vez que é nestas formas que as ambições humanas ganham estrutura e direcção”. Tal não invalida, no entanto, que haja espaço para a decisão individual, sobretudo na forma de “possibilidade de entrada e possibilidade de saída, e muitas vezes também através da possibilidade de conformação e transformação interna”. Trata-se, portanto, de liberdade e realização dentro de comunidades”. Ver, mais desenvolvidamente, WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, cit., p. 353 ss; WINFRIED BRUGGER, “Communitarianism as the social and legal theory behind the German Constitution”, cit., pp. 440 – 443. 135 desenvolvimento individual que ameacem minar aquelas formas avaliadas como particularmente importantes”510. Ulrich Haltern, contestando esta construção, coloca a questão de saber se “a evolução de uma filosofia liberal para uma filosofia comunitarista fornece uma diferenciação que mereça análise e que venha abrir novos campos de conhecimento para a teoria constitucional”, o que pressupõe que o liberalismo não seja suficiente para assegurar “as exigências da ‘melhor teoria constitucional’”. Em primeiro lugar, convém perceber o que distingue o comunitarismo do liberalismo. Segundo ele, o Homem moderno não só detém a liberdade de traçar o seu destino, como está, de certo modo, condenado a uma “escolha vitalícia”. Abrange-se aqui também a escolha da “comunidade na qual uma pessoa se quer incluir, da qual espera acolhimento e à qual, num sentido profundo, se confia”. Tal opção adquire, consequentemente, “um sentido existencial na vida de cada pessoa”. Tanto o comunitarismo como o liberalismo realçam a importância deste acto de escolha. Mas é aqui que se constitui uma diferença decisiva entre as duas perspectivas. O comunitarismo critica a natureza apenas “superficial, incoerente, muitas vezes incerta e volátil da identidade sob as exigências do liberalismo”. Para o comunitarismo o “prédeterminado” é importante, na medida em que atribui um papel proeminente à tradição e à história na formação do indivíduo. Esta escolha não é, no entanto, “nem imperativa nem inevitável; é, apesar disso, privilegiada, na medida em que é a única que torna possível aquela identidade que realiza um sentido, que o comunitarismo contrapõe ao liberalismo”. Consequentemente, “não é apenas evidente escolher enquanto grupo de referência um grupo reconhecido pela tradição, continuidade, história ou enraizamento. É, para além disso, altamente arriscado deixar este grupo a favor de outros. Tal risco contorna-se através da escolha do grupo tradicional – e nesta medida a escolha deixa de ser livre em si mesma”511. 510 WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, cit., pp. 357 - 374. 511 ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., pp. 166 – 168. Considerando que as características do comunitarismo podem implicar, se levadas até às últimas consequências, uma visão totalitária da sociedade, ver CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 367. Para este Autor “a primazia do bem sobre os direitos individuais permite justificar 136 Por outro lado, para o Autor as fragilidades apontadas ao liberalismo decorrem do facto de este ser normalmente identificado com o liberalismo neutral, uma vez que, “de facto, o debate em torno do comunitarismo/liberalismo anda muito à volta das fraquezas e das vantagens de uma concepção de Estado segundo a qual este se comporta de modo neutral em relação a ideais morais e a questões da vida em comunidade boa e justa. Este dever de neutralidade não se refere apenas a questões religiosas (…), abarcando também questões seculares”512. Segundo ele, a dicotomia liberalismo/comunitarismo apenas faz sentido “quando o liberalismo é, pelo menos implicitamente, equiparado ao liberalismo neutral”. Mas a verdadeira distinção a estabelecer é a que existe entre “uma concepção do Estado que estabelece como objectivo a prossecução de ideais morais (perfeccionismo) e uma outra que nega esta possibilidade ao Estado (liberalismo neutral)”513. Assim, Haltern questiona se a transição do liberalismo para o comunitarismo proposta por Brugger não descura “a possibilidade de um fim moral para o liberalismo”. Se “a ‘mudança de paradigma’ trazida por Brugger pretende simplesmente acentuar o perfeccionismo, talvez fosse mais útil colocar em primeiro plano o potencial perfeccionista do Estado liberal”. O liberalismo não tem necessariamente de significar liberalismo neutral. Para o Autor, “também o estado liberal é perfeccionista, na medida em que também políticas perfeccionistas que procurem ideais de excelência ou de virtude pessoal mesmo quando os indivíduos não os entendam como tal e, consequentemente, não os subscrevam”. Também LUKAS K. SOSOE, “Individu ou communauté: la nouvelle critique du libéralisme politique“, in Archives de Philosophie du Droit, n.º 33, 1988, p. 89, sustenta que “a teoria política dos defensores da comunidade não é defensável. (…) Que a solidariedade em relação ao conjunto de membros da comunidade à qual pertencemos seja um dever moral que se impõe à nossa consciência individual e até colectiva pode compreender-se. Que se torne a solidariedade numa obrigação política ou jurídica decorrente da nossa concepção de comunidade como elemento constitutivo das pessoas que nós somos pode conduzir a violações muito graves dos direitos individuais e também não se pode defender no plano filosófico”. 512 ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, in KritV, n.º 83, 2000, pp. 154 e 155. 513 ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 155. O Autor esclarece, no entanto, que não se pode considerar que Winfried Brugger seja um dos Autores “que identifica, sem mais, o liberalismo com o liberalismo neutral”, uma vez que “em vários escritos ele tem chamado a atenção para o potencial do Estado liberal para a prossecução de objectivos morais”. 137 este prossegue objectivos morais”514. Assim, segundo o Autor a distinção entre liberalismo e comunitarismo perde, deste modo, sentido. A diferenciação a fazer não é entre comunitarismo e liberalismo mas sim entre liberalismo neutral e liberalismo perfeccionista515. De facto, o constitucionalismo liberal não tem de ignorar “os vínculos familiares e comunitários, nem o modo como os mesmos condicionam a formação da personalidade”. Apenas deseja evitar que estes sejam “abusivamente utilizados”, pondo em causa “a igual liberdade e dignidade dos indivíduos”516. Os defensores do comunitarismo não têm em devida conta a destrinça entre “comunidade (Gemeinschaft)” e “sociedade (Gesellschaft)”, reduzindo esta última à primeira. Ao contrário do que sucede com “a comunidade, a sociedade coloca problemas de coexistência de liberdades que não se resolvem com a simples referência à natureza social dos sujeitos”517. 3. Liberalismo neutral versus liberalismo perfeccionista Partindo da perspectiva que acabamos de referir, vamos deixar de lado a discussão entre comunitarismo e liberalismo e vamos então procurar aprofundar um pouco mais a discussão entre liberalismo neutral e liberalismo perfeccionista. A opção pelo neutralismo ou pelo perfeccionismo não é meramente teórica, tendo “implicações práticas significativas porque, de acordo com a neutralidade, se não existir alguma justificação neutral com força suficiente para que uma política seja implementada, esta não deverá sê-lo”518. O “background teórico” do neutralismo contemporâneo é o 514 ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 156. 515 ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 163. 516 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 167. 517 LUKAS K. SOSOE, “Individu ou communauté, la nouvelle critique du libéralisme politique”, cit., pp. 88 e 89. 518 SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, in The Journal of Political Philosophy, Vol. 14, n.º 1, 2006, p. 111. 138 “antiperfeccionismo da teoria da justiça de John Rawls”519. Nesta, Rawls procura a “concepção de justiça mais apropriada” para uma sociedade democrática520. Para tal, utiliza a “posição original” e o “véu de ignorância” de modo a descortinar, de forma imparcial, “os princípios fundamentais de justiça de uma ‘sociedade bem ordenada’”521. Para o Autor, “qualquer justificação adequada de um conjunto de princípios básicos deve ser neutra”, na medida em que o “’véu de ignorância’” afasta todas as pré-compreensões quanto ao que deva ser o melhor modo de vida522. Esse véu “impede que a escolha dos princípios de justiça seja guiada por certas concepções do bem em detrimento de outras”, pelo que “os princípios da justiça e a estrutura institucional básica por eles justificada incluem o valor da neutralidade”. O antiperfeccionismo não defende que “todas as concepções particulares de bem são igualmente boas”, mas sim que, numa “sociedade bem ordenada, com uma estrutura básica justa, são admitidas todas as concepções compatíveis com a justiça”. Segundo o Autor, é por esta via que se garante “o interesse fundamental de cada indivíduo em viver uma vida boa contra as tentativas de intromissão por parte de um Estado perfeccionista”, uma vez que “[e]ste viola o valor liberal de autodeterminação de cada indivíduo”523. Em conformidade com isso, o liberalismo político, na acepção de Rawls, procura determinar como é possível haver “uma sociedade justa e estável”, cujos “cidadãos livres e iguais” estejam divididos por doutrinas “filosóficas, religiosas ou morais” conflituantes524. Enquanto “concepção política”, a justiça como equidade busca “satisfazer a neutralidade de objectivo”, de modo a que “as instituições básicas e as políticas públicas (…) não sejam elaboradas para 519 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” in JOÃO CARLOS ESPADA (coord.), Liberdade, Virtude e Interesse Próprio, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 1997, p. 76. 520 Mais desenvolvidamente JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça, (trad. CARLOS PINTO CORREIA), Editorial Presença, Lisboa, 1993, pp. 33 ss; 521 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Uma introdução a Rawls”, in Scientia Iuridica, n.º 294, 2002, p. 414. 522 GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 31. 523 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” cit., pp. 76 e 77. 524 JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, (trad. JOÃO SEDAS NUNES), Editorial Presença, Lisboa, 1996, p. 33. 139 favorecer qualquer doutrina abrangente particular”525. Para prosseguir tal objectivo, a concepção de justiça como equidade deverá antes assentar “numa pluralidade de doutrinas compatíveis com essa concepção de justiça”526. A teoria rawlsiana parte da “igual liberdade de todos os cidadãos” e procura evitar que seja imposta uma qualquer “concepção metafísica, holística e essencialista de verdade objectiva”, o que tem como consequência que o Estado não possa fazer determinadas opções políticas ou jurídicas, de modo a garantir que os indivíduos sejam sempre encarados como “agentes morais livres, iguais e racionais”527. Para Rawls, “o apoio doutrinal à sua concepção pode ser conceptualizado como um ‘consenso de sobreposição’”. Tal significa que, mesmo que não haja acordo entre os cidadãos no que se refere “às doutrinas abrangentes” que preconizam, pode haver concordância quanto a um “núcleo de valores políticos fundamentais”, que são os “que têm a ver com o apoio a uma constituição justa, mas também aos aspectos sociais e económicos da justiça”528. O liberalismo político visa a construção desse “’consenso razoável’ de modo a permitir o dissenso e a pluralidade ao nível das opções privadas de cada um”529. O Autor constrói, então, “um modelo deliberativo de democracia” que assenta “no uso público da razão” e que sustenta que as decisões tomadas pelos poderes políticos se devem escorar em razões que possam ser aceites por todos. Considera, no entanto, que são apenas de aceitar as razões relativas “aos princípios de justiça”, não devendo ser tida em conta “qualquer consideração relativa à ideia do bem”530. O liberalismo político pressupõe “que 525 JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, cit., p. 193. 526 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Liberalismo igualitário”, in JOÃO CARDOSO ROSAS (org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 59. 527 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 145. 528 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Liberalismo igualitário”, cit., p. 60. 529 CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 93. 530 ACÍLIO DA SILVA ESTANQUEIRO ROCHA, “Democracia deliberativa” in JOÃO CARDOSO ROSAS (org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 163. GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., pp. 144 e 145, coloca a questão de saber porque é que será mais difícil saber o que é o bem do que saber o que é o justo. Para o Autor, tal deve-se ao facto de se entender que normalmente “os julgamentos quanto ao bem são mais vulneráveis a distorções devidas a preconceitos e preferências estéticas”. No entanto, considera que, em contrapartida, “serão menos vulneráveis a outros tipos de distorção”. Uma vez que as questões de justiça “são normalmente levantadas em situações de conflitos de 140 existem muitas doutrinas abrangentes razoáveis concorrenciais, com as respectivas concepções do bem, cada uma compatível com a plena racionalidade das pessoas humanas”531. No seguimento da teoria de Rawls, a “defesa mais explícita” do neutralismo contemporâneo encontra-se na teoria política de Dworkin que, tal como Rawls, defende que o perfeccionismo é uma ameaça ao ideal liberal de autonomia532. O Autor preconiza a neutralidade do Estado liberal, pelo que considera que as decisões políticas devem ser, na medida do possível, independentes de qualquer “concepção da vida boa”533. A crítica basilar que se dirige a Rawls (e aos seus seguidores) é a de que as normas de direitos fundamentais não resultam de uma “posição original”, mas antes de uma “’experiência’ histórico-socialmente situada”534. A posição rawlsiana não atribui a importância devida ao facto inegável de a origem dos direitos e liberdades se encontrar nas “concepções éticas, políticas e jurídicas” nas quais se baseiam535. É, então, a constatação de que os homens não existem “em estado puro”, mas “situada e comprometidamente”, que fundamenta a oposição a esta perspectiva536. Por outro lado, os defensores do liberalismo neutral sustentam que o liberalismo rejeita e prescinde de “qualquer teoria substantiva do bem enquanto fim determinado para a realização humana”537. Contudo, outra das críticas que se aponta a esta posição prende-se com o facto de a “estrutura básica” ter a interesse, as nossas respostas parecem ser mais facilmente influenciadas por emoções como a inveja, o medo, o egoísmo”, etc. 531 JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, cit.,p. 142. 532 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” cit., pp. 77 e 78. Ver, mais desenvolvidamente, RONALD DWORKIN, A Matter of Principle, cit., pp. 191 ss. 533 RONALD DWORKIN, “Liberalism”, in STUART HAMPSHIRE (ed.), Public and Private Morality, Cambridge University Press, Cambridge, 1978, p. 127. 534 FERNANDO J. BRONZE, “Pessoa, Direito e Estado”, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO PEDRO PAIS DE VASCONCELOS – PAULA COSTA E SILVA (orgs.), Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2008, p. 317. 535 ANTONIO PEREZ LUÑO, “Derechos humanos y constitucionalismo en la actualidad: continuidad o cambio de paradigma?”, in ANTONIO PEREZ LUÑO (org.), Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, Marcial Pons, Madrid, 1996, pp. 49 e 50. 536 LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 51. 537 WILLIAM A. GALSTON, Liberal Purposes. Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State, Cambridge University Press, Cambridge, 1991, p. 81. 141 sua raiz “num ideal de pessoa que muitos consideram perfeccionista”538. Entende-se que há uma profunda contradição na teoria de Rawls, uma vez que esta “não é rigorosamente neutra”. O pluralismo rawlsiano é um “’pluralismo razoável’, em que só resultam sobrepostas - num ‘consenso de sobreposição’ – ‘doutrinas abrangentes incompatíveis, se bem que razoáveis’”539. Carlos Santiago Nino considera, por seu lado, que só se logrará “obter um conjunto de direitos” se se partir de “alguma concepção de bem”. Os “princípios de justiça” que estão na base dos direitos individuais não decorrem apenas de um “critério procedimental de aceitabilidade de princípios universais (…), em condições ideais de racionalidade e imparcialidade”, antes incluem, necessariamente, “o valor substantivo da autonomia pessoal”540. O Autor considera que uma posição que defenda que é “necessário determinar um conjunto de princípios liberais de justiça que sejam neutrais mesmo em relação aos valores de autonomia e individualidade não parece oferecer esperança de um desenvolvimento fecundo”541. Ainda que não seja fácil densificar o princípio da autonomia pessoal, dele retiramos a indispensabilidade de garantir alguns direitos individuais basilares, que são os que visam proteger os bens necessários para que o indivíduo possa eleger e prosseguir os seus próprios “planos de vida”542. Nesse sentido, entende que “o liberalismo deve avançar uma concepção de bem que inclua de maneira essencial a autonomia”543. É em nome de um perfeccionismo liberal que também Joseph Raz critica o neutralismo. Este Autor defende que “é impossível ser neutral sobre ideais do bem ou excluí-los completamente enquanto razões para a acção política”. Tal 538 Ver GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 247. 539 LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 140. 540 CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., pp. 372 e 373. O Autor entende, no entanto, que “esta concepção da sociedade boa não pode ser ‘rotulada’ de perfeccionismo sem estar a privar o termo da sua relevância classificatória”, na medida em que este “está geralmente ligado a concepções que aprovam a interferência na livre adopção de certos ideais, mesmo que estes não ponham em causa uma adequada distribuição da autonomia pessoal”. Nesse sentido, ver CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 136. 541 CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 372. 542 CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 145. 543 CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 374. 142 deve-se ao facto de “não ser possível distinguir a moralidade em relação ao próprio da moralidade intersubjectiva”544. Assim, o perfeccionismo político, que defende que “a acção do Estado deve ter como um dos seus objectivos a promoção de formas de vida moralmente valiosas”, volta a ser hoje sustentado. No entanto, os seus seguidores situam-se “na tradição do pensamento político liberal, com o qual partilham a maioria das posições substantivas acerca dos valores que devem presidir à ordenação da sociedade política e do desenho institucional que deve configurá-la”. O “perfeccionismo liberal” afasta-se do “perfeccionismo tradicional” em dois aspectos essenciais: por um lado, na“ defesa do pluralismo valorativo” e, por outro, no papel atribuído à “autonomia pessoal” enquanto elemento essencial de uma “vida boa”545. Os Autores que se inserem nesta linha de pensamento entendem que a solução perfeccionista é a mais adequada, tanto por ser a que melhor se concilia com a prática dos Estados liberais actuais, como pelo “seu valor crítico na formulação de juízos de moral política sobre questões debatidas nesse âmbito”. Ao contrário da “filosofia política liberal dominante [que] procura, seguindo as perspectivas de Mill e Rawls, separar, em maior ou menor medida, a moral política da moral pessoal”, considerando que são apenas limitadamente transponíveis para a moral política “as concepções de vida boa que, enquanto cidadãos, defendemos na nossa moral pessoal”, a crítica perfeccionista contesta “a distância entre os aspectos público e privado da moral para defender que uma boa política deve basear-se substancialmente em considerações sobre a vida boa próprias da moral pessoal”546. Tal como algum liberalismo neutral, também Raz atribui um papel central à autonomia individual, pelo que se distancia “de uma ideia de ‘bem comum’ correspondente a uma concepção determinada do bem”, sustentada por “determinadas vertentes do comunitarismo contemporâneo”. Apesar disso, Raz interpreta diferentemente “a ideia liberal de autonomia”. Esta “não é desejável 544 CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 133. 545 JOSÉ LUIS COLOMER, “Autonomía y Gobierno. Sobre la posibilidad de un perfeccionismo liberal”, in DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 24, 2001, pp. 252 e 264. 546 JOSÉ LUIS COLOMER, “Autonomía y Gobierno. Sobre la posibilidad de un perfeccionismo liberal”, cit., pp. 252 e 253. 143 porque permite a escolha (…) das concepções individuais de bem”, mas sim porque “está associada a valores defensáveis em si mesmos”, competindo ao Estado “favorecer as concepções do bem que são válidas e desfavorecer as que o não são”. No entanto, o Autor considera que “existe uma pluralidade de concepções do bem válidas”, pelo que o “ideal de autonomia”, para além do perfeccionismo, “requer também o pluralismo moral”547. Para Raz, o liberalismo deve encarar a liberdade pessoal “como um aspecto da vida boa”. Em conformidade com isso, a moralidade que preconiza “pressupõe um pluralismo competitivo”, ou seja, “pressupõe que as pessoas devam ter à sua disposição várias formas ou estilos de vida que incorporam virtudes incompatíveis que não só não podem ser realizadas numa vida como tendem a gerar intolerância mútua”548. Por outro lado, o Autor entende que “a doutrina da liberdade baseada na autonomia pressupõe o harm principle”549. A interpretação que faz do princípio vai no sentido de o compreender “não como uma forma de limitar a prossecução de objectivos morais pela parte do Estado”, mas antes apontando a medida em que este “pode promover o bem-estar das pessoas”. Uma vez que, para a perspectiva em análise, a autonomia assume um papel fundamental, o Estado não deve obrigar os seus cidadãos a actuar de acordo com uma determinada concepção moral. Aquilo que lhe compete fazer é apenas “criar as condições de autonomia”. Desta feita, “o uso de coacção, porque implica uma ingerência na autonomia e desrespeita o propósito de a promover”, apenas deve acontecer quando se vise garantir a manutenção dessa mesma autonomia ou prevenir danos em terceiros. Assim entendido, “o harm principle permite políticas perfeccionistas desde que estas não recorram à coacção”, estabelecendo “um limite quanto aos meios a utilizar para prosseguir ideais morais. Tais ideais podem ser prosseguidos através de meios 547 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” cit., pp. 80 e 81. 548 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, Clarendon Press, Oxford, 1986, pp. 265, 424 e 425. 549 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., pp. 425 e 426. Estamos aqui a referir-nos ao princípio do dano de Mill, segundo o qual o Estado só pode interferir na liberdade dos cidadãos quando vise evitar danos em terceiros. Nas palavras do Autor, “o próprio bem, físico ou moral, não é justificação suficiente para que o indivíduo seja obrigado a agir ou a obedecer. A única parte da conduta por que este é responsável perante a sociedade é a que diz respeito aos outros”. Ver JOHN STUART MILL, Sobre a liberdade, cit., p. 17. 144 políticos, mas não através do uso de coacção, excepto quando esse uso tenha em vista prevenir um dano”550. Assim, têm-se verificado nos últimos anos, “na cultura política e jurídica anglo-saxónica”, (…) algumas tentativas mediadoras entre a concepção axiológica atomista, descontextualizada e a-histórica atribuída aos liberais e as identidades colectivas, concretas e históricas convencionalmente associadas ao comunitarismo”. Outro desses exemplos é William Galston, que defende que o Estado constitucional liberal deve prosseguir determinados valores que derivam de “um núcleo de ideias ético-políticas concreto e historicamente determinado, que é responsabilidade dos poderes públicos comunicar aos cidadãos através da educação cívica”. Esta perspectiva opõe-se claramente à de Rawls, que, como vimos, considera que “’deve ser posta de parte a esperança numa comunidade política unida na afirmação de uma única doutrina omnicompreensiva’”551. Galston rejeita também a tese da neutralidade e entende que o liberalismo “assenta, de facto, numa determinada concepção do bem humano”. Esta posição afasta-se, no entanto, do perfeccionismo da antiguidade clássica, na medida em que não tem a pretensão de descrever qual a melhor forma de vida para todos os seres humanos552. Para o Autor, a teoria liberal do bem visa facultar “uma base partilhada” que sirva de rumo para a determinação das políticas públicas. Tal não quer dizer, no entanto, que essa concepção do bem possa ser imposta aos indivíduos através da coerção estatal. É essencial estabelecer uma diferenciação entre “políticas públicas dirigidas a criar capacidades e oportunidades”, e “a condução de planos de vida individuais”, o que demonstra que “o liberalismo pode abraçar simultaneamente o respeito pela actuação 550 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 420. 551 ANTONIO PEREZ LUÑO, “Derechos humanos y constitucionalismo en la actualidad: continuidad o cambio de paradigma?”, cit., pp. 47 e 48. 552 WILLIAM A. GALSTON, Liberal Purposes. Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State, cit., p. 8. De facto, “Platão e Aristóteles e a tradição cristã” localizam-se no lado das concepções de bem que sustentam “que existe apenas uma concepção deste tipo susceptível de ser reconhecida por todos os cidadãos que são plenamente razoáveis e racionais”. Partindo do “pensamento grego, a tradição dominante parece ter sido durante longo tempo a de que só existe uma concepção razoável e racional do bem. O objectivo da filosofia política (…) seria então a determinação da sua natureza e conteúdo”. Ver JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, cit., p. 142. 145 individual e por uma concepção do bem”553. Finalmente, Martha Nussbaum, seguindo Amartya Sen no que designa por “capability aproach”, sustenta que, para assegurar a todos os seres humanos a liberdade de conformarem a sua própria vida, aquilo que se deve ambicionar “não é que estes ajam de uma determinada maneira, mas antes que sejam capazes de agir de uma determinada maneira”. Partindo desta ideia, a Autora “coloca a ênfase nas capabilities, ou seja, na oportunidade que as pessoas têm de agir das melhores formas possíveis”554. Esta “abordagem normativa” defende que “a tarefa central de uma Constituição e da tradição legal que a interpreta é a de garantir a todos os cidadãos os pré-requisitos de uma vida merecedora de dignidade humana – um grupo nuclear de capabilities – em áreas de importância fundamental para a vida humana”555. Estas “capabilities” devem ser convertidas em garantias constitucionais, a desenvolver pelo legislador, “independentemente da concepção de bem que os indivíduos prossigam”556. A Autora identifica, consequentemente, uma lista muito reduzida de direitos que devem ser reconhecidos a todos os cidadãos “enquanto direitos básicos de uma sociedade justa”. No que está para lá dessa lista, “cabe às pessoas fazer as suas próprias escolhas com base nas suas diferentes perspectivas do que é uma vida boa. Para além disso, na medida em que estes direitos básicos são entendidos como capabilities e não como funções ou acções, o facto de serem atribuídos a uma determinada pessoa não implica que esta os utilize”557. A capabilities aproach defende que os poderes públicos devem 553 WILLIAM A. GALSTON, Liberal Purposes. Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State, cit., pp. 178 e 179. GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 248, entende, por seu lado, que “não há nada a ganhar e há muito a perder com a imposição de limites artificiais às razões” que os poderes públicos podem e devem ter em conta quando tomam decisões. 554 SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s Capability Approach”, in Review of Political Economy, Vol. 14, n.º 4, 2002, http://opus.bath.ac.uk/462/1/RevPolEco 2002.pdf (última visita a 12.04.2010), pp. 6 e 7. 555 MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, in Harvard LR, Vol. 121, n.º 4, 2007, p. 7. 556 SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s Capability Approach”, cit., p. 10. 557 MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., p. 20. 146 “promover um grupo de condições básicas necessárias para vidas que se possam razoavelmente realizar, vidas merecedoras de dignidade humana”. Caso não se atinja esse objectivo, o Estado deve ser responsabilizado e “não se alcançou a justiça mínima”558. Perante tudo isto, resta-nos agora tomar uma posição quanto à concepção do Estado que nos parece mais consentânea com a nossa ordem jurídica: se uma concepção que estabelece como objectivo a prossecução de ideais morais (perfeccionismo) ou uma concepção que nega tal possibilidade ao Estado (liberalismo neutral)559. A questão que temos que colocar é, então, a de determinar se a liberdade individual é “compatível com a busca e assunção de virtudes públicas”, ou se essa busca deve “ser entendida como uma ameaça à liberdade e à tolerância”560. 558 MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., p. 24. Ainda que inicialmente a Autora assuma expressamente que esta abordagem é perfeccionista, na medida em que as capabilities devem ser promovidas pelo Estado (saúde, acesso à educação, etc), independentemente daquela que seja a vontade das pessoas (embora seja um perfeccionismo liberal, “na medida em que a tarefa das instituições públicas não é promover essas ‘perfeições’ da vida humana, mas antes criar as oportunidades para [as] exercer”), nos últimos anos tem vindo a modificar a sua posição, uma vez que passou a enquadrar esta abordagem (capability approach) dentro do contexto do liberalismo político rawlsiano. Consequentemente, passou a considerar que as capabilities “devem ser promovidas pelo facto de serem o meio através do qual cada ser humano escolherá a sua própria concepção do bem”. Nesse sentido, SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s Capability Approach”, cit., pp. 2, 7, 9 e 10. 559 O TC não assumiu expressamente uma posição quanto a esta discussão. Efectivamente, no Acórdão n.º 617/06, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html, relativo ao referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, diz o seguinte: “A reflexão sobre valores numa sociedade democrática, pluralista e de matriz liberal quanto aos direitos fundamentais tem sido objecto privilegiado do pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se na ideia de um “consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por John Rawls (…). O Autor concebe a possibilidade de um consenso sobre valores políticos, como o respeito mútuo ou a liberdade, sem o sacrifício de valores mais abrangentes e de visões particulares, mas a partir da diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções religiosas podem confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores estritamente políticos. Ora, independentemente de se aceitarem as teses resultantes da referida orientação, não poderá deixar de se registar que a discussão sobre valores induz a reconhecer que a possibilidade de um Estado de Direito democrático os impor é problemática. Uma tal imposição não se legitima na mera evidência intuída pela consciência individual, num mandato divino ou até na decisão discricionária do poder político, ainda que legitimado pela maioria. A decisão sobre valores é fundamentante do Estado de Direito e não está arredada da discussão democrática, orientada por regras de liberdade, igualdade de oportunidades, participação política efectiva e limites lógicos à autocontradição (cf. Arthur Kaufmann (…), onde se lê que “só na livre discussão de opiniões a verdade tem uma chance” e que “a indagação da verdade é um problema de liberdade”).” 560 JOÃO CARLOS ESPADA, A Tradição da Liberdade, Principia, Cascais, 1998, p. 116. 147 A posição defendida pelo liberalismo neutral “não é, sem mais, evidente”. O liberalismo e o perfeccionismo não têm necessariamente de se opor, na medida em que “também o estado liberal tem a possibilidade (e, dependendo da sua conformação constitucional, o dever) de promover objectivos morais”. Tal não torna, no entanto, a Constituição comunitarista, desde que esta compreenda, no sentido liberal, “a autonomia individual, a igualdade moral e a universalidade, enquanto inerentes à ideia de direito moral”561. Parece-nos efectivamente que se o respeito pelos indivíduos e pela sua autonomia é fundamental em Estado de Direito, tal poderá implicar que os poderes públicos sejam “não-neutrais” no que diz respeito a diferentes “concepções do bem”. Sendo a autonomia um valor central na nossa ordem jurídica, então será de exigir ao Estado “que não seja neutral entre concepções de bem que valorizam a escolha autónoma e as que não o fazem”562. Por outro lado, os preceitos relativos aos direitos fundamentais traduzem o reconhecimento de “bens ou valores” importantes para uma dada comunidade e que justificam esses mesmos preceitos563. O “núcleo principial” do Estado Constitucional “é fruto (…) de um processo longo de ‘experimentação’ e ‘aprendizagem’”, sendo a Constituição “o espelho dos valores fundamentais (…) de uma comunidade política”564. Existe, então, uma “unidade de sentido cultural nos direitos fundamentais”, o que não significa, no entanto, a aceitação de “uma determinada teoria dos valores” ou “o reconhecimento de uma ordem de 561 ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., pp. 161 – 162. 562 ANDREW D. MASON, “Autonomy, liberalism and State Neutrality”, in The Philosophical Quarterly, Vol. 40, n.º 160, p. 452. 563 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 100. 564 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., pp. 713 e 714. Este Autor considera que “a dimensão valorativa do ‘constitucionalismo adequado’ exige que o sistema jurídico seja compreendido como um sistema autónomo mas aberto à Moral”. Autónomo porque “possui uma lógica própria, um código autónomo, em função do qual opera as suas escolhas e estabelece as comunicações com outros subsistemas”. Aberto “porque os conceitos-chave do sistema apresentam-se como uma expressão de racionalidade prática, obrigando a pontes normativas entre a Ética e o Direito”. Nesse sentido, ver JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., pp. 172 e 173. 148 valores hierárquica, abstracta e fechada”, sendo “a ordem constitucional dos direitos fundamentais uma ordem pluralista e aberta”565. É o princípio da dignidade da pessoa humana que confere essa “unidade de sentido” aos direitos fundamentais566. Tal implica que devamos partir de uma concepção de bem que “inclua de maneira essencial a autonomia”567, uma vez que o princípio da dignidade se consubstancia precisamente na ideia de (igual) autonomia. Seguindo Raz, entendemos que esta não é apenas defensável por permitir a cada um optar por uma determinada “concepção de bem”, mas sim porque “está associada a valores defensáveis em si mesmos”. No entanto, como vimos também, o Autor considera que não existe apenas uma concepção do bem válida, pelo que a atribuição de um papel central à dignidade e à autonomia individual exige também “o pluralismo moral”568. O “fundamento do próprio pluralismo” está no reconhecimento da dignidade de todos569. Assim, o Estado plural não tem necessariamente de ser um Estado neutral570. O “princípio do pluralismo” obriga o Estado a assegurar aos seus 565 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 100 e 101. Considerando que “a transformação da teoria dos valores numa teoria dos princípios evita a temida ‘tirania dos valores’ sem se cair numa (impossível) indiferença aos valores”, ver JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., p. 162. Defendendo que um dos topoi centrais da moderna teoria da Constituição é a abertura material e a abertura ao tempo da Constituição, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, cit., pp. 146 ss. 566 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 103. JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., p. 174, refere também que “no Estado Constitucional Democrático as Constituições incorporam valores e princípios do Direito Justo (…), cuja referência última é a dignidade da pessoa humana”. Ver também JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 197. FERNANDO J. BRONZE, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão Problematizante dos Pólos da Radical Matriz Analógica do Discurso Jurídico), Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 76, considera que a “pressuposição da dignidade da pessoa” atesta a “dimensão ética do Direito”; LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 551, entende que “o Direito enquanto Direito reflecte uma ideia parametrizadora de bem”, que é a dignidade humana. 567 CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 374. 568 JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?”, cit., pp. 80 e 81. 569 LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 144. 570 Defendendo, no entanto, a ideia de neutralidade ética do Estado, ver PAULO MOTA PINTO, “Nota sobre o ‘imperativo de tolerância’ e seus limites”, in Estudos em Memória do Conselheiro 149 cidadãos, “por intermédio da democracia e dos direitos fundamentais, ‘certos espaços de autodeterminação em que [os poderes políticos e sociais] não podem entrar’”. Por seu lado, “o princípio da neutralidade” impõe que o Estado “escolha, em cada caso concreto, soluções inteiramente neutras em relação às autocompreensões individuais e colectivas”. Daqui se retira que “o Estado contemporâneo está subordinado ao princípio do pluralismo; não está, no entanto, subordinado ao princípio da neutralidade”571. As democracias pluralistas devem garantir “os princípios da heterogeneidade, da autonomia e da tolerância”, o que quer dizer que não há “verdade total”, um “caminho único para a felicidade”, ou “condutores iluminados que dirijam os homens nessa via de salvação”572. O pluralismo, seja “religioso, mundividencial ou político”, é uma característica essencial de um mundo livre, no qual devem “coexistir amigavelmente pessoas com convicções, mundividências e valores muito distintos”573. A nossa Constituição garante a “diversidade de convicções éticas, religiosas e filosóficas”, através da consagração de vários direitos fundamentais, como é maxime o caso do direito ao desenvolvimento da personalidade, mas também do direito à imagem, à palavra ou das liberdades de consciência, religião e culto. Constitui-se, deste modo, uma “sociedade aberta plural”, através do “reconhecimento de uma autonomia ética do Luís Nunes de Almeida, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 760 – 762, que estabelece que “a ideia de neutralidade ética do Estado, e de um correspondente imperativo de subordinar a actuação pública aos limites do ‘justo’ em vez de a particulares concepções do ‘bem’, corresponde a uma concepção liberal e aberta da Constituição, e constitui um ponto central da teoria e do Direito Constitucional, perante o crescente facto do pluralismo ético em sociedades não formalmente estratificadas, como a maioria das sociedades contemporâneas. O domínio de protecção dos direitos fundamentais tem de ser interpretado segundo pontos de vista neutrais, com validade geral, não confessionais ou vinculados a certas mundividências, garantindo que a protecção da liberdade não seja logo à partida limitada a um certo uso correcto da liberdade.“ 571 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 163. 572 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Pluralismo”, in Pólis – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. 4, Editorial Verbo, Lisboa, 1986, p. 1286. FERNANDO J. BRONZE, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão Problematizante dos Pólos da Radical Matriz Analógica do Discurso Jurídico), cit., p. 267, defende que em democracia todas as pessoas, iguais em dignidade, devem ver as suas diferenças respeitadas. 573 FRANZ JOSEF WETZ, Die Würde der Menschen ist antastbar. Eine Provokation, Klett-Cotta, Stuttgart, 1998, p. 102. 150 indivíduo”574. Nas sociedades pluralistas actuais, que assimilam uma multiplicidade de “grupos sociais com interesses, ideologias e projectos distintos”, cabe à Constituição “não a tarefa de estabelecer directamente um projecto pré-determinado de vida em comum, mas antes a de realizar as condições de possibilidade da mesma”575. Numa perspectiva pluralista, os poderes públicos devem ter em consideração que muitas controvérsias que são chamados a resolver não representam “o conflito entre o bem e o mal, mas antes o conflito entre o bem e o bem”576. Por outro lado, parece-nos também relevante a ideia de que os direitos fundamentais devem ser entendidos como “capabilities”.577 No fundo estes direitos devem conferir as “condições para uma vida autónoma”, na medida em que a “capabilities aproach” defende que cabe aos Estados promover um conjunto de condições básicas que permitam a realização pessoal dos indivíduos. No entanto, o facto de estas condições serem atribuídas não implica que os indivíduos sejam obrigados a gozá-las578, ou pelo menos não implica que tenham de o fazer a partir do momento em que a ordem jurídica lhes confere capacidade para tomar essa decisão. 4. Perfeccionismo versus paternalismo Finalmente, deve também distinguir-se o perfeccionismo político de políticas paternalistas. Como vimos, para o perfeccionismo é legítimo que o Estado promova “certos modos de vida ética” e desincentive outros579. Num 574 MIGUEL PRATA ROQUE, “Sociedade aberta e dissenso. Contributo para a compreensão contemporânea do princípio do pluralismo político”, in Homenagem ao Prof. Doutor André Gonçalves Pereira, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 379 e 385. 575 GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, cit., pp. 13 e 14. 576 WILLIAM A. GALSTON, Liberal Pluralism. The Implications of Value Pluralism for Political Theory and Practice, Cambridge University Press, Cambridge, 2002, pp. 68 e 69; também WILLIAM A GALSTON, “Value Pluralism and Political Liberalism”, cit., p. 59. 577 MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., p. 20. 578 MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., pp. 20 e 24. 579 ROBERTO MERRILL – VINCENT BOURDEAU, “Republicanismo”, in JOÃO CARDOSO ROSAS 151 quadro perfeccionista, cabe aos poderes públicos “criar instituições (legais, económicas e sociais)” nas quais os “bens” que constituem “a vida humana boa” se possam realizar, independentemente da questão de saber se as pessoas estão ou não de acordo com isso. Consequentemente, para essa promoção o perfeccionismo poderá favorecer o uso da coacção estadual, razão pela qual foi muitas vezes “assimilado ao paternalismo, de acordo com o qual a liberdade e a autonomia da pessoa podem ser restringidas para o seu próprio bem”580. Contudo, o perfeccionismo não pressupõe necessariamente medidas paternalistas581. Em bom rigor, “nem toda a acção perfeccionista implica a imposição coactiva de uma forma de vida”, já que “grande parte dela pode consistir em estimular ou facilitar a acção desejada ou desencorajar as condutas indesejadas”582. Partindo precisamente desta distinção, Simon Clarke defende uma via intermédia, designada “neutralidade apenas para o paternalismo” e que se traduz no seguinte: “no que diz respeito ao paternalismo, o Estado deve ser neutro, mas a neutralidade não é uma exigência para as políticas não paternalistas”. Assim, segundo o Autor, “nem todo o perfeccionismo é paternalista”. A “essência do paternalismo” assenta em dois pressupostos: o primeiro é que este “exclui uma opção ou impõe uma escolha”; o segundo é (org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p.119. 580 SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s Capability Approach”, cit., pp. 2 e 3. 581 CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 299, por exemplo, separa os dois conceitos na medida em que entende que uma política perfeccionista “contraria o princípio da autonomia, uma vez que favorece a imposição coerciva de concepções do bem ou modelos de excelência humana”, enquanto uma política paternalista “é compatível com esse princípio, na medida em que apenas procura facilitar a conquista pelo indivíduo da sua própria concepção de bem”. Parece-nos, no entanto, que esta perspectiva define o perfeccionismo como excluindo necessariamente as formas mais moderadas de perfeccionismo liberal que referimos e que atribuem um papel central à ideia de autonomia e, por outro lado, é demasiado redutora na medida em que pressupõe que as medidas paternalistas apenas visam facilitar a conquista pelo indivíduo da sua própria concepção de bem. 582 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 161. A crítica que alguns Autores fizeram a esta opção é a de que “tanto a imposição de cargas fiscais como a concessão de subvenções”, por exemplo, “implicam interferir nos custos de oportunidade das diferentes opções abertas à escolha individual, modificando-os artificialmente”. Ver JOSÉ LUIS COLOMER, “Autonomía y Gobierno. Sobre la posibilidad de un perfeccionismo liberal”, cit., p. 282; 152 que essa escolha se exclui ou se impõe “para o bem da própria pessoa”583. As políticas perfeccionistas que não se enquadram no primeiro pressuposto do paternalismo “são as acções estaduais motivadas por considerações perfeccionistas que, em vez de restringir, aumentam as possibilidades de escolha”. Para quem defende a neutralidade do Estado, este tipo de políticas não é admissível, uma vez que “assenta numa concepção do bem”, mas já será de aceitar pela “neutralidade apenas em relação ao paternalismo”. Por outro lado, um tipo de acção estadual na qual o segundo pressuposto do paternalismo não se preenche é “a restrição da liberdade de uma pessoa para o bem perfeccionista dos outros”584. Também este tipo de medidas seria de excluir pelo neutralismo em geral mas não pela “neutralidade em relação ao paternalismo”. Os poderes públicos poderão, inclusivamente, “ter um dever de agir de forma perfeccionista” nestas situações. Finalmente, a neutralidade apenas em relação ao paternalismo sustenta que “é ilegítimo o paternalismo estadual motivado por considerações perfeccionistas”585. Consequentemente, esta construção reforça aquilo que dissemos, no sentido de que mesmo que se defenda um liberalismo perfeccionista, tal não tem forçosamente de implicar que se considerem legítimas medidas estaduais paternalistas. O paternalismo jurídico, como já referimos, parte da ideia de que o Estado poderá, justificadamente, “estabelecer uma proibição ou uma imposição legal mesmo contra a vontade do destinatário, quando esta seja essencial para afastar um dano (físico, psíquico ou económico)”586. No entanto, nem sempre 583 SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, cit., p. 117. Também ANDREW VON HIRSCH, “Direkter Paternalismus: Sollten Selbstschädigungen bestraft werden?”, in MICHAEL ANDERHEIDEN – PETER BÜRKLI – HANS MICHAEL HEINIG – STEPHAN KIRSTE – KURT SEELMANN, Paternalismus und Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2006, p. 236, sustenta que “as intervenções paternalistas têm duas características: em primeiro lugar referem-se ao bem da própria pessoa; em segundo lugar implicam coacção”. 584 Este Autor dá como exemplo a não-permissão de destruição de edifícios com valor histórico pelos seus proprietários. 585 SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, cit., p. 118. Segundo o Autor, exemplo disso é forçar uma testemunha de Jeová a fazer uma transfusão de sangue pois isso violaria a sua própria concepção de bem. A neutralidade apenas em relação ao paternalismo proíbe tais políticas. 586 ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, in Rechtstheorie, n.º 18, 1987, pp. 273 e 274. Segundo o Autor, é esse o caso da proibição de venda de droga e da inabilitação ou interdição de pessoas portadoras de uma deficiência, 153 as medidas paternalistas instituídas visam apenas evitar que a própria pessoa sofra um dano. Poderá ser também um propósito deste tipo de medidas proibir determinadas acções por estas se considerarem “intrinsecamente imorais”587. O paternalismo é, desde logo, suspeito na perspectiva dos direitos fundamentais porque põe em causa o conteúdo de autonomia neles presente, ao permitir que essa autonomia apenas se exerça se se dirigir à promoção do próprio bem588. Em virtude disso, coloca-se a questão de determinar se existem tipos de paternalismo jurídico que se podem “eticamente justificar”589. Convém, antes do mais, distinguir os casos de verdadeiro paternalismo dos casos de “falso paternalismo”. As situações de falso paternalismo dizem respeito a medidas restritivas impostas à prática de determinados actos que não afectam, directamente, interesses de terceiros, mas que, ainda assim, poderão implicar custos para a colectividade. Em virtude disso, o falso paternalismo, ao contrário do verdadeiro paternalismo, que origina o estabelecimento de uma proibição ou de uma imposição legal contra a vontade do destinatário para o seu próprio bem, não visa proteger a pessoa de si própria, antes se baseando “na análise dos custos sociais que decorrem da realização de certos riscos”590. alcoólicos ou toxicodependentes, das disposições relativas à obrigatoriedade do uso de capacete ou cinto de segurança, ou que proíbem nadar em praias não vigiadas, da proibição de compra livre de certos medicamentos e das leis que proíbem determinados jogos de sorte. 587 Exemplos disso são a proibição da homossexualidade entre adultos, de sex-shows ou actividades sexuais sadomasoquistas. Ver ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 274 e 275. 588 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 58. 589 Esta é precisamente a pergunta colocada no título do artigo de ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 273 ss. 590 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 143. O TC português, no Acórdão 99/02, http://w3.tribunalconstitucional.pt/ acordaos/acordaos02/1-100/9902.htm, relativo à lei do Jogo, estabelece que “a punição penal da exploração de jogos de fortuna ou azar não autorizados não se destina primacialmente a impedir a prática de uma actividade – o jogo – considerada moralmente reprovável. Com efeito, o fundamento ético-social do sancionamento penal do jogo de azar não se encontra tanto na necessidade de proteger o jogador contra as inclinações, gostos ou vícios que lhe podem – e normalmente são – prejudiciais, quanto na necessidade de reprimir a prática de uma actividade que constitui objecto de uma significativa reprovação social, do ponto de vista ético, tendo em conta os males e prejuízos para a própria sociedade que se considera encontrarem-se-lhe associados – por exemplo, acréscimo de burlas, usuras e fraudes, bem como de litígios e violências, facilitando o alastramento do crime organizado; significativa perturbação da vida familiar dos jogadores, com repercussão na capacidade de manutenção e educação dos filhos; ou, ainda, possibilidade de incidência negativa no domínio 154 De facto, “a intervenção positiva do Estado, através de medidas legislativas, na esfera da autonomia pessoal do cidadão só se justifica, (…) [em princípio], com o propósito de salvaguardar valores de interesse colectivo - que podem, no contexto actual de escassez de meios (…) traduzir-se no equilíbrio orçamental”591. Assim, ainda que a liberdade geral de acção compreenda “a possibilidade de adopção de actividades perigosas ou arriscadas”, não pode, no entanto, tendo em conta os possíveis encargos que daí possam advir para a comunidade, “excluir-se a possibilidade de intervenção estatal, mesmo que a integridade de terceiros não seja imediatamente posta em causa”592. Em Estado social democrático de Direito, parece, então, fazer sentido considerar que “a repercussão dos custos sociais na colectividade por condutas ‘temerárias’ pode justificar a imposição de restrições – limitações, não proibições – desde que assentes em parâmetros de proporcionalidade”593. das relações laborais ou económicas dos jogadores”. 591 CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, in Scientia Iuridica, Tomo LXLL, n.º 315, 2008, pp. 422 e 423; CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soimême. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 144. Fora destes casos a Autora sustenta que só se poderão justificar medidas de defesa da pessoa contra si própria quando haja risco para a saúde ou segurança dos sujeitos aos quais se impõem essas medidas e esse risco seja grave e certo. Parece-nos, no entanto, que nesses casos a defesa da pessoa contra si própria é mais problemática. Por exemplo, nas situações em que testemunhas de Jeová se negam a fazer uma transfusão de sangue, mesmo que se esteja perante um risco grave e certo para a saúde, ainda assim tem-se entendido que deve prevalecer a decisão autónoma do doente. Sobre esta questão, defendendo que quando se trate de um adulto consciente que não autoriza a transfusão tal decisão deve ser respeitada, uma vez que “esta recusa está tutelada pelos limites legítimos do princípio da autonomia da vontade do doente”, ver STELA MARCOS DE ALMEIDA NEVES BARBAS, Direito ao Genoma Humano, Almedina, Coimbra, 2007, p. 382 ss; também, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação MédicoPaciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 503 ss; ver ainda o Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Parecer 46/CNECV/05, http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres /70D6F7C0-DADC-4475-AA603911837E0FFC/0/P046_ParecerTestemunhasJeova.pdf. Já nos parece, no entanto, que o critério da certeza e gravidade do risco poderá ser útil para aferir se há efectivamente um interesse público ou de terceiros que possa justificar uma restrição da liberdade. Assim, ainda que este critério por si só não deva justificar medidas paternalistas, poderá ser um instrumento relevante nos casos que a Autora designa de falso paternalismo para aferir se efectivamente se justifica a medida restritiva. 592 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 202, nota 144. 593 CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, cit., pp. 421 e 422, que dá como exemplo “o caso de aplicação de multa por condução sem cinto de segurança”. Esta Autora afirma que a alternativa à obrigação de utilização de cintos de segurança seria “a dessocialização do risco de acidente”, obrigando os condutores que não quisessem utilizá-lo a ter um “seguro contra todos os riscos”. Tal significaria, no entanto, “no quadro da prestação pública universal de 155 Torna-se, por isso, imprescindível aferir se a medida em causa respeita o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso nas suas três vertentes: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito. Ainda que se admita “a necessidade abstracta da imposição”, esta deve “ser adequada ao fim em vista”, “concretamente necessária para que se consiga realizar esse fim (num quadro de ponderação de alternativas)” e deve ser proporcional em sentido restrito: a medida “não deve ser intolerável nem deve anular totalmente o direito em causa”594. De todo o modo, convém ressalvar que a determinação das situações em que a repercussão dos custos sociais na colectividade pode justificar a cuidados de saúde, tornar a liberdade individual refém de recursos económicos”. Ver também CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., pp. 142 e 143. REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 187, considera que neste caso há interesses de terceiros a tutelar, na medida em que os custos suplementares advenientes do não-uso recaem sobre todos. RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 262, sustentam que a obrigatoriedade de uso de cinto de segurança e de capacete se justificam pelo facto de o legislador estar vinculado “a um princípio de prevenção activa, nos termos do qual devem todas as actividades que impliquem riscos significativos para as pessoas nelas envolvidas (…) ser objecto de uma regulação jurídica destinada a controlar esses mesmos riscos”. EDUARDO MAIA COSTA, “Obrigatoriedade do uso de cinto de segurança – constitucionalidade”, in RMP, Ano 7, n.º 27, 1986, p. 101, considera que a sujeição dos que praticam actividades perigosas “às normas de segurança não constitui qualquer violação dos direitos fundamentais”, desde que estas “sejam adequadas a evitar a produção de perigos”. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais”, in ANTUNES VARELA – DIOGO FREITAS DO AMARAL – JORGE MIRANDA – JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO (orgs.), Ab Uno Ad Omnes, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 94 e 95, entende que estamos perante um “excessivo paternalismo” na exigência de cinto de segurança dentro das localidades e em zonas com limites máximos de velocidade relativamente baixos, em que o Estado aparece a garantir “a segurança do cidadão contra si próprio”. Também CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 102, refere que contrariamente ao que o Tribunal Constitucional Alemão estabelece, a obrigatoriedade do uso de capacete visa a protecção da pessoa contra si própria e, nessa medida, lesa o direito ao desenvolvimento da personalidade. O BVerfG considerou que essa obrigatoriedade não é violadora dos preceitos constitucionais, na medida em que entendeu que um condutor que tenha um acidente sem capacete e do qual decorram consequências graves não se lesa apenas a si mesmo porque em muitos casos poderão ser evitadas determinadas consequências de um acidente se o acidentado continuar consciente. Ver BVerfGE 59, pp. 275 ss. Quanto a esta questão, a Comissão Europeia dos Direitos Humanos, no caso X v. Reino Unido, n.º 7992/77, decidiu que não estavam isentos da obrigatoriedade do uso de capacete aqueles que, por motivos religiosos, usavam turbante e que, portanto, seriam obrigados a retirá-lo. Ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 86. JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 141, entende que o argumento não paternalista mais forte para a justificação da obrigatoriedade do uso de capacete e cinto de segurança é “o custo psíquico para outros” que pode decorrer do não uso, em caso de acidente. 594 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 145. 156 imposição de restrições não é isenta de dificuldades. Para que possam legitimar uma restrição da liberdade esses custos devem efectivamente decorrer da actuação em causa, ser certos e, finalmente, ter suficiente expressão. É, para além disso, fundamental, na análise da proporcionalidade da medida, considerar o direito que vai ser restringido e a afectação da liberdade que aí vai envolvida. A protecção contra o paternalismo “deverá ser tanto mais intensa quanto mais relevante para a personalidade seja o comportamento em causa”595. Para além disso, a medida restritiva “deve ser precedida (e acompanhada) de tentativas de sensibilização da população para a necessidade de mudar os seus comportamentos de risco, de modo a favorecer uma distribuição dos benefícios sociais mais igualitária. É o princípio do carácter restritivo das restrições (…) que o obriga: só quando o Estado verifica que, apesar dos seus esforços, a situação não se altera, é que pode aprovar medidas restritivas da liberdade individual”596. Estas deverão sempre ser a última ratio. Passando agora para as situações de verdadeiro paternalismo, Kai 595 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 186 e 187. Este Autor exemplifica a sua posição afirmando que “é mais relevante o direito de decidir autonomamente em questões que dizem respeito à vida sexual do indivíduo do que o direito de não usar cinto de segurança”. Pensamos que este raciocínio se relaciona com uma ideia de limite de “bagatela”: partindo desta ideia, “as bagatelas seriam sempre justificáveis, dada a insignificância do prejuízo que provocam na liberdade”. No entanto, este limite de bagatelas “não é pacífica e consensualmente reconhecível”. Exemplo disso será o facto de “para alguns indivíduos a exigência de se apresentarem barbeados ou de cabelo curto é anódina, enquanto que para outros poderá ser sentida como imposição humilhante e atentatória da dignidade pessoal”. Ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 220 e 221, nota 378. Também quanto à obrigatoriedade de uso de capacete, que parece implicar um prejuízo insignificante da liberdade, vimos já que se colocou perante a Comissão Europeia dos Direitos Humanos, no caso X versus Reino Unido, a questão de saber se estariam isentos da obrigatoriedade desse uso aqueles que, por motivos religiosos, usavam turbante e que, portanto, seriam obrigados a retirá-lo. Ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 86. Assim, a avaliação da insignificância do prejuízo só se pode fazer caso a caso, tendo em conta as circunstâncias concretas. PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, cit., p. 69 e 88, defende que “a interferência paternalista em algumas liberdades pode ser justificável”, sendo de distinguir entre liberdades fundamentais e liberdades não fundamentais. Para o Autor, “pode distinguir-se, por exemplo, entre uma lei paternalista que proíbe nadar em praias com correntes perigosas de uma lei paternalista que proíbe o uso terapêutico de marijuana, argumentando que o interesse do indivíduo em ter a liberdade de nadar em correntes perigosas é menos importante do que o interesse em utilizar marijuana por razões terapêuticas”. 596 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 144. 157 Möller, seguindo a perspectiva de John Kleinig597, defende que há medidas paternalistas que se podem justificar quando se vise salvaguardar a integridade do indivíduo. Para o Autor, “há diferenças significativas entre a solução de integridade e as diferentes variantes da teoria dos valores”. Na “solução da integridade” são “as próprias concepções do indivíduo que regem a actuação estadual”, uma vez que “a liberdade de escolha é restringida não para a protecção de valores objectivos, mas antes tendo em consideração prioridades subjectivas do próprio indivíduo”598. O Autor entende que quando o propósito do legislador é o de assegurar a integridade do sujeito, já não estamos perante uma restrição ilegítima da liberdade jusfundamentalmente protegida. O paternalismo deverá ser “tanto mais admissível quanto mais o indivíduo em causa, através das suas decisões, esteja em contradição com a sua própria integridade”599. No entanto, sustenta ainda que o Estado não deverá ter o direito de proteger alguém contra si próprio, argumentando que o faz para preservar a integridade dessa mesma pessoa, quando lhe bastava adverti-la acerca do carácter perigoso do seu comportamento. Deverá dar-se preferência ao 597 JOHN KLEINIG, Paternalism, Manchester University Press, Manchester, 1983, pp. 67 ss. 598 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 179 – 183 e 197 – 199. Este Autor coloca a questão de saber se, no caso de um indivíduo que gosta de viver e por pura negligência não utiliza o cinto de segurança, pondo em perigo o que lhe é caro contra as suas próprias prioridades, será realmente uma lesão “do direito de conformar o seu destino” obrigálo a utilizar um cinto de segurança. Sendo “o ponto de partida da protecção constitucional do direito geral de personalidade a componente de livre decisão”, a componente da integridade será analisada, em contrapartida, no quadro do princípio da proporcionalidade enquanto fim legítimo da restrição da liberdade”. Em termos algo semelhantes, REINHARD SINGER, “Vertragsfreiheit, Grundrechte und Schutz des Menschen vor sich selbst”, in JZ, n.º 23, 1995, p. 1140, sustenta que é muito duvidosa a invocação da liberdade para a autodeterminação nos casos da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança e de capacete. Para o Autor, o que está aqui em causa “é a incapacidade psicológica de muitos automobilistas ou motociclistas de, de uma forma abstracta, preverem correctamente os perigos da sua actuação, o que legitima a restrição”. ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., p. 284, entende que a pessoa não possui as suas” capacidades básicas” quando considera um determinado bem importante, mas se recusa a tomar as medidas necessárias para a sua concretização (este é o caso da obrigatoriedade de uso de cinto de segurança ou de capacete). 599 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 185 e 187. CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 148, defende que o princípio da autonomia deixa alguma margem para um paternalismo legítimo. O princípio geral que está na base destas considerações pode ser formulado como uma proibição de impor sacrifícios aos indivíduos sem o seu consentimento que não se traduzam em benefícios para eles. Este princípio pode designar-se como “princípio da inviolabilidade da pessoa”. 158 esclarecimento e informação dos indivíduos antes de admitir o recurso à coacção estadual. Nesse sentido, não devem ser de aceitar medidas paternalistas quando o esclarecimento seja suficiente para a protecção da integridade individual600. O Autor considera ainda que é de afastar o “paternalismo moral”. Consubstanciam-se em “paternalismo moral aquelas situações em que o Estado intervém impondo modos de comportamento morais no interesse da pessoa em causa, que esta, por possuir diferentes quadros morais, considera ser de afastar.” Neste tipo de questões deve deixar-se ao indivíduo a possibilidade de decidir autonomamente601. Para Kai Möller esta perspectiva conduz a soluções que na prática são insuspeitas, uma vez que não contende com os “projectos centrais” dos cidadãos e, para além disso, não lhes impõe um sistema de valores com o qual não concordem. A contrapartida é, para o Autor, “uma maior protecção das pessoas, a um preço relativamente baixo, ou seja, a utilização de coacção nos casos em que o indivíduo, por negligência, age em sentido contrário aos seus próprios valores”602. Por seu lado, Cass R. Sunstein – Richard H. Thaler defendem aquilo que designam por “paternalismo libertário” (libertarian paternalism)603. Segundo 600 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 190 e 191. 601 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 189 e 203, defende que nos casos de Peep-show ou Big-brother (ver infra pp. 277 ss) é logo à partida duvidoso que estejamos perante “um comportamento contrário à integridade”. Por outro lado, “daí também não decorre uma lesão relevante”. Tendo em consideração “o valor elevado do direito de autodeterminação em questões morais, a proibição do paternalismo estadual nestes casos impõe-se”. Sobre a distinção entre “paternalismo moral” e “paternalismo de bem-estar”, ver também GERALD DWORKIN, “Paternalism”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2005, http://plato.stanford.edu/entries/paternalism (última visita a 12.04.2010). Nesta ordem de ideias, GERALD DWORKIN, “Moral Paternalism”, in Law and Philosophy, n.º 24, 2005, p. 311, entende que os homossexuais não consideram que a sua orientação sexual seja imoral; “os ateus não julgam que vivem uma vida de pecado” e “quem vê pornografia não considera que esteja a ser corrompido”. MACARIO ALEMANY, “El concepto e la justificación del paternalismo”, cit., p. 272, propõe-se restringir o termo paternalismo de modo a que este signifique evitar danos físicos, psíquicos e/ou económicos. 602 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 212. 603 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism”, in American Economic Review, Vol. 93, n.º 3, 2003, pp. 175 ss, http://www.rasmusen.org/g406/readingsrefg406/Sunstein-thaler.AER.2003.paternislm.pdf (última visita a 12.04.2010), e também “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, http://ssrn.com/abstract_id=405940 (última visita a 12.04.2010). 159 os Autores, este tipo de paternalismo é “relativamente fraco e não intrusivo” porque, em bom rigor, não afasta a possibilidade de escolha. No entanto, tratase de uma forma de paternalismo, na medida em que os “planificadores públicos e privados” tentam deliberadamente conduzir a acção dos indivíduos de modo a promover o seu bem-estar. Entendem, para além do mais, que as perspectivas não paternalistas partem de uma “falsa premissa”, que é a de considerar que “a maior parte das pessoas faz escolhas que são no seu melhor interesse ou que, pelo menos, são melhores na sua própria perspectiva do que as que seriam tomadas por terceiros”. Por outro lado, julgam que é um “equívoco considerar que há alternativas viáveis ao paternalismo”, uma vez que há sempre situações em que têm de ser feitas escolhas que vão afectar o comportamento de terceiros604. Finalmente, consideram ainda que é um erro pressupor “que o paternalismo envolve sempre coacção”605. Assim, para esta posição o respeito pelas escolhas individuais funda-se na ideia de que as pessoas fazem “um excelente trabalho quando fazem opções”, ou, pelo menos, “fazem um trabalho muito melhor do que terceiros fariam”, o que não corresponde necessariamente à verdade. Admitem, no entanto, que nem sempre é essa a razão, sendo que algumas críticas tecidas ao paternalismo assentam “não nas consequências mas na autonomia” em si mesma, sustentando-se que “as pessoas devem poder fazer as suas próprias escolhas mesmo quando erram”. Contudo, sustentam que “seria fanatismo tratar a autonomia, enquanto liberdade de escolha, como algo que não pode ser ultrapassado por razões consequencialistas”. Este “argumento da autonomia perde validade pelo facto de muitas vezes as preferências e as escolhas serem feitas em função das soluções pré-dadas”606. Para além disso, entendem que o respeito pela autonomia é suficientemente acautelado pelo 604 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., pp. 4 e 5. 605 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 7. De facto, esta perspectiva implica um alargamento do conceito de paternalismo, uma vez que vimos que se considera que o paternalismo assenta em dois pressupostos: o primeiro é que este “exclui uma opção ou impõe uma escolha”; o segundo é que “essa escolha se exclui ou se impõe para o bem da própria pessoa”. Nesse sentido, SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, cit., p. 117. Ora o paternalismo libertário não preenche o primeiro destes pressupostos. 606 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 9, também nota 19. 160 paternalismo libertário uma vez que há sempre a possibilidade de optar em sentido contrário607. A “inevitabilidade do paternalismo” torna-se mais clara quando o “planificador” tem de se decidir por determinados “pontos de partida” ou criar “normas subsidiárias”. Se o objectivo principal é maximizar o bem-estar, é legítimo indagar se o “planificador” pode ir “para além do inevitável” quando procede a essa escolha608. Desta feita, quando não haja interesses de terceiros a salvaguardar, a “presunção geral” deverá ser no sentido de respeitar a “liberdade de escolha” dos cidadãos. Essa “presunção será apenas de afastar quando a escolha individual seja manifestamente contrária ao bem-estar individual”. Partindo da constatação de que em muitas situações “as preferências das pessoas são mal-formadas e frágeis, assumindo as normas subsidiárias ou pontos de partida um papel de peso”, poderá ser de admitir a possibilidade de os poderes públicos procurarem influenciar essas preferências, com o objectivo de promover o bem-estar das pessoas609. Este novo tipo de paternalismo foi, no entanto, alvo de diversas críticas. Claire A. Hill considera que “o facto de as pessoas cometerem erros e de, por vezes, lhes faltar autocontrolo” não deve servir de justificação para o “anti-antipaternalismo” (nome que atribui ao paternalismo libertário). Os defensores do “anti-anti-paternalismo” partem da ideia de que “nem sempre as pessoas fazem aquilo que verdadeiramente pretendem”. Mas a questão que se deve aqui colocar é a seguinte: “como podemos saber o que as pessoas realmente querem”? Para a Autora, a posição “anti-anti-paternalista” parece assumir que é possível saber o que os indivíduos realmente desejam, independentemente 607 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., pp. 26 e 27. Estes Autores consideram que se uma lei impõe aos automobilistas o uso de cinto de segurança e se o seu desrespeito implicar uma coima elevada, essa lei é “não-libertária ainda que determinados violadores possam exercer a sua liberdade de escolha pagando a coima”. Na medida em que “o valor da coima se aproxime do zero, a lei aproxima-se do paternalismo libertário. Este pressupõe que as pessoas possam, como regra geral, evitar facilmente a opção sugerida”. 608 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., pp. 24 e 25. Os Autores dão como exemplo uma cafetaria, na qual a opção por colocar a fruta à frente dos doces poderia condicionar a escolha das pessoas, induzindo-as a uma alimentação mais saudável. Para os Autores esta é uma intervenção bastante suave, até porque não impõe nada a ninguém. 609 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 42. 161 do que escolhem, o que é um pressuposto indefensável. Através das conclusões “do direito e da economia comportamentais podemos constatar que as pessoas, por vezes, cometem erros” ou fazem coisas num determinado momento de que posteriormente se arrependem. Mas daí não conseguimos retirar quais são as suas reais pretensões e, consequentemente, falta-nos uma base para a legislação paternalista, ainda que libertária. Por mais “conveniente e tentador que seja extrapolar da nossa própria introspecção que os outros querem ou deveriam querer o mesmo que nós, pura e simplesmente não temos acesso aos seus desejos e convicções”610. Também Mario J. Rizzo – Douglas Glen Whitman se opuseram a esta perspectiva, questionando se faz sentido sustentar que quem decide as políticas públicas conhece melhor as “verdadeiras preferências” dos indivíduos do que os próprios. Sendo que “melhor se deve definir em termos de bem-estar subjectivo individual (sob pena de estarmos de volta ao paternalismo tradicional) temos de comparar a capacidade relativa dos indivíduos para tomarem por si mesmos decisões que promovam o seu bem-estar com a de entes externos que decidam em sua vez”611. Os Autores entendem que é de acolher, por princípio, a ideia de aumentar o bem-estar dos cidadãos atendendo às “suas próprias verdadeiras preferências”. No entanto, “esse objectivo não se pode tornar operacional” sem que quem decide consiga aceder a informação que não detém e que, a maior parte das vezes, não tem meios de obter. As políticas públicas têm de se escorar nalguma coisa, e quem toma decisões irá recorrer “às suas próprias preferências, às preferências de peritos, ou às (supostas) preferências do público em geral”. No entanto, e uma vez que estes Autores crêem que não é possível “implementar as ‘verdadeiras’ preferências das pessoas”, mas sim as que se consideram ser as “’correctas’”, “o novo paradigma paternalista vai fornecer a cobertura intelectual para que tal aconteça”612. 610 CLAIRE A. HILL, “Anti-anti-paternalism”, cit., pp. 445 e 448. 611 MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”, in Law & Economics Research Paper Series, Working Paper n.º 08-60, http://ssrn.com/abstract=1310732 (última visita a 12.04. 2010), p. 22. 612 MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”, cit., p. 78. 162 Partindo de tudo o que vimos e procurando responder à questão que inicialmente colocámos, que é a de determinar se existem tipos de paternalismo jurídico que se podem eticamente justificar, estamos, antes do mais, de acordo com Kai Möller e Cass R. Sunstein – Richard H. Thaler, na parte em que defendem que as políticas paternalistas devem ser inevitavelmente compatíveis com o respeito pela autonomia, não se devendo admitir o “paternalismo moral”, ou seja, a imposição, pela parte dos poderes públicos, de determinados padrões morais alegadamente no interesse da pessoa, independentemente de esta estar ou não de acordo com eles. Por outro lado, as perspectivas destes Autores concretizam-se em propostas de um paternalismo que não tem como objectivo impor valores aos indivíduos com os quais estes não estão de acordo, mas que visa antes a protecção da sua “integridade”, tendo em consideração as escolhas que fariam se pudessem antecipar as consequências dos seus actos. No entanto, Cass R. Sunstein e Richard H. Thaler sustentam que o “paternalismo libertário” só se pode justificar se as pessoas puderem, como regra geral, evitar facilmente a opção sugerida. Trata-se de um “perfeccionismo moderado”, pois não admite a utilização, pela parte do Estado, de medidas coercivas para a promoção ou desincentivo de “certos modos de vida”. Este “perfeccionismo moderado” parece “estar a salvo da objecção paternalista, se partilharmos da definição de paternalismo como limitação da liberdade do indivíduo para o seu próprio bem”. No entanto, se entendermos que a definição de paternalismo não tem de, forçosamente, envolver uma “limitação da liberdade”, como vimos ser o caso da definição proposta pelos Autores referidos, estaremos a alargar o conceito em termos tais que “até os perfeccionistas moderados são paternalistas”. Este alargamento terá como consequência que “certas políticas perfeccionistas podem ser consideradas como paternalistas sem serem inaceitáveis ou, pelo menos, sem serem tão inaceitáveis como as políticas paternalistas coercivas”613. Também Joseph Raz entende que o liberalismo perfeccionista que preconiza é uma perspectiva apta a “abraçar várias medidas paternalistas”614. 613 ROBERTO MERRILL – VINCENT BOURDEAU, “Republicanismo”, cit., p. 120. 614 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 422. O Autor, na p. 426, entende que alguns 163 No entanto, segundo o Autor, estas políticas perfeccionistas ou paternalistas sofrem duas restrições: “devem ser compatíveis com o respeito pela autonomia”, pelo que se devem “limitar a criar condições de autonomia”; e, por outro lado, “devem respeitar a limitação ao uso de coacção imposta pelo harm principle”615. Assim, o paternalismo libertário, porque não pressupõe coacção e deixa sempre espaço para que as pessoas possam optar por outras vias, não é diferente de um perfeccionismo moderado e, nessa medida, julgamos ser de aceitar. São, apesar disso, pertinentes as críticas feitas a esta perspectiva no sentido de ela padecer de um “problema cognitivo”616: a impossibilidade de saber o que é que efectivamente a pessoa consideraria melhor para si se conseguisse prever todas as implicações da sua decisão. No entanto, uma vez que não há aqui restrição de liberdade, o risco é mínimo e poderá considerarse justificado. Kai Möller vai mais longe, já que entende que para a salvaguarda da integridade do indivíduo se poderão justificar restrições à liberdade. Como tivemos oportunidade de constatar, quando o indivíduo age em sentido contrário ao que são os seus próprios valores, para o Autor poderá ou até deverá haver uma imposição coactiva. Esta posição, pelo contrário, já nos parece excessivamente restritiva, na medida em que padece do mesmo problema cognitivo da perspectiva anterior e implica efectivamente restrições poderão considerar que “esta abordagem perfeccionista esquece a necessidade de afastar medidas paternalistas uma vez que estas são contrárias à dignidade da pessoa humana”, sendo o “respeito pelas pessoas enquanto agentes morais responsáveis incompatível com o paternalismo”. No entanto, defende que esta perspectiva não tem em consideração “a dependência dos valores e gostos individuais de formas sociais, convenções e práticas que são o resultado da acção humana”. Uma vez que “o respeito pelas pessoas exige preocupação pelo seu bem-estar”, tal implica que se atribua “um papel central à actividade do próprio agente na conformação do seu bem-estar”. Uma “moralidade baseada na autonomia não é apenas consistente com estas exigências, mas vai além delas ao impor que as pessoas devem ser livres para conformar as suas próprias vidas”. Tal “não só é compatível com o perfeccionismo” como “o exige”, na medida em que “apela para a criação de condições de autonomia através da prossecução de políticas perfeccionistas”. 615 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 423. O Autor dá como exemplo o caso de “medidas paternalistas que dizem respeito a questões que são consideradas por todos como sendo questões de valor meramente instrumental e que não interferem com a autonomia, se tiverem como consequência melhorar a segurança e tornar as actividades afectadas mais aptas a realizar o seu objectivo”. 616 Este é precisamente o título do artigo de MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”, cit.. 164 da liberdade. Julgamos, no entanto, que deve haver uma excepção “ao limite do uso de coacção imposto pelo harm principle”617, uma vez que entendemos que serão ainda legítimas medidas estaduais paternalistas quanto estejam em causa as possibilidades de “autodeterminação futura” da pessoa618. Tendo nós considerado que a autonomia é um valor central na nossa ordem jurídica e que o Estado deve criar condições de autonomia, será legítimo exigir “que os indivíduos abandonem a liberdade ou o direito a renunciar permanentemente à autonomia em si mesma”619. As “bases da autonomia do titular do direito não devem elas mesmas ser ofendidas”, não podendo este consentir “numa intervenção que lhe retire a possibilidade de princípio de se autodeterminar livremente daí para a frente”620. 617 JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 423. 618 É também essa a posição de JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 318. Considerando que o ordenamento pretendeu consagrar a liberdade como uma “situação duradoura”, ver ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59. PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, cit., p. 81, entende que a autonomia pessoal “implica ter o controlo sobre a própria vida como um todo”. Este aspecto da autonomia justifica “políticas governamentais que desencorajam actividades que podem matar ou deixar o indivíduo física ou mentalmente debilitado”. CHRISTOPH LEUENBERGER, Die unverzichtbaren und unverjährbaren Grundrechte in der Rechtsprechung des Schweizerischen Bundesgerichtes, cit., p. 54, afirma que há “uma determinada medida mínima de liberdade que deve ser considerada inseparável da pessoa”. Este será o caso típico de contratos de escravidão. DAVID ARCHARD, “Freedom not to be free: the case of the slavery contract in J. S. Mill’s On Liberty”, in The Philosophical Quarterly, Vol. 40, n.º 160, 1990, pp. 461 e 462, considera que algumas críticas foram feitas a Mill pelo facto de este, ao recusar que a pessoa possa livremente converter-se em escrava, de alguma forma estar a abrir uma brecha no princípio da liberdade e essa alteração representar uma concessão séria ao paternalismo. No entanto, o Autor sustenta que a proibição de contratos de escravidão não é paternalista, na medida em que a sociedade não interfere se tiver sido celebrado um contrato deste tipo. Apenas o fará no momento em que se pretenda fazer valer esse contrato. Assim, “só intervirá quando os termos do contrato sejam violados” e tal só acontecerá se o escravo se recusar a obedecer, pelo que não se tratará já de uma defesa contra si mesmo, mas antes de uma defesa desejada pelo próprio. Considerando também que esta proibição não impede ninguém de viver uma situação de “escravidão de facto”, ver JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 71. PAUL BOU-HABIB, “Compulsory Insurance without Paternalism”, in Utilitas, Vol. 18, n.º 3, 2006, p. 261, considera que a condenação da escravização pelo próprio parte de um entendimento da “autonomia enquanto valor intrínseco que temos o dever de preservar”. 619 JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., pp. 290 e 291. 620 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 124; REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 195. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 50 – 52, considera, no entanto, que há casos nos quais está em causa a autodeterminação futura do indivíduo em que o Estado poderá reconhecer o consentimento. Assim, entende que não é absolutamente inadmissível alterar ou afectar os mecanismos de autodeterminação futura, 165 Por outro lado ainda, “na literatura anglo-saxónica tem-se feito a distinção entre paternalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco (soft paternalism)”. Os defensores do “paternalismo forte” sustentam que se pode impor protecção a pessoas capazes que decidiram voluntariamente “autocolocar-se em perigo ou lesar-se”. Para o “paternalismo fraco” apenas será de admitir uma interferência para a protecção do próprio quando a sua decisão não é voluntária. Esta distinção também se demonstra noutro aspecto: “o paternalismo forte recorre muitas vezes ao Direito Penal para evitar autocolocações em perigo ou autolesões. No caso do paternalismo fraco não faz sentido o recurso ao Direito Penal: é sempre moralmente indefensável atribuir uma pena a alguém que se coloca em perigo involuntariamente”621. O “paternalismo fraco” (também designado “paternalismo social”) “deve ter uma base constitucional precisa que identifique as fraquezas das pessoas visadas, seja devido a uma posição profissional (…), seja por causa da idade (…), seja em virtude de uma incapacidade psíquica (…), seja, finalmente, por causa de uma situação de prisão”. O Estado legislador tem aqui o papel fundamental de realizar “os deveres de protecção associados aos direitos à vida e à integridade física e psíquica” das pessoas mais frágeis622. sendo que a admissibilidade do consentimento nestas situações antes dependerá dos motivos que podem ser invocados para justificar a decisão (será o caso de uma operação ao cérebro de um delinquente sexual que pretenda libertar-se da sua perversão, a possibilidade de castração, etc.). Parece-nos, no entanto, que estes exemplos não se referem a situações excludentes da autodeterminação futura, embora possam implicar uma alteração dessa autodeterminação. 621 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 16 e 17. Ver também JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 12 ss, que considera que o paternalismo fraco é compatível com o liberalismo. Sobre esta distinção, ver ainda GERALD DWORKIN, “Paternalism”, cit. 622 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 143. ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 283 – 289, estabelece que na vida social se pressupõe que os cidadãos, no que se refere às questões do seu dia-a-dia, dispõem de uma “competência de base”. A ausência dessa competência é uma “condição justificativa de medidas paternalistas”, que visam a supressão de desigualdades que têm como fundamento essa mesma ausência. Assim, segundo ele, se se estiver de acordo com isto, então deve considerar-se que não se justifica uma interferência do Estado “quando alguém que detém competência de base atenta contra a sua integridade física ou a sua própria vida”; “quando alguém que detém competência de base tem consciência do risco de uma lesão certa ou muito provável” que poderá decorrer do gozo de uma determinada actividade; e “quando alguém, que detém competência de base, põe a vida em risco em favor dos outros”. Apenas “quando se defenda uma concepção metafísica-religiosa do valor da vida é que é possível justificar a proibição do suicídio ou de actividades que coloquem a vida em perigo”. Em 166 Justifica-se, então, uma abordagem paternalista quando se trate “de direitos ou interesses de menores, de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se encontrem numa posição conjuntural de debilidade ou desfavor”623. Nestes casos, o Estado está legitimado a tomar determinadas medidas paternalistas que em quaisquer outras circunstâncias lhe estariam vedadas624. No entanto, “o alcance da autorização para restringir deve obediência ao princípio da proporcionalidade, que deve ser rigorosamente respeitado”625. Temos, portanto, de ter em consideração que, mesmo existindo uma posição de debilidade ou desfavor, poderá haver situações em que, apesar disso, se mantém a voluntariedade da renúncia. Esta deve ser uma análise feita caso a caso e não é defensável que, pelo simples facto de a renúncia ter lugar numa relação de desigualdade, se conclua que ela é sempre reflexo dessa desigualdade e, consequentemente, involuntária. conclusão, só quando a medida em causa, que se aplica a uma incompetência de base, “promove e protege essa autonomia ou visa a supressão de um défice de igualdade é que se pode falar de um paternalismo eticamente justificado. Sob este ponto de vista é claro que várias formas de paternalismo praticadas no passado e presente não se justificam eticamente, ainda que se possam justificar do ponto de vista da moral positiva dos grupos dominantes”. 623 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 450, nota 785. 624 BERNHARD SCHLINK, “Die überforderte Menschenwürde. Welche Gewissheit kann Artikel 1 des Grundgesetzes geben?”, in Der Spiegel, n.º 51, 2003, p. 53. No que se refere, por exemplo à posição dos trabalhadores, o TC, no Acórdão n.º 155/04, http://w3.tribunalconstitucional. pt/acordaos/acordaos04/101-200/15504.htm, sobre o regime jurídico do contrato individual de trabalho na Administração Pública, estabelece que “as normas sobre direitos fundamentais detêm, no plano das relações de trabalho, uma eficácia de protecção da autonomia dos menos autónomos. Aqui é evidente o desiderato constitucional de ligação da liberdade fáctica e da liberdade jurídica. A Constituição faz depender a validade dos contratos não apenas do consentimento das partes no caso particular, mas também do facto de que esse consentimento «se haja dado dentro de um marco jurídico-normativo que assegure que a autonomia de um dos indivíduos não está subordinada à do outro» (…)”. 625 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 121 e 122. De facto, em relação a menores e pessoas portadoras de uma deficiência não se deve afastar completamente a sua opinião. No que se refere a tratamentos médicos, por exemplo, o n.º 2 do art. 38.º Código Deontológico da Ordem dos Médicos, relativo ao dever de esclarecimento e recusa de tratamento, estabelece que “[n]o caso de crianças ou incapazes, o Médico procurará respeitar, na medida do possível, as opções do doente, de acordo com a capacidade de discernimento que lhes reconheça, actuando sempre em consciência na defesa dos interesses do doente”. É esse também o sentido do art. 6.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina (Convenção de Oviedo) do Conselho da Europa, onde se consagra que “a opinião do menor é tomada em consideração como um factor cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade” e que, no caso de maiores que careçam de capacidade para consentir “a pessoa em causa deve, na medida do possível, participar no processo de autorização”. 167 Como exemplo podemos referir os casos de protecção da pessoa em virtude da posição profissional626 ou de uma situação de prisão627. 626 Parece-nos, a título de exemplo, que apesar de nos encontrarmos aqui perante uma parte que está numa posição de debilidade, a decisão do TC no Acórdão n.º 368/02, http://www.tribunalconstitucional.pt/Acordaos/Acordaos02/301-400/36802.htm, é demasiado restritiva. Nesse sentido, ver BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., p. 169. Este Acórdão referese à obrigatoriedade de realização de exames médicos para defesa da própria saúde, tendo o TC considerado que esta obrigatoriedade era legítima, uma vez que perante uma “especial fundamentação social” o legislador se encontra excepcionalmente autorizado a, relativamente a certos direitos fundamentais, estabelecer “restrições justificadas pela protecção legislativa dos indivíduos contra si próprios”. Já no Acórdão n.º 158/95, http://www.tribunalconstitucional.pt/ tc/acordaos/19950158.html, o TC determina que “por mais que o contrato de trabalho se constitua em terreno adequado de ‘formas de paternalismo legítimo’ (C. S. Nino) existe aqui uma lógica de proporcionalidade que aponta para a relevância, em certos termos, dos valores da ‘equivalência’ de prestações do contrato”. 627 Nos casos de greve de fome, por exemplo, existem diferentes possibilidades de reacção: admitir-se o respeito absoluto da livre decisão do recluso; a intervenção médico-penitenciária a partir do momento em que, como consequência da inanição prolongada, surge para o recluso um sério perigo para a saúde sem se esperar que perca a consciência; a intervenção da administração penitenciária apenas no momento em que o recluso tenha perdido a consciência. A nossa lei “admite casos de alimentação forçada de reclusos em greve de fome, a partir do momento em que se verifica um perigo para a vida ou grave perigo para a saúde” (D.L. n.º 265/79, de 1 de Agosto, alterado pelo D.L. n.º 49/80, de 22 de Março). No entanto, é “controvertida a legitimidade constitucional deste regime, que priva o recluso de uma dimensão importante do seu direito de autodeterminação”. Nesse sentido, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 582 – 584. Sobre esta questão, ver também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS – JORGE SINDE MONTEIRO, “Responsabilidade médica em Portugal”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332, 1984, p. 56; RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 258; JOÃO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português, Coimbra Editora, 2001, p. 307; ANABELA RODRIGUES, Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária – Estatuto Jurídico do Recluso e Socialização, Jurisdicionalização, Consensualismo e Prisão, Coimbra Editora, Coimbra, 2000; VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 87. Vários Autores, “seguindo a Declaração de Tóquio da Assembleia Médica Mundial (1975)”, têm entendido que “quando um preso recusa qualquer alimento” se o médico considerar que “ele está em condições de formular um juízo racional e consciente quanto às consequências da sua recusa em se alimentar, (…) não deve ser alimentado artificialmente”. Nesse sentido, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 450 e 451. JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 204, defende que “a alimentação forçada, enquanto o paciente está capaz de se autodeterminar, constitui uma intervenção restritiva da parte do Estado na liberdade geral de acção e no direito à integridade física do recluso”. O Autor considera que, neste caso, “o dever de protecção do Estado não deve entrar sequer em jogo”, assim como não entra “quando tem lugar a alimentação forçada depois de o recluso ter perdido a consciência. Nessa altura deixa de haver uma colisão entre a vontade actual do recluso e a medida estatal que será até constitucionalmente exigida, nomeadamente enquanto tutela da saúde e da vida do inconsciente”. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 713, nota 937, defende também que “quando não há consciência deixa de haver vontade do recluso e não basta a vontade presumida com base no que houver sido dito antes”. Ainda no que diz respeito a pessoas detidas, podemos ver a decisão do TEDH, no caso Tanribilir v. Turquia,http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight 168 Assim, o que determina, para o “paternalismo fraco”, a legitimidade de medidas paternalistas é a existência ou a ausência de verdadeira autodeterminação. Parece-nos, por isso, que será de aceitar também este tipo de paternalismo, que apenas se justifica nas situações em que as pessoas em causa não estejam de facto em posição de cuidar de si mesmas. Não é, no entanto, de excluir que em situações onde seja difícil avaliar a existência ou ausência de autodeterminação e onde haja uma forte presunção de não-voluntariedade se equacione a possibilidade de pressupor essa ausência628. Poderá, pois, haver restrições à possibilidade de renúncia “graças ao custo associado com a determinação de autonomia caso a caso”629. 5. O dever do Estado de proteger a pessoa contra si própria É duvidoso que, em Estado plural de Direito, a defesa da pessoa contra si mesma possa ser considerada fundamento legítimo da restrição de direitos fundamentais630. É particularmente controversa a recusa da possibilidade de =Tanribilir%20%7C%2021422/93&sessionid=51613707&skin=hudoc-en, no qual estabelece que há um dever do Estado de proteger o indivíduo de si mesmo nas situações de suicídio, uma vez que foi o Estado que o colocou numa posição de maior vulnerabilidade. O TEDH considerou ainda esta argumentação extensível a pessoas que prestam serviço militar. Ver caso Kilinç e outros v. Turquia,http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm &action=html&highlight=Kilin%E7%20%7C%2040145/98&sessionid=51615950&skin=hudoc-en. 628 JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 299, sustenta que uma das razões para limitar a possibilidade de renúncia é precisamente o grau de dificuldade que pode implicar a prova de que a renúncia preenche “o grau de autonomia exigido em cada caso”. MARGARET JANE RADIN, “Market Inalienability”, cit., pp. 1909 e 1910, entende que algumas restrições impostas à possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem das grandes dificuldades que implica avaliar todas as transacções de modo a aferir se o consentimento é verdadeiramente livre. ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” - die Einwilligung im Privatrecht, cit., p. 107, defende que só se deve proteger a pessoa da sua própria actuação quando esta não assente numa decisão autónoma, ou quando haja dúvidas legítimas acerca da sua autonomia. Também JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 79 e 174 ss, entende que em certas situações, como será o caso de contratos de escravidão, tendo em consideração “a qualidade incerta da prova e a forte presunção de não voluntariedade, poderá justificar-se que o Estado entenda que a medida menos arriscada seja presumir a não voluntariedade em todos os casos”. Quando “o consentimento para uma dada conduta perigosa é tão raro (…) que dificilmente seria dado a não ser em casos de ignorância, coacção, ou de ausência de algumas faculdades, o legislador poderá simplesmente excluí-lo com base no princípio do dano a terceiros” e não por razões paternalistas. 629 JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 325. 630 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Inconstitucionalidade do Artigo 6.º da Lei sobre a Colheita e Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana”, in Scientia Iuridica, n.ºs 286/288, 169 renúncia quando com o acto de disposição o indivíduo não lesa quaisquer bens da comunidade, fundamentando-se essa recusa “na protecção do titular do direito fundamental para o seu próprio bem contra a sua vontade”631. Quem afasta totalmente o paternalismo estadual não pode aceitar que caiba ao Estado um dever de protecção contra a vontade do indivíduo. O problema já se pode, no entanto, colocar para quem admite medidas paternalistas632. Como já tivemos oportunidade de referir, existe apenas um dever do Estado de proteger a pessoa contra si mesma quando esta não esteja em posição de cuidar de si ou quando estejam em risco as suas possibilidades de “autodeterminação futura”. Para além destas situações não é de admitir uma “protecção imposta” que restringa as possibilidades de actuação do visado e que, por conseguinte, limite a sua possibilidade de renunciar a direitos fundamentais633, já que tal protecção implica uma violação grave “da presunção de liberdade que deriva do princípio da dignidade da pessoa humana”634. 2000, pp. 260 e 261. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 299 e 300, considera que “neste domínio é de exigir ao legislador uma especial fundamentação social do desvalor atribuído às actividades restringidas” uma vez que estas restrições contendem com o livre desenvolvimento da personalidade. Este Autor considera também que nestes casos é “particularmente delicada a apreciação da proporcionalidade das restrições legislativas no âmbito da fiscalização judicial da constitucionalidade, tendo em conta que o apelo à ‘consciência jurídica geral’ ou ao ‘sentimento comunitário’, num contexto abstracto pertence mais ao legislador do que ao juiz, de modo que este tenderá a fazer mais um controle de evidência do que de defensabilidade, quando podem estar em causa aspectos essenciais da vida das pessoas”. SANDRA MARQUES MAGALHÃES, “O valor do corpo humano. Considerações sobre os actos de disposição do próprio corpo e os transplantes de órgãos intervivos”, in DIOGO LEITE CAMPOS (coord.), Estudos sobre o Direito das Pessoas, Almedina, Coimbra, 2007, p. 208, reconhece também que não é fácil justificar a proibição de actos individuais que não afectem terceiros se tivermos em conta “o pluralismo, a tolerância e a não-discriminação hoje preconizados”. JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, in Droits, n.º 48, 2009, p. 104, considera que não pode haver protecção da pessoa contra si própria “porque o homem é livre e, consequentemente, responsável”. Entendendo ainda que a protecção da pessoa contra si própria em si mesma considerada não pode legitimar uma restrição da liberdade, ver CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 120 e 121. 631 MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 111. 632 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 214 - 215. 633 WERNER FROTSCHER, “’Big Brother’ und das deutsche Rundfunkrecht”, in Schriftenreihe der LPR Hessen, n.º 12, 2000, p. 43. Considerando que a defesa da pessoa contra a autolesão não está incluída no dever de protecção estadual, ver JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 190. 634 CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era 170 Poderá ainda haver medidas que protejam o indivíduo de si mesmo quando tal protecção não seja mais do que “um efeito lateral da protecção de interesses da colectividade ou de interesses jusfundamentalmente protegidos de terceiros”, que sejam afectados pela renúncia e que, “no caso concreto, devam ser valorados preferencialmente em relação à livre autodeterminação do indivíduo”635. Porém, nestes casos são os interesses públicos ou de terceiros que justificam a restrição da liberdade e não o dever de protecção da pessoa contra si própria. Vimos quais as limitações de uma abordagem paternalista numa ordem jurídica que atribui um papel central ao princípio da dignidade da pessoa humana e à autonomia individual, o que se reflecte na legitimidade da defesa da pessoa contra si mesma636. A Constituição não atribui ao Estado a função de ser o “guardião dos cidadãos”, antes realçando a importância da autoresponsabilidade individual637. Um Estado de Direito não pode “impor nem à sociedade no seu todo nem a cada um dos seus membros individualmente considerados uma resposta particular quanto às questões últimas da existência”638. Normalmente, as proibições de dispor sobre os próprios direitos tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, cit., p. 423; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., p. 99. DIETER DÖRR, Big Brother und die Menschenwürde, cit., p. 66, considera que o dever de protecção do Estado nunca poderá ir ao ponto de “afectar a liberdade de conformação de vida garantida pela dignidade”. Defendendo, no entanto, que o dever de protecção imposto ao Estado “inclui até mesmo a protecção da pessoa contra si própria”, de tal modo “que o Estado se encontra autorizado e obrigado a intervir em face de actos da pessoa que, mesmo voluntariamente, atentem contra a sua própria dignidade, o que decorre do (…) cunho irrenunciável da dignidade pessoal, ver INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., pp. 113 e 114. Para o Autor, a dignidade implica “um dever geral de respeito por parte de todos (…) os integrantes da comunidade para com os demais e, para além disso (…), até mesmo um dever das pessoas para consigo mesmas”. Esta perspectiva não se coaduna, no entanto, com o sentido que consideramos ser de atribuir ao conceito de dignidade. 635 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 203 e 204. 636 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 450, nota 785. 637 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 217. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais”, cit., p. 94, afirma que o Estado ubíquo se manifesta na “usurpação de significativas parcelas da liberdade e autonomia individuais, relativamente às quais nada exige que sejam objecto de qualquer ingerência (…) dos poderes públicos”. 638 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 168. 171 fundamentais visam favorecer determinados indivíduos, supostamente beneficiados por essa mesma proibição. Temos, todavia, dúvidas se, em vez de ajudar o sujeito que é protegido, não se estará pelo contrário a prejudicá-lo, limitando a sua autodeterminação, o que nos leva “a considerar o conceito relativo e subjectivo de benefício”639. Não cumpre ao Estado “’maximizar a felicidade’, ou seja, promover concepções do mundo globais, mas sim ‘minimizar a infelicidade’”, garantindo “a tutela de bens fundamentais e a subsistência da sociedade política, deixando à escolha individual o processo de ‘maximização da felicidade’”640. Nesse sentido, entende-se que a opção por correr determinados riscos se insere no “projecto de vida” do próprio indivíduo, projecto que deve ser escolhido livremente “em função da sua mundividência”, porquanto em “sociedades plurais” não é “desejável uma absoluta uniformização dos comportamentos individuais”641. Assim, quando o sujeito se coloca em perigo ou mesmo quando provoca uma lesão no seu direito, sendo ele capaz e estando em causa um comportamento autodeterminado, trata-se ainda do gozo de “liberdade jusconstitucionalmente garantida”642. Numa sociedade democrática e pluralista deve haver “um direito a errar, a tomar más decisões e a correr riscos”, sem o qual “toda a ideia de autodeterminação perderia sentido”643. Não se coaduna, por isso, com a imagem de Homem pressuposta na 639 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 456. 640 JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, cit., pp. 128 e 129. O Tribunal Constitucional alemão diz expressamente que o Estado não tem a função de “melhorar” os cidadãos e, consequentemente, não tem o direito de lhes retirar a liberdade apenas para os “melhorar” sem que, se continuassem livres, fizessem perigar terceiros ou a si mesmos. Ver BVerfGE 22, pp. 180 ss (em particular pp. 219 ss). 641 HELENA PEREIRA DE MELO, “A Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela “Estrada do Tabaco”, cit., p. 163. 642 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 116. Na intervenção do Deputado JOSÉ DE MAGALHÃES, DAR, 1.ª série, n.º 94, cit., p. 3397, este diz expressamente que a consagração do direito ao desenvolvimento da personalidade “implica que ao legislador não cabe proteger os cidadãos contra si próprios e impor-lhes paradigmas unidimensionais de comportamento digno, em nome daquilo a que poderia chamar-se a boa personalidade, o retrato do bom cidadão e da personalidade modelo que caberia ao Estado impor a cada um de nós, subordinando-nos a uma espécie de standard humano, cívico ou político”. 643 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 62. 172 Constituição uma concepção que, partindo de uma ideia de deveres de protecção do Estado, considera que este tem legitimidade para proteger o indivíduo de si próprio644. Não decorre das normas de direitos fundamentais, em princípio, um dever de proteger bens jurídicos contra a vontade do titular do direito, ou seja, contra aquele a quem o direito fundamental atribui o poder de disposição sobre tais bens jurídicos645. Assim, deve evitar-se ceder “à tentação de um paternalismo jurídico em que se transfere para a sociedade o encargo de defender os titulares dos direitos contra as suas próprias condutas”646. No que diz respeito à renúncia, será de um paternalismo “incompatível com uma compreensão dos direitos fundamentais enquanto garantidores da escolha individual” limitar a possibilidade de disposição sobre posições jurídicas subjectivas de direitos fundamentais para protecção da pessoa contra si mesma, fora das excepções que já referimos, se esta acredita que através da renúncia irá prosseguir de forma mais adequada os seus interesses647. Na base da protecção da pessoa contra si mesma encontra-se uma 644 Nesse sentido, referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 203 e 204; também CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 147; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 203. KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 115, considera que a Constituição não visa “a unidade através da conformidade, mas antes a unidade através do respeito recíproco em pluralidade”. Nessa medida, “não é possível uma protecção da pessoa contra si própria em virtude da dimensão objectiva dos direitos fundamentais”. Em sentido contrário, PEDRO VAZ PATTO, No Cruzamento do Direito e da Ética, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 200 e 201. Este Autor sustenta que é justificada a defesa da pessoa contra si mesma em casos de “violações objectivas (ainda que consentidas) da sua dignidade”. 645 JÜRGEN SCHWABE, “Der Schutz des Menschen vor sich selbst”, cit., p. 70. Em sentido contrário, ver JEAN-FRANÇOIS FLAUSS, “L’interdiction de spectacles dégradants et la Convention européenne des droits de l’homme”, in Revue Française de Droit Administratif, n.º 8, 1992, p. 1931. 646 RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 263. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Algumas reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois”, cit., p. 135, refere precisamente que “nas sociedades de risco (...) sobressai a preocupação intensa (...) com a saúde pública, a segurança alimentar e o ambiente, que tem conduzido a restrições igualmente intensas das liberdades pessoais e económicas da generalidade das pessoas – a luta contra o tabaco, o álcool e a obesidade, a vigilância sanitária aos medicamentos, géneros alimentícios, (...) [etc.] – que, (...) por se revelarem por vezes excessivas ou indiferenciadas, suscitam resistências, sendo entendidas como novas feições ditatoriais do Estado”. Para o Autor, na nota 12, está aqui em causa a restrição da liberdade “não apenas para defesa da sociedade, mas para protecção do próprio titular dos direitos”. 647 SETH F. KREIMER, “Allocational Sanctions: the problem of negative rights in a positive State”, in University of Pennsylvania LR, n.º 132, 1984, p. 1383. 173 concepção de dignidade enquanto princípio que “se exprime pelo reconhecimento da liberdade individual mas que transcende esta última e, consequentemente, pode justificar restrições ao exercício das liberdades individuais”. Para esta concepção “a dignidade não é renunciável pelo indivíduo e pode haver a necessidade de o proteger de si mesmo”648. Uma das razões invocadas pelo Estado para obrigar o titular da dignidade a um comportamento conforme à dignidade é o facto de este considerar que sabe, melhor do que o próprio titular, avaliar os seus interesses649. A ideia de protecção da pessoa contra as suas próprias decisões está, então, incindivelmente ligada a uma determinada interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana. Não estamos, no entanto, de acordo com esta compreensão do princípio, como teremos oportunidade de desenvolver quando o tratarmos enquanto limite da renúncia. Uma “valoração paternalista”, que transfere para o Estado “a decisão última sobre aquilo que as pessoas devem ou não valorar na sua vida”, independentemente da sua vontade, converte os direitos em deveres650. Ora não há, nem deve haver, como regra, “direitos obrigatórios” em Estado de Direito, embora, como já o dissemos, sejam de admitir excepções, como é o caso dos direitos-deveres. Num Estado nãopaternalista que se funda na dignidade da pessoa humana e no livre desenvolvimento da personalidade individual, a existência de “direitos de exercício obrigatório (…) é claramente excepcional”. Do facto de a renúncia ser também “uma forma de exercício de um direito fundamental”651, devem retirar- 648 JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., pp. 88 e 89. Será o caso, por exemplo, de JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, cit., p. 217, que considera que “a dignidade obriga o Homem à protecção de si mesmo”. Sendo para o Autor a dignidade “inalienável e irrenunciável, esta veda ao Homem que este se degrade. Nessa medida, estabelece fronteiras à autonomia privada, em particular no que diz respeito à autodeterminação nos limites da vida”. DIOGO LEITE DE CAMPOS, “A relação da pessoa consigo mesma”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 143, entende que “o que cada um faz em relação a si interessa radicalmente aos outros”, sendo que “não se deve fazer a si mesmo o que não se deve fazer aos outros”. 649 KAI FISCHER, Die Zulässigkeit aufgedrängten staatlichen Schutzes vor Selbstschädigung, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1997, p. 192. 650 LUÍSA NETO, “O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano I, 2004, p. 226. 651 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 286 e 287. 174 se consequências no que se refere aos limites que a esta se podem estabelecer, uma vez que estão em causa “limites que se vão impor ao próprio direito fundamental” e, nessa medida, só se justificam “se visarem a prossecução de finalidades constitucionalmente admissíveis”652. A decisão pela inadmissibilidade de uma dada renúncia no caso concreto traduz-se, portanto, numa restrição de direitos, pelo que só se justificará se for conforme às exigências constitucionais653. Destas considerações não se retira, no entanto, que o poder de dispor seja ilimitado, uma vez que “a natureza jurídica da renúncia” não se confina ao exercício de um direito654. Porque “determina objectivamente um 655 enfraquecimento das posições individuais de direitos fundamentais” , a renúncia implica também uma afectação negativa dos direitos. Trataremos, no Capítulo III, a figura da renúncia nessa sua outra vertente. Capítulo II: A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no âmbito da renúncia a direitos fundamentais656 652 REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 176. 653 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 897. 654 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 288. 655 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 288. 656 Sobre a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais ver, entre nós, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 384 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “O Provedor de Justiça e o efeito horizontal dos direitos, liberdades e garantias”, in Provedor de Justiça – 20º Aniversário 1975 – 1995, Sessão Comemorativa na Assembleia da República, 30 de Novembro de 1995, Lisboa, 1996, pp. 59 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Dogmática de direitos fundamentais e direito privado”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 339 ss (também in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – LUIS MENEZES LEITÃO – JANUÁRIO DA COSTA GOMES (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 63 ss); JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 448 e 1285 ss; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 298 ss; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., pp. 156 ss; MARCELO REBELO DE SOUSA – JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lex, Lisboa, 2000, p. 97; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais nas relações entre particulares”, in Documentação e Direito Comparado, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 5, Lisboa, 1981, pp. 233 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 231 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os 175 Outra das questões que se impõe abordar antes de tratarmos os limites propriamente ditos é a da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, uma vez que “o tratamento da problemática da renúncia no âmbito das relações jurídicas privadas pressupõe a consideração prévia” da natureza e do alcance desta vinculação657. Para que faça sentido tratar o tema da renúncia nesta perspectiva é necessário que os particulares estejam vinculados aos direitos fundamentais, pois de outro modo a questão não se poderia pôr nestes termos. 1. Apresentação do problema O reconhecimento de uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais começa a dar-se a partir do momento em que, no Estado social de Direito, se deixa de encarar os direitos fundamentais como direitos que desempenham essencialmente a função de proteger o indivíduo de ingerências por parte dos órgãos estaduais, tal como foram configurados no Estado liberal direitos fundamentais no século XXI”, cit., pp. 1070 ss; JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, in JORGE REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, cit., pp. 69 ss; JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”, cit., pp. 229 ss; PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 227 ss; PAULO MOTA PINTO, “A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado, in ANTÓNIO PINTO MONTEIRO – JÖRG NEUNER – INGO WOLFGANG SARLET (orgs.), Direitos Fundamentais e Direito Privado. Uma Perspectiva de Direito Comparado, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 145 ss; VASCO PEREIRA DA SILVA, “A vinculação das entidades privadas pelos direitos liberdades e garantias”, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIX, Abril – Junho, 1987, pp. 259 ss; JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990; JOÃO CAUPERS, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Lisboa, 1985, pp. 158 ss; JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, “Constitucionalização do Direito Civil”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXIV, 1998, pp. 729 ss; MARIA JOÃO ESTORNINHO, A Fuga para o Direito Privado. Contributo para o Estudo da Actividade de Direito Privado da Administração Pública, 2.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 223 ss; BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2005; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 92 ss; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp. 1102 ss; EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., pp. 115 ss; NUNO E SOUSA, “A liberdade de imprensa”, Separata do Vol. XXVI do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1984, pp. 103 ss; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, p. 204 ss. 657 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 266. 176 clássico658. De facto, “a restrição da eficácia das normas de protecção de direitos fundamentais, apenas em relação ao Estado, decorre de uma concepção liberal extremista”, que sustenta que a liberdade apenas pode ser posta em risco pela acção do Estado, “ficcionando, pelo contrário, a sociedade civil como isenta de agressões a direitos fundamentais cometidas por privados”659. A partir do momento em que se constata que os particulares, nas relações que estabelecem entre si, não se encontram muitas vezes numa verdadeira posição de igualdade, revela-se a necessidade de estender a protecção dos direitos individuais às próprias relações jurídicas de direito privado660. Tornam-se evidentes “as analogias entre o poder público e o poder privado, um poder que aflora nas situações caracterizadas por uma ‘disparidade substancial das partes’. Esta falta de ‘simetria’ permite que a parte que (…) se encontra numa posição dominante condicione a decisão da parte ‘débil’”. Não surpreende, por isso, que “a génese e o desenvolvimento mais fecundo da teoria da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais tenha tido como cenário o campo das relações laborais”661. O reconhecimento da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais implica uma modificação do seu próprio sentido: ao lado de uma dimensão subjectiva passa a afirmar-se também uma dimensão objectiva, passando a encarar-se estes direitos igualmente como “princípios ou valores 658 INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., pp. 117 e 118. 659 ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, O Caleidoscópio do Direito. Direito e Justiça nos Dias e no Mundo de Hoje, 2.ª Edição reelaborada, Almedina, Coimbra, 2009, p. 578. 660 JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, La Eficacia de los Derechos Fundamentales Frente a Particulares, cit., pp. 233 – 239; JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 21 – 28. PEDRO CARLOS BACELAR DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Controlo Jurídico do Poder Público, Edições Cosmos, Lisboa, 1996, p. 30, entende que no Estado social “a esfera do político cresce e subverte completamente o quadro das tarefas de polícia em que se julgava conter o Estado das concepções liberais. Por isso, Estado e sociedade irão de novo aproximar-se por múltiplos caminhos”. 661 JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, “En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales?”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 302 – 305. 177 constitucionais”, aplicáveis à totalidade da ordem jurídica662. Assim, “só a unidimensionalidade da teoria liberal dos direitos, liberdades e garantias, que reconduziu (…) os direitos fundamentais a ‘direitos de defesa-distanciação’ dos particulares ante as entidades públicas”663, justifica que tivesse sido desprezado o problema da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Num contexto de “pluridimensionalidade e plurifuncionalidade” destes direitos664 já é, no entanto, possível pôr-se a questão da sua validade nas relações entre privados665. Não podemos esquecer que, como qualquer norma jurídica, também a Constituição está sujeita à influência dos tempos666. Verifica-se, hoje, “um processo de contínua expansão dos direitos fundamentais, em várias direcções”, o que implica que o seu conteúdo se tem vindo progressivamente a ampliar, “descobrindo os tribunais novas possibilidades (…) de penetração destes direitos”, “novos cenários onde se considera que podem operar”. É fundamental não esquecer a “radical historicidade dos direitos fundamentais”: o seu sentido está em constante transmutação porque a própria “realidade sociopolítica” a que se destinam também se tem vindo a alterar. Em virtude disso, “poucas categorias jurídicas se mostram tão permeáveis à evolução dos standards culturais”667. O problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais decompõese em duas questões distintas: a primeira diz respeito “às consequências ou efeitos das normas de direitos fundamentais sobre o direito privado como 662 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 234 e 235. 663 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Omissões normativas e deveres de protecção”, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 111. 664 JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, “Constitucionalização do Direito Civil”, cit., p. 742. Sobre a plurifuncionalidade ou multifuncionalidade dos direitos fundamentais ver, mais desenvolvidamente, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1402 ss; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., p. 68. 665 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 235. 666 PETER LERCHE, “Grundrechtlicher Schutzbereich, Grundrechtsprägung und Grundrechtseingriff”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 743. 667 JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, “En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales?”, cit., pp. 300 e 306. 178 sistema de princípios e de regras”; a segunda prende-se “com as consequências ou efeitos das normas de direitos fundamentais sobre o direito privado como sistema de relações jurídicas”668. Esta última questão, que constitui precisamente o objecto da discussão em torno da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais é, e provavelmente continuará a ser, uma questão controversa669. Vimos já noutra sede670 que as “teorias de construção”671 tradicionais defendidas a este propósito se dividem entre os que negam a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, os que advogam a aplicabilidade imediata destes preceitos constitucionais nas relações entre sujeitos privados (posições monistas) e aqueles que só indirectamente admitem a relevância dos direitos fundamentais nesta área (posições dualistas), abrangendo nós aqui a tese da eficácia mediata e a tese dos deveres de protecção. Parece, no entanto, que há consenso na doutrina no sentido de que a recusa de qualquer eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas é, hoje, indefensável672. Vamos, então, ver em traços gerais em que é que se consubstanciam as restantes teorias673. A tese da eficácia directa674 defende que os direitos fundamentais têm uma “validade absoluta enquanto direitos subjectivos ou normas de valor”, 668 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 19 e 20. Quanto à primeira questão, do facto de as normas de direitos fundamentais condicionarem o direito privado (objectivo), compreendido como sistema de princípios e regras, decorre a vinculação do legislador e do julgador pelas normas de direitos fundamentais. Nesse sentido, também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1292. 669 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 23. 670 BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 20 ss. 671 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 481. 672 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 72. 673 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 77, considera, inclusivamente, que hoje apenas “ restam verdadeiramente em combate a tese dos deveres de protecção e a tese da aplicabilidade directa.” 674 Esta posição foi inicialmente desenvolvida e sustentada por Hans Carl Nipperdey e posteriormente reforçada por Walter Leisner. Ver HANS CARL NIPPERDEY, “Grundrechte und Privatrecht”, in Festschrift für E. Molitor zum 75. Geburtstag, Verlag C. H. Beck, München, 1962, pp. 17 ss; WALTER LEISNER, Grundrechte und Privatrecht, cit.; ver também INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em 179 sendo directamente aplicáveis nas relações jurídicas privadas675. Segundo esta teoria, os particulares podem valer-se dos direitos, liberdades e garantias “como fundamento autónomo de direitos e deveres relevantes nas relações jurídico-privadas”, o que determina a “invalidade dos contratos (negócios jurídicos) contrários às normas de direitos fundamentais” e a “qualificação como ilícita, por violação de ‘direitos [absolutos] de outrem’, de toda a acção e/ou de toda a omissão contrária aos direitos fundamentais”676. Assim, de acordo com esta posição, os direitos, liberdades e garantias aplicam-se obrigatória e directamente no comércio jurídico entre privados677. A tese da eficácia mediata678 afirma que as relações entre particulares são reguladas por um conjunto especial de leis, podendo os direitos fundamentais apenas aí actuar indirectamente, enquanto “princípios objectivos”, influenciando a interpretação do direito privado. A influência dos direitos fundamentais, que, segundo esta perspectiva, se deverá levar a cabo, principalmente, através da densificação de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, “pode ainda concretizar-se através da interpretação de normas de direito privado e, em casos excepcionais, até justificar decisões contra o torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), A Constituição Concretizada, Construindo Pontes com o Público e o Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2000, p. 121; JESÚS GARCÍA TORRES – ANTÓNIO JIMÉNEZ– BLANCO, Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares, Editorial Civitas, Madrid, 1986, p. 21; e ainda DIETER FLOREN, Grundrechtsdogmatik im Vertragsrecht, Spezifische Mechanismen des Grundrechtschutzes gegenüber der gerichtlichen Anwendung von Zivilvertragsrecht, Duncker und Humblot, Berlin, 1998, pp. 20 e 23. 675 JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais, cit., p. 96; também ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 482. 676 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 23 – 27. 677 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1286. 678 Que se desenvolveu, sobretudo, a partir da formulação de Günter Dürig. Ver sobre esta questão, GÜNTER DÜRIG, “Art. 1”, in THEODOR MAUNZ – GÜNTER DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Verlag C. H. Beck, München, 1997, pp. 65 ss; GÜNTER DÜRIG, “Grundrechte und Zivilrechtsprechung”, in THEODOR MAUNZ (org.), Vom Bonner Grundgesetz zur gesamtdeutschen Verfassung, Festschrift zum 75. Geburtstag von Hans Nawiasky, Isar Verlag, München, 1956, pp. 176 ss; também INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 123; JESÚS GARCÍA TORRES – ANTÓNIO JIMÉNEZ – BLANCO, Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares, cit., p. 25; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 236. 180 texto da lei”679. Esta teoria diz-nos que os particulares não podem recorrer aos direitos, liberdades e garantias como “fundamento autónomo de direitos e deveres relevantes nas relações jurídico-privadas”680. Já a tese dos deveres de protecção baseia-se na distinção entre direitos fundamentais enquanto direitos de defesa em relação ao Estado e direitos fundamentais enquanto deveres de protecção (Schutzpflichten)681. Passa a salientar-se também “a tutela supra-individual ou institucional dos direitos fundamentais”, que deixam de ser encarados como meras “proibições de ingerência” passando a reconhecer-se também a sua função de “normas de protecção”. Estes direitos tornaram-se, assim, “o fundamento de uma actividade do Estado positivamente prosseguida para conferir as condições de uma efectiva garantia de tais posições subjectivas”682. Segundo a teoria em análise, os direitos fundamentais vinculam apenas os entes públicos, mas estes, para além do dever de os respeitar e concretizar, têm ainda a responsabilidade de os proteger contra quaisquer ameaças, ainda que essas ameaças resultem da actividade de outros particulares683. A “garantia constitucional de um direito” origina uma obrigação do Estado de “adoptar medidas positivas destinadas a proteger o exercício dos direitos fundamentais perante actividades perturbadoras ou lesivas dos mesmos praticadas por terceiros”684. 679 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 481. 680 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 23. 681 JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 96 e 97; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 241. Sobre o desenvolvimento desta figura na jurisprudência do BVerfG, ver HANS H. KLEIN, “Die Grundrechtliche Schutzpflicht”, in DVBl, n.º 9, 1994, pp. 489 ss. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., p. 93, defende que os “deveres de protecção não integram o conteúdo dos direitos a proteger, antes decorrem de uma obrigação geral de protecção” que, na CRP, tem base nos arts. 2.º, 9.º, alínea b), 202.º, n.º 2 e 272.º, n.º 1. 682 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 801 e 802. 683 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 241. 684 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 409. Considerando que este dever decorre do princípio do Estado de Direito e do “monopólio estadual do uso da autoridade e da força legítima”, uma vez que os particulares, salvo situações de excepção, só se podem defender das agressões dos seus direitos por outros 181 Assim, nos termos desta perspectiva, da dimensão objectiva dos direitos fundamentais dimana uma “garantia de um padrão mínimo de realização que, não sendo atingido, significará a violação de uma proibição constitucional de défice de actuação [Untermassverbot] que vincula juridicamente os poderes do Estado”685. Haverá um défice de actuação “quando as entidades sobre quem recai um dever de protecção (…) adoptam medidas insuficientes para garantir uma protecção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais”686. A proibição do défice tem duas características específicas: por um lado, limita-se a um “controlo de resultados” e não a um controlo de meios; por outro lado, trata-se de um “controlo mínimo”687. Canaris é um dos principais defensores da teoria dos deveres de protecção na sua aplicação às relações jurídicas privadas. Segundo ele, o particulares através da actuação dos entes públicos, ver JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 96 e 97; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 241; também JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., pp. 184 – 186. Este Autor critica a jurisprudência do BVerfG por, nas suas decisões, fundamentar este dever de protecção no preceito que visa a garantia da dignidade da pessoa humana e ainda na ordem de valores objectiva subjacente à Constituição. Também PETER UNRUH, Zur Dogmatik der grundrechtlichen Schutzpflichten, Duncker & Humblot, Berlin, 1996, pp. 31 – 37, considera que o BVerfG apresenta apenas estas duas fundamentações para os deveres de protecção. Ver ainda ECKART KLEIN, “Grundrechtliche Schutzpflicht des Staates”, cit., p. 1635, que considera que o fundamento decisivo do dever de protecção estadual se encontra “no estabelecimento do Estado enquanto ordem de paz”. 685 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 76 e 77. 686 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 273. 687 OLIVER KLEIN, “Das Untermassverbot – Über die Justiziabilität grundrechtlicher Schutzpflichterfüllung”, in JuS, n.º 11, 2006, p. 961. Ver também DIETER GRIMM, “The protective function of the state”, in GEORG NOLTE, European and US Constitutionalism, Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p. 151, que sustenta que, graças à margem de apreciação de que goza o legislador na concretização de um dever de proteger e uma vez que a proibição do défice garante apenas um “standard mínimo”, a decisão de conferir mais protecção não implica necessariamente a violação do princípio da proporcionalidade. No Acórdão n.º 75/10, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos /20100075.html, o TC estabelece que “enquanto que a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado. Somente se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se torna necessária para o cumprimento do dever de protecção. O que se retira da Constituição é apenas o dever de proteger, não estando predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção”. 182 destinatário deste dever de protecção nas relações entre particulares é não só o legislador de Direito Civil, mas também o julgador de Direito Civil688. No entanto, “o juiz só deve assumir o encargo de assegurar a protecção dos direitos fundamentais em questão se considerar que se está abaixo de um limiar mínimo de protecção, que exige a sua intervenção autónoma”689. Trata-se de uma “nova tendência” no âmbito da denominada eficácia indirecta690, uma vez que estende a aplicabilidade dos direitos fundamentais para além do “preenchimento de cláusulas gerais de direito privado, impondo aos poderes públicos (…) a obrigação de velarem efectivamente por que não existam ofensas aos direitos fundamentais pela parte de entidades privadas”691. Ao falar de deveres de protecção estamos, no fundo, ainda no âmbito da vinculação do Estado aos direitos fundamentais. De tudo o que vimos parece-nos que, independentemente da posição adoptada, a existência de uma vinculação dos particulares, seja qual for a sua forma e o seu alcance, é, hoje, inquestionável. E, apesar de partirem “de pressupostos distintos ou operando por vias diversas”, a verdade é que estas teorias chegam, muitas vezes, “ao mesmo resultado prático”692, até porque há 688 CLAUS-WILHELM CANARIS, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 39 – 41. Sobre esta questão, ver também, do mesmo Autor, “Grundrechte und Privatrecht”, in AcP, Vol. 184, n.º 3, 1984, pp. 201 ss; “A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 223 ss. 689 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 108. 690 INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., pp. 126 e 127. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 96, considera que, “sem prejuízo da adesão que merece a doutrina dos deveres de protecção, (…) na base de uma resposta constitucionalmente adequada ao problema [da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais] deve estar o modelo doutrinário da eficácia indirecta”. Determinar, por exemplo, “se é ou não lícito a uma entidade patronal exigir dos candidatos a um lugar que se submetam a determinados exames médicos não deve ser resolvido por força da aplicação directa” de preceitos constitucionais “mas sim através do recurso às soluções desenhadas pelo legislador (…) ou, na sua ausência, por recurso aos princípios gerais de Direito Comum”. 691 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 241 e 242. 692 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 246; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 303. Considerando que a teoria da eficácia imediata e que a teoria da eficácia mediata “não se afastam tanto quanto à partida poderia parecer”, ver CHRISTIAN STARCK, “Artikel 1”, in CHRISTIAN STARCK – HERMANN VON MANGOLDT – FRIEDRICH KLEIN (orgs.), Das Bonner 183 entre elas vários pontos de convergência. Em primeiro lugar, estas teses estão de acordo quanto ao papel central a assumir pelo legislador, a quem deve caber, em primeira linha, “conformar a convivência entre as esferas de autonomia e liberdade dos cidadãos”. São também unânimes na “aceitação das modalidades menos contundentes de eficácia dos direitos fundamentais (realização através da lei ordinária, interpretação conforme à Constituição e densificação jusfundamentente orientada das cláusulas gerais)”. Finalmente, concorrem ainda na ideia de que é ao julgador, em particular ao constitucional, que compete apreciar “se aquela composição feita pelo legislador é constitucionalmente aceitável”693. Por outro lado, estas teses distanciam-se no que diz respeito ao papel do julgador “quando não há lei ordinária aplicável”. Neste último caso, enquanto a teoria da eficácia imediata aplicará o direito fundamental constitucionalmente consagrado em quaisquer circunstâncias, a teoria dos deveres de protecção apenas o fará quando esteja em causa um défice de protecção. Já a teoria da eficácia mediata “recusará qualquer efeito suplementar produzido pelos direitos fundamentais com apoio nas normas constitucionais”694. 2. Posição adoptada: a vinculação directa prima facie dos particulares aos direitos fundamentais Entre nós, a CRP refere expressamente a vinculação das entidades privadas no n.º 1 do artigo 18.º695. Tem-se entendido, no entanto, que esta Grundgesetz Kommentar, cit., p. 167. 693 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 74. 694 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 75. 695 O artigo 18.º, n.º 1, estabelece o seguinte: ”Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas.” Esta disposição refere-se, então, apenas a direitos, liberdades e garantias. No entanto, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 113, coloca a questão de saber por que razão não há uma eficácia directa dos direitos sociais, na medida em que estes tanto podem ser ameaçados pela acção do Estado como da sociedade. Apesar disso, parece-nos que, partindo da superação que o próprio Autor faz da distinção constitucional entre direitos, liberdades e garantias e direitos 184 norma não é conclusiva, uma vez que “não revela a amplitude, a forma e a intensidade desta vinculação”, sendo, para além disso, necessário averiguar que sentido dar à palavra “entidades”696: se inclui todos os indivíduos ou apenas as “pessoas colectivas ou individuais ‘poderosas’”697. Apesar disso, pelo facto de o legislador constituinte ter consagrado expressamente tal vinculação, deixa de se justificar, no nosso ordenamento jurídico, uma das críticas normalmente apontadas às teorias da eficácia imediata em ordenamentos onde não existe uma disposição correspondente, que é precisamente o facto de não haver, na letra da lei, qualquer fundamento para essas teorias. Quanto à tese da eficácia mediata, julgamos que esta não tem devidamente em conta a evolução sofrida pelos direitos fundamentais, reconduzindo-se “inteiramente à noção mais do que sedimentada de interpretação conforme à Constituição”698 e, desse modo, “representando apenas um corolário da afirmação da lei fundamental como norma jurídica e do princípio da interpretação conforme a mesma”699. económicos, sociais e culturais, aquilo que poderia ser aplicável nas relações entre particulares são “refracções dos direitos sociais enquanto garantias típicas de direito de liberdade negativo” e não já enquanto direitos a prestações positivas. 696 Nesse sentido, INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 120. 697 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 251; PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 229; PEDRO CRUZ VILLALÓN, “Derechos Fundamentales y Derecho Privado”, in La Curiosidad del Jurista Persa, y Otros Estúdios Sobre la Constitución, Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, Madrid, 1999, p. 224; JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, “Constitucionalização do Direito Civil”, cit., pp. 741 e 742. JORGE SINDE MONTEIRO, “Culpa in contrahendo”, cit., p. 6 considera, por sua vez, que a “querela sobre a aplicação imediata (directa) ou mediata (indirecta) dos preceitos relativos aos direitos fundamentais nas relações entre sujeitos privados (…) não deve ser resolvida a partir de argumentos de texto tirados do art. 18.º, n.º 1, da CRP”, tratando-se antes de “um problema de metodologia jurídica”. NUNO E SOUSA, “A liberdade de imprensa”, cit., p. 111, defende que a questão do efeito mediato ou imediato não se resolve na CRP com clareza, pois ainda que se diga que os direitos vinculam as entidades privadas, não se dá uma resposta definitiva quanto à questão de saber se o regime de vinculação destas entidades e o das entidades públicas é inteiramente coincidente. Já J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1288 ss, entende, por seu lado, que o artigo 18.º da Constituição “consagra inequivocamente a eficácia imediata em relação a entidades privadas”, sendo que apresenta “soluções diferenciadas” para o problema. 698 DANIEL SARMENTO, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Editora Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2004, p. 245. 699 LUIS PRIETO SANCHIS, Estudios sobre Derechos Fundamentales, Editorial Debate, Madrid, 185 Por outro lado, quando falamos de deveres de protecção estamos ainda no âmbito da vinculação das entidades públicas, pois em última análise é aos poderes públicos que cabe o dever de proteger os direitos fundamentais contra quaisquer ameaças, ainda que essas ameaças resultem da actividade de outros particulares. Ora a CRP diz algo mais do que isto. A nossa Constituição “faz aplicar expressamente os direitos fundamentais às relações entre entidades privadas sem qualquer restrição ou limitação”, pelo que não parece “legítimo limitar essa eficácia apenas aos casos em que a doutrina estrangeira [maxime a alemã] a admite quando nada nas respectivas leis fundamentais o impõe700. Tem-se considerado que a tese da eficácia directa acaba por enfraquecer os direitos fundamentais, uma vez que aqui se confrontam titulares de direitos fundamentais e direitos fundamentais dos dois lados. Nesse sentido, “a força de trunfo” dos direitos “é desvitalizada ou neutralizada através da recíproca invocação por parte do oponente”701. Já nas relações estabelecidas entre indivíduo e Estado “a situação é qualitativamente diferente”, uma vez que “da parte do Estado não há titularidade de direitos fundamentais”, pelo que este “só dificilmente pode invocar razões jusfundamentais a favor do interesse que visa prosseguir” 702. Parece-nos, no entanto, que esta crítica não colhe, na medida em que quando o Estado restringe direitos fundamentais fá-lo, precisamente, tendo em consideração os direitos que conflituam ou poderão conflituar na situação concreta. Assim, ainda que não haja, da parte do Estado, titularidade de direitos fundamentais, são muitas vezes razões jusfundamentais que estão na base das suas ponderações. Há também nesta análise “trunfos” dos dois lados, 1990, pp. 211 e 212. 700 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 386. 701 Como já tivemos oportunidade de ver, segundo a concepção dos “direitos fundamentais como trunfos” ter um direito fundamental significa “ter um trunfo contra o Estado”, o que implica “ter um trunfo contra a maioria”. O princípio da dignidade da pessoa humana é o “fundamento desta perspectiva porque é dessa igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um conformar autonomamente a existência segundo as suas próprias concepções e planos de vida”. Sobre esta questão, ver, mais desenvolvidamente, JORGE REIS NOVAIS, “Direitos como trunfos contra a maioria”, cit., pp. 17 ss. 702 Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., pp. 92 e 93. 186 pelo que não vemos por que motivo a invocação de um direito subjectivo fundamental contra outro particular é qualitativamente diferente. Outra crítica prende-se com o facto de, “do ponto de vista da construção do caso, qualquer conflito deste tipo se transmutar em colisão directa de direitos fundamentais que (…) terá que ser decidida pelo juiz”. Assim, a tese da vinculação imediata, “que procurava escapar à mediação do Estado (…), acaba a reconduzir o problema para o plano das relações Estado/cidadão”703. Pensamos que também esta crítica não procede. Trata-se, efectivamente, de uma restrição de direito fundamental através de decisão judicial, pelo que temos, a final, uma relação entre Estado e indivíduo que nasce da intervenção restritiva decidida pelo juiz. Mas essa intervenção restritiva não deixa de partir do facto de estarmos perante um direito fundamental de um outro titular que foi pesado pelo juiz. Nessa medida, não é contraditório com a teoria da eficácia imediata que o Estado, neste caso o juiz, tenha de intervir. Aquilo que a teoria da eficácia imediata visa garantir é que este tenha em consideração os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados em quaisquer circunstâncias e não apenas quando haja um défice de protecção. Aponta-se ainda como crítica a esta posição o facto de a tese da eficácia directa entregar “a regulação do problema ao juiz”. Assim, “em última análise seria o juiz constitucional a decidir, [por exemplo], a controversa questão da proibição de fumar em locais públicos, independentemente da decisão do legislador democrático”, enquanto “para a tese dos deveres de protecção deveria ser o legislador a encarregar-se da composição do conflito subjacente”704. 703 Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., pp. 94 e 95. 704 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 108. ERNST-WOLGANG BÖCKENFÖRDE, “Grundrechte als Grundsatznormen”, in Der Staat, Vol. 29, n.º 1, 1990, pp. 30 e 31, faz essas mesmas críticas aos defensores de uma dimensão objectiva e dos deveres de protecção do Estado. Este Autor sustenta que “ou se entende que a Constituição, enquanto organiza a vida político-estadual e regula a relação fundamental Estado – cidadão, estabelece uma ordem quadro e, nessa medida, não contém em si o material que conduz à harmonização das diferentes posições jurídicas entre si”, ou é vista como “a ordem jurídica fundamental da comunidade no seu conjunto”. A esta última perspectiva “corresponde o entendimento dos direitos fundamentais enquanto normas de valor objectivas, que produzem efeitos em todos os ramos do Direito”. Se a Constituição “é ordem jurídica fundamental da comunidade”, na medida em que “as exigências constitucionais são 187 Parece-nos, no entanto, importante salientar que a tese da eficácia directa não sustenta que deva ser o juiz a resolver a controvérsia. Aquilo que esta perspectiva defende é que o juiz terá de decidir a questão que lhe é colocada, no caso de o legislador nada dizer e até que o faça. Mesmo que um qualquer tribunal, na resolução do caso sub judice, tenha feito uma determinada aplicação do direito fundamental não concretizado por lei, o legislador não passa a estar de alguma forma limitado ou impossibilitado de desenvolver legislativamente esse mesmo direito, “afastando-se da linha seguida pela decisão judicial”705. Para além disso, o reconhecimento de uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais “não potencia substancialmente o risco de um juiz desvinculado mais do que o faz a aplicação de cláusulas gerais contidas em leis infraconstitucionais”706. Assim, defender uma vinculação directa dos particulares aos direitos fundamentais não implica “negar ou subestimar o efeito de irradiação desses direitos através da lei”. É, de facto, o legislador quem, em primeira linha, deve resolver as situações de conflito de direitos fundamentais que possam surgir707. É muito diferente “afirmar que as normas de direitos fundamentais têm eficácia normativa no âmbito das relações entre particulares, sendo os cidadãos titulares de tais direitos reconhecidos na Constituição também nas suas relações jurídico-privadas”, ou considerar “que a Constituição é, por si só, o instrumento adequado e auto-suficiente para regular a vigência dos direitos fundamentais no seio de tais relações”708. Esta perspectiva também não infirma a existência de um dever de protecção do Estado, que o vincula a proteger os particulares de ofensas ou ameaças aos seus direitos fundamentais cometidas por terceiros, uma vez que indeterminadas, o Tribunal Constitucional no papel de concretização do seu âmbito de uma determinada forma torna-se Senhor da Constituição”. 705 RAFAEL SARAZÁ JIMENEZ, Jueces, Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares, Universidad de La Rioja, Logroño, 2008, disponível in dialnet.unirioja.es, p. 636. 706 RAFAEL SARAZÁ JIMENEZ, Jueces, Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares, cit., p. 682. 707 JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, “En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales?”, cit., p. 317. 708 RAFAEL SARAZÁ JIMENEZ, Jueces, Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares, cit., p. 691. 188 este dever não é incompatível ou contraditório com a ideia de vinculação imediata. O que nos parece é que, para além disso, poderá ainda existir uma vinculação imediata dos particulares a estes direitos709. Trata-se de “uma inequívoca zona de confluência entre a vinculação do poder público (…) e a vinculação - directa - dos particulares”710. Vimos ainda que Canaris e os defensores da tese dos deveres de protecção, enquanto “teoria de construção” mais adequada para resolver o problema da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, consideram que os direitos fundamentais só serão violados pelo Estado, quando a decisão judicial não respeita o “mínimo de protecção” constitucionalmente exigido: vale aqui o princípio da proibição do défice 711. O problema está em determinar quando é que nos encontramos efectivamente abaixo do limiar mínimo em que se consubstancia esse défice de protecção, tarefa não isenta de dificuldades712. Trata-se de um “novo conceito delimitador de um standard mínimo de direitos fundamentais protegido, sem que se tenha conseguido clarificar a evolução deste limite713 ou a questão de 709 DANIEL SARMENTO, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, cit., p. 287. 710 INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 147. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 387, entendem que “não é a mesma coisa falar-se em vinculação imediata de entidades privadas (…) ou em dever de protecção (…) dos direitos, liberdades e garantias dos privados contra privados através do Estado”. 711 CLAUS WILHELM CANARIS, “A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha”, cit., pp. 241 e 242. 712 GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 13. MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 42, refere que “os deveres de protecção partilham da mesma fraqueza que os direitos sociais, na medida em que o seu conteúdo não está fixado pela Constituição e, muitas vezes, não se consegue precisar suficientemente pela via da interpretação. Como é que a protecção do direito fundamental previsto através de um direito de defesa deve, em concreto fazer-se, ou seja, que medidas é que são exigidas no caso concreto, não é, de modo nenhum, claro”. O TC, no Acórdão n.º 166/10, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20100166.html, procura concretizar mais este princípio, estabelecendo que “poderá considerarse que existe um deficit inconstitucional de protecção (ou de prestação normativa), quando as entidades sobre as quais recai o dever de proteger adoptam medidas insuficientes para garantir a protecção adequada às posições jusfundamentais em causa, sendo que tal sucede sempre que se verificar um duplo teste: (i) sempre que se verificar que a protecção não satisfaz as exigências mínimas de eficiência que são requeridas pelas posições referidas; (ii) cumulativamente, sempre que se verificar que tal não é imposto por um relevante interesse público, constitucionalmente tutelado”. 713 HANS HANAU, Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit als Schranke privater Gestaltungsmacht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004, p. 68, entende que “os pressupostos de utilização da proibição do défice de protecção são obscuros e de contornos pouco claros”. Tem 189 saber quem é que o pode determinar vinculativamente”714. Por outro lado, o havido, de facto, alguma divergência na doutrina quanto à densificação deste princípio. Considerando que “’não decorre da proibição do défice nada que não se retiraria já do princípio da proibição do excesso’”, ver KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 814. Referindo a “vacuidade” do conceito de proibição do défice, ver JOHANNES DIETLEIN, “Das Untermassverbot: Bestandaufnahme und Entwicklungschancen einer neuen Rechtsfigur", in ZG, n.º 10, 1995, p. 133. KARL-EBERHARD HAIN, "Der Gesetzgeber in der Klemme zwischen Übermaß- und Untermaßverbot", in DVBl, 1993, pp. 982 ss, defende que o meio mais necessário para o princípio da proibição do excesso corresponde ao mínimo necessário exigido pela proibição do défice. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Omissões normativas e deveres de protecção”, cit., p. 118, entende que “é discutível” a autonomia do “princípio da proibição de protecção insuficiente” em relação ao do princípio da proporcionalidade. Considerando, no entanto, que não há uma correspondência entre o princípio da proibição do excesso e o princípio da proibição do défice, ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 242; JOHANNES DIETLEIN, “Das Untermassverbot: Bestandaufnahme und Entwicklungschancen einer neuen Rechtsfigur", cit., pp. 136 – 138. DETLEF MERTEN, “Grundrechtliche Schutzpflichten und Untermassverbot”, in Gedächtnisschrift für Joachim Burmeister”, C.F. Müller Verlag, Heidelberg, 2005, pp. 239 ss, entende que “a proibição do excesso e a proibição do défice estão nos antípodas uma da outra e que esta última não deriva da primeira. A proibição do excesso dirige-se contra a actividade do Estado e a proibição do défice dirige-se contra a passividade”. Tal não impede, no entanto, “que haja semelhanças quanto aos elementos que estas contêm”. CHIEN-LIANG LEE, “Grundrechtschutz unter Untermassverbot?”, in Die Ordnung der Freiheit. Festschrift für Christian Starck zum siebzigsten Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 2007, pp. 304 – 309, sustenta que “é essencial distinguirmos duas constelações fundamentais nesta matéria: os casos em que existe uma relação triangular (Estado, titular do direito e quem lesa o direito) e os casos em que não existe essa relação”. Nestes últimos normalmente não se coloca a questão da proibição do excesso, uma vez que não são necessárias intervenções em direitos de terceiros. Aqui não há uma correspondência entre a proibição do défice e a proibição do excesso. A “tese da congruência entre proibição do excesso e proibição do défice só poderá verificar-se (…) no caso de o legislador ter criado uma norma de protecção restritiva. Na medida em que o legislador não tenha levado a cabo qualquer medida protectora, ou quando diminui a protecção da/ou retira a norma que concretiza o dever de protecção, só será aplicável a proibição do défice”. Sobre esta questão, ver ainda MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, Nomos, Baden-Baden, 2005, em particular pp. 69 ss. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 77 – 79, nota 103, entende que a proibição do défice não acrescenta nada ao que resulta do princípio da proibição do excesso, “enquanto parâmetro de controlo da desproporcionalidade de uma restrição”. Para o Autor, “o interesse dogmático do princípio da proibição do défice coloca-se (…) a montante, isto é, no momento em que se trata de saber se, pelo facto de ter violado um patamar mínimo de obrigatoriedade de realização de um direito fundamental (…), o Estado não está a restringir ilegitimamente esse direito e se, quando se trata de controlar a ponderação de bens que conduziu o Estado a preferir tal restrição, o juiz constitucional não goza (…) de um controlo pleno sobre tal ponderação de bens”. 714 MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., p. 82. Maria Lúcia Amaral, no seu voto de vencida no já citado Acórdão n.º 75/10, considera que, de facto, “’cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento de mensuração exacta do grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever.’ No entanto, tal não implica que só se justifique uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de avaliação do legislador, detectado a partir de critérios de evidência. Enquanto critério de identificação da existência, ou inexistência, de deficit de protecção legislativa esta formulação parece-me claramente insuficiente. E parece-me antes que, sempre que o legislador estiver constitucionalmente obrigado a proteger certo bem, tal significa que as medidas a adoptar deverão propiciar a mais ampla protecção que seja fáctica e juridicamente 190 facto de o julgador ser chamado a tomar essa decisão envolve igualmente um perigo para o princípio da separação de poderes715. Coloca-se, para além disso, outro problema, que se prende com as consequências que decorrem da decisão judicial. A dúvida com que nos deparamos é se faz sentido que um particular, que não tem perante outro um dever decorrente de um direito subjectivo, valendo apenas a “dimensão objectiva do direito” e dela decorrendo um “dever geral de respeito”716, seja eventualmente obrigado a indemnizá-lo ou a sofrer quaisquer outras consequências que decorram da decisão judicial. É que se se entende que quem tem o dever de proteger o direito fundamental em causa é o Estado, neste caso o juiz (ou, em última análise, o legislador, que deveria ter legislado de modo a acautelar a posição do sujeito), parece que deveria ser o próprio Estado a sofrer as consequências do seu défice de protecção717. Finalmente, uma vez que defendemos que não pode haver uma restrição de um direito fundamental de um particular por parte de outro particular, não consideramos que levar a sério a qualidade dos direitos fundamentais como “direitos subjectivos oponíveis a outros particulares” tenha possível, i.e., que não seja incompatível com outros princípios ou valores constitucionais que se devam também prosseguir. Uma medida que fique aquém do fáctica e juridicamente possível – isto é, que não confira a mais ampla protecção que seja ainda compatível com outros princípios e valores constitucionais – não é, em princípio, ‘adequada’, pois não concretiza o mandato de concordância prática entre diferentes bens jusfundamentais a que está adstrito o legislador – tanto aquele que restringe, quanto aquele que protege ou promove”. 715 MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 42. 716 Sobre esta questão, ver JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”, cit., pp. 281 e 282. Segundo o Autor, “a validade dos direitos fundamentais nas relações entre privados não é idêntica à que se verifica nas relações entre indivíduo e Estado. Nas relações entre privados os direitos fundamentais valem na sua dimensão objectiva”. Essa dimensão objectiva nas relações entre privados traduz-se, “relativamente ao Estado, num dever de protecção”. Quanto aos particulares, “significa um dever geral de respeito a que todos se encontram obrigados”. 717 PETER PREU, “Freiheitsgefährdung durch die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten”, in JZ, n.º 6, 1991, p. 267, referindo-se aos perigos da teoria dos deveres de protecção, defende que “quando um comportamento não é proibido à luz do direito privado, o cidadão deve poder confiar que ele é permitido”. Considerando que, na ausência de legislação ordinária, “se os particulares não se encontrassem vinculados pelos direitos, liberdades e garantias, tornar-se-ia problemático que um tribunal lhes impusesse directamente tal respeito meramente alegando o seu dever jurisdicional de os proteger”, ver EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., p. 117. Segundo o Autor, “uma coisa é um tribunal impor este respeito a entidades públicas, em nome do dever de respeito e protecção dos direitos fundamentais. Outra é impô-lo a quem (nos termos de uma eficácia meramente mediata ou indirecta), não teria dever de os respeitar”. 191 forçosamente de significar “que os novos destinatários” destes direitos estejam sujeitos aos “diferentes princípios e subprincípios” que obrigam o Estado, ou seja, que toda a dogmática das restrições tenha “de ser transposta para o domínio das relações entre particulares”718. Quem renuncia perante o Estado não está a lidar com um particular que se caracteriza pela sua autonomia privada, mas antes “com um sujeito de Direito que, em toda a sua actuação, tem de respeitar os princípios do Estado de Direito, da democracia e do Estado social, assim como a própria repartição de competências” constitucionalmente estabelecida. Ora “estes princípios estabelecem limites à renúncia que não têm necessariamente correspondência num consentimento para uma actuação privada”719. Não nos parece, por isso, contraditório admitir uma vinculação directa dos particulares aos direitos fundamentais e não admitir essa vinculação (ou pelo menos não a admitir com o mesmo alcance), a princípios de natureza objectiva que, pela sua própria natureza, não faria sentido estender às relações entre particulares720. Assim, o dever do Estado de proteger os direitos fundamentais não deve ser absolutizado, pois “não é aceitável que, numa ordem constitucional assente nos valores da liberdade e da responsabilidade individuais, se transforme o Estado numa espécie de garante geral dos direitos das vítimas perante quaisquer factos de terceiros que lesem os seus direitos fundamentais. Daí que, não sendo o Estado que perturba os direitos fundamentais, mas outro particular, o dever de protecção não possa substituir a vinculação das 718 Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 102. 719 KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 61 e 62. 720 Será esse, por exemplo, o caso do princípio da igualdade. Sobre a questão da vinculação dos particulares ao princípio da igualdade, ver BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 41 ss. Não está aqui em causa, obviamente, a importância destes princípios, que “pertencem ao direito positivo e são princípios estruturantes da nossa ordem jurídica”, conferindo-lhe “fundamento normativo e emprestando-lhe o conteúdo mínimo ético”. Ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem”, in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS – JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JOSÉ FARIA COSTA, Ars Iudicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 382. A sua natureza é que poderá implicar que não faça sentido aplicá-los às relações jurídicas privadas. 192 entidades privadas pelos direitos fundamentais”721. Por conseguinte e partindo também do que já tivemos oportunidade de dizer noutros escritos722, parece-nos que será de reconhecer uma vinculação directa “prima facie”, ou seja, a inviabilidade de uma vinculação directa “de feições absolutas”, mas, ainda assim, uma vinculação directa dos particulares aos direitos fundamentais723. A impossibilidade “de uma eficácia directa ‘absoluta’ e a necessidade de se adoptar soluções diferenciadas decorre (…) da estrutura normativa e da natureza eminentemente principiológica” dos direitos fundamentais724. Os privados vinculados pelos direitos em questão não estão vinculados nos mesmos termos que as entidades públicas, pois são igualmente titulares de outros direitos fundamentais725. Considerar que há uma vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais não implica, por isso, que deva haver uma equiparação total entre pessoas públicas e privadas. Tratando-se de relações entre titulares de direitos fundamentais, sempre se verificarão conflitos que exigem soluções diversas, dependendo do caso concreto e dos direitos fundamentais em causa, sendo, em última análise, “um problema de 721 RUI MEDEIROS, “O Estado de Direitos Fundamentais Português: alcance, limites e desafios”, cit., pp. 31 e 32. 722 BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 86 ss. 723 Esta é a posição defendida por INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157. 724 INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157. Considerando também que nas relações entre particulares a vinculação dos particulares, sem deixar de ser directa, é “menos absoluta”, ver JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, “O Problema do Contrato”, cit., p. 137. Vários Autores propõem soluções diferenciadas. É o caso de PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 237; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1246 – 1251; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 305 e 306; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 158; MARCELO REBELO DE SOUSA – JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa Comentada, cit., p. 97; HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 96 ss. Em sentido contrário, ver JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”, cit., pp. 254 ss. 725 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais nas relações entre particulares”, cit., p. 243. 193 ponderação”726. A vinculação directa ou imediata das entidades privadas aos direitos fundamentais é uma vinculação directa ou imediata prima facie “porque em princípio (…) os direitos fundamentais aplicam-se nas relações jurídicoprivadas; exceptuam-se os casos em que os direitos fundamentais não devam aplicar-se, por causa de uma ponderação de bens e/ou valores”727. 3. Consequências para o problema da renúncia nas relações entre particulares Passando agora à questão que directamente nos ocupa, o facto de se admitir uma vinculação directa prima facie dos particulares aos direitos fundamentais não significa que estes não devam poder, “nas suas relações recíprocas (…), renunciar às normas de direitos fundamentais”728. Admitir-se a vinculação directa tem como consequência apenas que se terá de fazer a análise da relação jurídico-privada através dos direitos fundamentais, o que não quer dizer que o particular não possa, nessa relação, dispor sobre as suas posições jurídicas subjectivas protegidas pelas normas de direitos fundamentais através de uma renúncia729. Partindo da tese da vinculação imediata, isto é, sendo que entendemos que os particulares são sujeitos activos e passivos de direitos fundamentais 726 INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157. 727 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 35. JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 158, sustenta como uma das “linhas de solução” para a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais “a consideração dos problemas em concreto como problemas de escolha entre vários bens pelos destinatários (…) das normas e como problema de colisão de direitos”. 728 Nesse sentido, KONRAD HESSE apud INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 144. 729 Não nos parece, por isso, que defender uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais tenha de implicar a defesa de uma tirania ou totalitarismo de valores. Considerando que os que negam a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais são os seguidores de “uma corrente de opinião que denuncia a chamada tirania ou totalitarismo de valores”, ver PEDRO CRUZ VILLALÓN, “Derechos Fundamentales y Derecho Privado”, cit., p. 223. 194 nas relações que estabelecem entre si, faz sentido falar em renúncia nas relações jurídico-privadas. Estando os entes privados directamente vinculados por tais direitos, não há especificidades quanto à pertinência da renúncia neste âmbito730. O mesmo já não se pode, contudo, dizer no que se refere aos limites a respeitar, uma vez que neste caso o destinatário da declaração de renúncia é um particular e não o Estado. Se, por outro lado, se considerar que essa vinculação é apenas mediata, ainda assim não é de excluir que se possa colocar o problema da renúncia. Mesmo que se defenda a teoria da eficácia mediata tal como esta foi originariamente concebida, partindo da ideia de que os particulares estão vinculados a princípios e valores que se fazem valer no direito privado através das cláusulas gerais da ordem pública e dos bons costumes, poderia colocarse a questão da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares. Quando “um indivíduo renuncia validamente a uma determinada posição jurídica de direitos fundamentais, o negócio jurídico que contém a renúncia não poderá mais ser considerado como contrário aos bons costumes em virtude do significado dessa posição”. A determinação da contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes de uma declaração de vontade de direito privado depende, por conseguinte, da validade da renúncia a uma determinada posição de direitos fundamentais731. O mesmo se poderá dizer partindo da teoria dos deveres de protecção732. Vimos já que nela se sustenta que os poderes públicos têm o dever de proteger os direitos fundamentais contra quaisquer ameaças, ainda que essas ameaças resultem da actividade de outros particulares. Da dimensão objectiva deriva um dever do Estado de garantir um mínimo de protecção aos direitos fundamentais que se não for respeitado implica a violação do princípio da proibição do défice. 730 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 217. 731 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 219. GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 930, considera que uma renúncia que não respeite os limites previstos no art. 1.º e na 2.ª Parte do art. 19.º GG, viola os bons costumes nos termos do § 138 do Código Civil alemão. 732 Fazendo a análise da problemática partindo desta perspectiva, ver PHILIPP S. FISCHINGER, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 812 ss. 195 Assim, segundo a teoria dos deveres de protecção os indivíduos não se encontram vinculados aos direitos fundamentais nas relações jurídicas que estabelecem entre si. No entanto, essas mesmas relações, quando levadas a juízo, têm de ser avaliadas através das valorações da Constituição, em virtude da vinculação do julgador aos direitos fundamentais. O juiz, segundo esta perspectiva, só está autorizado a descurar a força de irradiação dos direitos fundamentais em jogo se a renúncia for válida733. Em conformidade com isso, os órgãos jurisdicionais que se tenham de pronunciar acerca da validade de um negócio jurídico de direito privado têm de ter em consideração os direitos fundamentais, apenas podendo permitir uma disposição sobre posições jurídicas de direitos fundamentais quando a renúncia seja admissível. Deste modo, mesmo para os defensores da teoria dos deveres de protecção não deixa de se colocar o problema da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre privados. Parece-nos, todavia, que quem parte desta perspectiva considerará que a autorização para o juiz intervir deve ser “mais contida”, na medida em que, de acordo com a teoria dos deveres de protecção, este só o deverá fazer “em casos extremos ou de evidente défice de protecção da liberdade individual”734. Assim, faz sentido colocar o problema da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares quer se defenda a vinculação imediata ou mediata (incluindo nós aqui a teoria dos deveres de protecção) destes aos direitos fundamentais. Apenas quando se afasta completamente qualquer eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas é que a questão da renúncia nas relações entre particulares deixa de ter qualquer significado735. Uma vez que admitimos uma vinculação directa prima facie, quando os particulares renunciam a direitos fundamentais perante outros particulares estão a gozar do seu poder de disposição sobre posições jurídicas subjectivas 733 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 221. 734 JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, cit., p. 107. 735 Considerando que se se nega “que os direitos, liberdades e garantias se aplicam imediatamente em relação aos particulares em rigor não existe renúncia, precisamente por estes não terem aplicação”, ver EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., p. 130. 196 de que são titulares. Tal não significa, no entanto, que não possa haver diferenças atinentes aos limites a estabelecer à admissibilidade da renúncia pelo facto de, neste caso, o destinatário da declaração de renúncia ser um particular e não já o Estado. Quem renuncia está, através da renúncia, a dispor de um seu direito fundamental. Nas relações entre privados temos, porém, de ter em consideração que “o destinatário da renúncia, que actua com base no consentimento de quem renuncia e que adquire através do consentimento um direito a agir está, [ao contrário do Estado], a exercer também uma posição jurídica jusconstitucionalmente protegida”. Esta posição jurídica teria como limite os direitos fundamentais do outro particular que a ela se poderiam opor se não houvesse consentimento736. Assim sendo, vamos finalmente procurar perceber quais as especificidades da renúncia a posições subjectivas de direitos fundamentais nas relações entre particulares. Capítulo III: Os limites da renúncia propriamente ditos Um dos problemas fundamentais com que o Direito tem inelutavelmente de se confrontar é o de estabelecer um compromisso entre os valores em que uma dada comunidade se revê e visa prosseguir e a liberdade dos indivíduos de poderem escolher o modo de vida que pretendem levar737. A renúncia nas relações entre particulares, como referimos já oportunamente, envolve uma afectação negativa de um direito fundamental, ainda que se traduza igualmente em exercício do direito. Por conseguinte, a constatação de que existe um direito a renunciar não quer, contudo, dizer, que o poder de dispor sobre posições subjectivas de direitos fundamentais seja ilimitado, mesmo na renúncia entre entes privados. De facto, “num contexto jurídico-constitucional em que (…) a liberdade individual está associada à solidariedade cívica e a uma ética de responsabilidade comunitária (…), 736 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 222. 737 MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 108 e 109. 197 percebe-se que o primado da liberdade e o consequente princípio da disponibilidade dos direitos fundamentais (…) estejam sujeitos a determinados limites”738. Cabe ao Estado garantir que o enfraquecimento do direito fundamental resultante do acto de disposição não vai além do que é constitucionalmente admissível. Nesse sentido, pode fazer determinadas exigências, de modo a atribuir-lhe força jurídica. A protecção de bens essenciais para a comunidade pode “justificar restrições à liberdade do indivíduo e para o legislador ordinário ficou a tarefa de concretizar a harmonização de tais exigências”739. No entanto, uma vez que a liberdade é a regra e a restrição a excepção, ao desempenhar tal tarefa o legislador tem sempre o ónus de justificar a restrição da liberdade, pelo que deve estar balizado no exercício das suas funções para evitar que se cometam abusos, particularmente (e para o que nos interessa) no que diz respeito à limitação do poder de dispor sobre posições de direitos fundamentais. Vamos então, neste capítulo, dedicar-nos ao problema dos limites da renúncia nas relações entre particulares, partindo dos limites que a doutrina tem vindo a invocar na renúncia no âmbito das relações que se estabelecem entre o Estado e os cidadãos, de modo a apreciar em que termos são extensíveis às relações jurídicas privadas740. Antes disso, porém, veremos em que medida é que o facto de o poder de disposição apresentar a natureza de princípio é relevante para aferir da admissibilidade concreta de uma dada renúncia. Com efeito, uma vez que, como já referimos, o poder de renúncia é um poder fundamentado na própria titularidade do direito, consubstanciando-se ainda em exercício do direito, este goza da natureza principiológica “típica dos direitos fundamentais”741. 738 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 309. 739 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 159. 740 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 266, entende que as conclusões relativas à admissibilidade e limites da renúncia a direitos fundamentais na relação Estado/cidadão são, excluindo a problemática da reserva de lei, essencialmente aplicáveis, com as devidas adaptações, às relações jurídicas privadas. 741 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. 198 1. Considerações prévias: os direitos fundamentais enquanto princípios De acordo com o que designa de “modelo combinado de regras e princípios”, Alexy considera que as normas de direitos fundamentais tanto podem surgir com a estrutura de princípios como de regras, podendo inclusivamente conter a “dupla natureza” de princípio e regra. Este modelo inclui um “nível de princípios”, ao qual pertencem todos os princípios constitucionalmente relevantes para uma ponderação e um “nível de regras”, que são já o resultado de uma tentativa de ponderação entre exigências que decorrem de princípios conflituantes742. Em conformidade com isso, há normas da Constituição que detêm a natureza de regra, que são aquelas em que o legislador constituinte, na sua consagração constitucional, fez já “todas as ponderações que havia a fazer”. No entanto, “estas regras são a excepção”. Normalmente as normas de direitos fundamentais não detêm a natureza de regras, mas antes de princípios, o que significa que, ainda que consagrados na Constituição, estes direitos “podem ter de ceder perante outros bens ou interesses que apresentam, no caso concreto, um maior peso”743. As situações de colisão de direitos fundamentais ou de direitos fundamentais com outros bens constitucionalmente protegidos que não sejam directamente resolvidas pela Constituição obrigam a uma ponderação dos bens colidentes no caso concreto744. Para que possa verificar-se uma colisão de princípios é necessário, antes do mais, que os princípios que colidem sejam válidos745. Assim, a natureza principiológica das normas de direitos fundamentais implica que “os direitos nelas sustentados só se convertem em direitos definitivos depois de passarem pelo crivo da ponderação com princípios 742 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 117 ss; JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 334 e 335. Ver também, sobre esta questão, WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2001, pp. 122 ss. 743 JORGE REIS NOVAIS, “Direitos como trunfos contra a maioria”, cit., pp. 51 e 52. 744 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 626. 745 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 94. 199 opostos nas circunstâncias do caso concreto”. Até que seja feita essa ponderação, são somente “direitos prima facie, ou seja, direitos que podem ter de ceder face ao eventual maior peso que, no caso concreto, apresentem outros princípios, interesses ou valores”746. Uma vez que os princípios envolvem uma dimensão de ponderação, sendo “prioridades prima facie”, eles “não fornecem uma solução definitiva”, antes criando “ónus de argumentação”, abrindo-se “as portas para uma teoria da argumentação”747. O processo metodológico é distinto quando se interpreta uma regra ou um princípio: “as regras interpretam-se” e “os princípios concretizam-se,” o que significa que estes últimos “apontam para os modelos de concretização e ponderação”748. O carácter de princípio das normas de direitos fundamentais origina, portanto, a necessidade de ponderações. O “processo de ponderação” é um “processo racional” mas que “não conduz em todos os casos a uma mesma solução”749. Se estivermos perante duas regras que se contradigam, estas excluem-se uma à outra; se, por outro lado, se tratar de dois princípios que conflituam, estes devem “ser compatibilizados pelo intérprete através de uma solução que procure a conciliação entre os seus diferentes critérios ou indicações”750. Por conseguinte, nas relações que se estabelecem entre titulares de direitos fundamentais, sempre existirão conflitos que exigem soluções distintas, dependendo do caso concreto e dos direitos fundamentais envolvidos751. Do 746 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 339. Ver também JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, cit., p. 75; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais”, in RLJ, n.º 3815, 1992, p. 38; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., pp. 130 ss; VARELA DE MATOS, Conflito de Direitos Fundamentais em Direito Constitucional e Conflito de Direitos em Direito Civil, E.L.C.L.A., Porto, 1998, p. 18. 747 JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., pp. 167 – 169. 748 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem”, cit., p. 386. 749 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 494. 750 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 107; também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1161; JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Constituição, Ordenamento e Conflitos Normativos. Esboço de uma Teoria Analítica da Ordenação Normativa, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 158 e 159. 751 INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157. 200 “próprio conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma questão de tudo ou nada, mas antes de uma tarefa de optimização”, pelo que o modelo de ponderação “corresponde ao princípio da concordância prática”752. As tentativas de fugir a métodos de ponderação partiam da existência de uma relação hierárquica entre os diferentes direitos, podendo “deduzir[-se] relações de preferência absolutas ou relativas entre direitos fundamentais e os bens em colisão”753. É, porém, de negar uma “solução com base numa ordem de valores ou numa mais-valia de um direito em relação ao outro”754. Não é possível estabelecer uma “ordenação rígida” na teoria dos direitos fundamentais755, pois não existe uma prevalência a priori de determinados direitos. Essa prevalência “requer ulteriores valorações atinentes ao problema”756. Para que “os valores e princípios sobre os quais se deve hoje basear a Constituição” possam coexistir torna-se inevitável não atribuir a cada um desses valores e princípios “um carácter absoluto”, pois estes devem ser necessariamente compatíveis com outros com que têm de conviver757. O facto de se considerar que não existe uma ordem constitucional de valores em abstracto, ou seja, sem se atender às circunstâncias do caso 752 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 152. Embora nem sempre estas metodologias tenham andado a par. Sobre essa questão, ver, mais desenvolvidamente, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 684 ss. Considerando também que, “em rigor, deve distinguir-se entre harmonização de princípios e ponderação de princípios”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1241. Segundo o Autor, enquanto “[p]onderar princípios significa sopesar a fim de se decidir qual dos princípios, num caso concreto, tem maior peso”, “[h]armonizar princípios equivale a uma contemporização ou transacção entre princípios de modo a assegurar, nesse caso concreto, a aplicação coexistente dos princípios em conflito”. Ver também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, cit., pp. 199 e 200. 753 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 698. 754 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 381. Também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1090, considera que “em matéria de colisão de direitos (…) não seria admissível uma solução de tipo rígido”. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais”, in RLJ, n.º 3823, 1992, pp. 294, entende que “é hoje reconhecido que não existe uma ordem de valores no catálogo de direitos fundamentais”. 755 JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., p. 171. 756 JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, cit., pp. 74 e 75. 757 GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, cit., p. 13. 201 concreto, não significa, no entanto, que se tenha de conceber a Constituição como uma “ordem axiologicamente neutra”. Não está subjacente a esta posição qualquer “ideia de nivelação ou relativismo ético”. Aquilo que se defende é apenas que não é possível “fazer decorrer de uma ordem constitucional de valores consequências jurídicas mecânicas (…) quanto às prioridades de concretização de cada um desses bens quando a respectiva realização colide com exigências de realização de outros”758. Alexy entende, no entanto, que ainda que não seja de admitir uma ordem de valores ou princípios forte, “que fixe a decisão jusfundamental em todos os casos de uma maneira intersubjectivamente obrigatória”, não é de afastar a possibilidade de “ordens mais fracas”. O Autor defende uma teoria dos princípios que contém um leque de princípios jusfundamentais e que os coloca numa ordem flexível, através de “prioridades prima facie”, em torno “dos princípios da liberdade jurídica e da igualdade jurídica”. Tal não exclui o afastamento, por exemplo, do princípio da liberdade jurídica por outros princípios opostos. Simplesmente exige que para a solução requerida pelos princípios opostos se aduzam razões mais fortes do que para a solução requerida pelo princípio da liberdade jurídica759. Parece-nos que o reconhecimento desta ordem constitucional de valores branda tem consequências ao nível da distribuição do “ónus da argumentação” e, consequentemente, poderá fazer sentido admiti-la, graças ao papel central que o princípio da dignidade assume na nossa ordem constitucional e à ligação incindível que detém com as ideias de autonomia e igualdade. Na medida em que o poder de disposição individual sobre posições individuais de direitos fundamentais se funda no conteúdo de autonomia ínsito nesses mesmos direitos, quando estiver em causa o alcance prático desse poder de disposição num caso concreto, o ónus da argumentação deve, então, recair sobre quem 758 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 705 e 706. 759 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 142, 143 e 516 – 518. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., p. 190, refere que a “prevalência não necessita de ser estabelecida meramente em situações individuais e concretas”, podendo, pelo contrário, “ser estabelecida [uma prevalência relativa] em termos abstractos”. 202 pretende impugnar essa possibilidade760. Ainda assim, a “inexistência de uma ordem abstracta de bens constitucionais” obriga a “uma operação de balanceamento desses bens”, através da qual se obtém “uma norma de decisão adaptada às circunstâncias do caso”761. O significado dos princípios, ao contrário do que acontece com as regras, “não se pode determinar em abstracto, mas apenas em casos concretos e só nesses casos (…) se pode compreender o seu alcance”762. Deve, por isso, aplicar-se aqui o princípio da concordância prática o que significa que, na resolução de conflitos ou colisões se deve tentar realizar, na maior medida possível, os bens jurídicos em jogo763. Tal concordância prática “evita a fuga dos problemas metódicos-constitucionais para os planos metafísicos da ordem de valores, com a consequente tirania dos valores”764. O princípio da concordância prática realiza-se “através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito”765 e impõe ponderações “que não devem efectuar-se numa única direcção”. É por essa razão que alguns Autores têm dúvidas quanto à aplicação “do princípio in dubio pro libertate” como critério de interpretação766. 760 Em sentido contrário, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 698 – 701, considera que “a operatividade da existência” de uma “ordem constitucional de valores branda, relativa ou de prima facie, isto é, meramente indicativa de preferências cuja definitividade estaria, contudo, condicionada à verificação de circunstâncias concretas de cada caso” é “limitada já que, em última análise, acaba por ser a valoração subjectiva dos factores e circunstâncias particulares do caso concreto a determinar decisivamente a colisão de bens”. Para o Autor, “mesmo que fosse possível construir teoricamente uma ordem constitucional de valores hierarquizada de forma branda, ela nada mais forneceria à solução do caso concreto que uma frágil presunção de partida ou de prima facie susceptível de ser infirmada pela configuração com que os bens em colisão se apresentassem no caso concreto e pelas circunstâncias que o rodeassem”. 761 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1237. 762 GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, cit., p. 111. Nesse sentido, também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp. 1090 e 1091. 763 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 656; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 664. 764 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, cit., pp. 199 e 200. 765 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 315. 766 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 203 Na prática, porém, surgem sempre situações de colisão que não dispensam uma decisão de prevalência767, uma vez que este princípio é muitas vezes pura e simplesmente irrealizável. Além disso, é muito discutível que seja possível resolver conflitos de direitos fundamentais sem a invocação de “considerações valorativas”, o que não quer dizer que se reconheça uma hierarquia abstracta entre os diferentes direitos fundamentais, mas apenas que poderá ser de admitir uma “hierarquia axiológica móvel”768. Assim, uma “relação de prevalência” só se poderá decidir perante as circunstâncias concretas do caso e após “um juízo de ponderação”, uma vez que “só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso do que outro”769. No limite, um dos direitos poderá ter de ceder completamente770. 1225. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 707 ss, considera que o recurso a uma presunção geral em favor da liberdade não deve valer como forma de solucionar conflitos de direitos fundamentais, na medida em que “estando toda a ordem constitucional e consequente actividade do Estado estruturalmente orientadas à promoção da dignidade, liberdade e autonomia individuais, o prejuízo de quaisquer bens constitucionalmente protegidos redunda sempre, mais ou menos remota ou indirectamente, em prejuízo da liberdade”. Este Autor entende ainda que Alexy reduz “a tradução prática” deste princípio in dubio pro libertate “a uma distribuição do ónus de argumentação, o que implica o desaparecimento das “objecções de fundo” a esta máxima, mas, por outro lado, tem como consequência que esta nada adiante “relativamente ao princípio da repartição de Schmitt”, segundo o qual “sendo, em Estado de Direito, a liberdade, em princípio, ilimitada e a intervenção estatal restritiva da liberdade, em princípio limitada”, “toda a actuação do Estado restritiva da liberdade carece de ser justificada”. Defende, no entanto, que o princípio in dubio pro libertate pode desempenhar uma função importante “no plano da fixação dos factos que (…) justificam a restrição da liberdade. Nesse plano, dado o ónus de argumentação que, por força do princípio da repartição, recai sobre o poder público, deve entender-se não cumprir os requisitos de justificação a restrição actuada com base em factos erróneos ou não indubitavelmente apurados, sendo essa exigência tanto maior quanto maior for o sacrifício da liberdade imposto pela restrição”. Ver também JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 53 ss. RUI MEDEIROS, “O Estado de Direitos Fundamentais Português: alcance, limites e desafios”, cit., p. 33, defende também que do mesmo modo que é questionável que a relação entre a liberdade e as suas limitações possa ser configurada como uma “relação regra – excepção”, também não é de aceitar que as ponderações se façam “numa única direcção”. Contra este princípio, ainda CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 164; MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 63; JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 64; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 176 e 177. 767 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 720 e 721. 768 RUI MEDEIROS, “O Estado de Direitos Fundamentais Português: alcance, limites e desafios”, cit., p. 40. 769 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1274. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 81, entende que quando estamos perante uma colisão de diferentes princípios a solução consiste em, “tendo em consideração as circunstâncias do caso, se estabelecer entre os princípios uma relação de precedência 204 Destas “decisões de ponderação dos casos concretos” podemos, apesar disso, “extrair regras de preferência susceptíveis de aplicação subsuntiva em casos futuros”771. Por outro lado, os “critérios de distinção” entre regras e princípios apontados por Alexy denotam, contudo, algumas dificuldades que impedem que os possamos aceitar sem reservas772. É que “a diferença entre essas normas (...) não reside (…) no facto de as primeiras serem comandos de optimização, de realização gradual, e as segundas serem regras, mas antes no facto de a aplicação dos princípios envolver, em geral, a necessidade de juízos complexos de ponderação e a realização das segundas apenas requerer, em princípio, juízos subsuntivos simples”. Assim, tanto os princípios como as regras apenas podem ser cumpridos ou violados, ainda que seja uma tarefa muito mais árdua aferir o incumprimento daqueles do que destas773. Finalmente, na medida em que seguimos uma teoria da vinculação directa prima facie, pensamos que a aplicação dos preceitos relativos a direitos fundamentais nas relações entre particulares não envolve “problemas específicos”, devendo seguir-se “a regra material de harmonização, própria das situações de conflito”774. Tendo em consideração tudo o que vimos, a decisão quanto à admissibilidade e à extensão de uma dada renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares dependerá, então, de saber se devem condicionada. A determinação de uma relação de precedência condicionada traduz-se em, tendo em conta as circunstâncias do caso, se indicarem as condições segundo as quais um princípio precede o outro. Sob outras condições, a questão da precedência pode ser resolvida de outra forma”. 770 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 117. 771 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 342. 772 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 344. 773 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 347. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 75 – 77, entende que os princípios “ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fácticas existentes”. As regras, por seu lado, são normas “que só podem ser ou não cumpridas”. Também ROBERT ALEXY, El Concepto y la Validez del Derecho, Gedisa, Barcelona, 1994, p. 162. Nesse sentido, ver ainda JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1161. 774 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais nas relações entre particulares”, cit., pp. 262 e 263. 205 sobrelevar “as razões e os interesses constitucionalmente relevantes” que apontam no sentido da admissibilidade da renúncia ou se, pelo contrário, as razões e interesses que nos conduzem no sentido inverso”775. Uma vez que entendemos ser de admitir uma “ordem constitucional de valores branda”, na determinação do alcance prático do poder de dispor sobre posições jurídicas de direitos fundamentais, que se funda no conteúdo de autonomia ínsito nesses mesmos direitos, o “ónus da argumentação” deve recair sobre quem pretenda impugnar a possibilidade de renúncia. Sendo que o poder de disposição goza da natureza principiológica “típica dos direitos fundamentais”, e “exige uma realização tão optimizada quanto possível (…), num quadro de ponderação de bens, só deve ceder (…) quando houver disposições constitucionais ou princípios mais fortes que exijam uma solução diversa”776. É, por isso, essencial fazer uma ponderação entre a decisão individual, que, como já tivemos oportunidade de desenvolver, goza de protecção jusfundamental e o bem ou bens jurídicos também garantidos pela Constituição que se poderão opor à renúncia, de maneira a estabelecer “uma ordem hierárquica concreta”. Tendo em conta a multiplicidade de bens jurídicos que podem estar em causa “não é possível estabelecer uma hierarquia abstracta”, sendo apenas de apontar “linhas argumentativas”777. Consequentemente, é importante o desenvolvimento de alguns “pontos de apoio que possibilitem fundar racionalmente e de forma intersubjectivamente comprovável os resultados da ponderação”. Trata-se essencialmente de fixar alguns “critérios de orientação” que nos permitam racionalizar essa mesma ponderação778, ou 775 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 320. 776 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. 777 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 923. JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., p. 864, defende também que a melhor abordagem a utilizar para aferir a validade de uma determinada renúncia a direitos é aquilo que designa de “abordagem orientada a valores (value oriented approach)”, na medida em que esta oferece um método “flexível que permite resultados distintos consoante o direito em causa e as circunstâncias do caso”. 778 Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 320 ss. Segundo o Autor, essa ponderação deverá ter lugar “nos vários níveis em que se exija a sua realização, ou seja, no plano da previsão normativa infra-constitucional da possibilidade ou impossibilidade da renúncia, no plano do exercício concreto, pelo particular, do seu poder de disposição sobre as próprias posições de direitos fundamentais, no plano da restrição concreta de uma posição jurídica tutelada por uma norma de direito fundamental efectuada com base no consentimento do particular e, por fim, no plano da verificação judicial da regularidade 206 seja, procuraremos aferir quais os tópicos de argumentação que se podem extrair das normas constitucionais e aos quais se deve recorrer na tomada de decisão quanto à validade ou invalidade de uma renúncia concreta779. 2.Tópicos de argumentação Tem-se entendido, como também já tivemos oportunidade de mencionar, que a validade da renúncia perante o Estado depende, no essencial, “da sua conformidade material aos princípios e regras constitucionais”, sobretudo os que dizem respeito à restrição de direitos780, ainda que estes não devam ser “indiferenciadamente transpostos para o titular de direitos fundamentais”, graças à “dupla natureza” da renúncia enquanto exercício e restrição781. Na aferição dessa “conformidade material” na relação Estado/cidadão, Jorge Reis Novais indica quatro pontos de referência decisivos: “a disponibilidade de posições de direitos fundamentais”, “a dignidade da pessoa humana”, “o conteúdo essencial dos direitos fundamentais” e “o princípio da proporcionalidade”782. Gomes Canotilho, por seu lado, sustenta que “a admissibilidade de uma auto-restrição mais ampla que a restrição legal está sujeita ao mesmo limite absoluto da reserva de lei restritiva - manutenção do núcleo essencial do direito afectado”783. Na doutrina alemã, Klaus Stern e Michael Sachs defendem que ainda que não deva haver uma transposição automática dos “limites aos limites”, alguns deles serão de aplicar na problemática da renúncia, pelo que analisam em que termos a reserva de lei, o princípio da proporcionalidade, a dignidade da pessoa humana e o conteúdo essencial dos direitos fundamentais relevam constitucional dos procedimentos anteriores”. 779 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 161. 780 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 320. 781 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 161. 782 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 320 ss. 783 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465. 207 nesta sede. Para além disso, entendem ainda que se deve ter em conta “a natureza dos direitos em causa”784. Gerhard Robbers, por sua vez, considera que “a sistemática tradicional das restrições a direitos fundamentais foi concebida para o uso positivo dos direitos fundamentais e é aplicável apenas de uma forma limitada na renúncia”. Para o Autor, a validade da renúncia prende-se precisamente com a questão de saber em que medida é que o acto de disposição do titular do direito pode afastar a aplicabilidade dessa “sistemática”. Por conseguinte, trata os seguintes limites: as especiais reservas de lei e a reserva geral de lei, o princípio da dignidade da pessoa humana, a inalienabilidade dos direitos do Homem e o conteúdo essencial dos direitos fundamentais785. Também Martina Dorothee Eppelt sustenta que na renúncia perante o Estado se justifica apreciar alguns limites que decorrem de determinadas disposições da Constituição (alemã) e que têm sido invocados pela doutrina: a 2.ª parte do art. 1.º, que se refere à inalienabilidade dos direitos humanos; a 2.ª parte do art. 19.º, que salvaguarda o conteúdo essencial dos direitos fundamentais; a 3.ª parte do art. 1.º, que refere a vinculação das entidades públicas aos direitos fundamentais; o art. 79.º, relativo à revisão da Constituição; a reserva de lei e o princípio da proporcionalidade786. Finalmente, Gerhard Spiess aponta como limites da renúncia: a dignidade da pessoa humana, a inalienabilidade dos direitos do Homem, o conteúdo essencial, o princípio da legalidade e outros princípios 787 constitucionais . Vamos, então, partindo dos limites que consideramos mais relevantes e que têm vindo a ser invocados para apreciar, nos casos concretos, a validade 784 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 917 ss. 785 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 928. 786 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 161 ss. 787 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 91 ss. DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 63 – 72, trata como pressupostos da renúncia e não já como limites: “o poder de disposição”, “a ausência de proibições legais”, “a declaração de renúncia”, “a voluntariedade” e a “conformidade com os bons costumes”. Finalmente, RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 131 ss, dedica um capítulo aos limites da renúncia, tratando as seguintes questões : o “princípio da legalidade”, o “interesse público” e o “princípio da proporcionalidade”. 208 da renúncia perante o Estado, procurar determinar se estes relevam também enquanto limites da renúncia nas relações entre particulares. Parece-nos mais coerente falar aqui uniformemente de “limites” da renúncia, seguindo a designação tradicional de “limites aos limites”, ainda que os pontos de apoio de que vamos tratar a eles não se restrinjam. A aplicação dos limites da renúncia perante o Estado na renúncia entre particulares (obviamente com as devidas adaptações) poderá justificar-se pelo facto de esta última, como vimos, ainda que não se consubstanciando numa restrição em sentido próprio, envolver um enfraquecimento de posições individuais de direitos fundamentais. Tal aplicação não se funda, no entanto, “numa ideia de defesa dos direitos fundamentais da pessoa contra si própria, sendo antes concretização da vinculação do Estado aos direitos fundamentais, que também abrange os direitos fundamentais na sua dimensão objectiva”788. Por outro lado, os limites que vamos analisar devem ser entendidos, nesta sede, como tópicos, ou seja, como “pontos fixos” ou “lugares” que contribuem para estruturar a nossa argumentação789, racionalizando o processo de ponderação que tem inevitavelmente de ter lugar quando se afere a validade de uma dada renúncia, sendo que apenas será possível chegar a uma resposta definitiva atendendo aos diferentes tópicos nas circunstâncias concretas dos casos. Julgamos que são relevantes, para o tema que nos ocupa, os seguintes tópicos de argumentação: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a ordem pública e os bons costumes, a maior ou menor disponibilidade dos direitos a que se renuncia e a exigência de 788 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 46. 789 Considerando que os métodos próprios de interpretação das normas constitucionais são, essencialmente, métodos tópicos, ver MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 114. A Autora entende que, quando usado neste contexto, “o tópico designa um ponto fixo (ou um “lugar”) que contribui para estruturar uma argumentação, funcionando como o dispositivo lógico que nos auxilia, quer a encontrar as premissas dos raciocínios com que argumentamos quer a fundamentar as conclusões que encerram a própria argumentação. Assim, os tópicos “não substituem os cânones tradicionais da hermenêutica jurídica”, apenas os completando “nos casos especialmente difíceis”. KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 923 referem a existência de “linhas argumentativas” que poderão ajudar no processo de ponderação sobre a validade de uma renúncia concreta. 209 acto legislativo prévio. 2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite Vamos tratar o princípio da dignidade da pessoa humana em primeiro lugar, uma vez que este é normalmente o argumento central invocado para fundamentar a invalidade do poder de disposição sobre posições subjectivas de direitos fundamentais. Quanto à questão de saber até que ponto podem as liberdades ou bens pessoais ser limitados por contrato, com o acordo ou consentimento do particular, tem-se entendido que nas relações entre indivíduos iguais os casos de renúncia “são aqueles em que mais longe se pode ir na garantia da liberdade negocial, aceitando-se (…) que ela exclua a aplicação do preceito constitucional”. No entanto, estabelece-se aqui como limite a ideia de dignidade da pessoa humana790. Tal significa que o princípio da dignidade, graças à sua natureza, deve vincular quer o Estado quer os particulares, pois enquanto princípio estruturante da nossa ordem jurídica “é de aplicação geral, directa e imediata em quaisquer circunstâncias, em quaisquer domínios e ramos de Direito”791. Em conformidade com isso, vamos ver qual o papel a atribuir a este princípio na aferição da validade de uma dada renúncia a direitos fundamentais. 790 Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258. 791 JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”, cit., p. 260. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 387, consideram que “[p]arece óbvio que o princípio da dignidade da pessoa humana obriga directamente as entidades privadas a não fazerem uso da autonomia privada e negocial para (…) reduzirem a pessoa a nada ou a objecto (…) ou eliminarem mesmo a existência física dessa pessoa”. Não estamos, no entanto, de acordo com os Autores no que se refere a todos os exemplos dados: quanto à anulação de um negócio jurídico possibilitador da escravidão ou de canibalismo, parece-nos, de facto, que se trata de situações não admissíveis de renúncia a direitos fundamentais. Já no que diz respeito ao caso do lançamento de anões, que desenvolveremos quando fizermos a análise de algumas situações concretas, não nos parece que a resposta deva ser a mesma. Entendendo também que o consentimento de uma pessoa para ser reduzida à escravidão é irrelevante, ver JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 480; AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 282. 210 O princípio da dignidade é considerado nesta sede enquanto argumento a ter em conta na ponderação a realizar e não enquanto limite absoluto. Tal deve-se ao facto de a renúncia assentar no consentimento do lesado, “o que implica, em certa medida, a sua invocação não como valor de conteúdo prédeterminado, mas antes determinável no confronto com outros valores relevantes no caso concreto”. Com efeito, determinadas condutas que seriam, à partida, consideradas como violadoras da dignidade, poderão deixar de o ser em virtude desse consentimento792. Assim, na renúncia a direitos fundamentais cuida-se de determinar se a definição da dignidade depende essencialmente do entendimento que o próprio tenha acerca do que é para si mais ou menos digno e se, por outro lado, o Estado pode impor limites a essa autodefinição. Por conseguinte, não está tanto em causa apurar se o indivíduo pode renunciar à dignidade, mas antes até que ponto lhe cabe decidir o que é ou não atentatório da sua dignidade793. Em virtude disso, os principais problemas quanto à determinação deste princípio levantam-se “quando a dignidade e o direito à autodeterminação se confrontam, como é o caso clássico da renúncia a direitos fundamentais”794. O Tribunal Constitucional português, seguindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, tem por vezes recorrido à fórmula do objecto para densificar o conceito de dignidade795. Esta fórmula, como vimos, 792 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 326 e 327. Fazendo considerações semelhantes no que se refere ao papel do princípio da dignidade humana em relação à admissibilidade ou não admissibilidade da eutanásia, ver PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 273. 793 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 329. 794 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 92. 795 BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., pp. 171 ss. O TC invocou a fórmula do objecto por exemplo nos Acórdãos n.º 130/88, n.º 426/91, n.º 89/00 e n.º 144/04. Considerando que a forma do objecto é referida na jurisprudência do TC, particularmente nas decisões sobre matéria de direito penal, ver INÊS LOBINHO MATOS, “A dignidade da pessoa humana na jurisprudência do TC, mormente em matéria de Direito Penal e de Direito Processual Penal”, in JORGE MIRANDA – MARCO ANTÓNIO MARQUES DA SILVA (coords.), Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Quartier Latin, S. Paulo, 2008, pp. 90 e 91. Para a Autora, será ainda o caso do já citado Acórdão n.º 16/84, e dos Acórdãos n.º 40/84, n.º 748/93, n.º 83/95, n.º 607/03, n.º 144/04, n.º 396/07 e n.º 591/07. Considerando que o TC “não se mostra particularmente vinculado à fórmula do objecto”, embora esta “não esteja de todo ausente”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 564. MARIA LÚCIA AMARAL, “O princípio da dignidade da 211 tem a sua origem na doutrina alemã, com Dürig796, e inspira-se na filosofia moral de Kant797. Dürig considera que há um núcleo material mínimo de dignidade que não depende da concepção que o próprio tenha sobre a sua dignidade. Tal núcleo abrange as situações em que a pessoa é reduzida à condição de objecto ou de um simples meio e quando é atingido a renúncia deverá ser considerada irrelevante798. Temos, no entanto, algumas dúvidas que a adopção desta fórmula seja pessoa humana na jurisprudência constitucional”, cit., p. 5, entende que embora o Tribunal “pareça ter aderido, em certos casos contados”, à fórmula do objecto, “a verdade é que na maioria das decisões tem evitado fixar um sentido para a expressão constitucional”. Finalmente, também ANDREIA SOFIA ESTEVES GOMES, “A dignidade da pessoa humana e o seu valor partindo da experiência constitucional portuguesa”, cit., p. 32, entende que o TC tem aderido, em algumas decisões, à fórmula do objecto. 796 PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., pp. 43 e 44, considera que esta fórmula já havia sido utilizada em diferentes publicações anteriores ao escrito de Dürig, que data de 1956. A novidade que traz este último Autor é o facto de deixar de a utilizar “no contexto de um conceito de dignidade enquanto autonomia” e passar a utilizá-la num “contexto de dignidade enquanto heteronomia”. 797 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 58 – 60, critica o facto de “parte da doutrina considerar que segundo a filosofia kantiana aos indivíduos apenas é atribuído um direito à autodeterminação que lhes permita cumprir o dever que decorre do imperativo categórico”. Ele sustenta que esta perspectiva esquece que Kant estabelece uma “distinção entre direito e moral” e que o direito não deve ser utilizado de forma a realizar a dignidade. Através da liberdade “o direito estabelece apenas o pressuposto para a realização do sentido de dever, mas não ordena esse sentido de dever”. Assim, a liberdade é entendida por Kant como “livre arbítrio”. Ver também STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., p. 5; STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., p. 18, nota 103. 798 Ver GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, cit., pp. 125, 152 e 153. Concordando com a fórmula do objecto, ver também PETER HÄBERLE, “Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, cit., p. 836. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258, entende que a renúncia só será válida enquanto “não atingir aquele mínimo de conteúdo do direito para além do qual o indivíduo se reduz à condição de objecto ou de não-pessoa”. Nesse sentido, também MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo”, cit., p. 117. Considerando que a fórmula do objecto “constitui ainda, pelo menos em situações extremas, o limite ao poder que assiste a cada particular de determinação do sentido e do conteúdo da sua dignidade”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 321. Vários outros Autores defendem também a existência de limites materiais para a autodefinição do indivíduo, ainda que não se refiram expressamente à fórmula do objecto. É o caso de GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., pp. 929 e 930; GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 189; RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 98 e 99; REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., pp. 185 e 186; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 204. 212 a solução mais adequada para a interpretação do conceito de dignidade e para o estabelecimento de limites ao poder do particular de determinar por si próprio o sentido e conteúdo da sua dignidade799, pelo menos nos termos em que tem sido utilizada. Por um lado, porque muitas vezes as pessoas são efectivamente objecto de medidas estatais sem que dessa forma seja violada a sua dignidade800. O próprio Tribunal Constitucional Federal alemão, que aderiu inicialmente à fórmula do objecto, em virtude das críticas que lhe foram sendo tecidas reconheceu que esta não constitui uma “fórmula mágica” e que apenas pode “apontar uma direcção para a busca de lesões da dignidade”801. O Tribunal passou a entender que tratar a pessoa como um objecto não envolve automaticamente uma violação da dignidade, sendo necessário que se verifique uma determinada intenção, ou seja, que o comportamento em análise seja “manifestação de desprezo pela pessoa”802. Em consequência disso, 799 BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., pp. 171 – 173; JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, cit., p. 185, considera que apenas com a fórmula do objecto “não se torna o princípio da dignidade operacionável”. 800 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 57. Considerando também que a fórmula do objecto é “demasiado vaga e genérica, já que no Estado contemporâneo sempre haverá que limitar a liberdade individual em benefício de interesses gerais – e precisamente ao serviço da prossecução de condições dignas de existência para todos –“, ver ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 125. 801 DIETER HÖMIG, “Die Menschenwürdegarantie des Grundgesetzes in der Rechtsprechung der Bundesrepublik Deutschland” in EuGRZ, n.º 34, 2007, p. 637. Esta reserva à fórmula do objecto foi feita pelo BVerfG no acórdão sobre escutas telefónicas (Abhör – Entscheidung), BVerfGE 30, pp. 25 ss. Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional Federal estabeleceu que “as fórmulas gerais – como o ser humano não deve ser reduzido à condição de simples objecto – indicam simplesmente onde se poderá encontrar, no caso concreto, a violação da dignidade humana”. Ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 113 e 114; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., p. 130. Considerando que a fórmula do objecto “constitui apenas uma linha orientadora, na medida em que deixa (…) na sombra aquisições tão importantes como as ideias de representação pessoal e de atribuição (responsabilidade) individual, bem como as componentes de deveres de protecção, promoção e prestação, componentes essas que desfrutaram de um claro acolhimento constitucional”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 61. JOHANNES REITER, “Menschenwürde als Massstab”, cit., p. 8, afirma que “Dürig sempre entendeu a sua fórmula apenas como um fio condutor, carecendo de concretização e interpretação”. 802 Ver INGO VON MÜNCH, “Die Würde des Menschen im Deutschen Verfassungsrecht”, in JÖRN IPSEN – EDZARD SCHMIDT-JORTZIG, Recht – Staat – Gemeinwohl, Festschrift für Dietrich Rauschning, Carl Heymanns Verlag KG, 2001, p. 33; DIETER HÖMIG, “Die 213 passou a referir-se a uma fórmula do objecto modificada, considerando que não haverá esse desprezo quando a interferência se justifica através de um fim legítimo. Esta formulação implica, no entanto, que se caia num “ciclo vicioso” porque a questão de saber “se o fim justifica a interferência deve ser respondida precisamente sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana”803. Por outro lado, a dignidade é uma noção que tanto pode ter “uma forte carga emancipatória” como pode ser utilizada “para determinar uma pesada restrição aos direitos de liberdade”804. O conceito de dignidade pode ser usado para expressar um “ideal comunitário” ou pode estar mais direccionado para a promoção da autonomia individual, pelo que a forma como este princípio é aplicado em questões similares varia significativamente, sendo possível encontrá-lo “em ambos os lados da discussão” e “a fundamentar conclusões opostas”805. Menschenwürdegarantie des Grundgesetzes in der Rechtsprechung der Bundesrepublik Deutschland”, cit., p. 633; WALTER SCHMITT GLAESER, “Big Brother is watching you – Menschenwürde bei RTL 2”, in ZRP, n.º 9, 2000, p. 397. 803 Nesse sentido, TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, cit., p. 48. HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 168, considera também que a tentativa do BVerfG de precisar esta fórmula “através da referência à ideia de estar em causa a qualidade de sujeito da pessoa ou do desprezo arbitrário da sua dignidade esquece que também um desprezo não arbitrário da dignidade se pode traduzir em lesão desta. Assim, não pode ser decisiva a questão de saber se há uma intenção de quem lesa, uma vez que poderá haver lesões da dignidade mesmo com boas intenções“; ver também BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 106. RALF POSCHER, “Menschenwürde und Kernbereichschutz. Von den Gefahren einer Verräumlichung des Grundrechtsdenken” in JZ, n.º 6, 2009, pp. 269 ss, considera, pelo contrário, que “o princípio da dignidade não protege uma determinada substância ou um determinado espaço, seja ele físico ou ideal, mas antes uma relação”. Esta garante “o cuidado com que o Estado deve tratar os seus cidadãos em virtude da sua dignidade”. Assim, só haverá uma lesão da dignidade nos casos em que o Estado aja arbitrariamente. 804 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 825 e 826, também nota 66. Este Autor considera “particularmente significativos, deste ponto de vista, os riscos que um recurso pouco controlado ao conceito de dignidade pode apresentar no debate bioético”. Ver também STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ – CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche sur un Processus de Juridicisation, cit., pp. 268 – 270. STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., pp. 17 e 18, alerta para o facto de ser hoje mais consensualmente aceite a ideia de que o direito “tem uma função antropológica de definir e preservar a dimensão humana da humanidade (e, em todo o caso, contra a vontade individual)” e é importante não esquecer que “a dignidade pode ser concorrente feroz da liberdade”. 805 CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit. p. 48 – 50. 214 Em conformidade com isso, o conteúdo do princípio será diferente consoante se adopte uma “noção liberal-individualista” ou uma “noção paternalista” de dignidade806. Segundo a primeira, a dignidade é considerada “um dos atributos da liberdade”, pelo que este princípio é invocável contra violações provenientes de terceiros, mas já não o poderá ser para limitar a esfera de liberdade do próprio indivíduo. Já para a “noção paternalista”, pelo contrário, “a liberdade é concebida como um dos atributos da dignidade”, o que quer dizer que se poderá invocar o princípio da dignidade para justificar limitações a essa mesma liberdade. Qualquer uma destas perspectivas contém “vantagens e riscos”: se se defende que a dignidade deve estar acima da liberdade, tal pode implicar que se imponha uma concepção de dignidade que não corresponde à noção que o indivíduo tem da sua própria dignidade. Se, por outro lado, entendermos que a liberdade deve prevalecer sobre a dignidade, teremos necessariamente uma concepção relativa de dignidade, uma vez que a dignidade de cada um será aquilo que cada um definir807. Consequentemente, as principais dificuldades quanto à determinação do conteúdo do princípio da dignidade resultam da “falta de consenso acerca do que torna a vida humana boa, tanto para os indivíduos como para as sociedades”808 e do facto de nenhum outro preceito constitucional correr tanto o 806 Considerando que existe um conflito entre uma “noção liberal-individualista” e uma “noção paternalista” de dignidade, ver DAVID FELDMAN, “Human Dignity as a Legal Value – Part II”, cit., p. 75. GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 833, estabelece também uma distinção similar entre um “modelo processual/subjectivo” e um “modelo substancial/objectivo” de dignidade. Também considerando que existem duas abordagens colidentes do conceito: a dignidade enquanto “atribuição de poder” e a dignidade enquanto “constrangimento”, ver STÉPHANIE HENNETTEVAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., p. 3. Esta Autora distingue também estas duas abordagens da dignidade designando-as como “dignidade que pode ser oposta pelo homem a terceiros” e a “dignidade que pode ser oposta ao homem por terceiros”. A Autora refere ainda uma terceira abordagem, que é a da dignidade enquanto característica que decorre do exercício de uma função pública. Nesse sentido, STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ – CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche sur un Processus de Juridicisation, cit., pp. 24 – 33. Ver ainda NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 62. 807 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 833 e 834, também nota 80. 808 DAVID FELDMAN, “Human Dignity as a Legal Value – Part II”, in Public Law, Spring, 2000, p. 75. 215 risco de se “diluir em subjectivismos moralizantes”809. Ora a fórmula do objecto810 não traz nenhum contributo decisivo face a estas dificuldades porque tanto pode ser usada “num contexto de autonomia como de heteronomia”811 e a tendência tem sido no sentido de a invocar para justificar restrições da liberdade. Os perigos da utilização da fórmula devem-se ao facto de esta poder assumir diversos significados, tendo-se revelado como “passepartout para valorações subjectivas de todos os tipos”812. A fórmula do objecto é demasiado abstracta e, por isso, reduz-se a uma fórmula vazia, onde poderá caber tudo. Determinar quais as situações em que a pessoa é tratada como um objecto ou um meio pressupõe necessariamente “um juízo de valor moral”813, o que significa deixar nas mãos do julgador a tarefa de determinar em que consiste o núcleo material mínimo de dignidade que se pode sobrepor à concepção que a própria pessoa tem da sua dignidade. Este critério carece, por isso, de maior concretização, uma vez que convoca fortemente “pré-compreensões subjectivas” e fornece apenas “resultados confiáveis” no caso de o diagnóstico em causa ser evidente814. A “fraqueza normativa” da fórmula do objecto tem tido como consequência uma 809 THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., p. 88. 810 Podemos ver também uma crítica à fórmula do objecto em JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JÓNATAS MACHADO, Reality Shows e Liberdade de Programação, cit., p. 48: “alusões vagas à consideração dos indivíduos como ‘fins em si mesmos’, ou aos ‘perigos do voyeurismo e do sensacionalismo’ e ’pesadelos de depravação’, apresentam-se particularmente débeis quando confrontadas com o respeito devido aos indivíduos e à pluralidade de razões que os mesmos podem invocar para a edificação do seu plano de vida”. Também alertando para o facto de “o uso inflacionado desta expressão” conduzir “a uma certa desvalorização argumentativa”, ver JOÃO LOUREIRO, “O direito à identidade genética do ser humano”, cit., pp. 278 e 279. ARTHUR SCHOPENAUER apud NORBERT HÖRSTER, “Zur Bedeutung des Prinzips der Menschenwürde”, in JuS, n.º 2, 1983, p. 93, considera que “a formulação kantiana, ‘devemos tratar o homem nunca como um meio mas sempre e só como um fim’ (…) é uma formulação vaga, indeterminada”, “insuficiente” e, para além do mais, “problemática”. BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 106, consideram o problema da fórmula do objecto “óbvio”: prende-se com o facto de ser “demasiado indefinida”. 811 PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., p. 45. 812 HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 168. 813 NORBERT HÖRSTER, “Zur Bedeutung des Prinzips der Menschenwürde”, cit. p. 95. 814 MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, cit., p. 21. KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 19, consideram que esta fórmula é clara no que se refere “às desumanidades da era nazi e estalinista, assim como no que diz respeito a outros regimes totalitários”. No entanto, abrange apenas “lesões manifestas da dignidade”. Para “lesões mais subtis” a fórmula não é suficiente. 216 “má utilização da norma constitucional”815. Ainda que contenha riscos, consideramos ser de seguir uma “noção liberal-individualista” do conceito de dignidade. Como já tivemos oportunidade de referir noutros escritos, a solução para o conflito entre as duas noções de dignidade deve ancorar-se no direito vigente, nomeadamente no direito ao desenvolvimento da personalidade previsto na nossa Constituição desde 1997816. A consagração deste direito não pode deixar de ser vista como “uma decisão valorativa fundamental” fundadora, em situações de dúvida, de “uma presunção a favor da liberdade” de actuação. Como vimos, procurou-se através dele consagrar “um direito de liberdade do indivíduo em relação a modelos de personalidade”, que integra “um direito à diferença” e que deixa nas mãos de cada individuo a decisão de como pretende viver, desde que não lese terceiros817. O art. 26.º da CRP é “expressão directa do postulado (…) da dignidade humana” e, ao mesmo tempo, “a dignidade encontra aqui uma sede fundamental de definição normativa: quem invoca a dignidade não poderá deixar de ter em conta (…) os direitos aqui consagrados, pois estes dão-lhe expressão mais definida”818. 815 MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 84. 816 BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., p. 168. Considerando também que “a partir do texto constitucional e da doutrina se pode dizer que a dignidade da pessoa humana (…) aponta para o livre desenvolvimento da personalidade”, ver ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., p. 128. Também JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A dignidade da pessoa humana e o fundamento dos direitos humanos”, cit., p. 117, sustenta que a dignidade do homem se funda na “capacidade” e no “encargo de auto-construção” em que se traduz o direito ao desenvolvimento da personalidade. Considerando que “o sentido do art. 26.º da CRP, ao consagrar o direito ao desenvolvimento da personalidade”, é o de salvaguardar a “identidade própria do indivíduo”, atendendo à “configuração actual da dignidade da pessoa humana”, ver MARTA REBELO, “A doutrina contemporânea e a pós-modernidade dos Direitos Fundamentais”, in Scientia Iuridica, Tomo LIV, n.º 302, 2005, p. 220. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais”, in JORGE MIRANDA – MARCO ANTÓNIO MARQUES DA SILVA (coords.), Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Quartier Latin, S. Paulo, 2008, p. 174, defende que a dignidade se consubstancia no respeito pela liberdade da pessoa e pela sua autonomia, presentes em particular no direito ao desenvolvimento da personalidade, na inviolabilidade da liberdade de consciência, religião e de culto, entre outros. 817 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 157 - 161. 818 RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 282. 217 Há, então, uma relação incindível entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao desenvolvimento da personalidade819 que deve ser considerada na interpretação do conceito de dignidade, uma vez que o juiz deve tomar as suas decisões não com base nas suas “opiniões pessoais”, mas sim partindo das “orientações” que retira “das normas constitucionais e/ou legislativas, designadamente das normas de direitos fundamentais, na medida em que estas são a expressão privilegiada (…) do ethos jurídico dominante da comunidade”820. Assim sendo, o princípio da dignidade deve ser interpretado em conformidade com os “princípios e regras de direitos fundamentais” que 819 Também o TC afirmou a ligação estreita entre dignidade e desenvolvimento da personalidade. Ver, exemplificativamente, o Acórdão n.º 436/00, http://www.tribunal constitucional.pt/tc/acordaos/20000436.html, relativo à Lei do Jogo, no qual o TC refere que: “[t]em este direito a ver com o livre desenvolvimento da personalidade dos seus titulares e, nessa medida, com a garantia das suas identidade e integridade, sendo certo que o direito geral de personalidade radica no princípio da dignidade da pessoa humana que o artigo 1º da Constituição proclama”. Também no Acórdão n.º 247/05, http://www.tribunal constitucional.pt/tc/acordaos/20050247.html, relativo à prática de actos homossexuais com adolescentes, o TC diz expressamente que “os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana, traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas.” Finalmente, também no Acórdão n.º 154/09, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos09/101200/15409.htm, relativo à recusa de testemunha a depor, defende que o direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, é uma materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana. 820 REINHOLD ZIPPELIUS apud JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 722. Há também noutras ordens jurídicas decisões judiciais que utilizam o conceito de dignidade associando-o à autonomia individual e ao livre desenvolvimento de personalidade. Independentemente de estarmos de acordo com a decisão, no caso Roe v. Wade, do Supremo Tribunal Federal Americano, http://laws.findlaw.com/us/410/113.html, relativo à interrupção voluntária da gravidez, foi utilizada a linguagem da dignidade para fundamentar o direito à escolha da mulher. Também no caso Planned Parenthood v. Casey, http://laws.findlaw.com/us/505/833.html, se considerou haver uma estreita relação entre privacidade e dignidade. Fala-se aqui em privacidade porque nos EUA a privacy refere-se não só à tutela da “informação sobre a vida privada” mas também da “liberdade da vida privada”. Nesse sentido, FRANÇOIS RIGAUX, “L’élaboration d’un «right of privacy» par la jurisprudence américaine”, in Revue internationale de droit comparé, n.º 4, 1980, pp. 704 e 729; PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 512 – 515. Outro caso relevante nestas matérias é o caso Eisenstadt v. Baird, http://laws.findlaw.com/us/405/438.html, relativo ao uso de contraceptivos por pessoas não casadas. Também no caso Lawrence v. Texas, http://laws.findlaw.com/us/000/02-102.html, no qual estava em causa a inconstitucionalidade da legislação do Texas que criminalizava a prática de determinados actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, o Tribunal considerou que o direito à liberdade confere aos requerentes o direito de manterem a sua conduta sem qualquer intervenção governamental. Ainda num caso relativo à mesma questão, National Coalition for Gay and Lesbian Equality v. Minister of Justice, do Tribunal Constitucional da África do Sul, http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/1998/15.html, foi salientado que a proibição da sodomia consubstanciava uma violação da dignidade, assim como da igualdade. 218 conferem ao indivíduo a possibilidade de eleger o seu modo de vida, com autodeterminação e sem a ingerência estadual821. A CRP deve proteger uma multiplicidade de “perspectivas de vida”, pelo que não faria sentido que impusesse “uma concepção determinada ou, menos ainda, fechada, da dignidade da pessoa humana”822. O reconhecimento constitucional da dignidade da pessoa humana significa “o contrário de ‘verdades’ ou ‘fixismos’ políticos, religiosos ou filosóficos”823. Acima de tudo, a dignidade da pessoa humana garante a autonomia de cada indivíduo, como “valor a realizar em concreto”824. O princípio da dignidade “não impõe, nem pode impor sem íntima contradição, um figurino determinado de Homem”, sendo “um princípio que contribui para a abertura do sistema jurídico dos direitos fundamentais”825. Não é função do Estado erigir um “reino da virtude”826, pelo que deriva da dignidade “a legítima expectativa de cada indivíduo a ser respeitado na sua personalidade”827. Consequentemente, a dignidade não deve ser entendida como um valor objectivo, que se pode, inclusivamente, opor à própria vontade do indivíduo, mas antes como “liberdade subjectivamente protegida”828. Compreendendo nós a dignidade como “conceito aberto” que cabe ao 821 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 64 e 65. 822 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., pp. 309 e 310. 823 J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 226. 824 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 359. Considerando que “a liberdade positiva de cada pessoa tem um valor (…) próprio, o que pode lançar luz sobre o obscuro conceito de dignidade da pessoa humana”, ver LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 459. 825 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 49. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Teoria da Constituição, cit., p. 250, sustenta que se a liberdade se consubstancia cada vez mais na ausência de “constrangimentos injustos” à acção humana, a dignidade do homem deve traduzir-se nessa liberdade (não se justificando medidas estaduais paternalistas) e na responsabilidade dela adveniente, o que significa que o “Homem está definitivamente diante de si mesmo e a si mesmo tem que tomar as mãos”. 826 JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 698. 827 JOÃO VAZ RODRIGUES, O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português, cit., p. 377. Considerando ainda que para a CRP, “o elemento valorativo último da dignidade da pessoa humana é a liberdade pessoal, ver MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 341. 828 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 124. 219 próprio indivíduo densificar de forma autónoma, não é de admitir que lhe possam ser impostas “representações da dignidade (…) pretensamente objectivas” nas quais este não se reveja829. Uma vez que adoptamos uma concepção de dignidade baseada na autonomia e na possibilidade de escolha individual, não faz sentido que o particular não possa, pelo menos em alguma medida, determinar por si próprio o sentido e o conteúdo da sua dignidade, sob pena de estarmos perante um paternalismo estatal inadmissível830. De facto, justificar a defesa da pessoa contra si própria invocando o princípio da dignidade corresponderia a aplicar este princípio “contra a sua própria teleologia intrínseca”, pois, como vimos, a dignidade traduz-se precisamente na possibilidade de o indivíduo escolher em liberdade o rumo que pretende seguir na sua vida831. O princípio da dignidade envolve respeito pela autonomia da pessoa832 e não deve ser encarado como intocável, no sentido de não ser passível de uma pluralidade de interpretações833. Ao reconhecer que a nossa comunidade política se baseia na dignidade da pessoa humana, a Constituição distancia-se de “qualquer tipo de interpretação (…) autoritária que pudesse permitir o sacrifício dos direitos ou até da personalidade individual em nome de pretensos interesses colectivos”834. Tal não significa, no entanto, que não haja situações em que a vontade 829 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 61. 830 CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit. p. 56. Considerando também que “a dignidade humana está mais ligada à ideia de autodeterminação do que a aspirações paternalistas do Estado”, ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 86. 831 LUÍS VASCONCELOS ABREU, “Limitação do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada mediante o acordo do seu titular. O caso do Big Brother”, in RMP, n.º 101, 2005, p. 116; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol I, cit., p. 199. 832 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 209; também JORGE MIRANDA, “Artigo 1.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 57. 833 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 47. Considerando também que a dignidade “designa as características intrínsecas da pessoa como ser dotado de inteligência e vontade que se autodetermina”, ver JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, cit., p. 397. 834 Nesse sentido, referindo-se à distinção entre as expressões dignidade da pessoa humana e dignidade humana, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 201, nota 2. Contra esta distinção, ver PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., pp. 545 – 547. 220 individual tenha de ceder sem que tal origine necessariamente uma lesão da dignidade835. Ainda que tal entendimento represente alguma “relativização” do conceito, não se deve considerar a dignidade “ilegitimamente afectada só pelo facto de os direitos fundamentais em que se desenvolve e concretiza poderem ou deverem ser restringidos com vista à garantia de outros valores dignos de protecção”836. O princípio da dignidade não é forçosamente violado através de qualquer medida ou regulamentação estatal que restrinja a liberdade individual837, uma vez que, como já tivemos oportunidade de ver, a “imagem de homem” que subjaz à nossa Constituição não é a do indivíduo isolado, mas antes a do sujeito socialmente integrado e que, por isso, está “socialmente vinculado ao cumprimento de deveres e obrigações que a decisão popular soberana lhe impõe”838. O que se retira, então, do princípio da dignidade da pessoa humana é a garantia de que os cidadãos não verão a sua liberdade restringida, “a não ser quando tal seja estrita e impreterivelmente exigido pela prossecução, por parte dos poderes públicos, de outros valores igualmente dignos de protecção jurídica”839. Apenas se poderá limitar a autonomia individual quando haja fins de interesse colectivo que o justifiquem840. Seguindo esta perspectiva, a protecção da dignidade deverá ser tanto mais intensa quanto mais relevante 835 JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, cit., p. 211, entende que “a ideia de dignidade não tem um âmbito de protecção delimitado, como acontece com os direitos fundamentais (por exemplo a liberdade de opinião, a liberdade de reunião ou a propriedade)”. INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., p. 135, entende que “partindo-se de um conceito mais restrito de dignidade”, segundo o qual “apenas uma grave violação da condição da pessoa” se traduz em violação da dignidade, todas as outras condutas restritivas deixariam de ser reconhecidas “como verdadeiras restrições à dignidade” passando a ser encaradas como “ofensas a outros direitos fundamentais específicos”. 836 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 55. 837 HANS HOFMANN, “Artikel 1” in BRUNO SCHMIDT-BLEIBTREU – HANS HOFMANN – AXEL HOPFAUF, Kommentar zum Grundgesetz, 11ª Edição, Carl Heymanns Verlag, 2008, p. 110. 838 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 53. 839 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 57. 840 CARLA AMADO GOMES, Defesa da saúde pública vs. Liberdade individual, cit., p. 21; também ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit., p. 89. 221 para a personalidade seja o comportamento em causa841. Assim, o modo como o indivíduo perceba a dignidade bem como as consequências que daí advêm para a forma como decide conduzir a sua vida é algo que deve ser deixado à sua própria responsabilidade, o que não significa que não haja limites à autodeterminação. Como já tivemos oportunidade de desenvolver, é legítima a protecção de terceiros ou da comunidade, mas já não o serão, em princípio, as restrições da liberdade que visem proteger a pessoa de si própria ou que pretendam fazer face a uma “concepção duvidosa de dignidade”, uma vez que não é função do Estado “corrigir os cidadãos”842. Entendemos então que a dignidade é atribuída ao Homem porque este deve ser concebido como um “ser autónomo, capaz de autodeterminação”843. Desse modo, a dignidade “é apenas algo indisponível para o Estado e não já para o indivíduo, pelo que dever de protecção que incumbe aos poderes públicos vincula-os a “respeitar e proteger a dignidade”, mas já não os obriga “a forçar comportamentos conformes à dignidade”. Uma tal obrigação transformaria o sentido deste princípio no seu oposto844. Por tudo o que vimos, o princípio da dignidade “não é, e não deve ser, a 841 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 197. 842 ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 144. 843 MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 93. Este Autor entende que aquilo que Dürig pretendia no seu comentário à Constituição era a “formulação de um princípio fundamental ético-estadual”. Ao dizer que o princípio da dignidade proíbe que se transforme a pessoa em objecto, Dürig “formula uma regra ético-estadual” que deve apenas vincular os titulares de poder público. A confusão que se gerou a partir daí deve-se ao facto de se ter transposto esta interpretação do princípio da dignidade para as relações entre privados, ou seja, ter-se considerado que também decorre do princípio da dignidade o dever do Estado de evitar que os indivíduos, nas suas relações privadas, se transformem em objectos. Por outro lado, este Autor defende que o conteúdo jurídico-constitucional do princípio da dignidade “não se esgota na fundamentação de obrigações ético-estaduais fundamentais”. A par com “uma dimensão ético-estadual”, existe também “uma dimensão liberal e jusfundamental, cujo objectivo é a defesa de lesões concretas da dignidade humana”. Na sua “dimensão liberal” o princípio da dignidade garante a liberdade individual, bem como a capacidade do sujeito para realizar a sua personalidade. Nesta dimensão já não será, no entanto, de aplicar a fórmula do objecto. Nesse sentido, MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., pp. 100 – 106. 844 DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 64. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 199, considera que o “denominador comum” a todas as pessoas é o facto de serem “dotadas de razão e consciência” (seguindo o art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Parece-nos que, pelo facto de todas as pessoas serem dotadas dessa “razão e consciência”, deverão prevalecer as suas próprias escolhas, pelas quais se responsabilizarão. 222 fórmula por que se dificulta a institucionalização da liberdade; não é, nem deve ser, a fórmula por que se facilita a institucionalização das restrições à liberdade”, pelo que “o ónus da argumentação recai sempre, ou deve recair sempre, sobre quem propõe a restrição da liberdade”845. Entende-se que “a liberdade [se] justifica (…) a si própria”, ao contrário das restrições à liberdade, que apenas podem ter lugar quando haja interesses públicos ou de terceiros que o justifiquem846. Desta feita, a fórmula do objecto não deve servir para limitar o poder de disposição sobre posições de direitos fundamentais, pois não é compatível com a perspectiva que vê o Homem como um fim em si mesmo sustentar que o Estado pode impor contra a própria vontade do indivíduo “um conteúdo objectivo da dignidade”847. Se se entender que “o sentido essencial da definição da dignidade da pessoa se centra na impossibilidade de a pessoa ser tratada como mero objecto, então tal terá, como consequência lógica, que na sua plena assunção como sujeito é ao indivíduo que cabe, primacialmente, a configuração e a densificação do conteúdo preciso da dignidade”848. A 845 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “O princípio da dignidade da pessoa humana e a regulação jurídica da bioética”, intervenção apresentada na Acção de Educação Contínua de Curta Duração: Direito e Bioética, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, a 6 de Março de 2007, pp. 5 e 6. WILLIAM A. GALSTON, Liberal Pluralism. The Implications of Value Pluralism for Political Theory and Practice, cit., p. 19, considera também que numa sociedade livre deve garantir-se aos indivíduos a liberdade de viverem modos de vida distintos, pelo que deve valer o que os juristas designam de “presunção ilidível a favor da liberdade: o ónus da prova recai naqueles que visam restringir a liberdade e não naqueles que a defendem”. 846 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 65. 847 KAI FISCHER, Die Zulässigkeit aufgedrängten staatlichen Schutzes vor Selbstschädigung, cit., pp. 193 e 194; MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, cit., pp. 21 e 22. Considerando que a fórmula deve ser aceite “como o indicador de uma mera sugestão para estabelecer uma linha de raciocínio prático mas nada mais”, uma vez que “não resolve, por si mesma, questões conceptuais importantes, como quem é ou não um ser humano e quando estamos perante um tratamento coisificador do ser humano”, ver PEDRO SERNA, “La dignidad humana en la Constitución Europea”, cit., p. 58. No entanto, este Autor entende que é preferível a utilização da fórmula, uma vez que, caso contrário, vincular-se-ia a “dignidade a algum direito em concreto ou a vários deles, privando-a de consequências jurídicas próprias independentes”, ou então implicaria “o emprego meramente retórico e, em consequência, impossível de controlar racionalmente”, deste princípio. Também PAUL TIEDEMANN, “Vom inflationären Gebrauch der Menschenwürde in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, cit., p. 612, considera que esta fórmula é demasiado vaga, ainda que aponte para o sentido correcto. 848 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 58. MICHAEL KÖHNE, “Abstrakte Menschenwürde”, in GewArch, n.º 7, 2004, p. 287, defende a imposição de um determinado conteúdo da dignidade por terceiros significa obrigar o indivíduo a respeitar uma determinada concepção da dignidade que este não partilha, o que implica 223 formulação kantiana deve, então, ser interpretada em conformidade com o princípio da autonomia pessoal849. Se o princípio da dignidade for entendido neste sentido, só em casos extremos poderá justificar restrições da liberdade e, por conseguinte, servir como limite da renúncia. Para tal é necessário apreciar em que medida o exercício dessa liberdade contende com a autodeterminação e livre desenvolvimento futuros da pessoa. Só se verificará uma violação da dignidade quando o indivíduo “anua na destruição ou anulação das condições da sua autodeterminação futura, ou aceite colocar-se numa situação que iniba a possibilidade de continuar a conformar a sua vida de acordo com planos pessoais livremente concebidos”850. Esta perspectiva tem a vantagem de não implicar uma relativização total do conceito de dignidade. A determinação dessa medida só poderá, no entanto, fazer-se pesando todas as “circunstâncias relevantes do caso concreto”851. De facto, só conseguimos chegar à conclusão de que houve uma lesão da dignidade através de um juízo de ponderação852. Ainda que “se tenha a dignidade como “convertê-lo em mero objecto da valoração acerca do que é ou não digno”. 849 CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 150. Este Autor considera que “só quando eu tenho em consideração no modo como trato os outros os fins que estes escolhem para si próprios é que não lhes estou a impor sacrifícios ilegítimos”. 850 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 327 e 330. Considerando também que só em situações limite é que a dignidade pode servir para restringir a liberdade, ver ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, cit., p. 104. 851 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 327 e 328. Este Autor dá o exemplo de alguém que se voluntariza para experiências de teste de um medicamento que pode provocar lesões irreversíveis. Para o Autor, sem olhar para as circunstâncias do caso concreto não se pode dizer que há necessariamente violação do princípio da dignidade. Tal será o caso quando se trate, por exemplo, de um recluso, que o faz a troco de uma melhoria das condições de reclusão. A solução já não parece, no entanto, ser a mesma quando se trate de um doente infectado com o vírus HIV, que vê nesta experiência a última hipótese de salvar a própria vida. 852 MATTHIAS HERDEGEN, “Die Menschenwürde im Fluss des bioethischen Diskurses”, in JZ, n.º 15/16, 2001, p. 773 e ainda MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, cit., pp. 24 - 27, entende que este princípio está aberto a uma ponderação de valores, na medida em que se deve considerar, a par da existência de um “núcleo de dignidade”, um outro “âmbito de protecção periférico”, susceptível de ponderação. Böckenförde sustenta que esta perspectiva significa uma revisão completa do comentário de Dürig, segundo o qual a determinação do art. 1.º não é dada através de uma ponderação, sendo antes o fundamento da ordem jurídica estadual. Ver ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE, “Bleibt die Menschenwürde Unantastbar?” http://www.wissensgesellschaft.org/themen/biopolitik/ menschenwuerde.pdf (última visita a 12.04.2010). Sobre esta questão, ver também MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 75. JORGE MIRANDA, “ A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de 224 bem jurídico absoluto, o que é absoluto (…) encontra-se de certa forma em aberto e (…) irá depender da vontade do intérprete e de uma construção de sentido cultural e socialmente vinculada”853. O princípio da dignidade, “enquanto princípio complexo”, tem, como já tivemos oportunidade de desenvolver, uma relação incindível com as “ideias de igualdade e liberdade”, que, por sua vez, “apenas podem ser operacionalizadas através de ponderação e não através da subsunção”. Em conformidade com isso, a questão de saber se a dignidade foi ou não lesada apenas pode ser respondida atendendo às circunstâncias concretas do caso854. direitos fundamentais”, cit., p. 170 e JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 200, considera que a dignidade é um “valor absoluto”. Poderá haver ponderação dignidade/dignidade, mas não com qualquer outro princípio ou interesse. Nesse sentido, também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 94. Considerando a dignidade da pessoa humana como um “valor insusceptível de ponderações”, ver PEDRO VAZ PATTO, No Cruzamento do Direito e da Ética, cit., p. 199; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 49; JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, cit., p. 212; DIETER HÖMIG, “Die Menschenwürdegarantie des Grundgesetzes in der Rechtsprechung der Bundesrepublik Deutschland”, cit., p. 640; RALF POSCHER, “Die Würde des Menschen ist unantastbar”, cit., p. 762; WOLFRAM HÖFLING, “Wer definiert des Menschen Leben und Würde?”, in OTTO DEPENHEUER – MARKUS HEINTZEN – MATTHIAS JESTAEDT – PETER AXER, Staat im Wort. Festschrift für Josef Isensee, C. F, Müller Verlag, Heidelberg, 2007; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004, p. 135. Em sentido contrário, CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit. p. 50, refere que noutros ordenamentos jurídicos se tem entendido que o princípio da dignidade é susceptível de ponderação. Será o caso da África do Sul, da Hungria, de Israel e da França. Também ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Princípio da consubstancialidade parcial dos direitos fundamentais na dignidade do Homem”, cit., pp. 319 – 322. INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., p. 132, entende que a dignidade da pessoa humana, “como norma jurídica fundamental, possui um núcleo essencial” e que “apenas este (…) é intangível”. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 95 – 97, defende que o princípio da dignidade da pessoa humana não é um princípio absoluto: o que lhe dá esta aparência é o facto de “a norma da dignidade ser tratada em parte como regra e em parte como princípio e também o facto de existir, para o princípio da dignidade da pessoa humana, um amplo grupo de condições de precedência, nas quais existe um alto grau de segurança quanto ao facto de, sob essas condições, o princípio da dignidade preceder em relação aos princípios opostos”. KARL–E. HAIN, ”Konkretisierung der Menschenwürde durch Abwägung?”, in Der Staat, Vol. 45, 2006, p. 202 e também KARL–EBERHARD HAIN, ”Menschenwürde als Rechtsprinzip”, in HANS JÖRG SANDKÜHLER (org.), Menschenwürde. Philosophische, theologische und juristische Analysen, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2007, p. 96, sustenta que “no centro desta concepção está a concretização do conteúdo da dignidade através de ponderação”. Ainda WINFRIED BRUGGER, Menschenwürde, Menschenrechte, Grundrechte, Nomos, Baden-Baden, 1996, pp. 22 ss, entende que o princípio da dignidade deve ser passível de ponderação. 853 INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., pp. 134 e 135. 854 KARL–E. HAIN, ”Konkretisierung der Menschenwürde durch Abwägung?”, cit., pp. 191, 192, 200 e 205. Este Autor considera ainda que “é questionável que o núcleo da dignidade deva ser determinado de uma forma puramente objectiva, ou seja, sem se ter em consideração a 225 No caso da renúncia, o facto de haver a anuência da pessoa em causa deve ser obviamente tido em conta na ponderação a fazer. Assentando a dignidade na autonomia individual, quando o titular do direito consente na afectação negativa do seu direito através da renúncia não há, de facto, qualquer lesão da sua dignidade, uma vez que “a acção em causa se traduz em exercício de autonomia”. Para além disso, é duvidoso que se possa afigurar uma lesão da dignidade de uma pessoa “quando esta não se apercebeu disso”855. Um “paradigma de ponderação” não traz grandes vantagens no que se refere “à certeza do resultado”, mas implica, não obstante, uma maior “racionalidade” na aferição da violação do princípio856. A “noção de dignidade surge necessariamente contextualizada e relativizada, não no sentido que se lhe atribua menos valor, mas no sentido de que ao seu valor (…) podem corresponder diferentes configurações”857. Nas situações em que o próprio consente deverá, então, prevalecer a sua vontade, ressalvado o limite que já referimos. É em primeira linha o indivíduo que deve determinar o que é ou não violador da sua dignidade, o que leva a uma “necessária relativização do alcance deste princípio como base para a limitação do poder de disposição sobre o conteúdo de posições jusfundamentais”858. finalidade da actuação que põe em causa a dignidade da pessoa humana”. Ver também KARL– EBERHARD HAIN, ”Menschenwürde als Rechtsprinzip, cit., pp. 93 ss. 855 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 118. Também HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 123, estabelece que “na determinação de uma lesão da dignidade deve ser tida em conta a anuência da pessoa em causa. Para este Autor, uma protecção da dignidade contra a actuação livre da própria pessoa apenas se justifica excepcionalmente“. REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., pp. 195 e 209, consideram que “cada pessoa deve ter um direito abrangente de decidir o que é para si mais digno”. JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 60, considera ainda que “são sempre problemáticas, em Estado de Direito, as situações em que o Estado se arroga o poder de defender a dignidade de uma pessoa contra a vontade, as representações ou as convicções livre e conscientemente formadas por essa pessoa”. 856 KARL-EBERHARD HAIN, ”Menschenwürde als Rechtsprinzip”, cit., p. 102. 857 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 501. 858 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 321. Referindo também os “perigos da objectivação do valor da dignidade” no que se refere, em particular, à restrição da liberdade de expressão, ver JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 362. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 49 e 50, considera que, no caso de existir consentimento, o princípio da dignidade não está sequer em causa, “uma vez que tal declaração afasta qualquer lesão no bem jurídico protegido”. JORGE REIS NOVAIS, 226 2.2. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso Um Estado que se funda na dignidade da pessoa humana e atribui um papel central à liberdade e autonomia individuais só poderá interferir nessa liberdade e autonomia dos cidadãos quando tal seja efectivamente indispensável para a salvaguarda de outros valores dignos de tutela jurídica e na estrita medida dessa necessidade. À luz da CRP “é constitucionalmente ilegítima (…) qualquer ingerência estatal na esfera de autonomia dos particulares (…) que vá para além do (…) necessário”859. Assim, o princípio da proporcionalidade860 ou da proibição do excesso861 “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 326, nota 93, entende, pelo contrário, que “o consentimento não exclui, por si só, a possibilidade de violação da dignidade da pessoa humana, mas (…) abre a determinação do conteúdo desta (…) à consideração da vontade e das representações do lesado”. 859 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 163 e 164; ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 60. 860 Sobre este princípio ver, entre outros, ANABELA LEÃO, “Notas sobre o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso”, in Estudos em Comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 1032 e 1033; JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., pp. 458 e 459; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp. 824 ss; JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 729 ss; JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 161 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 289 – 291; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 266 – 272, 457 e 458; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 279 ss, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 207 – 209; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 162; MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 184 ss; VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, in DJAP, Vol. 6, Lisboa, 1994, pp. 592 ss; VITALINO CANAS, “O princípio da proibição do excesso na Constituição: arqueologia e aplicações”, in Perspectivas Constitucionais, Nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 323 ss; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 124 ss; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 178 e 179; WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Notas em torno ao princípio da proporcionalidade” in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas Constitucionais - Nos 20 anos da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 249 ss; VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “O proporcional e o razoável”, in Revista dos Tribunais, n.º 798, 2002, http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/69_SILVA,%20Virgilio%20Afonso%20da%20%20O%20proporcional%20e%20o%20razoavel.pdf (última visita a 12.04.2010); ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 269 ss; ROBERT ALEXY, “Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales”, in REDC, n.º 66, 2002, pp. 26 ss; BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., pp. 81 ss; BERNHARD SCHLINK, “Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit”, in PETER BADURA – HORST DREIER (orgs.), Festschrift 50 Jahre Bundesverfassunsgericht, Vol. 2, Mohr Siebeck, Tübingen, 2001; ALBERT BLECKMANN, “Begündung und Anwendungsbereich des Verhältnismässigkeitsprinzip”, in JuS, n.º 3, 1994, pp. 227 deriva “dos conceitos de liberdade e livre expressão e desenvolvimento da personalidade”, inscritos no valor da “dignidade e autonomia da pessoa” e que são “condicionantes máxim[o]s e absolut[o]s da acção (…) do Estado”862. Quanto à aplicabilidade do princípio da proporcionalidade enquanto limite da renúncia a direitos fundamentais, no que se refere à renúncia no âmbito da relação Estado/cidadão e uma vez que esta se traduz, simultaneamente, em exercício e restrição de direitos, tem-se entendido que este princípio serve, antes do mais, como “limite à limitação do poder de disposição” pela parte do Estado, que terá de se justificar pela “necessidade de garantir outros valores constitucionalmente relevantes que, no caso concreto, devam sobrelevar o interesse subjacente ao reconhecimento do poder da renúncia”863. Por outro lado, também se defende que as restrições levadas a cabo pelo Estado na sequência da renúncia do particular terão de respeitar as exigências da proporcionalidade. São quatro os critérios que se distinguem no seio deste princípio: a idoneidade, a necessidade, a proporcionalidade em sentido restrito864 e a razoabilidade865. Para se verificar se uma medida restritiva de um direito 177 ss; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 761 ss; MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., pp. 158 ss; JUAN CARLOS GAVARA DE CARA, Derechos Fundamentales y Desarrollo Legislativo. La Garantía del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1994, pp. 295 ss. 861 Considerando mais feliz a designação princípio da proibição do excesso do que princípio da proporcionalidade (em sentido amplo), ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 731. Este Autor considera “mais feliz a proposta de tomar o princípio da proibição do excesso como o princípio mais abrangente onde se integram diferentes elementos constitutivos, entre os quais a proporcionalidade”. Também MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 185; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 763; DIETER MEDICUS, “Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit im Privatrecht”, in AcP, n.º 192, 1992, p. 51. Entendendo, por outro lado, que “a expressão mais corrente ‘princípio da proporcionalidade’ é preferível à expressão ‘proibição do excesso’”, ver VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., pp. 595 e 596. Vamos, ao longo deste texto, utilizar indistintamente estas duas expressões. 862 VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., pp. 598 e 599. 863 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 332 e 333. Ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 155. 864 Falando aqui também em racionalidade, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 285; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 828. 865 Sobre o princípio da razoabilidade, ver JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 187 ss. 228 fundamental supera o teste da proibição do excesso importa conferir se foram cumpridas essas quatro condições. Em primeiro lugar, este princípio “impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes”866. Torna-se, portanto, necessário averiguar se essa medida é idónea ou apta para prosseguir o objectivo proposto: princípio da idoneidade, aptidão ou adequação867. Quando se afere a idoneidade de uma medida, aquilo que se avalia é, essencialmente, a “aptidão objectiva ou formal de um meio para realizar um fim” não estando aqui implicada uma “avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida restritiva”868. O sub-princípio da adequação obriga a que se tenha em conta se um dado meio é apto para a realização do fim em vista869, não sendo exigível, nesta primeira fase, a demonstração de que o meio adoptado “permitiu a realização efectiva do fim a que a actuação estadual se propunha”. Basta “um juízo de razoabilidade”, sendo suficiente “provar que, razoavelmente, ou em condições normais da vida”, com “o meio escolhido pelo Estado” será expectável “alcançar o fim de interesse público inscrito na decisão estadual”870. O teste da adequação no que diz respeito a medidas ainda não concluídas depende, então, de “juízos de prognose”871, o que significa que, para que haja violação do princípio da proporcionalidade nesta vertente, a inaptidão tem de ser previsível quando se leva a cabo a medida872. Deve reconhecer-se, consequentemente, uma margem de apreciação ao legislador, só se devendo considerar a existência de uma violação deste princípio se fosse 866 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 269. 867 Considerando que o termo adequação não é tão apropriado, uma vez que “parece sugerir uma aproximação (…) axiológica que, aqui, não é a determinante”, ver JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 167. 868 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 736. 869 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 733 e 734. 870 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 188. 871 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 777. 872 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 169. 229 possível concluir, no momento da adopção da medida, que esta era “totalmente inapta” para prosseguir o fim em vista873. Há, contudo, “um pressuposto lógico da idoneidade”874, que é a legitimidade constitucional do fim visado e do meio empregue875. Se os meios forem expressamente proibidos pela Constituição, deixa de fazer sentido apurar se são aptos, mesmo que visem prosseguir um fim legítimo876. A segunda condição diz respeito à necessidade da medida: trata-se de apreciar se não existe outra menos gravosa capaz de assegurar o objectivo com o mesmo grau de eficácia: princípio da necessidade ou indispensabilidade. De facto, para que se respeite o princípio da proporcionalidade (em sentido amplo) não é suficiente que, em circunstâncias normais da vida, “as vias escolhidas pela acção estadual” sejam “adequadas ou aptas para a obtenção de um determinado fim”877. O princípio da necessidade assenta na ideia “de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível”878, pelo que, o que se pretende agora avaliar é se não haverá outro meio igualmente apto para a prossecução do fim mas que seja menos oneroso para os particulares879. Se se 873 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 739. VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 622, considera que com o teste da idoneidade da medida se procura “evitar o excesso e não garantir resultados óptimos”. 874 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 737. 875 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 730 – 733; JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 737. 876 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 732. 877 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 188. 878 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 270. 879 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 741 – 743 e 752. O Autor faz, no entanto, a ressalva de que a avaliação do grau de aptidão ou idoneidade de cada um dos meios para fins de controlo da indispensabilidade é complexa, não só “porque raramente dois meios revelam, de forma evidente”, o mesmo grau de aptidão, “mas também porque uma variação no grau de realização do fim prosseguido será normalmente acompanhada de variações correspondentes nos efeitos restritivos da liberdade por eles provocados. Assim, aquilo que à partida era um controlo objectivo e de fundamentação intersubjectivamente demonstrável, na prática acaba por remeter (…) para juízos decisivos de valoração e ponderação”. Enquanto nas situações de aplicação deste princípio em que se verifica “uma identidade de graus de eficácia dos meios restritivos em comparação e evidência das diferenças dos efeitos restritivos produzidos” não deve haver “qualquer condescendência na intensidade do controlo da indispensabilidade aplicável”, já nos casos mais complexos “o poder judicial tem de observar uma maior contenção, nomeadamente 230 chegar à conclusão que, “para a realização da mesma finalidade de interesse público, o Estado tem à disposição vários meios, todos eles igualmente adequados” e que, para além disso, estes meios “só diferem entre si pela intensidade dos encargos que impõem aos destinatários da decisão”, para respeitar o princípio da necessidade deve optar pelo meio que seja menos agressivo para os cidadãos880. Em terceiro lugar, no teste da proporcionalidade em sentido restrito deve aferir-se se a medida adoptada é equilibrada no sentido de as desvantagens dela advenientes não serem superiores aos benefícios que se visam alcançar. Está aqui em causa, “valorar, sopesar, comparar sacrifícios (da liberdade individual) e benefícios obtidos ou visados, vantagens e desvantagens da restrição objecto de controlo”. Para isso, é necessário confrontar “o sacrifício imposto à liberdade” e “o valor do bem que se pretende atingir”881. Enquanto nos testes da idoneidade e necessidade se parte do princípio que o fim que o Estado visa prosseguir justifica a intervenção estatal, no controlo da proporcionalidade em sentido restrito avalia-se “a gravidade da restrição em associação à importância e imperatividade das razões que a justificam”882. Interessa nesta sede “pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”883. Na proporcionalidade em sentido restrito colocam-se em confronto custos e benefícios, no sentido de avaliar se é exigível que os cidadãos sofram esses custos, tendo em conta o “bem” que resulta para o interesse público da medida a prosseguir884. Assim, devem aqui comparar-se “os encargos” da medida “para todos aqueles que são especialmente afectados pelo seu conteúdo” com “os quando lida com as ponderações realizadas pelo legislador democraticamente legitimado”. VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 626, diz precisamente que o BVerfG tem considerado que poderá não se verificar uma violação da exigência de necessidade se for aplicada uma medida mais lesiva do que outra, desde que mais eficaz. 880 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 188. 881 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 753 e 755; VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p.628. 882 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 181. 883 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 270. 884 VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 628. 231 benefícios que da mesma decisão decorrem para o interesse público”. Se, nessa comparação, se concluir que os encargos se sobrepõem “de forma desmesurada ou desproporcionada” aos benefícios, estamos perante um “excesso na actuação estadual”885. Finalmente, Jorge Reis Novais faz ainda referência ao princípio da razoabilidade, que considera corresponder “a uma dimensão autónoma da garantia da proibição do excesso”. Para o Autor, trata-se da “avaliação da razoabilidade da imposição, dever ou obrigação restritiva da liberdade na exclusiva perspectiva das suas consequências na esfera pessoal daquele que é desvantajosamente afectado”. Uma norma que seja conforme ao princípio da proporcionalidade em sentido restrito pode, ainda assim, violar o princípio da razoabilidade, “na medida em que a exigência ou o encargo que se impõe a alguém surja, nesse específico contexto, como excessivo, demasiado grave ou injusto”. Enquanto no teste da proporcionalidade (em sentido restrito) da restrição se faz uma avaliação do fim prosseguido, no sentido de considerar (ou não) que a importância da sua prossecução justifica os prejuízos advenientes dessa mesma restrição, na razoabilidade o que se aprecia é fundamentalmente as consequências da medida para a “autonomia da personalidade do afectado” 886. Em conformidade com isso, na renúncia perante o Estado as restrições resultantes do acto de disposição do particular terão de respeitar as exigências da proibição do excesso. No entanto, no que se refere à proporcionalidade em sentido restrito tem-se sustentado que é necessário ter em consideração que o titular do direito anuiu na restrição. Quando se confronta o sacrifício do particular com as vantagens que, com a medida levada a cabo, se pretendem alcançar para o interesse público, não pode deixar de se ter em conta que o próprio tem interesse nessa restrição887. 885 MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 189. 886 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 187 – 189. Também JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 768. Sobre este princípio, ver ainda WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade, cit., pp. 183 ss. 887 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 333 – 335. Este Autor considera que respeita o princípio da proporcionalidade, por exemplo, o compromisso assumido por cadetes de uma Academia Militar ou de uma Escola Naval de não casar ou 232 Também quanto à razoabilidade da medida e uma vez que o que aqui se avalia é a razoabilidade da restrição na “perspectiva das suas consequências na esfera pessoal daquele que é desvantajosamente afectado”888, parece claro que terá de se considerar a vontade do titular ao aceitar a restrição. Apesar disso, as restantes exigências do princípio da proibição do excesso, ou seja, a idoneidade e a necessidade das medidas restritivas devem continuar a ser respeitadas889. Procuraremos agora indagar em que termos o princípio da proporcionalidade poderá ser aplicável na renúncia entre particulares. Na verdade, nos dias de hoje a importância do princípio da proporcionalidade não se cinge aos “domínios de intervenção e actuação pública com reflexos nas esferas dos privados”. Tem-se, de facto, verificado uma difusão do princípio também no âmbito do direito privado, tanto pelas mãos dos tribunais como da doutrina. Os órgãos jurisdicionais têm vindo a utilizar o princípio da proporcionalidade como “instrumento que permite modelar normas jurídicas que têm como objecto a conciliação dos interesses privados em conflito”. A doutrina, por seu lado, “recorre às ideias de proporção, justa medida e necessidade como fundamentos da explicação teórica de institutos constituir família durante os anos de formação militar. No entanto, considera também que tal não significa que, “por alteração das circunstâncias”, uma renúncia que era proporcional se possa vir a revelar “desproporcionada e, como tal, não eficaz”. Foi esse o caso, “julgado pelos tribunais alemães, do polícia que, admitido num serviço de operações especiais, se comprometera a não casar (…), mas que, entretanto, porque a namorada engravidou, pretendeu fazê-lo”. Nesta situação, “os elementos a ter em conta na ponderação para avaliar a proporcionalidade, em sentido restrito (…) alteraram-se, pelo que a restrição passou a ser excessiva”. Ver BVerwGE 14, p. 21 ss. Sobre esta decisão, ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 73. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 62, defende também que na resposta à questão de saber de que forma devem ser pesados os prejuízos decorrentes de uma actuação estatal deve ser tida em consideração a percepção do próprio particular. 888 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 187. 889 Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 334; também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 921. Em sentido contrário, GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 154 e 155, defende que ao princípio da proporcionalidade não deve ser atribuída qualquer função enquanto limite da renúncia. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 194, entende ainda que o consentimento do titular também é relevante na determinação de qual a medida menos onerosa (no teste da necessidade). Quando o titular consente numa dada medida deverá ser de considerar que o faz porque a considera a menos restritiva. 233 jurídicos de direito privado”890. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 302/01891, considera que “[é] assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio da proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer que foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas. Não se contesta, portanto, que o princípio da proporcionalidade seja princípio geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado”. Por conseguinte, ainda que, à partida, a autonomia privada constitucionalmente protegida892 goze “de uma primazia que torna muitas das relações privadas opacas à refracção do princípio da proporcionalidade”, tais considerações não invalidam a influência do princípio neste âmbito. Vimos já que os particulares se encontram vinculados aos direitos fundamentais, “pelo que o princípio da proporcionalidade, sem o qual aqueles não atingem estabilidade plena”, opera “como limite a opções que, numa primeira impressão, dependeriam exclusivamente do jogo da autonomia privada”. Nesse sentido, cabe ao princípio da proporcionalidade “uma dupla função” no que se refere à determinação da “autonomia da vontade”: por um lado, é através deste princípio que se afere “a validade das limitações que o legislador poderá querer traçar-lhe”; por outro, deve servir “como instrumento (porventura excepcional) 890 ANDRÉ FIGUEIREDO, “O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito privado”, in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2008, p. 31. Defendendo também que o princípio da proporcionalidade é aplicável no direito privado, ver, mais desenvolvidamente, HANS HANAU, Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit als Schranke privater Gestaltungsmacht, cit.. Finalmente, ALBERT BLECKMANN, “Begründung und Anwendungsbereich des Verhältnismässigkeitsprinzip”, cit., p. 179, considera que o princípio da proporcionalidade se deve aplicar a actos privados que se traduzam em sacrifício de direitos de terceiros. 891 892 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010302.html. Sobre a protecção constitucional da autonomia privada ver, mais desenvolvidamente, BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 81 ss. 234 de limitação do exercício da autonomia privada nas relações entre particulares”893. Daqui retiramos que também no que se refere à renúncia a direitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares o princípio da proporcionalidade serve, em primeiro lugar, como “limite à limitação do poder de disposição” pela parte do Estado, que apenas se pode justificar se houver outros valores constitucionalmente relevantes que, no caso concreto, se devam sobrepor ao poder de renunciar, também constitucionalmente protegido894. Quanto às intervenções prosseguidas pelos particulares na decorrência da habilitação concedida pelo acto de disposição do titular do direito no âmbito das relações jurídicas privadas é necessário ter em consideração “as diferentes situações relacionais” em que pode ter lugar a renúncia, sendo “a diferença mais relevante a que atende à existência, ou não, de uma relação de sujeição ou de dependência do titular do direito perante outrem”895. Quando seja evidente que estamos perante “uma situação de desequilíbrio” em que uma das partes é dotada de poderes de facto, deve recorrer-se ao “princípio da proporcionalidade como instrumento de racionalização da prevalência de um sujeito (…) sobre o outro”896. Assim, a importância do princípio da proporcionalidade nas relações jurídicas privadas revela-se particularmente quando se verifique um desequilíbrio entre as partes, porquanto uma delas se encontra numa posição de supremacia em relação à outra897. No caso da renúncia a direitos 893 VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 635, também nota 190. 894 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 332 e 333. 895 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 313 e 314; também JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 738 e 739; ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62. 896 ANDRÉ FIGUEIREDO, “O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito privado”, cit., p. 50. 897 ANDRÉ FIGUEIREDO, “O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito privado”, cit., pp. 31 – 35. Segundo o Autor, no Direito do Trabalho, por exemplo, será “à luz do princípio da proporcionalidade (…) que deverão ser escrutinadas certas formas de controlo do trabalhador que se mostrem contrárias (…) à intimidade da vida privada, à não discriminação ou à liberdade de expressão”. No domínio do direito dos contratos, este princípio “actua naqueles casos em que a simples aplicação da autonomia contratual conduz (…) a resultados manifestamente desproporcionais” e nos quais “se torna necessário que o Direito intervenha de modo a garantir um equilíbrio razoável entre as prestações” – será, por exemplo, o caso da “redução da cláusula penal (…) manifestamente desproporcionada em face do prejuízo 235 fundamentais, se existir efectivamente uma relação de sujeição o julgador deve ter legitimidade para avaliar o respeito pelo princípio da proporcionalidade, nas diferentes vertentes já referidas, “pressupondo-se a vulnerabilidade, inferioridade e fraqueza - tanto mais intensamente quanto maior for a duração, a intensidade ou o grau de perigo da limitação”898. Contudo, também aqui, tal como na renúncia perante o Estado, tem de se considerar a vontade do titular ao aceitar a interferência no seu direito, tanto no que se refere à proporcionalidade em sentido restrito, que exige que os meios legais não sejam desajustados em relação aos resultados obtidos ou a obter, como no que diz respeito à razoabilidade, uma vez que se trata de avaliar a razoabilidade da afectação na perspectiva da pessoa afectada. A aplicabilidade deste princípio deverá, então, variar conforme os tipos de situações e as circunstâncias que só em concreto podem ser determinadas899, até porque já vimos que não basta a existência de uma relação de desigualdade entre as partes para se considerar que a renúncia é necessariamente involuntária. Por outro lado, uma restrição estatal só se justifica quando se visa a salvaguarda de um interesse público ou de terceiros, o que obviamente não será de exigir na renúncia entre privados. Nas relações entre iguais o titular do direito não tem de justificar a autolimitação por um qualquer valor social ou público900. Tal não quer dizer, no entanto, como já referimos oportunamente, sofrido”. Considerando o caso Bürgschaft, BVerfGE 89, pp. 214 ss, como um exemplo de uma decisão do BVerfG na qual este se baseou em critérios de proporcionalidade, ver DIETER MEDICUS, “Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit im Privatrecht”, cit., p. 41. Neste caso, um banco concedeu a um comerciante um empréstimo de 100.000 DM, na condição de que a filha deste último fosse fiadora. Antes da assinatura, o empregado do banco pediu à filha para assinar, dizendo-lhe apenas que necessitava da assinatura para os ficheiros. Quatro anos mais tarde, o banco veio pedir-lhe este montante acrescido de 60.000 DM de juros e o BGH deu-lhe razão. Já o BVerfG, na sua decisão, considerou que os Tribunais cíveis devem, na concretização e utilização de cláusulas gerais como os parágrafos 138º e 242º do BGB, ter em consideração a protecção constitucional da autonomia privada. Daí decorre um dever de controlo do conteúdo dos contratos que onerem uma das partes de forma excessiva. Consequentemente, entendeu que o BGH violou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da requerente, na medida em que deveria ter aplicado uma destas cláusulas e não o fez. 898 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 313. 899 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62. 900 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258, nota 67; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 236 que o fim que motiva a anuência do titular do direito não possa ou até não deva ser um dos elementos a ponderar quando se está a aferir a validade de uma determinada renúncia num caso concreto901. Para além disso, entre iguais tem-se ainda considerado que o “ajustamento recíproco” de interesses deve ser feito pelas próprias partes “ao acordarem os termos da sua relação negocial”. Em princípio não é, nestes casos, necessário qualquer outro ajustamento, pois as partes “fixaram, por decisão livre, uma modelação dos seus interesses, em que os sacrifícios a suportar na respectiva esfera de liberdades são compensados pela aquisição de novos direitos”902. José Carlos Vieira de Andrade entende, efectivamente, que desde que se respeitem “as condições de uma vontade livre e esclarecida”, os princípios da proporcionalidade ou da racionalidade não devem funcionar como limites da renúncia. O Autor considera como limites “apenas os que sejam (…) impostos pelo respeito do núcleo essencial dos direitos (a dignidade da pessoa humana) 328, nota 96. ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62, considera, por seu lado, que os princípios da adequação e da necessidade também devem ser aplicáveis nos contratos de direito privado. Se uma das partes do contrato visar prosseguir interesses que não gozam da protecção da ordem jurídica, este contrato deve ser considerado ilegal. 901 Parece-nos, por exemplo, que merecerá um tratamento diferente uma renúncia ao direito à vida de alguém que se encontra em estado terminal e pretende acabar com um grande sofrimento e a renúncia de alguém que, sem mais, pretende pôr termo à sua vida. Ainda que possamos ter dúvidas quanto à decisão, parece-nos que foi este tipo de considerações que esteve em causa numa decisão alemã quanto a um acordo de divórcio no qual o marido se vinculou a mudar de cidade renunciando assim ao seu direito fundamental de liberdade de circulação. O Tribunal considerou que este acordo era nulo e que uma renúncia à liberdade de circulação só poderia ser atendível se fosse justificada por razões muito importantes. Ver GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 72. Um resumo deste caso está disponível na NJW, n.º 32, 1972, p. 72. KEVIN HOPKINS, “Constitutional Rights and the question of waiver: how fundamental are fundamental rights?”, cit., p. 137, considera que uma renúncia contratual deve respeitar duas exigências: que haja “uma ‘boa razão” para a renúncia e que seja uma medida proporcional”. 902 Nesse sentido, JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, O Problema do Contrato. As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, cit., p. 138. ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62, sustenta que “no caso de poderes negociais iguais os direitos fundamentais maximizam-se quando os seus titulares, nas suas relações mútuas, determinam por si mesmos, de uma forma ampla, o conteúdo e o peso dos seus interesses”. Para o Autor “a autonomia privada assenta na ideia de que através de um contrato se prosseguem melhor os interesses dos indivíduos do que através de uma lei”. Também PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 234, entende que “o acordo dos particulares é, no domínio jurídico-privado, considerado determinante para a ponderação e avaliação do peso relativo de certos bens, sobretudo no domínio patrimonial”. Obviamente desde que respeitados os “limites positivos e negativos” da liberdade contratual. Sobre essa matéria, ver ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 613. 237 ou de valores comunitários básicos”903. Jorge Reis Novais, por seu lado, discorda desta posição, na medida em que parece apontar, para “uma compreensão do limite mínimo que deve constituir a dignidade da pessoa humana em termos que parecem não obrigar a relevar todas as circunstâncias do caso concreto, uma vez que exclui expressamente as razões de proporção”904. Estamos de acordo com esta última posição uma vez que julgamos, efectivamente, que “as razões de proporção” devem também ser tidas em conta na renúncia nas relações entre os particulares. Parece-nos, não obstante, que fará sentido relacioná-las com uma ideia de “intensidade da intervenção (Eingriffsintensität)”, que subjaz aos subprincípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito. De facto, o exame da necessidade traduz “uma exigência de intervenção menor”, uma vez que se deve levar a cabo uma “comparação entre o meio adoptado (…) e os meios hipotéticos alternativos”. Estamos perante “vários meios que detêm um ‘diverso grau de intensidade’”, sendo que a “valoração da intensidade” se consubstancia na “apreciação das ‘repercussões no afectado’”. O mesmo se verifica na apreciação da proporcionalidade em sentido estrito. Aqui tem lugar “uma operação que consiste na comparação entre duas variáveis: a intensidade da intervenção no direito e a importância da razão que a justifica”905. 903 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 314. Na nota 67 da p. 258, o Autor entende que a proporcionalidade não tem de ser respeitada neste âmbito, “mas apenas a dignidade da pessoa humana como mínimo indisponível”. Assim, considera “válida a renúncia à integridade física, para operação de estética, mesmo que o risco seja grande e os eventuais resultados escassos”. Em sentido contrário, ver CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 216, que defende que nestas situações não é de admitir o consentimento. Considerando que nas relações privadas “valerá, quando muito, um mínimo de equilíbrio”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 141. Defendendo que este princípio se deve aplicar às “renúncias induzidas, incorporadas num contrato com contrapartidas para o Autor da renúncia”, “como se de uma restrição se tratasse”, ver EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., pp. 137 e 138. No entanto, o Autor ressalva que “o facto de existir um acordo, com vantagens recíprocas, deve aligeirar a ponderação da proporcionalidade”. Terá de se “apurar se o objectivo da parte que recebe como contrapartida a limitação do direito da outra não é ilícito, abusivo ou caprichoso”. 904 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 328, nota 96. 905 MIJAIL MENDOZA ESCALANTE, “‘Intensidad’ de la intervención o afectación de derechos fundamentales y principio de proporcionalidad”, in Revista Jurídica del Perú, Tomo 80, 2007, http://www.consultoriaconstitucional.com/articulospdf/vi/intensidad.de.intervencin.pdf (última visita a 12.04.2010), pp. 7 e 8. Referindo também esta ideia de “intensidade da intervenção”, 238 Em conformidade com isso, na problemática que estamos a analisar pensamos que também a “intensidade da intervenção”, mesmo na renúncia nas relações entre particulares, deverá ser um elemento a atender na ponderação a realizar. É relevante considerar, quando aferimos a validade de uma dada renúncia, qual o grau de afectação ou enfraquecimento do direito fundamental que decorre do acto de disposição. O que também se relaciona com o facto de, nessa ponderação, devermos aquilatar se se trata de uma renúncia ao direito fundamental como um todo, uma renúncia permanente ou definitiva. 2.3. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais Alguma doutrina sustenta ainda que a renúncia está sujeita ao mesmo limite absoluto da reserva de lei restritiva, isto é, a manutenção do conteúdo essencial do direito afectado906, ainda que haja Autores que defendem que neste âmbito o conteúdo essencial é mais limitado do que aquele que deve ser preservado nas restrições estaduais907. ver ROBERT ALEXY, “Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales”, cit., pp. 33 ss; BODO PIEROTH, – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 86, estabelecem que “tanto quanto se possam estabelecer graus de intensidade de ingerência, o princípio da proporcionalidade exige que o legislador só passe para o grau de ingerência mais intensa se não puder atingir o seu fim no grau de ingerência menos intensa”. Também VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 624, refere que quando se avalia a necessidade de uma dada medida, “para sabermos se uma lesão é comparativamente menor” torna-se necessário, entre outras coisas, “medir a sua intensidade: qual “o número de pessoas atingidas, extensão territorial, custos [e] duração temporal”. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 755 e 756, entende que “no domínio das restrições a direitos fundamentais acontece (…) que na apreciação das duas grandezas ou bens em avaliação” (por exemplo, ao restringir “a liberdade de acção de um indivíduo para proteger a sua própria vida”) “se esbate frequentemente a relação meio-fim, típica do controlo da proporcionalidade, para sobressair (…) a apreciação da afectação positiva e da afectação desvantajosa dos dois bens jurídicos envolvidos na restrição, considerando-se, para uma devida valoração dos dados circunstanciais de facto, tanto a intensidade da afectação como o tempo durante o qual eles são afectados”. 906 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 929; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 331; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 311; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 464. Em sentido contrário, considerando que a garantia do conteúdo essencial diz apenas respeito à restrição de direitos fundamentais através do legislador e não à possibilidade de disposição do próprio titular de direitos fundamentais, ver DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 57. 907 Nesse sentido, GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 131 – 133. Assim, 239 Também na renúncia nas relações entre particulares se tem argumentado que na concordância prática a estabelecer entre a autonomia privada e os restantes direitos, liberdades e garantias é indispensável preservar sempre o conteúdo essencial destes últimos908. Segundo esta perspectiva, a indisponibilidade de um “standard jurídico mínimo vale não apenas contra intervenções estaduais mas também nas relações que os particulares estabelecem entre si”909. Não é, no entanto, tarefa fácil determinar o que é o conteúdo essencial de um direito, liberdade e garantia910, não existindo consenso na doutrina sobre o seu significado911. Coloca-se, antes do mais, a dúvida se o conteúdo essencial é uma realidade de natureza absoluta ou relativa. Para a teoria absoluta o conteúdo essencial consiste num núcleo fundamental intocável presente em cada direito fundamental e que é independente da colisão de interesses verificada no caso concreto912. Assim sendo, tal teoria não tem em consideração outros bens na determinação desse conteúdo913. segundo ele, “devem estabelecer-se dois conteúdos essenciais do direito distintos: por um lado, um mais restrito para o indivíduo; por outro lado, um mais amplo para o Estado”. Parecenos, no entanto, que dadas as dificuldades na determinação do conteúdo essencial, não será viável esta distinção. 908 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 302. Como vimos, também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 314, considera como limites da autolimitação os que sejam “impostos pelo respeito do núcleo essencial dos direitos (a dignidade da pessoa humana) ou de valores comunitários básicos”. 909 REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 186. 910 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 314 e 315; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 332. 911 KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte”, cit., p. 95. 912 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 269; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 82, nota 138. 913 Defendendo as teorias absolutas, ver JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., p. 459; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1112; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 315; LUIS PRIETO SANCHIS, Estudios sobre Derechos Fundamentales, cit., pp. 143 ss; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 126; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 46; EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., p. 239; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 865. Tendendo para a teoria absoluta, embora deixando a questão em aberto, ver JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 743. 240 A grande dificuldade que a teoria absoluta levanta é a de saber em que consiste efectivamente o “âmbito nuclear intocável” de cada direito fundamental914. As “tentativas de delimitação substancialista de um núcleo ou âmbito essencial dos direitos fundamentais” não têm conseguido dar uma resposta conveniente a esta questão porque não fornecem qualquer critério seguro para distinguir o que deve pertencer ao núcleo essencial do direito e o que deve ser dele excluído. Há, efectivamente, uma grande diversidade de posições quanto ao que se deve entender por conteúdo essencial do direito, mas nenhuma “ultrapassa um nível de abstracção que permite, na situação concreta, uma aplicação da garantia com um qualquer sentido” 915 . Por outro lado, as definições do conteúdo essencial com “um grau suficiente de precisão” reconduzem-no a outros princípios constitucionais “como a proporcionalidade, a igualdade ou a dignidade da pessoa humana”, deixando esta garantia de ter “utilidade prática autónoma” 916. Mas mesmo ultrapassando esta primeira dificuldade, logo se coloca uma outra, que é a de decidir se a garantia protege “o conteúdo essencial de cada direito subjectivo”, que é o que preconiza a teoria subjectiva, ou se se tem de 914 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 783. 915 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 788 e 789. Para o Autor este é (entre outros), por exemplo, o caso da perspectiva que defende que o núcleo essencial se determina “em função do significado que, após a restrição, o direito fundamental ainda mantivesse para a vida social”, ou das que consideram que se deve identificar o conteúdo essencial “com a garantia institucional proporcionada pelo direito” ou com o “que é essencial ou típico na respectiva instituição jurídica”. 916 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 789 e 790. Considerando que o reduto mínimo do direito que deve ser sempre salvaguardado e não pode estar dependente de uma ponderação de bens, se parece reconduzir ao princípio da dignidade da pessoa humana, ver JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., p. 459; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 309; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 331; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 287 e 311; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 344; MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 146; REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 191. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 129, entende, no entanto, que “uma identidade entre o conteúdo de dignidade e o conteúdo essencial só pode estabelecer-se nos casos em que o conteúdo do direito fundamental se refere à dignidade da pessoa”. Para o Autor “este não é sempre o caso, uma vez que nem todos os direitos fundamentais têm uma relação estreita obrigatória com a dignidade”. 241 entender como dirigida “não ao direito mas ao preceito constitucional (…) enquanto norma de valor e garantia”, que é a perspectiva da teoria objectiva917. A primeira teoria não corresponde à realidade, uma vez que “são normalmente frequentes, e tidas pacificamente como legítimas em Estado de Direito, intervenções restritivas que reduzem drasticamente ou aniquilam mesmo qualquer possibilidade de exercício de um direito fundamental por parte de um indivíduo concreto”918, sem que, por isso, sejam consideradas inconstitucionais. Quanto à segunda, a protecção que esta confere é meramente residual, na medida em que só actua “perante tentativas extremas de imposição de soluções totalitárias de regulação da liberdade”919. De facto, se se entende que 917 Considerando que o conteúdo essencial “tem de entender-se como referido não ao direito mas ao preceito constitucional (…) enquanto norma de valor e garantia”, seguindo-se um sentido objectivista, ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 287 e 288; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 45; PETER HÄBERLE, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19, Abs. 2 Grundgesetz, 3ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 1983, pp. 236 ss. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 459, sustenta que não se pode reconduzir a solução do problema “a alternativas radicais porque a restrição (…) deve ter em atenção a função dos direitos na vida comunitária, sendo irrealista uma teoria subjectiva desconhecedora desta função”. No entanto, entende que “a protecção do núcleo essencial não pode abdicar da dimensão subjectiva dos direitos fundamentais e daí a necessidade de evitar restrições conducentes à aniquilação de um direito subjectivo individual”. No sentido de considerar que para determinados direitos que assumem uma especial importância deve “prevalecer uma concepção subjectivista”, ver JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., p. 459 e também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1112. Defendendo a teoria subjectiva, ver JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, cit., p. 79; THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., p. 44; KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte”, cit., p. 96; BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 89; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 122; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 870. Considerando que “o carácter dos direitos fundamentais como direitos individuais fala a favor da manutenção da teoria subjectiva, ainda que a par da objectiva”, ver ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 269. Sobre estas teorías, ver ainda JUAN CARLOS GAVARA DE CARA, Derechos Fundamentales y Desarrollo Legislativo. La Garantía del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn,cit., pp.23 ss. 918 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 784; também ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., p., 94; MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., p. 177. 919 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 791; também MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., p. 176, considera que esta teoria “apenas evitaria aquilo que sob as exigências do Estado de Direito seria impensável”. 242 o conteúdo essencial do direito é apenas violado se se atentar contra o preceito “enquanto norma de valor e garantia”, muito dificilmente uma restrição será considerada inconstitucional por violação desta exigência constitucional. As teorias relativas, por sua vez, reconduzem o conteúdo essencial ao princípio da proporcionalidade, só podendo conhecer-se o núcleo do direito em cada caso concreto, mediante a ponderação dos bens e interesses em conflito920. Assim, segundo estas teorias “o conteúdo essencial é o que sobra depois de uma ponderação”, pelo que “as restrições que respeitam o princípio da proporcionalidade não lesam a garantia do conteúdo essencial mesmo quando no caso concreto nada reste do direito fundamental”921. Como crítica a esta doutrina aponta-se “a relativização consciente e intencional da validade dos direitos fundamentais” uma vez que em última análise poderá implicar que nada sobre do direito, “desde que tal seja exigido pela maior valia dos bens que com ele colidam”922. Há ainda quem recorra a uma teoria mista, alegando que, apesar de a delimitação do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias não estar isenta de uma ponderação de bens, para que se garanta realmente o conteúdo essencial deve sempre preservar-se “um resto substancial de direito, liberdade e garantia que assegure a sua utilidade constitucional”923. Esta teoria, uma vez 920 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 82, nota 138;GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 124 e 125. 921 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 269. 922 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 783; ANTONIO LUIS MARTÍNEZ-PUJALTE,La Garantía del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, p. 27. 923 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO - VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, cit., p. 395. Defendendo também as teorias mistas, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 286; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 461. Embora não o dizendo expressamente, parece ser também essa a perspectiva de SÉRVULO CORREIA, O Direito de Manifestação. Âmbito de Protecção e Restrições, cit., p. 75; GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, cit., pp. 133 ss. Também MAX MIDDENDORF, “Zur Wesensgehaltgarantie des Grundgesetzes”, in JURA, n.º 4, 2003, p. 235, parece defender uma teoria mista, na medida em que considera que “da teoria relativa se deve retirar que o conteúdo essencial não pode ser concretizado, em todas as situações, independentemente dos restantes interesses”. Verificando-se “uma colisão de conteúdos essenciais pode haver uma lesão de um deles e ser tomada uma decisão favorável para o titular do direito fundamental que deva ser nessa situação mais protegido. A decisão quanto a qual o bem jurídico que merece, no caso concreto, maior protecção exige uma ponderação de bens”. Se não for esse o caso, o Autor 243 que combina “elementos de cada uma das perspectivas unilaterais referidas”, está também sujeita às críticas apontadas às restantes teorias, uma vez que padece “das debilidades que afectam cada uma daquelas construções”924. Perante estas considerações, deparamo-nos com a questão de determinar em que medida pode o conteúdo essencial dos direitos fundamentais servir como limite à renúncia a direitos fundamentais. Vimos que este, segundo as teorias relativas, se reconduz ao princípio da proporcionalidade e que, nos termos das teorias absolutas, se consubtancia num núcleo material mínimo cuja determinação acaba por remeter para outros princípios constitucionais, em particular o princípio da dignidade da pessoa humana, sob pena de ser demasiado vago. Assim sendo, parece ser de entender que a garantia do conteúdo essencial não cumpre “qualquer papel autónomo significativo nem desenvolve qualquer efeito jurídico efectivo enquanto limite aos limites dos direitos fundamentais”925. De igual modo, também não desempenha qualquer papel entende que deve seguir-se a teoria absoluta. 924 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 795. 925 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 786. Também ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 271 e 272, entende que a garantia do conteúdo essencial não formula, a par com o princípio da proporcionalidade, “nenhum limite adicional à restringibilidade dos direitos fundamentais”. Para o Autor, “o carácter absoluto da protecção de um direito fundamental é uma questão de relações entre princípios. Não pode excluir-se uma constelação na qual os princípios opostos tenham precedência”. No entanto, “uma vez que quanto mais se esvazia um princípio mais resistente este se torna”, “a segurança da protecção é tão alta que, em circunstâncias normais, se pode falar de uma protecção absoluta”. Assim, a garantia do conteúdo essencial é sobretudo “mais uma razão a favor da validade do princípio da proporcionalidade”. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 536 e 537, considera que o conteúdo essencial é definido pelo núcleo de dignidade ou pela proibição do excesso, pelo que o recurso a este conceito enquanto limite da renúncia envolve o risco de conduzir a uma “argumentação circular”, na medida em que não está aqui em causa uma “grandeza fixa” mas antes “uma variável dependente também do consentimento do próprio”. ARTHUR KAUFMANN, “Was heisst ‘Wesensgehalt’ der Grundrechte? Überlegungen zu Artikel 19 Absatz 2 Grundgesetz”, in BERND SCHÜNEMANN – JÖRG PAUL MÜLLER – LOTHAR PHILIPPS, Das Menschenbild im weltweitem Wandel der Grundrechte, Duncker & Humblot, Berlin, 2002, pp. 31 ss, defende que a disposição constitucional que consagra a garantia do conteúdo essencial tem meramente uma “’função simbólica’”. Para o Autor, a questão de saber “quando é que o conteúdo essencial do direito é afectado não se pode responder de forma abstracta, uma vez que não há um ‘conteúdo essencial’ enquanto uma ‘parte componente’ substancial do direito. Apenas há um conteúdo essencial em relação a algo”. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 461, por seu lado, entende ser de rejeitar “a ideia (…) de que a garantia do conteúdo essencial não é mais do que uma ‘mera proclamação e sinalização da ponderação e vinculação do legislador ordinário e 244 autónomo enquanto limite à renúncia, seja perante o Estado, seja perante outros particulares. 2.4. A ordem pública e os bons costumes Quanto à possibilidade de auto-suspensão de direitos926, Jorge Miranda (convocando o art. 29.º, n.º 2 da DUDH) sustenta que não podem ser admitidas situações “que colidam com a moral, a ordem pública e o bem-estar numa sociedade democrática”927. Também na doutrina alemã Detlef Merten considera um pressuposto da renúncia a sua “conformidade com os bons costumes”928. Na sequência disso, procuraremos ver como é que a ordem pública e os bons costumes, conceitos que o direito português invoca em matéria de consentimento929, podem servir para o estabelecimento de limites à renúncia. Para o efeito, indagaremos de que modo é que estes conceitos têm vindo a ser densificados no Direito Civil e no Direito Penal. O legislador civil estabelece, no art. 340.º do CC, que “o acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. Tal significa que se o consentimento for válido a violação passa a ser lícita, não podendo ser invocado o direito em causa930. Porém, segundo o n.º 2 deste artigo a ilicitude do acto não é afastada se o consentimento do lesado for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes. Ainda no que diz respeito à limitação voluntária ao exercício de direitos de personalidade, o n.º 1 restantes poderes constituídos pelos direitos fundamentais’”. Para o Autor a garantia de um núcleo absoluto pretende afirmar “o valor da liberdade individual” como “constitutivo da ordem constitucional”. EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., p. 240, consideram que o conteúdo essencial é desrespeitado quando a pessoa em causa “não possa mais prosseguir o seu interesse jusfundamentalmente protegido, ou seja, quando lhe sejam vedadas todas as formas de realização desse interesse”. 926 Vimos já que esta é a designação que o Autor utiliza para se referir à renúncia. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 384 e 385. 927 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 386. 928 DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 70 ss. 929 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., p. 141. 930 HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 268. 245 do art. 81.º do CC, que é uma “lex specialis em relação ao n.º 2 do art. 340.º CC”, determina que esta é nula quando contrarie os princípios da ordem pública931. No Direito Penal, também o n.º 1 do art. 38.º do CP estabelece que “o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes”. Tem-se entendido que os bons costumes se consubstanciam nas “regras morais e de conduta social generalizadamente reconhecidas, em dado momento, numa sociedade”932. São uma “noção variável com os tempos e os lugares”933, tratando-se de “um conceito indeterminado “a que o intérprete, maxime o julgador, terá de atribuir conteúdo caso a caso”934. Este conceito refere-se a “um conjunto de normas extrajurídicas”935, ou seja, os bons costumes “consistem em normas de conduta de carácter não jurídico e que reflectem as regras dominantes da moral social de uma determinada época”936. No entanto, deve ter-se presente, na densificação do conceito, “a sua depuração de quaisquer valores ou referências de índole religiosa”937. Verifica-se, de facto, hoje “uma tendência para ‘des-eticizar’ ou 931 HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 268. Considerando que no Direito Civil a declaração de limitação voluntária pode “ser anulada ou objecto de uma declaração de nulidade quer com fundamento nas regras sobre incapacidade (…) quer (…) com fundamento na sua ilicitude ou contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes, ver PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 54; ORLANDO CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 91; 0; PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., pp. 110 e 304. 932 ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 125. 933 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 559. 934 ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 125. Ver também RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 531. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, cit., p. 506, defende que partindo do conceito de bons costumes não devem ser admissíveis “negócios jurídicos - excluindo os actos próprios do Direito da Família e que a lei tipifica - que tenham por objecto prestações que envolvam relações familiares (…) ou condutas sexuais”. Para o Autor, ainda que tenha “havido modificações neste domínio”, devido à “evolução cultural recente”, continuam a existir regras. Para além disso, considera que os bons costumes se podem alargar “a regras deontológicas formuladas por instâncias profissionais próprias”. 935 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 61. 936 HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 524. 937 ÁLVARO DA CUNHA RODRIGUES, “Consentimento informado – pedra angular da 246 ‘des-moralizar’ o conceito de bons costumes”, pelo que a doutrina e a jurisprudência se têm servido das “normas de direitos fundamentais em geral” e do “princípio da dignidade da pessoa humana em particular” para aferir “a licitude ou a ilicitude, a validade ou a invalidade, do consentimento na agressão ou ofensa”938. Já a ordem pública “é o conjunto de princípios basilares de uma dada ordem jurídica (…) que regulam interesses gerais e fundamentais da colectividade”939 e que, pela importância que assumem, “devem prevalecer sobre as convenções privadas”940. Esta compreende “as normas que servem à realização e à protecção dos valores e bens fundamentais para a vida em comunidade e que encontramos nomeadamente na Constituição”941. O consentimento deve considerar-se contrário à ordem pública sempre que ofenda “princípios constitucionais”942. Perante isto, e uma vez que, como referimos, a tendência vai no sentido de retirar a carga moral tradicionalmente associada ao conceito de bons responsabilidade criminal do médico”, in Direito da Medicina – I, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 29. Considerando que, no que se refere a restrições à liberdade de manifestação, “numa sociedade pluralista a moral relevante não será o conjunto de cânones eventualmente professados pela maioria ou por instituições consolidadas”, ver SÉRVULO CORREIA, O Direito de Manifestação. Âmbito de Protecção e Restrições, cit., p. 76. 938 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 61 e 62. Sobre a equiparação entre bons costumes e dignidade, ver também STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “Une dignitas humaine? Vieilles outres, vin nouveau”, in Droits, n.º 48, 2009, pp. 60 e 61. Para a Autora o princípio da dignidade e os bons costumes “partilham uma similitude de funções: constituir um limite juridicamente oponível à (…) vontade individual”. Também no Direito Penal é hoje consensual “a tese da ilegitimidade da promoção ou prossecução, através dos bons costumes, de finalidades transcendentes à danosidade social com dignidade penal”. Ver, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 543. Este Autor entende que tal vale sobretudo “para as tentativas (…) de punição de lesões corporais consentidas em nome da sua imoralidade, o que “sucedeu (…) com as ofensas corporais (mesmo ligeiras), praticadas para a satisfação de perversões sadomasoquistas ou com a esterilização voluntária”. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 481, considera que o limite dos bons costumes imposto pela lei não deve ser entendido em termos de moral sexual, estando em causa antes a gravidade da ofensa, até em termos de gravidade física. 939 ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 707. 940 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 557 e 558. 941 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 478. Ver também PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral de Direito Civil, cit., p. 591. 942 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 61; HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 523. 247 costumes, cada vez mais estas duas noções propendem a ser complementares e até a se sobreporem parcialmente, “o que explica (…) porque são geralmente referidas conjuntamente”943. Por outro lado, uma vez que a concretização dos bons costumes e da ordem pública se tem vindo a fazer através do recurso aos direitos fundamentais944 entendemos que estas duas noções não se consubstanciam num limite autónomo para o problema dos limites da renúncia945, uma vez que, no fundo, somos reconduzidos para a questão da “conformidade material da renúncia aos princípios e regras constitucionais”. De facto, o conceito de ordem pública (e pensamos que estas considerações valem também para o conceito de bons costumes) deve ser densificado no sentido de permitir que os cidadãos gozem dos seus direitos fundamentais “sem quaisquer interferências ilegítimas de terceiros”, pelo que a ordem pública “deve traduzir (…) o ponto óptimo de equilíbrio de todos os direitos e interesses consagrados na lei fundamental e não apenas alguns deles”. Por conseguinte, a ordem pública não pode ser entendida “como uma realidade ontológica anterior e superior aos direitos fundamentais”. Quando se 943 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 478. A Autora considera, no entanto, que o conteúdo dos bons costumes é menos concretizado em normas jurídicas positivas, reflectindo antes o denominador cultural comum espontâneo de uma comunidade nacional. 944 Considerando que seguindo “uma perspectiva liberal-democrática são precisamente os direitos fundamentais que constituem a essência da própria ideia de ordem pública”, ver LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, cit., pp. 133 e 134. FRANZ JÜRGEN SÄCKER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Vol. I, 3ª Edição, Verlag C. H. Beck, München, 1993, p. 1139, entende, por sua vez, que “os direitos fundamentais são um elemento especialmente importante para a concretização dos bons costumes através do ordenamento interno”. DIETER MEDICUS, Allgemeiner Teil des BGB, 8.ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2002, p. 269, defende que “os valores da Constituição, sobretudo os direitos fundamentais, têm efeitos na validade de negócios jurídicos”, “através da cláusula geral de bons costumes”. Também MANUEL ANTÓNIO CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 846, nota 940, faz referência a um preenchimento da cláusula dos bons costumes” à luz da protecção constitucional dos direitos fundamentais” e ao facto de que vários princípios jurídicos fundamentais obtêm realização através dela. Finalmente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, cit., p. 508, em relação ao conceito de ordem pública, entende que “são contrários à ordem pública negócios que atinjam valores constitucionais importantes”. 945 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 849 e 850, refere que “a operacionalidade” dos bons costumes (ou da moral pública, uma vez que considera que se trata de “noções irmãs”) e da ordem pública “como fundamentos autónomos de restrições aos direitos fundamentais tem vindo a ser progressivamente enfraquecida”. 248 pretendem fundar restrições a direitos fundamentais recorrendo a esta noção, não se pode “prescindir da discussão (…) [acerca] da posição relativa em que se encontram os direitos e interesses que a ordem pública visa acautelar, feita a partir de critérios valorativos de natureza constitucional”946. Nesse sentido, a ordem pública e os bons costumes podem inclusivamente ser “fundamento para a disponibilidade”947. Apesar disso, há alguns contributos quanto à densificação destes conceitos que julgamos pertinente salientar, pois vão ao encontro de considerações que fomos tecendo ao longo deste trabalho relativamente ao problema da renúncia. Em primeiro lugar, tem-se entendido que a invocação dos bons costumes e da ordem pública como limites do consentimento não poderá servir para uma pretensa protecção da pessoa contra si própria ou para impor um determinado “conceito objectivo de ‘dignidade humana’”948. Remetemos, quanto a esta questão, para tudo o que dissemos relativamente à legitimidade da defesa da pessoa contra si mesma e ao princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite da renúncia a direitos fundamentais. Para além disso, no Direito Penal tem-se privilegiado, como resposta ao problema dos bons costumes, a contraposição entre “lesões ligeiras e graves, estas últimas normalmente qualificadas pela sua irreversibilidade e pelo teor das suas sequelas”949, uma vez que se entende que com a referência aos bons costumes “não se quer remeter para a contrariedade moral (…) do facto consentido”950. Quanto à existência de uma violação dos bons costumes quando se verifiquem lesões graves a corrente maioritária tem vindo a admitir “a intervenção de um fim positivo susceptível de neutralizar o estigma da ofensa (…), em princípio indiciado pela gravidade da lesão”951, nos casos em 946 JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 857 e 858. 947 LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 475. 948 Nesse sentido, PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 547. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 173 e 174, também nota 1, considera que “não raro, na experiência histórica, a invocação da ‘ordem pública’ tem sido feita como conceito (…) beligerante contra a liberdade. No entanto, a ordem pública “só vale enquanto permite a realização do bem comum, aferido pelo equilíbrio entre liberdade e autoridade”. 949 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 546. 950 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 481. 951 MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 546 e 249 que esta “esteja ao serviço de interesses de superior e inquestionável dignidade, reconhecida pela ordem jurídica”952. Uma parte da doutrina entende ainda que esta perspectiva deve ser recebida, “como orientação geral, pelo Direito Civil”953. Daqui retiramos duas ideias que julgamos ser importantes para o problema da renúncia: por um lado, o carácter grave e irreversível da lesão, que serve para integrar a cláusula dos bons costumes, pode ser útil para aferir a validade de uma renúncia concreta a direitos fundamentais, devendo ser mais um elemento a ter em conta na ponderação. Fizemos considerações semelhantes quando distinguimos renúncia reversível de renúncia definitiva e dissemos que, na ponderação de valores a realizar para a tomada de decisão quanto à admissibilidade da renúncia, também se deverá, efectivamente, atender a esta distinção. 547. Para o Autor esta ressalva é pensada “para abrir a porta a lesões mais ou menos graves para efeitos de transplante entre vivos”, mas que se projecta “em áreas como as experimentações humanas, as intervenções cosméticas, operações trans-sexuais”, etc. Assim, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 481, defende que “o consentimento será ineficaz quando a ofensa à integridade física possua uma gravidade tal nomeadamente uma irreversibilidade (…) - que, perante ela, o valor da auto-realização pessoal deva ceder o passo”. Nesse sentido, também TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, cit., p. 270. 952 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 144 e 145. Assim, entende-se que “há lesões da integridade física (…) com um tal potencial de danosidade social e de destruição do outro ‘que a sociedade só pode conformar-se com elas, apesar do consentimento, quando acresça um fim susceptível de justificar o facto. Isto, dada a responsabilidade da sociedade pela garantia e respeito face ao núcleo essencial da integridade física das pessoas’”. Nesse sentido, ver H. J. HIRSCH apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 548. Este Autor diz-nos ainda que Jakobs considera que se trata “de saber se ‘o facto ainda se pode valorar como um lidar racional com os bens, no sentido de juridicamente sustentável. Os critérios hão-de, para tanto, pedir-se à ponderação de bens do estado de necessidade, com o alcance de o bem jurídico sacrificado não poder ser desproporcionado em relação ao fim prosseguido com a lesão’”. A lei portuguesa manda, no art. 149.º do CP, atender aos fins do agente e mesmo do ofendido para decidir se a ofensa à saúde ou ao corpo contraria os bons costumes. Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., pp. 292 e 293. Este Autor entende que “concretamente é a chamada dos fins ao círculo hermenêutico dos bons costumes que pode legitimar a cedência de órgãos para fins de transplante”. 953 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 145 e 146. No entanto, o Autor sustenta ainda que se poderá ir um pouco mais além “para efeitos do Direito Civil”, na medida em que “há intervenções que, não causando lesões graves e irreversíveis devem ser consideradas como actos violadores dos bons costumes”. Será o caso de “mutilações gratuitas, desfiguração duradoura e sem razão clínica do doente; intervenções com risco de vida sem utilidade notória; experiências gratuitas com seres humanos; tormentos ou torturas sádicas dos doentes”. 250 Por outro lado, também entendemos que é relevante para o problema que estamos a tratar a importância atribuída, em sede de consentimento, “aos ‘fins do agente’ e mesmo do ‘ofendido’”954. Será transponível para a renúncia a ideia de que pode haver um fim positivo capaz de “neutralizar” a ofensa aos bons costumes, que pareceria verificar-se, atendendo à gravidade da lesão. Também a propósito do princípio da proporcionalidade tínhamos já referido que o fim que motivou a renúncia deve ser um dos elementos a ponderar para aferir se o acto de disposição é válido. Parece-nos ser igualmente esta a posição de Gomes Canotilho, ao entender que na apreciação da validade da renúncia se deve ter em atenção não apenas “o direito fundamental concreto” mas também “o fim da renúncia”955. Pensamos que nas situações em que a renúncia é definitiva a existência de um fim que se sobreponha à lesão do bem pode implicar que esta possa, ainda assim, ser considerada admissível. Por consequinte, entendemos que estas considerações reforçam aquilo que dissemos sobre a possibilidade de uma renúncia definitiva: não se pode dizer, à partida, que uma renúncia definitiva a posições jurídicas subjectivas de direitos fundamentais seja inadmissível, embora essa definitividade deva ser tida em conta na decisão concreta acerca da validade da renúncia956. 2.5. A maior ou menor disponibilidade dos direitos fundamentais Considerando que no conteúdo dos direitos-liberdades está incluída “a 954 MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., pp. 292 e 293. 955 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465. Também JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 138, defende que a admissibilidade da renúncia tem de ser avaliada “em função do direito fundamental em concreto, (…) das circunstâncias particulares do caso, (…) da condição do respectivo titular e (…) do fim da renúncia. 956 Sobre o problema da interrupção voluntária da gravidez, RUI MEDEIROS E JORGE PEREIRA DA SILVA entendem que “para que a concordância prática não se esgote numa fórmula vazia, (…) seria necessário que o motivo determinante da prática de aborto não fosse irrelevante para a ordem jurídica”. RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 231. 251 faculdade de não agir”957, assim como o “carácter instrumental (…) dos direitosgarantias”958, a questão da disponibilidade dos direitos fundamentais “põe-se especialmente no que respeita aos ‘direitos-direitos’”959. A disponibilidade do bem jurídico a que se pretende renunciar é uma condição de renúncia, uma vez que “só se pode renunciar a algo de que se dispõe”. No entanto, tal não quer dizer que não se justifique considerá-la igualmente como um dos tópicos a ter em conta quando se afere a validade concreta de uma dada renúncia. É que ainda que tenhamos já reconhecido que o particular detém, a priori, o poder de renunciar às suas posições subjectivas de direitos fundamentais, esse poder não é “absoluto”, uma vez que a maior ou menor disponibilidade do direito fundamental “depende da “natureza do bem tutelado”, das “circunstâncias do caso e do peso relativo das razões e interesses em conflito”960. Deve-se, antes do mais, através da interpretação do direito fundamental em causa, determinar se segundo o seu sentido o bem jurídico protegido é disponível pelo seu titular961. Existem algumas situações em que as próprias normas de direitos fundamentais atribuem ou negam “relevância jurídica à vontade do titular”, ou seja, erigem-na “como elemento positivo ou negativo da previsão normativa de uma garantia de direito fundamental”. A negação de relevância jurídica tem como consequência que os direitos não possam ser 957 Mais desenvolvidamente, ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 198; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 113. 958 Quanto à distinção entre direitos e garantias, no sentido de que os direitos dizem respeito à “fruição” de um bem jurídico, sendo assim “principais”, enquanto as garantias servem para assegurar essa fruição, mas em termos acessórios, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 113. Criticando a designação constitucional de direitos, liberdades e garantias, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, cit., p. 77. 959 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 312. 960 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 322. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 140, também notas 431 e 432, afirma que um dos requisitos da renúncia é a disponibilidade “sobre certos efeitos de protecção de uma posição de direito fundamental por parte do seu titular”. O Autor defende que não é “adequada a ideia de disponibilidade sobre os bens ou interesses protegidos pela norma”, pois “o que é enfraquecido não é o bem, mas sim os efeitos de protecção potenciais de uma norma que garante um bem”. Uma vez que “a renúncia se situa no plano jurídico (e não no plano da realidade social) ela tem de ter uma relação directa com a norma e com os efeitos da norma, repercutindo-se no bem apenas de forma interposta”. 961 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 141. 252 renunciados, que é o que sucede com as normas de direitos fundamentais que estabelecem direitos-deveres. Será, por exemplo, o caso da inadmissibilidade de renúncia a normas como as do n.º 5 do art. 36.º, (direito-dever de educação e manutenção dos filhos), dos n.ºs 1 e 2 do art. 74.º, (direito-dever de acesso ao ensino básico) e do n.º 1 do 276.º (direito-dever de defesa da Pátria) da CRP962. Estamos aqui perante deveres fundamentais conexos com determinados direitos cuja consagração se traduz no reconhecimento expresso de um valor 962 Ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 267, também nota 10 e 286; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 313. Sobre a irrenunciabilidade de normas que consagram direitosdeveres, ver também KLAUS RÜDIGER WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche Rechte, cit., pp. 120 e 121; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz,’ volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., p. 928. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 319 e 320, consideram ainda consagradoras de “deveres conexos com direitos fundamentais” as normas do n.º 2 do art. 49.º (dever cívico de voto, conjugado com o direito de voto); do n.º 3 do art. 57.º (dever de prestação de serviços durante a greve); do n.º 1 do art. 64.º (o dever de defesa e promoção da saúde, “conjugado com o direito à saúde”); do n.º 1 do art. 66.º (dever de defesa do ambiente, “conotado com o respectivo direito”); do n.º 2 do art. 71.º (deveres de pais e tutores para com pessoas com deficiência); e do n.º 1 do art. 78.º (dever de defesa do património, “ligado ao direito com igual objecto”). JOSÉ CASALTA NABAIS, “Dos deveres fundamentais”, cit., p. 320, considera que pertencem a uma “categoria própria”, designada como “direitos de solidariedade”, “os direitos ao ambiente, à fruição do património cultural e o direito à saúde, no segmento em que tem por objecto a saúde pública”. Também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 158, se refere a esta categoria autónoma de “direitos de solidariedade”. Parece-nos, no entanto, que no que se refere ao problema que estamos a tratar a autonomização desta categoria não é relevante. Deve, para além disso, fazer-se uma precisão no que diz respeito ao dever de defesa e promoção da saúde. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Dos deveres fundamentais”, cit., pp. 320 e 321, nota 295, considera que este tem “quatro dimensões: “um direito-liberdade”, “um direito-dever de solidariedade, virado para a defesa e promoção da saúde própria enquanto condição da defesa e promoção da saúde pública”; “um direito social às prestações estaduais necessárias à saúde de cada um” e “um dever (…) objectivo, que visa a defesa e a promoção da saúde pública”. Ora só deverá haver um dever de promover a saúde pública e não um dever de promover a própria saúde. Também CARLA AMADO GOMES, Defesa da Saúde Pública vs. Liberdade Individual, Associação Académica da Faculdade de Direito, Lisboa, 1999, pp. 22 e 23, sustenta que “este dever tem como objecto a saúde pública e não a saúde privada”. Apenas “na medida em que o mau estado de saúde de alguém possa reflectir-se no estado sanitário comunitário é que o Estado pode intervir”. Nesse sentido, ver ainda SÓNIA FIDALGO, “Internamento compulsivo de doentes com tuberculose”, in Lex Medicinae, n.º 2, 2004, p. 91. JOÃO LOUREIRO, “Direito à (protecção da) saúde”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. I, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2006, p. 664, coloca a questão de saber se o art. 64.º da CRP estabelece um dever fundamental de proteger a própria saúde, “independentemente dos seus reflexos para terceiros (embora na maioria dos casos, em sistemas em que não é o utilizador final a pagar haja, em regra, reflexos para todos, pelo que se discutem também aqui problemas de justiça distributiva)”. 253 ou interesse comunitário963, o que justifica a sua irrenunciabilidade. O exercício fáctico dos direitos-deveres fundamentais resulta vinculado, desaparecendo a livre disposição individual. É, no entanto, importante realçar que estes são a excepção e não a regra964. Já quando a Constituição institui a vontade ou consentimento do titular como elemento positivo da previsão normativa de uma garantia de direito fundamental trata-se, em princípio, de situações de mero exercício de direitos e não de verdadeira renúncia965. Nestas situações estamos, como já referimos, perante uma disposição de direitos cujo bem jurídico protegido é primacialmente a autonomia individual. Vimos, no entanto, que a distinção entre mero exercício e renúncia não é uma distinção categórica, que implique uma diferenciação cortante, devendo entender-se que há um “princípio de disponibilidade” dos direitos nas situações que, à partida, reconduzimos ao mero exercício966. Esta distinção é útil porque pode ser decisiva para o estabelecimento de uma prevalência a favor da disponibilidade do bem num mundo de ponderação, mas não exclui que as situações de mero exercício estejam sujeitas a essa mesma ponderação. Assim sendo, mesmo nos casos de mero exercício, nos quais consideramos que há um “princípio de disponibilidade” dos direitos, não é possível concluir, em termos abstractos, pela disponibilidade ou indisponibilidade dos bens protegidos por normas de direitos fundamentais. 963 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 158 e 159. Considerando que estes deveres não são outra coisa do que “a responsabilidade comunitária que os indivíduos assumem ao integrar uma comunidade organizada”, ver JOSÉ CASALTA NABAIS, “A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos”, in Por Uma Liberdade com Responsabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 193. Sobre os deveres fundamentais em geral, ver ainda JOSÉ CASALTA NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, Coimbra, 1998; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 189 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 531 ss. 964 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287. 965 Como já tivemos oportunidade de referir, não é, no entanto, apenas “o facto de a lei fazer ou não referência expressa à vontade ou ao consentimento” que determina que estamos perante uma situação de mero exercício, pelo que “serão mais esclarecedoras e consistentes as conclusões a retirar de uma leitura teleológica, orientada por e para o bem jurídico. Só identificando o bem jurídico protegido e a respectiva área de tutela se poderá (…) definir (…) o papel reservado à vontade do portador concreto”. Nesse sentido, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 365 e 366. 966 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 313 e 314. 254 Quanto aos restantes direitos, a “praxis dos direitos fundamentais” desenvolveu uma “imagem de Homem” que deve ser tida em conta na sua interpretação967. Como tivemos oportunidade de analisar com mais cuidado, no nosso ordenamento jurídico o princípio da dignidade e o livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo assumem um papel fundamental968. No entanto, “a Constituição não coloca apenas a dignidade da pessoa e a autodeterminação no centro da ordem constitucional, tendo também em conta a ligação comunitária do indivíduo”969. A pessoa não pode conduzir a sua vida como se vivesse isoladamente, uma vez que as acções que leva a cabo e que traduzem o exercício do desenvolvimento da sua personalidade podem repercutir-se, mais ou menos intensamente, na vida da comunidade970. Assim, “a liberdade, enquanto liberdade jurídica, não pode ser ilimitada ou absoluta”971. Ainda que exista “uma presunção de partida a favor da autonomia pessoal”, o Homem vive em comunidade e deve nela integrar-se, sendo inevitável conciliar “os bens e interesses da comunidade e os bens e interesses da liberdade individual”972. Em conformidade com isso, não podemos deixar de ter em conta que a pessoa titular de direitos fundamentais é a pessoa socialmente “situada” e “inserida”973. A ligação comunitária do 967 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 109 e 110. 968 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 323. 969 Nesse sentido, referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 112. No caso Investitionshilfe, BVerfGE 4, pp. 7 ss, o BVerfG considera que “a imagem de Homem da Constituição não é a do indivíduo soberano isolado”. Para o Tribunal, “a Constituição decidiu a tensão indivíduo/sociedade sobretudo através da pertença e da ligação à comunidade, sem, no entanto, lesar o valor intrínseco do indivíduo”. Tal significa “que este deve tolerar as restrições à sua liberdade de actuação que o legislador estabelece para a tutela e promoção da vida social, tendo como limite a garantia da autonomia da pessoa”. Nesse sentido, ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 162. ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 119, diz-nos que “esta declaração do BVerfG tem consequências consideráveis”, pois assim “não apenas se afastam as concepções individualistas do liberalismo clássico, como também as tentações colectivistas; renunciando a soluções extremas, procura-se uma linha intermédia”. 970 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 63. 971 HERBERT BETHGE, “Gewissensfreiheit”, cit., p. 446. 972 JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 314. 973 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 60. 255 indivíduo não deve, no entanto, justificar uma “reserva imanente de comunidade”, no sentido de, em caso de conflito, deverem prevalecer sempre os bens jurídicos comunitários974. Há, então, “factores objectivos que condicionam (…) o poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais”. De facto, esse poder será maior se o bem jurídico protegido pelo direito fundamental tiver uma natureza eminentemente pessoal, ou seja, se a protecção se dirigir sobretudo aos próprios interesses do indivíduo; será menor se o direito fundamental em jogo tiver em vista também ou sobretudo bens jurídicos relevantes para a comunidade, ou seja, quando se trate de direitos que prosseguem também interesses públicos, como é, por exemplo, o caso dos direitos de participação política975. Existem, efectivamente, “direitos fundamentais que são atribuídos aos indivíduos, mas cujo exercício desempenha objectivamente uma (…) função social, institucional ou democrática”, que pode resultar “indiscutivelmente afectada com a renúncia”976. Em virtude disso, o problema da renúncia coloca-se com mais frequência em relação aos direitos fundamentais que protegem bens jurídicos pessoais, pois a disposição individual destes direitos confronta-se com menos obstáculos do que a disposição de direitos que protegem bens jurídicos que se refiram de uma forma decisiva à comunidade977. Não basta, contudo, determinar o “carácter pessoal ou social dos bens protegidos de direitos fundamentais” para decidir se a renúncia deve ou não ser 974 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 113. Este parece ser também o entendimento do Tribunal Constitucional alemão, no caso Apotheken, BVerfGE 7, pp. 377 ss, ao contrariar a decisão do Tribunal Administrativo que considerava “que os direitos fundamentais não deviam prevalecer quando se fizesse perigar bens fundamentais da colectividade”. O BVerfG entendeu, para além disso, que “só deverão limitar a liberdade de disposição individual os interesses públicos que são eles mesmos elementos de protecção do direito fundamental ou então se encontrem ancorados no Direito Constitucional”. Nesse sentido, GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., p. 930. 975 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 323. Também JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., pp. 864 e 865, refere que um dos elementos a ter em conta na aferição da validade de uma dada renúncia diz respeito à questão de saber se o direito em causa visa proteger essencialmente um bem público ou se protege sobretudo interesses individuais. 976 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 293 e 294. 977 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 911. 256 admissível, uma vez que “não é a natureza abstracta da posição de direito fundamental que determina decisivamente a sua disponibilidade, mas antes o balanceamento dos interesses e razões contrárias que, a propósito da disponibilidade, se projectam e confrontam na situação concreta de renúncia”, ainda que nesse balanceamento se deva ter em conta se são afectados interesses públicos ou apenas interesses do próprio sujeito que renuncia978. Os direitos pessoais, por exemplo, “reforçam o direito de autodeterminação subjacente à renúncia a direitos fundamentais”, o que não significa, no entanto, que a renúncia no caso concreto tenha de ser sempre admissível979. Até porque esta é muitas vezes uma fronteira difícil de traçar, já que alguns dos bens jurídicos pessoais protegidos por normas de direitos fundamentais, pela importância que assumem, “constituem simultaneamente (…) valores comunitários”, o que origina, frequentemente, posições distintas quanto a esta questão980. Em última análise, poderá defender-se a “indisponibilidade de um bem pessoal”, fundamentando-se essa indisponibilidade numa ideia de protecção do próprio indivíduo que renuncia981, mas apenas nas situações extremas em que admitimos que pode ter lugar uma defesa de uma pessoa capaz contra si própria, ou seja, quando estejam em causa as possibilidades da sua “autodeterminação futura”. O facto de preponderar em alguns direitos fundamentais, à partida, um dos lados, não significa que não intervenham outros aspectos que podem novamente relativizar o carácter inicial do direito. A divisão entre estes tipos de direitos tem a virtualidade de realçar um aspecto a atender na ponderação a efectuar, mas em caso algum pode ver-se aqui a solução para o problema da 978 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 323 e 324. Este Autor considera que é possível, “em nome da relevância extrema que (…) [certos direitos fundamentais pessoais] apresentam e da sua ligação íntima à dignidade da pessoa defender a sua indisponibilidade (veja-se a discussão sobre a eutanásia)”. Não nos parece, contudo, que possa haver direitos pessoais que sejam considerados à partida como indisponíveis. 979 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 184. 980 Considerando que são “direitos relativos a bens que, sendo pessoais, constituem simultaneamente (…) valores comunitários”, por exemplo: a “vida”, a “integridade física”, a “identidade pessoal”, a “cidadania”, a “informação jornalística” e o “segredo de voto”, ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 312. 981 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 323 e 324. 257 renúncia982, uma vez que a questão da maior ou menor disponibilidade dos direitos, liberdades e garantias não se soluciona em abstracto983. Também o facto de os direitos fundamentais gozarem de uma dupla dimensão tem significado para o problema da sua disponibilidade. Se, no caso concreto, há uma consequência que coloca em perigo a dimensão objectiva do direito, tal deve ser devidamente pesado na ponderação984. É, por isso, essencial aferir se na renúncia em causa se atenta realmente contra a dimensão objectiva do direito985. Vimos já que, dependendo das circunstâncias do caso, a renúncia não tem necessariamente de implicar que se atinja o direito na sua dimensão objectiva986, pelo que nem todas as renúncias a direitos fundamentais causam um dano na ordem objectiva geral estabelecida através dos direitos fundamentais987. Finalmente, não consideramos relevante, nesta sede, o recurso às 982 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 188 e 191. Este Autor considera que há, para além disso, alguns direitos fundamentais em relação aos quais “não é possível uma clara ordenação como direitos primacialmente individuais ou da colectividade”. Será o caso dos “direitos de comunicação (opinião, informação, expressão artística e ciência), mas também das garantias institucionais que se baseiam nos direitos fundamentais”. 983 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 313. 984 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 214. 985 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 323. 986 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 297 e 323. Exemplificando esta distinção, o Autor entende que dependendo das circunstâncias concretas do caso poderá haver situações em que, apesar da função democrática da liberdade de opinião e de imprensa, se considera admissível a renúncia a estes direitos. Ainda que se trate do mesmo direito fundamental, terá consequências diferentes na sua dimensão objectiva “a renúncia de alguém que exerce funções de porta voz do Governo, a publicitar, na imprensa, posições próprias divergentes das orientações governamentais”, da renúncia “de um director de informação à garantia do pluralismo informativo” 987 REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., pp. 180 e 181. Para o Autor, este raciocínio é, por exemplo, aplicável aos direitos de participação política. No que diz respeito ao direito ao segredo de voto, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 322 e 323, defende que sendo este “um direito em princípio indisponível, uma vez que é concedido” tendo também em conta a “salvaguarda dos mecanismos da vida política democrática, pode vir a ser (…) deixado à disponibilidade do titular, quando este, por razões objectivamente comprováveis, não esteja, por exemplo, em condições físicas que lhe permitam o exercício autónomo do direito”. Parecenos ser precisamente essa a posição seguida pela jurisprudência alemã: quanto à renúncia ao segredo de voto, esta foi unanimemente considerada inadmissível, ainda que voluntária. Em virtude “do significado do segredo de voto para o processo democrático, entendeu-se que nesses casos deve prevalecer o interesse público sobre o interesse particular numa renúncia”. Ver, por exemplo, OVGE 14, pp. 257 ss. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 72. No entanto, o BVerfG considerou admissível a renúncia ao segredo de voto nos casos em que a pessoa não seja capaz de preencher o boletim de voto sozinha. Ver BVerfGE 21, pp. 200 ss. 258 teorias tradicionais de direitos fundamentais na determinação da maior ou menor disponibilidade dos direitos, já que, como tivemos oportunidade de ver, num ordenamento jurídico pluralista se tem de atribuir aos direitos fundamentais “uma multifuncionalidade, para acentuar todas e cada uma das funções que as teorias de direitos fundamentais captavam unilateralmente”988. O problema da maior ou menor disponibilidade das posições subjectivas de direitos fundamentais não merece um tratamento distinto na renúncia entre particulares e na renúncia perante o Estado. Também na renúncia entre privados é relevante, para a ponderação a realizar, perceber se estamos perante direitos que protegem predominantemente interesses pessoais ou que prosseguem também ou predominantemente interesses públicos. Ainda assim, só é possível chegar a uma solução atendendo às particularidades dos casos concretos. Não basta, portanto, aferir o significado dos direitos no sistema geral de direitos fundamentais e da Constituição, optar por uma das diferentes teorias de direitos fundamentais ou ainda apelar à dimensão objectiva dos direitos para resolver a questão989. Uma vez que este problema só é passível de ser resolvido perante as circunstâncias concretas do caso990, é indispensável recorrer aos restantes tópicos de argumentação. Sendo que não existem, na maioria das situações, “orientações gerais” quanto à questão de saber em que medida o titular do direito pode dele dispor, o que é decisivo aqui é, em última análise, “uma ponderação ampla de todas as circunstâncias”991. Consequentemente, julgamos que não há, à partida, direitos indisponíveis992. 988 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1402. 989 Considerando que “tem sido difícil, (…) na doutrina portuguesa, uma real aceitação da renúncia em termos generalizados, em razão de uma consideração (…) exacerbada (…) da dimensão objectiva dos direitos fundamentais, ver LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 376. 990 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 313. 991 PHILIPP S. FISCHINGER, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 810. 992 Excluímos aqui, obviamente, os direitos-deveres. TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, cit., pp. 268 e 269, entende que mesmo no direito à vida, que grande parte da doutrina considera um direito indisponível, esta indisponibilidade não é total, pois por um lado, “o suicídio não é punido” (só faria sentido, claro, punir o suicídio tentado ou falhado)”; “por outro lado, embora o auxílio ao suicídio seja punido, ele não é punido como homicídio”. De certo modo, o consentimento do suicida “atenua a pena” porque a pessoa que auxilia é punida com 259 2.6. A exigência de acto legislativo prévio O último tópico que vamos tratar refere-se à exigência de acto legislativo prévio para que se possa verificar uma disposição sobre posições subjectivas de direitos fundamentais. Uma vez que “em Estado de Direito toda a actuação da Administração no domínio dos direitos fundamentais carece de previsão e fundamento legislativos, ou, pelo menos, de uma habilitação por norma jurídica”993, o problema que se coloca nesta sede é o de determinar a relevância desta exigência na renúncia a direitos fundamentais. Nas situações de renúncia perante o Estado tem-se admitido que faz sentido invocar a reserva de lei na problemática da renúncia quer através do recurso ao princípio da legalidade994 quer por se aplicar neste âmbito a sistemática tradicional das restrições a direitos fundamentais995. uma pena mais leve do que a pena de homicídio. Para a Autora, olhando para estes exemplos constatamos “que a indisponibilidade não é tão absoluta como isso”. Considerando, pelo contrário, que o direito à vida é indisponível, ver JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 479; GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português. Parte Geral, cit., p. 142; AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 282; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, cit., p. 124. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 140, também nota 431, considera que na renúncia deve existir, numa determinada situação concreta, o “poder jurídico de dispor, no sentido da sua redução, numa certa parcela dos efeitos jurídicos de protecção de um direito fundamental”. O Autor considera que não existe essa margem de decisão “na generalidade dos direitos, liberdades e garantias consagrados em regras, nos direitos, liberdades e garantias de participação política, nos direitos processuais e porventura até na generalidade dos direitos sociais”. Assim, entende que não são renunciáveis as normas de garantia enunciadas no art. 20.º, no art. 22.º, no art. 23.º, no n.º 2 do art. 24.º, no n.º 2 do art. 25.º, nos arts. 28.º a 33.º, no n.º 2 do art. 37.º, no n.º 4 do art. 41.º e nos arts. 48.º a 52.º da CRP. Também o TEDH, no caso Albert e Le Compte v. Bélgica, http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Albert%20%7C%20et%2 0%7C%20Le%20%7C%20Compte&sessionid=51617205&skin=hudoc-en, considerou que “a natureza de alguns dos direitos salvaguardados na Convenção” exclui a possibilidade de renunciar ao seu exercício, o que não se poderá, no entanto, dizer em relação a outros direitos. Também no caso De Wilde, Ooms e Versyp v. Bélgica, http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view. asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=de%20%7C%20wilde&sessionid=51618620& skin=hudoc-en, relativo a dois indivíduos que anuíram voluntariamente numa privação da sua liberdade, o TEDH entende que “o direito à liberdade é demasiado importante numa sociedade democrática, no sentido atribuído pela Convenção, para que a pessoa possa perder o benefício da protecção da Convenção pela simples razão de se entregar para se ser detido”. Ver também VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, in Jurisprudência Constitucional, n.º 14, 2007, p. 87. 993 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 310. 994 Criticando estas posições, ver GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 133 e 134. 995 Considerando que “mesmo a aceitar-se uma dimensão voluntária da restrição de direitos a 260 Uma vez que fazemos referência à doutrina alemã, convém distinguir aqui entre reserva de lei entendida “no sentido comum de reserva de lei enquanto domínio material ou funcional reservado à lei ou ao legislador”, só podendo a administração agir desde que legalmente autorizada a fazê-lo, e ainda reserva de lei no “sentido de que há direitos fundamentais constitucionalmente garantidos com uma validade condicionada ou, pelo menos, com uma abertura à intervenção dos poderes constituídos expressamente prevista”996. Assim, há Autores que defendem que também as especiais reservas de lei, enquanto manifestações da reserva geral de lei, são significativas para a problemática da renúncia a posições de direitos fundamentais997. Entre nós o conceito de reserva de lei é utilizado no primeiro sentido998. Através deste conceito “pretende-se delimitar um conjunto de matérias” que apenas podem ser objecto de regulação por acto legislativo. Quando se exige, para além disso, que o acto legislativo em causa seja proveniente do Parlamento”, estamos a falar de uma reserva de Parlamento999. vontade pura do particular não pode conduzir a uma relativização completa do princípio da reserva de lei”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463. 996 Sobre esta distinção, ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 17 e 19 nota 14. Também ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 61, distingue entre reserva de lei em sentido restrito, enquanto domínio material ou funcional reservado à lei ou ao legislador e em sentido amplo, significando que os direitos fundamentais “só podem ser restringidos na medida em que a Constituição lhes estabeleça limites expressos ou implícitos”. 997 É o caso de WALTER LEISNER, Grundrechte und Privatrecht, Verlag C. H. Beck, München, 1960, pp. 384 ss. Ver ainda sobre esta questão GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., pp. 928 e 929. 998 Sobre o princípio da reserva de lei, ver na doutrina portuguesa JORGE MIRANDA, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990, pp. 270 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 703 ss; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit.; MANUEL AFONSO VAZ, “A reserva de Lei na Constituição Portuguesa de 1976”, in Anuário Português de Direito Constitucional, Vol. V, 2006, pp. 143 ss; MARIA LÚCIA AMARAL, “Reserva de Lei”, in Pólis – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. 5, Editorial Verbo, Lisboa, 1987, pp. 428 ss; ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, “Princípio da legalidade e administração constitutiva”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LVII, 1981, pp. 169 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Autonomia regulamentar e reserva de lei”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Vol. I, Coimbra, 1984, pp. 1 ss; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987. 999 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 724 – 726; também MANUEL AFONSO VAZ, “A reserva de Lei na Constituição Portuguesa de 261 Convém, no entanto, ter em consideração as reflexões tecidas pela doutrina alemã acerca das especiais reservas de lei para ver se estas são transponíveis para a nossa ordem jurídica, já que, no que se refere às restrições a direitos fundamentais, também a nossa Constituição consagra expressamente quais os direitos fundamentais passíveis de restrição. Na Alemanha discute-se se as reservas especiais de lei devem “estabelecer o quadro dentro do qual a renúncia a direitos fundamentais é admissível”, ou seja, se os direitos fundamentais são apenas renunciáveis quando a Constituição permite a sua restrição por lei. Tem-se reconhecido, no entanto, que tal posição deve ser de afastar, pois consubstanciando-se a renúncia a direitos fundamentais num acto de exercício de liberdade, não faz sentido a sua equiparação a uma ingerência estatal1000. Esta concepção “transfere os limites de intervenção direccionados para as entidades públicas de uma forma indiferenciada para os titulares de direitos fundamentais”1001. Assim, as reservas especiais de lei da Constituição devem apenas relevar quando tenham lugar intervenções restritivas1002. Até porque mesmo em direitos fundamentais onde não se consagra expressamente a possiblidade de restrição, poderá ser necessário o legislador intervir para resolver eventuais conflitos1003, não se compreendendo porque é que o próprio titular dos direitos 1976”, cit., p. 148. Os direitos, liberdades e garantias fazem, em geral, parte da reserva relativa da Assembleia da República, o que está previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 165.º da Constituição. Há, no entanto, determinadas matérias relativas a direitos, liberdades e garantias que estão abrangidas pela reserva absoluta da Assembleia da República (AR). É o caso das alíneas a), b), c), e), h), i), j), l), m) e o) do art. 164º. Aqui a Constituição confere exclusiva e irrenunciavelmente à AR a competência política para disciplinar estas matérias. 1000 GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 134 e 135. 1001 GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., pp. 928 e 929; também MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 177. 1002 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 61 e 62; também KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 24. 1003 Sobre a problemática das restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, ver, entre nós, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit.; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1276 e 1277; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais”, cit., p. 294; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 388 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 265 ss; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 370 ss; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., pp. 160 ss; JORGE BACELAR 262 não haveria de poder a eles renunciar1004. Tal argumentação é também de afastar na renúncia entre particulares, onde não existe sequer uma restrição de direitos em sentido próprio. Uma vez que a sistemática das reservas especiais de lei não traz qualquer resposta para o problema da renúncia, vamos agora ver em que termos é que, na renúncia perante o Estado, a reserva de lei no seu sentido restrito, de acto legislativo, tem sido considerada relevante enquanto limite dessa mesma renúncia. É que se se entender que toda a renúncia exige uma “prévia e expressa autorização legal o alcance do instituto resulta seriamente diminuído, pois o poder de disposição de um particular sobre os seus direitos fundamentais seria um poder à mercê do legislador, dependendo da autorização deste”1005. Neste sentido, reserva de lei significa, como vimos, “espaço reservado ao legislador ou ao Parlamento, no sentido de excluir os restantes poderes de quaisquer intervenções não previamente reguladas, determinadas ou autorizadas pela lei respectiva”1006. O princípio da reserva de lei significa, portanto, que a prática de um acto da Administração tem de estar prevista na lei1007. Este princípio “produz efeitos nos dois sentidos da relação entre a Lei e a Administração: por um lado, proíbe a Administração de invadir o correspondente domínio da realidade sem autorização expressa da lei, quer no âmbito da sua actividade concreta (…) quer no uso de poderes normativos; por outro lado, proíbe o legislador de delegar a sua competência (…) na Administração (…), obrigando-o (…) a disciplinar as matérias em causa com um determinado grau de intensidade”1008. GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp. 1110 – 1111; JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., pp. 455 ss; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., pp. 199 ss; JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, “A hierarquia das normas constitucionais e a sua função na protecção dos direitos fundamentais”, in BMJ, n.º 396, 1990, pp. 16 - 18. 1004 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 177 e 178. 1005 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 310. 1006 Ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 17, nota 14. 1007 SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit., p. 18. 1008 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Autonomia regulamentar e reserva de lei”, cit., pp. 7 e 263 Na renúncia perante o Estado tem-se defendido que, pelo menos em certa medida, é necessário respeitar o princípio da reserva de lei para que o acto de disposição seja admissível. É que, se assim não fosse, as autoridades públicas poderiam, apenas com base na renúncia do particular, restringir o seu direito fundamental. Jorge Reis Novais sustenta que “a restrição a direitos fundamentais operada através da renúncia se manifesta a dois níveis: num primeiro nível, a restrição ocorre, desde logo, quando o particular se vincula juridicamente a não exercer o direito fundamental; (…) num segundo nível (…), quando, por força da renúncia, a entidade pública, porque foi habilitada a isso pelo particular, intervém (…) numa área protegida de direito fundamental1009. O Autor entende que no primeiro nível, isto é, quando o particular emite a sua declaração de vontade, a restrição que daí decorre não tem de obedecer ao princípio da reserva de lei, porque “essa restrição está tão intimamente associada à dimensão da renúncia como exercício de direitos fundamentais que a distinção entre as duas dimensões só tem valor heurístico”. No segundo nível, apenas será de aplicar o princípio da reserva de lei quando a renúncia envolva uma actuação administrativa que restrinja um direito fundamental. Quando a Administração se limita à “pura e simples recepção da declaração de renúncia”, também não será de exigir um fundamento legislativo, “por falta de objecto”. Para além disso, mesmo quando se verifica uma actuação restritiva da Administração, deve ainda atender-se à circunstância de ter havido a anuência do particular que renunciou ao seu direito fundamental, para determinar se no caso em análise as funções prosseguidas por este princípio justificam a sua aplicação1010. Há, em contrapartida, Autores que entendem que a reserva de lei é um argumento débil para a doutrina da renúncia, alegando que esta visa essencialmente garantir a autonomia do titular do direito. Sendo a renúncia a direitos fundamentais livre uma manifestação dessa autonomia, não interfere com o sentido e finalidade da reserva de lei. Se assim fosse, este princípio deixaria de existir a favor do indivíduo, convertendo-se numa restrição da 8. 1009 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 315. 1010 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 315 - 317. 264 liberdade1011. Se se considerar que o que fundamenta a reserva de lei é o facto de as restrições aos bens jurídicos protegidos dos cidadãos só deverem ter lugar com o seu consentimento (que se concretiza através do consenso dos seus representantes) parece que a finalidade protectora do princípio da legalidade deixa de se justificar a partir do momento em que o próprio autoriza essa mesma restrição1012. No entanto, é contestável a “redução” do papel da reserva de lei à garantia da autonomia do titular do direito, bem como a consequente exclusão da sua relevância para a renúncia a direitos fundamentais1013. Tal “redução” esquece que numa democracia parlamentar o princípio da reserva de lei poderá também exercer outras funções1014. Para Sérvulo Correia o princípio da legalidade administrativa pode desempenhar três funções distintas: a “garantística”, a de “indirizzo” e a de “factor de justiça e racionalidade administrativa”1015. Ora ainda que nas 1011 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 180 e 181. É, por exemplo, o caso de RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 142; JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 534; REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 175; JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 99. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 147 e 148, considera que “a componente democrática da reserva de lei exerce o importante papel de garantir a influência democrática do Parlamento em relação à Administração, não devendo, no entanto, ser atendível na renúncia a direitos fundamentais graças às suas consequências restritivas da liberdade”. Apenas no “caso improvável de a função do Parlamento, enquanto órgão de legitimação democrática, estar em perigo é que a renúncia deve ser considerada inadmissível”. 1012 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 181; KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 64 e 65. 1013 Embora não se negue “a estreita ligação entre liberdade e lei”, “que remonta ao constitucionalismo liberal”. Nesse sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 365. 1014 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 182 e 183; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p.142. Também GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 929, sustenta que “hoje a reserva de lei se encontra desligada da sua relação com a fórmula ultrapassada de intervenções contra a liberdade e a propriedade e passou a ter um novo fundamento, considerando a sua função em Estado de Direito democrático. Esta “componente democrática” exige que também na renúncia a posições de direitos fundamentais “a reserva geral de lei actue como uma garantia do sistema representativo”, servindo para “assegurar o primado do legislador no seu âmbito de competência”. Assim, para ele, “a renúncia a posições de direitos fundamentais não produz efeitos onde a tarefa de condução política do Parlamento subsiste”. JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., p. 872, considera que “as renúncias que se fundam em actos legislativos parecem mais adequadas para a salvaguarda de interesses públicos, uma vez que a actividade legislativa está sujeita a escrutínio (….) público”. 1015 SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit., 265 situações de renúncia a função garantística da reserva resulte “fortemente atenuada ou supérflua” graças ao consentimento do interessado, tudo passará por saber se, “no caso concreto, têm cabimento as razões de indirizzo político e de racionalização da actividade administrativa”. Existem, portanto, outras razões que podem justificar a manutenção da exigência desta reserva1016. Para além disso, “o princípio fundamental do Estado de direito democrático não é o de que o que a Constituição não proíbe é permitido (…), mas sim o de que os órgãos do Estado só têm competência para fazer aquilo que a Constituição lhes permite”1017. No que se refere à actividade da Administração “a regra geral (…) não é o princípio da liberdade, é o princípio da competência”1018. Desta feita, só não terá de se respeitar a exigência de reserva de lei quando a renúncia envolva também “uma verdadeira restrição heterónoma”, se esta não cumprir “a sua vocação originária de protecção individual”, nem devam as outras funções que justificam este princípio “sobrelevar, no caso concreto, as razões que decorrem do princípio de que, tanto quanto possível, deve o Estado deixar ao indivíduo a livre prossecução dos seus interesses”1019. pp. 188 e 769. Para este Autor, a “função garantística” refere-se “à garantia da verificação de requisitos mínimos de parametricidade e previsibilidade da actuação da administração que afectem o ‘status negativus’ dos particulares ou que conformem o seu ‘status positivus’ em termos que eventualmente possam contender com imperativos do Estado social de Direito”; a “função democrática ou de indirizzo” diz respeito “à salvaguarda da função de direcção política dos órgãos a quem a Constituição reserva, em atenção às matérias, a primeira normação substantiva, ou, ao menos, a habilitação necessária à disciplina das relações através de normas secundárias”; a “função de racionalidade administrativa” refere-se “à necessidade de uma disciplina homogénea da actuação administrativa e da sujeição desta à prossecução de interesses públicos que se imponham como dado externo de legalidade objectiva aos órgãos autores de actos concretos”. 1016 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 312 e 317. 1017 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 247. Também SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit., p. 500, considera que, na ordem jurídica portuguesa, se estabelece um limite de competência no que respeita à autonomia pública. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 311 e nota 81 entende que, embora este último Autor “não trate especificamente da renúncia a direitos fundamentais”, os argumentos por ele invocados para defender a tese de que não é possível “o consentimento do interessado fundamentar qualquer excepção à reserva de lei no domínio dos direitos fundamentais”, são “aplicáveis à renúncia a direitos fundamentais”. 1018 DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Legalidade (Princípio da)” in Pólis – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. 3, Editorial Verbo, Lisboa, 1985, p. 978. 1019 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 318 e 319. Este Autor entende ainda que, “quando a actuação da Administração se realiza num quadro negocial ou 266 Por outro lado, não basta que se verifique uma renúncia para que a função garantística do princípio da reserva de lei se torne supérflua, pois há situações em que se verifica um “desequilíbrio do poder de negociação”, desequilíbrio esse que pode interferir com a voluntariedade da declaração de renúncia. Em algumas dessas situações, a reserva de lei cumprirá “uma função de protecção contra decisões de consentimento do particular que possam afectar as condições do livre desenvolvimento da sua personalidade e de uma existência digna”1020. A reserva de lei visa sobretudo proteger os indivíduos que não estão em posição de se valerem a si mesmos, ou seja, que não conseguem, por si só, realizar os seus interesses protegidos pelos direitos fundamentais1021. Perante isto, a questão que devemos colocar é se se justifica a aplicação do princípio da reserva de lei na renúncia entre privados, sendo que “o significado da autonomia privada consiste, precisamente, em deixar nas mãos dos indivíduos a conformação das suas relações jurídicas”1022. Antes do mais, não faz sentido na renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares a distinção entre “dois níveis” que entendemos ser pertinente na renúncia perante o Estado. Não há, nestes casos, uma restrição em sentido próprio nem um acto da Administração que careça de previsão e fundamento legislativos ou, pelo menos, de uma habilitação por norma jurídica, mas sim uma actuação de um particular. Ora ao contrário do Estado, que apenas está jurídico-constitucionalmente autorizado a agir quando tenha uma competência positiva para tal, o particular pode sempre fazê-lo, desde que a sua acção não seja proibida. com o assentimento do particular afectado, as exigências da reserva de lei (…) devem bastarse com um grau de densidade da norma habilitadora muito menor do que aquele que é exigido para o comum dos actos administrativos ablativos”. 1020 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 318 e 319. 1021 ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 61 e ALBERT BLECKMANN, Staatsrecht II – Die Grundrechte, cit., pp. 495 e 496. Será o caso, por exemplo, da legislação laboral ou do regime do arrendamento. 1022 REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 175, que responde negativamente a esta questão. Considerando também que, quando se trate de renúncia a direitos fundamentais no âmbito de relações jurídicas privadas, esta exigência, em princípio, não faz sentido, uma vez que o princípio da legalidade vale para a actuação restritiva do Estado, mas não para a actuação de privados, ver KLAUS RÜDIGER WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche Rechte, cit., pp. 116 e 117. 267 Tal não quer dizer, contudo, que uma vez que também na renúncia entre particulares se verifica um enfraquecimento de posições individuais de direitos fundamentais não possam relevar, nesta sede, as razões que invocamos para a aplicação da reserva de lei na renúncia perante o Estado. É óbvio que a questão não se coloca aqui nos mesmos termos porque efectivamente não estamos perante uma actuação de um ente público, o que significa que não se trata de saber se é legítimo que o consentimento do particular desvincule a Administração do respeito pelo princípio da reserva de lei. Mas pensamos que há situações em que poderá ser relevante que a possibilidade de renúncia perante outros particulares seja prevista e regulada através de um acto legislativo prévio, o que se pode justificar quer por “razões garantísticas” quer por razões de “indirizzo político”. Vimos que a função garantística do princípio se manifesta igualmente quando se verifica um “desequilíbrio do poder de negociação”, já que esse desequilíbrio pode interferir com a voluntariedade da declaração de renúncia. Ora a função garantística, nesta sua dimensão, tem também aplicação na renúncia perante outros particulares, maxime em situações em que uma das partes seja dotada de poderes de facto. Ainda que o destinatário da renúncia não seja uma entidade pública, quem renuncia encontra-se numa posição de maior fragilidade, o que poderá legitimar a exigência de um acto legislativo que venha estabelecer em que termos pode ter lugar o acto de disposição, de modo a garantir a voluntariedade do consentimento. Por outro lado, também na renúncia entre particulares poderá fazer sentido exigir-se um acto legislativo prévio graças à função de “indirizzo”, função esta que tem como finalidade garantir a competência de “direcção política”1023. Para Jorge Reis Novais é precisamente essa a razão que justifica que se entenda que “não seria legítimo que, sem a correspondente previsão legal, a Administração pudesse acordar com o interessado a substituição de uma pena ou de uma medida de segurança por uma castração consentida”. Está aqui em jogo a “compatibilização dos direitos fundamentais com a definição de políticas criminais”, o que exige uma “prévia decisão e 1023 SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit., p. 769; também MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 183. 268 regulamentação por parte dos órgãos democraticamente legitimados”1024. Ora há também situações de renúncia entre particulares que contendem com este tipo de questões, o que justifica que o Estado, que vai atribuir força jurídica à renúncia, considere que a importância da matéria em causa exige uma lei prévia para que esse acto de disposição possa ter lugar1025. Em conformidade com isso, ainda que não se possa propriamente falar em aplicação do princípio de reserva de lei na renúncia nas relações entre particulares, uma vez que esta não envolve qualquer intervenção da Administração, quando haja razões garantísticas ou relativas à importância das matérias que o justifiquem, poderá ser de exigir um acto legislativo prévio que venha regulamentar os termos em que poderá ser exercido o poder de disposição. A regra, no entanto, é a de que a renúncia não carece de fundamento legal habilitante1026. 1024 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 317 e 318. 1025 Parece-nos ser esse o caso da Lei n.º 12/93 de 22 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 22/07 de 29 de Junho, relativa ao transplante de órgãos e que estabelece regras quanto à doação, bem como da Lei n.º 46/04 de 19 de Agosto, sobre o regime jurídico aplicável aos ensaios clínicos com medicamentos de uso humano. Sobre esta última Lei, ver ainda ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A transposição da Directiva sobre Ensaios Clínicos de Medicamentos para uso humano no direito português”, in Lex Medicinae, n.º 11, 2009. pp. 5 ss. 1026 A nossa Constituição, em matéria de direitos fundamentais, estabelece não só uma reserva de lei, mas também uma reserva de Parlamento. Se tal acontece é porque se entende que se devem “reservar para as formas de criação normativa que no sistema jurídico-constitucional se presumem portadoras de mais garantias (que podem ser simplesmente técnicas) os ataques aos valores que mais sensibilizam uma determinada comunidade”. Nesse sentido, ver ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, “Princípio da legalidade e administração constitutiva”, cit., p. 181. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 725, entende que “a publicidade que rodeia a sua discussão, o acompanhamento dos debates pela opinião pública, a sua difusão pelas mass media [e] a possibilidade de intervenção de todos os partidos representados” justificam que a CRP “reserve à lei formal da Assembleia a disciplina de certas matérias”. MANUEL AFONSO VAZ, “A reserva de Lei na Constituição Portuguesa de 1976”, cit., p. 153, estabelece que a CRP, através da reserva do Parlamento consagrada nos arts. 164.º e 165.º, “textualmente determina aquilo que a doutrina e jurisprudência alemãs procuram estabelecer através da Wesentlichkeitstheorie”. Segundo a teoria da essencialidade “uma decisão parlamentar será necessária quando se trate de uma matéria que justifica a colaboração de várias instâncias, um discurso público e uma decisão através de um órgão plural”. O critério da essencialidade é útil na medida em que remete para questões políticas controversas que exigem uma ponderação de interesses divergentes. Ora essa ponderação deverá ter lugar, preferencialmente, numa instância pluralista e através de um processo público. Ver MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 190 – 192; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926; JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 852. Ainda que estas considerações digam respeito à repartição de competências entre diferentes órgãos de soberania, pensamos que poderão ser, em alguma medida, transponíveis para a questão que estamos a tratar. Na verdade, há 269 Capítulo IV: Tendências paternalistas na doutrina e na jurisprudência: análise de alguns casos Vamos agora analisar alguns casos que entendemos que se consubstanciam em situações de renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares1027, para ver de que modo é que este tipo de questões tem sido abordado e decidido em diferentes instâncias jurisdicionais. Vários dos casos em análise foram resolvidos através da invocação do princípio da dignidade da pessoa humana, o que demonstra que o problema central da densificação deste conceito “não tem um relevo meramente teórico, pondo-se em diversas ocasiões nos tribunais em relação a casos de disposição contratual de atributos da pessoa”1028. Pode efectivamente encontrar-se a invocação do respeito pela dignidade da pessoa humana, de modo a justificar limitações à liberdade, em várias decisões de diferentes instâncias jurisdicionais. Vamos, consequentemente, ver algumas dessas decisões, que consideramos que ilustram bem o problema que estamos a tratar. Temos, antes do mais, o primeiro caso Peep-Show, do BVerwG1029, que se refere a espectáculos de strip-tease para um espectador individual que têm lugar dentro de cabinas fechadas, mediante remuneração. Neste caso o situações de renúncia entre particulares que se referem a questões políticas controversas e que exigem uma ponderação de interesses divergentes, pelo que se poderá justificar a criação de uma lei que vem regular os termos em que essa renúncia pode vir a ter lugar. MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., pp. 104 ss, entende ainda que esta teoria é relevante para a distribuição de competências entre legislador e juiz constitucional. Nos Estados Unidos, em termos de repartição de competências entre Tribunais e Parlamento, é de referir a political question doctrine: esta diz respeito a uma decisão judicial substantiva na qual se considera que o problema constitucional relativo ao âmbito de uma determinada disposição, ou alguns aspectos de uma determinada disposição, devem ser resolvidos não pela Supreme Court, mas antes por outro órgão de soberania. Ver, mais desenvolvidamente, JESSE H CHOPER, “The political question doctrine: suggested criteria”, http://ssrn.com/abstract=757964 (última visita a 12.04.2010), pp. 3 e 4; PAUL DALY, “Justiciability and the ‘Political Question’ Doctrine”, in Public Law, January, 2010, p. 161. 1027 Ou que podem também traduzir-se em situações de renúncia entre entidades privadas. Há, de facto, situações de renúncia que se podem colocar quer perante o Estado quer perante privados, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Assim, por exemplo, uma situação de eutanásia poderá consubstanciar-se numa renúncia perante o Estado se esta tiver lugar numa instituição pública mas já se traduzirá numa renúncia entre privados se o consentimento for dado a outro particular. 1028 GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 829. 1029 BVerwGE 64, pp. 274 ss. 270 Tribunal entendeu haver uma renúncia ilegítima à dignidade da pessoa humana por parte das mulheres que neles participam. Para o Tribunal, as circunstâncias específicas destes espectáculos distinguem-nos dos tradicionais espectáculos de strip-tease, já que implicam que as mulheres que neles tomam parte sejam tratadas como uma “mercadoria”, o que envolve a sua “instrumentalização”, violadora da dignidade e, por conseguinte, contrária os bons costumes. Quanto a esta decisão é, antes do mais, interessante constatar que o Tribunal densifica o conceito de bons costumes recorrendo aos princípios constitucionais, em particular, ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, reconheceu ainda que a dignidade não é apenas passível de ser posta em causa pelo Estado, podendo também sê-lo por privados. Já quanto à violação do princípio da dignidade propriamente dita, a resposta dada pelo Tribunal quanto ao sentido a atribuir ao conceito de dignidade é clara: esta consiste “num valor objectivo, enquanto tal subtraído da disponibilidade da pessoa interessada” cabendo aos órgãos jurisdicionais “a competência para determinar o seu conteúdo”1030. Esta decisão do BVerwG foi muito criticada pela doutrina, que denunciou os riscos de um “absolutismo dos valores (Wertabsolutismus)”1031. 1030 Nesse sentido, GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 834. 1031 Sobre esta decisão, ver WOLFRAM HÖFLING, “Menschenwürde und Gute Sitten”, in NJW, n.º 29, 1983, pp. 1582 – 1585; ALFONS GERN, “Menschenwürde und Gute Sitten”, in NJW, n.º 29, 1983, pp. 1585 – 1590; ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, cit., p. 215; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 170 – 172; HENNING VON OLSHAUSEN, “Menschenwürde im Grundgesetz: Wertabsolutismus oder Selbstbestimmung?”, in NJW, n.º 40, 1982, pp. 2221 ss; ANDREAS GRONIMUS, “Forum: noch einmal Peep-Show und Menschenwürde” in JuS, n.º 3, 1985; THOMAS DISCHER, “Die Peep-Show-Urteile des BVerwG”, in JuS, n.º 8, 1991; BODO PIEROTH, – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 105; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., pp. 148 ss. HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 219, entende que esta decisão “ilustra o real perigo do recurso a argumentos referentes à dignidade ‘para justificar restrições à liberdade dos indivíduos‘“. ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 144, defende que esta decisão é errada porque não está em causa a possibilidade de o indivíduo renunciar à dignidade, mas sim saber se pode “determinar por si mesmo a forma como se apresenta a terceiros ou no espaço público civil”. Convém, no entanto, referir, que em decisões posteriores sobre este tipo de espectáculos “o Tribunal não fundamentou a sua decisão na violação do princípio da dignidade mas antes nas convicções da maioria da população, segundo as quais estes espectáculos deveriam continuar a ser considerados indecentes”. Nesse sentido, ROLF SCHMIDT, Grundrechte, cit., p. 120, nota 384. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 1, considera que a mesma questão se pode também colocar quanto a eventos que incluem a exibição de relações sexuais em palco. Sobre esta questão, ver, o Parecer n.º 62/1995, da Procuradoria-Geral da República, http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/cef5659fd428518b80256617 271 O Tribunal sustenta que se verifica uma renúncia à dignidade por parte das mulheres que participam neste tipo de espectáculos, o que não é admissível, já que a dignidade é indisponível. No entanto, como tivemos oportunidade de ver, na renúncia não se trata tanto de saber se o titular pode dispor da sua dignidade mas antes de compreender em que medida lhe cabe determinar por si próprio o sentido que pretende atribuir à sua dignidade. Tratase de avaliar até que ponto pode a definição da dignidade depender do entendimento que o próprio tenha acerca do que é para si mais ou menos digno e, por outro lado, que limites pode o Estado impor a esta autodefinição. Uma vez que seguimos uma concepção de dignidade “como conceito aberto a um preenchimento onde impera a autonomia do interessado e o seu poder consequente de conformação da própria vida”1032, pensamos que o Tribunal decidiu erradamente ao pretender proteger a pessoa de si mesma1033. Esta decisão foi criticada por implicar uma “’objectivação’ paternalista da dignidade”1034, pois estamos aqui claramente perante uma medida restritiva que visa proteger a pessoa de si própria, não se verificando nenhuma das situações que podem legitimar essa protecção: que a pessoa não esteja em posição de consentir validamente ou quando a renúncia contenda com as suas possibilidades de “autodeterminação futura”. Tal decisão não foi uma pronúncia isolada, antes tendo constituído um precedente para a resolução de casos análogos. Também se afirmou a invalidade de contratos atinentes a “chat lines eróticos” recorrendo ao mesmo 00420807OpenDocument&Highlight=0,P000621995, onde se considera que “os espectáculos de sexo ao vivo não são, enquanto tais, ilegais, desde que essa sua natureza se encontre claramente anunciada nas respectivas afixações obrigatórias”. Mais recentemente, em 2002, o BVerwG foi chamado a pronunciar-se sobre uma autorização para um clube de swing (troca de casais), e nessa decisão considerou que não há qualquer lesão da dignidade na pertença a um clube deste tipo, uma vez que entende que a qualidade de sujeito dos participantes não é posta em causa. Um resumo desta decisão encontra-se disponível in http://www.juralotse.de/newsletter/nl69-005.shtml (última visita a 12.04.2010). 1032 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 61. 1033 INGO VON MÜNCH, “Die Würde des Menschen im Deutschen Verfassungsrecht”, cit., p. 38. Ver também ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, Mohr Siebeck, Tübingen 2002, pp. 81 ss. 1034 TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, cit., pp. 89 e 90. 272 tipo de argumentação1035. Outro caso relevante também do BVerwG1036 é o chamado caso Laserdrome, que é um jogo de entretenimento entre equipas e no qual se simulam homicídios através de raios lazer. Ainda que dele não resultem quaisquer consequências para a integridade física dos participantes, o Tribunal entendeu que a exploração comercial de um jogo que simula homicídios e implica uma “trivialização da violência” é contrária à dignidade da pessoa humana1037. Esta decisão causa alguma perplexidade porque se justifica a proibição de um mero jogo de entretenimento, que não envolve qualquer lesão na integridade física de quem nele participa voluntariamente, através de uma interpretação do princípio da dignidade como algo que pode ser imposto contra o próprio titular. Subjaz igualmente a este caso uma concepção de dignidade enquanto princípio que “se exprime pelo reconhecimento da liberdade individual mas que transcende esta última e que, por conseguinte, pode justificar restrições ao exercício das liberdades individuais”1038. Vimos já que uma tal concepção deve ser de afastar. 1035 De facto, outro caso também relacionado com este é o caso Telefonsex, disponível na NJW, n.º 51, 1995, pp. 3398 ss. Neste caso o Tribunal considerou que um contrato sobre ligações telefónicas com conteúdo sexual remuneradas é atentatório da dignidade da pessoa humana. Ver GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 835. 1036 BVerwGE 115, pp. 189 ss. 1037 Sobre esta decisão, assumindo uma postura crítica, ver STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., pp. 9 e 10; também DIRK HECKMANN, “Der praktische Fall – Öffentliches Recht: Laserdrom und öffentliche Ordnung”, in JuS, n.º 10, 1999, pp. 991 ss; TOBIAS AUBEL, “Das menschenunwürdige Laserdrome”, in JURA, n.º 4, 2004, pp. 255 ss; MICHAEL KÖHNE, “Abstrakte Menschenwürde”, cit., pp. 285 ss; ALFRED SCHEIDLER, “Verstoßen Tötungsspiele gegen die Menschenwürde?”, in JURA, n.º 8, 2009, pp. 575 ss. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) considerou, por sua vez, que estava dentro da margem de apreciação do Estado considerar que esta proibição se justificava por razões de ordem pública. A questão chegou ao TJCE na medida em que a empresa em causa invocou que a liberdade de prestação de serviços foi ilegitimamente violada pela decisão alemã que proibiu este jogo. Sobre esta decisão, ver PEDRO CABRAL, “Protecção da dignidade humana e livre prestação de serviços na ordem jurídica comunitária”, in ROA, Ano 66, Vol. III, 2006, pp. 1533 ss; M. K. BULTERMAN – H. R. KRANENBORG, “What if rules on free movement and human rights collide? About laser games and human dignity: the Omega case”, in European LR, Vol. 31, 2006, pp. 93 ss; THOMAS ACKERMANN, “Case Law: Case C-36/02”, in Common Market LR, n.º 42, 2005, pp. 1107 ss. 1038 JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., pp. 88 e 89. 273 Parece-nos, por outro lado, que para além de este tipo de decisões poder conduzir a uma “banalização” do recurso a este princípio, se abre aqui um precedente perigoso: se se considera este jogo atentatório da dignidade, o que dizer, por exemplo, de desportos violentos que implicam efectivas lesões na integridade física, como é o caso do boxe? E segundo esta ordem de ideias não deveriam também ser proibidos jogos de vídeo onde se simulam homicídios? Há um sem número de outras actividades que podem ser proibidas se seguirmos este tipo de argumentação e é essencial não esquecer que nem tudo o que pode ser considerado “uma forma duvidosa de passar o tempo ou falta de gosto se traduz em lesão da dignidade”1039. Outra situação onde também se colocou o problema da determinação pela própria pessoa do sentido e conteúdo da sua dignidade foi o caso francês sobre a proibição de competições de lançamento de anões. Trata-se de um passatempo que consiste em lançar anões o mais longe possível (estando o anão vestido com equipamento protector e sendo o lançamento feito para um colchão) e que tem lugar geralmente em bares e discotecas. Na sua decisão, o Conselho de Estado afirmou que a dignidade humana é um princípio que não tolera limitações nem sequer da parte do seu titular1040. 1039 HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., pp. 220 e 221. 1040 Esta decisão encontra-se disponível na Revue Française de Droit Administratif, n.º 11, (6), 1995, pp. 1024 ss. Sobre este caso, ver também DAVID FELDMAN, “Human Dignity as a Legal Value – Part I”, in Public Law, Winter 1999, pp. 701 e 702; TOMÁS PRIETO ALVARÉZ, La Dignidad de la Persona. Núcleo de la Moralidad y el Orden Públicos, Límite al Exercício de Libertades Públicas, Editorial Aranzadi, Navarra, 2005, pp. 175 ss; PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., pp. 298 ss; MARIA ROSARIA MARELLA, “The old and the new limits to freedom of contract in Europe”, cit., pp. 273 e 274; STÉPHANIE HENNETTEVAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., pp. 14 e 15; STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ – CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche sur un Processus de Juridicisation, cit., pp. 27 – 29; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre luimême? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., pp. 91 e 92; OLIVIER DE SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism under the European Convention on Human Rights“, cit., pp. 503 e 504; OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 458 e 459; PATRICK FRYDMAN, “L’atteinte à la dignité de la personne et les pouvoirs de police municipale”, in Revue Française de Droit Administratif, n.º 11, 1995, pp. 1204 ss; SÉBASTIEN GUILLEN, “Dignité de la personne humaine et Police administrative. Essai sur l’ambivalence du standard” in PHILIPPE PEDROT (org.), Ethique, Droit et Dignité de la Personne. Mélanges Christian Bolze, Economica, Paris, 1999, pp. 175 ss; BERNARD EDELMAN, “La dignité de la personne humaine, un concept nouveau” in MARIE-LUCE PAVIA – THIERRY REVET (orgs.), La Dignité de la Personne Humaine, Economica, Paris, 1999, pp. 31 ss; LAURENCE WEIL, “La dignité de la personne humaine en droit administratif”, in MARIE-LUCE PAVIA – THIERRY REVET (orgs.), La Dignité de la Personne 274 A argumentação utilizada segue a mesma linha da anteriormente adoptada pelo juiz alemão: a dignidade é assumida como um” valor objectivo e inderrogável”1041. Não estamos também de acordo com esta decisão. Ainda que caiba ao Estado conferir uma protecção acrescida a pessoas portadoras de uma deficiência, nesta situação concreta não está em dúvida a capacidade para consentir. Vimos que apenas se justifica objectivamente uma abordagem paternalista nos casos de direitos ou interesses de menores, de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se encontrem numa “posição conjuntural de debilidade ou desfavor”1042. Para além disso, não é também a integridade física dos intervenientes que se visa garantir, já que estes se encontram devidamente protegidos. Julgamos ainda que esta prática não implica uma “intolerável ‘coisificação’” da pessoa, que justifica a proibição estatal1043, uma vez que não pode haver uma “coisificação” ou instrumentalização da pessoa quando esta consente, livre e conscientemente, em determinado acto. Vimos já quais as fragilidades do uso da fórmula do objecto para a densificação do princípio da dignidade e enquanto limite ao poder de diposição sobre posições subjectivas de direitos fundamentais. Se do princípio da dignidade retiramos a impossibilidade de tratar a pessoa como mero objecto, isso significa que deve ser o próprio indivíduo, enquanto sujeito de pleno direito, a determinar o que é Humaine, cit., pp. 91 ss ; EMMANUEL DREYER, “Les mutations du concept juridique de dignité”, in RRJ,, n.º 1, 2005, pp. 27 ss; PAUL MARTENS, “Encore la dignité humaine: réflexions d’un juge sur la promotion par les juges d’une norme suspecte”, in Les Droits de l’Homme au Seuil du Troisième Millénaire. Mélanges en Hommage à Pierre Lambert, Bruylant, Brusseles, 2000, pp. 562 ss. Esta questão colocou-se também no nosso país, relativamente ao lançamento de anões numa discoteca de Vila do Conde, embora não tenha chegado aos tribunais. Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 311 nota 113; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 525. 1041 Nesse sentido, GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 840. Também o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas corroborou esta decisão, embora tenha baseado a sua argumentação na não-violação da proibição de discriminação. A decisão do Comité está disponível in http://www1.umn.edu/humanrts//undocs/854-1999.html. 1042 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 450, nota 785. 1043 Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 311, nota 113; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 387. 275 para si atentatório da sua dignidade, sob pena de, ao não ter liberdade para o fazer, estar a ser transformado em objecto ou instrumento1044. Tal só não deverá acontecer em situações extremas, que são aquelas em que o exercício da liberdade pelo sujeito ponha em risco as “condições da sua 1045 autodeterminação futura” , o que não é, no entanto, o que sucede neste caso. Pensamos, por isso, que estamos mais uma vez perante uma interpretação paternalista da dignidade. Finalmente, tem-se ainda defendido que esta decisão parte de uma interpretação da dignidade como “bem fora do comércio”, não devendo a renúncia ser considerada uma verdadeira manifestação de autonomia individual quando a decisão de renunciar seja ditada por necessidades económicas, uma vez que nesses casos a pessoa não procura o seu desenvolvimento mas pretende apenas fazer face a uma situação complicada, em particular “uma situação económica difícil”1046. No entanto, como também já referimos, não estamos de acordo com esta posição, na medida em que pode haver situações de renúncia em que esta seja contrapartida de vantagens materiais e, ainda assim, traduzir uma escolha voluntária, o que julgamos ser o caso. Também por ocasião da transmissão televisiva do concurso Big Brother se colocou “a questão da relação entre autonomia contratual e respeito da dignidade humana em toda a sua complexidade”1047. Embora não tenha havido 1044 JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 58. MICHAEL KÖHNE, “Abstrakte Menschenwürde”, in GewArch, n.º 7, 2004, p. 287, defende que a determinação da dignidade por terceiros significa impor ao indivíduo uma concepção da dignidade com a qual este pode não estar de acordo, o que implica convertê-lo em mero objecto da valoração acerca do que é ou não digno. 1045 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 330. 1046 OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 457 – 460. 1047 Neste sentido, ver GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 835. Sobre esta questão, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JÓNATAS MACHADO, Reality Shows e Liberdade de Programação, cit.; PEDRO VAZ PATTO, “A propósito do Big Brother. Reflexões sobre o conteúdo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, in Brotéria, n.º 6, 2003, pp. 451 ss (também in No Cruzamento do Direito e da Ética, cit., pp. 199 ss); LUÍS VASCONCELOS ABREU, “Limitação do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada mediante o acordo do seu titular. O caso do Big Brother”, cit., pp. 113 ss; BENEDITA MAC CRORIE, “A renúncia ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 618 ss; DIETER DÖRR, Big Brother und die Menschenwürde, cit.; HUBERTUS GERSDORF, Medienrechtliche Zulässigkeit des TV-Formats 276 qualquer decisão judicial sobre esta matéria, o debate que o concurso suscitou na doutrina justifica que também o analisemos. Este programa televisivo é um reality show onde, por vontade própria, os concorrentes vão viver para uma casa permanentemente filmada em todas as divisórias, o que implica o despojamento, “de forma praticamente total, do controlo sobre a captação e divulgação de informação sobre a vida privada” durante um maior ou menor período de tempo1048. Consequentemente, vários Autores se pronunciaram no sentido de que este tipo de programas é atentatório da dignidade da pessoa humana1049. Não partilhamos, no entanto, dessa posição, pois uma vez mais entendemos que “uma protecção imposta que limite as possibilidades de actuação do visado” e que, consequentemente, restrinja a sua possibilidade de renunciar a direitos fundamentais, protegendo-o de si próprio, não se ajusta aqui1050. Nestes programas a declaração de vontade de renúncia é dada pelo «Big-Brother», C. F. Müller, 2000; HANS HOFMANN, “Artikel 1” in BRUNO SCHMIDT-BLEIBTREU – HANS HOFMANN – AXEL HOPFAUF, Kommentar zum Grundgesetz, cit., p. 111; WERNER FROTSCHER, “«Big Brother» und das deutsche Rundfunkrecht”, cit.; WALTER SCHMITT GLAESER, “Big Brother is watching you – Menschenwürde bei RTL 2”, cit., pp. 395 ss; HENNING HARTWIG, “«Big Brother» und die Folgen”, in JZ, n.º 20, 2000, pp. 967 ss; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004; MICHAEL KÖHNE, “Big Brother – Die modernen Superstars als “Reformer” der Verfassung”, in ZRP, n.º 2, 2002, pp. 92 ss; STEPHAN HUSTER, “Individuelle Menschenwürde und öffentliche Ordnung?”, in NJW, n.º 47, 2000, pp. 3477 ss. 1048 PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 549. 1049 É, por exemplo, o caso de PEDRO VAZ PATTO, “A propósito do Big Brother. Reflexões sobre o conteúdo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, cit., pp. 451 ss; ELKE HINTZ – MICHAEL WINTERBERG, “Big Brother – Die modernen Superstars als “Reformer” der Verfassung”, in ZRP, n.º 7, 2001, pp. 293 ss; ULRIKE HINRICHS, “«Big Brother» und die Menschenwürde”, in NJW, n.º 30, 2000, pp. 2173 ss. Considerando que “ao entender-se que o consentimento dos candidatos produz efeitos se estaria a desistir da inalienabilidade da dignidade e a tratar a 2.ª parte do art. 1.º da Constituição alemã como uma mera fórmula vazia”, ver ROLF SCHMIDT, Grundrechte, cit., p. 121. Também em França a transmissão televisiva do programa Loft Story (também um reality show) “esteve no centro de contestação política e violenta manifestação pública”. O Conselho Superior do Audiovisual (CSA, communiqué n.º 449, de 14 de Maio de 2001) interveio, “impondo, em nome da ‘dignidade da pessoa humana’, uma modificação das regras do jogo, tendo passado a ser obrigatório desligar as câmaras de televisão durante algumas horas do dia”. Sobre esta questão, ver também GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 837; DANY COHEN – LAURENT GAMET, “Loft story: le jeu-travail”, in Droit social, n.º 9/10, 2001, pp. 791 ss; BERNARD EDELMAN, “«Quatre pattes, oui; deux pattes, non». Loft story – une nouvelle fonction – auteur”, in Recueil Dalloz, n.º 34, 2001, pp. 2763 ss. 1050 WERNER FROTSCHER, “’Big Brother’ und das deutsche Rundfunkrecht”, cit., p. 43. 277 próprio titular e é produto de uma vontade livre e esclarecida, estando o titular do direito “consciente de todas as implicações da sua participação”1051. Ainda que se verifique uma renúncia quase total à reserva da vida privada, esta é uma renúncia temporalmente delimitada e que, para além disso, é livremente revogável, podendo o candidato, a qualquer momento, sair do programa, sem com isso sofrer qualquer outro tipo de consequências que não seja a perda da possibilidade de ganhar o concurso1052. Assim, a utilização do princípio da dignidade da pessoa humana nas situações que referimos “assenta invariavelmente no mesmo tipo de raciocínio”. Cada ser humano “é um repositório (mas não o proprietário) de uma parcela de humanidade, em nome da qual pode ser sujeito a uma série de obrigações que dizem respeito à preservação dessa parcela”. Segundo esta perspectiva, na medida em que “a dignidade da pessoa humana se relaciona mais com a humanidade do que com o indivíduo, está fora do alcance deste último”, correspondendo a humanidade “ao status a que o indivíduo foi elevado ou admitido”1053. Como vimos mais desenvolvidamente, a dignidade não deve, porém, ser imposta contra o seu próprio titular. O indivíduo deve poder dispor dos seus direitos e não deve ser instrumentalizado em virtude de uma qualquer concepção de dignidade que não partilhe. A dignidade enquanto disponibilidade contraria uma ideia de protecção da dignidade contra si mesmo1054. 1051 Nesse sentido, WALTER SCHMITT GLAESER, “Big Brother is watching you – Menschenwürde bei RTL 2”, cit., p. 399. 1052 WERNER FROTSCHER, “«Big Brother» und das deutsche Rundfunkrecht”, cit., p. 50; também STEPHAN HUSTER, “Individuelle Menschenwürde und öffentliche Ordnung?”, cit., p. 3477. 1053 STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., pp. 14, 21, 23 e 24. Partindo da distinção entre uma noção de dignidade associada à ideia de status (por definição, desigual) e uma noção de dignidade associada à ideia de igualdade que não pode ser considerada de forma convincente herdeira da dignitas, esta Autora considera fundamental perceber se o princípio da dignidade da pessoa humana, tal como hoje é utilizado, “pertence ao paradigma dos direitos humanos” e se a sua aplicação vai no sentido “da promessa de 1948 (‘todos os homens nasceram iguais em direitos e dignidade’)”. 1054 KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 94. 278 Há ainda decisões relevantes nesta matéria ao nível do TEDH1055. Mesmo que nos casos que vamos analisar não se faça uma referência expressa ao princípio da dignidade, parece-nos que a fundamentação de algumas das decisões assenta também numa ideia de defesa da pessoa contra si própria, pelo que achamos pertinente referi-las. No caso Laskey, Jaggard e Brown v. Reino Unido1056, os requerentes haviam sido condenados no Reino Unido pela prática de actos sadomasoquistas entre adultos com o seu consentimento, actos esses que não tiveram como consequência quaisquer lesões sérias permanentes, ainda que fossem práticas susceptíveis de as causar. A questão com que o TEDH se debateu foi a de saber se a criminalização de práticas sadomasoquistas violentas deve ser considerada uma violação do art. 8.º da CEDH. O TEDH, na fundamentação da sua decisão, fez apelo à margem de apreciação dos Estados nessa matéria e, consequentemente, não considerou a condenação estabelecida pelo Reino Unido desproporcionada1057. Este Tribunal entendeu que as autoridades nacionais têm legitimidade para considerar que a acusação e a condenação dos recorrentes são necessárias numa sociedade democrática para a protecção da saúde, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Convenção1058. 1055 No que se refere à renúncia a direitos fundamentais, na jurisprudência do TEDH podemos distinguir duas questões: a primeira é a de saber “se uma Parte Contratante pode evitar ser considerada violadora da CEDH por invocar o facto de o indivíduo que recorre, embora alegue uma violação do seu direito pelo Estado, ter consentido no tratamento de que agora se vem queixar”. A segunda questão é a de saber “se a Parte Contratante pode ser responsabilizada pelo facto de ter violado aquilo que o indivíduo considera ser a sua pretensão legitima de não lhe ver imposto o benefício de um direito que considera como um peso e que preferiria simplesmente sacrificar”. Ver OLIVIER DE SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism under the European Convention on Human Rights“, cit., p. 482. 1056 http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=las key&sessionid=51620806&skin=hudoc-en. 1057 Criticando a decisão do TEDH neste caso, ver PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., pp. 346 ss; CHRISTOPHER NOWLIN, “The Protection of Morals Under the European Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms”, in Human Rights Quarterly, n.º 24, 2002, p. 284; RICHARD GREEN, “(Serious) Sadomasochism: A Protected Right of Privacy?” in Archives of Sexual Behaviour, Vol. 30, n.º 5, 2001, pp. 543 ss; LESLIE J. MORAN, “Laskey v. The United Kingdom: Learning The Limits of Privacy”, in The Modern LR, Vol. 61, 1998, pp. 77 ss; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., p. 101. 1058 Na sua declaração de voto, o juiz Petitti considerou inclusivamente que o art. 8.º não é sequer aplicável ao caso. Na sua perspectiva o conceito de vida privada não pode ser alargado indefinidamente, pelo que as práticas sadomasoquistas não devem sequer estar incluídas no âmbito de protecção do artigo em causa. O próprio Tribunal coloca essa questão, embora 279 Assim, o Tribunal admite uma protecção da saúde contra a vontade do próprio, sem atender ao facto de não estarem em causa lesões graves e irreversíveis. Uma vez que neste caso não havia dúvidas quanto ao consentimento das partes e das práticas sadomasoquistas não decorreram quaisquer lesões sérias permanentes, pensamos que está subjacente à decisão (ainda que tal não decorra dela expressamente) um juízo de reprovação moral dos comportamentos em análise. Ora vimos já que deve ser de afastar um paternalismo moral, ou seja, a imposição de modos de comportamento por razões morais no interesse da pessoa e com as quais esta não está de acordo1059. Também no caso KA e AD v. Bélgica1060 o TEDH foi novamente confrontado com a mesma questão. Neste caso o Tribunal considerou que o Direito Penal não deve, em princípio, ser chamado a intervir quando estejam em causa práticas sexuais consentidas “a não ser que haja razões imperiosas para que o faça”. Entendeu ainda que “no caso concreto se verificaram razões imperiosas justificativas da interferência porque decorreu dos factos analisados que não houve sempre livre vontade, uma vez que o consentimento de um dos participantes não foi sempre respeitado”1061. Se compararmos estas duas decisões constatamos que houve uma evolução significativa na jurisprudência do TEDH, já que no caso KA e AD v. Bélgica este reconheceu que o direito de ter relações sexuais, mesmo com depois não a desenvolva, uma vez que nenhuma das partes a invocou. 1059 Considerando que “a vida sexual é justamente o domínio onde o Estado se deve abster de intervir em nome da moral”, ver JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD, “Liberté sexuelle et droit de disposer de son corps”, in Droits, n.º 49, 2009, p. 23. 1060 http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=K. A.%20%7C%20A.D.%20%7C%20belgium%20%7C%20%2242758/98%20%7C%2045558/99% 22&sessionid=51621190&skin=hudoc-en. 1061 STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., p. 10. Sobre este caso, ver também MURIEL FABRE-MAGNAN – MICHEL LEVINET – JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD – FRANÇOISE TULKENS, “Controverse sur l’autonomie personelle et la liberté du consentement”, in Droits, n.º 48, 2009, pp. 3 ss; XAVIER PIN, “Le consentement à lésion de soi-même en Droit Pénal vers la reconnaissance d’un fait justificatif?”, in Droits, n.º 49, 2009, p. 87. Assumindo uma postura crítica, considerando que “uma tal abordagem da autonomia pessoal (…) parece bem mortífera para os direitos do Homem”, ver MICHEL LEVINET, “La notion d’autonomie personnelle dans la jurisprudence de la Cour Européenne des Droits de l’Homme”, in Droits, n.º 49, 2009, pp. 17 e 18. O Autor considera que “ao privilegiar uma abordagem hipersubjectivista da noção de autonomia pessoal o TEDH esquece que, em geral, ‘são os fracos que consentem’”. 280 violência, está compreendido no direito a dispor sobre o próprio corpo, parte integrante da noção de autonomia individual. Para o Tribunal, “o fundamento da repressão penal das lesões corporais” deixa de ser “a protecção da saúde da vítima mas antes a protecção da vontade, o que implica atribuir ao consentimento para a lesão (…) uma plena força justificativa”1062. Pensamos que esta evolução jurisprudencial é de louvar1063. Finalmente, é ainda de referir o caso Diane Pretty v. Reino Unido1064, no qual se colocou a questão de determinar se a proibição da eutanásia1065 no 1062 XAVIER PIN, “Le consentement à lésion de soi-même en Droit Pénal vers la reconnaissance d’un fait justificatif?”, cit., p. 88. Também JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD, “Liberté sexuelle et droit de disposer de son corps”, cit. p. 23, entende que este caso “é o grande caso que fixa clara e precisamente os limites da intervenção do Estado nas relações sexuais entre adultos capazes de consentir”. O TEDH afasta-se do caso Laskey, Jaggard e Brown “ao excluir a moral do campo de argumentação e ao incluir aí o direito a dispor sobre o próprio corpo”. 1063 Essa é também a perspectiva de Jean Pierre Marguénaud, que considera que “a liberdade sexual (…) não deve ser limitada pela moral”. Ver MURIEL FABRE-MAGNAN – MICHEL LEVINET JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD - FRANÇOISE TULKENS, “Controverse sur l’autonomie personelle et la liberté du consentement”, cit., pp. 11 e 12. 1064 http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=pre tty&sessionid=51621425&skin=hudoc-en. Sobre este caso, ver também ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “Eutanásia. Não obrigado? (caso Pretty v. Reino Unido)”, in Sub Judice, n.ºs 22/23, 2001, pp. 171 ss; CATARINA SANTOS BOTELHO, A Tutela Directa dos Direitos Fundamentais. Avanços e Recuos na Dinâmica Garantística das Justiças Constitucional, Administrativa e Internacional, cit., pp. 362 ss; OLIVIER DE SCHUTTER, “L’aide au suicide devant la Cour européenne des droits de l’homme (A propos de l’arrêt Pretty c. Royaume-Uni du 29 avril 2002)”, in Rev. trim. dr. h., n.º 53, 2003, pp. 71 ss; OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., p. 478. 1065 O termo eutanásia provém do grego e significa “boa morte”. Trata-se de pôr termo à vida de um terceiro para evitar o sofrimento de que padece em virtude de uma doença terminal ou irreversível. As considerações que fazemos referem-se às situações de eutanásia voluntária (onde há uma vontade expressa, livre e esclarecida do doente). Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ver, entre outros, ANTÓNIO JOSÉ DOS SANTOS LOPES DE BRITO – JOSÉ MANUEL SUBTIL LOPES RIJO, Estudo Jurídico da Eutanásia em Portugal, Direito sobre a Vida ou Direito de Morrer?, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 25 – 27 e 39; AUGUSTO LOPES CARDOSO, “Alguns aspectos jurídicos da eutanásia”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 401, 1990, pp. 5 ss; JOÃO LOUREIRO, “Os rostos de Job: tecnociência, direito, sofrimento e vida”, in Boletim da Faculdade de Direito, n.º 80, 2004, pp. 137 ss; JOSÉ DE FARIA COSTA, “ O fim da vida e o direito penal”, in MANUEL DA COSTA ANDRADE – JOSÉ DE FARIA COSTA – ANABELA MIRANDA RODRIGUES – MARIA JOÃO ANTUNES (orgs.), Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 759 ss; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., pp. 780 ss; MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 134.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 62; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, cit., pp. 126 ss. FERNANDO J. BRONZE, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão Problematizante dos Pólos da Radical Matriz Analógica do Discurso Jurídico), cit., pp. 171 ss; BENEDITA MAC CRORIE, “A doutrina da renúncia a direitos fundamentais – os casos da eutanásia e da colheita de órgãos em vida”, in MANUEL CURADO – NUNO PINTO OLIVEIRA (org.), Pessoas Transparentes. Questões Actuais da Bioética, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 93 281 Reino Unido deveria ser considerada admissível à luz da Convenção. Nesta decisão o TEDH sustentou que o direito à vida garantido no art. 2.º da CEDH não pode ser interpretado “como envolvendo um aspecto negativo”, isto é, um direito a morrer1066. Já quanto à violação do art. 8.º da Convenção, sendo que “o conceito de vida privada é amplo e não susceptível de definição exaustiva”, o Tribunal considerou “não estar preparado para excluir que a proibição legal da eutanásia constitua uma ingerência no direito ao respeito da vida privada”. No entanto, entendeu ainda que se pode considerar tal ingerência necessária numa sociedade democrática, se o que se pretende “é a protecção dos fracos e dos vulneráveis e especialmente daqueles que não estão em condições de tomar decisões informadas sobre actos destinados a pôr termo à vida ou que se destinem a auxiliar outrem a pôr termo à vida”1067. Perante isto, o Tribunal invoca a necessidade de protecção de pessoas que se encontram numa posição de especial fragilidade ou fraqueza na fundamentação da sua decisão. Pensamos, no entanto, que, embora haja a ss; MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, cit., p. 194. 1066 No sentido de considerar que é possível retirar do artigo 2.º da CEDH nenhuma conclusão quanto à questão de saber se o direito à vida abrange um “direito à morte”, ver TORKEL OPSAHL, “The right to life”, in R. ST. J. MACDONALD – F. MATSCHER – H. PETZOLD (ed.), The European System for the Protection of Human Rights, Kluwer Academic Publishers, Netherlands, 1993, pp. 221 e 222. 1067 H. J. HIRSCH apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 216, considera que “’(…) quando a lei prescreve a punibilidade da morte a pedido tal dá-se, sobretudo, em nome de uma consideração decisiva: a de que, no interesse da segurança da vida de terceiros, se torna necessário converter a vida alheia num tabu, garantindo-lhe uma intangibilidade de princípio’”. OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., p. 447, consideram que “um ‘testamento vital’, no qual se renuncia, à partida, ao ‘direito à vida’ - ou seja, ao direito a receber um tratamento que manteria a pessoa em causa viva ainda que se encontrasse em estado vegetativo permanente e irreversível - é em princípio preparado em condições mais serenas do que as que envolvem o pedido de eutanásia realizado por um indivíduo em sofrimento e para quem o anúncio do carácter inelutável da sua morte poderá constituir a fonte de um estado depressivo grave”. Sobre os testamentos vitais (designados entre nós também como “decisões/directivas/disposições antecipadas ou prévias de vontade”, “living-wills”, “testamentos de paciente, de vida, em vida, de cuidados médicos, biológicos, de moribundo ou morte”), ver também JOÃO LOUREIRO, “Advance Directives – A Portuguese Approach”, in Lex Medicinae, n.º 9, 2008, pp. 5 ss; JOAQUIM SABINO ROGÉRIO, “«Living-will» – reflexão sobre o que se discute e se propõe. Enfoque jurídico-penal”, in Lex Medicinae, n.º 10, 2008, pp. 115 ss; ISABEL RENAUD – MICHEL RENAUD, “O testamento vital. Elementos de análise”, in Revista Portuguesa de Bioética, n.º 9, 2009, pp. 321 ss; SELMA MARINA LOPES MARTINS, “Disposições antecipadas da vontade”, in DIOGO LEITE CAMPOS (coord.), Estudos sobre o Direito das Pessoas, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 221 ss. Ver ainda sobre esta matéria o Parecer n.º P/16/APB/2009, http://www.apbioetica.org/fotos/gca/1273053917 parecer_16_testamento_vital_2009.pdf, da Associação Portuguesa de Bioética. 282 necessidade de se estabelecer maiores exigências quanto à aferição da voluntariedade da renúncia nestes casos, a garantia da liberdade da decisão e a salvaguarda dos indivíduos dos riscos implicados na eutanásia se consegue “instituindo procedimentos por intermédio dos quais se controlam as condições” em que (…) [esta liberdade] é exercida, e não suprimindo-a”1068. Julgamos, portanto, que faz sentido que a possibilidade de renunciar ao direito à vida esteja prevista e regulada através de um acto legislativo prévio, o que se justifica por razões garantísticas. Também nas situações de eutanásia, e partindo da construção de dignidade que apresentámos, esta não deve ser utilizada contra a autonomia individual. Não se coaduna com o sentido constitucional do princípio que o Estado, invocando a protecção da dignidade, pretenda impedir um indivíduo em sofrimento, responsável e capaz, de dispor sobre a sua própria vida1069. Vimos que apenas são legítimas medidas estaduais paternalistas quanto possam ser afectadas as possibilidades de “autodeterminação futura” da 1068 Fazendo estas considerações sobre a liberdade da dádiva de órgãos, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Inconstitucionalidade do Artigo 6.º da Lei sobre a Colheita e Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana”, cit., p. 258 - 260. Considerando que “a eventualidade da aceitação da impunibilidade penal da prática de eutanásia activa levada a cabo por médico implica a definição de um rigorosíssimo regime procedimental para a sua concretização”, ver JOSÉ DE FARIA COSTA, “ O fim da vida e o direito penal”, cit., p. 795. Também OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 460 e 461, defendem que quando se admita a eutanásia é essencial estabelecer “procedimentos rigorosos de modo a assegurar, em cada caso, que o pedido reflecte a vontade real do paciente”. Nessa medida, entendem que é imperioso que “a despenalização parcial da eutanásia seja acompanhada pelo desenvolvimento de cuidados paliativos de maneira a atenuar, na medida do possível, o desespero das pessoas em fim de vida, que poderia conduzi-las a um pedido de eutanasia”. RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 256, consideram que “as soluções legislativas isentas de laivos paternalistas - isto é, que reconheçam a cada uma das pessoas a faculdade de renunciar aos seus direitos fundamentais, no pressuposto de que o fazem de forma consciente, informada e voluntária - sempre permitirão a subsistência de sérias dúvidas sobre a natureza verdadeiramente livre e racional da decisão contra natura de pôr termo à própria vida”. Segundo os Autores, “trata-se de um domínio no qual todas as garantias de autenticidade da declaração parecem ser escassas”. Apesar disso, entendem que “a absolutização da vida, traduzida na criminalização indiferenciada de todas as condutas eutanásicas, redundará no esmagamento da autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais centrais da sua própria existência”. 1069 MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 106; ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, cit., p. 218. Considerando um erro a “necessária assimilação entre dignidade humana e preservação da vida a qualquer custo”, uma vez que “a vida é um direito e não um dever”, ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 86. 283 pessoa. Pensamos que este raciocínio não deve, no entanto, aplicar-se à renúncia ao direito à vida. Não há dúvida que a decisão deliberada de pôr termo à própria vida tem como consequência que a pessoa não pode continuar a exercer a sua liberdade no futuro. Mas, mais do que isso, essa decisão implica que deixa de haver futuro. A pessoa não continua, consequentemente, a viver a sua vida sem uma parcela de liberdade que possa pôr em causa a sua autodeterminação. Assim, esta situação é distinta porque nos casos de renúncia à própria vida deixa de existir a pessoa que poderia agir ou não agir livremente, pelo que a renúncia se consubstancia numa situação em relação à qual já não se aplica “o princípio da liberdade”1070. Para além disso, parece-nos que esta é precisamente uma das situações em que o fim, isto é, pôr termo à vida em situações de grande sofrimento1071, pode justificar que seja de admitir uma renúncia que é, por natureza, ao direito fundamental como um todo, permanente e irreversível. Vimos que o carácter grave e irreversível da lesão pode ser útil para aferir a validade de uma renúncia a direitos fundamentais, devendo ser mais um elemento a ter em conta na ponderação. No entanto, vimos também que se houver um fim que se sobreponha à lesão a renúncia poderá ser considerada válida. Não nos parece que a salvaguarda do direito à vida, enquanto valor objectivo, esteja numa relação razoável ou proporcional com a medida e a importância dos efeitos danosos produzidos na esfera do titular do direito ao não se permitir que este possa optar por pôr termo à sua vida nas situações extremas que referimos. Não é, por isso, evidente que o direito à vida seja indisponível. De tudo o que vimos, pensamos que são necessárias cautelas para não se ceder à tentação de um paternalismo jurídico, em que se transfere para a sociedade o encargo de defender os titulares dos direitos contra as suas próprias condutas. A defesa da pessoa contra si própria deve ser a excepção e só é legítima nas situações em que o indivíduo não esteja em posição de 1070 Nesse sentido, DAVID ARCHARD, “Freedom not to be free: the case of the slavery contract in J. S. Mill’s On Liberty”, cit., p. 462. 1071 Seja esse sofrimento decorrente de uma doença terminal ou de uma doença incurável. Sobre o “alargamento das indicações que legitimariam a eutanásia”, ver JOÃO LOUREIRO, “Os rostos de Job: tecnociência, direito, sofrimento e vida, cit., p. 166. 284 cuidar de si ou quando contenda com as suas possibilidades de “autodeterminação futura”. Como já referimos, para além destas situações não é de admitir uma protecção imposta que limite as possibilidades de actuação do visado e que, consequentemente, limite a sua possibilidade de renunciar a direitos fundamentais, uma vez que esta protecção é uma violação grave da presunção de liberdade que deriva da dignidade da pessoa humana. 285 Síntese conclusiva 1. Escolhemos como ponto central deste trabalho o problema dos limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares. Assim, a questão fundamental de que nos ocupámos foi a de saber se o titular de um direito fundamental pode validamente dele dispor perante outro particular, através de um acto de renúncia, e em que termos esse poder de disposição é passível de ser exercido. Uma vez que considerámos que há uma “vinculação directa prima facie” dos particulares aos direitos fundamentais, sendo os entes privados sujeitos activos e passivos destes direitos nas relações que estabelecem entre si, faz sentido falar em renúncia nas relações jurídicoprivadas. 2. Tratando primeiramente a figura da renúncia em geral, defendemos um entendimento amplo deste conceito, sob pena de estarmos a excluir à partida situações de renúncia que não devem ser necessariamente de afastar, ou pelo menos não o devem ser antes de verificarmos se respeitam as condições e os limites impostos ao poder de renunciar. Seguindo a definição de Jorge Reis Novais, entendemos por renúncia “o poder individual de dispor sobre posições jurídicas próprias, tuteladas por normas de direitos fundamentais, de cujo exercício resulta, como consequência jurídica, uma diminuição da protecção do indivíduo” face às entidades públicas ou um ente privado. Nessa medida, a renúncia implica um enfraquecimento efectivo do direito fundamental, enfraquecimento esse que decorre de um acto voluntário do seu titular. 3. a) Deve distinguir-se a renúncia de figuras afins como é o caso da perda e do não-exercício de direitos fundamentais, da autolesão e do mero exercício de direitos. b) Na perda também se verifica um enfraquecimento de um direito fundamental, mas neste caso o enfraquecimento não deriva de um acto voluntário do titular do direito, sendo antes uma consequência que lhe é imposta “de fora”, ao contrário da renúncia que, como já referimos, parte 286 inevitavelmente de uma decisão voluntária do titular do direito. c) Nas situações de não-exercício não se verifica, pela parte do titular do direito, a assunção de qualquer vínculo jurídico. Está aqui em causa uma posição subjectiva de direito fundamental que este pode optar por exercer ou não exercer e, mesmo que não o faça num dado momento, tal não invalida que posteriormente o venha a fazer. O mesmo já não acontece na renúncia, uma vez que a esta subjaz sempre um vínculo jurídico. d) Na autolesão é o próprio titular que leva a cabo a intervenção no seu direito, o que significa que nestes casos não haverá dúvidas de que estamos perante uma decisão autónoma (exceptuando obviamente as situações de incapacidade para decidir). A renúncia, por seu lado, envolve um enfraquecimento do direito perante um ente público ou um terceiro, não se cingindo à esfera do próprio indivíduo. Para além disso, nas situações de autolesão estamos a referir-nos ao exercício de um poder fáctico, enquanto a renúncia a direitos fundamentais implica um poder jurídico. e) No mero exercício de direitos há uma identificação, pelo menos tendencial, entre a autonomia e o bem jurídico protegido pela disposição jusfundamental, o que não acontece na renúncia, na qual o titular do direito reconhece que há uma lesão no seu direito, ainda que nela consinta. 4. a) No que se refere às diferentes configurações da renúncia, não é relevante distinguir entre renúncia à titularidade e renúncia ao exercício. Apesar disso, em estreita ligação com esta diferenciação, justifica-se a destrinça entre renúncia definitiva ou irreversível e renúncia não definitiva ou reversível, que deverá ser pesada na decisão sobre a admissibilidade concreta de uma dada renúncia. b) Também a distinção entre renúncia total e renúncia parcial deve ser tida em conta quando se afere a validade de uma renúncia concreta. Aquilo que se avalia aqui é, em primeiro lugar, se estamos perante uma renúncia ao direito fundamental “como um todo” ou apenas a “algumas das faculdades que 287 o integram”. Em segundo lugar, importa verificar a duração temporal da renúncia, isto é, se se trata ou não de uma renúncia delimitada no tempo. Entendemos que não é de excluir algum tipo de renúncia à partida. 5. a) Quanto à questão de determinar se os direitos fundamentais são sequer renunciáveis, não colhem os argumentos das perspectivas que excluem a renunciabilidade de partida de todos ou alguns direitos fundamentais. A caracterização destes direitos enquanto direitos inalienáveis, direitos subjectivos públicos, normas de competência negativa, bem como o recurso a diferentes teorias de direitos fundamentais, à distinção entre tipos de direitos ou ainda à dimensão objectiva dos direitos fundamentais não justificam que se considere que o indivíduo não possa deles dispor. Assumindo, em Estado de Direito, a autonomia do indivíduo um papel fundamental, não faria sentido condicionar o exercício dos direitos fundamentais por fins supra-individuais que devessem sempre prevalecer. b) O direito a renunciar estriba-se nos direitos fundamentais em especial. O poder de dispor sobre os direitos fundamentais funda-se, com efeito, no conteúdo de dignidade e autonomia presente em cada um destes direitos. Consequentemente, devemos considerar a renúncia admissível, ainda que sujeita a determinadas condições e limites. 6. a) A renúncia a direitos fundamentais implica a existência de uma declaração de vontade. É através dessa declaração que o titular manifesta a intenção de dispor do seu direito, o que envolve fundamentalmente um momento de voluntariedade. De facto, para que possa ter lugar uma renúncia o acto de disposição deve ser livre e autodeterminado, sob pena de não estarmos já perante um acto de renúncia mas antes de uma restrição heterónoma. b) Em geral há liberdade de forma na renúncia, desde que o conteúdo da declaração seja suficientemente claro. Poderá, no entanto, haver excepções a esta liberdade quando a lei entenda que é de exigir uma forma específica para garantir a voluntariedade da renúncia, nas situações em que seja mais 288 difícil aferir essa voluntariedade. c) A renúncia deverá também ser livremente revogável, o que não significa que não haja uma obrigação de indemnizar os prejuízos causados. Existem, no entanto, direitos que pela sua natureza excluem a livre revogabilidade, uma vez que envolvem necessariamente uma renúncia definitiva. Excepcionalmente poderá ainda haver situações nas quais se justifique excluir a livre revogabilidade, sob pena de estarmos perante uma situação de abuso do instituto. d) Sendo a renúncia na sua essência um acto de voluntariedade só pode, então, admitir-se se for produto de uma vontade “livre, esclarecida, isenta de erro e inequívoca”. É, por isso, necessário garantir que esta não é condicionada por qualquer tipo de coacção, seja física, moral ou económica. e) O critério da existência de “alternativas reais de comportamento” não procede para determinar se há ou não coacção, uma vez que pode ser precisamente por se encontrar numa situação de ausência de alternativas que a renúncia assume particular relevância para o titular do direito. Ainda que essa ausência deva ser tida em conta, não deve considerar-se que necessariamente exclui a voluntariedade da renúncia. f) O “grau de autonomia real das partes” deve ser um critério válido e útil para a questão da voluntariedade do consentimento. Não basta, contudo, estarmos perante uma relação em que há uma desigualdade entre as partes para que a renúncia seja forçosamente involuntária. Para que a consequência seja essa é necessário que o desequilíbrio de poderes seja utilizado para influenciar a parte que renuncia e que as consequências da renúncia sejam excessivamente onerosas para o titular do direito, mesmo tendo em consideração as eventuais vantagens que este receba como contraprestação, o que só se consegue determinar atendendo às circunstâncias concretas do caso. g) Deverão ainda estabelecer-se maiores exigências quanto à 289 apreciação da voluntariedade da renúncia nos casos em que esta serve essencialmente interesses de terceiros, quando se trata de condutas de especial risco ou quando se avalia a voluntariedade de actos que conduzem a lesões irrevogáveis. 7. a) É ainda condição da renúncia a capacidade para uma determinação livre da vontade. Para que o consentimento seja encarado como um verdadeiro acto de autodeterminação, é indispensável que quem consente tenha capacidade para o fazer. b) A capacidade para consentir numa renúncia não coincide com a capacidade negocial, embora as regras vigentes relativas à capacidade de celebração de negócios jurídicos possam servir como critério orientador na aferição da capacidade de dispor sobre direitos fundamentais. Assim, a partir dos dezoito anos pode consentir-se validamente numa renúncia, mas tal não significa que os maiores de dezasseis anos, desde que compreendam o sentido e o alcance da sua decisão, não o possam igualmente fazer. c) O poder de renúncia é um poder inseparável do titular do direito, o que significa que deve ser este quem manifesta a vontade de renúncia e não terceiros em seu nome. 8. a) Por outro lado, uma vez que o poder de renúncia se funda na dignidade e autonomia presentes nos direitos fundamentais, a limitação deste poder traduz-se numa restrição ao exercício de direitos, pelo que só poderá ter lugar se houver outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que justifiquem a restrição e na estrita medida do necessário para a garantia desses outros direitos ou interesses. b) Colocámos, consequentemente, a questão de saber se é legítima a aceitação da falta de poder de disposição sobre o próprio direito fundamental quando não estão em causa quaisquer bens da comunidade, mas antes se pretende proteger o titular do direito fundamental para o seu próprio bem contra a sua vontade. 290 c) A ideia de defesa da pessoa contra si própria está intimamente ligada com o paternalismo estadual, uma vez que se devem considerar paternalistas as medidas que limitam ou excluem a liberdade de escolha do indivíduo para o seu próprio bem, por se entender que este poderá levar a cabo actos que contrariam os seus próprios interesses. d) Apenas serão legítimas medidas estaduais paternalistas em relação a indivíduos capazes quando a renúncia possa contender com as possibilidades de “autodeterminação futura” da pessoa. Sendo a nossa ordem jurídica fundada no princípio da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, na autonomia individual, justifica-se a limitação dessa mesma autonomia no sentido de não permitir uma renúncia que a ponha definitivamente em causa. e) Justifica-se ainda uma abordagem paternalista nos casos de direitos ou interesses de menores, de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se encontrem numa posição de partida de maior fragilidade. Contudo, o alcance da autorização para restringir nestes casos deve igualmente obediência ao princípio da proporcionalidade, que deve ser rigorosamente respeitado. f) Assim sendo, é apenas legítimo que o Estado proteja a pessoa de si mesma se esta não estiver em posição de cuidar de si ou quando contenda com as suas possibilidades de “autodeterminação futura”. Para além destas situações não é de admitir uma protecção imposta que restrinja as possibilidades de actuação do visado e que, consequentemente, limite a sua possibilidade de renunciar a direitos fundamentais. 9. a) A renúncia nas relações entre particulares, ao contrário da renúncia perante o Estado que se traduz simultaneamente em exercício e restrição de um direito, já não goza desta “dupla dimensão”, na medida em que o conceito de restrição se refere ao Estado. Uma vez que defendemos uma vinculação directa dos particulares aos direitos fundamentais, na renúncia nesse âmbito tanto quem renuncia como os destinatários da renúncia são entidades privadas. 291 b) Apesar disso, a renúncia entre particulares envolve uma afectação negativa de um direito fundamental, ainda que se consubstancie também em exercício do direito. Nesse sentido, a constatação de que existe um direito a renunciar não invalida que lhe possam ser impostos certos limites também na renúncia entre entes privados. Uma vez que cabe ao Estado garantir que o enfraquecimento do direito fundamental não vai além do que é constitucionalmente admissível, este pode fazer determinadas exigências ao acto de renúncia de modo a atribuir-lhe força jurídica. Assim sendo, faz sentido equiparar, pelo menos em certa medida, a renúncia nas relações entre particulares e a renúncia perante o Estado. 10. a) Fundando-se o poder de renunciar na própria titularidade dos direitos, a decisão quanto à validade de uma dada renúncia nas relações entre particulares depende de saber se há interesses constitucionalmente protegidos que, no caso concreto, devam sobrelevar o poder de renúncia e que possam justificar uma restrição a esse mesmo poder, o que quer dizer que esta é uma conclusão a que apenas se poderá chegar atendendo às circunstâncias do caso concreto, através de uma ponderação de bens. b) Para essa poderação contamos com o auxílio de alguns tópicos, que são os designados limites da renúncia. Partindo dos limites que a doutrina tem vindo a invocar na renúncia perante o Estado julgamos que devem ser tidos em conta, na renúncia entre particulares: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a ordem pública e os bons costumes, a maior ou menor disponibilidade de posições de direitos fundamentais e a exigência de acto legislativo prévio. Tais limites devem ser entendidos como tópicos de argumentação que visam racionalizar o processo de ponderação que tem inevitavelmente de ocorrer quando se afere a validade da renúncia. 11. a) A relevância do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite da renúncia reside sobretudo em determinar até onde pode a densificação deste conceito depender do entendimento que o próprio indivíduo 292 tenha quanto ao que é para si mais ou menos digno e não se este pode renunciar à sua dignidade. b) Uma vez que adoptámos uma concepção de dignidade baseada na autonomia e na responsabilidade individual, o particular deve poder definir por si próprio o sentido e o conteúdo da sua dignidade, sob pena de estarmos perante um paternalismo estadual inadmissível. c) Em conformidade com isso, só em casos extremos o princípio da dignidade poderá justificar restrições da liberdade. Partindo de uma “imagem de Homem” que assenta na autonomia, este princípio não deve servir de fundamento legitimador de uma protecção do indivíduo contra si próprio, sendo de afastar quaisquer medidas que visem tal protecção fora dos casos em que possa ser perturbada a “autodeterminação futura” do sujeito. 12. a) Quanto ao princípio da proporcionalidade, também no que se refere à renúncia a direitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares, este serve, antes do mais, para confinar a acção do Estado quando visa restringir o poder de disposição do titular do direito, o que só poderá acontecer, como em qualquer outra restrição, quando haja outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos a salvaguardar e que, na situação concreta, devam sobrelevar o poder de renúncia. b) No que diz respeito à aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto limite da renúncia nas relações entre particulares é fundamental, antes do mais, aferir se as partes se encontram numa posição de paridade ou se, pelo contrário, se verifica a existência de uma relação de supra/infraordenação entre quem renuncia e o destinatário da renúncia. c) Mesmo que estejamos perante uma situação em que há um desequilíbrio de poderes, não se pode olvidar que o particular anuiu na afectação do seu direito, o que deve ser considerado quando se avalia o respeito da proporcionalidade em sentido restrito e da razoabilidade da medida. Para além disso, a aplicabilidade deste princípio deve atender também às 293 circunstâncias do caso concreto porque a mera existência de uma relação de desigualdade nem sempre significa que a decisão de renúncia seja menos livre. d) Nas relações entre iguais não há razões que obriguem o titular do direito a justificar a autolimitação por um qualquer valor social ou público, o que não quer dizer que o fim da renúncia não possa e até não deva ser um dos elementos a ponderar quando se está a aferir a validade concreta de uma dada renúncia. e) Para além disso, também a intensidade da intervenção deverá ser um elemento a ter em conta na ponderação a realizar. É relevante perceber o grau de enfraquecimento do direito fundamental que decorre da renúncia, o que nos reconduz à questão de saber se estamos perante uma renúncia ao direito fundamental como um todo, uma renúncia de duração indefinida ou uma renúncia definitiva. 13. Quanto ao respeito do conteúdo essencial, as dificuldades inerentes à densificação do conceito implicam que esta garantia não acrescente nada em relação aos outros limites da renúncia perante particulares já referidos. 14. a) No que se refere aos limites da ordem pública e dos bons costumes, a concretização destas cláusulas tem vindo a fazer-se através do recurso aos direitos fundamentais, pelo que estas não constituem um limite autónomo para o problema dos limites da renúncia já que, no fundo, estamos perante a questão da “conformidade material da renúncia aos princípios e regras constitucionais”. b) Apesar disso, há alguns contributos quanto à densificação destes conceitos indeterminados que são úteis para o problema da renúncia. O facto de o carácter grave e irreversível da lesão servir para integrar a cláusula dos bons costumes reforça aquilo que se disse quanto à necessidade de atender, na ponderação a efectuar, à definitividade ou irreversibilidade da renuncia. Por outro lado, é também relevante para o problema da renúncia a ideia de que 294 pode haver um fim positivo capaz de “anular” a ofensa aos bons costumes, que em princípio se verificaria, atendendo à gravidade da lesão. 15. a) No que diz respeito à disponibilidade das posições subjectivas de direitos fundamentais, o poder de renunciar depende também do próprio direito fundamental em causa, o que significa que será maior se esse direito garantir essencialmente bens que dizem respeito ao próprio indivíduo e será menor se tiver em vista também ou sobretudo bens jurídicos relevantes para a comunidade. Assim, mesmo que seja de reconhecer, à partida, um poder de disposição dos titulares sobre os seus direitos fundamentais, esse poder tem de conviver com outros interesses que também gozam de protecção constitucional. b) Não basta, porém, perscrutar o significado dos direitos renunciados no sistema geral dos direitos fundamentais e da Constituição ou ainda apelar à dimensão objectiva destes direitos para resolver a questão, ainda que estes sejam aspectos que devem ser tidos em conta na decisão de ponderação. Uma vez que este problema só é susceptível de uma solução nas circunstâncias dos casos concretos, é necessário recorrer aos demais tópicos para podermos chegar a uma conclusão. 16. Finalmente, quanto à exigência de acto legislativo prévio, não se pode propriamente falar em aplicação do princípio de reserva de lei na renúncia nas relações entre particulares já que não há neste âmbito qualquer intervenção da Administração. Apesar disso, em matérias particularmente sensíveis ou nas situações de renúncia em que os titulares dos direitos se possam encontrar numa posição de maior vulnerabilidade poderá fazer sentido a exigência de um acto legislativo que venha estabelecer os termos dessa renúncia. A regra, no entanto, é a de que o poder de disposição não carece de lei prévia que consagre a sua possibilidade. 17. Assim, de tudo o que vimos até aqui retiramos que não é possível dar uma resposta, à partida, quanto à validade ou invalidade de uma determinada renúncia a direitos fundamentais, uma vez que tal resposta 295 depende inevitavelmente das circunstâncias dos casos concretos. Apesar disso, partindo da “imagem de Homem” que consideramos perpassar a nossa Constituição, que é a do Homem digno e capaz de conformar livremente o seu próprio destino, entendemos que a limitação da possibilidade da renúncia deve ser rigorosamente fundamentada. Para isso, apontamos algumas linhas de argumentação que permitem tornar o processo de ponderação mais racional e menos sujeito a interpretações subjectivas, que nos parece ser muitas vezes a tendência na resolução dos chamados “casos difíceis”. 296 Bibliografia citada: ABRANTES, JOSÉ JOÃO, “O novo Código de Trabalho e os direitos de personalidade do trabalhador” in Estudos sobre o Código do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2004. ACKERMANN, THOMAS, “Case Law: Case C-36/02”, in Common Market LR, n.º 42, 2005. AFONSO DA SILVA, VIRGÍLIO, “O proporcional e o razoável”, in Revista dos Tribunais, n.º 798, 2002, http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/69SILVA, %20Virgilio%20Afonso%20da%20%20O%20proporcional%20e%20o%20razoa vel.pdf (última visita a 12.04.2010). ALEMANY, MACARIO, “El concepto e la justificación del paternalismo” in DOXA – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 28, 2005. 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