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ÍNDICE
Págs.
Introdução …………………………………………………………………………… 7
1. Enquadramento do tema …………………………...…………………………... 7
2. Indicação de sequência e método ……………………………………………. 12
PARTE I: A renúncia a direitos fundamentais
Capítulo I: Conceito de renúncia a direitos fundamentais ………………… 15
1. Aproximação ao conceito ……………………………………………………… 15
2. A
renúncia
enquanto
exercício
e
afectação
negativa
de
direitos
fundamentais …………………………………………………………………… 20
3. Distinção de figuras afins ……………………………………………………... 27
3.1.
A perda e o não-exercício de direitos fundamentais …………… 27
3.2.
A autolesão …………………………………………………………. 32
3.3.
O mero exercício de direitos ………………………………………. 35
4. Possíveis configurações da renúncia ………………………………………... 46
4.1. A renúncia ao exercício e a renúncia à titularidade dos direitos
fundamentais: negação da distinção ……………………………………. 47
4.2. A renúncia total e a renúncia parcial ………………………………. 51
1
Capítulo II: Controvérsias jurídicas sobre a renunciabilidade e a
fundamentação do poder de renúncia ………………………………………... 53
1. A indisponibilidade dos direitos fundamentais ………………….…. ……… 54
2. A fundamentação jurídica da renúncia ……………………………………… 67
2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana ………………….…... 67
2.2. O direito ao desenvolvimento da personalidade …………………... 84
2.3. Posição adoptada: o concurso de direitos fundamentais ………… 98
Capítulo III: Condições da renúncia …………………………………………...107
1. A voluntariedade da declaração de renúncia …………………...…………. 107
2. A capacidade para dispor sobre posições subjectivas de direitos
fundamentais …………………………………………………………………... 123
PARTE II: Os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações
entre particulares
Capítulo I: Os limites da renúncia no contexto de um Estado de Direito
plural ………………………………………………………………………………...127
1. A defesa da pessoa contra si própria e o paternalismo estadual………...129
2. Liberalismo versus comunitarismo ……………………………….…………. 133
3. Liberalismo neutral versus liberalismo perfeccionista ……………………. 138
4. Perfeccionismo versus paternalismo ………………………………………. 151
5. O dever do Estado de proteger a pessoa contra si própria ……………….169
2
Capítulo II: A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no
âmbito da renúncia a direitos fundamentais ………………………………. 175
1. Apresentação do problema …………………………………………………. 176
2. Posição adoptada: a vinculação directa prima facie dos particulares aos
direitos fundamentais ……………………………………………………………. 184
3. Consequências para o problema da renúncia nas relações entre
particulares…………………………………………………………………………. 194
Capítulo III: Os limites da renúncia propriamente ditos …………………. 197
1. Considerações prévias: os direitos fundamentais enquanto princípios … 199
2. Tópicos de argumentação ……………………………………………………. 207
2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite … 210
2.2. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso … 227
2.3. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais ………………. 239
2.4. A ordem pública e os bons costumes ……………………………. 245
2.5. A maior ou menor disponibilidade dos direitos fundamentais … 251
2.6. A exigência de acto legislativo prévio …………………………….. 260
Capítulo IV: Tendências paternalistas na doutrina e na jurisprudência:
análise de alguns casos ……………………………………………………….. 270
Síntese conclusiva ………………………………………………..………….…. 286
Bibliografia citada ………………………………………………………….…….297
3
Abreviaturas e siglas
AcP – Archiv für die Civilistische Praxis
AöR – Archiv des öffentlichen Rechts
art. – artigo
arts. – artigos
BGHSt – Entscheidungen des Bundesgerichtshof in Strafsachen
BMJ – Boletim do Ministério da Justiça
BVerfG – Bundesverfassungsgericht
BVerfGE – Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht
BverwG – Bundesverwaltungsgericht
BVerwGE – Entscheidungen des Bundesverwaltungsgerichts
coord. – coordenador
coords. – coordenadores
DAR – Diário da Assembleia da República
DJAP – Dicionário Jurídico da Administração Pública
DöV – Die öffentliche Verwaltung
DVBl – Deutsches Verwaltungsblatt
ed. – editor
eds. – editors
ERCL – European Review of Contract Law
GewArch – Gewerbearchiv
JA – Juristische Arbeitsblätter
JURA – Juristische Ausbildung
JuS – Juristische Schulung
JZ – Juristen Zeitung
LR – Law Review
NJW – Neue Juristische Wochenschrift
NVwZ – Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht
NZV – Neue Zeitschrift für Verkehrsrecht
org. – organizador
orgs. – organizadores
4
OVGE – Entscheidungen des Oberverwaltungsgerichts
p. – página
pp. – páginas
REDC – Revista Española de Derecho Constitucional
Rev. trim. dr. h. – Revue Trimestrielle des Droits de l'Homme
RLJ – Revista de Legislação e Jurisprudência
RMP – Revista do Ministério Público
RRJ – Revue de la Recherche Juridique – Droit Prospectif
ROA – Revista da Ordem dos Advogados
ss. – seguintes
trad. – tradução
v. – versus
VerwArch – Verwaltungsarchiv
ZG – Zeitschrift für Gesetzgebung
ZRP – Zeitschrift für Rechtspolitik
5
(…) os que se interessam pela boa legislação indagam acerca das virtudes e
dos vícios cívicos. A conclusão clara é a de que a cidade que é
verdadeiramente cidade, e não apenas de nome, deve preocupar-se com a
virtude. Se assim não fosse, a comunidade política decairia numa aliança que
apenas se distinguiria pela contiguidade territorial de outras alianças em que os
membros vivem a uma certa distância uns dos outros. E a lei tornar-se-ia um
simples convénio – ou na frase do sofista Licofronte “uma garantia dos direitos
dos homens” – mas incapaz de tornar bons e justos os cidadãos.
Aristóteles, Política
“In the part which merely concerns himself, his independence is, of right,
absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is
sovereign.”
John Stuart Mill, On Liberty
Nota prévia: não foram acrescentadas ou actualizadas quaisquer referências
bibliográficas desde Maio de 2010. Quanto às traduções de Autores
estrangeiros, exceptuando os casos em que expressamente se refira o
contrário, são todas da nossa responsabilidade.
6
Introdução
1. Enquadramento do tema
Escolhemos para este estudo o tema dos limites da renúncia a direitos
fundamentais nas relações entre particulares. Em termos muito gerais, temos
como objectivo determinar os limites dentro dos quais o titular de um direito
fundamental pode validamente dele dispor, enfraquecendo a sua posição
jurídica subjectiva perante outro ente privado.
A problemática da renúncia a direitos fundamentais1, seja na relação
Estado/cidadãos, seja nas relações entre particulares, é um tema com uma
grande actualidade, na medida em que contende com uma série de questões
controvertidas que hoje se colocam e para as quais não existe (e
provavelmente nunca existirá) uma única resposta. Serão “casos difíceis”2, por
exemplo, as situações de renúncia ao direito à reserva sobre a intimidade da
vida privada em reality shows3, a renúncia ao direito à integridade física através
da castração química de autores de crimes sexuais4, do consentimento na
1
Tratando o tema sob esta designação, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos
fundamentais”, in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da
Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 263 – 335 (também in Direitos
Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 211 – 282);
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia aos direitos fundamentais”, in DJAP, 1.º Suplemento, Lisboa,
1998, pp. 409 – 425.
2
Sobre o conceito de hard cases, ver RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously, 2.ª
impressão (com resposta a críticas), Duckworth, London, 2009, pp. 81 ss; RONALD DWORKIN,
A Matter of Principle, Clarendon Press, Oxford, 1985, pp. 119 ss; ANABELA LEÃO, “Em torno
dos conceitos de regra e de princípio. A polémica entre Hart e Dworkin”, in Estudos
Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa,
Almedina, Coimbra, 2008, p. 66. GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos,
Justicia, (trad. MARINA GASCÓN), 8.ª Edição, Editorial Trotta, Madrid, 2008, p. 139, utiliza a
expressão “casos críticos” e considera que estes são os casos sobre os quais não existe
acordo (…) entre os intérpretes acerca do sentido e do valor que se lhes deve atribuir”. O Autor
dá como exemplos as questões que se relacionam com os temas da vida (a concepção, o
aborto), da morte (a eutanásia), da saúde (os transplantes, a engenharia genética) e da
bioética em geral.
3
Sobre esta questão, ver BENEDITA MAC CRORIE, “A renúncia ao direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada”, in DJAP, 3.º Suplemento, Lisboa, 2007, pp. 618 ss.
4
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1997, p. 72.
7
participação em experiências médicas5 ou na doação de órgãos6, e a renúncia
ao direito à vida nos casos de eutanásia7 ou quando se admitem disposições
antecipadas da vontade8. Estes exemplos são reconduzíveis à figura da
renúncia e é comum a todos eles a presença de um interesse do titular do
direito fundamental em dispor desse direito de modo a tomar uma decisão que
considera relevante para a conformação da sua própria existência9.
Como primeira delimitação do tema, vamos tratar esta figura do ponto de
vista do Direito Constitucional10, referindo essencialmente situações de
5
MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, GCA-Verlag,
Herdecke, 1999, p. 2.
6
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 252 ss e 323
ss, considera ainda como exemplos de renúncia à integridade física a análise consentida do
genoma (embora entenda que não seja de excluir que possam estar aqui em causa outros
direitos, como o direito à identidade genética e o direito à autodeterminação informacional
genética, que abrange um direito a não saber) e a manipulação genética.
7
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 272 e 273, refere como
exemplos de situações de renúncia ao direito à vida os casos de doentes em estado terminal
que pedem auxílio para pôr termo à sua vida ou o caso de uma mãe, doente terminal sem
possibilidades de recuperação que, para salvar a vida do filho lhe pretende doar um órgão, o
que irá inevitavelmente provocar a sua própria morte.
8
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 2. OLIVIER DE
SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism under the European Convention on
Human Rights“, in Northern Ireland Legal Quarterly, Vol. 51, n.º 3, 2000, pp. 507 e 508,
considera, no entanto, que nestes casos apenas mediatamente se renuncia ao direito à vida. O
que está aqui em causa é essencialmente o exercício do direito a recusar tratamento médico,
que terá como consequência a morte, mas não implica admitir-se um direito geral de renúncia à
vida.
9
ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, in ERNST BENDA –
WERNER MAIHOFER – HANS-JOCHEN VOGEL – KONRAD HESSE – WOLFGANG HEYDE, (trad.
ANTONIO LÓPEZ PINA) Manual de Derecho Constitucional, 2.ª Edição, Marcial Pons, Barcelona,
2001, p. 141.
10
As raízes históricas da renúncia remontam ao direito romano: “cuique licet his quae pro se
introducta sunt renunciare”. Ver HELMUT QUARITSCH, “Der Verzicht im Verwaltungsrecht und
auf Grundrechte”, in PETER SELMER – INGO VON MÜNCH (orgs.), Gedächtnisschrift für
Wolfgang Martens, Walter de Gruyter, Berlin, New York, 1987, p. 407; também GERHARD
SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 6. De facto, “a origem e o desenvolvimento dogmáticos
do conceito de renúncia a direitos podem ser localizados quer no Direito Civil (…) quer no
Direito Penal”, existindo uma “íntima conexão da problemática da renúncia com a máxima
‘volenti non fit injuria’”. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 264 e
265. Assim sendo, não podemos deixar de, ao longo deste trabalho e sempre que tal se
justifique, recorrer aos contributos do Direito Civil e do Direito Penal, nos quais “[a] ideia da
limitação voluntária dos direitos e a relevância do consentimento como causa geral de exclusão
da ilicitude” está há muito afirmada”. Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra,
2009, p. 312, nota 114. De todo o modo, apesar de ter surgido inicialmente no direito privado, a
renúncia, enquanto instituto jurídico, desempenha hoje um papel relevante nos diferentes
domínios jurídicos. Ver KNUT FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, Würzburg, 1968, pp. 13
ss.
8
renúncia a posições subjectivas protegidas pelas normas constitucionais que
são designadas, entre nós, por direitos, liberdades e garantias, uma vez que é
sobretudo em relação a estas que dizem respeito os denominados “casos
difíceis”11. Tal não significa, no entanto, que não se possa colocar a questão da
renúncia a direitos económicos, sociais e culturais e, em particular, aos
chamados direitos derivados a prestações12.
Não existe no Direito Constitucional “um princípio geral segundo o qual o
consentimento funcione como justificação de intervenções, de outra forma
ilegítimas, do poder público [ou de entes privados] na esfera dos particulares”13.
De facto, a Constituição da República Portuguesa (CRP) não regula
expressamente o problema da admissibilidade da renúncia e das suas
“condições e limites”, pelo que, em geral, a resposta para estas questões não
decorre imediatamente do texto constitucional, o que não significa, no entanto,
que dos seus preceitos não se possam retirar alguns indícios úteis14.
A questão de saber quais os limites do “poder individual de dispor das
11
Tomando a parte pelo todo vamos, ao longo deste trabalho, utilizar indistintamente as
expressões direitos fundamentais e direitos, liberdades e garantias.
12
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª
Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 465, parece efectivamente admitir a possibilidade de
renúncia (autolimitação) a direitos sociais. Não está subjacente a esta distinção “uma
diferenciação essencialista entre direitos, liberdades e garantias e direitos sociais”. Ela assenta
apenas nos seguintes “critérios estruturais: o critério da determinabilidade e o critério da
natureza dos condicionamentos que afectam a realização dos direitos fundamentais por parte
dos poderes públicos”. Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos
Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, Coimbra,
2003, p. 147. O Autor defende “uma dogmática unitária aplicável a todos os direitos
fundamentais”. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição, cit., pp. 133 e ss; JORGE REIS NOVAIS, Direitos
Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Wolters Kluwer –
Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 344 ss.
13
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 265. Considerando que
também no ordenamento jurídico austríaco não existe esse princípio geral para o direito
privado e, consequentemente, ainda menos para o direito público, ver GABRIELE KUCSKOSTADLMAYER, “Der Verzicht auf öffentliche Rechte”, in HEINZ SCHÄFFER – WALTER BERKA –
HARALD STOLZLECHNER – JOSEF WERNDL (orgs.), Staat – Verfassung – Verwaltung,
Festschrift anlässlich des 65. Geburtstages von Prof. DDr. DDr. h.c. Friedrich Koja, Springer
Verlag, Wien, New York, 1998, p. 581. Por seu lado, GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., pp. 54 e 55, entende que os “pressupostos de base” do princípio
volenti non fit injuria não são aplicáveis ao Direito Constitucional, onde “a vontade do indivíduo
não tem um significado decisivo, mas apenas deve entrar no jogo conjunto entre interesses
individuais e interesses públicos”. Daí que, para o Autor, a vontade do indivíduo não possa ter,
nesta sede, o mesmo significado que tem no direito privado.
14
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 311 e 312.
9
posições jurídicas próprias tuteladas por normas de direitos fundamentais”15
adquire uma relevância acrescida no contexto social presente, no qual se tem
vindo a entender que a agressão a direitos fundamentais poderá resultar
também da actuação de entidades privadas16. Apesar de o problema da
renúncia ser sobretudo abordado na perspectiva das relações Estado/cidadãos,
o que reflecte a concepção tradicional de que os maiores perigos para a esfera
subjectiva dos indivíduos advêm da acção dos entes públicos e não da acção
de outros sujeitos privados, cada vez mais se constata que esta problemática
tem uma importância análoga ou até superior no âmbito das relações entre
particulares17.
Assim, julgamos pertinente abordar a questão da renúncia por este
prisma por duas ordens de razões: por um lado, porque se trata de uma
questão carecida de tratamento mais aprofundado, uma vez que não há sequer
consenso na doutrina sobre se a renúncia a direitos fundamentais tem algum
significado nas relações que os cidadãos estabelecem entre si18. Por outro
lado, porque nos parece fundamental indagar se os limites da renúncia no
âmbito das relações que se estabelecem entre o Estado e os particulares são
15
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271.
16
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine
della Carta dei Diritti)”, in Rivista di Diritto Civile, n.º 6, 2002, p. 804; KONRAD HESSE,
“Significado de los derechos fundamentales”, in ERNST BENDA – WERNER MAIHOFER – HANSJOCHEN VOGEL – KONRAD HESSE – WOLFGANG HEYDE, Manual de Derecho Constitucional,
(trad. ANTONIO LÓPEZ PINA), 2.ª Edição, Marcial Pons, Barcelona, 2001, p. 107. Considerando
também que num Estado democrático os perigos para os direitos dos indivíduos advêm “cada
vez mais dos poderes privados”, ver JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever de Legislar e Protecção
Jurisdicional contra Omissões Legislativas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2003, p. 44.
17
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine
della Carta dei Diritti)”, cit., p. 804, nota 5. Defendendo que a renúncia “tanto pode surgir no
quadro das relações entre o Estado e o cidadão como no âmbito das relações jurídicas
privadas (onde aliás ocorrem as hipóteses mais frequentes)”, ver JOSÉ DE MELO
ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, Principia, Estoril, 2007, p. 136. Alguns
dos “casos difíceis” que referimos consubstanciam-se, de facto, em situações de renúncia nas
relações entre particulares e outros ainda poderão ocorrer quer perante o Estado quer perante
entes privados. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 265 e 266, dá
também alguns exemplos de renúncia nas relações entre particulares: será o caso dos
contratos celebrados por jogadores de futebol, nos quais estes se vinculam a respeitar
determinadas exigências estabelecidas nos regulamentos dos clubes ou quando se obrigam a
não jogar em determinados clubes caso regressem a Portugal; o caso dos trabalhadores de
uma dada empresa que se vinculam a não fazer greve; ou ainda quando alguém se sujeita a
ensaios clínicos com medicamentos. Para o Autor, em qualquer destas situações está “directa
ou indirectamente em causa um problema de renúncia a direitos fundamentais”.
18
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 215.
10
extensíveis às relações jurídicas privadas.
O tratamento do problema da renúncia nesta perspectiva implica que
analisemos previamente a questão da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais19. De facto, só faz sentido falar de um poder de disposição
individual nas relações entre privados se efectivamente se considerar que
existe uma eficácia horizontal destes direitos. Torna-se, por isso, imprescindível
uma tomada de posição quanto à questão de saber em que termos os direitos
fundamentais são também aplicáveis nas relações jurídicas privadas20.
Finalmente, a resposta ao problema que vamos estudar depende, em
grande medida, da concepção de Estado que se defende e do papel que se
considera que este deve (ou não) ter na condução da vida dos cidadãos.
Pensamos que há uma tendência dos poderes públicos para limitar
excessivamente o poder de dipor sobre os direitos fundamentais21, pelo que
procuraremos estabelecer alguns critérios que nos permitam aferir com maior
clareza até onde pode o Estado ir quando interfere nesse poder. Na medida em
que a renúncia “tem ainda justificação lógica no pressuposto filosófico da não
compossibilidade da realização simultânea de todos os bens ou interesses da
liberdade” deve, em regra, ser reconhecido ao titular dos direitos “um poder de
definição de prioridades na realização concreta da sua esfera de liberdade”22.
Consequentemente, é fio condutor deste trabalho a finalidade de alargar
o campo da renúncia, o que implica que tenhamos em consideração os
problemas mais gerais do paternalismo estadual e da defesa da pessoa contra
si própria23, uma vez que aquele que renuncia a um direito fundamental e
19
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 266.
20
LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, in Persona
y Derecho, n.º 45, 2001, p. 137.
21
Como nos diz ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, 2.ª
Edição, Tenacitas, Coimbra, 2008, pp. 154 e 155: “O direito derrama-se sobre sectores até hoje
subordinados a outros quadros normativos, cuja estabilidade interna e equilíbrio relativo ficam
assim gravemente prejudicados. (…) O legislador (…) julga(-se) autorizado a submeter a regras
jurídicas comportamentos dos domínios do económico, da cultura ou do foro da personalidade,
tradicionalmente regulados por normas específicas ou por preceitos de moralidade, de cortesia
ou de conveniência política. Torna-se imperioso perguntar sempre em cada caso se essas
invasões se justificam pela sua indispensabilidade”. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, no prefácio desta obra, considera que “nesta mensagem ainda não estamos
próximo da ‘lucidez do desespero’, mas convém ficar de sobreaviso. Os Big Brother espreitam”.
22
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 139 e 140.
23
Defendendo que é de distinguir as situações de renúncia das situações de defesa da pessoa
11
permite que um terceiro restrinja a sua esfera juridicamente protegida por esse
direito está, ainda que de forma indirecta, a lesar-se a si mesmo. A ideia de que
o Estado tem um dever de proteger a pessoa contra si própria encontra-se
muitas vezes explícita ou implicitamente na base dos limites que se
estabelecem à liberdade de renúncia24, pelo que nos parece essencial, antes
de analisarmos os limites propriamente ditos, tratar o problema da legitimidade
dessa defesa. É que “se tal protecção é justificável, isso significa que se
admite, pelo menos em alguma medida, que o indivíduo não pode dispor à sua
vontade dos direitos e liberdades de que é titular, mesmo quando ao agir de
determinado modo não esteja a prejudicar outras pessoas”25.
É nosso desiderato encontrar uma resposta a estas questões que se
coadune com aquela que consideramos ser a imagem de Homem e do mundo
subjacentes à Constituição da República Portuguesa, isto é, que seja
consentânea com um “Estado que permite (…) [ao] Homem sê-lo, o mais
completamente que é possível”26.
2. Indicação de sequência e método
Agora que já vimos com mais cuidado qual o problema de que nos
pretendemos ocupar vamos, na Parte I da tese, definir o conceito de renúncia a
direitos fundamentais, distinguindo a renúncia de figuras afins, de modo a
delimitar o objecto do nosso estudo e a compreender que situações são, de
facto, recondutíveis a esta figura jurídica. Veremos, depois, quais as possíveis
contra si própria, uma vez que a renúncia a direitos fundamentais se refere a uma situação de
“’protecção aceite contra si mesmo’, (…) o que permite fazer a distinção com uma protecção
imposta”, ver JÜRGEN SCHWABE, “Der Schutz des Menschen vor sich selbst”, in JZ, n.º 2, 1998,
p. 68.
24
Considerando que na renúncia a direitos fundamentais “se coloca a questão da protecção de
direitos fundamentais contra o próprio titular”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463.
25
PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des
Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, Éditions Bruylant, Bruxelles, 2001, p.
361. Colocando a questão de saber se “a intenção última do direito é a construção de uma
sociedade moral ou a ordenação da convivência”, ver EULALIA PASCUAL LAGUNAS,
Configuración Jurídica de la Dignidad Humana en la Jurisprudência del Tribunal Constitucional,
Bosch Editor, 2009, p. 23.
26
FRANCISCO LUCAS PIRES, Uma Constituição para Portugal, Coimbra, 1975, p. 4.
12
configurações que a renúncia pode assumir, para, em seguida, tratar as
objecções
usualmente
apontadas
à
renunciabilidade,
bem
como
a
fundamentação jurídica do poder de disposição individual sobre posições de
direitos fundamentais. Para terminar, atentaremos nas condições da renúncia.
Na Parte II propomo-nos analisar os limites da renúncia a direitos
fundamentais nas relações jurídicas privadas, o que, conforme já referimos,
pressupõe a apreciação prévia dos problemas da legitimidade do paternalismo
estadual e da defesa da pessoa contra si própria, bem como da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais. Interessa-nos, fundamentalmente,
perceber quais os topoi a ter em conta na ponderação a fazer para aferir a
validade de uma renúncia concreta. Para ilustrar as nossas posições vamos
ainda referir alguns casos que reflectem aquilo que pensamos ser uma
abordagem tendencialmente paternalista da doutrina e da jurisprudência
quanto ao alcance do poder de disposição individual sobre posições de direitos
fundamentais.
Neste trabalho faremos apelo a direitos estrangeiros bem como ao
direito internacional, através do recurso à doutrina e jurisprudência de
diferentes ordens jurídicas e também, quando tal for oportuno, à jurisprudência
de instâncias internacionais, maxime do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem (TEDH). Optámos por não fazer um trabalho de Direito Comparado, o
que exigiria uma análise pormenorizada da figura da renúncia a direitos
fundamentais nas diferentes ordens jurídicas a comparar27. Tal não nos
pareceu a melhor via porque a figura da renúncia tem sido tratada sobretudo na
Alemanha e é com base na doutrina alemã que a nossa ordem jurídica tem
abordado a questão28, pelo que haverá na tese um diálogo constante com essa
27
Ver CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução ao Direito Comparado, Almedina, Coimbra,
1998, p. 12.
28
Também nos Estados Unidos se discute este problema, embora se entenda que existe um
“paradoxo" no Direito Constitucional no que se refere à possibilidade de os indivíduos poderem
renunciar a direitos fundamentais em troca de determinados benefícios do Estado, uma vez
que existem duas doutrinas constitucionais distintas relativamente a esta questão: a que diz
respeito à renúncia a garantias do procedimento criminal e a que trata da renúncia a outras
disposições, que se designa “doutrina das condições inconstitucionais”. Em geral há uma
grande abertura no que diz respeito a acordos extrajudiciais no procedimento criminal, não se
verificando contudo o mesmo no que se refere aos restantes direitos constitucionalmente
protegidos. Tem-se, por isso, defendido que ao analisar a renúncia sob duas perspectivas
diferentes, com diferentes pressupostos e preocupações, os tribunais e a doutrina têm falhado
em pensar cuidadosa e coerentemente acerca do problema da renúncia a direitos
13
mesma doutrina. Entre nós o tema tem merecido pouco desenvolvimento, com
excepção do artigo de Jorge Reis Novais29, que assume um lugar incontornável
nesta matéria.
Finalmente, procurando evitar intrusões abusivas em áreas que não são
estritamente do âmbito do direito, não poderíamos, ainda assim, ignorar os
contextos filosóficos e políticos em que se inscreve esta problemática. Na
medida em que as questões que vamos analisar pressupõem uma determinada
concepção do Estado e do papel que este deve (ou não) ter na condução da
vida dos cidadãos, uma análise daquilo que mais recentemente tem vindo a ser
discutido no âmbito da filosofia política torna-se, por isso, indispensável.
fundamentais. Sobre esta questão, ver JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, in
Northwestern University LR, Vol. 97, n.º 2, 2003, pp. 801 – 803 e 848. Sobre a renúncia no
procedimento criminal, ver MICHAEL E. TIGAR, “Waiver of constitutional Rights: disquiet in the
citadel”, in Harvard LR, Vol. 84, n.º 1, 1970/1971, pp. 1 ss; WILLIAM J. STUNTZ, “Waiving Rights
in Criminal Procedure”, in Virginia LR, Vol. 75, 1989, pp. 761 ss. Sobre a doutrina das
condições inconstitucionais, ver KATHLEEN M. SULLIVAN, “Unconstitutional Conditions” in
Harvard LR, Vol. 102, n.º 7, 1989, pp. 1415 ss; RONALD B. STANDLER, “Doctrine of
Unconstitutional Conditions in the USA”, http://www.rbs2.com/duc.pdf (última visita a
12.04.2010). JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, in Der Staat, n.º 17,
1978, p. 547, enquadra a doutrina das “condições inconstitucionais” no problema das relações
especiais de poder, considerando que nestes casos estão em causa sobretudo restrições
heterónomas e não verdadeiras renúncias. Quanto às relações especiais de poder e a sua
relação com a problemática da renúncia, ver infra p. 47.
29
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit..
14
PARTE I: A renúncia a direitos fundamentais
Capítulo I – Conceito de renúncia a direitos fundamentais
1. Aproximação ao conceito
Não há consenso entre os diferentes Autores quanto ao que se deve
entender por renúncia30, pelo que vamos, num primeiro momento, procurar
delimitar a figura, para depois podermos desenvolver mais aprofundadamente
o problema dos seus limites. Na primeira parte da tese temos sobretudo uma
intenção de revisitação crítica da doutrina, em particular, portuguesa e alemã,
relativa a este tema.
Assumindo a definição dada por Jorge Reis Novais, a renúncia a direitos
fundamentais traduz-se no “enfraquecimento voluntário de uma posição jurídica
individual protegida por uma norma de direito fundamental, determinado por
uma declaração de vontade do titular que o vinculou juridicamente a aceitar o
correspondente alargamento da margem de actuação da entidade pública [ou
privada] face às pretensões que decorriam daquela posição”31.
No direito privado a figura da renúncia implica a extinção de um direito32,
uma vez que se trata de um “acto voluntário pelo qual uma pessoa perde um
direito de que é titular, sem uma concomitante atribuição ou transferência dele
30
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, in JuS, n.º 12, 1985, p. 925.
31
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 285; ver também JOST
PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 531. JOSÉ DE MELO
ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 136, define renúncia como “a
afectação de uma posição de direito fundamental, traduzida na redução dos efeitos de
protecção desse direito, por força da vontade do respectivo titular”. Considerando que não
pode haver renúncia a direitos fundamentais a favor do Estado, uma vez que isso “equivaleria a
admitir a sua desvinculação dos direitos fundamentais, direitos cuja função primordial é
precisamente limitar os poderes públicos”, ver LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la
renuncia a los derechos fundamentales”, cit., p. 135.
32
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 270; LUÍSA NETO, O Direito
Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 371.
Sobre a renúncia abdicativa e o seu efeito extintivo do direito, ver, mais desenvolvidamente,
FRANCISCO MANUEL PEREIRA COELHO, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, Coimbra
Editora, Coimbra, 1995.
15
para outrem”33. Já a renúncia a direitos fundamentais normalmente não se
traduz na extinção do direito em causa. Neste âmbito, a questão que se
costuma colocar é a de “um compromisso individual e voluntário de um cidadão
não invocar temporariamente (…) uma determinada posição jurídica tutelada
por uma norma de direito fundamental”34. Em consequência disso, surgem
diversas posições que sugerem o abandono da fórmula “renúncia a direitos
fundamentais”, propondo a sua substituição por outras designações.
Parece-nos ser esse o caso de Gomes Canotilho, que considera que, no
que se refere à problemática da renúncia, a orientação a seguir deve ser
diferenciada.
Assim,
entende
que
“é
irrenunciável
qualquer
direito
medularmente inerente à dignidade da pessoa humana” e que “os direitos
fundamentais, como totalidade, são irrenunciáveis”. Por outro lado, defende
que “os direitos, liberdades e garantias, isoladamente considerados, são
também irrenunciáveis, devendo distinguir-se, no entanto, entre renúncia ao
núcleo substancial do direito (constitucionalmente proibida) e limitação
voluntária ao exercício (aceitável sob certas condições) de direitos”.
Finalmente, considera ainda que “os direitos fundamentais dos trabalhadores e
das
suas
organizações
são,
na
ordem
constitucional
portuguesa,
irrenunciáveis, sobretudo quando se trata de direitos, liberdades e garantias
dos trabalhadores”35.
Gomes Canotilho considera, então, que não pode haver renúncia a
direitos fundamentais mas apenas “limitação voluntária ao exercício de alguns
direitos”. Ora esta contraposição estabelecida pelo Autor entre renúncia e
limitação voluntária parece pressupor uma interpretação do conceito de
renúncia como implicando necessariamente a extinção de direitos36.
33
ANA PRATA, Dicionário Jurídico, Almedina, Coimbra, 1995, p. 848.
34
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 270 e 271.
35
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
464. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 454, entendem que o direito à
integridade física e psíquica é “um direito pessoal irrenunciável, a não ser nos casos em que o
consentimento seja aceitável (…) ou haja necessidade de intervenções e de tratamento
médico-cirúrgicos”. Defendendo também que os direitos fundamentais são irrenunciáveis mas
que a limitação ao exercício do direito é “aceitável sob certas condições”, ver CRISTINA
QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 275.
36
Também LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p.
372, considera a renúncia um “acto essencialmente unilateral com o qual o titular de uma
16
Jorge Miranda, por seu lado, entende que os direitos fundamentais “são
indisponíveis e irrenunciáveis”, pelo que “[n]inguém pode, por qualquer forma,
ceder ou abdicar da sua titularidade”. Tal não significa, no entanto, “que os
seus titulares não possam ou não devam aceitar a sua restrição; ou que não
possam, por sua vontade, suspender o exercício de alguns desses direitos”.
Assim, considera que, por princípio, ninguém pode renunciar a direitos
fundamentais, apenas se concebendo que o próprio titular deste ou daquele
direito venha a estabelecer uma “auto-restrição” ou “auto-suspensão”, para fins
não contrários aos princípios do Estado de Direito democrático37. Este Autor
entende ainda que a forma como os defensores do conceito de renúncia o
definem mostra que, na realidade, não se trata de uma verdadeira renúncia, na
medida em que o que está em causa é a vinculação jurídica do indivíduo “a não
invocar
o
seu
direito
fundamental
perante
as
entidades
públicas,
nomeadamente, comprometendo-se, em geral, a não exercer, temporária ou
pontualmente, algumas das pretensões, faculdades ou poderes incorporados
no seu direito”38.
Jost Pietzcker, por sua vez, considera que “em rigor o conceito de
‘renúncia a direitos fundamentais’ implica a renúncia total a um direito
fundamental como um todo”. Partindo desta definição, para o Autor o conceito
posição de poder dele se despoja voluntariamente, dada a (…) intransmissibilidade dos direitos
da personalidade”.
37
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 4.ª Edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 2008, pp. 384 e 385. Para o Autor, “auto-restrição é (…) o que se verifica com a
integração em estatutos especiais como os dos militares e dos agentes de forças de segurança
(art. 270.º) ou em estatutos como os dos juízes, dos magistrados do Ministério Público, dos
diplomatas ou dos dirigentes da Administração Pública. Pretendendo fazer parte de
determinadas instituições, com as contrapartidas de serviço público e de autoridade os
cidadãos, necessariamente aceitam subordinar-se às exigências próprias do seu
funcionamento. De todo o modo, como as restrições provêm da Constituição, em rigor, não se
trata senão de uma auto-restrição indirecta ou consequencial”. Como hipóteses de “autosuspensão” ou “auto-suspensão aparente” refere a possibilidade “de prescindir de advogado
durante uma diligência judicial (art. 20.º, n.º 2, 2.ª parte); fazer esterilização por razões médicas
(art. 25.º); dispor-se ao transplante de órgão ou tecido para salvar a vida de outrem (art. 25.º);
solicitar a entrada da polícia no seu domicílio (art. 34.º), comprometer-se, enquanto membro de
uma associação, a não se pronunciar sobre ela fora da assembleia-geral (art. 37.º); concordar
em não exercer determinada profissão (art. 47.º) ou em não residir em certos lugares ou
regiões (art. 44.º); não exercer direito de greve durante a vigência de certa convenção colectiva
de trabalho (art. 57.º); não exigir o pagamento de pensões da segurança social (art. 63.º);
aceitar, sendo professor ou aluno, não participar na gestão da sua escola (art. 77.º); pedir a
intervenção do Estado na sua empresa (art. 86.º), etc”.
38
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 385, nota 3.
17
de renúncia não é o mais adequado, uma vez que defende que uma tal
renúncia raramente ocorre e que, a ocorrer, deve ser considerada ilegítima.
Segundo ele, a utilização deste conceito remete-nos para o conceito de
renúncia de Direito Civil, com o qual não se identifica, uma vez que deve ser
mais amplamente compreendido. Em consequência disso, entende que a
designação mais correcta é a de “disposição individual acerca de posições de
direitos fundamentais”39.
Finalmente, Knut Amelung considera pertinente a distinção entre
renúncia (que considera implicar a extinção do direito) e “consentimento para a
lesão de um bem jurídico jusfundamental”. Segundo ele, o critério distintivo
prende-se com a força vinculante da renúncia que não existe no
consentimento, uma vez que este último é livremente revogável. Assim, a
renúncia a um direito de liberdade significa a perda de um direito, enquanto o
consentimento, pelo contrário, se traduz num exercício de autonomia individual,
uma vez que quem consente mantém o domínio dos acontecimentos40.
Não estamos, no entanto, de acordo com estas posições. Com todo o
respeito pelas outras opiniões referidas, pensamos que faz sentido manter o
conceito de renúncia a direitos fundamentais41, uma vez que o conceito em
39
JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 531. Também KLAUS
STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, Verlag
C. H. Beck, München, 1994, pp. 887 e 906, ainda que não pondo de lado o conceito de
renúncia, uma vez que esta é a designação mais corrente utilizada pela doutrina, julgam
preferível a designação de “renúncia a fazer valer a protecção de um direito fundamental”.
Seguindo a posição de Pietzcker, para os Autores o conceito de renúncia é “pouco feliz”, na
medida em que nos reconduz ao conceito mais restrito de renúncia do Direito Civil, com o qual
não tem necessariamente de se identificar. Também KLAUS RÜDIGER WILDE, Der Verzicht
Privater auf subjective öffentliche Rechte, Hamburg, 1966, pp. 78 ss; ANSGAR OHLY, “Volenti
non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2002, p. 89. LUÍSA
NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 371, considera que
entre a “renúncia” e a “autolimitação” existe “uma distinção de grau, entre o que seja uma
redução parcial ou uma ablação total (…) do exercício do direito”. Ver também, sobre a posição
de Pietzcker, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271, cuja
tradução da expressão “individuelle Verfügung über Grundrechtspositionen” utilizamos.
40
KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, Duncker &
Humblot, Berlin, 1981, pp. 14 ss. Parece ser também esse o caso de HANS D. JARASS – BODO
PIEROTH, Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, 9.ª Edição, Verlag C. H. Beck,
München, 2007, p. 31. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik,
cit., p. 33, sustenta, no entanto, que não existem diferenças tão significativas entre os conceitos
de renúncia e de consentimento, tal como Amelung os utiliza nestes casos, que justifiquem a
não utilização do conceito de renúncia.
41
Pensamos que será também o caso de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 308 e 309, que embora utilize
18
Direito Constitucional não tem de corresponder ao conceito de direito privado,
devendo a renúncia necessariamente significar a extinção de um direito. Esta é
também a posição defendida por Jorge Reis Novais, pois segundo o Autor, “o
menor denominador comum das situações de renúncia é (…) esse poder
individual de dispor das posições jurídicas próprias tuteladas por normas de
direitos fundamentais, de cujo exercício resulta, como consequência jurídica,
uma diminuição da protecção do indivíduo”42. Assim definida a renúncia, o
exercício do poder de disposição sobre uma posição subjectiva de direito
fundamental não extingue inevitavelmente o direito e não tem de ser
irrevogável.
Por outro lado, ao delimitarmos à partida o conceito de renúncia, no
sentido de considerar que não pode haver uma “renúncia total a um direito
fundamental como um todo”43, estamos a restringir o poder de disposição em
que se traduz a renúncia, poder esse que, como teremos oportunidade de
desenvolver mais à frente, é também jusfundamentalmente protegido, antes
sequer de atentarmos nas condições e limites dessa mesma renúncia.
Consequentemente, estamos de acordo com Jorge Reis Novais, na medida em
que considera que não faz sentido adoptar “uma concepção restritiva a priori do
conceito de renúncia”, devendo este também abarcar, pelo menos à partida, as
situações de renúncia que impliquem a extinção do direito. Uma concepção
não restritiva é justificada, uma vez que, de outro modo, “as modalidades mais
‘ambiciosas’ de renúncia seriam, imediatamente, ou inviáveis ou inadmissíveis”.
É fundamental estabelecer uma distinção entre, por um lado “o conceito de
renúncia”, cujo “núcleo essencial é a existência de uma decisão voluntária que
produz um enfraquecimento da protecção de direito fundamental”, e, por outro
lado, a extensão do “correspondente poder de disposição individual”44.
Estamos de acordo com estas considerações, pelo que pensamos que faz
sentido seguir um entendimento amplo do conceito, não sendo, então, de
preferencialmente a designação de “autolimitação de direitos”, admite também outras
formulações, como é o caso de “formas de disposição limitadora” ou “renúncia ao exercício de
um direito”.
42
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271.
43
JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 531.
44
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 270 - 272.
19
excluir aprioristicamente situações de renúncia que possam consubstanciar-se
na extinção do direito.
Finalmente, parece-nos que, apesar da oposição por parte de alguma
doutrina em relação ao conceito de renúncia, não se trata de um conceito novo
na dogmática dos direitos fundamentais e é, por outro lado, um conceito
utilizado e enraizado noutras ordens jurídicas (em particular na alemã) e em
instâncias internacionais, como é o caso do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem. Em consequência disso, parece-nos que faz mais sentido manter esta
designação – ainda que tal não nos exima da tarefa de definir com precisão os
contornos da figura – do que criar novos conceitos que, receamos, possam
conduzir a uma maior ambiguidade45.
Assim, utilizaremos este conceito não no sentido de a renúncia
necessariamente provocar a extinção do direito, que é o sentido atribuído pelo
Direito Civil, mas antes implicando “uma diminuição da protecção” do direito do
indivíduo46 que poderá, em alguns casos, levar à sua extinção. Nessa medida,
a renúncia a direitos fundamentais é o “poder individual de dispor das posições
jurídicas próprias, tuteladas por normas de direitos fundamentais, de cujo
exercício resulta, como consequência jurídica, uma diminuição da protecção do
indivíduo”47.
2. A renúncia enquanto exercício e afectação negativa de direitos
fundamentais
A renúncia caracteriza-se também por uma “dupla dimensão”, uma vez
que se traduz simultaneamente em exercício e afectação negativa de direitos
fundamentais48. É, por um lado, expressão do exercício de direitos porque “a
realização de um direito fundamental inclui, em alguma medida, a possibilidade
45
Parece-nos ser esse o caso do conceito de “auto-suspensão de direitos” utilizado por JORGE
MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 384 e 385.
46
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271.
47
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 271 (itálico nosso).
48
Considerando que a renúncia se consubstancia simultaneamente em exercício e restrição de
direitos, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 287 ss.
20
de se dispor dele, inclusive no sentido da sua limitação”49. A pessoa que
renuncia fá-lo porque espera obter um benefício com o acto de renúncia,
benefício esse que considera ser mais valioso do que a preservação do direito
fundamental em si mesmo50. Por outro lado, uma vez que “determina
objectivamente um enfraquecimento das posições individuais de direitos
fundamentais”51, a renúncia implica também uma afectação negativa dos
direitos em causa.
Na renúncia perante o Estado parece ser de entender que está em
causa uma restrição de direitos, pelo menos quando se adopta um conceito
abrangente de restrição52. Se por esta entendermos a “acção ou omissão
estatal
que,
eliminando,
reduzindo,
comprimindo
ou
dificultando
as
possibilidades de acesso” e “fruição” por parte dos titulares do direito “ao bem
jusfundamentalmente protegido” ou “enfraquecendo os deveres e obrigações,
em sentido lato, que dele resultam para o Estado, afecta desvantajosamente o
conteúdo ou o efeito de protecção de um direito fundamental”53, não vemos
49
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287. KLAUS STERN –
MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 895,
defendem também que a renúncia se consubstancia em exercício de direitos, uma vez que
esta é um acto de exercício de liberdade, “imanente à essência dos direitos fundamentais”.
50
OLIVIER DE SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism under the European
Convention on Human Rights“, cit., p. 483; também JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos
fundamentais”, cit., p. 287.
51
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 288.
52
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 288 e 289. Também
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 22 e 23,
considera uma restrição “qualquer actuação do Estado que torne impossível um
comportamento do indivíduo que caia no âmbito de protecção de um direito fundamental,
independentemente de esse efeito ter lugar voluntária ou involuntariamente, directa ou
indirectamente, de facto ou de direito, com ou sem imposição ou coacção. Esta definição deixa
de considerar o elemento da coacção como uma característica essencial do conceito”. KLAUS
STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p.
918, entendem, inclusivamente, que a renúncia se traduz numa restrição quer se siga um
conceito mais restrito ou abrangente de restrição.
53
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 247. SÉRVULO CORREIA, O Direito de Manifestação.
Âmbito de Protecção e Restrições, Almedina, Coimbra, 2006, p. 61, define como restrição “toda
a compressão do âmbito de protecção do direito, traduzida na desconsideração de elementos
do objecto de protecção, ou na recusa da titularidade ou exercício de meios jurídicos
destinados à respectiva fruição, operada por acto do poder público de natureza geral e
abstracta ou individual e concreta”. Sobre o conceito de restrição, ver ainda JOSÉ CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp.
267 e 279 ss; JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, in
Separata do II Suplemento do DJAP, 2001, p. 456; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de
21
razões para não considerar que, neste âmbito, a renúncia tem também uma
dimensão restritiva. Ainda assim, dependendo das circunstâncias dos casos
concretos pode haver algumas diferenças quanto ao maior ou menor grau de
intrusão, uma vez que estamos perante situações em que se verifica a
anuência do particular, ao contrário do que acontece com a generalidade das
medidas estaduais restritivas.
A “dupla dimensão da renúncia”54, enquanto exercício e restrição de
direitos, é fundamental para compreendermos quer a fundamentação jurídica
do poder de disposição, quer os limites que normalmente se têm estabelecido a
este poder.
Não é, no entanto, consensual na doutrina que nas situações de
renúncia perante o Estado estejam em causa verdadeiras restrições, uma vez
que alguns Autores entendem que o acto de disposição do titular retira, do
âmbito de protecção do direito, um sector que deixa de gozar de protecção,
pelo que quando há uma ingerência estadual nesse sector tal já não se traduz
em ingerência num direito fundamental55.
Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1996, p. 323; JOSÉ DE MELO
ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na
Constituição Portuguesa, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 469 – 471.
54
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 289.
55
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 289. É o caso de ALBERT
BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, in JZ, n.º 2, 1988, p. 57 ss. Este Autor
considera, no entanto, que “a renúncia a direitos fundamentais é mal interpretada se se
entende que esta recorta um sector do âmbito de protecção do direito com a consequência de,
no caso de haver uma intervenção nesse sector, não serem aplicáveis as garantias de Estado
de Direito. A questão decisiva é sobretudo a de saber se perante o consentimento do indivíduo
o sentido e a finalidade das garantias do Estado de Direito se mantêm”. Considerando que a
renúncia a direitos fundamentais admissível elimina o carácter restritivo da intervenção no
âmbito de protecção do direito, na medida em que o conceito de restrição pressupõe uma
actuação contra a vontade do titular do direito, sendo o elemento da coacção componente
essencial deste conceito, ver JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik,
Darmstadt, 1977, pp. 99 e 100; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als
staatliche Schutzpflicht”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des
Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg,
2000, p. 175; GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, in GERHARD
LEIBHOLZ – HANS J. FALLER – PAUL MIKAT (orgs.), Menschenwürde und Freiheitliche
Rechtsordnung. Festschrift für Willi Geiger zum 65. Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1974,
p. 190. Ver ainda KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines
Grundrechtgutes, cit., pp. 65 e 66, que defende que nas situações de consentimento há, de
facto, uma “lesão do direito fundamental”, mas não já uma verdadeira restrição. MARTINA
DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 24, critica esta última
posição, na medida em que sustenta que não é óbvio o que distingue uma lesão de uma
restrição.
22
A crítica que se costuma apontar a estas posições é a de que não é
correcto considerar o âmbito de protecção do direito fundamental restringido
através da renúncia. Uma vez que entendemos por âmbito de protecção uma
“dimensão da vida humana que a Constituição entendeu considerar digna da
tutela dos direitos fundamentais e elevar à categoria de bem jurídicoconstitucional”56, pensamos que este não deve determinar-se de forma
subjectiva, apenas atendendo à vontade afirmada pelo seu titular57, excepto
nos casos em que o bem jurídico tutelado é, em primeira linha, a própria
autonomia.
Por outro lado, defende-se que estas posições não têm suficientemente
em conta os perigos que poderão resultar do exercício de um direito
fundamental que afecte a própria liberdade do indivíduo. É que se se entender
que só se verifica uma restrição nos casos de afectações negativas não
consentidas “desvaloriza [-se], inconvenientemente, a dimensão objectiva do
conceito de restrição e (…) desloca [-se] a perspectiva de apreciação da
intervenção do plano em que se deveria verificar – o da sua eventual
justificação material - para o plano formal do seu conceito”58.
Finalmente, tem-se ainda entendido que não colhem porque não
admitem, “pelo menos fundadamente, o recurso às garantias materiais de
Estado de Direito no controlo da legitimidade da intervenção”59. Parece, no
56
ANDREIA SOFIA PINTO OLIVEIRA, O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa. Âmbito de
Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 11.
57
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 23.
58
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 290. GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., p. 138, entende que é, por isso, “duvidoso que o carácter voluntário
da renúncia justifique, por si só, que os instrumentos constitucionais de garantia dos direitos
fundamentais percam os seus efeitos”. Para o Autor “é essencial ter também em conta o
segundo elemento constitutivo de uma restrição, que é a intrusão do Estado na esfera jurídica
do indivíduo”. Também GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz,’ volenti
non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 295 e KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das
Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 918, que consideram que ainda
que haja consentimento se mantém o carácter restritivo da medida. Estes Autores entendem
que “se o consentimento for válido retira a contrariedade à lei da actuação em causa”, mas não
deixa de haver uma restrição.
59
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291. GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., p. 77, defende que “se se considerar que a renúncia se
consubstancia num mero exercício de direitos, sem mais, tal significa que não há propriamente
limites, na medida em que não se trata de disposição de poder soberano, que deve ser
justificada e fundamentada, mas apenas de exercício de um direito de liberdade”. JOST
PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 539, considera que
23
entanto, que não temos de retirar necessariamente destas perspectivas tal
consequência, na medida em que, como nos estamos a referir à renúncia
perante o Estado, mesmo que se defenda que não está em causa uma
restrição de direitos e, em virtude disso, não sejam de aplicar os limites aos
limites, as entidades públicas não deixam de estar vinculadas, em toda a sua
actuação, aos princípios constitucionais estruturantes60.
Já a renúncia entre particulares não implica uma restrição de direitos
fundamentais em sentido próprio, uma vez que este conceito pressupõe o
Estado61. A definição de que partimos diz expressamente que a restrição se
consubstancia numa afectação negativa do direito que deriva de uma acção ou
omissão do Estado62. Ora na renúncia entre particulares tanto quem renuncia
compreender-se a renúncia como mero exercício de direitos é insuficiente, uma vez que não se
têm em conta os casos em que esse exercício se transforma em “negação de direitos”.
60
Utilizamos aqui a designação dada por Jorge Reis Novais aos princípios jurídicoconstitucionais ínsitos na ideia de Estado de Direito. Ver JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios
Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2004.
JORGE REIS NOVAIS, “Direito, liberdade ou garantia: uma noção constitucional imprestável na
justiça administrativa?” in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 73, 2009, referindo-se à
distinção entre direitos de liberdade e direitos sociais diz-nos que “a Constituição pareceu
aparentemente reservar para esses direitos a protecção conferida pelos princípios da
igualdade, da proibição do excesso, da protecção da confiança legítima, da garantia do
conteúdo essencial (…), quando, obviamente, todos esses princípios e garantias são
igualmente aplicáveis, por definição, às afectações negativas dos direitos sociais pelo simples
facto de estes serem também direitos fundamentais constitucionais”. Seguindo esta ordem de
ideias, pensamos que o Estado está, em toda a sua actuação, mesmo que não esteja em
causa uma afectação negativa, vinculado a estes princípios, pelo que o facto de se considerar
que a renúncia não implica uma restrição do direito não deve desobrigar o Estado desse
respeito.
61
Considerando também que apenas os “actos e omissões do poder público” se
consubstanciam em restrições, ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos
Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 157. Nesse sentido,
ver também ROLF ECKHOFF, Der Grundrechtseingriff, Carl Heymanns Verlag KG, Köln, Berlin,
Bonn, München, 1992, pp. 288 ss. Em sentido contrário, referindo a possibilidade de restrições
através de privados, ver BERNHARD SCHLINK, “Freiheit durch Eingriffsabwehr – Rekonstruktion
der klassischen Grundrechtsfunktion”, in EuGRZ, n.º 17, 1984, p. 464; ECKART KLEIN,
“Grundrechtliche Schutzpflicht des Staates”, in NJW, n.º 27, 1989, p. 1636.
62
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 247. Não é também relevante nesta sede a distinção
entre restrições em sentido restrito e intervenções restritivas. Segundo esta distinção, enquanto
“as restrições em sentido restrito têm uma vocação normativa geral e abstracta”, o que se
traduz numa “redução, amputação ou eliminação do conteúdo objectivo do direito fundamental
(…) restringindo-se o seu âmbito de protecção”, na “intervenção restritiva afecta-se
negativamente o conteúdo da posição individual que resulta da titularidade de um direito
fundamental, permanecendo, todavia, em princípio inalterada a norma de direito fundamental e
o correspondente conteúdo objectivo do direito”. Ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos
Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 193,194 e
205 ss. No entanto, também as intervenções restritivas partem necessariamente de alguma
24
como os destinatários da renúncia são entidades privadas.
Assim sendo, coloca-se a questão de determinar que papel devem
desempenhar “as garantias materiais de Estado de Direito”63 na aferição da
admissibilidade dessa mesma renúncia. É que se os limites que se aplicam na
renúncia perante o Estado derivam do facto de esta se traduzir (também) numa
restrição de direitos fundamentais (ou, pelo menos, do facto de uma das partes
da relação ser um ente público), não poderemos aplicá-los, sem mais, nas
relações entre particulares. Parece-nos, no entanto, que tal não invalida que
estes possam ser, pelo menos em alguma medida, transponíveis para a
renúncia nas relações entre particulares. É que ainda que a renúncia entre
particulares não envolva uma restrição em sentido próprio, não deixa de se
verificar uma afectação negativa de uma posição individual de direitos
fundamentais, pelo que caberá ao Estado garantir que essa afectação não vai
para além do que é constitucionalmente admissível.
De
facto,
mesmo
a
renúncia
entre
particulares
implica
o
enfraquecimento de uma posição subjectiva do titular do direito fundamental,
vinculando-o juridicamente. Assim, o poder de dispor sobre direitos
fundamentais consiste na possibilidade de determinar a ausência ou a limitação
de determinados efeitos jurídicos, que são os efeitos da protecção que se quer
descartar64. Através de uma renúncia válida a medida que seria ilegal sem a
anuência do titular torna-se legal, sendo esta a consequência jurídica que dela
decorre. A renúncia pressupõe, então, o Estado, que “empresta” força jurídica
ao acto de disposição e que poderá, por isso, impor determinadas exigências
para que este acto se verifique65.
autoridade pública. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, Vol. I, cit., pp. 451 e 1265, distingue também restrições de intervenções
restritivas, defendendo que estas últimas “consistem em actos jurídicos ou actuações das
autoridades públicas restritivamente incidentes de modo concreto e imediato sobre um direito”.
Ver ainda JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, cit., p. 388.
63
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291.
64
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 140, refere
precisamente que na renúncia está em causa a “presença, numa determinada situação, do
poder jurídico de dispor, no sentido da sua redução, numa certa parcela, dos efeitos jurídicos
de protecção de um determinado direito fundamental”.
65
Parece-nos relevante nesta sede a distinção de ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte,
3.ª Edição, Suhrkamp, Frankfurt-am-Main, 1996, pp. 171 ss, entre direitos a algo, liberdades e
25
Convém, no entanto, não esquecer que o poder de renúncia “é um poder
de disposição inerente à própria titularidade de direitos fundamentais”, pelo que
o Estado só poderá impor certas exigências para que o acto de renúncia tenha
lugar se se apurar a necessidade de garantir outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que se sobreponham ao poder de dispor, e
apenas na estrita medida dessa necessidade66.
De tudo o que vimos retiramos que a renúncia a direitos fundamentais
para além de exercício de direitos implica também uma afectação negativa
desses mesmos direitos e, nessa medida, justifica “o recurso às garantias
competências. Segundo Alexy, as competências concedem a “possibilidade de o indivíduo
praticar determinados actos jurídicos e, consequentemente, alterar, através desses actos,
determinadas posições jurídicas”, dele ou de terceiros. Nesse sentido, JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Vol. I, cit., pp. 1260 e 1261. As
acções que são exercício de competências são “acções institucionais”, ou seja, são “acções
que não podem ser levadas a cabo com base numa capacidade natural, antes pressupõem
regras, para elas constitutivas”, designadas “normas de competência”. Estas “criam a
possibilidade de actos jurídicos e, consequentemente a capacidade de modificar posições
jurídicas através de actos jurídicos”. Ver, mais desenvolvidamente, ROBERT ALEXY, Theorie der
Grundrechte, cit., pp. 211 – 223. Sobre este assunto, ver também NUNO MANUEL PINTO
OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um
Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pp. 133 – 135.
Trata-se de um “’poder jurídico’ e não, como no caso da permissão, (…) de ter licença de fazer
alguma coisa que facticamente já [se] podia realizar”. Nesse sentido, JOÃO LOUREIRO, O
Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, Coimbra Editora,
1995, p. 190. Seguindo esta ordem de ideias, parece-nos que a renúncia a direitos
fundamentais se consubstancia num direito a competências jurídicas, na medida em que a
liberdade para realizar o acto jurídico, neste caso, renunciar a uma posição subjectiva de direito
fundamental, pressupõe necessariamente a competência para o fazer. A renúncia a direitos
fundamentais consiste na possibilidade de o indivíduo praticar determinados actos jurídicos e,
consequentemente, alterar, através desses actos, determinadas posições jurídicas.
Considerando que, “em última análise, (…) as consequências jurídicas produzidas pelo acto de
vontade individual só o [são] porque a ordem jurídica lhe reconhece, expressa ou
implicitamente, tal capacidade”, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”,
cit., p. 274, nota 16. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não
Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 128 e 149 ss, entende, no entanto, que
esta classificação de Alexy “tem a vantagem de cobrir analiticamente (…) todas as eventuais
posições jurídicas sustentáveis em normas de direitos fundamentais”, mas “carece de ser
complementada por uma tipologia que atenda à diferente natureza, função, estrutura e
consistência jurídico-formal dos direitos fundamentais quando perspectivados já não em termos
de cada posição jurídica concreta a se, mas enquanto complexo de posições jurídicas
diferenciadas mas referenciáveis à mesma norma de direito fundamental”. Por outro lado,
“tende a ignorar a relação entre direito principal e direitos ou pretensões instrumentais,
funcionalmente subordinadas ou derivadas do mesmo direito fundamental principal”. JOSÉ DE
MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na
Constituição Portuguesa, cit., p. 125, nota 569, sustenta que esta crítica não colhe, uma vez
que não existe incompatibilidade nem qualquer insuficiência da tipologia de Alexy, na medida
em que esta é apenas “uma construção dogmática analítica”, sem prejuízo de poder ser
complementada por outras tipologias.
66
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 333.
26
materiais de Estado de Direito no controlo da legitimidade da intervenção”67.
Quanto à renúncia entre particulares, veremos em que termos na Parte II da
tese.
3. Distinção de figuras afins
3.1. A perda e o não-exercício de direitos fundamentais
Devemos, antes do mais, distinguir a renúncia da perda e do nãoexercício de direitos fundamentais. Como acabámos de ver, na renúncia
estamos perante um compromisso jurídico assumido pelo particular de não
recorrer ao seu direito fundamental, ou seja, normalmente está em causa uma
vinculação deste “a não exercer, temporária ou pontualmente, algumas das
pretensões, faculdades ou poderes que integram o direito”. Há, nestas
situações, “uma decisão voluntária do particular que produz consequências
jurídicas na sua própria esfera jurídica”68.
Também na perda de um direito se dá “um enfraquecimento da posição
jurídica” do titular do direito, só que, neste caso, não se trata já de uma decisão
voluntária, mas sim de uma imposição externa. Nesta última situação a ordem
jurídica estabelece como consequência de uma determinada acção ou omissão
do
titular,
independentemente
da
sua
vontade,
a
perda
do
direito
fundamental69.
Finalmente, nos casos de não-exercício não há qualquer vinculação pela
parte do particular, uma vez que estamos perante “uma posição jurídica que a
ordem jurídica lhe permite exercer ou não exercer, sendo que ambas as
possibilidades podem ser configuradas como modalidades de exercício, em
sentido lato, do direito fundamental”70. Quem paga um imposto inconstitucional
67
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291.
68
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 273 e 274.
69
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274; MARTINA DOROTHEE
EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 173.
70
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 273. Também distinguindo a
27
e não recorre judicialmente não está a renunciar a um direito fundamental.
Através da renúncia, uma medida que era, à partida, ilegal converte-se numa
medida legal. Pelo contrário, ao não accionar um direito mantém-se a
ilegalidade da intervenção e o direito fundamental poderá ainda ser feito
valer71.
Aquilo
que
distingue
a
renúncia
do
não-exercício
é,
então,
essencialmente o facto de nas situações de não-exercício não haver qualquer
vínculo jurídico assumido pelo titular do direito72. O mero não-exercício carece
de uma declaração de vontade73, pelo que “não vincula e é reversível no
quadro da ordem jurídica”74. Nessa medida, ao contrário da renúncia, o nãoexercício “tem natureza de facto e não de direito”75.
renúncia do “não exercício-fáctico”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 465; JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 385; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 904 e 905; PHILIPPE FRUMER, La Renonciation
aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la
Volonté Individuelle, cit., p. 17; CHRISTOPH LEUENBERGER, Die unverzichtbaren und
unverjährbaren Grundrechte in der Rechtsprechung des Schweizerischen Bundesgerichtes,
Verlag Stämpfli & Cie AG, Bern, 1976, p. 49; KEVIN HOPKINS, “Constitutional Rights and the
question of waiver: how fundamental are fundamental rights?”, in South Africa Public Law, Vol.
16, n.º 1, 2001, p. 127.
71
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 925. Jorge Miranda, na 3.ª Edição do Manual de Direito
Constitucional, falava de “direitos de exercício não obrigatório”, como o direito de acção judicial
e o direito de resposta, considerando que nestes casos não havia uma renúncia. (Ver JORGE
MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra,
2000, p. 358).
72
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 274.
73
RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, Schulthess Polygraphischer Verlag AG, Zürich,
1992, p. 10.
74
GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 185 - 186; JOSÉ CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p.
309; RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10; KLAUS BUSSFELD, “Zum Verzicht
im öffentlichen Recht am Beispiel des Verzichts auf eine Fahrerlaubnis”, in DöV, n.º 22, 1976, p.
769. Também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 47 e 48, julga que “o nãoexercício não implica qualquer vinculação jurídica porque lhe falta uma declaração de vontade”.
75
DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, in HANS-DETLEF HORN, Recht Im Pluralismus,
Festschrift für Walter Schmitt Glaeser zum 70. Geburtstag, Duncker und Humblot, Berlin, 2003,
p. 54. Ver também PHILIPP S. FISCHINGER, “Der Grundrechtsverzicht”, in JuS, n.º 9, 2007, p.
808. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 385, como já referimos, entende
que não se deve falar em renúncia porque o modo como o conceito tem sido densificado
demonstra que não há renúncia, na medida em que o que normalmente está em causa é um
compromisso do particular “a não exercer, temporária ou pontualmente, algumas das
pretensões, faculdades ou poderes incorporados no seu direito”. Destas considerações parece
que se poderia retirar que estaríamos perante mero não-exercício e não já verdadeira renúncia.
No entanto, também o Autor distingue destas situações aquelas outras em que há uma
28
Aos direitos-liberdades está inerente a possibilidade de não-exercício,
uma vez que a vertente negativa é também um seu elemento essencial. As
atribuições negativas de liberdade não consubstanciam uma renúncia a direitos
fundamentais, devendo qualificar-se apenas como não-exercício de direitos
fundamentais. A liberdade jurídica pressupõe uma “alternativa de acção”, ou
seja, uma “liberdade negativa”76.
Ora o gozo de uma liberdade negativa implica que se possa, a qualquer
momento, decidir pelo pelo seu gozo positivo, sem que tal acarrete quaisquer
consequências. Já a renúncia envolve a assunção de um vínculo jurídico (ainda
que, em princípio, passível de revogação)77. A liberdade de reunião, por
exemplo, comporta uma dimensão negativa que se concretiza na liberdade de
não fazer parte de nenhuma reunião. Será também esse o caso quando
alguém decide “não participar numa manifestação [ou] não entrar num partido
político”78. Estas não são situações de renúncia mas sim “derivações” do
próprio direito79. “A componente negativa das liberdades constitui uma
dimensão fundamental” dessas mesmas liberdades80 e mesmo os autores que
recusam a possibilidade de renúncia não visam estabelecer quaisquer
obrigações ao exercício de direitos fundamentais81.
A situação já não será a mesma quando uma pessoa renuncia, de forma
“manifestação negativa de exercício de certos direitos, como, por exemplo, não exercer direito
de resposta [ou] não invocar objecção de consciência”.
76
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 198.
77
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 29.
78
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
465.
79
GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 185. Ver também
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 48.
80
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1260. JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit.,
pp. 166 e 167, faz a destrinça entre dois tipos de bens jurídicos: bens jurídicos subjectivos e
bens jurídicos objectos: “nos bens subjectivos o direito de defesa protege não apenas a religião
ou a opinião enquanto tais, mas sim a liberdade de exercer essa mesma religião ou manifestar
a opinião. A previsão normativa (âmbito de protecção) do direito fundamental tem, aqui, duas
componentes: a garantia da liberdade e a especificação do âmbito objectivo (religião, opinião,
etc.). Nos bens jurídicos objectivos, trata-se apenas, no âmbito de protecção, da determinação
da substância física ou ideal que é inviolável pelo Estado”. Sobre esta distinção, ver também
ANDREIA SOFIA PINTO OLIVEIRA, O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa. Âmbito de
Protecção de um Direito Fundamental, cit., p. 11.
81
GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 186.
29
juridicamente vinculante, a participar em reuniões ou a integrar uma
associação, por exemplo. Estes já serão casos de verdadeira renúncia82, o que
significa que nas liberdades referidas não se exclui a possibilidade de renúncia
uma vez que esta depende essencialmente da existência de um vínculo
jurídico. Assim, uma coisa será alguém não fazer parte de uma associação
porque assim o decidiu sem a isso se ter vinculado juridicamente, podendo, a
qualquer momento passar integrá-la, e outra diferente obrigar-se efectivamente
a não o fazer, renunciando a esse direito83. Do mesmo modo deverá distinguirse a situação em que uma pessoa não exerce de facto o seu direito de acção
judicial ou o seu direito de resposta da situação em que alguém se vincula
juridicamente a não exercer o seu direito de acção judicial ou o seu direito de
resposta84.
Esta diferenciação aparentemente clara entre renúncia, perda e nãoexercício parece, no entanto, esbater-se nos casos em que o ordenamento
jurídico faz derivar de uma dada conduta do indivíduo um enfraquecimento da
sua posição jusfundamental. Essa conduta pode consubstanciar-se quer num
“exercício positivo” quer num “não-exercício de um direito fundamental”85.
Um exemplo da primeira situação é a possibilidade de perda de direitos
fundamentais (Grundrechtsverwirkung)86, que implica que o particular se veja
privado, de forma involuntária, das suas pretensões de direitos fundamentais.
O nosso ordenamento jurídico não prevê este instituto, que está consagrado no
art. 18.º da Constituição alemã e que estabelece que um cidadão pode ser
privado de alguns direitos quando deles abusar para combater “a ordem
fundamental livre e democrática”87. A declaração de perda tem como
82
BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, (trad.
ANTÓNIO FRANCO – ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA), Universidade Lusíada Editora, Lisboa,
2008, p. 42.
83
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 29.
84
O BVerfG teve oportunidade de se pronunciar acerca da admissibilidade da renúncia a
recursos judiciais. Este Tribunal entendeu que a renúncia a uma acção administrativa é
admissível, tendo em conta a 4.ª parte do art. 19.º da Constituição alemã. Ver BVerfGE 9, pp.
194 ss; também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 69.
85
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274.
86
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 274.
87
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp.
461 e 462; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p.
30
consequência que o destinatário do direito fundamental em causa não pode
invocá-lo para se defender de intervenções estaduais enquanto durar essa
perda88.
Ainda assim, na perda de direitos fundamentais em virtude de utilização
abusiva, tal como esta figura está consagrada no ordenamento jurídico alemão,
trata-se ainda do “enfraquecimento de um direito fundamental por motivo de
acto culposo do seu titular”, o que nos permite distinguir este instituto da
renúncia. Torna-se, no entanto, mais complicado manter esta diferenciação
quando a perda de direitos é determinada por “um comportamento eventualmente voluntário - não-culposo do titular do direito fundamental”, como
acontece com o direito de recurso aos tribunais, direito este que tem um prazo
para ser exercido89. De facto, o não-exercício em determinadas circunstâncias
378. Na Alemanha defende-se que esta figura é também relevante para o tema que estamos a
tratar na medida em que poderia ver-se na perda de direitos fundamentais “o reflexo da
renúncia” e, através da “relação sistemática com o art. 18.º da Constituição alemã”,
estabelecer-se um limite para a renúncia, considerando que esta não deveria ir mais além do
que a perda. No entanto, entre estas duas figuras existe uma diferença muito significativa que é
a voluntariedade da renúncia, pelo que a questão que se coloca é a de saber “por que razão
não poderá o próprio titular de um direito fundamental voluntariamente limitá-lo mais do que um
Tribunal está autorizado coactivamente a fazê-lo”. Sobre essa questão ver, mais
desenvolvidamente, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik,
cit., p. 173.
88
MICHAEL BRENNER, “Artikel 18”, in CHRISTIAN STARCK – HERMANN VON MANGOLDT –
FRIEDRICH KLEIN (orgs.), Das Bonner Grundgesetz Kommentar, Vol. 1, 4.ª Edição, Verlag
Franz Vahlen, München, 1999, p. 2152. O número de direitos abrangidos por este instituto é
limitado, uma vez que se estabelece uma “enumeração taxativa” dos direitos que podem ser
“abusados para combater a ordem fundamental democrática”. Ver REINHOLD ZIPPELIUS –
THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, 31.ª Edição (da obra fundada por THEODOR
MAUNZ), Verlag C. H. Beck, München, 2005, p. 194. Os direitos previstos nesta disposição são
a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de ensinar, a liberdade de
reunião, a liberdade de associação, o segredo da correspondência, dos correios e das
telecomunicações; a propriedade e o direito de asilo. Esta limitação “explica-se pela finalidade
do art. 18.º da Constituição alemã, que é fazer face a agressões individuais à Constituição. Ora
esse perigo de agressão advém sobretudo do exercício de determinados direitos políticos”.
Sobre esta questão ver, mais desenvolvidamente, KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das
Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 957.
89
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 275. Considerando também
ser de distinguir a “aceitação do acto administrativo” (que se traduz num acto jurídico de um
particular com efeito preclusivo do recurso administrativo ou contencioso) das figuras da
renúncia ao recurso e do decurso do prazo de impugnação, ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE
ANDRADE, “A aceitação do acto administrativo”, in Volume Comemorativo do 75.º Tomo do
Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2003, pp. 914 ss. Para o Autor, enquanto “a
renúncia implica uma manifestação de vontade do titular dirigida ao não-exercício do direito de
impugnar, (…) a aceitação do acto é uma manifestação de vontade positiva, expressa ou tácita,
relativamente ao conteúdo do acto e, portanto, aos seus efeitos substanciais”. Assim, sustenta
que a aceitação deve ser entendida como “um mero acto jurídico, perante cuja verificação a lei
determina a produção de um efeito – a perda da faculdade de impugnar – independentemente
31
ou a partir de um certo tempo pode efectivamente determinar a perda do
direito.
Apesar disso, continua a fazer sentido separar estas duas situações. Na
renúncia o que motiva o enfraquecimento da posição subjectiva do titular do
direito é a sua declaração de vontade, que é juridicamente vinculante. Na
situação de perda que referimos, esta não é já uma consequência directa de
uma vinculação do particular, antes decorre de uma decisão do ordenamento
jurídico de, por razões de certeza e segurança jurídicas, fazer derivar a perda
do direito de um dado comportamento (ou ausência de comportamento) do
particular90.
Assim, aquilo que efectivamente faz com que estejamos perante uma
situação de renúncia é a decisão voluntária do particular que produz
consequências jurídicas.
3.2. A autolesão
Pensamos fazer sentido ainda distinguir a renúncia a direitos
fundamentais da autolesão. Se um indivíduo dispõe unilateralmente de
posições jurídicas de direitos fundamentais, lesando-se a si próprio, tal não se
consubstanciará numa renúncia, uma vez que entendemos que esta pressupõe
a intervenção de terceiros91. Podemos exemplificar a distinção confrontando a
eutanásia activa com o suicídio92.
do conteúdo da vontade do particular quanto à produção desse resultado”.
90
Ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 276 e 277; JOST
PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 533.
91
Nesse sentido, RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10; GERHARD SPIESS,
Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 49 e 50; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen
vor sich selbst, Verlag Franz Vahlen, München, 1992, pp. 82 e 137.
92
RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10. Em sede jurídico-penal, são ainda
de mencionar as situações de “autocolocação em risco” e “heterocolocação em risco
consentido”. É hoje mais ou menos consensual na doutrina que estes casos não são de
enquadrar no consentimento, uma vez que se tem vindo a entender que a autocolocação em
risco não cai sob o tipo de homicídio ou de ofensas corporais se se concretiza o risco
conscientemente assumido com essa autocolocação em perigo. Ver MANUEL DA COSTA
ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo
I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 278. Nestes casos a vítima coproduz “o resultado típico
através da sua conduta”. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio
32
Em sentido contrário, tem-se considerado que não é de excluir essa
referência a terceiros nos casos da autolesão, uma vez que o Estado, obrigado
pelos direitos fundamentais, deveria ser chamado através da ideia de deveres
de protecção. Em virtude disso, a renúncia no quadro de uma autolesão teria
como consequência jurídica o afastamento de um dever do Estado de impedir
essa autolesão, passando a haver também um terceiro vinculado a direitos
fundamentais93.
Não estamos, no entanto, de acordo com estas considerações. Uma vez
que entendemos que, em princípio, não há um dever do Estado de proteger a
pessoa contra si própria, questão que desenvolveremos oportunamente, não
nos parece que se possa considerar o Estado, nestes casos, um terceiro
vinculado a direitos fundamentais.
Também no âmbito do Direito Penal se tem considerado que entre
autolesão e heterolesão existem intransponíveis “elementos de alteridade,
descontinuidade e diferenciação”. “Por autolesão deve entender-se “uma acção
cuja trajectória significativa se circunscreve no interior do sistema pessoal.
Pressuposta a autonomia (…) daquele sistema será normal concluir-se pela
irrelevância da acção no contexto do sistema social”. Por seu lado, “a
heterolesão
consentida
configura
(…)
uma
interacção
complexa”.
É
fundamental, aqui, a circunstância de “um dos pólos da interacção” se
Corpo, cit., p. 345. O mesmo se poderá dizer quanto às situações de heterocolocação em risco
de modo consentido, uma vez que “também aqui não se integra o tipo-de-ilícito criminal de
ofensas à integridade física, desde que (…) a lesão ocorrida seja a consequência do risco
assumido e a pessoa colocada em perigo seja igualmente responsável no projecto comum,
exigindo-se ainda que ‘o ofendido’ represente o perigo na mesma medida em que o faz aquele
que detém o domínio da acção”. RUI MEDEIROS – PEDRO GARCIA MARQUES, “Artigo 25.º”, in
JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora,
Coimbra, 2005, p. 270. Nestes casos a pessoa em causa não se coloca deliberadamente em
perigo, mas, consciente dos riscos que corre, deixa-se pôr em perigo pela acção de terceiros.
Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código
Penal, Parte Especial, cit., p. 279; também MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e
Acordo em Direito Penal, cit., p. 272. Aqui não é, no entanto, “a homenagem à autonomia
individual que reclama a relativização da tutela penal (…). Em certo sentido é mesmo a inversa
que se dá. A ordem jurídica não pode desatender o significado da opção do lesado que se
dispõe a participar em actividades que implicam riscos para os seus bens”. Assim, “se, no
contexto do consentimento, o recuo da ordem jurídico-penal configura uma solução de
autonomia, já no caso da heterocolocação em perigo consentida a mesma solução pode
emergir como uma resposta de heteronomia”. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e
Acordo em Direito Penal, cit., pp. 294 – 297.
93
Nesse sentido, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p.
31.
33
encontrar “fora do sistema pessoal”, ou seja, “aquele sobre o qual o sistema
penal pode fazer recair o controlo penal”. Assim, ao contrário do que sucede
em caso de mera autolesão, “a heterolesão configura invariavelmente uma
relação social”. Para além disso, também releva aqui “a autenticidade e
seriedade da vontade e do exercício de autonomia”. Pois se na autolesão
estamos perante “a radical autenticidade de uma vontade que se exprime na
acção autolesiva”; já “do lado do consentimento [temos] uma mera declaração
que pode estar inquinada por vícios de vária ordem”94.
Consequentemente, partindo da ideia de que a autolesão é ainda
manifestação da autonomia individual do sujeito, a nossa ordem jurídica em
regra não a considera criminalmente punível95.
Pensamos que estas considerações são extensíveis para a problemática
da renúncia. Também aqui deverá relevar o facto de, nos casos de autolesão,
estarmos a falar de uma acção que é levada a cabo pelo próprio indivíduo, ou
seja, trata-se de uma acção que começa e termina “no interior do sistema
pessoal”, com tudo o que isso implica quanto à garantia da “autenticidade e
seriedade da vontade e do exercício de autonomia” (pressupondo, obviamente,
que estamos a falar de uma pessoa capaz). Por outro lado, nas situações de
autolesão estamos a falar do exercício de um poder fáctico, enquanto a
renúncia a direitos fundamentais implica um poder jurídico96, exigindo o
reconhecimento do Estado.
Nessa medida, parece que devemos efectivamente distinguir estas duas
figuras, pois “ao não se admitir o autoprejuízo, transformar-se-iam os direitos
fundamentais em deveres fundamentais”, o mesmo já não se devendo dizer em
relação a todas as proibições de intervenções de terceiros, ainda que
94
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 213 – 217.
95
HELENA PEREIRA DE MELO, “A igualdade de oportunidades para quem opta pela ‘Estrada do
Tabaco’” in RUI NUNES – MIGUEL RICOU – CRISTINA NUNES (orgs.), Dependências Individuais e
Valores Sociais, Gráfica de Coimbra, Coimbra, 2004, p. 166.
96
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, Oxford University Press,
New York, Oxford, 1986, p. 156, considera que “os genuínos casos em que estão duas
pessoas envolvidas são aqueles em que uma parte B consente que outra parte A pratique um
acto que poderá lesar ou colocar em perigo B; já nos casos paradigmáticos em que está
apenas uma pessoa em causa é o próprio que pratica a acção lesiva ou perigosa, ainda que
haja outra pessoa envolvida em alguma medida, por exemplo, como encorajador, incitador,
espectador, beneficiário, etc”.
34
consentidas97. Assim, para que estejamos perante uma situação de renúncia a
direitos fundamentais terá que estar em causa, necessariamente, uma
intervenção de terceiros.
3.3. O mero exercício de direitos
Parece-nos ainda relevante ter em consideração a diferença entre a
disposição de “direitos relativos a bens individuais, cujo conteúdo, âmbito e
grau de protecção constitucional é estabelecido primacialmente em função da
vontade do titular (…) e aqueles outros direitos que se referem a bens que,
sendo pessoais, constituem simultaneamente ou estão intimamente associados
a valores comunitários”98.
Esta perspectiva parte da distinção que alguma doutrina penalista (e
também civilista, uma vez que, como veremos, também no âmbito do Direito
Civil
se
tem
considerado
útil
esta
diferenciação)
estabelece
entre
consentimento e acordo, pelo que vamos fazer uma breve incursão por estas
figuras para compreendermos melhor em que medida é que podem ser úteis
para o problema da renúncia a direitos fundamentais99.
No Direito Penal distingue-se entre consentimento, como causa de
exclusão da ilicitude, e acordo, que exclui a própria tipicidade da ofensa.
O consentimento surge como um caso de colisão de interesses em si
mesmos dignos de tutela penal. A par do “interesse jurídico-penal (…) na
preservação de bens jurídicos,” que não deixa de existir mediante o
consentimento, “está o interesse, também jurídico-penalmente relevante, de
preservação (…) da auto-realização do titular do bem jurídico lesado, da sua
97
Nesse sentido, RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 10; GERHARD SPIESS,
Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 49 e 50; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen
vor sich selbst, Verlag Franz Vahlen, München, 1992, pp. 82 e 137.
98
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 312.
99
Referindo as semelhanças da posição que considera que nos casos de renúncia não há
restrição a direitos com a doutrina penalista sobre a relevância do consentimento como causa
de exclusão da tipicidade, ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p.
289, nota 42.
35
autonomia pessoal e de vontade”100. Tal acontece porque há bens jurídicos,
mesmo disponíveis, que são penalmente tutelados em si (…) e posta entre
parênteses a atitude do portador concreto. As correspondentes incriminações
originam uma relação de descontinuidade entre a autonomia pessoal e o bem
jurídico típico: a autonomia não esgota o bem jurídico, não podendo identificarse a livre disposição do bem jurídico com a sua plena realização”101. Em virtude
disso, “mesmo quando o respeito pela autonomia individual (…) impõe o recuo
da ilicitude e da punibilidade, tal não deixa de configurar uma certa frustração
do programa político-criminal”102.
Assim, nas situações de consentimento a acção consentida levada a
cabo, ainda que desejada pelo próprio não deixa de provocar um “dano”, que
este considera ser, ainda assim, preferível suportar, dentro da margem de
disponibilidade que detém103. Ainda que haja consentimento, “a lesão da
integridade física [por exemplo] não deixa de representar o sacrifício do bem
jurídico protegido e, nessa medida, uma manifestação de danosidade social”104.
Já “nos crimes contra a liberdade não há lugar ao consentimento
enquanto causa de exclusão de ilicitude, devendo antes falar-se em acordo,
cuja ausência dará lugar ao não preenchimento do tipo”105. No caso do acordo
100
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra
Editora, Coimbra, 2007, p. 472.
101
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 516.
102
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora,
Coimbra, 1991, p. 362. Sustentando que o consentimento só será “causa de justificação
quando constitua uma circunstância exterior ao tipo legal e a ordem jurídica considere que a
renúncia pelo titular do bem protegido à sua protecção merece relevância em termos de afastar
a tutela contra a própria vontade do titular do bem”, ver GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito
Penal Português. Parte Geral, Vol. II, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 2005, p. 140.
103
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 512. Ver
também PAULO SOARES DO NASCIMENTO, “Transplantes de órgãos humanos: a natureza do
cadáver e dos órgãos e tecidos à luz do Direito Privado”, in Homenagem ao Prof. Doutor André
Gonçalves Pereira, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 1044 e 1045.
104
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora,
Coimbra, 1991, p. 362.
105
CARLOTA PIZARRO DE ALMEIDA, “O crime de lenocínio no artigo 170.º, n.º 1, do Código
Penal. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/04”, in Jurisprudência
Constitucional, n.º 7, 2005, pp. 34 e 35. A Autora estabelece que “a tese da irrelevância da
vontade de quem se prostitui só é sustentável quando se entenda que o exercício da
prostituição ofende outro valor, ultrapassando o próprio sujeito, como seja o princípio da
dignidade da pessoa humana”. Essa é a posição do Tribunal Constitucional da África do Sul
que, no caso Jordan v. State, http://www.constitutionalcourt.org.za/Archimages/661.PDF (última
visita a 12.04.2010), utilizou o princípio da dignidade da pessoa humana para defender a
36
é impossível “referenciar – à margem da atitude do portador concreto do bem
jurídico – condutas com uma expressividade ético-social unívoca, susceptível
de fundamentar um juízo de danosidade social e, nessa medida, apontar um
sentido à valoração jurídica”. Nestas situações “a violação da vontade do
portador do bem jurídico pertence já à fundamentação do ilícito, uma vez que,
para além dela, não subsiste qualquer outro substrato para o ilícito”106. Desta
feita, o acordo não implica qualquer dano no bem jurídico, antes traduzindo a
sua realização107.
Consequentemente, nos crimes susceptíveis de acordo o bem jurídico
protegido é uma manifestação da liberdade individual, pelo que se estabelece
“uma relação de congruência entre a autonomia individual e o sistema social. O
desempenho do sistema social sobrepõe-se e confunde-se com a expressão
da liberdade individual, realiza-se na e pela maximização desta liberdade”108.
Tem-se, por isso, considerado que “[à] luz desta compreensão material
teleológica e psicológica do acordo”, não há “nada mais equívoco e
desajustado do que expressões como lesado, ofendido ou renúncia para
conceptualizar e dar nome à situação e à atitude do portador do bem
jurídico”109.
O que daqui retiramos é que tanto o consentimento como o acordo
assentam na autonomia individual, mas que nestas duas situações estão em
causa “expressões ou afloramentos da autonomia com uma estrutura
normativa claramente diferenciada”. No acordo há uma identificação entre a
proibição da prostituição. Segundo este Tribunal, a dignidade de quem se prostitui não se vê
diminuída pela proibição da prostituição mas sim pela prostituição em si mesma. Sobre este
caso, ver STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of
Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, EUI Working Paper Law
n.º 2008/18, http://hdl.handle.net/1814/9009 (última visita a 12.04.2010), p. 13. Considerando
também que “a reivindicação de um ‘direito a se prostituir’, como expressão do direito
fundamental de cada um dispor do seu próprio corpo, envolveria a legitimação de direitos
fundamentais atentatórios da dignidade humana”, ver PAULO OTERO, Instituições Políticas e
Constitucionais, Almedina, Coimbra, 2007, p. 531.
106
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 363; ver
também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 474.
107
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 507 e
508.
108
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 484 e
485.
109
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 508.
37
autonomia e o bem protegido, sendo que o mesmo já não acontece no
consentimento, onde claramente se distinguem. “Posta entre parênteses a
postura do portador concreto, aquele bem jurídico continua a denotar uma
irredutível valência sistémico-social, digna de tutela penal”, pelo que “não estão
excluídas, ao contrário do que acontece no acordo, situações de desencontro e
frustração e, por isso, de antinomia e conflito”110. Assim, com o consentimento
não se afasta “a danosidade social implicada na acção consentida”. O que
acontece é que a “autodeterminação do titular do bem jurídico lesado” se
sobrepõe a esta “danosidade”111.
No Direito Civil, tem-se entendido que o consentimento pode assumir a
forma de “consentimento vinculante (que origina um compromisso jurídico
autêntico, irrevogável, designadamente um contrato)”, de “consentimento
autorizante (constitutivo de um compromisso jurídico sui generis, que atribui a
outrem um poder de agressão)”, ou ainda de simples “consentimento tolerante
(que não atribui poder de agressão, mas justifica implicitamente a mesma)”112.
Parece, no entanto, que o critério de distinção entre estes tipos de
consentimento é impreciso, uma vez que há situações que não se enquadram
claramente numa destas categorias113. Tal implica divergências na doutrina na
subsunção de determinadas realidades às diferentes modalidades de
consentimento114, pelo que se tem entendido que também neste âmbito fará
110
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 513.
111
AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, Vol. II, Universidade Católica,
Porto, 2004, p. 278.
112
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, Centelha,
Coimbra, 1981, p. 91.
113
Nesse sentido, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários
Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, Associação de
Estudantes de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2008, pp. 57 e 58, que coloca a
questão de saber se “o consentimento para tratamentos médico-cirúrgicos em benefício próprio
[é] autorizante (por atribuir um poder de agressão e por ser revogável) ou (…) tolerante (por
não pressupor a capacidade de exercício)”.
114
Por exemplo, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação
Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 131 e 132,
entende que o consentimento numa doação de órgãos ou tecidos não deve ser considerado
um consentimento autorizante, uma vez que “pensar que a revogação do consentimento (…)
pode levar à obrigação de indemnizar o prejuízo causado pelas legítimas expectativas da outra
parte, ainda que cingido ao dano de confiança, iria inibir a livre revogabilidade desse
consentimento”. Assim, defende que essa doação deve estar sujeita ao regime do
consentimento tolerante. PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre
a intimidade da vida privada”, in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS – IRINEU CABRAL BARRETO –
38
talvez mais sentido distinguir-se entre “o consentimento que afasta ou exclui a
tipicidade da agressão ou da ofensa e o consentimento que afasta ou exclui a
ilicitude dessa agressão ou dessa ofensa”. Se estiver em causa um
consentimento excludente da tipicidade da agressão “não há ofensa aos
direitos de personalidade (ex: consentimento para uma intervenção médicocirúrgica conforme às leges artis exclui a tipicidade da ofensa)”; já se se
verificar um consentimento excludente da ilicitude “há uma ofensa aos direitos
de personalidade justificada e, por conseguinte, lícita”115.
Assim, também no Direito Civil o consentimento pode determinar a
inexistência da lesão ou a justificação desta116, podendo distinguir-se “entre
‘elementos negativos’ da previsão do direito, que o limitam e excluem a
existência de uma violação e a verificação de causas justificativas, ou de
exclusão da ilicitude, de actos lesivos de direitos subjectivos”. Nos casos em
que o consentimento exclui a tipicidade considera-se que não há sequer uma
lesão do direito, ainda que “não ilícita (assim afastando a possibilidade de
recorrer a meios de tutela que nos seus pressupostos eventualmente possam
dispensar a ilicitude)”117.
Em nosso entender, os fundamentos que estão na base da distinção
TERESA PIZARRO BELEZA – EDUARDO PAZ FERREIRA (orgs.), Estudos em Homenagem a
Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, p. 552, por seu lado, sustenta que na doação de um
rim estamos perante um consentimento autorizante, uma vez que entende que não se trata de
uma “mera tolerância justificativa da agressão”.
115
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, Associação de Estudantes de Direito da
Universidade do Minho, Braga, 2008, pp. 57 e 58. Também considerando relevante esta
distinção, ver ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos,
cit., p. 91.
116
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., p. 535. Também ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado
na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 141 e 142, parece entender que a
distinção é relevante, embora na nota 297 da p. 138, refira que não irá tratar de saber se faz
sentido no Direito Civil. O Autor estabelece que é fundamental diferenciar as intervenções
terapêuticas das intervenções não terapêuticas, na medida em que as primeiras não estão
sujeitas ao controlo dos bons costumes, uma vez que “o assentimento é um acordo que exclui
a tipicidade e não está preso aos limites do art. 149.º do Código Penal (CP)”. Considera que
“se assim é no Direito Penal, o princípio da unidade jurídica também argumenta (…) que assim
seja no Direito Civil”.
117
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., pp. 534 e 535. O Autor defende, por exemplo, que o enquadramento correcto
para a limitação voluntária do direito à reserva parece ser “não o do consentimento enquanto
causa de justificação ou exclusão de ilicitude de um acto lesivo do direito (…), mas antes o do
mero acordo que, pela limitação do direito, exclui a existência de lesão deste”.
39
entre consentimento e acordo relevam também na renúncia a direitos
fundamentais. É útil para a problemática que estamos a analisar distinguir entre
os diferentes tipos de direitos fundamentais, sendo essencial determinar se
estamos perante uma disposição de direitos que protegem em primeira linha a
autonomia individual ou se, pelo contrário, se trata de direitos relativos a bens
que constituem também valores comunitários, protegendo algo que está para lá
dessa autonomia118. Há, de facto, direitos fundamentais cujo bem jurídico é
principalmente protegido na medida da vontade do titular, devendo essa
diferenciação ter implicações quanto à sua maior disponibilidade119.
No primeiro caso, poderá fazer sentido considerar que essa disposição
se consubstancia num mero exercício de direitos, uma vez que há uma
identificação, pelo menos tendencial, entre a autonomia e o bem jurídico
protegido pela disposição jusfundamental. Nas situações em que estejam em
causa direitos relativos a bens que também constituem valores comunitários já
se tratará de renúncia.
Tal não significa que esta não seja expressão do exercício de direitos,
uma vez que, como vimos, “a realização de um direito fundamental inclui (…) a
possibilidade de se dispor dele, inclusive no sentido da sua limitação”120. Mas,
para além disso, a renúncia envolve um enfraquecimento das posições
individuais de direitos fundamentais, implicando uma afectação negativa
desses direitos.
Estabelecendo um paralelo com o direito penal, nos casos de mero
exercício de direitos fundamentais estamos perante um acordo que exclui a
tipicidade e nos casos de renúncia perante um consentimento que afasta a
118
Considerando, pelo contrário, que para a dogmática dos direitos fundamentais não é
relevante esta distinção, ver MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, 2.ª Edição,
Springer Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, 2003, p. 110. No outro extremo, defendendo que
o conceito de renúncia é supérfluo, uma vez que se trata sempre de mero exercício de direitos
fundamentais, ver ANDREAS GEIGER, “Die Einwilligung in die Verarbeitung von persönlichen
Daten als Ausübung des Rechts auf informationelle Selbstbestimmung”, in NVwZ, n.º 1, 1989,
p. 37, Este Autor baseia-se na posição de DETLEF GÖLDNER, “Gesetzmässigkeit und
Vertragsfreiheit im Verwaltungsrecht”, in JZ, n.º 11/12, 1976, p. 355, que entende que a criação
de vínculos jurídicos, pelo menos no âmbito contratual, implica um mero exercício de direitos
fundamentais e não renúncia. Nesse sentido, MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 33.
119
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 313.
120
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287.
40
ilicitude121. Consequentemente, as situações de mero exercício não gozam da
dupla natureza da renúncia enquanto exercício e afectação negativa de
direitos.
Também na Alemanha alguma doutrina considera que quando o
elemento da vontade está expressamente previsto na disposição constitucional
se trata de um acordo que exclui a tipicidade122. Julgamos, no entanto, que não
é determinante o facto de a lei referir expressamente a “vontade ou o
consentimento de quem de direito”, tratando-se essencialmente de uma
questão de interpretação. “Serão mais esclarecedoras e consistentes as
conclusões a esperar de uma leitura teleológica, orientada por e para o bem
jurídico tutelado. Só identificando o bem jurídico protegido e a respectiva área
de tutela se poderá, com efeito, definir (…) o papel reservado à vontade do
portador concreto”123.
No Direito Penal tem-se defendido, por exemplo, que no crime de
introdução em casa alheia não existem, “à margem da atitude do portador
concreto do bem jurídico”, comportamentos passíveis de “fundamentar um juízo
de danosidade social”, pelo que a concordância do particular se traduz num
acordo que exclui a tipicidade124. Entende-se que “não é possível referenciar
aqui uma linha de fronteira entre a autonomia pessoal e o bem jurídico
protegido”125, pelo que este consentimento deve ser considerado uma causa de
121
No direito penal retiram-se consequências desta distinção, na medida em que, “ao contrário
do que sucede com o consentimento, a eficácia jurídico-penal do acordo não está sujeita a
qualquer cláusula limitativa dos bons costumes”. Nesse sentido, MANUEL DA COSTA ANDRADE,
Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 559.
122
JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 542 e 543, considera
que será o caso, por exemplo, da renúncia à cidadania, prevista na Constituição alemã. JOSÉ
DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 137 e 138, nota
414, defende ser um “mau exemplo” de renúncia a renúncia à cidadania. Neste caso entende
que o problema se resolve “ao nível da previsão normativa, uma vez que a permanência da
cidadania não constitui um elemento necessário da previsão (…), podendo a cidadania ser
perdida (…) precisamente por efeito da vontade do titular – (…) hipótese consagrada entre nós,
no art. 8.º da Lei da Nacionalidade”. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”,
cit., p. 267, nota 10, considera, por seu lado, que a possibilidade de renúncia à cidadania está
“implícita no art. 26.º n.º 1 da CRP (…), até por força da necessária interpretação deste direito
à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem onde a possibilidade de renúncia vem
expressamente consagrada no art. 15.º, n.º 2”.
123
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 365 - 367.
124
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 362 e
363.
125
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 381.
41
exclusão da tipicidade126. Quando alguém permite que outra pessoa entre em
sua casa, em princípio não considera que tal situação se consubstancia numa
lesão do seu direito, pelo que estamos perante um caso de acordo. O mesmo
já não se passa no consentimento justificante. “Quem autoriza [por exemplo]
um sacrifício da sua saúde, confrontado com a mesma pergunta não deixará de
responder: ‘estive de acordo com a lesão do meu direito’127.”
Estas considerações parecem aplicáveis ao direito à inviolabilidade do
domicílio128, uma vez que a própria disposição constitucional que o consagra
diz expressamente que “a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua
vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos
e nas formas previstas na lei”129. Assim sendo, julgamos que este preceito visa
proteger apenas, em princípio, a entrada no domicílio não-consentida. Quando
alguém autoriza outrem a entrar no seu domicílio não está a renunciar a este
direito, mas apenas a exercê-lo.
126
AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, cit., pp. 274 ss. Para este
Autor “o consentimento pode constituir uma causa de exclusão da tipicidade (...), uma causa
especial de justificação, uma causa de exclusão da ilicitude ou uma causa especial de
diminuição do ilícito”.
127
H. J. HIRSCH apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal,
cit., p. 508.
128
Jorge Miranda, na 3.ª Edição do Tomo IV do Manual de Direito Constitucional (cit.), p. 358,
referindo-se ao direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no art. 34.º da CRP, estabelece
que quando alguém anui na entrada no seu domicílio está a usufruir de um direito e não a
renunciar. Na última Edição, parece-nos que inclui este caso nas situações de “auto-suspensão
aparente do exercício de direitos”. Nesse sentido, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., pp. 384 e 385. Considerando também que quando alguém autoriza uma
busca policial não detendo a polícia um mandato para o fazer se trata de mero exercício de
direitos e não já de renúncia, ver GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”,
cit., p. 185. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, cit., p. 542, julgam também que “o acordo dado à entrada no domicílio
não representa qualquer ‘renúncia a um direito fundamental’, estando sujeito a um permanente
‘direito de revogação’” (o que, partindo da nossa definição de renúncia não deixaria em
princípio de acontecer mesmo que se tratasse de uma situação de renúncia); JOSÉ CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp.
312 e 313, entende que dos n.ºs 2 e 3 do art. 34.º da CRP “se pode retirar o princípio da
disponibilidade dos direitos em causa”. Ver ainda o Acórdão n.º 7/87 do TC (publicado em
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º volume, 1987) no qual este estabelece que
“consentindo os visados ou, por outras palavras, não se verificando a entrada no domicílio
‘contra a sua vontade’, não se viola o domicílio.
129
O mesmo acontece também no n.º 3 do art. 35.º, que proíbe o tratamento informático de
dados sensíveis (convicções religiosas e políticas, vida privada, etc.) a não ser que haja o
consentimento do titular, de onde se pode retirar “o princípio da disponibilidade” deste direito.
Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, cit., p. 313.
42
Tem-se também considerado que “o enquadramento sistemático
correcto para a limitação voluntária do direito à reserva” não é o do
consentimento, mas sim o do acordo que, “pela limitação do direito, exclui a
existência de lesão”. Para esta posição, “com a divulgação pelo próprio, ou
com a autorização para a divulgação por terceiros, é ainda o próprio conteúdo
do direito à reserva – a autodeterminação sobre informação relativa à vida
privada – que obtém expressão”. Assim, a limitação voluntária deste direito
traduz ainda uma forma de exercício, pelo que não se verifica uma violação do
direito à reserva130.
Temos, no entanto, algumas dúvidas quanto a considerar que a
disposição do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada se
consubstancia em mero exercício do direito. É, de facto, o indivíduo que, em
certa medida, define a sua “vida privada”, pelo que terá um alcance diferente a
vida privada de uma pessoa que tenha “reduzido ao mínimo a interacção
social” e que “mantenha resguardada dos outros a sua esfera privada”, e a de
alguém que leve uma vida “aberta a inúmeras pessoas”131. A noção de reserva
é, assim, “subjectiva e variável em função dos sujeitos, dos lugares e dos
momentos históricos. Os limites da esfera privada são elásticos, dependendo
das circunstâncias, do contexto em que se encontra um determinado sujeito,
das suas relações de poder”132.
Esta elasticidade dos limites da intimidade não implica, no entanto, uma
verdadeira renúncia ou uma limitação voluntária do direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada por parte do titular. A renúncia ou a limitação
130
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., pp. 534 – 536. MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 192.º”, in Comentário
Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 735, considera também que no crime
de devassa da vida privada o consentimento se consubstancia num acordo que exclui a
tipicidade.
131
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., pp. 531 e 532. O próprio art. 80º, n.º 2 do Código Civil (CC), manda o aplicador do
direito socorrer-se de dois critérios para a determinação dos contornos do bem tutelado. Aí se
dispõe que a extensão da reserva é definida conforme a “condição das pessoas” e a “natureza
do caso”, o que mostra que “a valoração última do que seja o âmbito reservado terá de se fazer
à luz do circunstancialismo do caso concreto”. Ver JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A reserva
da intimidade da vida privada e familiar”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, Vol. XLIII, n.º 1, 2002, p. 17.
132
GREGÓRIO ARENAS apud JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, “Direito à informação,
Protecção da Intimidade e Autoridades Administrativas Independentes”, in Estudos em
homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001, p. 627.
43
voluntária de um direito pressupõem a sua existência prévia. Ora “ao delimitar
o objecto do direito com base nos critérios já apontados, a lei civil portuguesa
considera-os relevantes no instante lógico da criação do direito, momento que,
forçosamente, antecede o da renúncia” ou limitação voluntária133. Parece-nos,
então, que se deve rejeitar uma total relativização da determinação do conceito
de vida privada, sendo necessário o estabelecimento de alguns “critérios
objectivos”. Esses critérios são os que decorrem das “valorações sociais
correntes sobre a questão”134.
A posição contrária defende uma completa relativização do conceito na
medida em que considera que, “do ponto de vista jurídico-constitucional, uma
pessoa que decide tornar públicos comportamentos geralmente protegidos pela
reserva da intimidade da vida privada não está, por esse motivo, a renunciar a
esse direito, mas sim a exercê-lo autonomamente de acordo com as suas
próprias preferências”, sendo este direito “compatível com diversos modos de
utilização”135.
No entanto, parece-nos que quando alguém renuncia total ou quase
totalmente à reserva da vida privada, por exemplo em reality shows (ainda que
se trate de uma renúncia temporalmente delimitada), tal não deixa de
configurar uma certa frustração de um bem jurídico constitucionalmente
protegido. Quem autoriza um sacrifício da sua reserva da vida privada nesses
casos e nesses termos não deixará de responder: “estive de acordo com a
lesão do meu direito”.
Finalmente, também se têm considerado exemplos de “direitos relativos
a bens individuais, cujo conteúdo, âmbito e grau de protecção constitucional é
estabelecido primacialmente em função da vontade do titular” os direitos à
imagem, à palavra, à auto-determinação informativa e à propriedade136.
133
RITA AMARAL CABRAL, “O direito à intimidade da vida privada”, in Estudos em memória do
Professor Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1989, p. 399; PAULO MOTA PINTO, “A limitação
voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 532 e 533.
134
Nesse sentido, PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”,
in Boletim da Faculdade de Direito, Volume LXIX, Coimbra, 1993, pp. 526 e 527.
135
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JÓNATAS MACHADO, Reality Shows e Liberdade de
Programação, Argumentum 12, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 56 - 58
136
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 312 e 313. MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 199.º”, in Comentário
Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 832, entende também que no direito à
44
Esta distinção entre mero exercício e renúncia não deve, no entanto, ser
encarada como uma distinção categórica, que implique uma diferenciação
radical, sobretudo na renúncia perante o Estado. Antes do mais, graças à
própria natureza dos direitos fundamentais, uma vez que as normas que os
consagram se traduzem num feixe de pretensões e posições jurídicas muito
distintas. Há uma multiplicidade de situações que se podem colocar e é difícil
determinar, olhando apenas para o tipo de direito fundamental em causa, se
estamos ou não perante uma afectação negativa do direito.
Para essa avaliação devem, para além disso, considerar-se as
diferentes situações relacionais em que tem lugar a renúncia, sendo de
distinguir a renúncia perante uma autoridade dotada de poderes públicos,
perante uma entidade privada ou indivíduo que detenha um poder jurídico ou
de facto ou numa relação entre iguais. Consequentemente, este problema só é
susceptível de uma solução definitiva nas circunstâncias dos casos concretos,
devendo entender-se que há um “princípio de disponibilidade” dos direitos em
causa nas situações que, à partida, reconduzimos ao mero exercício de
imagem e no direito à palavra a anuência do titular do direito se traduz num acordo que exclui a
tipicidade. Sobre o direito de propriedade, considerando que o Tribunal Constitucional “tem
perfilhado uma concepção persistentemente comunitarista e objectivista da figura”, ver JOSÉ
DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na
Constituição Portuguesa, cit., p. 656. Na p. 666, o Autor defende que “no direito de propriedade
é dominante a dimensão pessoal (dado constituir ainda uma projecção e um instrumento da
autonomia e do livre desenvolvimento da personalidade individual)”. Para além dos direitos
referidos, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 140,
sustenta ainda que o caso de colheita de órgãos em cadáver para transplante não se
consubstancia numa renúncia a direitos fundamentais, uma vez que entende que “o nãoexercício do direito de autodeterminação - o único relevante nesta matéria - não implica de
forma alguma um ‘enfraquecimento’ da ‘posição jurídica subjectiva tutelada por uma norma de
direitos fundamentais’”. Quanto a tratamentos médico-cirúrgicos realizados de acordo com as
leges artis, tem-se também entendido que estes não se traduzem numa lesão ao direito à
integridade física, uma vez que o bem jurídico protegido nestes casos é a autonomia e não a
integridade física em si mesma. Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo
em Direito Penal, cit., pp. 400 ss. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais.
Introdução Geral, cit., pp. 137 e 138, por seu lado, considera como mau exemplo de renúncia a
esterilização voluntária. Nestes casos defende que “a fenomenologia principal emergente não é
a da renúncia, mas sim a do exercício de poderes e faculdades que recaem no âmbito de
protecção de diversos direitos fundamentais e de diversas outras normas constitucionais de
garantia”. Considerando, pelo contrário, na perspectiva do direito penal, que “[n]a esterilização
sem indicação médica ou equiparada” está em causa uma agressão à integridade física,
passível “de justificação mediante o consentimento do ofendido, suposto (…) o respeito pelos
bons costumes”, ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal,
cit., p. 476. Quanto às operações cosméticas, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e
Acordo em Direito Penal, cit., pp. 471 e 472, entende que estas não se reconduzem “ao
conceito e regime legal dos tratamentos médico-cirúrgicos”.
45
direitos137. Assim, esta distinção é útil porque pode ser decisiva para o
estabelecimento de uma prevalência a favor da disponibilidade do bem num
mundo de ponderação, mas não deve excluir que as situações de mero
exercício estejam sujeitas a essa mesma ponderação.
Por outro lado, se se tratar de uma situação de mero exercício de
direitos que envolva o Estado, a distinção acaba por não ser tão relevante
quanto à partida possa parecer, uma vez que, como já tivemos oportunidade de
referir, o Estado está vinculado, em toda a sua actuação, aos princípios
constitucionais estruturantes138. Nessa medida, quando actua partindo do
consentimento (em sentido amplo) do particular, mesmo que não estejamos
perante uma afectação negativa de direitos tal não exclui que o tenha de fazer
respeitando esses princípios. Já serão de retirar maiores consequências desta
diferenciação no que se refere à renúncia nas relações entre particulares.
Em conclusão, em princípio só estamos perante um caso de renúncia
quando se trate da disposição de direitos fundamentais que se referem a bens
que, sendo pessoais, constituem simultaneamente valores comunitários.
4. Possíveis configurações da renúncia
Muitas vezes distingue-se entre renúncia ao exercício e à titularidade do
direito, assim como entre renúncia parcial e renúncia total, para aferir da
admissibilidade do poder de disposição sobre posições subjectivas de direitos
fundamentais. Para esta perspectiva, uma renúncia total ou à titularidade do
137
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 313 e 314.
138
Já no que se refere à exigência de respeito pelo princípio da reserva de lei, parece-nos que
há efectivamente uma diferença. Não vamos desenvolver, neste momento, a questão de saber
em que termos é que a reserva de lei deve ser respeitada nos casos de renúncia, uma vez que
teremos oportunidade de tratar autonomamente essa questão. De todo o modo, para o
problema que estamos agora a tratar convém referir que “a reserva de lei respeita à actividade
da Administração, não ao exercício individual de direitos fundamentais”. Tal significa que
“quando um particular renuncia a uma posição de direitos fundamentais (…) está a ampliar
correspondentemente os poderes da entidade pública. Ou seja, trata-se de uma manifestação
do seu poder de dispor sobre posições próprias de direitos fundamentais (…) que produz um
enfraquecimento (…) da sua posição protegida de direito fundamental. Ora as exigências da
reserva de lei dizem exclusivamente respeito a esta dimensão da renúncia” enquanto afectação
negativa”. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 314 e 315.
46
direito deve considerar-se uma renúncia inadmissível. Vamos, então, ver em
que é que se consubstanciam essas distinções e procurar responder à questão
de saber em que medida são relevantes para o problema que estamos a tratar.
4.1. A renúncia ao exercício e a renúncia à titularidade dos direitos
fundamentais: negação da distinção
A distinção entre renúncia ao exercício e renúncia à titularidade
relaciona-se originariamente com a problemática das relações especiais de
poder139, na medida em que as restrições a direitos fundamentais decorrentes
da entrada numa relação deste tipo se tentaram explicar através da figura da
renúncia ao exercício de direitos140. Entendia-se que aquele que integrava
voluntariamente uma relação especial de poder renunciava parcialmente ao
exercício do seu direito fundamental e alargava, deste modo, a margem de
intervenção no direito sem necessidade de fundamento legal141. Assim, as
restrições não previstas na lei que resultavam dessas relações legitimavam-se
através da figura da renúncia, partindo-se da distinção entre renúncia ao direito
fundamental e renúncia ao exercício do direito fundamental. Esta perspectiva
considerava inaceitável a renúncia ao direito fundamental enquanto tal, mas
entendia que “a renúncia ao seu exercício seria, mesmo na ausência de lei
autorizadora, justificável, por se considerar que o exercício do direito (…) era
incompatível com a natureza e exigências do funcionamento da instituição a
139
Actualmente designadas “relações jurídicas especiais” ou “estatutos especiais”. Nesse
sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, cit., p. 293, nota 72. Sustentando também que, “em rigor, é preferível falar
em estatutos especiais, o que tem a vantagem de evidenciar que tais relações são jurídicas e
até legislativas, nunca alheias ao Direito”, ver LUIS S. CABRAL DE MONCADA, Estudos de Direito
Público, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 227.
140
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 31; GERHARD ROBBERS, “Der
Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926
JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p.547; GERD STURM,
“Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 177. Ver também JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463.
141
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 926.
47
que voluntariamente se aderia”142.
A aplicação da doutrina da renúncia a direitos fundamentais às relações
especiais de poder foi, contudo, criticada, uma vez que, em regra, faltava aqui
uma declaração de vontade do visado143. Hoje é mais ou menos consensual
que nestes casos não estamos perante situações de renúncia mas antes
perante restrições heterónomas144.
Há, no entanto, Autores que consideram relevante a distinção entre
renúncia ao direito fundamental enquanto tal e renúncia ao mero exercício para
além da problemática das relações especiais de poder145, posição que não
seguimos. Para esta perspectiva “renunciar à titularidade de uma posição
jurídica tutelada por uma norma de direito fundamental é renunciar total e
irrevogavelmente à capacidade jurídica de exercício das faculdades ou poderes
que decorrem dessa posição por todo o tempo previsto na declaração de
renúncia”. Por sua vez, “a renúncia ao mero exercício nunca é, pelo menos,
definitiva, uma vez que continuando o sujeito na titularidade da posição jurídica,
pode sempre (…) reassumir a plenitude da capacidade de exercício, em última
análise através da possibilidade de revogação da declaração de renúncia. Já
no caso de uma renúncia válida à própria titularidade do direito, uma
reassunção da plenitude dos poderes dele decorrentes já não dependeria só de
uma decisão unilateral do próprio, mas antes e também de uma decisão
heterónoma”146.
Como exemplo refere-se a situação de um indivíduo consentir que a
142
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 278 e 279; GERHARD
SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 48; também RALPH MALACRIDA, Der
Grundrechtsverzicht, cit., pp. 73 e 74.
143
RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 64 e 65.
144
Considerando que esta é “uma concepção ultrapassada, (…) sendo o recurso à ideia de
sujeição voluntária e de abdicação de direitos a face oculta de sobrevivência absolutista do
«domínio do Estado» sobre os «súbditos» ao seu serviço”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 463; também JORGE
MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 384, que, como já referimos, entende que a
restrição que se verifica com a integração em estatutos especiais provém da Constituição, pelo
que, “em rigor não se trata senão de uma auto-restrição indirecta ou consequencial”. Ver ainda
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 279.
145
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 279 ss; KNUT FRIESS, Der
Verzicht auf Grundrechte, cit., p. 17; MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, in JA,
1974, p. 478.
146
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 279 – 283.
48
polícia efectue uma busca no seu domicílio, sem a tal estar obrigado. No caso
entende-se que antes de a busca começar este deve poder revogar o
consentimento, mas iniciada a busca já não poderá fazê-lo, pois “perde, pelo
menos temporariamente, a titularidade da garantia da inviolabilidade de
domicílio, não sendo então admitida a possibilidade de revogar a declaração de
renúncia”147.
Mesmo sem contestar a “possibilidade dogmática de distinção”148 entre
renúncia à titularidade e renúncia ao exercício, parece-nos, no entanto, que
esta diferenciação não tem utilidade para o problema que estamos a tratar,
uma vez que não conseguimos encontrar um critério que a priori nos ajude a
determinar se estamos perante uma renúncia à titularidade ou ao exercício149.
No caso apresentado, a questão que se coloca é a de saber o que determina à
partida se se trata de uma renúncia ao exercício ou uma renúncia à titularidade,
ou quando é que uma se converte na outra150.
Para além disso, não é claro que na situação referida não se deva
admitir a revogabilidade do consentimento. Uma vez que consideramos que em
princípio é inerente ao conceito de renúncia a possibilidade de revogação não
nos parece que a consequência tenha de ser necessariamente essa151.
Mas, ainda que se entendesse que iniciada a busca o indivíduo deveria
perder a possibilidade de revogar a declaração, julgamos que o critério
distintivo entre estas duas situações deveria ser o da legitimidade ou
ilegitimidade da revogação. Ou seja, a declaração de renúncia deve pressupor,
em princípio, a possibilidade da sua revogação, a não ser que essa revogação
se traduza, efectivamente, num abuso do instituto. Ora se o problema que aqui
147
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 277, nota 22.
148
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 280.
149
Convém, no entanto, ressalvar que partindo do que dissemos quanto à distinção entre
renúncia e mero exercício de direitos a disposição do direito à inviolabilidade do domicílio
consubstanciar-se-á, em princípio, em mero exercício de direitos e não em renúncia
propriamente dita.
150
Considerando que esta distinção não é relevante, na medida em que dificilmente se
conseguiria delimitar a partir de que momento é que a renúncia ao exercício implica uma
renúncia completa a direitos, ver KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 904.
151
Entendendo que, “uma busca sem autorização judicial, deverá imediatamente cessar a partir
do momento em que quem a autorizou o pretender”, ver KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das
Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 916.
49
se coloca é, afinal, o da revogabilidade ou irrevogabilidade da renúncia, parece
que fará mais sentido atender ao motivo da revogação e, eventualmente,
admitir que em determinadas situações poderá haver um abuso do instituto152.
Consequentemente, entendemos que esta distinção não é relevante para a
problemática da renúncia a direitos fundamentais153.
Por outro lado, a distinção entre renúncia à titularidade e ao exercício
tem também sido utilizada no sentido de se considerar que a renúncia à
152
Também JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 270, defende que
haverá casos em que a renúncia, “sob pena de permitir a manipulação ou o abuso do instituto,
parece de revogação impossível, ou pelo menos discutível”. MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 59, refere que a declaração de renúncia é, em
princípio, revogável mas que, “por razões de confiança jurídica e no interesse do destinatário
da renúncia se devem estabelecer limites”. Assim, entende que “seria contrário à boa fé
revogar a renúncia após o acto que esta veio permitir ter sido já levado a cabo”. Nesse sentido,
também MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 479 e 480. Julgamos ainda
que poderá haver situações em que se pode justificar que o legislador exclua a possibilidade
de revogação da renúncia por entender que há razões que justificam essa irrevogabilidade.
Será esse o caso, por exemplo, da renúncia à cidadania, que envolve, efectivamente, a perda
do direito. Considerando que a renúncia à cidadania implica a perda do direito, ver JORGE REIS
NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 322. Ainda no que se refere à revogação do
consentimento no caso de doação de órgãos, PAULO SOARES DO NASCIMENTO, “Transplantes
de órgãos humanos: a natureza do cadáver e dos órgãos e tecidos à luz do Direito Privado”,
cit., pp. 1047 e 1048, sustenta que mesmo no caso de órgãos não regeneráveis não deve ser
de admitir a revogação após a colheita mas antes do implante do órgão no destinatário.
153
Considerando que não é relevante a distinção entre renúncia à titularidade e renúncia ao
exercício, ver MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp.
27 e 28. Defendendo que não se pode separar o direito e o seu exercício, partindo da
perspectiva de Günter Dürig, que considera que um direito que não pode ser exercido se trata
de um nudum ius, ou seja, é um direito que, de facto, deixa de existir, ver KLAUS RÜDIGER
WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche Rechte, cit., pp. 78 e 79; GERHARD
SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 49; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht.
Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 925; REINHARD SINGER,
“Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, in WILFRIED
ERBGUTH – FRIEDRICH MÜLLER – VOLKER NEUMANN, Rechtstheorie und Rechtsdogmatik im
Austausch. Gedächtnisschrift für Bernd Jeand’ Heur, Duncker & Humblot, Berlin, p. 174; GERD
STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 185; KLAUS STERN – MICHAEL
SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 903 e 904; JOST
PIETZCKER “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 537 e 538; KLAUS BUSSFELD,
“Zum Verzicht im öffentlichen Recht am Beispiel des Verzichts auf eine Fahrerlaubnis”, cit., p.
769. Quanto à questão da exigência de maioridade para a titularidade de direitos fundamentais,
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, cit., pp. 129 e 130, defende que “não tem sentido, relativamente aos direitos
fundamentais, a distinção civilística entre capacidade de gozo e capacidade de exercício”.
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO - VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, cit.,
p. 331, consideram que “não tem, em princípio, qualquer utilidade no Direito Constitucional a
distinção entre capacidade de gozo de direitos (ou titularidade) e a capacidade de exercício”.
Nesse sentido, ver também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, cit., pp. 424 e 425; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp.
233 - 235; JORGE MIRANDA, “Artigo 12.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, cit., pp. 112 e 113.
50
titularidade do direito é “irreparável”, ou seja, irreversível, o mesmo já não
acontecendo com a renúncia ao seu exercício154. Normalmente esta
diferenciação vem também associada à consequência de que a renúncia à
titularidade do direito é inadmissível e a renúncia ao exercício (exceptuando
uma renúncia total ao exercício que esvaziaria o direito) já será de aceitar155,
posição a que também não aderimos.
Apesar disso, pensamos que se justifica diferenciar entre renúncia
definitiva ou irreversível e renúncia não definitiva ou reversível, uma vez que há
direitos cuja natureza implica que a renúncia se traduz necessariamente na sua
extinção, como será, por exemplo, o caso do direito à vida.
Nessa medida, julgamos que esta distinção deve ser tida em conta na
ponderação a realizar para aferir da admissibilidade de uma determinada
renúncia. Não seguimos, no entanto, a perspectiva que exclui necessariamente
a possibilidade de uma renúncia que seja definitiva156. Como vimos quando
definimos o conceito de renúncia, não devem ser de afastar situações de
renúncia que impliquem a extinção do direito. Este conceito deve também
abarcar, pelo menos à partida, essas situações.
4.2. A renúncia total e a renúncia parcial
Dentro da distinção entre renúncia total e renúncia parcial podemos
autonomizar duas questões: por um lado, a questão de determinar se uma
dada renúncia abrange todas as faculdades ou apenas algumas faculdades
decorrentes do direito em causa; por outro lado, se se trata de uma renúncia
154
INGO VON MÜNCH, “Grundrechtschutz gegen sich selbst”, in ROLF STÖDTER – WERNER
THIEME (orgs.), Festschrift für Hans Peter Ipsen zum siebzigsten Geburtstag, Mohr Siebeck,
Tübingen, 1977, p. 127.
155
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 27. É o caso
de MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 478; INGO VON MÜNCH,
“Grundrechtschutz gegen sich selbst”, p. 127.
156
Considerando que não é permitido renunciar ao direito fundamental como um todo, no
sentido em que não haverá mais nenhuma possibilidade de recurso a esse direito, ver MIGUEL
ÁNGEL FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, “Renunciabilidad de los derechos fundamentales de contenido
económico”, in JAVIER PÉREZ ROYO – JOAQUÍN PABLO URÍAS MARTÍNEZ – MANUEL CARRASCO
DURAN (eds.), Derecho Constitucional para el Siglo XXI, Actas del VIII Congreso
Iberoamericano de Derecho Constitucional, Aranzadi, Navarra, 2006, p. 1376.
51
temporária ou de duração indeterminada.
Nesta diferenciação o que está em jogo é, então, em primeiro lugar, “a
extensão material do bem a que se renuncia (um direito fundamental como um
todo ou alguma(s) das faculdades que o integram)”. A titularidade de um direito
fundamental envolve a disposição “de um feixe de posições jurídicas tuteladas
por normas de direitos fundamentais, que se traduzem num conjunto de
pretensões, faculdades e poderes (…) que se podem referir, na sua
globalidade, ao mesmo direito fundamental”157. Assim sendo, num primeiro
momento deve apreciar-se se o titular do direito está a renunciar ao direito na
sua totalidade ou apenas a algumas das pretensões nele compreendidas.
Em segundo lugar, esta distinção prende-se ainda com “a medida da
extensão temporal da renúncia”. Aqui, trata-se de determinar se estamos
perante uma renúncia por um tempo certo ou de duração indeterminada.
Quando se fala em renúncia total neste sentido aquilo que se pretende dizer é
que se trata de uma renúncia sem prazo definido ou sem limite de prazo; já a
renúncia parcial é uma renúncia delimitada no tempo158.
Alguma doutrina, partindo desta distinção, defende (tal como vimos
relativamente à renúncia definitiva) a irrelevância de uma renúncia ao direito
como um todo159 ou de uma renúncia que não seja temporalmente
delimitada160.
157
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 284 e 285. O Autor dá
como exemplo a possibilidade de renunciar, quando se ingressa num serviço público, a exercer
o direito de petição sobre qualquer matéria, ou a exercer o direito de petição apenas sobre
questões de serviço. Ver também JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos
Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 55.
158
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 284. Este Autor dá também
como exemplo desta distinção o caso de, num divórcio por mútuo consentimento, um dos
cônjuges se vincular a não viver na mesma localidade do outro, por um período de tempo
determinado ou por toda a vida.
159
JÖRG EISELE, “Verzicht auf die Fahrerlaubnis als Instrument zur Beendigung von
Strafverfahren”, in NZV, n.º 6, 1999, p. 236; JÜRGEN SCHWABE, Probleme der
Grundrechtsdogmatik, cit., p. 93; GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 45 e 46.
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 137, considera
que “a admitir-se a renúncia, a mesma não ocorre no plano do direito fundamental como um
todo, mas a outro nível: ao nível de uma posição concreta ou ao nível de determinados efeitos
da protecção avaliados em concreto”. Para o Autor, “por se revelarem aí as características
básicas da fundamentalidade, da permanência e do carácter pessoal, que fazem dos direitos
fundamentais realidades juridicamente inseparáveis da própria pessoa (…) é em princípio
inadmissível a renúncia à titularidade de qualquer direito fundamental”.
160
GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, in AöR, n.º 2, 1956, p. 153.
52
Não consideramos, no entanto, que a renúncia total ou por tempo
indeterminado deva ser sempre considerada inadmissível, ainda que estas
diferenciações sejam relevantes para aferir a admissibilidade concreta de uma
dada renúncia, uma vez que é efectivamente diferente renunciar, por exemplo,
a um direito fundamental como um todo ou apenas a algumas das pretensões
dele decorrentes. Na ponderação de valores a fazer quando avaliamos essa
admissibilidade, deve ter-se em conta se se trata de uma renúncia ao direito
“como um todo” ou apenas a algumas posições jurídicas” que dele decorrem e
também se é uma renúncia “temporária e qual a sua extensão”161. Mas uma
coisa é entender que o alcance da renúncia deve ser tido em consideração
quando ponderamos se uma dada renúncia é de admitir, (até porque esse
alcance determina a maior ou menor afectação do direito a que se renuncia) e
outra é excluir algum tipo de renúncia à partida162. Consequentemente,
consideramos que é errado assumir, a priori, sem se levar a cabo uma análise
das circunstâncias específicas do caso, que será necessariamente inadmissível
alguma destas formas de renúncia.
Capítulo II: Controvérsias jurídicas sobre a renunciabilidade e a
fundamentação do poder de renúncia
Depois de termos delimitado no capítulo precedente a figura da renúncia
a direitos fundamentais, bem como visto quais as possíveis configurações que
esta pode assumir, vamos agora ocupar-nos das controvérsias jurídicas em
torno da renunciabilidade de partida dos direitos fundamentais bem como da
fundamentação do poder de dispor, uma vez que se trata de questões que não
REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das
Privatrecht”, cit., p. 186, entende que os direitos de liberdade devem ser protegidos como
direitos de “permanência” e, por isso, não permitem qualquer renúncia que não seja para uma
situação concreta nem esteja delimitada temporalmente. JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 385, defende, por seu lado, que a “auto-suspensão de direitos” deve ser
admitida desde que obedeça a uma série de requisitos, sendo um deles a limitação no tempo.
161
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 284 e 285. O Autor refere
ainda aqui como relevante o facto de se tratar de uma renúncia ao exercício ou à titularidade,
mas, como já referimos, não estamos de acordo com essa distinção.
162
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 28.
53
reúnem o consenso da doutrina.
Em virtude disso, procuraremos, num primeiro momento, determinar se
os direitos fundamentais são sequer renunciáveis, ou seja, se há razões que
obstem à sua renunciabilidade e que justifiquem que estes não se devam
considerar direitos disponíveis163. Num segundo momento, vamos indagar em
que preceito ou preceitos constitucionais se deve fundar o poder de dispor
sobre estes direitos.
1. A indisponibilidade dos direitos fundamentais
Pretendemos agora tratar o problema da admissibilidade da renúncia,
uma vez que há várias perspectivas que defendem precisamente a
irrenunciabilidade de partida de todos ou alguns direitos fundamentais, partindo
da ideia de que não são direitos disponíveis pelo seu titular. Os Autores que
sustentam essa indisponibilidade têm vindo a convocar diferentes argumentos
para fundamentar a sua posição, pelo que vamos ver os que consideramos
mais relevantes, de modo a avaliar se são ou não procedentes.
Uma das razões invocadas para justificar a indisponibilidade dos direitos
fundamentais refere-se à ideia de inalienabilidade destes direitos. Analisando
os textos constitucionais dos Estados e, em especial, os instrumentos
internacionais de protecção dos direitos do Homem164, constatamos que vários
deles se referem, directa ou indirectamente, à inalienabilidade dos direitos e
liberdades que proclamam e garantem165.
163
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291.
164
Os Preâmbulos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Económicos Sociais e Culturais,
por exemplo, dizem expressamente que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
165
PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertes. La Convention Européene des
Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 468. Considerando que o
conceito de inalienabilidade pode ter vários sentidos, significando por vezes “não transferível”,
outras vezes “não vendável”, ou ainda “não disponível pelo seu titular”, ver MARGARET JANE
RADIN, “Market Inalienability”, in Harvard LR, Vol. 100, n.º 8, 1986/1987, pp. 1849, 1850 e 1852
ss. Para a Autora é também relevante a questão de saber se a alienação é voluntária ou
involuntária e ainda se a posição, direito ou atributo em causa vai parar às mãos de um terceiro
ou pura e simplesmente se perde ou extingue. Se o que está em causa é a perda voluntária,
54
Não parece, no entanto, que se possa retirar do princípio da
inalienabilidade uma “interdição absoluta” de renúncia166. Se atendermos à
“história das ideias políticas” constatamos que este princípio “não se opõe a
uma renúncia pontual e concreta, mas antes a uma renúncia total aos direitos
humanos de direito natural, tal como decorrem das teorias do contrato
social”167. Em virtude disso, tem-se entendido que mesmo nas ordens jurídicas
que referem explicitamente a inalienabilidade dos direitos do Homem (é o caso
da Constituição alemã), daí se tem feito derivar “a exclusão da possibilidade de
renúncia à titularidade de alguns tipos de direitos fundamentais como um todo”,
mas já não “a renúncia pontual e concreta a posições de direitos
fundamentais”168. A inalienabilidade dos direitos fundamentais não deve, por
isso, implicar a sua irrenunciabilidade169.
Por outro lado, há quem defenda a indisponibilidade dos direitos
fundamentais partindo da caracterização destes direitos como direitos
subjectivos públicos. Tem-se entendido que “os direitos subjectivos públicos,
diferentemente dos direitos subjectivos privados, não têm por base uma
relação de vida prévia, sendo sobretudo uma criação intelectual através de
preceitos jurídicos”170. Assim, os direitos subjectivos públicos fundam-se “não
inalienável poderá significar não renunciável. Sobre esta questão, ver ainda SUSAN ROSEACKERMAN, “Inalienability and the theory of property rights”, in Columbia LR, Vol. 85, 1985, pp.
931 ss.
166
PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux Droits et Libertes. La Convention Européene des
Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 468.
167
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 58.
168
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 292; KLAUS STERN –
MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 908.
Parece ser essa a perspectiva de JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, cit., p. 465, ao propor “como eixo argumentativo a invocação do
carácter inalienável dos direitos, liberdades e garantias”. No entanto, não exclui a possibilidade
de “autolimitação voluntária ao exercício de um direito num caso concreto”, desde que seja
livremente revogável. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines
Grundrechtgutes, cit., p. 24, critica os Autores que consideram que da 2.ª parte do art. 1.º da
Grundgesetz (GG) se retira que os direitos humanos são irrenunciáveis (porque inalienáveis).
Segundo o Autor, não se percebe por que razão se devem considerar os direitos humanos
irrenunciáveis mas não já os direitos do cidadão. Nessa medida, entende que dessa disposição
constitucional não se devem retirar consequências tão amplas.
169
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 58.
170
É deste modo que GEORG JELLINEK, System der Subjektiven Öffentlichen Rechte, Mohr
Siebeck, Tübingen, 1919, pp. 334 ss, caracteriza os direitos subjectivos públicos. Ver também
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 83.
55
em faculdades pré-existentes, mas antes numa exclusiva concessão do
ordenamento jurídico positivo”171, pelo que constituem o âmbito do denominado
poder jurídico.
Baseando-se nesta caracterização, alguma doutrina considera que os
direitos subjectivos públicos serão em princípio irrenunciáveis quando a
possibilidade de renúncia não esteja expressamente consagrada. Para esta
posição, uma vez que o direito subjectivo público, enquanto mero “poder
jurídico”, é uma capacidade especial, ou seja, é uma “qualificação da
personalidade”, nesse poder não reside “a capacidade de se eliminar a si
próprio enquanto capacidade jurídica”172.
Parece, no entanto, não fazer sentido a distinção entre “faculdades préexistentes” e “concessões do ordenamento jurídico”, uma vez que é o próprio
ordenamento que determina aquilo que é juridicamente relevante, pelo que
essa determinação “não pode logicamente precedê-lo”173. Para além disso,
esta perspectiva assenta num conceito de direitos subjectivos públicos que se
reconduz “a uma visão positivista e estatista que os amarra e condiciona”174, o
que não corresponde ao entendimento actual dos direitos fundamentais. Assim,
da caracterização dos direitos fundamentais enquanto direitos subjectivos
públicos não se devem retirar quaisquer conclusões quanto à sua
renunciabilidade175.
A indisponibilidade dos direitos fundamentais tem também vindo a ser
fundamentada
através
do
recurso
a
diferentes
teorias
dos
direitos
fundamentais, segundo as quais estes direitos, para além de serem posições
subjectivas reconhecidas aos indivíduos e das quais estes se podem valer,
cumprem ainda outras funções, que se prendem com a prossecução de
171
JORGE REIS NOVAIS, Contributo para Uma Teoria do Estado de Direito, Almedina, Coimbra,
2006, p. 84, nota 176.
172
É o caso de WALTER SCHOENBORN, Studien zur Lehre vom Verzicht im öffentlichen Recht,
Mohr Siebeck, Tübingen, p. 71. Ver, sobre esta questão, MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 84.
173
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 87.
174
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 64.
175
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 88; sobre esta
questão, ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 56 – 58.
56
interesses públicos, o que os torna indisponíveis176.
Uma
teoria
de
direitos
fundamentais
é
“uma
concepção
sistematicamente orientada acerca do carácter geral, os objectivos normativos
e o alcance material” dos direitos177. Estas teorias, “elaboradas a partir de
meados da década de setenta (…), tinham como objectivo esclarecer se a
interpretação dos direitos fundamentais pressupunha ou não uma teoria capaz
de fornecer uma compreensão lógica, global e coerente dos preceitos da
constituição consagradores de direitos fundamentais”178.
Ora se, por exemplo, se entender que subjacente à nossa ordem jurídica
está uma teoria da ordem dos valores179, uma teoria institucional ou uma teoria
democrático-funcional180, teorias que consideram que os direitos fundamentais
“desempenham também, ou principalmente, (…) funções de carácter social,
institucional ou estatal”181, dificilmente se poderá considerar admissível a
renúncia a estes direitos182.
176
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 293. É o caso de GERD
STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 197 ss.
177
ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE, “Grundrechtstheorie und Grundrechtsinterpretation” in
NJW, n.º 27, 1974, pp. 1529 e 1530. Este Autor identifica cinco diferentes teorias de direitos
fundamentais: a “teoria liberal”, a “teoria institucional”, a “teoria dos valores”, a “teoria
democratico-funcional” e a “teoria social”.
178
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1395.
179
Estamos aqui a pressupor que se trata de uma teoria da ordem dos valores que implica uma
opção por determinados valores que limitam a liberdade individual. No entanto, esta “não tem
necessariamente que ser assumida nesta sua versão de alguma forma funcionalizadora”.
JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 63. Que uma teoria é uma teoria axiológica diz apenas que é uma
teoria sobre alguns valores mas não diz nada acerca de que valores se tratam. Nesse sentido,
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 511 e 512.
180
Apesar de todas as críticas a um entendimento democrático-funcional dos direitos
fundamentais, não se pode deixar de admitir que estes direitos exercem uma função essencial
no processo democrático. Assim, nos direitos de liberdade política a dimensão democráticofuncional deve ser tida em conta na ponderação a fazer para determinar a validade de uma
dada renúncia. No entanto, a aceitação da irrenunciabilidade geral destes direitos fundamentais
é desproporcionada. Ainda que não seja de excluir um eventual perigo para os interesses de
uma ordem livre e democrática, deve sempre avaliar-se, por um lado, “o significado do direito
fundamental em causa para a democracia” e, por outro, “a extensão da renúncia intencionada
no caso concreto”. Nesse sentido, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und
Humangenetik, cit., p. 97.
181
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 293.
182
Para além destas têm-se ainda identificado outras teorias, como a conservadora, a social e
a socialista. Sobre as teorias de direitos fundamentais ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., pp. 60 ss; também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito
57
No entanto, ainda que estas teorias tenham tido “importância na
relativização ou atenuação de uma concepção liberal que, na sua redutora
unilateralidade, se impedia de apreender a multifuncionalidade dos direitos
fundamentais nas sociedades actuais”183, pensamos que é muito duvidosa a
sua utilidade para, por si só, resolverem a questão da admissibilidade da
renúncia184. As teorias de direitos fundamentais ressaltam uma determinada
dimensão do direito, sem terem em conta as restantes funções que lhe podem
caber185. Corre-se, consequentemente, o risco de a teoria em causa “assentar
em pré-juízos sobre os direitos fundamentais e, desse modo, atribuir-se às
disposições jusfundamentais significados que as normas não contêm”186.
Nessa medida, utilizar alguma delas em exclusividade implica tanto
descurar as raízes históricas dos direitos fundamentais como as diversas
funções que estes devem prosseguir187. Num ordenamento jurídico pluralista,
como é o nosso, tem de se atribuir aos direitos fundamentais “uma
multifuncionalidade, para acentuar todas e cada uma das funções que as
teorias de direitos fundamentais captavam unilateralmente”188. Qualquer uma
Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1399 – 1401; JORGE BACELAR GOUVEIA,
Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1032; CRISTINA QUEIROZ, Direitos
Fundamentais (Teoria Geral), cit., pp. 76 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “O círculo e a
linha. Da «liberdade dos antigos» à «liberdade dos modernos» na teoria republicana dos
direitos fundamentais”, in Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra,
2004, p. 34; REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, (trad. KARIN PRAEFKE – AIRES
COUTINHO; coord. J.J. GOMES CANOTILHO), 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1997, p. 392; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti
non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 927.
183
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 293.
184
Nesse sentido (referindo-se ao consentimento para a lesão de um bem
jusfundamentalmente protegido, que vimos já ser o termo que o Autor considera mais
adequado), KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes,
cit., p. 19.
185
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 303.
186
KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte”, in JOSEF ISENSEE –
PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª
Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, pp. 60 e 61.
187
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 927.
188
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1402; MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 32. Também JORGE BACELAR
GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1037, refere que “a multiplicidade de
aspectos subjacentes aos vários tipos de direitos fundamentais é de tal ordem que não permite
qualquer esforço de unificação”.
58
destas teorias tradicionais apenas pode auxiliar “na busca de uma
compreensão
material,
constitucionalmente
adequada,
dos
direitos
fundamentais”189, pois as soluções encontram-se “no confronto dos princípios e
preceitos com as situações da vida”190.
Intimamente relacionada com a questão das teorias e funções dos
direitos fundamentais está também a distinção entre diferentes tipos de direitos
para justificar a sua indisponibilidade, uma vez que se entende que há direitos
fundamentais
que
constituem
simultaneamente
ou
estão
intimamente
associados a valores comunitários, pelo que devem considerar-se direitos
“inimigos” da renúncia191. Segundo tal concepção, a renúncia será sempre
inadmissível “quando o bem jurídico sobre o qual incide o consentimento é
simultaneamente um bem jurídico da colectividade ou quando esta se
contrapõe a interesses públicos”192. Aqui não se exclui já a renunciabilidade de
todos os direitos fundamentais mas apenas de alguns.
Pensamos, no entanto, que não se encontra a solução prática para a
renúncia a direitos fundamentais através da mera divisão destes direitos em
“direitos referenciados ao indivíduo” e “direitos referenciados à colectividade”.
Esta divisão tem a virtualidade de realçar um elemento a ter em conta na
decisão
de
ponderação,
como
teremos
oportunidade
de
ver
mais
desenvolvidamente, mas em caso algum resolve o problema da renúncia a
direitos fundamentais193.
Existem efectivamente direitos fundamentais que, apesar de serem
posições subjectivas dos indivíduos, visam também prosseguir outras funções
189
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1403.
190
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 62; Estas críticas não se aplicam,
no entanto, às teorias que abarcam vários princípios, como é o caso da teoria de Alexy. De
facto, o conceito de teoria dos direitos fundamentais não está limitado às teorias tradicionais
que aceitam apenas um princípio, podendo também uma teoria dos direitos fundamentais partir
de vários princípios jurídicos. Sobre esta questão ver, mais desenvolvidamente, ROBERT
ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 516. Para o problema que estamos a tratar, uma teoria
dos direitos fundamentais nestes termos não implica, no entanto, a irrenunciabilidade dos
direitos fundamentais, antes favorecendo o poder de disposição individual em que se traduz a
renúncia.
191
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 175.
192
Nesse sentido, GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non
fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., p. 930.
193
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 190 e 191.
59
(sociais, institucionais ou democráticas), que poderão ser perturbadas com a
renúncia. Tal será o caso, por exemplo, do direito de voto. No entanto, estas
considerações não são extensíveis a todos os direitos fundamentais, apenas se
justificando em relação a alguns deles, como acontece com os direitos de
participação política194. Para além disso, mesmo quanto a estes deve verificarse, na situação concreta, “se os interesses divergentes são harmonizáveis ou
se a renúncia (…) se apresenta como factor de perturbação inadmissível”195.
Por outro lado ainda, também a dimensão objectiva é muitas vezes
invocada como argumento para fundamentar a indisponibilidade dos direitos
fundamentais e negar a sua renunciabilidade de partida196. De facto, no pósguerra passou a reconhecer-se que estes direitos detêm, a par da sua
dimensão subjectiva (enquanto posições subjectivas dos particulares), uma
dimensão objectiva, pelo que se consubstanciam também numa ordem de
valores objectiva que vincula todos os poderes públicos e que detém uma força
irradiante para todos os ramos do direito197.
194
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 293 e 294.
195
RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 157. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur
des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 539 e 540, mostra-se céptico em relação a ponderações de
interesses abstractas, uma vez que não é possível efectuar uma separação precisa entre
interesses individuais e da colectividade.
196
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 296. Sobre a dimensão
objectiva e subjectiva dos direitos fundamentais, ver também JORGE REIS NOVAIS, As
Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit.,
pp.57 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, cit., pp. 107 – 111; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1215 e 1216; PAULO MOTA PINTO, “O direito
ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 187 e 188; ANTÓNIO FRANCISCO DE
SOUSA, Para o Consentimento do Particular em Direito Administrativo, Editora Danúbio, Lisboa,
1983, p. 45; VASCO PEREIRA DA SILVA, A Cultura a que Tenho Direito. Direitos Fundamentais e
Cultura, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 114 e ss; ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos,
Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição
Portuguesa, cit., pp. 66 ss; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., p. 32
e 96 ss; INGO WOLFGANG SARLET, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Livraria do
Advogado Editora, Porto Alegre, 1998, pp. 138 ss.
197
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 57 e 58. REINHARD SINGER, “Die Lehre vom
Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., pp. 182 e 183, sustenta
que “o entendimento dos direitos fundamentais enquanto elementos de uma ordem de valores
objectiva é fruto da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão e remonta a uma decisão
sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito privado. (…) A partir do
momento que se reconhece que os direitos fundamentais devem ser também interpretados
como elementos de uma ordem de valores objectiva, nada mais se opôs, na perspectiva do
Tribunal, a uma irradiação destes direitos nas relações entre privados. Esta criação ‘mística’ de
uma ordem de valores dos direitos fundamentais foi muito criticada, pelo que não constituiu
60
A doutrina tem vindo progressivamente a afirmar esta dimensão
objectiva, o que se traduz num “alargamento das funções classicamente
reconhecidas aos direitos fundamentais”. Partindo dela, passa a aceitar-se uma
“’eficácia de irradiação’ [dos direitos fundamentais] para toda a ordem jurídica
e, em especial, em relação a entidades privadas”. Para além disso, passa
ainda a considerar-se que estes “não se resumem a direitos de defesa que
impõem proibições (‘Abwehrrechte’), mas também importam uma função
protectiva, de imperativo de tutela (‘Schutzgebot’), designadamente impondo
deveres de protecção a entidades públicas”. Assim, a previsão da função
objectiva tem sido “susceptível de fundar outros efeitos jurídicos, que
constituem um ‘reforço de juridicidade’ dos direitos fundamentais”198. Tais
direitos “valem juridicamente para âmbitos diferenciados e delimitados de vida
onde garantem uma protecção variável e primariamente definida pelo chamado
âmbito de protecção,” no qual “oferecem um conteúdo de protecção
multifuncional que se desenvolve em torno” destas duas dimensões199.
Esta distinção faz sentido para demonstrar “que os preceitos relativos
aos direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista
dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares perante
o Estado, (…) antes valem juridicamente também do ponto de vista da
comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir”200.
O reconhecimento da dimensão objectiva está também intimamente
ligado com algumas das teorias de direitos fundamentais já referidas, que
pretenderam superar uma “concepção liberal tradicional que, associada ao
surpresa a posterior apresentação pelo Tribunal de uma nova variante na dogmática jurídica de
direito objectivo: a doutrina dos deveres de protecção do Estado, desenvolvida no primeiro
caso de interrupção da gravidez”. Entendendo que o BVerfG, em virtude das críticas à sua
jurisprudência na qual se referia a uma ordem de valores objectiva, passou a utilizar
formulações mais neutras, ver KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der
Grundrechte”, cit., p. 75. Este Autor considera a designação “conteúdos de direito objectivo” a
melhor. Também KONRAD HESSE, “Significado de los derechos fundamentales”, cit., pp. 92 e
93, considera que “esta interpretação foi criticada; e também subsistem discrepâncias quanto à
relação entre as duas vertentes dos direitos fundamentais”.
198
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 187 –
189.
199
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 56.
200
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 109.
61
carácter negativo e de defesa dos direitos fundamentais, estava mais vinculada
à dimensão puramente subjectiva”201. Vimos, no entanto, que estas teorias
podem implicar uma excessiva “des-subjectivização” e uma “transformação
tendencial da liberdade em liberdade-dever ou em liberdade positivamente
orientada”202, perigo extensível à dimensão objectiva dos direitos fundamentais.
Entendemos, por isso, que a dimensão objectiva dos direitos
fundamentais não deve servir para diminuir o âmbito de autonomia do
indivíduo, uma vez que tal implicaria uma “total desvirtuação da função primária
desta dimensão, que é a de reforço dos conteúdos subjectivos”203. Nessa
medida, a relação entre as duas dimensões é essencialmente uma relação de
“complemento recíproco”204. A função objectiva dos direitos fundamentais visa
“reforçar o direito fundamental de defesa e fazer face a lacunas na sua
protecção”205, pelo que não parece fazer sentido justificar a inadmissibilidade
de partida da renúncia a direitos fundamentais pelo facto de estes direitos
constituírem uma ordem objectiva, contraposta à sua dimensão subjectiva,
individual.
Consequentemente, deve haver uma preponderância da dimensão
subjectiva, que encontra a sua justificação “no valor outorgado à autonomia
individual, na qualidade de expressão da dignidade da pessoa humana”206.
Pode, assim, falar-se de “uma presunção a favor da dimensão subjectiva dos
direitos fundamentais”207, pois apesar da sua relevância objectiva, estes
201
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 59.
202
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 63.
203
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 102.
Afirmando também que a dimensão objectiva impõe ao legislador “deveres específicos de
actuação e de protecção”, constituindo “uma forma de reforçar a garantia dos direitos
fundamentais”, ver RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE
MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 229; CHRISTIAN
HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 130.
204
KONRAD HESSE, “Significado de los derechos fundamentales”, cit., p. 91.
205
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 191.
206
INGO WOLFGANG SARLET, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 153; DETLEF
MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 59.
207
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1257; ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos
Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., p., 67.
62
direitos continuam a ser o modo de o Estado defender e garantir a
subjectividade208.
Desta feita, os direitos fundamentais são, antes do mais, direitos
subjectivos, uma vez que “a Constituição não abstrai da natureza da pessoa
humana como ente relacionado com a comunidade e por ela vinculado, mas
coloca acima disso a qualidade dessa pessoa como indivíduo autónomo”209. A
dupla natureza dos direitos fundamentais e, em particular, o facto de se
considerar que estes contêm também uma dimensão objectiva, não deve,
consequentemente, implicar o enfraquecimento da protecção devida a estes
direitos210. Em caso de conflito entre as duas dimensões, deve dar-se
prevalência à dimensão subjectiva, graças à sua ligação estreita com a própria
ratio dos direitos fundamentais211.
Para além disso, “quando um particular renuncia a um direito
fundamental só está (…) a renunciar a um direito fundamental na sua concreta
conformação enquanto garantia subjectiva – e que respeita apenas à esfera
jurídica do titular –,” o que não implica necessariamente que se atinja o direito
fundamental “na sua relevância jurídica enquanto norma objectiva”212. Nem
208
JOSEF ISENSEE, “Grundrechtsvoraussetzungen und Verfassungserwartungen”, in JOSEF
ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik
Deutschland, Vol. V, 2.ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 465.
209
SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais. Sumários, cit., p. 82.
210
RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI
MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 229.
211
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pp. 384 e
385.
212
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 297. Também GERD
STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., p. 190, considera que “os direitos
fundamentais permanecem garantias de organização e também decisões de valor, ou seja, não
são afectados na sua função de elemento de direito objectivo quando o cidadão renuncia
vinculativamente a um exercício individual de um direito fundamental”. Para o Autor, “a
renúncia apenas atinge os direitos fundamentais na sua feição concreta enquanto garantias
subjectivas”. Nesse sentido, também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 158
– 162. Temos situações excepcionais, no entanto, em que a dimensão objectiva dos direitos
assume uma importância tal que, mesmo tratando-se de direitos relativos a bens pessoais, a
possibilidade de renúncia será, também, mais limitada. Parece ser esse o caso da proibição de
desistência, confissão e transacção que importe a afirmação da vontade das partes
relativamente a direitos considerados indisponíveis, no processo civil. Estas acções versam
sobre relações subtraídas ao domínio da vontade das partes, que são as que se referem ao
estado das pessoas. Esta solução justificar-se-á pelo facto de nos direitos da família existir
uma relação muito forte entre direito e dever. Ver ABÍLIO NETO, Código de Processo Civil
Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 357; JOSÉ LEBRE DE FREITAS - JOÃO REDINHA –
RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 531;
63
todas as renúncias a direitos fundamentais causam um dano na ordem
objectiva geral estabelecida através dos direitos fundamentais.
Não se nega, no entanto, de forma total e em qualquer circunstância
uma repercussão da renúncia na dimensão objectiva dos direitos, pois como já
referimos “entre a caracterização dos direitos fundamentais enquanto
elementos da ordem objectiva, por um lado, e direitos subjectivos, por outro, se
constitui uma relação de recíproca complementaridade e reforço”213.
Tal não significa que a dimensão objectiva não possa ser relevante no
estabelecimento de limites à renúncia. Se uma dada renúncia põe em risco a
ordem de valor objectiva, essa consequência deve ser tida em conta na
ponderação a fazer214, podendo até determinar que, no caso concreto, não
possa haver renúncia pelas suas implicações “no sistema como um todo”215.
Mas esse é já o problema da disponibilidade das posições de direitos
fundamentais enquanto critério a valorar na ponderação a fazer quando se
afere se uma renúncia concreta a direitos fundamentais é válida, questão que
trataremos mais à frente. O que não se pode é dizer, à partida, que em virtude
da sua dimensão objectiva todos ou alguns dos direitos fundamentais são
indisponíveis e, consequentemente, irrenunciáveis.
Também partindo do carácter comunitário dos direitos fundamentais se
tem defendido que estes não são disponíveis porque devem ser entendidos
simultaneamente como deveres. Esta perspectiva relaciona-se com a ideia de
que os direitos fundamentais exercem funções supraindividuais para além da
sua função de defesa, o que decorre do facto de estarem em causa direitos
subjectivos públicos216, pelo que não se distingue completamente das outras
que estivemos a ver até aqui.
ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, Morais Editora, Lisboa, 1961, p. 52.
213
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 100.
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 161, sustenta que deve ter-se em
consideração o facto de a renúncia ter consequências na dimensão objectiva dos direitos se
esta se tornar a regra e não for apenas um acto isolado.
214
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 214.
215
JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, in Houston LR, Vol. 40, n.º 281, 2003,
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?Abstract_id=614522 (última visita a 12.04.2010), p.
300.
216
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 102 e 103;
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 60 e 61.
64
Pensamos, no entanto, que uma interpretação dos direitos fundamentais
enquanto deveres para o cidadão “perverte a concepção destes direitos”, uma
vez que “deve estar em primeiro plano o seu carácter de direitos de
liberdade”217, o que “exclui qualquer uso jurídico da pessoa para a prossecução
de fins, bens, objectivos ou valores últimos que a ultrapassem. Não existe para
o direito qualquer outro fim último, qualquer maior valor do que o Homem”218.
Ainda que “a imagem de Homem da Constituição” seja também
determinada pela ligação comunitária do indivíduo, não se pode olvidar que a
Constituição coloca a dignidade da pessoa humana no centro do ordenamento
constitucional. A aceitação de “deveres imanentes aos direitos fundamentais
que vão ao ponto de tornar ilícita uma determinada forma de utilização da
autonomia, nomeadamente a renúncia, não se compadece com uma tal
imagem de Homem nem se justifica através da interpretação histórica ou
teleológica do texto da Constituição”219.
Uma perspectiva que constitui uma unidade entre direitos e deveres
fundamentais e “funcionaliza” estes direitos transmutando-os em deveres,
anula completamente a posição de destaque “que o indivíduo enquanto pessoa
e a respectiva constituição devem ter na constituição global, passando esse
lugar a ser ocupado pelo Estado e/ou pela sociedade e pelas correspondentes
constituição política e constituição económica”220.
Finalmente, a indisponibilidade dos direitos fundamentais tem ainda sido
justificada através da sua caracterização como “normas de competência
negativa”, dotadas da “função de regular a divisão de competências entre o
Estado e o cidadão”221 e visando demarcar um espaço onde os poderes
públicos já não podem interferir. Partindo da renúncia do particular “a
217
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 61.
218
HASSO HOFMANN, “Grundpflichten und Grundrechten”, in JOSEF ISENSEE – PAUL
KIRCHHOF, Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2.ª Edição, C.
F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 343.
219
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 106.
220
JOSÉ CASALTA NABAIS, “Dos deveres fundamentais”, in Por Uma Liberdade com
Responsabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 216. Também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE
ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 156 e 157,
refere que a nossa Constituição não estabelece “no campo dos direitos políticos e das
liberdades de actuação (…) um modelo funcionalista”.
221
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 93.
65
autoridade pública pode fazer agora o que antes lhe estava absolutamente
vedado pela norma de direito fundamental ou o que antes tinha o carácter de
uma restrição do direito fundamental e que, portanto, só podia ser actuado por
lei ou com base em lei e só nos casos expressamente previstos na
Constituição”222. Segundo esta perspectiva há um “interesse geral na existência
dos direitos fundamentais” que se contrapõe à sua renunciabilidade223.
No entanto, ao justificar-se a impossibilidade da renúncia apelando à
função dos direitos fundamentais enquanto normas de competência negativa
para os poderes públicos, convertem-se estes direitos também em normas de
competência negativa para os próprios particulares224. O facto de se verificar
um “aumento de competências estatais” na sequência da renúncia não basta
para que se afaste a dimensão de exercício do direito, que vimos já estar
presente na renúncia. É que, por um lado, esse “aumento de competências não
afecta a distribuição constitucional dos poderes públicos, dado que se esgota
no momento e nas circunstâncias em que a renúncia se concretiza”. Por outro
lado, “o princípio da tipicidade das competências em direito público tem (…) um
carácter instrumental relativamente à garantia da liberdade individual”225. A
parte organizatória da Constituição deve estar ao serviço dos direitos
fundamentais226.
É fundamental não esquecer que a renúncia a direitos fundamentais
perante o Estado se consubstancia simultaneamente em exercício e restrição
de um direito fundamental. Ora “o problema da admissibilidade abstracta (…)
deve colocar-se no âmbito dessa dimensão da renúncia enquanto exercício do
direito”. Já no que diz respeito ao facto de a restrição poder implicar uma
“infracção ao princípio da reserva de lei, o problema (…) não deve discutir-se
em sede de admissibilidade da renúncia, (…) mas sim no plano da legitimidade
da restrição do direito fundamental”227.
222
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 297 e 298. Sobre esta
questão, ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 61 e 62.
223
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 93.
224
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 93 e 94.
225
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 300.
226
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 94.
227
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 299 – 301.
66
Assim, partindo de tudo o que vimos, entendemos que o poder de
disposição individual sobre posições subjectivas de direitos fundamentais deve
ir até à admissibilidade da renúncia a direitos fundamentais. O que não quer
dizer que não haja limites a esse poder de disposição, questão que será
autonomamente tratada na Parte II da tese. Consideramos, então, que é de
afastar a inadmissibilidade de princípio da renúncia a direitos fundamentais.
2. A fundamentação jurídica da renúncia
A doutrina não é unânime na resposta a dar à questão de saber em que
preceito ou preceitos se deve fundamentar o poder de disposição sobre
posições protegidas por normas de direitos fundamentais. Tem-se entendido
que o poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais
deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, de um autónomo direito ao
desenvolvimento da personalidade, destes dois em conjunto, ou ainda do
conteúdo de autonomia presente em cada um dos direitos fundamentais em
especial228. Para avaliarmos estas diferentes posições e determinar aquela que
nos parece a mais adequada, vamos, antes do mais, procurar densificar o
princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao desenvolvimento da
personalidade.
2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana assume uma grande
relevância em matéria de renúncia a direitos fundamentais, na medida em que
tem sido simultaneamente considerado “limite absoluto da possibilidade de
228
Há ainda quem sustente que o fundamento de um direito à renúncia a direitos fundamentais
decorre de uma norma de direito costumeiro que deriva do preceito latino volenti non fit iniuria.
Ver GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 187 ss. No entanto,
tem-se entendido que o princípio volenti non fit iniuria “nunca pretendeu ser uma resposta geral
à questão da disponibilidade de bens jurídicos jusfundamentais e que o recurso a este princípio
é um argumento meramente formalístico ao qual falta uma base jurídica suficiente”. Ver RALPH
MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 47. Sobre esta questão, ver também MARTINA
DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 64 ss.
67
renúncia” e “fundamento do próprio poder de disposição sobre posições
protegidas por normas de direitos fundamentais”229. Quanto ao princípio da
dignidade enquanto limite da renúncia, teremos oportunidade de o desenvolver
na Parte II. Nesta sede vamos tratá-lo na sua vertente de fundamento do poder
de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais230.
Ainda que a dignidade seja originariamente um valor moral, interessanos essencialmente a sua qualidade de princípio constitucional, ou seja, de
“norma jurídico-positiva”231, “passível de produzir consequências jurídicas
práticas”232.
Até
ao
século
XX
este
princípio
não
se
encontra
constitucionalmente previsto233, tendo sido sobretudo no pós-guerra, na
sequência das atrocidades cometidas no período do nazismo, que adquiriu
verdadeiro significado para o mundo do Direito234. O princípio da dignidade foi
229
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 327. Fazendo
considerações semelhantes no que se refere ao papel do princípio da dignidade humana em
relação à admissibilidade ou não admissibilidade da eutanásia, ver PHILIPPE FRUMER, La
Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à
l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 273.
230
Considerando o princípio da dignidade fundamento do poder de disposição sobre posições
de direitos fundamentais, ver GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”,
in AöR, n.º 2, 1956, p. 152, que afirma que o princípio “volenti non fit iniuria” se ancora na 1.ª
parte do art. 1.º da Constituição alemã; no que diz respeito à renúncia total, também KNUT
FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, cit., pp. 167 e 168; ainda REINHOLD ZIPPELIUS –
THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 194.
231
ERNST BENDA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, in ERNST BENDA –
WERNER MAIHOFER – HANS-JOCHEN VOGEL – KONRAD HESSE – WOLFGANG HEYDE, Manual
de Derecho Constitucional, (trad. ANTONIO LÓPEZ PINA), 2.ª Edição, Marcial Pons, Barcelona,
2001, p. 120. Sobre a evolução histórica deste princípio, ver MATTHIAS MAHLMANN, “The
Basic Law at 60 – Human Dignity and the Culture of Republicanism”, in German Law Journal,
Vol. 11, n.º 01, 2010, www.germanlawjournal.com, pp. 13 ss.
232
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 51.
233
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS - JOSÉ
JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JOSÉ FARIA COSTA, Ars Iudicandi, Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 714. No
entanto, tal como nos diz este Autor, ainda que o termo seja “desconhecido no plano positivo,
nem por isso se pode dizer que não há refracções matriciais através de outras fórmulas. (…) A
ideia cristã de dignidade operará através da afirmação de um conjunto de princípios, como a
igualdade e a afirmação de direitos naturais”. Referindo também que antes do século XX o
conceito de dignidade da pessoa humana não fazia parte da linguagem do Direito, em nenhum
lugar do mundo, ver PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, WGB,
Darmstadt, 2006, p. 13.
234
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 51 ; CATARINA SANTOS BOTELHO, A Tutela Directa dos Direitos Fundamentais. Avanços
e Recuos na Dinâmica Garantística das Justiças Constitucional, Administrativa e Internacional,
Almedina, Coimbra, 2010, p. 96. STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent
68
inicialmente acolhido na Constituição Federal alemã, tendo várias Constituições
seguido o exemplo tudesco, como é o caso da Constituição Portuguesa de
1976235. Entre nós, este princípio está consagrado no art. 1.º da Constituição e
é considerado princípio estruturante do ordenamento jurídico, conferindo uma
“unidade de sentido ao sistema de direitos fundamentais”236. “[A] imagem do
Homem do ‘Estado de Direito’, essa que está em consonância com o espírito
dos (nossos) tempos e que aparece nos textos contemporâneos, é a imagem
da pessoa cuja dignidade tem de ser protegida pela constituição237.”
A crescente importância deste princípio manifesta-se não só na
disseminação da sua consagração expressa mas também na sua cada vez
mais
frequente
invocação,
tanto
por
parte
da
doutrina
como
da
jurisprudência238. Não é, no entanto, comum existir um consenso tão alargado
Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human
Dignity Principle“, EUI Working Paper Law n.º 2007/37, http://cadmus.iue.it/dspace/bitstream/
1814/7664/1/LAW-2007-37.pdf (última visita a 12.04.2010), pp. 4 e 5, e, mais
desenvolvidamente, STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ – CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la
Personne Humaine. Recherche sur un Processus de Juridicisation, Presses Universitaires de
France, Paris, 2005, pp. 24, 25 e 232 – 238, defendem que “a ideia do valor intrínseco da
dignidade tem a ver com a ligação histórica que normalmente se estabelece entre a dignidade
da pessoa humana e as reacções jurídicas à II Guerra Mundial”. No entanto, “tal foi apenas
histórica e politicamente possível graças a um número de pré-condições que já haviam
contribuído para a atribuição de conotações positivas à dignidade que esta não detinha ab
initio”. Segundo as Autoras, este não é “um conceito puro a priori, ou univocamente positivo”
pois, antes do mais, “o antepassado histórico do conceito de dignidade será o conceito de
dignitas (…), que se relaciona com mandatos públicos ou oficiais e designa um número de
deveres e obrigações específicos que decorrem do cargo”. Para além disso, “a dignidade
humana aparece também em textos constitucionais não democráticos como uma referência
fundamental”.
235
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 51. É também o caso, por exemplo, das constituições espanhola, grega, húngara, checa,
polaca, estónia, lituana, eslovaca, sul-africana e israelita. Nesse sentido, CHRISTOPHER
MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, Oxford Legal
Studies Research Paper n.º 24/2008, http://ssrn.com/abstract=1162024 (última visita a
12.04.2010), pp. 21 e 22.
236
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, cit., p. 197; também JOSÉ
MANUEL CARDOSO DA COSTA, “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição e
na Jurisprudência Constitucional Portuguesas”, in Direito Constitucional, Estudos em
Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Dialéctica, S. Paulo, 1999, p. 191. O Tribunal
Constitucional di-lo expressamente, por exemplo, nos Acórdãos n.º 16/84, publicado no Diário
da República, 2.ª série, de 12 de Maio de 1984, e n.º 43/86, publicado no Diário da República,
2.ª série, n.º 111, de 15 de Maio de 1986.
237
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 163; ver
também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Direitos e garantias fundamentais”, cit., p. 688.
238
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 821 e 822. Sobre a aplicação do princípio da dignidade
da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional, ver MARIA LÚCIA AMARAL, “O
69
em relação a um conceito jurídico, sobretudo tratando-se de um conceito tão
pouco claro239, pois apesar da sua recepção em diferentes instrumentos de
Direito Internacional e nas Constituições de vários Estados240, não é
consensual o sentido a atribuir ao princípio da dignidade241. Se é incontestável
que a dignidade “constitui uma das ‘pedras angulares’ do sistema”
constitucional, “bem mais difícil é compreender quais são os seus efectivos
usos jurídicos e condições de aplicabilidade”242.
Por outro lado, a “omnipresença do tópico ‘dignidade’ no debate público
tem o inconveniente de um uso excessivo, em muitas ocasiões meramente
retórico e escassamente argumentado, que conduz de forma inevitável a uma
menor clareza de um conceito por si só já impreciso”. É neste sentido que se
fala de “uma ‘inflação da dignidade’, (…) pelo menos como tendência”243.
princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência constitucional”, in Jurisprudência
Constitucional, n.º 13, 2007, pp. 4 ss; também BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio
da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em
Comemoração do Décimo Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho,
Almedina, Coimbra, 2004, pp. 151 ss.
239
STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining
Western Legal Orders’ Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., p. 3. OTFRIED HÖFFE,
“Menschenwürde als Ethisches Prinzip”, in OTFRIED HÖFFE – LUDGER HONNEFELDER – JOSEF
ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Gentechnick und Menschenwürde: an den Genzen von
Ethik und Recht, DuMont, Köln, 2002, p. 111, considera que é de espantar que o princípio da
dignidade ocupe uma posição fundamental na ética do Estado e do Direito e que não seja
ainda claro nem seu o conteúdo nem o seu “status metodológico”.
240
Tendo “a presença deste substrato institucional e cultural comum” implicado,
inclusivamente, a recepção do princípio na Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia. Ver GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità
(Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 823.
241
ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”,
http://www.perennis.de/public/Publikationen/Dokumente/MW-Leerformel.pdf (última visita a
12.04.2010), pp. 22 e 23.
242
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 823.
243
PEDRO SERNA, “La dignidad humana en la Constitución Europea”, in Persona y Derecho, n.º
52, 2005, pp. 41 e 42. Sobre o “uso inflacionado” do princípio da dignidade, ver também PAUL
TIEDEMANN, “Vom inflationären Gebrauch der Menschenwürde in der Rechtsprechung des
Bundesverfassungsgerichts”, in DöV, n.º 15, 2009, pp. 606 ss. Na p. 610, este Autor refere o
caso Luftsicherheitsgesetz, BVerfGE 115, pp. 118 ss (relativo a uma lei que previa a
possibilidade de abate de aviões que tivessem sido desviados por terroristas com o intuito de
matar outras pessoas), como uma das situações em que não estava em causa qualquer lesão
da dignidade e que poderia ter sido resolvida pelo Tribunal, com os mesmos resultados e com
um grau mais elevado de racionalidade, sem o recurso a este princípio. Sobre este caso, ver
também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Algumas reflexões sobre os direitos
fundamentais, três décadas depois”, in Anuário Português de Direito Constitucional, Vol. V,
2006, p. 134; OLIVER LEPSIUS, “Human Dignity and the Downing of Aircraft: The German
70
Muitas vezes a jurisprudência recorre à ideia de dignidade para que
tenha algo a dizer quando se confronta com as questões realmente difíceis244.
Este princípio é utilizado como um argumento “knock out”245 ou um
“conversation stopper”246, o que significa que a partir do momento em que se
invoca uma violação da dignidade deixa de ser necessário dar mais
explicações, “contornando[-se] as dificuldades de uma discussão ética”247.
Nessa medida, a interpretação judicial do conceito não tem sido muito profícua
nem para a sua densificação nem “para resolver algumas das questões mais
profundas de direitos fundamentais: qual o equilíbrio adequado entre o
indivíduo e a comunidade, incluindo a questão de saber quais os limites
adequados à liberdade individual (…); e até onde temos responsabilidades em
relação à comunidade e a nós próprios”248.
O Tribunal Constitucional tem invocado, de uma maneira geral, o
princípio da dignidade da pessoa humana sem mais, isto é, não esclarecendo
de uma forma explícita o conteúdo deste preceito, embora, como já referimos,
reconheça o papel central assumido pela dignidade da pessoa humana
enquanto princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico. No Acórdão n.º
101/09249, relativo à procriação medicamente assistida, a Conselheira Maria
Lúcia Amaral diz precisamente no seu voto de vencida que “é compreensível
que se seja prudente e parcimonioso quanto à densificação do conteúdo de um
Federal Constitutional Court Strikes Down a Prominent Anti-terrorism Provision in the New Airtransport Security Act”, in German Law Journal, Vol. 7, n.º 9, 2006,
www.germanlawjournal.com, pp. 761 ss.
244
CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”,
cit. p. 73.
245
HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in
positives Recht”, in HANS JÖRG SANDKÜHLER, (org.), Menschenwürde. Philosophische,
theologische und juristische Analysen, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2007, p. 62
246
ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit.,
p. 29.
247
HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in
positives Recht”, cit., p. 62. Referindo-se à “permeabilidade a excessos objectivizantes que [o
princípio da dignidade] (...) encerra”, ver CARLA AMADO GOMES, “Desclassificação e
desqualificação do património cultural: ideias avulsas”, in Estudos em Memória do Professor
Doutor António Marques dos Santos, Vol II, Almedina, Coimbra, 2005, p. 742.
248
CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”,
cit. pp. 63 e 64.
249
http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos09/101-200/10109.htm.
71
princípio que, como este, tem em si implicada uma fortíssima carga axiológica
(porventura, e daí o seu alcance fundante, a mais forte carga axiológica no
sistema dos princípios constitucionais); mas uma coisa é o ser-se prudente e
outra o ser-se silente”.
Assim, “enquanto princípio fundante, a dignidade da pessoa humana
corre (…) o risco de ser remetida para o ‘céu dos conceitos’, daqueles que é de
bom tom citar, mas que são desprovidos de qualquer efeito prático”250. Quando
um conceito tem de servir para tudo acabam por se esbater os seus contornos
e, em virtude disso, perde o seu rigor251.
Consequentemente, para evitarmos esse risco e percebermos em que
medida é que o princípio da dignidade da pessoa humana pode servir para
fundamentar o poder de disposição em que se traduz a renúncia, torna-se
necessário “um processo de concretização” que torne o seu conteúdo
“juridicamente palpável e útil”252.
Antes do mais, é incontestável que o sentido a atribuir ao conceito
jurídico de dignidade é, necessariamente, influenciado pelo “património
histórico e filosófico”253 que este contém, uma vez que se trata de um conceito
“que assume um valor ‘eminentemente cultural’”254. Reconhecer a importância
do contexto cultural no conceito da dignidade da pessoa humana não significa,
no entanto, dizer que os contornos deste princípio são “intangíveis ou
imutáveis”255. Quando na CRP se fala em respeito pela dignidade da pessoa
250
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 719.
251
ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit.,
p. 22. Reconhecendo que este conceito “não mereceu ainda (...) uma construção e sobretudo
uma compreensão suficientemente sólida, nem no plano filosófico, nem muito menos no
jurídico”, ver LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p.
22.
252
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 100.
253
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 164.
254
FRANK MODERNE, “La dignité de la personne comme principe constitutionnel dans les
constitutions portugaise et française”, in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas Constitucionais –
Nos 20 Anos da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 207. O Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 105/90, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
19900105.html, diz precisamente que a ideia de dignidade “não é algo de puramente
apriorístico e ou a-histórico, mas algo que justamente se vai fazendo (e que vai progredindo) na
história, assumindo, assim, uma dimensão eminentemente cultural”.
255
Considerando que “os contornos do princípio da dignidade não são nem intangíveis nem
imutáveis”, ver BERTRAND MATHIEU, “La dignité de la personne humaine: quel droit? quel
titulaire”, in Recueil Dalloz, n.º 33, 1996, p. 286.
72
humana não se pretende “impor constitucionalmente uma ‘imagem unitária do
Homem e do mundo’ nem ainda ‘amarrar’ ou encarcerar o Homem num mundo
cultural específico”256. O conceito de dignidade é um “conceito dinâmico” e a
sua determinação “é um processo que conhece várias etapas mas que nunca
pode ser encerrado, da mesma forma que não se pode encerrar o
desenvolvimento do próprio Homem enquanto ser sociocultural”257.
Se procurarmos, em termos muito gerais, “sintetizar as raízes históricas
da ideia de dignidade da pessoa humana”, parece ser de sustentar a presença
de duas linhas relativamente bem definidas: uma “raiz não-ontológica”
(pragmática) da ideia de dignidade258, na qual esta é essencialmente
considerada “uma tarefa e uma missão”, “independentemente da essência da
humanidade”; e uma “raiz ontológica” (metafísica)259, para a qual “a dignidade
humana constitui uma essência, uma qualidade inata e inalienável do Homem,
256
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador,
Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p. 35.
257
JOHANNES REITER, “Menschenwürde als Massstab”, in Aus Politik und Zeitgeschichte, Vol.
23/24, 2004, http://www.bpb.de/files/MDKH9O.pdf (última visita a 12.04.2010), p. 13.
258
Sendo de integrar nesta linha o pensamento de Confúcio, Pico della Mirandola e também de
Hegel. Nesse sentido, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da
pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, in ANTÓNIO
MENEZES CORDEIRO – PEDRO PAIS DE VASCONCELOS – PAULO COSTA E SILVA, Estudos em
Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2008, pp.
489 – 492; HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer
Rechte in positives Recht”, cit., p. 67. Este excerto da obra de Pico dela Mirandola é bastante
expressivo desta concepção de dignidade: “Finalmente, pareceu-me ter compreendido porque
razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda a
admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não
só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos (...). Deus
tomou o Homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe
deste modo:” Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja
próprio, nem tarefa alguma específica, a fim que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele
aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua
decisão(...). Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu,
árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses
seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás
regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo. Ó suma
liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do Homem! Ao qual é concedido obter
o que deseja, ser aquilo que quer.” GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a
dignidade do Homem, Edições 70, Lisboa, 2006, p. 49 – 52.
259
Esta linha de pensamento, por sua vez, “começa a desenvolver-se com os estóicos,
prossegue com os doutores da Igreja e vem alcançar o seu apogeu (…) sobretudo por obra de
Immanuel Kant”. Nesse sentido, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da
dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”,
cit., p. 492; HANS JÖRG SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer
Rechte in positives Recht”, cit., p. 67.
73
uma coisa em si (…) incondicionada e imutável”. Segundo esta “raiz
ontológica”, tal “qualidade dimana do Direito natural, da natureza ou mesmo de
uma comparticipação dos homens na razão divina, ora porque a natureza
sagrada do Homem resulta de este ter sido criado à imagem de Deus, ora
porque a pessoa humana é concebida como um fim em si mesmo”260.
Há ainda quem defenda que o antepassado histórico do conceito de
dignidade é o conceito de dignitas que, no pensamento da Roma clássica,
significava “status”. Aqueles que gozassem desse “status” deveriam ser
tratados com a honra e o respeito devidos261. Este conceito estava associado
ao exercício de funções públicas ou oficiais, implicando simultaneamente o
cumprimento dos deveres e obrigações que decorriam do desempenho de um
determinado cargo. Para esta perspectiva, o princípio da dignidade humana, tal
como é hoje entendido na Europa, traduz-se na procura de generalização
desse “status”, ou seja, de antigos privilégios de classe262.
No entanto, tem-se vindo a entender que a generalização parcial de
privilégios não se confunde com o desenvolvimento paralelo de um outro
conceito de dignidade, assente na ideia de que “todos os seres humanos
pertencem, em condições de igualdade, à espécie humana”. Assim, esta
perspectiva não distingue entre a “noção de dignidade associada à ideia de
status (por definição, desigual)” e a “noção de dignidade associada à ideia de
igualdade”. Esta última, sendo “igualitária na sua essência”, não pode ser
260
Mais desenvolvidamente, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade
da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., pp. 489
– 492.
261
CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”,
cit. p. 2.
262
Nesse sentido, JAMES Q. WHITMAN, “On nazi ‘honour’ and the new European ‘dignity’”, in
CHRISTIAN JOERGES – N.S. GHALEIGH (eds.), Darker Legacies of Law in Europe. The Shadow
of National-Socialism and Fascism over Europe and its legal traditions, Hart Publishing, Oxford,
2003, p. 245; também JAMES Q. WHITMAN, “Human dignity in Europe and the United States: the
social foundations”, in GEORG NOLTE, European and US Constitutionalism, Cambridge
University Press, Cambridge, 2005, p. 107 ss. É também esta a perspectiva de JEREMY
WALDRON, “Dignity, Rank and Rights”, http://ssrn.com/abstract=1461220 (última visita a
12.04.2010), em particular pp. 22 ss. James Whitman considera ainda que existem linhas
condutoras entre o que se pode designar “a era contemporânea da dignidade” e a “era
fascista”. Assim, defende que a dignidade, tal como é protegida no direito alemão
contemporâneo, não é apenas o produto de uma reacção contra o nazismo. Vista numa
“perspectiva sociológica adequada” é o produto de uma evolução que teve parcialmente lugar
no período nazi.
74
considerada sucessora da dignitas, tal como a definimos263.
Partindo das “raízes histórico-filosóficas do princípio” existem distintas
“conceptualizações jurídicas da dignidade da pessoa humana” que vão mais na
linha de uma ou de outra destas raízes264. Entre as “construções teóricas
relevantes para a interpretação constitucional [deste] conceito” é de referir, em
primeiro lugar, o “conceito axiológico de dignidade de Dürig”265. O Autor
considera que “todo o Homem é Homem em virtude do seu espírito, que o
eleva da Natureza impessoal e lhe confere a capacidade de, por sua própria
vontade, se tornar consciente, se autodeterminar e conformar o mundo que o
rodeia”266. Assim, uma vez que entende que a dignidade “exprime ‘o valor
intrínseco’ do ser humano”267, esta será “violada quando o Homem concreto é
convertido em objecto ou em simples meio”268. Dürig é, consequentemente, um
representante da corrente ontológica e com a fórmula do objecto, inspirando-se
na filosofia moral de Kant, optou por uma perspectiva que procura estabelecer
o objecto de protecção da dignidade da pessoa humana a partir da sua
lesão269.
É também muito relevante “o conceito sociológico de dignidade” de
Niklas Luhmann, que “interpreta o conceito de dignidade como ‘prestação’:
como o resultado da ‘auto-apresentação’ (…) do ser humano concreto na sua
263
STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of
Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., pp. 7 – 9.
264
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um
esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., pp. 499.
265
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 105.
266
GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, cit., p. 125.
267
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 106.
268
Ver, mais desenvolvidamente,
Menschenwürde”, cit., p. 127.
GÜNTER
DÜRIG,
“Der
Grundrechtsatz
von
der
269
MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 169. Ver também GIORGIO
RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta
dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. Constatando que o recurso a esta fórmula “não tem servido
para definir ex positivo a dignidade humana, mas sim e apenas como orientação para
determinar a existência de uma violação”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil
constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade
de concepções”, cit., pp. 484 e 485. Sobre a noção kantiana de dignidade, ver ainda PAULO
OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., pp. 208 ss.
75
identidade e na sua individualidade”270. Sendo um dos mais importantes
representantes
da
“corrente
não-ontológica”271,
o
Autor
opõe-se
à
caracterização da personalidade humana como “substância”272. Luhmann
defende que a dignidade não consiste numa qualidade inata do Homem nem
num valor273, sendo antes “uma aspiração”, “algo que deve ser construído”274
pelo próprio indivíduo, o que significa que os direitos fundamentais não têm
como função garantir a dignidade, mas sim assegurar as condições da sua
prestação275.
Estas duas teses, aparentemente em confronto, têm em comum o papel
central que atribuem à autonomia e à subjectividade individual, o que as
distingue “de uma terceira forma de encarar a dignidade (…): a dignidade não
como um valor ou prestação individual, mas como conceito relacional, como
promessa e pretensão de reconhecimento recíproco, como fundamento de uma
comunidade que se reconhece nos valores de solidariedade”276.
Nessa medida, é de realçar o “conceito relacional de dignidade” de
Hasso Hofmann277, “como reconhecimento e respeito recíprocos dos indivíduos
270
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 105
– 108.
271
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um
esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., p. 493.
272
NIKLAS LUHMANN, Grundrechte als Institution, Duncker und Humblot, Berlin, 1965, p. 58.
273
NIKLAS LUHMANN, Grundrechte als Institution, cit., pp. 63 e 70.
274
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um
esboço traçado a partir de uma variedade de concepções”, cit., p. 494.
275
Ver, mais desenvolvidamente, NIKLAS LUHMANN, Grundrechte als Institution, cit., p. 72. Ver
também
ADALBERT
PODLECH,
“Art.
1”,
in
RUDOLF
WASSERMANN,
Reihe
Alternativkommentare, 2.ª Edição, Vol. I, Luchterhand, 1989, pp. 204 e 205; HANS JÖRG
SANDKÜHLER, “Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives
Recht”, cit., p. 67; PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., p. 36.
276
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. Afirmando que numa análise mais rigorosa
não há conflito mas antes complementaridade entre a perspectiva da dignidade enquanto valor
e a perspectiva da dignidade enquanto prestação, ver EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK,
Staatsrecht, 18ª Edição, Mohr Siebeck, Tübingen, 2002, pp. 227 e 228. Segundo os Autores, “a
perspectiva da dignidade enquanto valor também abrange a protecção da personalidade
individual, no sentido de o indivíduo poder exercer livremente as capacidades que constituem a
sua personalidade. Nessa medida, tal implica a protecção dos pressupostos que a perspectiva
da dignidade como prestação exige”.
277
Como tese relacional do conceito de dignidade é também relevante a tese de Maria Rosaria
Marella, da dignidade da pessoa humana enquanto dignidade social, que se refere ao direito a
76
na sua qualidade de membros igualmente livres e igualmente valiosos na
comunidade”278. Hasso Hofmann considera que as insuficiências das teorias
anteriores (que designa teorias da dádiva e da prestação) são resultado da
“ideia da singular subjectividade dos indivíduos”. A tese que o Autor contrapõe
é a de que a dignidade se constitui no “reconhecimento social”. Neste sentido,
o conceito de dignidade significa “o reconhecimento do outro na sua
especificidade e na sua singularidade”279, defendendo, consequentemente,
uma “corrente não-ontológica”.
Finalmente, é de referir a posição de Podlech, que estabelece uma
“grelha conceptual” segundo a qual a garantia da dignidade se consubtancia
uma vida digna, em termos de condições materiais e económicas. Esta Autora sustenta que
“encontramos, nas tradições constitucionais dos estados membros da União Europeia, duas
noções diferentes de dignidade: a dignidade social e a dignidade humana”. Assim, defende que
o princípio da dignidade tem sido utilizado, muitas vezes, de forma a justificar o sacrifício dos
desejos individuais, tendo uma relação muito controversa e pouco clara com a liberdade,
mesmo quando a actividade em questão é assumida pela pessoa cuja dignidade está em
causa como constituindo a sua dignidade social. Ver, mais desenvolvidamente, MARIA
ROSARIA MARELLA, “The old and the new limits to freedom of contract in Europe”, in ERCL, Vol.
2, n.º 2, 2006, pp. 269 – 274. Estabelecendo uma distinção entre concepções individualistas e
concepções relacionais, incluindo nestas últimas a concepção de dignidade social de Maria
Rosaria Marella, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Programa da disciplina de Direito das
Pessoas, Ano Lectivo 2006/2007.
278
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 105
e 108. Considerando que se deve integrar num mesmo grupo (das “concepções funcionalistas”)
as “teorias da prestação” e do “reconhecimento”, ou seja, o conceito social e relacional, ver H.
SANDKÜHLER, “Menschliche Würde und die Transformation moralischer Rechte in positives
Recht”, http://www.unesco-phil.uni-bremen.de/texte/Sandk%FChler,%20Menschliche%20W%F
Crde.pdf, p. 9.
279
Ver, mais desenvolvidamente, HASSO HOFMANN, “Die Versprochene Menschenwürde”, in
AöR, n.º 118, 1993, pp. 364 e 370; JOÃO LOUREIRO, “O direito à identidade genética do ser
humano”, in Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 281; NUNO MANUEL
PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio
Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 105 – 110; INGO WOLFGANG
SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de
1988, 4.ª edição, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2006, p. 48, nota 78; PAUL
TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., pp. 35 e 36; GIORGIO RESTA, “La
disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”,
cit., p. 824, nota 64; FRANK DOMKE, Grundrechtliches System und systematisiertes Grundrecht,
Peter Lang, Frankfurt am Main, 1998, pp. 125 e 126; MATTHIAS MAHLMANN, “The Basic Law at
60 – Human Dignity and the Culture of Republicanism”, cit., p. 22; NADINE KLASS, Rechtliche
Grenzen des Realitätsfernsehens, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004, p. 134. Também PAULO
OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., pp. 563 e 565 – 566, sustenta que “a
dignidade humana nunca pode deixar de ter presente a referência ao outro”, implicando
sempre “uma dimensão relacional ou comunicacional, servindo de critério de ordenação das
relações humanas, pressupondo um reconhecimento mútuo no relacionamento intersubjectivo
das pessoas umas com as outras”.
77
em cinco elementos essenciais280: “a segurança da vida individual e social”; “a
igualdade jurídica de todas as pessoas”; “a protecção da identidade e da
integridade da pessoa humana”; “a limitação do exercício de poder pelo
Estado”; e “o respeito pela contingência corporal da pessoa humana”281.
Podlech não visa encontrar uma “justificação transcendental da dignidade”,
mas antes identificar quais “as condições empíricas da sua manutenção”282.
Esta tentativa de classificação coloca-se, num certo sentido, numa posição
intermédia entre as acepções de dignidade de Dürig e de Luhmann283 e poderá
considerar-se uma “reconstrução pragmática do conceito de dignidade”284.
Apesar das divergências, não nos parece, no entanto, que não
possamos ou não devamos retirar destas diferentes concepções pistas para a
interpretação do conceito de dignidade da pessoa humana. Entre os critérios
referidos nas diversas posições existem “relações de integração e de
esclarecimento recíprocos: de cada uma das concepções indicadas podem e
devem extrair-se elementos relevantes para a interpretação (…) do art. 1.º da
CRP”285, uma vez que estas reflectem a “multidimensionalidade do conceito
constitucional de dignidade” e não se excluem necessariamente umas às
outras286.
Em primeiro lugar, as posições defendidas (apesar de todas as
diferenças) são unânimes num ponto: todas elas partem da ideia de que o que
justifica a protecção da dignidade é a disposição do Homem para ser sujeito
moral, podendo, na sua acção, optar entre o bem e o mal. Esta constatação
280
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64.
281
Ver, mais desenvolvidamente, ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, cit., pp. 208 – 218; NUNO
MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” –
Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 108; FRANK DOMKE,
Grundrechtliches System und systematisiertes Grundrecht, cit., pp. 124 e 125.
282
TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, Duncker &
Humblot, Berlin, 1990, p. 117.
283
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64.
284
Nesse sentido, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Programa da disciplina de Direito das
Pessoas, Ano Lectivo 2006/2007.
285
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 110.
286
TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, cit., p. 134.
78
vale “independentemente dos contextos filosóficos, religiosos, culturais e
mundividenciais que condicionam os sistemas de valores morais concretos” 287.
Olhando agora para cada uma das perspectivas referidas, parece-nos
relevante, na teoria da dádiva, a identificação da dignidade com a autonomia
ética da pessoa. Efectivamente, esta teoria tem na sua base a afirmação da
centralidade da autonomia e da subjectividade individual. Apesar disso, através
do recurso à fórmula do objecto ela tem vindo a servir para a imposição de uma
ordem de valores transcendente e objectiva, que se impõe às próprias
concepções de dignidade do indivíduo.
Assim, a vantagem da teoria de Luhmann reside no facto de o Autor
defender uma concepção de dignidade que enfatiza a possibilidade de
realização pessoal288. Na verdade, esta teoria impede que se imponham
determinadas “imagens de Homem” e “concepções de dignidade” aos
cidadãos, evitando também a “identificação do Estado com uma qualquer teoria
filosófica ou doutrina confessional”289. Resulta claramente desta concepção que
é ao próprio indivíduo que cabe determinar o que constitui a sua dignidade290.
Esta perspectiva tem, no entanto, vindo a ser criticada por se considerar
que “não corresponde às exigências do Estado constitucional”, já que também
aqueles que não têm capacidade para a construção da sua identidade, tal
como acontece, por exemplo, com os nascituros ou os incapazes, não deixam,
por essa razão, de ter dignidade291. A dignidade da pessoa humana é “uma
dignidade
287
fundada
numa
capacidade
abstracta
e
potencial
de
ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer Gedanke?”, cit.,
p. 65.
288
PETER HÄBERLE, “Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, in
JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF, (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik
Deutschland, Vol. I, C. F. Müller, Heidelberg, 1995, p. 836.
289
HASSO HOFMANN, “Die Versprochene Menschenwürde”, cit., p. 362.
290
BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, (trad.
ANTÓNIO FRANCO – ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA), Universidade Lusíada Editora, Lisboa,
2008, p. 105.
291
INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, cit., pp. 48 e 49; PETER HÄBERLE, “Die Menschenwürde als
Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, cit., p. 838; REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS
WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 203; HANS JÖRG SANDKÜHLER,
“Menschenwürde und die Transformation moralischer Rechte in positives Recht”, cit., p. 11;
HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, Vol. 1, 2.ª Edição, Mohr Siebeck, Tübingen,
2004, p. 169.
79
autodeterminação, independentemente da capacidade ou vontade concreta da
sua realização que pode mesmo nem sequer existir facticamente”, como é o
caso das pessoas portadoras de deficiência292.
Por outro lado, o problema desta perspectiva está sobretudo na
circunstância de encarar a dignidade como “o resultado de um processo de
formação da identidade”. Não cabe, no entanto, ao Estado, avaliar o sucesso
de um determinado “processo de formação de uma personalidade”. O que lhe
cabe é, essencialmente, proteger o próprio processo enquanto tal293.
Nessa medida, a proposta de Hasso Hofmann (de dignidade enquanto
reconhecimento recíproco) tem a vantagem de considerar que o Homem
continua
a
ter
dignidade
autodeterminação294.
mesmo
Parece-nos
que
ainda
não
relevante
tenha
capacidade
porque
um
de
conceito
relacional de dignidade realça o facto de o problema da liberdade e da
dignidade só ter efectivamente sentido em sociedade. Para além disso, o
entendimento da dignidade como conceito de relação aponta para uma outra
dimensão essencial do princípio: a dimensão prestacional, que é uma exigência
“de uma comunidade que se reconhece nos valores de solidariedade”295.
A crítica que se faz a esta perspectiva é, no entanto, a de que a
dignidade não é apenas o resultado de uma promessa mútua de
reconhecimento
comunitário,
“antes
constitui
o
direito
à
criação
de
determinadas formas de vida humanamente adequadas”, marcadas pela
292
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 59. Considerando que, “se não queremos despojar as pessoas marginalizadas da
protecção constitucional, devemos conformar-nos com uma definição que parta da capacidade
abstracta e potencial do ser humano para se realizar enquanto tal”, ver ERNST BERNA,
“Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., pp. 124 e 125.
293
MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher
Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, in AöR, n.º 130, 2005, p. 92.
294
MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher
Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 92. Por outro lado ainda, a proposta de
Maria Rosaria Marella aponta para a vertente social e prestacional decorrente do princípio da
dignidade da pessoa humana, chamando a atenção para o conflito que pode existir entre a
dignidade humana, quando interpretada no sentido de limitação da liberdade, e a dignidade
social.
295
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 824, nota 64. Ver também MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel
1, Abs. 1”, in THEODOR MAUNZ – GÜNTER DÜRIG, (et al), Grundgesetz Kommentar, Vol. I,
Verlag C.H. Beck, München, 2003, p. 57.
80
promessa de respeito pelo outro, uma vez que é inerente ao Homem296.
Finalmente, a teoria de Podlech “parece adequada às sugestões
normativas da constituição e ao contexto jurídico-cultural português”,
fornecendo “tópoi de concretização jurídico-judicialmente controláveis”297.
Assim, partindo destas diferentes perspectivas, entendemos que a
dignidade da pessoa humana compreende “três dimensões” distintas: “a
dignidade como dimensão intrínseca do ser humano, a dignidade como
dimensão aberta e carecedora de prestações [e] a dignidade como expressão
de reconhecimento recíproco”298. A dignidade da pessoa humana é, então, “o
valor intrínseco, originariamente reconhecido a cada ser humano, fundado na
sua autonomia ética e que alicerça uma obrigação geral de respeito da pessoa,
traduzida num feixe de deveres e de direitos correlativos”299.
Essa dignidade intrínseca é o fundamento de um dever de respeito,
“independentemente das capacidades (…) do sujeito e que (…) funda, no
essencial, deveres de omissão dos outros e do Estado, bem como um conjunto
de deveres de protecção a cargo deste”. Por outro lado, é também da maior
relevância a “dimensão prestacional” do princípio300. A dignidade contém
simultaneamente uma “dimensão defensiva”, enquanto “instrumento de
protecção do valor da pessoa contra acções invasivas do Estado” ou de
terceiros, e uma “dimensão prestativa”, que exige uma actuação por parte do
Estado de modo a garantir condições materiais mínimas aos seus cidadãos301.
296
MATTHIAS MAHLMANN, “The Basic Law at 60 – Human Dignity and the Culture of
Republicanism”, cit., p. 22.
297
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
249.
298
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 199. LUÍS PEDRO
PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do
Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 583 e 584, afirma que a dignidade
“se projecta num princípio normativo de igualdade, num princípio de liberdade e num princípio
de socialidade ou de solidariedade”. JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito
Constitucional, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2005, p. 785, entende que a dignidade da pessoa
humana “parte das características da liberdade e da racionalidade da pessoa,
antropologicamente sustentada numa inserção social, garantindo o seu desenvolvimento
pessoal”.
299
JOÃO LOUREIRO, “O direito à identidade genética do ser humano”, cit., p. 281.
300
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 718.
301
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., pp. 175 e 176. Sobre o direito ao mínimo
de existência condigna, ver, mais desenvolvidamente, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “O
81
Passa a reconhecer-se, então, partindo do princípio da dignidade da pessoa
humana, um “direito a um mínimo para uma existência condigna”302, que se
traduz numa obrigação estadual de garantir condições materiais de vida303,
“capazes de assegurar liberdade e segurança às pessoas”304.
No entanto, para a questão da renúncia a direitos fundamentais
interessa-nos fundamentalmente o princípio da dignidade enquanto instrumento
de protecção do valor da pessoa contra acções invasivas do Estado ou de
direito ao mínimo de existência condigna como direito fundamental a prestações estaduais
positivas – uma decisão singular do Tribunal Constitucional”, in Jurisprudência Constitucional,
n.º 1, 2004, pp. 4 ss; também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais no
século XXI”, in JAVIER PÉREZ ROYO – JOAQUIN PABLO URÍAS MARTÍNEZ – MANUEL CARRASCO
DURAN (eds.), Derecho Constitucional para el Siglo XXI. Actas del Congreso Iberoamericano
de Derecho Constitucional, Aranzadi, Navarra, 2006, pp. 1066 e 1067; JORGE REIS NOVAIS, Os
Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 291 ss; JORGE REIS
NOVAIS, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp.
189 ss; ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos
Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, Almedina, Coimbra, 2007, pp.124
ss.
302
Estamos de acordo com JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “O direito ao mínimo de
existência condigna como direito fundamental a prestações estaduais positivas – uma decisão
singular do Tribunal Constitucional”, cit., p. 29, que sustenta ser esta a expressão preferível.
303
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 64; PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., p. 556. Também noutros
ordenamentos jurídicos se tem estabelecido uma relação entre dignidade da pessoa humana e
a realização de direitos económicos sociais e culturais. Os Tribunais Constitucionais alemão,
indiano, italiano e da África do Sul, por exemplo, têm recorrido ao princípio da dignidade para
fundamentar as suas decisões relativas a direitos económicos, sociais e culturais. Ver
CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”, cit.,
pp. 44, 45 e 52.
304
JORGE MIRANDA, “Artigo 1.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa
Anotada, cit., p. 54. Na última década o TC foi alicerçando, progressivamente, um direito ao
mínimo de existência condigna, “afirmando, primeiro, a garantia do mínimo de sobrevivência
como fundamento de restrições legislativas a outros direitos e, depois, a existência de um
direito subjectivo ao mínimo de sobrevivência condigna como limite negativo do poder estadual
de execução patrimonial – o direito a não ser privado desse mínimo”. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE
ANDRADE, “O direito ao mínimo de existência condigna como direito fundamental a prestações
estaduais positivas – uma decisão singular do Tribunal Constitucional”, cit., p. 21. O TC deu um
passo decisivo quando, no Acórdão n.º 509/02, http://www.tribunalconstitucional.
pt/tc/acordaos/20020509.html, “optou por fundamentar a inconstitucionalidade da norma, que
suprimia as anteriores ajudas e que não fornecia qualquer alternativa ou compensação eficaz,
como resultando de uma violação directa do princípio da dignidade da pessoa humana.
Significa isto que o Tribunal deduziu deste princípio, independentemente das debilidades
notórias do nosso Estado social, uma obrigação, juridicamente exigível, de manutenção
objectiva das prestações materiais destinadas a assegurar a existência condigna; essa passa,
então, a constituir uma exigência mínima de garantia positiva da dignidade da pessoa humana
por parte do Estado e que este fica vinculado a observar independentemente de dificuldades
financeiras circunstanciais ou de particulares orientações políticas”. Ver JORGE REIS NOVAIS,
Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 66 – 68. Sobre
esta decisão, ver também ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e
dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., pp. 141 ss.
82
terceiros. Nessa vertente, e partindo de tudo o que vimos até aqui, julgamos
que em Estado constitucional pluralista a dignidade é atribuída ao Homem
porque ele se pode conceber como um ser autónomo, capaz de se
autodeterminar305. A afirmação constitucional do princípio visa garantir “o
respeito da unidade existencial de sentido que é cada Homem, enquanto ser
que transcende cada um dos seus actos e atributos, através de um plano vital
próprio, cuja autoria e responsabilidade só a ele mesmo se deve e imputa”306.
Há, portanto, uma relação muito estreita entre autonomia e dignidade, sendo
que esta última se traduz juridicamente “num ‘direito a ter direitos’ e na sua
qualidade de ser sujeito jurídico: trata-se da dignidade como empowerment”307.
Para além disso, ser-se humanamente digno significa “ser-se igual a
todos os outros em capacidade de autonomia moral”308, isto é, ser-se dotado
de igual liberdade para fazer as próprias opções de vida. Há, então, também
uma ligação incindível entre o princípio da dignidade e o princípio da
igualdade309, na medida em que a desigualdade é incompatível com a
305
MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher
Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 93. PAUL TIEDEMANN, “Vom inflationären
Gebrauch der Menschenwürde in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, cit.,
pp. 612 e 613, afirma que na dignidade estão em causa “as condições pessoais da
possibilidade de liberdade, desenvolvimento e autodeterminação”.
306
FRANCISCO LUCAS PIRES, Uma Constituição para Portugal, cit., p. 30.
307
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 719. JOSÉ DE OLIVEIRA
ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução. As Pessoas. Os Bens, 2.ª Edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 71, refere que a dignidade implica a atribuição de direitos
aos cidadãos, de modo a garantir essa mesma dignidade na vida social. PAUL TIEDEMANN,
Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., p. 119, considera que respeitar a dignidade
significa respeitar a liberdade da vontade de cada pessoa. Limitações a essa liberdade da
vontade implicam restrições na integridade da pessoa porque põem em risco a sua identidade
e autenticidade.
308
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p.146.
309
Considerando inclusivamente que “o núcleo fundante e central do sistema de direitos
fundamentais da Constituição de 1976 talvez seja melhor designado pela ideia de ‘igual
dignidade’”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos,
Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 313; LUÍS PEDRO PEREIRA
COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito
Constitucional, cit., p. 583, nota 1945, entende que o princípio da igualdade em dignidade,
“enquanto princípio parametrizador [se] distingue (…) do princípio da igualdade enquanto
princípio normativo”. No primeiro, “o que está em causa é um compromisso de nos
respeitarmos uns aos outros como seres da mesma categoria essencial através da
normatividade jurídica”. No segundo, “está em causa uma concretização desse compromisso
plasmada na normatividade jurídico-constitucional”, que se traduz “na exigência de as
vantagens e desvantagens a distribuir não o serem arbitrariamente”.
83
dignidade310. Quando se encara a igualdade como um dos elementos
fundamentais da dignidade o que se procura “é conceder ao Homem o mínimo
de igualdade imediata, que é a igualdade em dignidade”311.
Assim, “o princípio da dignidade da pessoa humana articula-se nos
valores da liberdade e da igualdade e implica a igual liberdade de todos os
cidadãos”312.
Quem defende que o princípio da dignidade da pessoa humana é o
fundamento da renúncia parte precisamente da ideia que a dignidade garante,
enquanto elemento decisivo, a autonomia, sendo que é por força dessa
autonomia que o indivíduo pode estabelecer limitações à sua liberdade que o
Estado não está legitimado a impor unilateralmente313.
2.2. O direito ao desenvolvimento da personalidade
Por outro lado, há quem entenda que o poder de disposição que
caracteriza a renúncia se deverá ancorar num autónomo direito ao
desenvolvimento da personalidade314. Este direito foi consagrado na nossa
310
GREGORIO PECES – BARBA, “Reflexiones sobre la evolución histórica y el concepto dignidad
humana”, in MARÍA EUGENIA RODRÍGUEZ PALOP – IGNACIO CAMPO Y CERVERA – JOSÉ LUIS
REY PÉREZ (eds.), Desafíos Actuales a los Derechos Humanos: la Violencia de Género, la
Inmigración y los Medios de Comunicación, Dykinson, 2005, p. 32.
311
ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Princípio da consubstancialidade parcial dos direitos
fundamentais na dignidade do Homem”, in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol.
XLVII, 2006, p. 329.
312
JOSÉ DE SOUSA E BRITO, “Razão democrática e Direito”, in Ética e Futuro da Democracia,
Edições Colibri, Lisboa, 1998, p. 149.
313
Ver REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 194.
314
Parece-nos ser essa a posição de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258. Também LUÍSA NETO, O
Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 34, que entende que “[a]
esfera de liberdade e autonomia tem de, em última análise, em casos extremos, permitir o ‘não
gozo’ ou a renúncia, em termos que decorrem do reconhecimento de um direito ao
desenvolvimento da personalidade”. No ordenamento jurídico alemão, sustentando que a
possibilidade de renúncia deriva do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto
na 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã, ver HELMUT QUARITSCH, “Der Verzicht im
Verwaltungsrecht und auf Grundrechte”, cit., p. 410; MICHAEL SACHS, “Volenti non fit iniuria –
Zur Bedeutung des Willens des Betroffenen im Verwaltungsrecht”, in VerwArch, n.º 76, 1985, p.
411; ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59; e ainda MICHAEL
MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht” cit., p. 478; CARL JOSEPH HERING, “Der Verzicht als
intentionaler Faktor der freien Entfaltung der Persönlichkeit”, in H. KONRAD – H. JAHRREISS – P.
84
Constituição após a quarta revisão de 1997315, que passa a referir
expressamente, no seu art. 26.º, o desenvolvimento da personalidade. No
entanto, já antes dessa consagração o Tribunal Constitucional havia feito
referência ao direito geral de personalidade como dimanação do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana316.
Vamos, então, procurar densificar o âmbito de protecção do direito ao
desenvolvimento da personalidade, para o que releva particularmente a
“elaboração doutrinal e jurisprudencial” alemã, não só pelo facto de a
positivação constitucional do direito se ter inspirado no modelo da
Grundgesetz,
tal
como
vem
expressamente
referido
nos
trabalhos
317
preparatórios
, mas também por ser nesse ordenamento jurídico que mais
tem sido estudado. A presença “de um relativamente extenso catálogo de
direitos de liberdade ‘especiais’” na nossa Constituição não é um entrave à
compreensão do direito “como ‘direito fundamental fundante' (…) tal como na
ordem jurídica alemã”, o que não implica que não atendamos às diferenças
resultantes dessa previsão mais desenvolvida318.
MIKAT – H. MOSLER – H. C. NIPPERDEY – J. SALZWEDEL (orgs.), Gedächtnisschrift Hans Peters,
Springer Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, 1967, pp. 513 ss.
315
JORGE BACELAR GOUVEIA, “A quarta revisão da Constituição portuguesa”, in Estudos de
Direito Público, Vol. I, Principia, Cascais, 2000, p. 87.
316
Ver, nesse sentido, o Acórdão n.º 6/84, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de
Maio de 1984; ver também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e
a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito
Civil, cit., p. 79, nota 130; ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO – MÁRIO JOÃO DE BRITO FERNANDES,
Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de
Lisboa, Lisboa, 1999, p. 111.
317
José de Magalhães, na revisão constitucional de 1997, DAR, 1.ª série, n.º 94, de 16 de
Julho de 1997, p. 3396, diz que as fontes desta norma são públicas e confessas: a Constituição
Espanhola de 1978 e a Lei Fundamental de Bona.
318
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in PortugalBrasil ano 2000 – Tema Direito, Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, Coimbra, 1999,
pp. 156, nota 19 e 162. Em sentido contrário, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 463, defendem que o direito
ao desenvolvimento da personalidade “não surge, no contexto constitucional português, como
uma espécie de (…) ‘direito mãe’, à semelhança do que acontece na Constituição da República
Federal da Alemanha”. No entanto, entendem que este direito “não pode ser encarado apenas
como uma liberdade ou direito geral (‘direito geral de liberdade’) de natureza complementar ou
subsidiária”, pelo que compreende as seguintes dimensões no seu âmbito normativo de
protecção: a “formação livre da personalidade”; a “protecção da liberdade de acção de acordo
com o projecto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias”; e a “protecção da
integridade da pessoa”. RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA –
RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 286, consideram, por seu lado, que
“diferenças significativas” separam os preceitos alemão e português. Na medida em que “no
85
Não é também um óbice à compreensão deste direito em termos
análogos aos reconhecidos na doutrina e jurisprudência alemãs, o facto de o
legislador constituinte não ter feito referência expressa ao adjectivo “livre”,
porque a ideia de liberdade é inerente à “noção de desenvolvimento da
personalidade”319.
A consagração do direito ao desenvolvimento da personalidade “teve
sobretudo em vista a tutela da individualidade e, em particular, das suas
diferenças”320. Este direito visa salvaguardar “as singularidades da pessoa
humana, naquilo que a caracteriza como diferente ou igual às demais,
conferindo-se a cada um o direito de livremente optar pelo seu próprio projecto
de vida”321. Está aqui em causa o direito de a pessoa escolher livremente o seu
destino e de conduzir a sua vida com autonomia e responsabilidade, de acordo
com as suas convicções322. No Acórdão n.º 288/98323, relativo ao referendo
sobre a interrupção voluntária da gravidez, o TC diz precisamente que o direito
ao desenvolvimento da personalidade compreende “a autonomia individual e a
autodeterminação” e confere “a cada um a liberdade de traçar o seu próprio
plano de vida”.
Convém, no entanto, realçar que “a liberdade constitucionalmente
direito alemão este direito constitui o princípio de irradiação de todos os direitos pessoais não
especificados, entre os quais se contam quase todos os que estão expressamente
consagrados no texto português”, defendem que “o alcance prático” deste direito na nossa
ordem jurídica “será muitíssimo mais restrito”.
319
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 160. RUI
MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 287, pelo contrário, estabelecem que “em termos
literais a expressão portuguesa ‘desenvolvimento da personalidade’ parece ligada à ideia de
‘formação’ da personalidade”, enquanto “a expressão alemã Freie Entfaltung contém um
sentido mais amplo que aponta para as ideias de autonomia e de livre ‘exteriorização’ e
‘realização’ da personalidade”.
320
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 157.
321
CATARINA SAMPAIO VENTURA, “Os direitos fundamentais à luz da quarta revisão
constitucional”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXIV, 1998, p. 501. JOSÉ DE
MAGALHÃES, DAR, 1.ª série, n.º 94, cit., p. 3397, diz precisamente que o direito ao
desenvolvimento da personalidade é, “o direito que cada um de nós tem a ser um ente único e
irrepetível, distinto ou igual aos demais, consoante delibere, queira e consiga”. Nessa medida,
sustenta ainda que compreende “o direito à autodeterminação, ou seja, o direito a escolher
livremente o destino pessoal e a decidir livremente em decisões de conflito que são fulcrais
para a concretização da existência humana”.
322
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 127.
323
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980288.html.
86
garantida” é apenas “a liberdade juridicamente protegida”, o que implica que se
tenha, antes do mais, de delimitar o âmbito de protecção do direito consagrado
na Constituição. “Não há, em Estado de Direito, (….) o reconhecimento de
qualquer direito – muito menos fundamental – a cada um poder fazer aquilo
que quiser”324. De facto, “o compromisso com o Estado social impõe que se
compreenda a liberdade como um espaço do sujeito reconhecido no quadro de
uma comunidade ordenada e, simultaneamente, como uma finalidade a
prosseguir pelo Estado (como liberdade jurídica (…) e não uma abstracta e
ilimitada liberdade natural)”.
Apesar disso, tal não significa “que seja lícito
omitir a dimensão de liberdade no entendimento do direito ao desenvolvimento
da personalidade”325.
A delimitação do âmbito de protecção dos direitos fundamentais deve
apenas excluir as situações que não podem ser entendidas “pela consciência
jurídica própria de Estado de Direito como exercício jusfundamentalmente
protegido”. Tal quer dizer que não são de considerar abrangidos nesse âmbito
“todos os comportamentos ou acções que suscitem uma reprovação social e
jurídica consensuais”. Este critério é mais limitado do que uma “mera remissão
genérica para as leis penais enquanto fundamento de exclusão da protecção
jusfundamental”, uma vez que não deve ser de afastar essa protecção quando
esteja em causa “uma lei penal aprovada ou mantida em vigor num ambiente
de grande controvérsia sobre a sua constitucionalidade”326.
Assim, não deverão excluir-se, à partida, do âmbito de protecção do
direito ao desenvolvimento da personalidade acções que não reúnam consenso
social, “como a prática, em certas circunstâncias, do aborto ou da eutanásia, o
consumo de álcool, tabaco ou drogas (…), na medida em que os valores que
justificam a lei criminalizadora não apresentem face a elas uma supremacia de
324
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 412 – 414. RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo
26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 287,
consideram que “mesmo admitindo (…) uma liberdade geral de acção, o critério dessa
liberdade está não apenas na liberdade, mas também nos seus limites”.
325
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 161 e
162.
326
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 427 e 428.
87
tal forma constringente que assegure uma criminalização não controversa”327.
Estas
situações
devem
considerar-se
abrangidas
pelo
direito
ao
desenvolvimento da personalidade quando não se reconduzam a outros
direitos fundamentais em especial. Foi essa a posição assumida pelo TC no já
citado Acórdão n.º 288/98, bem como no Acórdão 617/06328, ambos relativos
ao referendo sobre o aborto, na medida em que o Tribunal considera que o
direito da mãe a interromper a gravidez se funda no direito ao desenvolvimento
da personalidade.
Tal não significa que, uma vez delimitado o âmbito de protecção do
direito, este não possa ser sujeito a restrições329. No Acórdão n.º 436/00330,
relativo à Lei do Jogo, o Tribunal Constitucional vem dizer que o direito ao
desenvolvimento da personalidade não é incompatível com limitações, desde
que sejam “adequadas, necessárias e não alheadas da relação com o fim
prosseguido”331. No entanto, “o ónus de fundamentar está do lado do poder
327
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 428 e 429. Considerando que o direito a fumar se
encontra protegido pelo direito ao desenvolvimento da personalidade, ver RALF JAHN, “(Nicht-)
Raucherschutz als Grundrechtsproblem”, in DöV, n.º 19, 1989, pp. 850 e 851. Em sentido
contrário, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, cit., p. 465, defendem que é “insustentável que caibam no âmbito
normativo constitucional do desenvolvimento da personalidade algumas ‘liberdades’ invocadas
como dimensões lógicas deste princípio (‘direito a consumir drogas’, ‘direito a fumar’ (…),
‘direito à rejeição de cinto de segurança’, ‘direito à rejeição de capacete de protecção’ (…))”,
etc. Parece-nos ser também essa a posição de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A dignidade da
pessoa humana e o fundamento dos direitos humanos”, in ROA, Ano 68, Vol. I, 2008, p. 115,
na medida em que refere que “sem uma tábua de valores haveria realização da personalidade
na opção pela droga, na avareza, no isolamento e na agressividade por ódio à humanidade”. O
BVerfG teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão do consumo de cannabis e
considerou que a proibição legal desse consumo não é contrária ao direito ao desenvolvimento
da personalidade. Nesse sentido, BVerfGE 90, pp. 145 ss.
328
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html.
329
Não vamos aqui desenvolver o problema das restrições não expressamente consagradas na
Constituição, uma vez que esse tema foi já tratado de forma exaustiva por JORGE REIS
NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela
Constituição, cit.. De todo o modo, para a questão de eventuais restrições a este direito,
seguimos a perspectiva deste Autor quanto à existência de uma “reserva geral imanente de
ponderação” enquanto fundamento constitucional implícito que pode, eventualmente, justificar
restrições não expressamente previstas.
330
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000436.html.
331
Diz este Tribunal que “a liberdade geral de acção, que o direito ao desenvolvimento da
personalidade subentende, veda ao legislador dispor do ‘espaço interno’ no qual cada indivíduo
‘pertence a si próprio’ – e que constitui o núcleo essencial de conformação privada da vida –
mas nem por isso é incompatível com limitações, que não só haverão de respeitar o princípio
da proporcionalidade, ‘assim assegurando o conteúdo da liberdade de acção em face dos
88
legislativo: é o poder que terá de justificar a coerção e não as pessoas, a sua
liberdade”332.
Consequentemente, as restrições ao direito ao desenvolvimento da
personalidade devem justificar-se pela protecção de um bem jurídico
constitucionalmente protegido333 e, como qualquer outra restrição, têm de
respeitar o princípio da proporcionalidade, ou seja, “devem limitar-se ao mínimo
indispensável para a protecção e satisfação das necessidades básicas da vida
humana em uma sociedade pluralista”334. Através da consagração deste direito
há uma “jusfundamentalização de uma liberdade geral de acção, mas com a
natureza especial de só poder ser interpretada com tal alcance desde que
acompanhada do reconhecimento expresso ou implícito dos limites ‘naturais’
que lhe são próprios: os direitos dos outros, a lei moral e a ordem
constitucional”335. Este é “o tríplice limite (Schrankentrias)” que a Lei
Fundamental alemã estabelece expressamente336 e que será aplicável também
na ordem jurídica portuguesa, se o entendermos “em termos semelhantes aos
propostos no contexto germânico”337.
princípios materiais que o pretendam limitar’, como terão essas limitações de ser adequadas,
necessárias e não alheadas da relação com o fim prosseguido, ‘exigindo-se uma apreciação da
relação entre o sacrifício da liberdade em questão e o princípio que o justifica’, a ser ‘tanto mais
estrita quanto mais a intervenção legislativa tocar formas elementares de manifestação de
liberdade de acção humana, ou, em particular, aspectos de personalidade’”.
332
RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 286.
333
CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 119.
334
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., pp. 261 e 262.
335
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 413.
336
Ver, sobre esta questão, JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos,
Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa, 1995, pp. 214 ss.
337
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 222.
Assim, segundo este Autor, a ordem constitucional deve ser “equiparada à totalidade da ordem
jurídica conforme com a Constituição”. Quanto ao respeito dos direitos dos outros, tem-se
entendido que esta exigência não tem importância autónoma decisiva, na medida em que é
consumida pela exigência de respeito pela ordem constitucional. Os direitos subjectivos de
terceiros apenas existem na medida em que são protegidos pela ordem jurídica. Ver REINHOLD
ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 213; também KLAUS
STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik
Deutschland, Vol. IV/1, Verlag C. H. Beck, München, 2006, p. 967; BODO PIEROTH –
BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 116; HORST DREIER
(org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 321. Quanto à exigência de respeito pela lei moral,
afirmando que este conceito perdeu o seu” cunho religioso e filosófico pré-jurídico” através da
sua positivação na Constituição, ver HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, in
89
Por outro lado, não se pode esquecer que “a própria noção de
‘desenvolvimento da personalidade’ requer uma indispensável dimensão social
do direito em causa”, na medida em que “as possibilidades de realização do
indivíduo isoladamente são, necessariamente, limitadas”. Com efeito, este
direito “não se pode compreender apenas como importando uma ausência de
interferência” na liberdade do indivíduo, envolvendo ainda “deveres de
protecção a cargo do Estado”, que está vinculado a “consagrar formas de tutela
da personalidade”338.
O conteúdo deste direito suscitou, para além disso, discussão entre os
defensores de duas concepções distintas “da ideia constitucional de liberdade:
‘a concepção ampla’ (…) e a ‘concepção restrita’”. Para a “’concepção ampla’”,
o direito garantirá todas as condutas que possam ser relevantes para a
JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik
Deutschland, Vol. VI, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2001, p. 1202; também HANSUWE ERICHSEN, “Das Grundrecht aus Art. 2 Abs. 1 GG”, in JURA, n.º 7, 1987, p. 372. RUI
MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, cit., p. 287, entendem que à lei moral deve ser “atribuído um sentido
especificamente jurídico que não se identifica (…) com as regras da moral vigente ou
dominante”. Ver ainda MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 186 e
CHRISTOPH DEGENHART, “Die allgemeine Handlungsfreiheit des Art. 2 I GG”, in JuS, n.º 3,
1990, pp. 164 e 165. Tem-se, para além disso, sustentado que também este limite não tem um
papel autónomo relevante, na medida em que a ordem constitucional pode ser concebida como
a positivação de exigências que se relacionam com a lei moral. Nesse sentido, BODO PIEROTH
– BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 117. Em sentido
contrário, ver CHRISTIAN STARCK, “Das Sittengesetz als Schranke der freien Entfaltung der
Persönlichkeit”, in GERHARD LEIBHOLZ – HANS JOACHIM FALLER – PAUL MIKAT – HANS REIS
(orgs.), Menschenwürde und freiheitliche Rechtordnung, Festschrift für Willi Geiger zum 65.
Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1974, pp. 259 – 276. Segundo o Autor, “este limite
apenas foi utilizado na jurisprudência do BVerfG para estabelecer limites à liberdade no caso
dos homossexuais (BVerfGE 6, pp. 389 ss). No caso em análise o Tribunal estabelece que este
tipo de relações vai contra a lei moral independentemente da questão de saber se a
homossexualidade implica um prejuízo para a sociedade ou se a sua criminalização protege
um bem jurídico”. RUPERT SCHOLZ, “Das Grundrecht der freien Entfaltung der Persönlichkeit in
der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, in AöR, n.º 100, 1975, p. 285, diz-nos,
no entanto, que o BVerfG já teve posteriormente oportunidade de se pronunciar acerca da
mesma questão (BVerfGE 36, pp. 146 ss) e, nessa decisão, evitou qualquer alusão à lei moral
e à sua relação com a homossexualidade. Assim, na prática o limite mais relevante é o do
respeito da ordem constitucional. Nesse sentido, REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS
WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., pp. 212 – 214; também EKKEHART STEIN –
GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., p. 248; ROLF SCHMIDT, Grundrechte, 5ª Edição, Verlag Rolf
Schmidt GmbH, Grasberg bei Bremmen, 2004, pp. 130 e 131; PAULO MOTA PINTO, “O direito
ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 225. JOSÉ DE MAGALHÃES, Dicionário da
Revisão Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, p. 154, diz-nos que na redacção que
resulta da CRP “os limites são implícitos, decorrendo da concordância prática com outros
direitos e com princípios essenciais da ordem constitucional”.
338
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 159 e
196.
90
formação da personalidade, mesmo as “que se revestem de ‘diminuta
importância’”; para a “’concepção restrita’ (…), o conteúdo do direito em causa
circunscrever-se-á às formas de conduta humana em que o ser humano
expresse a ‘essência’ da sua personalidade”339.
Hans Peters defende uma limitação do conteúdo do direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, sob pena de este se tornar um “instrumento
de luta de interesses individuais egoístas”. O Autor considera que a invocação
do direito ao desenvolvimento da personalidade “para fins banais faz com que
este saia desvalorizado precisamente nos casos para os quais foi consagrado
e que constituem o seu verdadeiro conteúdo: aqueles que são manifestação da
verdadeira humanidade e que permitem a realização da personalidade
atribuída pelo Criador”340. Estamos aqui perante a designada “teoria do núcleo
essencial da personalidade”, uma vez que segundo esta perspectiva “o livre
desenvolvimento da personalidade diz apenas respeito ‘ao desenvolvimento
dentro de um núcleo da personalidade’ que ‘constitui a essência do Homem
enquanto ser moral’”341.
Não foi, no entanto, esta a posição seguida pelo BVerfG. O Tribunal
defendeu, tanto no caso Elfes342 como no caso Reiten im Walde343, uma
339
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 78 –
80; MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 179.
340
HANS PETERS, “Die Freie Entfaltung der Persönlichkeit als Verfassungsziel”, in D. S.
CONSTANTOPOULOS – HANS WEHBERG (orgs.), Gegenwartsprobleme des Internationalen
Rechtes und der Rechtsphilosophie, Festschrift für Rudolf Laun zu seinem siebzigsten
Geburtstag, Girardet & Co, Hamburg, 1953, pp. 669, 673 e 674; CHRISTIAN HILLGRUBER, Der
Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 112 e 113. Também KONRAD HESSE Grundzüge
des Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, 20.ª Edição, Verlag C. F. Müller,
Heidelberg, 1999, pp. 183 ss, defende uma interpretação restritiva deste direito. Considerando
que Hans Peters defende uma “variante filosoficamente sobrecarregada”, na medida em que
considera que a Constituição alemã se fundamenta “sobre o conceito de ‘liberdade vinculada a
valores’”, em contraposição a Konrad Hesse, que defende uma “variante filosoficamente
neutral”, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 81.
341
BODO PIEROTH, “Der Wert der Auffangfunktion des Art. 2, Abs. 1 GG”, in AöR, n.º 115,
1990, p. 34.
342
BVerfGE 6, pp. 32 ss. Neste caso, Elfes era o líder de uma associação, Bund der
Deutschen, que, nos anos cinquenta, contestava a política do Governo Federal. Este senhor
havia já, por diversas vezes, manifestado publicamente a sua posição crítica tanto no país
como no exterior. Tendo em consideração a sua actividade política foi-lhe negada a renovação
do seu passaporte. O BVerfG considerou que a liberdade de viajar é protegida pela liberdade
geral de acção (prevista na 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã). No entanto, a queixa
constitucional acabou por não ter sucesso na medida em que se entendeu que se tratava de
91
concepção ampla do direito ao desenvolvimento da personalidade344. Poderá
dizer-se que este Tribunal “estabelece, na prática, uma combinação entre a
teoria da liberdade geral de acção e a teoria do núcleo essencial”, na medida
em que “coloca o âmbito nuclear do desenvolvimento da personalidade sob
uma protecção acrescida”345.
Também na nossa ordem jurídica consideramos que fará mais sentido
seguir uma concepção ampla, não se devendo limitar a protecção conferida
pelo direito ao desenvolvimento da personalidade às actuações que se
revistam de particular relevância para o desenvolvimento da personalidade. O
“objecto de protecção” do direito não impõe “que se esteja perante situações
em que se exprima de forma particular a personalidade”, abarcando ainda
uma restrição legítima. Ver MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., pp. 179 –
180; sobre este caso, ver também BODO PIEROTH, “Der Wert der Auffangfunktion des Art. 2,
Abs. 1 GG”, cit., p. 33.
343
BVerfGE 80, pp. 137 ss. Neste caso, a legislação de Nordrhein-Westfalen estabelecia que a
circulação de cavaleiros em florestas só era permitida em caminhos identificados como tal. O
BVerfG considerou que a 1.ª parte do art. 2.º da Constituição alemã protege a liberdade de
acção em termos amplos, não se tendo em consideração o peso que a acção concreta em
causa tenha para o desenvolvimento da personalidade. No entanto, também esta queixa foi
julgada improcedente por se entender que se estava perante uma restrição justificada. É muito
relevante neste caso o voto de vencido do Juiz Dieter Grimm, no qual este considera que a 1.ª
parte do art. 2.º da Constituição alemã não protege qualquer comportamento, mas somente
aqueles que sejam elementos particularmente importantes de expressão da personalidade. Ver
MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 181. Sobre este caso, ver também
BODO PIEROTH, “Der Wert der Auffangfunktion des Art. 2, Abs. 1 GG”, cit., pp. 34 e 35; PHILIP
KUNIG, “Der Reiter im Walde”, in JURA, n.º 10, 1990, pp. 523 – 528. Este Autor, na p. 526,
refere que Grimm, no seu voto de vencido, “explora uma ‘terceira via’, entre a jurisprudência do
BVerfG e a designada teoria do núcleo essencial da personalidade (…)”. Assim, para Grimm
“não é só o núcleo da personalidade que é protegido, mas entre este e ‘qualquer acção’ existe
uma zona intermédia, que deve ser encontrada caso a caso”.
344
MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., pp. 179 e 180; CHRISTIAN
HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 114; HANS-UWE ERICHSEN,
“Allgemeine Handlungsfreiheit”, cit., p. 1191. Sustentando que o Tribunal Constitucional
defendeu uma concepção ampla na medida em que “não seria compreensível que o
desenvolvimento dentro deste núcleo essencial pudesse infringir direitos de terceiros, a lei
moral ou a ordem constitucional”, ver THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, Vol. II, 3ª Edição, Carl
Heymanns Verlag, Köln, Berlin, Bonn, München, 1985, pp. 29, 95 e 96. Sobre a jurisprudência
do BVerfG acerca deste direito ver, mais desenvolvidamente, RUPERT SCHOLZ, “Das
Grundrecht der freien Entfaltung der Persönlichkeit in der Rechtsprechung des
Bundesverfassungsgerichts”, cit., pp. 80 – 130 e 265 – 290.
345
EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., pp. 244 e 245. Considerando também
que o BVerfG, numa tentativa de conciliar a protecção mais extensa da “teoria da liberdade
geral de acção” com a protecção mais intensa da teoria do conteúdo nuclear recorre à “teoria
da liberdade geral de acção com ‘conteúdo essencial’ inviolável”, ver NUNO MANUEL PINTO
OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um
Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 82.
92
“formas banais de expressão da personalidade ou de acção, incluídas
igualmente dentro do espaço livre de comportamentos pessoalmente
imputáveis ao indivíduo”346. Esta liberdade, ou seja, a possibilidade de a
pessoa agir de acordo com a sua vontade, é “um valor em si e é pura e
simplesmente o valor de uma ordem estadual livre”347. Até porque as opiniões
poderão divergir consideravelmente quando se trata de decidir o que é ou não
insignificante para o desenvolvimento da personalidade348. Ao balizarmos a
protecção concedida pelo direito a “uma esfera de vida pessoal mais próxima”
deparamo-nos inevitavelmente com a dificuldade de determinar o que deve
caber nessa esfera e o que dela deve ser excluído349.
Pertence, assim, à autonomia do titular do direito fundamental
determinar quais os comportamentos protegidos pela liberdade geral de acção,
uma vez que “não é compatível com uma ‘sociedade aberta’, em permanente
evolução”, que o desenvolvimento da personalidade tenha de caber num
346
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 168 – 171
e 199; também HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, cit., p. 1196; DETLEF
MERTEN, “Das Recht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit”, in JuS, n.º 6, 1976, p. 346; KLAUS
STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik
Deutschland, Vol. IV/1, Verlag C. H. Beck, München, 2006, pp. 889 e 890. Em sentido
contrário, defendendo uma concepção restrita do direito ao desenvolvimento da personalidade,
ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e
Garantias na Constituição Portuguesa, cit., pp. 492 ss; também EDUARDO CORREIA BAPTISTA,
Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, Almedina, Coimbra, 2006, pp.
52 ss. Relativamente ao direito geral de personalidade previsto no art. 70.º do CC,
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora,
Coimbra, 1995, p. 258, entende que está aí em causa “todo o poder de autodeterminação do
homem, ou seja, todo o poder que o homem exerce sobre si mesmo, auto-regulando o seu
corpo, o seu pensamento, a sua inteligência, a sua vontade, os seus sentimentos e o seu
comportamento, tanto na acção como na omissão, nomeadamente auto-apresentando-se como
ser livre, criando, aspirando ou aderindo aos valores que reputa válidos para si mesmo,
escolhendo as suas finalidades, activando as suas forças e agindo, ou não agindo, por si
mesmo”. Consequentemente, o Autor defende um conceito amplo deste direito, que abrange
indistintamente as formas de conduta mais importantes e mais significativas para a formação e
para a expressão da personalidade e as formas de conduta menos importantes e menos
significativas para a sua formação e expressão. Nesse sentido, ver NUNO MANUEL PINTO
OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso
de Licenciatura em Direito, cit., pp. 46 e 47.
347
WALTER SCHMITT GLAESER, “Schutz der Privatsphäre”, in JOSEF ISENSEE – PAUL
KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. VI, 2.ª
Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2001, p. 54.
348
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 324 e 325.
349
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 170.
93
quadro pré-definido de pessoa350. O princípio da igualdade implica que este
direito deve ser interpretado de forma a proteger todos os indivíduos e não
apenas os que seguem um dado modelo de personalidade351. “A noção de
desenvolvimento da personalidade” não deve ser determinada “por quaisquer
concepções ideológicas, filosóficas”, ou de qualquer outra índole352.
O Tribunal Constitucional Português parece também seguir uma
concepção ampla do direito. Desde logo, no já referido Acórdão n.º 6/84, no
qual se apreciava a eventual inconstitucionalidade da norma que sujeitava o
pessoal adstrito ao Regulamento dos Transportes em Automóveis a
apresentar-se em serviço “devidamente uniformizado e barbeado”, o TC
entendeu não se estar perante o direito à imagem mas sim face ao direito à
determinação da aparência externa, incluído no direito geral de personalidade,
constitucionalmente garantido. O facto de o Tribunal considerar que o direito ao
desenvolvimento da personalidade constitui norma relevante no caso parece
implicar a defesa de uma concepção ampla deste direito353.
Por outro lado ainda, “’as concepções amplas’ do direito ao
desenvolvimento da personalidade distinguem (…) o ‘direito geral de liberdade’
(…) [d]o ‘direito geral de personalidade’354. Tem-se defendido que a protecção
geral da personalidade “traduz sobretudo uma ‘protecção da integridade’, de
350
REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 211.
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 171, nota 65,
estabelece ainda que “o perigo de ‘banalização’ de um direito geral de liberdade não deixará
igualmente de existir nos direitos especiais de liberdade”.
351
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 58.
352
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 166 e
167.
353
Nesse sentido, também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e
a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito
Civil, cit., pp. 83 e 84. Já no Acórdão n.º 139/06, http://www.tribunalconstitucional.
pt/tc/acordaos/20060139.html, relativo à exigência de os campos de tiro deverem respeitar uma
distância mínima de 800 metros entre as origens do tiro e lugares habitados, o TC não
responde directamente à questão de saber se tal actividade se encontra protegida pelo direito
ao desenvolvimento da personalidade, na medida em que estabelece que “no presente caso, a
intervenção questionada do legislador visou regular a compatibilização, por um lado, do direito
à exploração e ao exercício de uma actividade desportiva – que, independentemente da sua
qualificação, proposta pelo recorrente, como emanação do direito ao desenvolvimento da
personalidade, sempre encontraria suporte constitucional, para a entidade exploradora do
espaço, no direito à iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da CRP)”.
354
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87;
ver também JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, cit., pp. 208 ss.
94
estados ou do substrato da actividade livre”. Já a liberdade geral de acção
(direito geral de liberdade), realiza “uma ‘protecção da actividade’, sendo “o
bem protegido (…) fundamentalmente a livre decisão sobre a acção ou
omissão própria”, ou seja, a “liberdade comportamental”355. Segundo esta
perspectiva, deveria, assim, distinguir-se entre o “desenvolvimento da
personalidade em sentido amplo”356 – uma liberdade geral de acção que
protege não apenas a actividade, mas também a passividade357 – e o
“desenvolvimento da personalidade em sentido restrito, limitado a uma esfera
de vida pessoal mais estreita”358.
Também na jurisprudência do TC encontramos esta distinção. Nos
Acórdãos n.º 486/04359 e n.º 589/07360, por exemplo, ambos relativos à
caducidade de acção de impugnação da paternidade, o Tribunal determina que
o direito ao desenvolvimento da personalidade comporta “dimensões como a
liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da personalidade”361.
355
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 163 e
164. Este Autor considera que a protecção constitucional da liberdade geral de acção é retirada
do art. 26.º, n.º 1 da CRP em conexão com o art. 27.º da CRP.
356
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 84.
357
DETLEF MERTEN, “Das Recht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit”, cit., p. 346; também
JOHANNES HELLERMANN, Die sogenannte negative Seite der Freiheitsrechte, Duncker &
Humblot, Berlin, 1993, pp. 180 e 181. No Acórdão n.º 155/07, http://w3.tribunalconstitucional.pt
/acordaos/acordaos07/101-200/15507.htm, relativo à recolha de vestígios biológicos, o TC
estabelece que na dimensão de liberdade geral de acção “o ‘direito ao desenvolvimento da
personalidade não protege, nomeadamente, apenas a liberdade de actuação, mas igualmente
a liberdade de não actuar (não tutela, neste sentido, apenas a actividade, mas igualmente a
passividade, com uma garantia não unidimensional de actuação, mas pluridimensional, de
liberdade de comportamento, enquanto decorrente da ideia de desenvolvimento da
personalidade’”.
358
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 84.
359
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040486.html.
360
http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos07/501-600/58907.html.
361
Ver também o Acórdão n.º 338/06, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
20060338.html, relativo à exigência de patrocínio judiciário no caso de constituição como
assistente em processo penal, no qual o TC entende que “não se vê como é que, ao ser-lhe
vedada a possibilidade de se representar a si próprio, como assistente no processo penal, lhe
estejam a ser restringidos quaisquer direitos reconhecidos a título de pessoa, como o direito ao
desenvolvimento da sua personalidade, em quaisquer das dimensões que esse direito
comporta, entre as quais avultam o direito geral de personalidade e a liberdade geral de
acção”. Já no Acórdão n.º 195/03, http://w3.tribunalconstitucional.pt/ acordaos/acordaos03/101200/19503.htm, sobre o direito a prestações por morte em caso de união de facto, o TC deixa o
problema em aberto, ao considerar que “o mesmo deve dizer-se quanto a uma violação do
direito ao desenvolvimento da personalidade, quer este seja entendido como cláusula geral
sem maior densificação, quer, como tem sido sustentado na doutrina (…) dele se extraia a
95
No entanto, a diferenciação entre “liberdade geral de acção” e
“integridade” não se tem revelado completamente satisfatória para distinguir o
direito geral de liberdade do direito geral de personalidade, porquanto há
acções que devem gozar da protecção mais intensa conferida por este último.
De facto, o direito geral de personalidade visa proteger a integridade do
indivíduo, mas “poderá ser indispensável para a protecção dessa mesma
integridade ter a faculdade de agir de um determinado modo”. As acções
referentes “à sexualidade362, ao planeamento familiar, à escolha de emprego”,
etc., são fundamentais para a integridade pessoal. Consequentemente, “a
protecção da personalidade”, enquanto “protecção da integridade”, deve
também ser “protecção da actividade”363.
Assim, a destrinça entre direito geral de liberdade e direito geral de
personalidade deverá partir de “critérios materiais”. Sendo que o direito geral
de personalidade visa assegurar “a integridade da pessoa numa perspectiva
psíquica e espiritual”, podemos considerar que essa integridade está garantida
quando se protegem as condições e acções particularmente significativas para
a realização do indivíduo364.
Importa, neste âmbito, referir a perspectiva de Martin Koppernock365,
que distingue o direito geral de liberdade do direito geral de personalidade
partindo da “diferenciação terminológica de Habermas” entre “acções
necessidade de consagração de uma tutela geral da personalidade e o reconhecimento de uma
‘liberdade geral de acção’.”
362
O TC afirma, efectivamente, que “a autodeterminação sexual” está abrangida no âmbito de
protecção do direito ao desenvolvimento da personalidade. No Acórdão n.º 247/05,
http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos05/201-300/24705.htm, relativo à prática
de actos homossexuais com adolescentes, o TC entende que “o bem jurídico protegido na
Secção dos Crimes contra a autodeterminação sexual é também o da liberdade e da
autodeterminação sexual, relacionado, de forma muito particular, com o bem jurídico do livre
desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, num exercício de ponderação
dos diferentes graus de desenvolvimento desta personalidade.”
363
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, Duncker & Humblot, Berlin, 2005, pp.
60 – 62.
364
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 63.
365
Considerando que a tese de Koppernock permite uma “caracterização, em termos mais
rigorosos, dos espaços ocupados pelo ‘direito geral de liberdade’ e pelo ‘direito geral de
personalidade’, ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a
“Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil,
cit., p. 87.
96
determinadas por razões pragmáticas, éticas ou morais”366. Para a questão em
análise releva essencialmente a distinção estabelecida entre “razões
pragmáticas” e “razões éticas”367. Segundo Koppernock, cabe ao direito geral
de liberdade proteger as acções que se fundam em “razões pragmáticas” e que
são, por isso, menos relevantes para a integridade do sujeito, enquanto o
direito geral de personalidade abrange as acções “motivadas por razões
éticas”. As “questões pragmáticas” com que o indivíduo se defronta colocam-se
“na perspectiva de alguém que procura os meios mais adequados para
concretizar as suas finalidades e preferências”368. Já as “questões éticas”
prendem-se com as escolhas essenciais de vida, com aquilo que o indivíduo é
ou deseja ser, ou seja, está aqui em causa a própria construção da sua
366
MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur
Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, Nomos Verlag, Baden-Baden, 1997, em
particular pp. 76 ss. Segundo o Autor, esta diferenciação parte da distinção entre o domínio do
“funcional”, do “bem” e do “justo”. Ver também KAI MÖLLER, Paternalismus und
Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 63 - 70.
367
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 63 - 69, refere que para
Habermas as formas de conduta motivadas por razões morais tratam do que é “justo”, no
sentido de “dever que vincula toda a comunidade”. Nessa medida, entende que não devem
caber no direito ao desenvolvimento da personalidade as “condutas moralmente motivadas”
uma vez que defende que estas caem no âmbito de protecção da liberdade de consciência.
Sobre esta questão, ver também MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische
Selbstbestimmung. Zur Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, cit., p. 81. Como
exemplo, Kai Möller refere a possibilidade de objecção de consciência ao serviço militar. Esta
possibilidade aplica-se àqueles que por razões de consciência se recusam a matar em tempos
de guerra; não é possível, pelo contrário, estabelecer uma restrição relativamente a uma
determinada guerra, arma ou situação. Através desta interpretação restrita retira-se ao
indivíduo a possibilidade de fazer apelo a considerações éticas. Não nos parece, no entanto,
que esta perspectiva seja unânime na doutrina, eventualmente por não se partir da distinção de
Habermas entre ética e moral. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 609 e 610, consideram que “o bem
fundamentalmente protegido pela liberdade de consciência é a convicção ética e a autónoma
responsabilidade reivindicada por qualquer indivíduo para justificar o seu comportamento”.
HERBERT BETHGE,“Gewissensfreiheit”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch
des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. VI, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag,
Heidelberg, 2001, pp. 441 e 444, considera que “estamos perante uma questão de consciência
quando uma decisão é significativa para a constituição ou desconstituição da pessoa”. Para
este Autor, em relação à liberdade geral de acção, a liberdade de consciência é uma “lex
specialis”. Sobre este direito ver também, mais desenvolvidamente, JOSÉ LAMEGO, Sociedade
Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência,
Associação Académica da Faculdade de Direito, Lisboa, 1985.
368
Ver JÜRGEN HABERMAS, Between Facts and Norms. Contribution to a Discourse Theory of
Law and Democracy (trad. WILLIAM REHG), MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1996, p.
159; também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução
do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p.
89; KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 65.
97
identidade369.
De tudo o que vimos, podemos retirar que o direito ao desenvolvimento
da personalidade deve ser interpretado segundo uma concepção ampla e,
consequentemente, se desdobra num direito geral de liberdade e num direito
geral de personalidade. O direito geral de liberdade garante “as formas de
conduta
motivadas,
exclusiva
ou
preponderantemente,
‘por
razões
pragmáticas’”, enquanto “o direito geral de personalidade, protege “as formas
de conduta motivadas, exclusiva ou preponderantemente, ‘por razões
éticas’”370.
Assim,
quem
defende
que
o
direito
ao
desenvolvimento
da
personalidade é o fundamento do poder de disposição individual sobre
posições jurídicas de direitos fundamentais parte de uma concepção deste
direito como compreendendo a autonomia individual e a autodeterminação,
conferindo a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida. Para
esta posição o direito ao desenvolvimento da personalidade protege, em
termos gerais, a faculdade de cada pessoa dispor das suas posições jurídicas
de direitos fundamentais371.
2.3. Posição adoptada: o concurso de direitos fundamentais
Como já tivemos oportunidade de referir, tem-se entendido que o poder
369
MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur
Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, cit., p. 76. Ver também JÜRGEN
HABERMAS, Between Facts and Norms. Contribution to a Discourse Theory of Law and
Democracy, cit., pp. 160 e 161. Dentro das questões éticas distingue-se ainda entre “’questões
ético-existenciais’ e as ‘questões ético-políticas’. As questões ético-existenciais “referem-se ‘à
apropriação consciente e autocrítica’ da história de vida individual’, as questões ético-políticas,
’à apropriação consciente e autocrítica’ da história de vida colectiva”, sendo que “[o] direito
geral de personalidade, interpretado como direito de autodeterminação ético-existencial, [se]
projecta (…) sobre as escolhas em que se encontra em causa o sentido da vida e da morte”. A
“’concretização’ do direito geral de personalidade em tais casos” traduz-se na expressão
“’direito de autodeterminação bioética’”. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de
Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de
“Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 90, 96 e 97.
370
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” –Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87.
371
MICHAEL MALORNY, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p.478; HELMUT QUARITSCH, “Der
Verzicht im Verwaltungsrecht und auf Grundrechte”, cit., p. 410.
98
de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais deriva do
princípio da dignidade da pessoa humana, de um autónomo direito ao
desenvolvimento da personalidade, destes dois em conjunto, ou ainda do
conteúdo de autonomia ínsito em cada um dos direitos fundamentais em
especial. Agora que já densificamos o princípio da dignidade da pessoa
humana e o direito ao desenvolvimento da personalidade torna-se mais simples
encontrar uma resposta para o problema da fundamentação jurídica do poder
de disposição em que se concretiza a renúncia.
Partindo das considerações que fizemos até aqui, constatamos que
quem defende que o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento
da renúncia considera precisamente que a dignidade visa garantir a autonomia,
sendo que é no exercício dessa autonomia que o indivíduo pode estabelecer
limitações à sua liberdade que o Estado não poderia impor unilateralmente.
Já os que fundamentam o poder de disposição no direito ao
desenvolvimento da personalidade partem da ideia de que este direito, uma
vez que compreende a autonomia individual e a autodeterminação e confere a
cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida, protege também, em
termos gerais, a faculdade de cada pessoa dispor sobre as suas posições
jurídicas de direitos fundamentais.
Há
ainda
quem
defenda
que
o
direito
a
renunciar
assenta
simultaneamente no princípio da dignidade e no direito ao desenvolvimento da
personalidade. Para esta posição, se a dignidade da pessoa humana garante a
autonomia pessoal e, consequentemente, serve o desenvolvimento da
personalidade, fará sentido ancorar o direito a renunciar nestes dois
preceitos372.
Finalmente,
quem
funda
o
poder
de
disposição
nos
direitos
372
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 71. Será o
caso de KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland,
Vol. III/2, cit., p. 907. Quer a doutrina quer a jurisprudência alemãs sustentam que o direito
geral de personalidade resulta da conjugação do princípio da dignidade com o direito ao
desenvolvimento da personalidade. Ver THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., p. 100;
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 86; HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine
Handlungsfreiheit”, cit., p. 1208. Assim sendo, quem entende que o poder de disposição
individual é uma decorrência destas duas disposições vai no mesmo sentido dos que defendem
que a renúncia se fundamenta no direito geral de personalidade. GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., p. 90, considera, por exemplo, que “a renúncia a direitos
fundamentais obtém a sua legitimação constitucional através do direito geral de personalidade,
que abrange uma esfera nuclear de autónoma autodeterminação”.
99
fundamentais em especial considera que as normas de direitos fundamentais
encerram um “conteúdo de autonomia” específico, na medida em que o direito
de
autodeterminação,
protegido
em
termos
gerais
pelo
direito
ao
desenvolvimento da personalidade, se manifesta em cada um destes
direitos373. Para esta perspectiva, “da própria dignidade e do princípio da
autonomia e de auto-determinação individual - que integram e moldam de
algum modo o cerne de todos os direitos fundamentais - decorre o poder de o
titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a
enfraquecer, quando desse enfraquecimento (…) espera retirar benefícios que
de outra forma não obteria”374. Em consequência disso, os direitos
fundamentais “garantem aos particulares (…) uma margem estatalmente
indisponível e incomprimível de autonomia e liberdade individuais”375.
Assim, todas estas perspectivas, quer as que baseiam o direito à
renúncia no princípio da dignidade, quer as que o esteiam no direito ao
desenvolvimento da personalidade, nestes dois em conjunto ou nos direitos
fundamentais especiais, “partem fundamentalmente da mesma ideia: o que
está na base da renúncia é a autonomia, o gozo da autodeterminação
individual”. A divergência é apenas em qual dos direitos fundamentais deverá
preferencialmente assentar a renúncia. Para a primeira perspectiva acentua-se
“o significado da autonomia para a dignidade”, enquanto a segunda realça “o
significado da autodeterminação para o desenvolvimento da personalidade”. Já
quem sustenta que a renúncia se deve fundar nos próprios direitos
373
WOLFRAM HÖFLING – STEPHAN RIXEN, Verfassungsfragen der Transplantationsmedizin,
Mohr Siebeck, Tübingen, 1996, p. 85; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de
Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de
“Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 153.
374
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287.
375
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 602 e 603. Este Autor defende uma concepção dos
“direitos fundamentais como trunfos”, partindo da ideia de Dworkin “segundo a qual ter um
direito fundamental equivale, em Estado de Direito, a ter um trunfo num jogo de cartas.(…)
Aplicada ao sistema jurídico de Estado de Direito (…) ter um direito fundamental significará,
então, ter um trunfo contra o Estado” (e, para quem defende a vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, contra particulares), o que significa “ter um trunfo contra a maioria”. Os
direitos como trunfos valem “contra qualquer pretensão estatal em impor ao indivíduo restrições
da sua liberdade em nome de concepções de vida que não são as suas e que, por qualquer
razão, o Estado considere merecedoras de superior consideração”. JORGE REIS NOVAIS,
“Direitos como trunfos contra a maioria”, cit., pp. 17 e 28. Ver também RONALD DWORKIN, A
Matter of Principle, cit., p. 198.
100
fundamentais
em
causa
salienta
o
facto
de
estes
protegerem
“o
desenvolvimento autónomo do indivíduo num determinado âmbito específico da
vida humana”376.
Ora se, como vimos, existe uma relação incindível entre o princípio da
dignidade e a autodeterminação individual e sendo os diferentes direitos
fundamentais “derivações e concretizações da dignidade da pessoa humana,
tal significa que a autonomia está presente no âmbito de protecção de todos os
direitos fundamentais e cada uma das referidas perspectivas tem uma certa
razão”. Sendo que “o comportamento, no qual se manifesta a renúncia, cabe
no âmbito de protecção de todos os direitos aqui referidos, a questão que se
coloca é a de saber se algum deles deve ter precedência ou se se devem
aplicar todos em conjunto e lado a lado”377.
A “concepção antropológica” consagrada na Constituição da República
Portuguesa “é a do humanismo ocidental”, ou seja, é uma “concepção liberal
moderna”, o que implica que “se deve entender o princípio da dignidade da
pessoa humana (…) como o princípio de valor que está na base do estatuto
jurídico dos indivíduos e confere unidade de sentido ao conjunto de preceitos
relativos aos direitos fundamentais”378. Sendo o princípio fundamento destes
direitos379, tal implica que existe um conteúdo de dignidade ínsito em cada
376
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 75.
377
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 75.
378
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976 cit., pp. 93 – 104; também JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Direitos e garantias
fundamentais”, in MÁRIO BAPTISTA COELHO (coord.) Portugal. O Sistema Político e
Constitucional, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1989, pp. 688 – 690. Nesse sentido, ver
também JOSÉ CASALTA NABAIS, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa”, in Por
Uma Liberdade com Responsabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 72 e 73.
Considerando que o princípio da dignidade vale como penhor da unidade de sentido de todos
os direitos fundamentais, ver FRANCISCO LUCAS PIRES, Uma Constituição para Portugal, cit.,
pp. 17 e 27 ss; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 197; ISABEL
MOREIRA, “Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais”,
in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – LUÍS MENEZES LEITÃO – JANUÁRIO COSTA GOMES, (orgs.),
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Almedina, Coimbra, 2003,
pp. 124 e 125, defende que o princípio da dignidade da pessoa humana é o elemento
unificador do sistema constitucional.
379
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 97, estabelece que “o princípio da dignidade (…) está na base de todos os
direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos
direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadores e dos direitos a prestações
sociais”, embora possa “ser diferente o grau de vinculação dos direitos àquele princípio”. Ver
também PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I, Identidade Constitucional,
101
direito fundamental em especial.
Tem-se sustentado, no entanto, que não há, “na ordem constitucional
portuguesa, um direito ‘subjectivo à dignidade’”, sendo que o sentido a conferir
a este princípio “será antes do mais objectivo”, “na exacta medida em que são
sempre objectivos os critérios últimos de legitimidade do poder político
estadual”. Tal como está consagrado na nossa Constituição, “o princípio da
dignidade acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (…) que não chega a
ter densidade suficiente para ser fundamento directo de posições jurídicas
subjectivas”380. Assim, “só subsidiária e excepcionalmente (…) se poderá falar,
Almedina, Coimbra, 2010, p. 35. Considerando, no entanto, “particularmente nebulosa (…) a
ideia segundo a qual a dignidade da pessoa humana é a fonte de todos os direitos
fundamentais”, por entender que nem todos os direitos fundamentais apresentam contacto
directo com o princípio, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos
Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., pp. 325 e 326.
380
MARIA LÚCIA AMARAL, “O princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência
constitucional”, cit., pp. 4 e 5. Essa é também a posição do TC, no já citado Acórdão n.º 101/09.
Este Tribunal diz que “o princípio da dignidade da pessoa humana surge, não como um
específico direito fundamental que poderia servir de base à invocação de posições jurídicas
subjectivas, mas antes como um princípio jurídico que poderá ser utilizado na concretização e
na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados ou na
revelação de direitos fundamentais não escritos”. Nesse sentido, ver também JORGE REIS
NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”, in AAVV, O
Provedor de Justiça – Novos Estudos, Provedoria de Justiça, Lisboa, 2008, p. 261; ANDREIA
SOFIA ESTEVES GOMES, “A dignidade da pessoa humana e o seu valor partindo da experiência
constitucional portuguesa”, in JORGE MIRANDA – MARCO ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
(coords.), Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Quartier Latin, S. Paulo, 2008, p. 32.
Também na doutrina “mais consolidada” do Tribunal Constitucional espanhol se tem atribuído o
“carácter de valor jurídico fundamental ou/e de bem constitucional, não de direito”. Nesse
sentido, ver EULALIA PASCUAL LAGUNAS, Configuración Jurídica de la Dignidad Humana en la
Jurisprudência del Tribunal Constitucional, cit., p. 34. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A
Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit.,
p. 315, sustenta que “só em termos de uma reserva última se poderia conceder que o princípio
essencialmente objectivo da dignidade da pessoa humana pudesse ser configurável na CRP
como direito fundamental”. Segundo o Autor, esta norma, “quando remotamente configurável
como regra, à luz da praxis constitucional, (…) tem desempenhado um papel de critério último”.
Em relação ao ordenamento jurídico alemão, ver também PAUL TIEDEMANN, Was ist
Menschenwürde? Eine Einführung, cit., pp. 183 e 184; JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die
sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, in AöR, Vol. 131, 2006, pp. 191 e
209. HORST DREIER (org.), Grundgesetz Kommentar, cit., pp. 208 e 209, considera que o
afastamento da qualidade de direito fundamental “não implica qualquer défice de protecção
jurídica”. Nesse sentido, também THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., pp. 82 – 84;
CHRISTOPH ENDERS, Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung, Mohr Siebeck,
Tübingen, 1997, p. 117. Defendendo, por outro lado, que o princípio da dignidade contém um
direito subjectivo à dignidade, ver GERRIT MANSSEN, Grundrechte, Verlag C. H. Beck,
München, 2000, p. 48, que entende, no entanto, que essa qualificação apenas releva para a
possibilidade de recurso à queixa constitucional; também ROLF SCHMIDT, Grundrechte, cit., p.
117. ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 120, defende
que parece dificilmente compatível com a ideia de que a dignidade é “o valor jurídico supremo
protegido pela Constituição” considerar-se que o indivíduo que vê a sua dignidade afectada
102
no quadro da CRP, de uma violação autónoma da dignidade”, na medida em
que este princípio se projecta “no âmbito de protecção dos direitos
fundamentais”381.
A partir do momento em que se considera que os direitos fundamentais
em especial são “concretizações e manifestações da dignidade da pessoa
humana”, parece que se deverá entender que não é necessário, em princípio,
para a protecção dessa mesma dignidade, recorrer à disposição constitucional
que a consagra382, uma vez que a autonomia está presente no âmbito de
protecção de cada um dos direitos383.
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento do
poder de disposição sobre posições de direitos fundamentais, mas apenas
indirectamente, na medida em que esse poder assentará sobretudo no
conteúdo de dignidade presente nos próprios direitos384. Graças à maior
concretização dos direitos fundamentais em especial, estes devem gozar de
precedência na aplicação385.
Esta precedência não significa, no entanto, “subsidiariedade em sentido
estrito”. O princípio da dignidade não está, no que se refere aos restantes
direitos fundamentais, “numa relação de concorrência equivalente” à que existe
entre estes direitos e o direito ao desenvolvimento da personalidade. Na lesão
de um bem jurídico protegido por uma norma de direitos fundamentais, que
ponha em causa as “condições básicas da existência ou de desenvolvimento
não tem um direito subjectivo público para se defender de tais agressões. Nesse sentido, ver
ainda NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., p. 140.
381
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 720.
382
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 77.
383
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 75.
Considerando que o princípio da dignidade é “critério teleológico de interpretação e aplicação
dos direitos da pessoa como pessoa”, ver PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol.
I, Identidade Constitucional, cit., p. 42.
384
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 77.
385
WOLFRAM HÖFLING, “Artikel 1”, in MICHAEL SACHS (org.), Grundgesetz Kommentar, 4.ª
Edição, Verlag C. H. Beck, München, 2007; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Perfil constitucional
da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir de uma variedade de
concepções”, cit., p. 483, afirma que “o conteúdo normativo do princípio da dignidade da
pessoa humana” está “distribuído pela generalidade das normas de direitos fundamentais da
Constituição (através das quais é, aliás e em primeira mão esclarecido), normas estas que
beneficiam de óbvia primariedade aplicativa”.
103
da pessoa”, está sempre presente “uma lesão inadmissível da dignidade”386. O
princípio da dignidade não se encontra, por isso, numa “relação técnico-jurídica
de subsidiariedade” com os restantes direitos fundamentais, mas antes numa
“relação de fundamentalidade”. É “princípio orientador, máxima interpretativa e
princípio condutor para a compreensão destes direitos”387.
Por outro lado, alguma doutrina considera que só o direito ao
desenvolvimento da personalidade poderia fundamentar o poder de disposição
sobre posições de direitos fundamentais, pois uma coisa “é o exercício de
direitos fundamentais, que é puramente fáctico, e outra a renúncia, que
abrange a capacidade de regular os próprios assuntos de forma juridicamente
vinculante”388. No entanto, se entendermos que o direito ao desenvolvimento
da personalidade “visa proteger a esfera da vida pessoal, os seus pressupostos
fundamentais e o livre desenvolvimento em autodeterminação dos perigos que
não conseguem ser totalmente abarcados pelas garantias de liberdade
concretas”, parece que fará sentido “recorrer primeiro aos vários direitos e só
quando tal não seja possível ao direito geral da personalidade”389.
Tendo em conta que a CRP previu direitos específicos para aspectos
particulares da vida humana, será, em princípio, suficiente a autodeterminação
386
WOLFRAM HÖFLING, “Artikel 1”, cit., p. 97. Nesse sentido, também KLAUS STERN – MICHAEL
SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit.,
p. 75.
387
HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 226. MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 77, entende, por seu lado, que temos aqui uma
relação que se pode, pelo menos, “equiparar à relação de especialidade que estabelece uma
precedência na aplicação dos direitos especiais”.
388
Ver MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 79. Será
o caso de GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 225, que considera, em
consequência disso, que a renúncia a direitos fundamentais é garantida pelo direito geral de
personalidade. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines
Grundrechtgutes, cit., pp. 26 ss, entende que é de afastar a ideia de que a liberdade para
consentir na lesão de um bem é sempre protegida pelo direito fundamental especial que
protege esse bem. Assim, a competência para “abandonar” um bem jurídico não se identifica
com a sua protecção. Segundo ele, a liberdade para consentir funda-se na liberdade geral de
acção. Nesse sentido, ver também MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em
Direito Penal, cit., p. 512, nota 443.
389
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 78. JORGE
BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, cit., p. 211, defende também que “a
liberdade geral de acção é concebida como tendo natureza subsidiária, só sendo aplicável
quando não haja direitos fundamentais específicos que protejam os domínios considerados”.
104
presente nos vários direitos nela consagrados390. O direito ao desenvolvimento
da personalidade só deve ser invocado se não se puder reconduzir a situação
concreta ao âmbito de protecção de um direito fundamental em especial391. A
relação que se estabelece entre o direito ao desenvolvimento da personalidade
e os restantes direitos fundamentais é uma “relação entre lex generalis e lex
specialis”392. Estamos perante “concorrência inautêntica (…) quando uma das
várias normas consagradoras de direitos fundamentais é uma norma especial
em relação às outras”393.
Assim, caindo o caso em análise na previsão normativa de um direito
especial de liberdade o direito ao livre desenvolvimento da personalidade não
deve ser chamado, em virtude da regra da subsidiariedade394. Só quando se
390
Referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und
Humangenetik, cit., p. 79.
391
BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p.
111; ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, cit., p. 96. O TC diz
expressamente, no Acórdão n.º 471/01, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/
acordaos01/401-500/47101.htm, que se torna “desnecessário o recurso ao direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, enquanto cláusula geral da protecção da liberdade, quando
as normas constitucionais «prevejam liberdades ‘especiais’, referidas a cada aspecto da vida»,
como é o caso, que expressamente refere, das ‘manifestações de liberdade pessoal, prevista
no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição’”.
392
Nesse sentido, SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais. Sumários, Associação
Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2002, p. 39; MICHAEL SACHS,
Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 187; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 53.
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., pp. 557 e 558,
relativamente ao direito geral da personalidade consagrado no art. 70.º do CC, entende que as
normas “dos arts. 72.º a 80.º do CC, que reconhecem direitos especiais de personalidade”,
“revestem manifestamente o carácter de leges speciales”. Este Autor refere ainda que, uma
vez que os direitos, liberdades e garantias são também directamente aplicáveis nas relações
entre particulares, “ao regularem especificamente e com efeitos civis, aspectos parcelares
básicos da personalidade, acabam também por funcionar (…), num certo sentido, como leges
speciales relativamente ao direito geral de personalidade”. Em sentido contrário, ISABEL
MOREIRA, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais
e Culturais na Constituição Portuguesa, cit., p. 130; HANS-UWE ERICHSEN, “Allgemeine
Handlungsfreiheit”, cit., p. 1196; DETLEF MERTEN, “Das Recht auf freie Entfaltung der
Persönlichkeit”, cit., p. 347; ALBERT BLECKMANN, Staatsrecht II, Die Grundrechte, 4.ª Edição,
Carl Heymanns Verlag, KG, Köln, Berlin, Bonn, München, 1997, p. 592.
393
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1269.
394
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 72. No caso
da eutanásia, por exemplo, muitas vezes se diz, no entanto, que não se pode retirar da
disposição que consagra o direito à vida um direito a morrer. Sobre esta questão, ver, por
exemplo, o caso Pretty v. Reino Unido, http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=
1&portal=hbkm&action=html&highlight=PRETTY&sessionid=46308854&skin=hudoc-en, relativo
ao auxílio ao suicídio, no qual o TEDH entendeu que o direito à vida não consagra “um direito à
morte”, mas considerou também “não estar preparado” para excluir que a proibição legal da
105
renuncia a posições jurídicas não protegidas por algum dos direitos
fundamentais
em
especial
é
que
se
deve
recorrer
ao
direito
ao
desenvolvimento da personalidade395. Quando seja pertinente chamar à
colação este direito, a renúncia deverá fundamentar-se na liberdade geral de
acção, no que se refere às formas de conduta “motivadas exclusiva ou
preponderantemente por ‘razões pragmáticas’”, ou no direito geral de
personalidade, no que diz respeito “às formas de conduta motivadas, exclusiva
ou preponderantemente por ‘razões éticas’”396.
eutanásia “possa constituir uma ingerência no direito ao respeito da vida privada”. Sobre esta
decisão, ver ANA MARIA GUERRA MARTINS, Direito Internacional dos Direitos Humanos,
Almedina, Coimbra, 2006, p. 203; IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos
Direitos do Homem Anotada, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 69. O direito aqui
invocado é o do respeito da vida privada porque os órgãos da Convenção têm adoptado uma
noção extensiva deste direito, salvaguardando não apenas a protecção do segredo da vida
privada mas também a liberdade da vida privada. Ver ANDRÉ ROUX, La Protection de la Vie
Privee dans les Rapports entre l’Etat et les Particuliers, Economica, Paris, 1983, p. 15; PIERRE
KAYSER, La Protection de la Vie Privée, Presses Universitaires d’Aix Marseille, Marseille, 1995,
pp. 16 e 17; G. COHEN JONATHAN, “Respect for Private and Family Life”, in R. ST. J.
MACDONALD – F. MATSCHER – H PETZOLD (eds.), The European System for the Protection of
Human Rights, Kluwer Academic Publishers, Netherlands, 1993, pp. 409 – 411. Sobre este
direito, ver ainda, mais desenvolvidamente, CARLOS RUIZ MIGUEL, El Derecho a la Protección
de la Vida Privada en la Jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, Editorial
Civitas, S. A., Madrid, 1994.
395
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 927. Considerando que o direito geral de personalidade se traduz na
“tutela abrangente de todas as formas de lesão de bens da personalidade independentemente
de estarem ou não tipicamente consagrados”, ver RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo
26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 283. No
que se refere ao Direito Civil, face ao direito positivo português parece-nos inegável a
existência de um direito geral de personalidade, “que abrange todas as manifestações
previsíveis e imprevisíveis da personalidade humana”. Nesse sentido, ORLANDO CARVALHO,
Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 90. A consagração desta
protecção geral da personalidade permite, assim, conceder tutela “a bens da personalidade
não tipificados”. Isto sem prejuízo da existência de direitos especiais de personalidade, sobre
determinados bens jurídicos integrantes dessa personalidade. Ver PAULO MOTA PINTO, “O
direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 491; RABINDRANATH CAPELO DE
SOUSA, “A Constituição e os direitos de personalidade”, in JORGE MIRANDA (coord.), Estudos
sobre a Constituição, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, pp. 165 e 166; NUNO MANUEL PINTO
OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso
de Licenciatura em Direito, cit., pp. 46 – 48; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento
Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, cit., p. 98. RABINDRANATH
CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 516, entende que “seria sempre
redutora, espartilhadora e heterónoma uma tutela juscivilística da personalidade assente em
tipos legais ‘fechados’ mesmo que múltiplos”. Em sentido contrário, ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, Almedina, Coimbra,
2004, pp. 80 – 82; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução.
As Pessoas. Os Bens, cit., pp. 87 e 88; GUILHERME MACHADO DRAY, Direitos de
Personalidade. Anotações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2006.
396
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” –Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 87.
106
O direito a renunciar deve, então, ancorar-se nos direitos fundamentais
em especial397, ou seja, deriva do próprio direito renunciado, uma vez que o
poder de disposição em que se traduz a renúncia se funda no conteúdo de
autonomia ínsito em cada um destes direitos398.
Capítulo III: Condições da renúncia
Sendo que consideramos que o poder de disposição individual sobre
posições de direitos fundamentais vai até à admissibilidade da renúncia, vamos
neste capítulo determinar quais as condições indispensáveis para que uma
dada renúncia possa ter lugar.
1. A voluntariedade da declaração de renúncia
Antes do mais, a renúncia a direitos fundamentais pressupõe “a
existência de uma declaração de vontade dirigida e apta a produzir o
enfraquecimento de uma posição jurídica protegida por norma de direito
fundamental”399. É através dessa declaração que quem renuncia manifesta que
autoriza a ingerência no seu bem jurídico por um terceiro.
A declaração de vontade implica fundamentalmente “um momento de
voluntariedade”400, pelo que se impõe que o titular do direito disponha sobre a
397
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 81; também
JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 123; GERHARD ROBBERS, “Der
Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., pp. 927.
398
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 285 ss e 299; WOLFRAM
HÖFLING – STEPHAN RIXEN, Verfassungsfragen der Transplantationsmedizin, cit., p. 85. Sobre
a posição destes dois últimos Autores, ver também NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito
Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de
“Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 153. ALBERT BLECKMANN, “Probleme des
Grundrechtsverzichts”, cit., p. 57, afirma que “para se poder construir correctamente o problema
da renúncia a direitos fundamentais é necessário analisar mais de perto as estruturas dos
direitos de liberdade”. Segundo o Autor, “estas liberdades, ao contrário do que considera a
doutrina maioritária, não asseguram primariamente direitos de defesa. Com o seu âmbito de
protecção asseguram em primeira linha, sobretudo, um espaço de liberdade determinado”.
399
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 302.
400
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 38. A Autora
107
sua posição jurídica de forma livre e autodeterminada401. Se, como vimos, a
renúncia se funda no conteúdo de autonomia presente nos vários direitos
fundamentais, o reconhecimento da faculdade de dispor apenas se justifica na
medida em que esta seja ainda manifestação dessa mesma autonomia402.
Partimos, obviamente, da possibilidade da voluntariedade da renúncia.
Constatamos já que a Constituição “coloca a dignidade e com ela a autonomia
em primeiro plano”. Deve, por isso, “para a interpretação do conceito normativo
de voluntariedade” partir-se deste “axioma constitucional”, ou seja, “da
possibilidade de princípio da liberdade e da autodeterminação de cada
indivíduo e não de considerações deterministas”403. O sistema jurídico assenta
na atribuição de responsabilidades aos actores pelas suas próprias decisões,
desde que não existam “circunstâncias extremas que impliquem que as
dificuldades em se ser responsabilizado por aquilo que se faz sejam de tal
ordem (…) que a lei caracterize essas acções como sendo heteronomamente
causadas em vez de autonomamente iniciadas ou pelo menos controláveis
pelo indivíduo”404.
Para a questão da voluntariedade da renúncia interessa-nos apurar
quais os requisitos que os outros ramos do direito estabelecem quanto à
relevância da vontade, para avaliarmos se podem ser transponíveis para a
problemática que estamos a tratar405. Ainda que as normas de Direito Civil e de
considera que, na medida em que uma renúncia não voluntária se traduz numa outra coisa que
não numa renúncia, a característica da voluntariedade é relevante logo no momento da
determinação do conceito. Nesse sentido, também MICHAEL MALORNY, “Der
Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 475 e 476; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., pp. 913 ss. Ver também, sobre esta questão,
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 302, nota 71.
401
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ’volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 926.
402
OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La
libre disposition du soi el le règne de l’échange”, in HUGUES DUMONT – FRANÇOIS OST –
SÉBASTIEN VAN DROOGHENBROECK (eds.), La Responsabilité, Face Cachée des Droits de
l’Homme, Bruylant, Bruxelles, 2005, p. 442.
403
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 39 e 40.
Sobre os diversos sentidos da palavra liberdade e a dificuldade em determinar o seu
significado, ver MAURICE CRANSTON, Freedom, 3.ª Edição, Longmans Green, London, 1967.
404
WINFRIED BRUGGER, “Dignity, Rights and Philosophy of Law within the Anthropological
Cross of Decision-Making” in German Law Journal, Vol. 9, n.º 10, 2008,
www.germanlawjournal.com, p. 1250.
405
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 40.
108
Direito Penal não possam ser encaradas “como parâmetros interpretativos das
normas constitucionais (a proposição inversa é que é a correcta)” e não seja
adequado transpor sem mais as exigências de outros ramos do direito para o
Direito Constitucional, a verdade é que “a ideia da limitação voluntária dos
direitos e da relevância do consentimento como causa geral de exclusão da
ilicitude está há muito afirmada na legislação civil e penal (…), onde também
surgem normas sobre as condições de validade e limites de relevância da
disposição e do consentimento”. Essas normas “referem-se justamente às
condições de vontade livre e esclarecida (…) em termos semelhantes aos
propostos ao nível do Direito Constitucional”, pelo que iremos tê-las em conta,
ainda que criticamente, para a análise dos requisitos a que deve obedecer a
declaração de renúncia, uma vez que “revelam o resultado decantado da
prática jurídica de séculos, que merece, em regra, uma presunção de
constitucionalidade”406.
Tanto o Direito Civil como o Direito Penal protegem, no seu domínio,
bens jurídicos dos cidadãos garantidos pelos direitos fundamentais, pelo que “a
congruência entre direitos fundamentais e ordem jurídica privada é, por isso,
normal”407.
Não pretendemos, obviamente, fazer uma análise desenvolvida destas
questões, uma vez que cada uma delas justificaria um tratamento muito mais
aprofundado. Para além disso, a nossa perspectiva é a do Direito
Constitucional, pelo que não temos qualquer pretensão de tratar estes
406
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 312, nota 114. Considerando, no entanto, “que recorrer às normas de Direito
Civil, Direito Penal e Direito Administrativo relativas à renúncia de forma a retirar daí, pelo
caminho da analogia jurídica, um princípio geral para o âmbito do Direito Constitucional não
parece ser um caminho possível porque as regras de direito ordinário têm de legitimar-se
através da interpretação do Direito Constitucional”, ver ALBERT BLECKMANN, “Probleme des
Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59. GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”,
cit., pp. 187 e 188, entende que “qualquer solução para esta questão deve partir de um
genuíno princípio de Direito Constitucional. O direito fundamental é distinto de todos os outros
direitos subjectivos quanto à sua dignidade e essência, pelo que seria infrutífero (…) procurar
paralelos nos modelos de solução do Direito Civil ou do Direito Administrativo para o problema
da renúncia a direitos fundamentais”. Pelo contrário, é para ele relevante “o conceito de
consentimento do Direito Penal como núcleo do princípio que constitui a ideia jurídica geral de
que volenti non fit iniuria”.
407
WOLFGANG RÜFNER, ”Drittwirkung der Grundrechte, Versuch einer Bilanz”, in PETER
SELMER – INGO VON MÜNCH (orgs.), Gedächtnisschrift für Wolfgang Martens, Walter de
Gruyter, Berlin, 1987, pp. 216 e 217.
109
problemas autonomamente. Veremos apenas aquilo que nos parece relevante
e eventualmente transponível para a problemática que nos ocupa.
Julgamos, então, antes do mais, relevantes nesta sede as regras
civilistas relativas à limitação voluntária de direitos de personalidade, até
porque estes direitos são considerados “o correspondente privatístico para a
tutela de certos bens da personalidade pela Constituição”408.
Em termos muito gerais, os direitos de personalidade são um conjunto
de direitos subjectivos que incidem sobre a própria pessoa ou sobre “os vários
modos de ser, físicos ou morais”, dessa personalidade409. É entendimento
dominante na doutrina que estes direitos não são alienáveis nem renunciáveis
(significando aqui renúncia, como vimos, a extinção do direito por força do seu
abandono voluntário)410, “devido ao seu carácter de ‘essencialidade’”411,
408
PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 483.
Considerando que a maioria dos direitos, liberdades e garantias são direitos de personalidade,
ver JOÃO CASTRO MENDES, “Direitos, liberdades e garantias – alguns aspectos gerais”, in
Estudos sobre a Constituição, Vol. 1, Livraria Petrony, Lisboa, 1977, p. 111. No entanto, apesar
de haver “largas zonas de coincidência”, direitos fundamentais e direitos de personalidade são
realidades distintas. Por um lado, os direitos fundamentais “pertencem ao domínio do Direito
Constitucional”, tendo mecanismos próprios de tutela constitucional, enquanto os direitos de
personalidade pertencem ao Direito Civil. Ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 69. Tal leva a que as previsões do Código Civil referentes a direitos de
personalidade valham apenas “nas relações paritárias entre os particulares, ou entre os
particulares e o Estado, destituído do seu ius imperii”. Para além disso, são tutelados através
dos mecanismos coercivos juscivilísticos. Por outro lado, há vários direitos fundamentais que,
“por não terem como objecto tutelado directamente a personalidade humana”, não se
reconduzem a direitos de personalidade. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral
de Personalidade, cit., pp. 584 e 585. Sobre esta questão, ver ainda JOSÉ DE OLIVEIRA
ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução. As Pessoas. Os Bens, cit., pp. 74, 75,
e 102 ss. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Teoria da Constituição, Vol. II, Verbo, 2000, p. 228,
sustenta que os direitos de personalidade são “a manifestação privatística dos direitos
fundamentais”. No entanto, para o Autor estes não são “a sua versão publicística, mas antes os
direitos fundamentais em geral”.
409
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição (por ANTÓNIO
PINTO MONTEIRO – PAULO MOTA PINTO), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 208.
410
Uma vez que, como já tivemos oportunidade de referir, julgamos que não faz sentido
adoptar uma concepção restritiva a priori do conceito de renúncia, o que implica que não se
devam excluir, à partida, situações de renúncia que impliquem a extinção do direito,
levantamos a questão de saber se assumir de uma forma absoluta a irrenunciabilidade dos
direitos de personalidade não será uma solução demasiado restritiva. As “normas positivas que
no Direito ordinário admitem ou excluem a renúncia a direitos sobre bens protegidos por
normas de direitos fundamentais são elas próprias sindicáveis à luz da sua conformidade aos
os princípios constitucionais” relativos a esta matéria. Ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a
direitos fundamentais”, cit., p. 264.
411
ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 53.
110
podendo o titular, no entanto, consentir em alguma medida na sua limitação412.
Esta “faculdade de consentir a lesão de um direito está compreendida na
faculdade de disposição, entendida (…) como faculdade de determinar o
destino do direito subjectivo”413.
Assim, tem-se defendido que a irrenunciabilidade dos direitos de
personalidade não impede a relevância do consentimento do lesado. Este
consentimento “é dado a uma ou mais pessoas, as quais poderão assim,
legitimamente, efectuar a lesão sem que isso implique a extinção do direito”414.
Sustenta-se que os direitos de personalidade, enquanto direitos subjectivos, se
traduzem em “posições de liberdade” reconhecidas ao seu beneficiário, pelo
que se devem considerar disponíveis415.
O
consentimento
para
a
limitação
voluntária
dos
direitos
de
personalidade exprime-se através de uma declaração negocial, estando sujeito
ao regime geral previsto no Código Civil (CC). Assim sendo, defende-se que
“são aplicáveis, quer o princípio da liberdade declarativa (…), quer o princípio
412
Estes direitos exprimem o “’minimum’ necessário e imprescindível” do conteúdo da
personalidade, sendo, por isso, essenciais. Nesse sentido, ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de
Personalidade, cit., p. 17. Trata-se, por outro lado, de direitos gerais, isto é, de direitos de que
são titulares todos os seres humanos. Além disso, os direitos de personalidade são direitos
absolutos porque se lhes contrapõe uma obrigação universal e são também direitos pessoais,
ou seja, direitos ligados, directa e incindivelmente, à pessoa do seu titular, não sendo, por isso,
transmissíveis, inter vivos ou mortis causa. Ver, mais desenvolvidamente, CARLOS ALBERTO
DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição (por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –
PAULO MOTA PINTO), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 207 ss; JOSÉ CASTAN TOBEÑAS,
Los Derechos de la Personalidad, Instituto Editorial Reus, Madrid, 1952, p. 23; ORLANDO DE
CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 89; PAULO MOTA
PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 482 e 483;
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, “A Constituição e os direitos de personalidade”, cit., pp. 94
– 98; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das
Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 10 – 15.
413
ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 54. Sobre esta questão, ver
também CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, cit., p. 215; ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral
do Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 89. PAULO MOTA PINTO, “Notas sobre o direito
ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português”,
in INGO WOLFGANG SARLET (org.), A Constituição Concretizada, Construindo Pontes com o
Público e o Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2000, pp. 81 e 82, defende
que não é correcto falar (…) em disposição dos direitos de personalidade, pois a limitação é
sempre revogável. Uma execução específica da limitação convencional atentaria contra os
mais elementares direitos da pessoa”. Por outro lado, considera que “não se poderá recorrer a
meios de coerção ao cumprimento, como a sanção pecuniária compulsória”.
414
ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos de Personalidade, cit., p. 53.
415
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo
III, cit., p. 107.
111
da liberdade de forma”. Para além disso, a declaração de consentimento para a
limitação voluntária pode ser expressa ou tácita, impondo-se “que se preste
especial atenção à verificação da integridade do consentimento”, atendendo à
“natureza pessoal dos interesses em causa”416. Ainda que o consentimento
seja válido, “não poderá ter lugar uma execução em forma específica” e este
pode sempre “ser revogado, com indemnização dos prejuízos causados às
expectativas legítimas da outra parte”417. Tem-se entendido que no
consentimento para a limitação voluntária “a tutela dos interesses do comércio
jurídico ou da contraparte não merece (…) a protecção que se dá no domínio
dos negócios jurídicos em geral, admitindo-se (…) a livre revogabilidade do
consentimento a todo o tempo418. Finalmente, a declaração de limitação
voluntária pode “ser anulada ou objecto de uma declaração de nulidade (…)
com fundamento nas regras sobre (…) falta ou vício de vontade”419.
Quanto ao Direito Penal, vimos já que o consentimento é uma causa de
exclusão da ilicitude. Este só constitui um verdadeiro acto de autodeterminação
se, tal como refere o n.º 2 do art. 38.º do Código Penal (CP), traduzir “uma
vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente
protegido”420. A disposição estabelece ainda que o consentimento pode ser
dado por qualquer meio e revogado até à realização da actividade
consentida421. Também neste âmbito se consagra a liberdade de forma e se
realça a garantia da integridade do consentimento.
Assim, fazendo o paralelo com as disposições relativas à declaração
416
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., p. 539.
417
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 216; PAULO MOTA
PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp.
552 – 554; FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I,
Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 110.
418
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., p. 154; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade para
consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, in Comemorações dos 35 anos do Código
Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 208 e
209.
419
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., p. 540; FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil
Anotado, cit., pp. 110 e 304.
420
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 484.
421
EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, p. 27.
112
negocial e ao consentimento, deverá entender-se que, em princípio, a forma
jurídica da renúncia não é relevante desde que seja suficientemente explicitado
o conteúdo da declaração422. Haverá, no entanto, excepções nos casos em que
a lei exige uma determinada forma, como acontece, por exemplo, no
consentimento para a prática de determinados actos médicos.
A renúncia pode ser expressa ou tácita, mas já não ficta423, uma vez que
“a dedução de uma vontade de actuação ou vontade contratual deve ser
possível”424. Nas situações em que a renúncia se retira de um “comportamento
concludente” esse comportamento tem de ser “claro ao ponto de que dele se
possa inequivocamente inferir uma vontade de renúncia”425. Quando não se
verifique “uma declaração de renúncia individual e concreta, expressa ou tácita,
só em casos extremos a vontade de aceitação da restrição pode ser
presumida”426. O “consentimento presumido” não é, por isso, em princípio,
suficiente, “mesmo que aparentemente possa invocar-se o interesse da
pessoa”427.
Vimos já também que renúncia deverá ser, em princípio, livremente
revogável428, o que poderá originar “uma obrigação de indemnizar os prejuízos
causados”429. Há, no entanto, direitos que pela sua natureza excluem a livre
422
GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 184 e 185; também
KNUT FRIESS, Der Verzicht auf Grundrechte, cit., pp. 9 e 10.
423
Em sentido contrário, GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz,
‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926.
424
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 37.
425
DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 68. Também JORGE REIS NOVAIS,
“Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 303, considera que a declaração de renúncia poderá
ser expressa ou tácita, mas sempre inequívoca e concludente.
426
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 309.
427
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 310 e 311 e nota 111. Este Autor refere que “o consentimento presumido tem,
[no entanto], uma larga aplicação em determinados domínios, como o dos tratamentos médicocirúrgicos”.
428
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 312; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, cit., p. 465; LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos
fundamentales”, cit., p. 137.
429
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 312; LUIS MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos
fundamentales”, cit., p. 137. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p.
277, nota 22, defende que nos casos em que se considerasse admissível a renúncia à própria
titularidade do direito esta implicaria também “a perda definitiva ou temporária do direito,
113
revogabilidade, implicando necessariamente uma renúncia definitiva. Para além
disso, como também tivemos oportunidade de referir, poderá haver
excepcionalmente situações nas quais a livre revogabilidade coloca algumas
dúvidas, sob pena de estarmos perante uma situação de abuso do instituto.
Por outro lado, “a renúncia manifesta-se sob a forma de uma declaração
unilateral que pode, todavia, surgir como prestação ou contra-prestação no
quadro de um contrato”430.
Já no que se refere ao sentido a atribuir à declaração bem como ao
regime da falta e dos vícios da vontade temos algumas dúvidas que se
justifique, pelo menos sem as devidas adaptações, a aplicação a esse
propósito dos “resultados apurados pela dogmática do direito civil”431.
Segundo Paulo Mota Pinto, devemos entender por declaração negocial
o “comportamento humano que, de um ponto de vista exterior, aparece como
dirigido à produção de certos efeitos sob a tutela do Direito, adoptado com a
consciência e intenção de incorrer por intermédio dele numa vinculação
jurídico-negocial, ou da possibilidade de, aos olhos dos outros, ser visto como
juridicamente vinculante”432.
Há aqui claramente uma preocupação com exigências de certeza e
segurança jurídicas que não devem ter a mesma relevância numa renúncia a
direitos fundamentais433, pelo que a protecção plena do bem jurídico
consoante o sentido temporal da renúncia, o que inibiria (…) a possibilidade da sua revogação
a qualquer momento pelo titular do direito”. Vimos já, no entanto, que não estamos de acordo
com esta posição.
430
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 303.
431
Em sentido contrário, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 303,
sustenta que a “grande similitude da declaração de renúncia com o significado que apresenta a
declaração negocial no contexto de um negócio jurídico de Direito privado (…) sugere e
justifica a aplicação dos resultados a esse propósito apurados pela dogmática do Direito civil”..
RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 29, sustenta que, na medida em que a
dogmática do direito público não está muito desenvolvida em matéria de vícios da vontade é de
recorrer ao direito privado, onde estas questões foram mais desenvolvidas. Assim, entende que
se deve aferir a vinculatividade da declaração de vontade de renúncia através dos “critérios
clássicos do erro, do dolo e da coacção”. Também REINHARD SINGER, “Die Lehre vom
Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., pp. 183 e 189, considera
que “a doutrina constitucional pode aproveitar os impulsos de direito privado”, uma vez que
neste “se pensa desde há muito sobre os limites do poder de disposição individual”.
432
PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico,
Almedina, Coimbra, 1995, p. 435, nota 491.
433
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., p. 139, por exemplo, no que se refere ao consentimento para a
114
autonomia,
subjacente
à
renúncia,
poderá
efectivamente
implicar
o
afastamento das regras de Direito Civil dirigidas à protecção das expectativas
da contraparte434.
Assim, parece fazer sentido procurar um conceito de declaração
negocial funcionalmente adequado ao Direito Constitucional. Neste âmbito, as
expectativas do declaratário não se devem sobrepor à vontade do declarante,
pelo que estamos perante um equilíbrio de interesses distinto e que merece,
um tratamento diverso435. Não podemos, por isso, aplicar sem mais à renúncia
as regras de Direito Civil relativas à declaração de vontade, uma vez que temos
de atender necessariamente à “especificidade, não só dos interesses que estão
em jogo na renúncia a direitos fundamentais, como também da situação de
desigualdade quase natural em que se encontram quem renuncia e quem
beneficia
da
renúncia,
ou a relevância
das
consequências
jurídicas
susceptíveis de serem produzidas na área de reserva absoluta que é a
dignidade da pessoa humana”436.
Parece-nos, portanto, que na renúncia poderá haver alguns desvios às
regras civilistas relativas à declaração negocial, uma vez que não deve bastar a
aparência da vontade para que se considere válida essa declaração.
Quanto à interpretação da declaração negocial, “o objectivo da solução
aceite na lei civil é [precisamente] o de proteger o declaratário, conferindo à
declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento
do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir”,
consagrando-se uma doutrina tendencialmente “objectivista”437. Não parece,
prática de actos médicos, considera que este se consubstancia num “simples acto jurídico” e,
nessa medida, não lhe são aplicáveis as normas da doutrina geral do negócio jurídico, que “são
inspiradas pela tutela da confiança dos declaratários e dos interesses gerais do tráfico”.
434
PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico,
cit., pp. 426 e 427, entende que “a tutela das expectativas” está presente “na dogmática
jurídico-negocial”. Ainda que o regime do negócio jurídico se inspire na ideia de
autodeterminação, é evidente a preocupação do legislador com a “tutela da confiança
especificamente negocial”.
435
Estas considerações poderão também ser extensíveis à limitação voluntária dos direitos de
personalidade, questão que não iremos, no entanto, desenvolver, uma vez que ultrapassa o
âmbito deste estudo.
436
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 304.
437
FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 223. O
art. 236.º do CC estabelece que “o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria
apreendido por um destinatário normal. (…) Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser
115
contudo, que tais considerações devam ser extensíveis à declaração de
renúncia, uma vez que a “prevalência do sentido objectivo da declaração
apenas se explica pela necessidade de proteger as legítimas expectativas do
declaratário e não perturbar a segurança do tráfico”438. Em virtude disso, na
interpretação da declaração de renúncia parece fazer sentido aplicar-se uma
regra de interpretação mais subjectivista.
A especificidade da renúncia tem também consequências no regime da
falta e dos vícios da vontade, o que acarreta alguns desvios em relação ao
regime de Direito Civil no sentido de alargar as possibilidades de invocação da
invalidade da declaração439.
imputável ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (…), ou de o declaratário conhecer a
vontade real do declarante”.
438
FERNANDO PIRES DE LIMA – JOÃO ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, cit., p. 223.
Nessa medida, segundo os Autores, a orientação fixada neste artigo não vale em matéria de
interpretação testamentária e também não deve considerar-se aplicável aos negócios que
estão fora do comércio jurídico, nem aos actos jurídicos em que não procedam as razões
justificativas do regime estabelecido. Assim sendo, parece-nos que também não deve valer na
declaração de renúncia.
439
Ilustrando essa diferença, por exemplo, nos casos de erro na declaração (art. 247.º CC), a
exigência da essencialidade do erro para a anulabilidade da declaração parece ser
questionável nas declarações de vontade de renúncia. O mesmo se deverá aplicar aos casos
de erro na transmissão (art. 250.º CC) e erro sobre a pessoa ou objecto do negócio (art. 251.º
CC), na medida em que estas disposições remetem para o regime do erro obstáculo, ou seja,
erro na declaração. Por outro lado, quanto ao erro sobre os motivos (art. 252.º CC), este só é
relevante se as partes tiverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo. Ora temos
também dúvidas que esse regime deva ser extensível à declaração de renúncia. MARTINA
DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 47, considera, no entanto,
que por razões de segurança jurídica um erro que se refira apenas a questões laterais não
deve excluir a voluntariedade da renúncia. Também nos casos de dolo (art. 253.º CC), temos
dúvidas que a distinção estabelecida nesta disposição entre dolus bonus e dolus malus seja
relevante para a declaração de renúncia. Ainda nas situações de dolo de terceiro (art. 254.º, n.º
2) parece não haver razões para proteger expectativas do destinatário, assim como quanto à
coacção moral (art. 255.º CC) deverá eventualmente considerar-se que qualquer das situações
enunciadas no artigo poderá influenciar a formação da vontade. Finalmente, as exigências de
gravidade do mal e fundamento do receio nos casos de coacção de terceiros parecem não
fazem sentido para as situações de renúncia. Sobre a falta e vícios da vontade ver, mais
desenvolvidamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I,
Parte Geral, Tomo I, cit., pp. 575 ss; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral de Direito
Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 653 ss; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO,
Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 457 ss. Também no Direito Penal se entende que o
consentimento não pode estar “inquinado por qualquer vício da vontade” para que seja eficaz.
No que diz respeito à ameaça e coacção, tem-se considerado que deverão “conduzir à
ineficácia do consentimento por meio delas obtido, se não em todos os casos (…) pelo menos
sempre que a conduta tendente a obter o consentimento integre os tipos de crime de ameaça
(art. 153.º CP) ou de coacção (art. 154.º CP)”, uma vez que “em casos deste teor será
seguramente impossível considerar o consentimento como expressão da autonomia pessoal de
quem ‘consente’”. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., pp. 485 e 486.
Quanto ao engano (erro provocado), “só será eficaz o consentimento que, apesar do erro,
116
Assim, a renúncia só pode admitir-se se for resultado de uma “vontade
livre, esclarecida”, “isenta de erro” e “inequívoca”440, mas essa voluntariedade
pode, no entanto, ser por vezes dificilmente comprovável ou até duvidosa441. O
problema está em determinar “quão voluntário é suficientemente voluntário”442.
Para dar uma resposta a essa questão é, então, necessário aquilatar “a
ausência de coacção”, seja “coacção física”, seja “coacção moral ou mesmo
económica, quando se trate de uma pressão forte efectivamente exercida ou
naqueles casos (…) em que exista um dever especial de protecção
estadual”443.
Com
o
reconhecimento
de
um
direito
a
renunciar
está-se
simultaneamente a aumentar a “gama de alternativas” dos cidadãos, o que à
partida parece favorecer a liberdade individual. Mas é preciso não esquecer
que “este aumento de liberdade individual implica [simultaneamente] um
aumento de vulnerabilidade”: tendo o indivíduo possibilidade de renunciar a
possa ainda considerar-se expressão do exercício da autonomia pessoal sobre os bens
jurídicos disponíveis”, ou seja, que “possa definir-se como manifestação de autonomia-referidaao-bem-jurídico”. Nesse sentido, mais desenvolvidamente, MANUEL DA COSTA ANDRADE,
Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 583 ss, em particular pp. 595 e 607, nota
108, onde o Autor refere que “não pode afirmar-se, sem mais, a irrelevância indiscriminada do
erro não referido ao bem jurídico”, pois “tudo dependerá da circunstância de o erro precludir ou
não o exercício de autonomia-referida-ao-bem-jurídico, que a incriminação visa em concreto
preservar”. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 486, considera que
nos casos de “estrito erro (espontâneo, não provocado), a doutrina se divide”. Para uns o erro
será “irrelevante e, por conseguinte, o consentimento eficaz (salvo quando o erro seja
conhecido do agente e por ele aproveitado ou quando sobre este impenda um dever jurídico de
esclarecimento)”. Para outros, “deve valer para estas hipóteses uma doutrina paralela à que
vale para o engano, sendo por conseguinte irrelevante para a questão da eficácia ou da
ineficácia do consentimento o problema da origem do erro”. Seguindo esta última perspectiva,
ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 616.
440
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 310; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 304;
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 464.
441
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 926.
442
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 113. Esta
dificuldade está patente, por exemplo, no Zahnextraktionfahl. Neste caso, uma senhora que
sofria de fortes dores de cabeça, ao contrário da indicação médica que lhe foi dada, pede que
lhe retirem todos os dentes. A jurisprudência entendeu que a paciente que consentiu, devido às
fortes dores crónicas de que padecia, não estava em condições de tomar essa decisão. Por
outro lado, o Tribunal considerou que o consentimento dos pacientes deve visar uma
intervenção curativa e, neste caso, não se tratou de uma intervenção curativa. Ver MARTINA
DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 263.
443
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 310.
117
direitos fundamentais, este poderá ser “objecto de pressões” que visem incitálo a fazê-lo. Apenas será possível avaliar se a renúncia se traduz num
acréscimo ou numa diminuição de liberdade atendendo às circunstâncias do
caso concreto444.
Faz sentido distinguir neste âmbito entre “meios de coacção directa”,
através dos quais o declarante é colocado “directa e evidentemente numa
posição de pressão” e meios de “coacção indirecta”, que implicam uma
“coacção 'de facto”, sendo que nem sempre é fácil determinar a fronteira entre
eles. Na coacção indirecta não é utilizado um meio “inequivocamente
reprovável”, mas há um efectivo condicionamento da voluntariedade445.
Poderão ser exemplos de coacção indirecta os casos de existência de uma
“posição de poder” sobre quem renuncia bem como a “ausência de alternativas
reais de comportamento”446.
Quanto a esta última situação, Gerd Sturm defende que, em rigor, só se
pode falar de renúncia a direitos fundamentais quando se verificar um
consentimento verdadeiramente livre. Se um dos argumentos centrais da tese
da renunciabilidade destes direitos é o facto de este poder de disposição se
traduzir num exercício de autonomia, torna-se patente a importância do
“postulado da verdadeira liberdade”. Só o cidadão que pode realmente escolher
não carece de protecção contra intervenções estaduais ou de terceiros. Nesse
sentido, entende que “uma renúncia a direitos fundamentais só pode ser ‘livre’
e relevante em termos de Direito Constitucional quando se reconheçam
verdadeiras alternativas de comportamento à autovinculação como emanação
da autonomia do cidadão”447.
444
OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La
libre disposition du soi et le règne de l’échange”, cit., p. 452.
445
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 48. No caso
Schneckloth v. Bustamante, http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0412_
0218_ZS.html, relativo à voluntariedade do consentimento numa busca a um automóvel, o
Supremo Tribunal dos Estados Unidos afirmou que uma renúncia não é válida se for
consequência de uma coacção, explícita ou implícita. Sobre este caso, ver também JESSICA
WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 308.
446
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 49. A Autora
considera, no entanto, que estas circunstâncias apenas podem excluir a voluntariedade da
renúncia quando tenham uma influência tal sobre a livre vontade que se possam equiparar às
situações de verdadeira coacção, na medida em que a pressão exercida seja equivalente.
447
GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf Grundrechte”, cit., pp. 183 e 184.
118
O critério da existência de alternativas reais de comportamento tem sido,
no entanto, criticado, pois não é de excluir a existência de situações em que o
cidadão se encontre numa posição de vulnerabilidade e, ainda assim, tal não
ser motivo para invalidar a renúncia. Poderá, pelo contrário, ser precisamente
por se encontrar nessa posição que a renúncia seja a única via para a
prossecução dos seus “fins pessoais”448.
O conceito de voluntariedade deve, portanto, ser “adaptado a
circunstâncias especiais”. A principal distinção que se impõe fazer é entre
“standards de voluntariedade” que devem ser “aplicados a actos ou escolhas
individuais que têm lugar em circunstâncias normais” e aqueles que se devem
aplicar quando esteja em causa um “contexto específico”, como seja o facto de
a pessoa estar presa ou internada num hospital. Nestes casos, ainda que
segundo “os standards de voluntariedade” num contexto normal pareça que a
pessoa não tem grandes alternativas de escolha, tendo em consideração a sua
situação concreta poderá entender-se que, ainda assim, essa escolha é
voluntária449.
De todo o modo, mesmo admitindo a relevância de tais circunstâncias
especiais, a renúncia tem de ser uma escolha consciente, que permita a
prossecução de “fins pessoais” e que, na perspectiva do renunciante, lhe venha
448
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 305 e 306. Este Autor dá
como exemplo “o caso de algumas injunções” que, em processo penal, podem ser “impostas
ao arguido, com a concordância deste e do juiz de instrução”, e que implicam uma verdadeira
renúncia a direitos. RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 23 e 24, refere ainda
o caso de um paciente que pretende ser operado para salvar a sua vida. Se respeitássemos a
exigência da necessidade de uma “alternativa real de comportamento”, ele não poderia ser
tratado por falta de liberdade do consentimento na intervenção na sua integridade física.
GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, Cambridge University Press,
Cambridge, 1997, p. 50, defende que ter poucas opções não elimina necessariamente a
autonomia porque mesmo alguém com poucas opções pode ter uma boa razão para considerar
uma determinada escolha como preferível quando comparada com outras. Finalmente, KNUT
AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 91, refere
que no que diz respeito à renúncia a direitos fundamentais no caso de pessoas em situação de
prisão, muitas vezes se tem considerado que o consentimento nunca é voluntário e,
consequentemente, não é válido. No entanto, entende que esta é “uma solução demasiado
simplista”, uma vez que “seria problemático retirar a um preso, apenas porque está preso, a
possibilidade de decidir um determinado tratamento curativo ou medidas análogas”.
449
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 121 e 122. A
jurisprudência alemã já teve oportunidade de se pronunciar sobre o consentimento na
castração de um arguido por crimes sexuais e considerou que este era válido desde que
respeitasse determinados pressupostos: ser o único meio de libertar o arguido em causa do
seu instinto sexual e ser possível garantir a voluntariedade da decisão. Nesse sentido, ver
BGHSt 19, pp. 201 ss; também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 72.
119
trazer algum benefício. É importante avaliar se o particular renunciou a um
direito porque considera que a renúncia o conduzirá à prossecução dos seus
objectivos, ou se o faz porque não lhe teve outra opção. Assim, “a importância
do carácter voluntário da renúncia acaba por ser bastante relativizada” uma vez
que só produz efeitos úteis em “casos extremos” ou nas situações em que a
renúncia não se pode “objectivamente traduzir para quem renuncia em
qualquer vantagem.”450.
Tem-se defendido também que a renúncia não deve ser encarada como
“uma verdadeira manifestação de autonomia individual” e, consequentemente,
digna de tutela, quando a decisão de renunciar seja condicionada por
necessidades económicas, uma vez que nesses casos “a pessoa não procura
o seu desenvolvimento através de uma renúncia, mas pretende apenas fazer
face a uma situação complicada, em particular uma situação económica difícil”.
Para esta perspectiva, quando a renúncia é feita como “contrapartida de
vantagens materiais” poderá supor-se que a escolha de renunciar tem como
base algum constrangimento. É a “mercantilização do direito” que “torna a
operação suspeita”451.
Não estamos, no entanto, de acordo com esta posição, na medida em
que julgamos que pode haver situações em que a renúncia seja contrapartida
de vantagens materiais e, ainda assim, traduzir uma escolha voluntária452. Este
450
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 306 e 307. MARTINA
DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 50 – 52, sustenta que as
situações de uso de detector de mentiras se enquadram no problema da ausência de
alternativas de comportamento. O BVerfG, na fundamentação da sua decisão e a par de outros
argumentos, considerou que nestes casos “não havia verdadeira liberdade de escolha: quem
se recusasse a fazer o teste ou não o requeresse havendo essa possibilidade tornar-se-ia
suspeito”. A Autora entende, no entanto, que para a protecção dos interesses do acusado se
deve permitir este meio de prova e garantir a voluntariedade da decisão através de uma
proibição de valoração da prova (no caso de recusa). Este caso está disponível na NJW, n.º 8,
1982, pp. 375 ss. Ver também GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 68. JORGE
REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 325, considera, pelo contrário, que
este caso é um exemplo de uma situação em que se renuncia “a um bem eminentemente
pessoal, mas com consequências repercutindo de forma tão relevante na comunidade que
fundament[a]m um resultado de indisponibilidade daquele bem”.
451
OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La
libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 457 – 460.
452
Dando um exemplo extremo, “se considerarmos que o respeito pela pessoa implica proibir
uma mãe de vender algo pessoal para obter comida para os seus filhos que passam fome, não
se respeita mais a sua personalidade ao forçá-la a deixá-los morrer à fome”. De todo o modo,
em Estado social de Direito o problema não se pode colocar exactamente nestes termos.
Sobre esta questão, ver MARGARET JANE RADIN, “Market Inalienability”, cit., pp. 1910 e 1911.
120
critério deve ser considerado na avaliação da voluntariedade da renúncia, mas,
por si só, não nos dá uma resposta conclusiva quanto a essa questão.
O “grau de autonomia real das partes” deve ser ainda um critério a
empregar para resolver a questão da voluntariedade do consentimento, pois
“quanto menor seja a liberdade da parte débil da relação, maior será a
necessidade de protecção”453. Só uma renúncia verdadeiramente livre merece
a tutela do direito454.
Em virtude disso, um dos dados a atender na avaliação da autonomia
real das partes é o grau de desigualdade fáctica existente entre elas. É o
“status de inferioridade” do indivíduo que torna particularmente necessária a
sua protecção em relação a entidades dotadas de poderes de facto455. Não
basta, no entanto, estarmos perante uma relação em que há uma desigualdade
entre as partes para que a renúncia seja necessariamente involuntária. Para
que a consequência seja essa é forçoso que o desequilíbrio de poderes seja
aproveitado para influenciar a parte que renuncia e que “as consequências da
renúncia, mesmo tendo em consideração eventuais vantagens que aquele que
renuncia
recebe
como
contraprestação,
se
traduzam
num
encargo
excessivo”456.
453
JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, La Eficacia de los Derechos Fundamentales Frente a
Particulares, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 1997, pp. 368 – 370.
454
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 224. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur
des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 549, considera também relevante a questão de saber se
existe, no caso concreto, um perigo significativo de uma má utilização da possibilidade de
renúncia. Se for esse o caso, por exemplo nas situações de renúncia por parte de detidos que
se encontram numa posição de particular fragilidade, tal poderá implicar a não admissibilidade
da renúncia.
455
ANDREAS KHOL, “The protection of Human Rights in relationships between private
individuals: the austrian situation”, in RENÉ CASSIN, Amicorum Discipulorumque Liber, Vol. III,
Éditions A. Pedone, Paris, 1971, p. 212. O BVerfG, no caso Unterhaltsverzichtsvertrag,
BVerfGE 103, pp. 89 ss, teve que se pronunciar sobre a constitucionalidade de um contrato em
que os cônjuges renunciaram ao seu direito a alimentos no caso de separação. Neste caso o
Tribunal entendeu que a mulher (que estava grávida aquando da celebração do casamento) se
encontrava numa posição de inferioridade porque a alternativa que tinha era casar nestes
termos ou não casar.
456
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 53. No caso
Deweer v. Bélgica, do TEDH, http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm
&action=html&highlight=Deweer&sessionid=27938955&skin=hudoc-en,
por
exemplo,
a
Administração havia constatado uma infracção à regulamentação dos preços aquando de um
controlo efectuado no estabelecimento comercial de que o requerente era dono, tendo sido
ordenado o fecho provisório do estabelecimento. Mas foi-lhe proposta uma transacção: pagar
dez mil Francos Belgas, com a consequência de não ser objecto de queixa e poder manter o
estabelecimento comercial aberto. Ao pagar, o requerente está igualmente a renunciar a que a
121
Por outro lado, “deverão estabelecer-se maiores exigências quanto à
aferição da voluntariedade da renúncia nos casos em que a renúncia serve
essencialmente interesses de terceiros e não já interesses da própria pessoa
que renuncia”, como sucede nas experiências médicas em pessoas
saudáveis457. O mesmo deverá acontecer quando se tratar de condutas de
especial risco. Quanto mais arriscada for a conduta em causa mais rigorosa
tem de ser a avaliação da voluntariedade458. Deverá ainda ser exigido um
maior cuidado quando se aquilata a voluntariedade de actos que conduzem a
lesões irreversíveis, na medida em que um erro de avaliação nestes casos não
é passível de ser corrigido459.
Esse maior cuidado implica a apreciação das circunstâncias concretas
em que a renúncia tem lugar. Assim, é fundamental perceber se se criaram
mecanismos para garantir a voluntariedade da decisão de renúncia: interessa
aqui determinar se a renúncia foi tomada rapidamente ou após um período de
deliberação, se houve a necessidade de cumprir algum tipo de procedimento,
se o indivíduo actuou sozinho ou na presença do advogado, etc460.
Finalmente, é ainda importante apurar se houve um esclarecimento
devido, na medida em que as “condições informacionais” podem ajudar a
garantir a voluntariedade da renúncia. Aqui não se trata tanto da questão de
saber se o consentimento é livre, mas sim esclarecido. Trata-se de aferir se
foram criadas todas as condições “para o indivíduo em causa dispor da
sua causa seja avaliada por um tribunal independente e imparcial. Perante o TEDH, o
requerente pôs em causa a validade desta transacção, afirmando que deste modo havia sido
privado do seu direito de acesso a tribunal e este Tribunal dá-lhe razão. Na sua
fundamentação, o TEDH reconhece que o valor relativamente baixo que havia sido pedido ao
requerente (se comparado com o valor máximo que este poderia ser obrigado a pagar)
reforçou a pressão exercida pela ordem de fecho. O carácter módico da quantia, combinado
com a ameaça de fecho, contribuíram para exercer uma pressão tal sobre o requerente que
não se pode considerar que este tenha renunciado livremente ao seu direito de obter o exame
da causa em tribunal.
457
JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 550.
458
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 118 e 119.
459
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 120 e 175. Este
Autor considera que nos casos de renúncia ao direito à vida, por exemplo, “na medida em que
a morte é irreversível, aquilo que significa ‘suficientemente voluntário’ deve ser determinado
segundo critérios exigentes”, ou seja, deverão ser criados “procedimentos públicos e formais
para determinar a voluntariedade”.
460
JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., p. 871.
122
informação necessária, de modo a decidir com pleno conhecimento de causa
se pretende renunciar a um direito”461.
2. A capacidade para dispor sobre posições subjectivas de direitos
fundamentais
É ainda condição da renúncia “a capacidade para uma determinação
livre da vontade”462. Para que o consentimento se consubstancie num “acto de
auto-realização” é antes do mais indispensável “que quem consente seja
capaz”463, ou seja, que se encontre em posição de “apreciar e compreender o
alcance da sua decisão”464. Vamos, uma vez mais, indagar de que modo é que
esta questão é resolvida no Direito Penal e no Direito Civil para determinarmos
qual a solução que melhor se adequa à renúncia.
Como já referimos, no Direito Penal, a matéria do consentimento do
ofendido vem tratada nos arts. 38.º e 39.º do CP, em sede de causas de
justificação465. O legislador penal admite uma margem de disponibilidade
voluntária lícita por parte do titular do direito, estabelecendo o n.º 3 do art. 38.º
que “o consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16
anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance
no momento em que o presta”. Esta norma foi alterada recentemente, sendo
461
OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La
libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., p. 464. Esta exigência de que a renúncia
seja esclarecida explica que no caso Pfeifer e Plankl v. Áustria, http://cmiskp.echr.coe.int/
tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Pfeifer&sessionid=46392510&ski
n=hudoc-en, se tenha considerado que, no quadro de um processo judiciário, a renúncia a um
dos direitos consagrados no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)
não é admissível a não ser com a assistência de um advogado. HANS D. JARASS – BODO
PIEROTH, Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 31, defendem também que
“o consentimento deve ser suficientemente concreto de modo a que quem renuncia possa
saber quais as consequências desse consentimento”. MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 48, refere a existência de “deveres de
esclarecimento” pela parte dos órgãos estaduais, de modo a evitar situações de erro.
462
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN,
Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 94.
463
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 483.
464
DIETER DÖRR, Big Brother und die Menschenwürde, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2000,
p. 69.
465
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 161.
123
que na versão anterior a idade mínima para consentir eram os catorze anos.
No Direito Civil, embora não haja nenhuma disposição expressa nesse
sentido, “a capacidade para consentir é um conceito que tem vindo a ser
autonomizado face à capacidade negocial de exercício”. Tem-se entendido que
não se deve aplicar o regime das declarações de vontade referentes a direitos
patrimoniais a bens jurídicos como a honra, a saúde ou a vida, uma vez que
estão em causa, nestes casos, bens jurídicos eminentemente pessoais. Para
além disso, “os institutos tradicionais da representação dos incapazes (…) são
demasiado rígidos”, uma vez que não têm em conta as diferentes “capacidades
intelectuais, emotivas e volitivas [dos menores e] dos doentes psiquiátricos”. O
consentimento para intervenções médico-cirúrgicas, por exemplo, não pode ser
equiparado ao consentimento em questões do foro patrimonial, porquanto
“afecta bens jurídicos pessoalíssimos, como a integridade física e a
autodeterminação pessoal”466.
No caso da limitação voluntária de direitos de personalidade sustentase, então, que se o incapaz for suficientemente maduro deverá ser ele, e não
os seus representantes, a dar o consentimento, uma vez que o que está em
causa é a “limitação de direitos que tutelam bens pessoais”. Por outro lado,
poderá também obstar ao consentimento prestado pelo representante, “se tiver
maturidade para avaliar o sentido e o alcance desse consentimento - tenha ou
não ainda completado uma certa idade”467.
Consequentemente, quanto à capacidade de exercício de direitos tem
sido defendido que deve ser de erigir, “paralelamente às regras gerais do
negócio jurídico”, um “regime específico para a limitação de direitos de
personalidade”. Tal perspectiva implica transpor “uma aparente barreira do
argumento literal do art. 123.º do CC”, onde está prevista a incapacidade de
exercício de direitos. Esta norma consagra, para menores e interditos, “uma
incapacidade geral de exercício” que se aplica quer a “direitos patrimoniais”
quer a “direitos pessoais”. Apesar disso, a própria lei prevê excepções “no
466
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., pp. 148, 149 e 154; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade
para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, cit., pp. 200, 201 e 206.
467
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., p. 543.
124
domínio dos actos pessoais”, uma vez que, por exemplo, para “casar, perfilhar,
testar [ou] para a escolha de uma religião” se consagram regras especiais.
Consequentemente, parece que o próprio “CC aponta para duas regras
paralelas: uma para os actos jurídicos patrimoniais (art. 123.º) e outra para os
actos jurídicos pessoais (onde impera o casuísmo, apontando-se por vezes
para a idade dos catorze anos e outras para os dezasseis, mas dando sempre
um relevo especial à fase da adolescência)”468.
No entanto, as regras gerais do negócio jurídico podem servir de “ponto
de orientação” quando se afere a capacidade para consentir, o que significa
que as pessoas com capacidade negocial de exercício terão, em princípio,
capacidade para prestar o seu consentimento. Ainda assim, a maioridade é
somente “‘um indício’ dessa capacidade”. Partindo da alteração que sofreu a lei
penal, no que diz respeito aos menores deve entender-se que as pessoas com
mais de dezasseis anos são capazes de consentir, desde que compreendam “o
alcance e o significado da intervenção e possam prever os seus riscos e não
decidam precipitadamente ou de forma irrazoável”. Por outro lado, no que se
refere aos incapazes adultos, as causas que podem levar à interdição
justificam, em princípio, que se entenda que o interdito não está capaz para
consentir, devendo, no entanto, fazer-se “uma ponderação casuística”. Mas
ainda que seja confirmada essa situação, a opinião do incapaz deve ser
sempre tida em conta. Finalmente, no que se refere aos inabilitados, uma vez
que estes normalmente gozam “de capacidade geral para a prática de actos
pessoais (…), a sua capacidade para consentir só deve ser questionada,
quando na sentença de inabilitação haja referência expressa”469.
Partindo destas considerações, julgamos que também fará sentido
retirar os critérios para a determinação de uma fronteira de idade a partir da
qual se pode admitir uma renúncia a direitos fundamentais daquilo que
dissemos quanto ao consentimento no Direito Civil e no Direito Penal: esses
critérios deverão ser “a maturidade, a compreensão, o tipo de intervenção e a
468
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., pp. 163 – 166; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade
para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, cit., pp. 216 – 218.
469
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., pp. 170 – 172; ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A capacidade
para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica”, cit., pp. 221 - 223.
125
capacidade
de
ponderar
as
vantagens
e
as
desvantagens
dessa
intervenção”470. A capacidade para consentir numa renúncia não tem de
coincidir necessariamente com a capacidade negocial471. Tal não invalida, no
entanto, que também neste âmbito as regras gerais do negócio jurídico possam
constituir um “ponto de orientação” quando avaliamos a capacidade de
consentir. Daqui decorre que as pessoas que gozam de capacidade negocial
de exercício terão, em regra, capacidade para renunciar. Porém, a maioridade
deve ser apenas considerada como um “indício” da capacidade para dispor
sobre posições subjectivas de direitos fundamentais, podendo os maiores de
dezasseis anos ser capazes de consentir, desde que compreendam o sentido e
o alcance da sua decisão.
Por outro lado, atendendo “à natureza incindível do poder de renúncia”
em relação ao titular do direito a manifestação de vontade de renúncia tem de
ser produzida pelo próprio. Assim, não devem “ser consideradas como
verdadeiras renúncias, mas antes como restrições heterónomas, as situações
em que (…) o pretenso consentimento é prestado pelos pais em nome do filho
menor”472.
470
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 44.
471
Fazendo estas considerações em relação ao Direito Penal, ver TERESA PIZARRO BELEZA,
Direito Penal, cit., p. 269.
472
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 302 e 303. Ver também
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, cit., p. 310, que considera também indispensável que “a manifestação de vontade seja
produzida pelo próprio titular, não sendo suficiente, em regra, o consentimento de alguém que
exerça um poder de representação ou tutela”. MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 46, defende que quanto à representação de
menores pelos seus pais, estes só poderão renunciar em nome dos seus filhos nos casos em
que a intervenção vise o bem-estar objectivo da criança.
126
PARTE II: Os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações
entre particulares
Capítulo I: Os limites da renúncia no contexto de um Estado de Direito
plural
A Parte I deste trabalho foi dedicada ao tratamento da figura da renúncia
a direitos fundamentais em geral. Para esse efeito, delimitámos o conceito de
renúncia, distinguimos as diferentes configurações que esta pode assumir,
afastámos as objecções à renunciabilidade dos direitos e vimos ainda qual o
fundamento do poder de disposição individual sobre posições de direitos
fundamentais. Defendemos a “admissibilidade prima facie da renúncia” uma
vez que esta é ainda expressão de exercício de direitos fundamentais473 e
vimos quais as condições a preencher para que possa ter lugar.
Na Parte II vamos restringir o objecto do nosso estudo de modo a dirigir
a análise para o tema central da tese: os limites da renúncia a direitos
fundamentais nas relações entre particulares.
Há, no entanto, algumas questões que se impõe abordar antes de
tratarmos os limites propriamente ditos, uma vez que consideramos que a
resposta ao problema que vamos analisar depende, em grande medida, da
concepção de Estado que se sustente e do papel que se entende que este
deve (ou não) ter na condução de vida dos cidadãos.
Em Estado de Direito, “o respeito pela dignidade humana, pelo
pluralismo democrático e pelo desenvolvimento da personalidade de cada um
implica o reconhecimento de um espaço legítimo de liberdade e realização
pessoal liberto de intervenção jurídica”474. Nesse sentido, é essencial que
esteja assegurada “a possibilidade de exercício da liberdade individual” e a
“garantia constitucional do princípio do pluralismo, no que diz respeito às visões
do mundo e às concepções, sociais e individuais, do que seja uma vida boa”475.
473
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 301.
474
RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, cit., pp. 287 e 288.
475
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 168. O Tribunal Constitucional diz
127
Este respeito da autonomia pessoal e o “elogio da tolerância” são elementos
essenciais das instituições jurídicas, políticas e sociais em que hoje
identificamos o Estado de Direito476. Em Estado plural, “a liberdade jurídica é
pura e simplesmente liberdade, e não liberdade só, ou privilegiadamente, para
prosseguir fins públicos ou objectivos pré-determinados pelo Estado”477.
Deve, consequentemente, ser de afastar qualquer interpretação dos
direitos fundamentais que os reduza a uma “determinada concepção de bem
comum dotada de pretensões, de tipo metafísico, de objectividade e de
essencialidade”478.
Assim sendo e na medida em que, contrariando estas considerações, se
verifica uma tendência cada vez maior para alargar indevidamente os poderes
da sociedade sobre o indivíduo479, parece-nos essencial, antes de cuidarmos
dos limites da renúncia propriamente ditos, debruçarmo-nos sobre o problema
da admissibilidade da defesa da pessoa contra si própria no contexto de um
Estado plural e não paternalista. Como já referimos, aquele que renuncia a um
direito fundamental e permite que um terceiro restrinja a sua esfera
juridicamente protegida por esse direito fundamental está, ainda que de forma
indirecta, a lesar-se a si mesmo.
Estando a protecção da pessoa contra si mesma e o paternalismo
estadual muitas vezes implícitos nos limites que se estabelecem ao poder de
disposição sobre posições subjectivas de direitos fundamentais, procuraremos,
então, aquilatar se (e em que termos) é legítimo que o Estado crie normas que
visam “uma protecção do titular dos direitos fundamentais quanto às
expressamente, no Acórdão n.º 174/93, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos
93/101-200/17493.htm, a propósito da liberdade religiosa, que qualquer forma de dirigismo
cultural fere o bem comum e mina os alicerces do Estado de direito, não podendo o Estado
impor aos cidadãos quaisquer formas de concepção do Homem, do mundo ou da vida.
476
PEDRO CARLOS BACELAR DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Controlo Jurídico do Poder
Público, cit., p. 28.
477
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 294 e 295. ALBERT
BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 59, assumindo uma posição mais
radical afirma que o interesse público se direcciona hoje para a realização dos direitos
fundamentais, pelo que uma autodeterminação ampla do indivíduo está sobretudo ao serviço
da colectividade.
478
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 382.
479
Ainda se mantendo actuais as palavras de JOHN STUART MILL, Sobre a Liberdade, (trad.
ISABEL SEQUEIRA), Publicações Europa América, Mem Martins, 1997, p. 21.
128
consequências da sua decisão autónoma e livre”480.
1. A defesa da pessoa contra si própria e o paternalismo estadual
Quando falamos do problema da admissibilidade da defesa da pessoa
contra si própria, estamo-nos a referir à questão de determinar se é legítimo
que o Estado proteja os direitos fundamentais do indivíduo para o seu próprio
bem e contra a sua vontade, quando não se lesam quaisquer bens de terceiros
ou da comunidade. Trata-se de ajuizar se o sistema jurídico tem legitimidade
para proteger o indivíduo “contra o risco de um mau uso que este possa fazer
da sua liberdade”481. Esta é uma questão controversa, na medida em que se
refere à “relação entre a protecção legítima de bens jurídicos e o direito de
autodeterminação do próprio titular do direito”482.
Em Estado social, a protecção de terceiros face a comportamentos de
risco é incontestável, porque o Estado tem como função “garantir a
inviolabilidade
da
sua
integridade
física
ou
psíquica”483.
Afasta-se,
consequentemente “uma interpretação puramente individualista das normas de
direitos fundamentais”484.
No entanto, enquanto há consenso no sentido de o Estado poder
justificadamente impor “os princípios de uma moral pública ou intersubjectiva,
que avalia as acções de acordo com os seus efeitos nos interesses de
terceiros”, o mesmo já não se poderá dizer quanto à possibilidade de o Estado
impor, seja através do uso de coacção ou por outras vias, “standards de uma
moralidade pessoal que avalia acções pelo seu efeito no carácter moral ou no
valor da vida do próprio agente que as leva a cabo”485.
480
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 196.
481
OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La
libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., p. 446.
482
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 196.
483
CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même.
Quelques topiques pour un débat“, in RMP, n.º 116, 2008, p. 137.
484
ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 120.
485
CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, Clarendon Press, Oxford, 1991, pp. 131 e
132. De todo o modo, convém ressalvar que a destrinça entre as situações em que há
129
Ainda que seja mais comum a referência ao problema da protecção da
pessoa contra si própria na autolesão, a verdade é que também se poderá
verificar uma tal protecção na renúncia486. Não se fala apenas de defesa da
pessoa contra si própria quando o Estado pretende acautelar autolesões, como
acontece, por exemplo, nos casos de obrigatoriedade do uso de cinto de
segurança ou de capacete. Será também a defesa da pessoa contra si própria
que está em causa (explícita ou implicitamente) nas situações em que o Estado
não permite que o indivíduo disponha dos seus direitos fundamentais num
determinado sentido, não havendo interesses públicos ou de terceiros que
justifiquem essa restrição. Assim, a ideia de defesa da pessoa contra si própria
pode também ser invocada para justificar restrições ao poder de disposição
sobre posições jurídicas de direitos fundamentais pelos próprios titulares
interesses públicos e de terceiros juridicamente tuteláveis e aquelas em que apenas estão em
causa interesses do indivíduo não é simples, na medida em que facilmente se encontram
razões de interesse público ou interesses de terceiros para justificar restrições. Nesse sentido,
ver JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 290, nota 37. Uma vez que “nenhum
homem é uma ilha, todas as acções individuais podem, pelo menos indirectamente, afectar
outrem”. Parece, no entanto, ser de seguir a perspectiva de Mill, segundo a qual “quando não
se esteja perante um dano, mesmo que a maioria das pessoas considere a conduta absurda,
perversa ou errada (…), ‘com os gostos pessoais e as opções que dizem respeito ao próprio
indivíduo a sociedade não se deve intrometer’”. Sobre esta questão ver, mais
desenvolvidamente, LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo,
cit., p. 246. Também JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit.,
p. 22, entende que se pode considerar que “o interesse público está sempre em causa, pelo
menos numa medida mínima, quando as pessoas se lesam a si próprias”. Este Autor
considera, no entanto, que devemos assumir que “é possível traçar uma fronteira (…) entre
comportamentos que afectam terceiros e condutas que dizem primaria e directamente respeito
à própria pessoa, apenas afectando terceiros indirecta ou remotamente”. Se não fosse possível
traçar esta fronteira, tal significaria que “o paternalismo estadual não levantaria problemas (…),
na medida em que todas as restrições paternalistas poderiam ser defendidas por serem
necessárias para proteger outras pessoas e, nessa medida, não seriam totalmente
paternalistas”. Assim, para se poder considerar que há interesses públicos ou de terceiros a
tutelar o prejuízo em causa deve ser suficientemente sério. Parece-nos ser também esse o
sentido do voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes, no Acórdão n.º 423/08,
http://www.tribunalconstitucional.pt/ tc/acordaos/20080423.html, no qual defende que o dever
de protecção da saúde pública pelo Estado não depende apenas de um “juízo probabilístico
geral” sobre a causalidade adequada da conduta de fumar para lesar abstractamente a saúde,
mas sim da comprovação de que essa conduta é directamente responsável pela lesão da
integridade física dos fumadores passivos. Colocando, por exemplo, a questão de saber se há
direitos de terceiros ou bens jurídicos comunitários a proteger nas leis que criminalizam a
aquisição e consumo de haxixe, ou determinados comportamentos homossexuais, lenocínio e
proxenetismo, ver CHRISTIAN STARCK, “Das Sittengesetz als Schranke der freien Entfaltung der
Persönlichkeit”, cit., p. 270. Sobre a questão do lenocínio ver, entre nós o Acórdão n.º 144/04,
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20040144.html, no qual o Tribunal
Constitucional não considerou inconstitucional a sua criminalização.
486
Quando definimos o conceito de renúncia distinguimo-lo do conceito de autolesão, uma vez
que entendemos que a renúncia pressupõe necessariamente a intervenção de terceiros.
130
destes direitos487.
Por outro lado, o problema da restrição legislativa da liberdade para
protecção do próprio titular “não se reduz ao âmbito da renúncia” a direitos
fundamentais, pois as “intervenções restritivas não se referem exclusivamente
a situações em que haja uma manifestação de vontade negocial ou um
consentimento dispositivos”488. Apesar disso, vamos limitar a nossa análise a
esse âmbito mais restrito.
Por outro lado ainda, o problema da defesa da pessoa contra si própria
também se pode colocar no seio de relações jurídicas privadas489. Trata-se de
aferir se é legítimo que o Estado proteja o particular de si mesmo, no sentido
de não lhe permitir dispor do seu direito fundamental perante outro particular.
A ideia de defesa da pessoa contra si própria está intimamente ligada
com o paternalismo estadual, na medida em que com o termo paternalismo se
pretende designar a “privação ou redução da liberdade de escolha do indivíduo
operada pelo ordenamento a fim de assegurar uma particular protecção da
pessoa ou de uma categoria de pessoas de actos contrários ao seu próprio
interesse”490. Entende-se, assim, por paternalista “um comportamento que tem
como finalidade impor a um terceiro protecção independentemente da questão
de saber se essa protecção é ou não desejada. Quando o Estado age desta
forma em relação aos seus cidadãos podemos falar de paternalismo estadual,
ou, seguindo a expressão inglesa legal paternalism, de paternalismo jurídico”.
487
NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., p. 147, considera que no
que diz respeito à defesa da pessoa contra si própria devem ser equiparadas as situações de
autolesão e de consentimento em heterolesões.
488
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 299.
489
INGO VON MÜNCH, “Grundrechtschutz gegen sich selbst”, cit., p. 115.
490
FABRIZIO COSENTINO, “Il paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione
dell’autonomia dei privati”, in Quadrimestre, n.º 1, 1993, p. 120. MARGARET JANE RADIN,
“Market Inalienability”, cit., pp. 1898 e 1899, defende que o paternalismo normalmente “significa
substituir o julgamento da pessoa em causa pelo julgamento de um terceiro ou do Estado para
o bem dessa mesma pessoa”. Considerando também que o paternalismo “se sobrepõe à falta
de consentimento para o bem da própria pessoa”, ver R. GEORGE WRIGHT, “Consenting Adults:
the problem of enhancing human dignity non coercively”, in Boston University LR, Vol. 75, 1995,
p. 1432. MARTIN HOCHHUTH, “Grundrechte und Grundfreiheiten als Schutzpflichten?” in
MICHAEL ANDERHEIDEN – PETER BÜRKLI – HANS MICHAEL HEINIG – STEPHAN KIRSTE – KURT
SEELMANN, Paternalismus und Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2006, p. 208, entende que o
paternalismo se consubstancia em tutela para o bem do próprio tutelado. Ver ainda KATHLEEN
M. SULLIVAN, “Unconstitutional Conditions”, cit., pp. 1479 e 1480.
131
O paternalismo estadual goza de uma característica que o distingue das
restantes medidas restritivas do Estado: a “finalidade específica da restrição da
liberdade”. Neste caso o fundamento invocado para a restrição é a protecção
da pessoa contra possíveis “más escolhas” que esta possa fazer e não a
defesa de interesses públicos ou de terceiros491.
O paternalismo jurídico é, então, “a teoria ou o princípio que considera a
necessidade de prevenir lesões auto-infligidas uma razão legitimadora de
legislação coerciva”492. Uma vez que as políticas públicas que limitam a
possibilidade de escolha contra a vontade do próprio carecem de justificação, é
importante
identificar
o
tipo
de
razões
que
as
podem
legitimar.
Consequentemente, a análise do paternalismo é relevante porque é
fundamental saber quais “os limites morais da autoridade governamental sobre
as nossas escolhas”493.
Ora se se restringe a possibilidade de renúncia para o bem dos próprios
cidadãos, por se considerar que estes poderão não ter em devida conta a
importância dos direitos fundamentais em causa, estamos perante uma medida
paternalista494.
Para aferirmos a legitimidade de medidas paternalistas nos diferentes
ramos de direito devemos considerar “a posição de partida do Direito
491
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 11 e 12.
492
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 8. Este Autor
distingue “normas paternalistas puras e mistas”. Estas últimas “justificam-se parcialmente pelo
objectivo de prevenir as pessoas de sofrerem lesões pelas suas próprias mãos ou, com o seu
consentimento, pelas mãos de terceiros e, em parte, por outras razões, como seja o desejo de
também proteger outras pessoas ou o público em geral. As normas paternalistas puras não têm
qualquer outra motivação para além da prevenção de autolesões ou lesões por terceiros
consentidas”.
493
PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, in Philosophy & Public Affairs, Vol. 34, n.º 1,
2006, p. 76.
494
KATHLEEN M. SULLIVAN, “Unconstitutional Conditions”, cit., p. 1480. Considerando que “a
finalidade do paternalismo consiste em evitar danos auto-infligidos pelo indivíduo ou infligidos
por terceiros com o consentimento do indivíduo”, ver MACARIO ALEMANY, “El concepto e la
justificación del paternalismo” in DOXA – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 28, 2005, p.
272. JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 9 e 172,
entende também que se pode distinguir entre “normas paternalistas aplicadas a casos onde
está apenas uma pessoa em causa (….) e normas paternalistas que se aplicam a casos onde
estão duas pessoas envolvidas. Estas situações que envolvem duas pessoas são paternalistas
quando o pedido (ou o consentimento) de uma das partes para a acção da segunda não é
suficiente para permitir que esta possa efectivamente fazer o que a primeira pretendia”. Para
este Autor “os dilemas do paternalismo legal surgem nas suas formas mais complicadas nos
casos que envolvem duas partes”.
132
Constitucional”495. Efectivamente, no que se refere à renúncia a direitos
fundamentais, se da interpretação de uma norma ordinária retiramos que esta
se opõe à renúncia, coloca-se automaticamente a questão de saber se é
inconstitucional, uma vez que as normas de direito ordinário que estabeleçam
limitações ao poder de disposição do titular do direito “são elas próprias
sindicáveis à luz da sua conformidade com os princípios constitucionais que
(…) devam reger a renúncia”496. Assim, a proibição de renúncia tem de ser
admissível do ponto de vista jurídico-constitucional, ou seja, deve garantir
outros interesses constitucionais que se ancoram na Constituição, que aquela
renúncia prejudica e que, no caso particular, devem ser valorados como
prevalecentes497. Resta saber se o paternalismo estadual se pode justificar à
luz dos princípios constitucionais e se pode servir de argumento para, por sua
vez, justificar restrições à possibilidade de renúncia.
O problema da “admissibilidade do paternalismo estadual pode
compreender-se
enquanto
aspecto
parcial
do
debate
liberalismo
–
comunitarismo, que tem vindo a ter lugar há algumas décadas no quadro
anglo-americano”498. Subjacente a esta discussão está o problema de
determinar até onde pode o Estado ir ao realizar “concepções específicas de
justiça, autoridade ou uma vida boa”499. É o que procuraremos agora ver com
mais cuidado.
2. Liberalismo versus comunitarismo
O comunitarismo, tal como o liberalismo, é um conceito que abarca
várias correntes distintas. Em termos gerais, os comunitaristas opõem-se ao
liberalismo na medida em que consideram que “a insistência liberal na
495
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 24.
496
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 264.
497
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 196.
498
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 18.
499
WILLIAM A GALSTON, “Value Pluralism and Political Liberalism”, in JOÃO CARLOS ESPADA
(coord.), Liberdade, Virtude e Interesse Próprio, Publicações Europa-América, Mem-Martins,
1997, p. 62.
133
tolerância implica também desvantagens que devem ser tidas em conta no
quadro da moral política”500, uma vez que essa tolerância pode pôr em causa a
comunidade,
comunitaristas
que
é
um
defendem
“código
que
ético
cada
partilhado”501.
indivíduo
está
Assim,
muitos
“irremediavelmente
comprometido com a cultura, tradição e perspectivas partilhadas pela
sociedade mais ampla”502.
Para esta perspectiva, o principal problema do liberalismo assenta no
facto de “não reservar grande espaço (…) para as comunidades em que nos
inserimos” e “os princípios, inclusivamente morais, que as consubstanciam”503.
Deste
modo,
o
comunitarismo
propõe-se
“superar,
ou
pelo
menos
reconceptualizar, o liberalismo político que tem vindo a dominar o discurso (…)
jurídico-constitucional desde o advento da época moderna”. O pensamento
comunitarista parte da natureza social do indivíduo, defendendo que não se
pode negar a importância da sua “inserção comunitária”, uma vez que esta é
essencial para a própria formação da identidade de cada um504. Apesar disso,
“em boa parte, a crítica comunitarista parte da tradição liberal procurando o seu
aperfeiçoamento e não o seu derrube”505.
Winfried Brugger defende que o comunitarismo faz a ponte “entre o
indivíduo isolado e o poder estadual centralizado e defende que são
precisamente as realizações e formas de vida intermédias que potenciam o
autodesenvolvimento individual e evitam excessos de poder estadual”506. O
500
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 18.
501
Defendendo que uma das críticas apontadas ao liberalismo é precisamente a de considerar
que a “tolerância liberal” deteriora a comunidade porque o que caracteriza essa comunidade é
um “código ético partilhado”, ver RONALD DWORKIN, Sovereign Virtue, Harvard University
Press, Cambridge, Massachusetts, London, England, 2002, pp. 211 ss. Como defensores das
teorias comunitaristas podemos referir, entre outros, Charles Taylor, Alasdair Maintyre, Michael
Sandel e Michael Walzer. Nesse sentido, CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus
Comunitarismo”, in Revista del Centro de Estúdios Constitucionales, n.º 1, 1988, pp. 363 e 364.
502
GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 156.
503
CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, in JOÃO CARDOSO ROSAS (org.), Manual de Filosofia
Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 89.
504
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 157.
505
CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 104.
506
WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, in AöR, n.º 123, 1998, p.
342.
134
Autor estabelece
uma distinção entre “comunitarismo
conservador”507,
“comunitarismo universalista”508 e, finalmente, “comunitarismo liberal”509,
fazendo a apologia deste último.
Brugger considera que o comunitarismo liberal oferece a melhor teoria
comunitarista constitucional, uma vez que é aquela que “mais cabalmente
realiza
e
explica
as
normas
constitucionais nas
suas
relações”. O
comunitarismo liberal parte da ideia de que, “em regra, os homens necessitam
de criar comunidades e de criar laços nessas comunidades para levarem uma
vida realizada”, o que não envolve qualquer forma de “repressão ou pressão”.
Para o comunitarismo liberal “a liberdade de escolha individual é um valor
importante mas não absoluto”, o que significa que “uma Constituição pode
acentuar e promover formas particularmente importantes e marcantes da vida
em comum, mesmo quando não haja o acordo de todos”. Isto quer ainda dizer
que
“uma
comunidade
política
se
pode
distanciar
de
modos
de
507
O comunitarismo conservador “vê a ligação do homem à comunidade como forte”. A
“liberdade humana traduz-se na liberdade para a auto-realização através dos modos de vida
tradicionais”. Este tipo de comunitarismo considera que “há uma maior racionalidade e
conveniência em instituições e modos de vida que se prolongam no tempo”. Esta “precedência
(não absoluta) das tradições e convenções também se manifesta no entendimento da moral”.
No entanto, “o erro do modelo conservador é o facto de organizar o Estado na perspectiva do
grupo homogéneo e visível no horizonte próximo”. Ver, mais desenvolvidamente, WINFRIED
BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, cit., pp. 344 – 349; ver também
WINFRIED BRUGGER, “Communitarianism as the social and legal theory behind the German
Constitution”, in International Journal of Constitutional Law, Vol. 2, n.º 3, 2004, p. 438.
508
O comunitarismo universal defende que “os homens são sobretudo indivíduos autónomos
dotados de racionalidade e que podem e devem decidir plenamente por si”. Uma “vida
realizada é, nesta perspectiva, uma vida que se caracteriza pela liberdade de escolha e essa
liberdade estende-se a todas as formas sociais”. O “entendimento moral aparece,
correspondentemente, com uma postura crítica em relação à moral convencional tradicional”. O
Autor entende que o comunitarismo universal vai longe demais, uma vez que se “fixa no
horizonte longínquo da humanidade no seu conjunto e esquece que o Estado detém uma
posição intermédia ou de mediação importante e irrenunciável entre o horizonte próximo e o
longínquo”. Ver, mais desenvolvidamente, WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als
Verfassungstheorie”, cit., pp. 349 – 353; WINFRIED BRUGGER, “Communitarianism as the social
and legal theory behind the German Constitution”, cit., pp. 438 – 440.
509
O comunitarismo liberal “evita a unilateralidade das duas outras variantes e procura
trabalhar e conciliar o núcleo legítimo de ambas”. Este tipo de comunitarismo “vê em todas as
formas de comunitarização potenciais para uma vida realizada, uma vez que é nestas formas
que as ambições humanas ganham estrutura e direcção”. Tal não invalida, no entanto, que
haja espaço para a decisão individual, sobretudo na forma de “possibilidade de entrada e
possibilidade de saída, e muitas vezes também através da possibilidade de conformação e
transformação interna”. Trata-se, portanto, de liberdade e realização dentro de comunidades”.
Ver,
mais
desenvolvidamente,
WINFRIED
BRUGGER,
“Kommunitarismus
als
Verfassungstheorie”, cit., p. 353 ss; WINFRIED BRUGGER, “Communitarianism as the social and
legal theory behind the German Constitution”, cit., pp. 440 – 443.
135
desenvolvimento individual que ameacem minar aquelas formas avaliadas
como particularmente importantes”510.
Ulrich Haltern, contestando esta construção, coloca a questão de saber
se “a evolução de uma filosofia liberal para uma filosofia comunitarista fornece
uma diferenciação que mereça análise e que venha abrir novos campos de
conhecimento para a teoria constitucional”, o que pressupõe que o liberalismo
não seja suficiente para assegurar “as exigências da ‘melhor teoria
constitucional’”.
Em primeiro lugar, convém perceber o que distingue o comunitarismo do
liberalismo. Segundo ele, o Homem moderno não só detém a liberdade de
traçar o seu destino, como está, de certo modo, condenado a uma “escolha
vitalícia”. Abrange-se aqui também a escolha da “comunidade na qual uma
pessoa se quer incluir, da qual espera acolhimento e à qual, num sentido
profundo, se confia”. Tal opção adquire, consequentemente, “um sentido
existencial na vida de cada pessoa”. Tanto o comunitarismo como o liberalismo
realçam a importância deste acto de escolha. Mas é aqui que se constitui uma
diferença decisiva entre as duas perspectivas. O comunitarismo critica a
natureza apenas “superficial, incoerente, muitas vezes incerta e volátil da
identidade sob as exigências do liberalismo”. Para o comunitarismo o “prédeterminado” é importante, na medida em que atribui um papel proeminente à
tradição e à história na formação do indivíduo. Esta escolha não é, no entanto,
“nem imperativa nem inevitável; é, apesar disso, privilegiada, na medida em
que é a única que torna possível aquela identidade que realiza um sentido, que
o comunitarismo contrapõe ao liberalismo”. Consequentemente, “não é apenas
evidente escolher enquanto grupo de referência um grupo reconhecido pela
tradição, continuidade, história ou enraizamento. É, para além disso, altamente
arriscado deixar este grupo a favor de outros. Tal risco contorna-se através da
escolha do grupo tradicional – e nesta medida a escolha deixa de ser livre em
si mesma”511.
510
WINFRIED BRUGGER, “Kommunitarismus als Verfassungstheorie”, cit., pp. 357 - 374.
511
ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren
Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., pp. 166 – 168. Considerando que as
características do comunitarismo podem implicar, se levadas até às últimas consequências,
uma visão totalitária da sociedade, ver CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”,
cit., p. 367. Para este Autor “a primazia do bem sobre os direitos individuais permite justificar
136
Por outro lado, para o Autor as fragilidades apontadas ao liberalismo
decorrem do facto de este ser normalmente identificado com o liberalismo
neutral,
uma
vez
que,
“de
facto,
o
debate
em
torno
do
comunitarismo/liberalismo anda muito à volta das fraquezas e das vantagens
de uma concepção de Estado segundo a qual este se comporta de modo
neutral em relação a ideais morais e a questões da vida em comunidade boa e
justa. Este dever de neutralidade não se refere apenas a questões religiosas
(…), abarcando também questões seculares”512.
Segundo ele, a dicotomia liberalismo/comunitarismo apenas faz sentido
“quando o liberalismo é, pelo menos implicitamente, equiparado ao liberalismo
neutral”. Mas a verdadeira distinção a estabelecer é a que existe entre “uma
concepção do Estado que estabelece como objectivo a prossecução de ideais
morais (perfeccionismo) e uma outra que nega esta possibilidade ao Estado
(liberalismo neutral)”513.
Assim, Haltern questiona se a transição do liberalismo para o
comunitarismo proposta por Brugger não descura “a possibilidade de um fim
moral para o liberalismo”. Se “a ‘mudança de paradigma’ trazida por Brugger
pretende simplesmente acentuar o perfeccionismo, talvez fosse mais útil
colocar em primeiro plano o potencial perfeccionista do Estado liberal”. O
liberalismo não tem necessariamente de significar liberalismo neutral. Para o
Autor, “também o estado liberal é perfeccionista, na medida em que também
políticas perfeccionistas que procurem ideais de excelência ou de virtude pessoal mesmo
quando os indivíduos não os entendam como tal e, consequentemente, não os subscrevam”.
Também LUKAS K. SOSOE, “Individu ou communauté: la nouvelle critique du libéralisme
politique“, in Archives de Philosophie du Droit, n.º 33, 1988, p. 89, sustenta que “a teoria política
dos defensores da comunidade não é defensável. (…) Que a solidariedade em relação ao
conjunto de membros da comunidade à qual pertencemos seja um dever moral que se impõe à
nossa consciência individual e até colectiva pode compreender-se. Que se torne a
solidariedade numa obrigação política ou jurídica decorrente da nossa concepção de
comunidade como elemento constitutivo das pessoas que nós somos pode conduzir a
violações muito graves dos direitos individuais e também não se pode defender no plano
filosófico”.
512
ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren
Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, in KritV, n.º 83, 2000, pp. 154 e 155.
513
ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren
Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 155. O Autor esclarece, no
entanto, que não se pode considerar que Winfried Brugger seja um dos Autores “que identifica,
sem mais, o liberalismo com o liberalismo neutral”, uma vez que “em vários escritos ele tem
chamado a atenção para o potencial do Estado liberal para a prossecução de objectivos
morais”.
137
este prossegue objectivos morais”514.
Assim, segundo o Autor a distinção entre liberalismo e comunitarismo
perde, deste modo, sentido. A diferenciação a fazer não é entre comunitarismo
e liberalismo mas sim entre liberalismo neutral e liberalismo perfeccionista515.
De facto, o constitucionalismo liberal não tem de ignorar “os vínculos
familiares e comunitários, nem o modo como os mesmos condicionam a
formação da personalidade”. Apenas deseja evitar que estes sejam
“abusivamente utilizados”, pondo em causa “a igual liberdade e dignidade dos
indivíduos”516. Os defensores do comunitarismo não têm em devida conta a
destrinça entre “comunidade (Gemeinschaft)” e “sociedade (Gesellschaft)”,
reduzindo esta última à primeira. Ao contrário do que sucede com “a
comunidade, a sociedade coloca problemas de coexistência de liberdades que
não se resolvem com a simples referência à natureza social dos sujeitos”517.
3. Liberalismo neutral versus liberalismo perfeccionista
Partindo da perspectiva que acabamos de referir, vamos deixar de lado
a discussão entre comunitarismo e liberalismo e vamos então procurar
aprofundar um pouco mais a discussão entre liberalismo neutral e liberalismo
perfeccionista. A opção pelo neutralismo ou pelo perfeccionismo não é
meramente teórica, tendo “implicações práticas significativas porque, de acordo
com a neutralidade, se não existir alguma justificação neutral com força
suficiente para que uma política seja implementada, esta não deverá sê-lo”518.
O
“background
teórico”
do
neutralismo
contemporâneo
é
o
514
ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren
Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 156.
515
ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren
Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 163.
516
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 167.
517
LUKAS K. SOSOE, “Individu ou communauté, la nouvelle critique du libéralisme politique”, cit.,
pp. 88 e 89.
518
SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, in The Journal of
Political Philosophy, Vol. 14, n.º 1, 2006, p. 111.
138
“antiperfeccionismo da teoria da justiça de John Rawls”519. Nesta, Rawls
procura a “concepção de justiça mais apropriada” para uma sociedade
democrática520. Para tal, utiliza a “posição original” e o “véu de ignorância” de
modo a descortinar, de forma imparcial, “os princípios fundamentais de justiça
de uma ‘sociedade bem ordenada’”521. Para o Autor, “qualquer justificação
adequada de um conjunto de princípios básicos deve ser neutra”, na medida
em que o “’véu de ignorância’” afasta todas as pré-compreensões quanto ao
que deva ser o melhor modo de vida522.
Esse véu “impede que a escolha dos princípios de justiça seja guiada
por certas concepções do bem em detrimento de outras”, pelo que “os
princípios da justiça e a estrutura institucional básica por eles justificada
incluem o valor da neutralidade”. O antiperfeccionismo não defende que “todas
as concepções particulares de bem são igualmente boas”, mas sim que, numa
“sociedade bem ordenada, com uma estrutura básica justa, são admitidas
todas as concepções compatíveis com a justiça”. Segundo o Autor, é por esta
via que se garante “o interesse fundamental de cada indivíduo em viver uma
vida boa contra as tentativas de intromissão por parte de um Estado
perfeccionista”, uma vez que “[e]ste viola o valor liberal de autodeterminação
de cada indivíduo”523.
Em conformidade com isso, o liberalismo político, na acepção de Rawls,
procura determinar como é possível haver “uma sociedade justa e estável”,
cujos “cidadãos livres e iguais” estejam divididos por doutrinas “filosóficas,
religiosas ou morais” conflituantes524. Enquanto “concepção política”, a justiça
como equidade busca “satisfazer a neutralidade de objectivo”, de modo a que
“as instituições básicas e as políticas públicas (…) não sejam elaboradas para
519
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” in JOÃO CARLOS ESPADA
(coord.), Liberdade, Virtude e Interesse Próprio, Publicações Europa-América, Mem-Martins,
1997, p. 76.
520
Mais desenvolvidamente JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça, (trad. CARLOS PINTO
CORREIA), Editorial Presença, Lisboa, 1993, pp. 33 ss;
521
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Uma introdução a Rawls”, in Scientia Iuridica, n.º 294,
2002, p. 414.
522
GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 31.
523
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” cit., pp. 76 e 77.
524
JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, (trad. JOÃO SEDAS NUNES), Editorial Presença,
Lisboa, 1996, p. 33.
139
favorecer qualquer doutrina abrangente particular”525. Para prosseguir tal
objectivo, a concepção de justiça como equidade deverá antes assentar “numa
pluralidade de doutrinas compatíveis com essa concepção de justiça”526.
A teoria rawlsiana parte da “igual liberdade de todos os cidadãos” e
procura evitar que seja imposta uma qualquer “concepção metafísica, holística
e essencialista de verdade objectiva”, o que tem como consequência que o
Estado não possa fazer determinadas opções políticas ou jurídicas, de modo a
garantir que os indivíduos sejam sempre encarados como “agentes morais
livres, iguais e racionais”527. Para Rawls, “o apoio doutrinal à sua concepção
pode ser conceptualizado como um ‘consenso de sobreposição’”. Tal significa
que, mesmo que não haja acordo entre os cidadãos no que se refere “às
doutrinas abrangentes” que preconizam, pode haver concordância quanto a um
“núcleo de valores políticos fundamentais”, que são os “que têm a ver com o
apoio a uma constituição justa, mas também aos aspectos sociais e
económicos da justiça”528. O liberalismo político visa a construção desse
“’consenso razoável’ de modo a permitir o dissenso e a pluralidade ao nível das
opções privadas de cada um”529.
O Autor constrói, então, “um modelo deliberativo de democracia” que
assenta “no uso público da razão” e que sustenta que as decisões tomadas
pelos poderes políticos se devem escorar em razões que possam ser aceites
por todos. Considera, no entanto, que são apenas de aceitar as razões
relativas “aos princípios de justiça”, não devendo ser tida em conta “qualquer
consideração relativa à ideia do bem”530. O liberalismo político pressupõe “que
525
JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, cit., p. 193.
526
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Liberalismo igualitário”, in JOÃO CARDOSO ROSAS (org.), Manual
de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 59.
527
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 145.
528
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Liberalismo igualitário”, cit., p. 60.
529
CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 93.
530
ACÍLIO DA SILVA ESTANQUEIRO ROCHA, “Democracia deliberativa” in JOÃO CARDOSO
ROSAS (org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 163. GEORGE SHER,
Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., pp. 144 e 145, coloca a questão de saber
porque é que será mais difícil saber o que é o bem do que saber o que é o justo. Para o Autor,
tal deve-se ao facto de se entender que normalmente “os julgamentos quanto ao bem são mais
vulneráveis a distorções devidas a preconceitos e preferências estéticas”. No entanto,
considera que, em contrapartida, “serão menos vulneráveis a outros tipos de distorção”. Uma
vez que as questões de justiça “são normalmente levantadas em situações de conflitos de
140
existem muitas doutrinas abrangentes razoáveis concorrenciais, com as
respectivas concepções do bem, cada uma compatível com a plena
racionalidade das pessoas humanas”531.
No seguimento da teoria de Rawls, a “defesa mais explícita” do
neutralismo contemporâneo encontra-se na teoria política de Dworkin que, tal
como Rawls, defende que o perfeccionismo é uma ameaça ao ideal liberal de
autonomia532. O Autor preconiza a neutralidade do Estado liberal, pelo que
considera que as decisões políticas devem ser, na medida do possível,
independentes de qualquer “concepção da vida boa”533.
A crítica basilar que se dirige a Rawls (e aos seus seguidores) é a de
que as normas de direitos fundamentais não resultam de uma “posição
original”, mas antes de uma “’experiência’ histórico-socialmente situada”534. A
posição rawlsiana não atribui a importância devida ao facto inegável de a
origem dos direitos e liberdades se encontrar nas “concepções éticas, políticas
e jurídicas” nas quais se baseiam535. É, então, a constatação de que os
homens não existem “em estado puro”, mas “situada e comprometidamente”,
que fundamenta a oposição a esta perspectiva536.
Por outro lado, os defensores do liberalismo neutral sustentam que o
liberalismo rejeita e prescinde de “qualquer teoria substantiva do bem enquanto
fim determinado para a realização humana”537. Contudo, outra das críticas que
se aponta a esta posição prende-se com o facto de a “estrutura básica” ter a
interesse, as nossas respostas parecem ser mais facilmente influenciadas por emoções como
a inveja, o medo, o egoísmo”, etc.
531
JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, cit.,p. 142.
532
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” cit., pp. 77 e 78. Ver, mais
desenvolvidamente, RONALD DWORKIN, A Matter of Principle, cit., pp. 191 ss.
533
RONALD DWORKIN, “Liberalism”, in STUART HAMPSHIRE (ed.), Public and Private Morality,
Cambridge University Press, Cambridge, 1978, p. 127.
534
FERNANDO J. BRONZE, “Pessoa, Direito e Estado”, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO PEDRO PAIS DE VASCONCELOS – PAULA COSTA E SILVA (orgs.), Estudos em Honra do
Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2008, p. 317.
535
ANTONIO PEREZ LUÑO, “Derechos humanos y constitucionalismo en la actualidad:
continuidad o cambio de paradigma?”, in ANTONIO PEREZ LUÑO (org.), Derechos Humanos y
Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, Marcial Pons, Madrid, 1996, pp. 49 e 50.
536
LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação
da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 51.
537
WILLIAM A. GALSTON, Liberal Purposes. Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State,
Cambridge University Press, Cambridge, 1991, p. 81.
141
sua raiz “num ideal de pessoa que muitos consideram perfeccionista”538.
Entende-se que há uma profunda contradição na teoria de Rawls, uma vez que
esta “não é rigorosamente neutra”. O pluralismo rawlsiano é um “’pluralismo
razoável’, em que só resultam sobrepostas - num ‘consenso de sobreposição’ –
‘doutrinas abrangentes incompatíveis, se bem que razoáveis’”539.
Carlos Santiago Nino considera, por seu lado, que só se logrará “obter
um conjunto de direitos” se se partir de “alguma concepção de bem”. Os
“princípios de justiça” que estão na base dos direitos individuais não decorrem
apenas de um “critério procedimental de aceitabilidade de princípios universais
(…), em condições ideais de racionalidade e imparcialidade”, antes incluem,
necessariamente, “o valor substantivo da autonomia pessoal”540.
O Autor considera que uma posição que defenda que é “necessário
determinar um conjunto de princípios liberais de justiça que sejam neutrais
mesmo em relação aos valores de autonomia e individualidade não parece
oferecer esperança de um desenvolvimento fecundo”541. Ainda que não seja
fácil densificar o princípio da autonomia pessoal, dele retiramos a
indispensabilidade de garantir alguns direitos individuais basilares, que são os
que visam proteger os bens necessários para que o indivíduo possa eleger e
prosseguir os seus próprios “planos de vida”542. Nesse sentido, entende que “o
liberalismo deve avançar uma concepção de bem que inclua de maneira
essencial a autonomia”543.
É em nome de um perfeccionismo liberal que também Joseph Raz critica
o neutralismo. Este Autor defende que “é impossível ser neutral sobre ideais do
bem ou excluí-los completamente enquanto razões para a acção política”. Tal
538
Ver GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 247.
539
LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação
da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 140.
540
CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., pp. 372 e 373. O Autor entende,
no entanto, que “esta concepção da sociedade boa não pode ser ‘rotulada’ de perfeccionismo
sem estar a privar o termo da sua relevância classificatória”, na medida em que este “está
geralmente ligado a concepções que aprovam a interferência na livre adopção de certos ideais,
mesmo que estes não ponham em causa uma adequada distribuição da autonomia pessoal”.
Nesse sentido, ver CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 136.
541
CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 372.
542
CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 145.
543
CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 374.
142
deve-se ao facto de “não ser possível distinguir a moralidade em relação ao
próprio da moralidade intersubjectiva”544.
Assim, o perfeccionismo político, que defende que “a acção do Estado
deve ter como um dos seus objectivos a promoção de formas de vida
moralmente valiosas”, volta a ser hoje sustentado. No entanto, os seus
seguidores situam-se “na tradição do pensamento político liberal, com o qual
partilham a maioria das posições substantivas acerca dos valores que devem
presidir à ordenação da sociedade política e do desenho institucional que deve
configurá-la”.
O
“perfeccionismo
liberal”
afasta-se
do
“perfeccionismo
tradicional” em dois aspectos essenciais: por um lado, na“ defesa do pluralismo
valorativo” e, por outro, no papel atribuído à “autonomia pessoal” enquanto
elemento essencial de uma “vida boa”545.
Os Autores que se inserem nesta linha de pensamento entendem que a
solução perfeccionista é a mais adequada, tanto por ser a que melhor se
concilia com a prática dos Estados liberais actuais, como pelo “seu valor crítico
na formulação de juízos de moral política sobre questões debatidas nesse
âmbito”. Ao contrário da “filosofia política liberal dominante [que] procura,
seguindo as perspectivas de Mill e Rawls, separar, em maior ou menor medida,
a
moral política
da
moral pessoal”, considerando
que
são
apenas
limitadamente transponíveis para a moral política “as concepções de vida boa
que, enquanto cidadãos, defendemos na nossa moral pessoal”, a crítica
perfeccionista contesta “a distância entre os aspectos público e privado da
moral para defender que uma boa política deve basear-se substancialmente
em considerações sobre a vida boa próprias da moral pessoal”546.
Tal como algum liberalismo neutral, também Raz atribui um papel central
à autonomia individual, pelo que se distancia “de uma ideia de ‘bem comum’
correspondente a uma concepção determinada do bem”, sustentada por
“determinadas vertentes do comunitarismo contemporâneo”. Apesar disso, Raz
interpreta diferentemente “a ideia liberal de autonomia”. Esta “não é desejável
544
CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 133.
545
JOSÉ LUIS COLOMER, “Autonomía y Gobierno. Sobre la posibilidad de un perfeccionismo
liberal”, in DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 24, 2001, pp. 252 e 264.
546
JOSÉ LUIS COLOMER, “Autonomía y Gobierno. Sobre la posibilidad de un perfeccionismo
liberal”, cit., pp. 252 e 253.
143
porque permite a escolha (…) das concepções individuais de bem”, mas sim
porque “está associada a valores defensáveis em si mesmos”, competindo ao
Estado “favorecer as concepções do bem que são válidas e desfavorecer as
que o não são”. No entanto, o Autor considera que “existe uma pluralidade de
concepções do bem válidas”, pelo que o “ideal de autonomia”, para além do
perfeccionismo, “requer também o pluralismo moral”547.
Para Raz, o liberalismo deve encarar a liberdade pessoal “como um
aspecto da vida boa”. Em conformidade com isso, a moralidade que preconiza
“pressupõe um pluralismo competitivo”, ou seja, “pressupõe que as pessoas
devam ter à sua disposição várias formas ou estilos de vida que incorporam
virtudes incompatíveis que não só não podem ser realizadas numa vida como
tendem a gerar intolerância mútua”548.
Por outro lado, o Autor entende que “a doutrina da liberdade baseada na
autonomia pressupõe o harm principle”549. A interpretação que faz do princípio
vai no sentido de o compreender “não como uma forma de limitar a
prossecução de objectivos morais pela parte do Estado”, mas antes apontando
a medida em que este “pode promover o bem-estar das pessoas”. Uma vez
que, para a perspectiva em análise, a autonomia assume um papel
fundamental, o Estado não deve obrigar os seus cidadãos a actuar de acordo
com uma determinada concepção moral. Aquilo que lhe compete fazer é
apenas “criar as condições de autonomia”. Desta feita, “o uso de coacção,
porque implica uma ingerência na autonomia e desrespeita o propósito de a
promover”, apenas deve acontecer quando se vise garantir a manutenção
dessa mesma autonomia ou prevenir danos em terceiros. Assim entendido, “o
harm principle permite políticas perfeccionistas desde que estas não recorram
à coacção”, estabelecendo “um limite quanto aos meios a utilizar para
prosseguir ideais morais. Tais ideais podem ser prosseguidos através de meios
547
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?” cit., pp. 80 e 81.
548
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, Clarendon Press, Oxford, 1986, pp. 265, 424 e 425.
549
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., pp. 425 e 426. Estamos aqui a referir-nos ao
princípio do dano de Mill, segundo o qual o Estado só pode interferir na liberdade dos cidadãos
quando vise evitar danos em terceiros. Nas palavras do Autor, “o próprio bem, físico ou moral,
não é justificação suficiente para que o indivíduo seja obrigado a agir ou a obedecer. A única
parte da conduta por que este é responsável perante a sociedade é a que diz respeito aos
outros”. Ver JOHN STUART MILL, Sobre a liberdade, cit., p. 17.
144
políticos, mas não através do uso de coacção, excepto quando esse uso tenha
em vista prevenir um dano”550.
Assim, têm-se verificado nos últimos anos, “na cultura política e jurídica
anglo-saxónica”, (…) algumas tentativas mediadoras entre a concepção
axiológica atomista, descontextualizada e a-histórica atribuída aos liberais e as
identidades colectivas, concretas e históricas convencionalmente associadas
ao comunitarismo”. Outro desses exemplos é William Galston, que defende que
o Estado constitucional liberal deve prosseguir determinados valores que
derivam de “um núcleo de ideias ético-políticas concreto e historicamente
determinado, que é responsabilidade dos poderes públicos comunicar aos
cidadãos através da educação cívica”. Esta perspectiva opõe-se claramente à
de Rawls, que, como vimos, considera que “’deve ser posta de parte a
esperança numa comunidade política unida na afirmação de uma única
doutrina omnicompreensiva’”551.
Galston rejeita também a tese da neutralidade e entende que o
liberalismo “assenta, de facto, numa determinada concepção do bem humano”.
Esta posição afasta-se, no entanto, do perfeccionismo da antiguidade clássica,
na medida em que não tem a pretensão de descrever qual a melhor forma de
vida para todos os seres humanos552.
Para o Autor, a teoria liberal do bem visa facultar “uma base partilhada”
que sirva de rumo para a determinação das políticas públicas. Tal não quer
dizer, no entanto, que essa concepção do bem possa ser imposta aos
indivíduos através da coerção estatal. É essencial estabelecer uma
diferenciação entre “políticas públicas dirigidas a criar capacidades e
oportunidades”, e “a condução de planos de vida individuais”, o que demonstra
que “o liberalismo pode abraçar simultaneamente o respeito pela actuação
550
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 420.
551
ANTONIO PEREZ LUÑO, “Derechos humanos y constitucionalismo en la actualidad:
continuidad o cambio de paradigma?”, cit., pp. 47 e 48.
552
WILLIAM A. GALSTON, Liberal Purposes. Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State,
cit., p. 8. De facto, “Platão e Aristóteles e a tradição cristã” localizam-se no lado das
concepções de bem que sustentam “que existe apenas uma concepção deste tipo susceptível
de ser reconhecida por todos os cidadãos que são plenamente razoáveis e racionais”. Partindo
do “pensamento grego, a tradição dominante parece ter sido durante longo tempo a de que só
existe uma concepção razoável e racional do bem. O objectivo da filosofia política (…) seria
então a determinação da sua natureza e conteúdo”. Ver JOHN RAWLS, O Liberalismo Político,
cit., p. 142.
145
individual e por uma concepção do bem”553.
Finalmente, Martha Nussbaum, seguindo Amartya Sen no que designa
por “capability aproach”, sustenta que, para assegurar a todos os seres
humanos a liberdade de conformarem a sua própria vida, aquilo que se deve
ambicionar “não é que estes ajam de uma determinada maneira, mas antes
que sejam capazes de agir de uma determinada maneira”. Partindo desta ideia,
a Autora “coloca a ênfase nas capabilities, ou seja, na oportunidade que as
pessoas têm de agir das melhores formas possíveis”554.
Esta “abordagem normativa” defende que “a tarefa central de uma
Constituição e da tradição legal que a interpreta é a de garantir a todos os
cidadãos os pré-requisitos de uma vida merecedora de dignidade humana – um
grupo nuclear de capabilities – em áreas de importância fundamental para a
vida humana”555. Estas “capabilities” devem ser convertidas em garantias
constitucionais, a desenvolver pelo legislador, “independentemente da
concepção de bem que os indivíduos prossigam”556. A Autora identifica,
consequentemente, uma lista muito reduzida de direitos que devem ser
reconhecidos a todos os cidadãos “enquanto direitos básicos de uma
sociedade justa”. No que está para lá dessa lista, “cabe às pessoas fazer as
suas próprias escolhas com base nas suas diferentes perspectivas do que é
uma vida boa. Para além disso, na medida em que estes direitos básicos são
entendidos como capabilities e não como funções ou acções, o facto de serem
atribuídos a uma determinada pessoa não implica que esta os utilize”557.
A capabilities aproach defende que os poderes públicos devem
553
WILLIAM A. GALSTON, Liberal Purposes. Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State,
cit., pp. 178 e 179. GEORGE SHER, Beyond Neutrality. Perfectionism and Politics, cit., p. 248,
entende, por seu lado, que “não há nada a ganhar e há muito a perder com a imposição de
limites artificiais às razões” que os poderes públicos podem e devem ter em conta quando
tomam decisões.
554
SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s
Capability Approach”, in Review of Political Economy, Vol. 14, n.º 4, 2002,
http://opus.bath.ac.uk/462/1/RevPolEco 2002.pdf (última visita a 12.04.2010), pp. 6 e 7.
555
MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and
Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, in Harvard LR, Vol. 121, n.º 4, 2007, p. 7.
556
SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s
Capability Approach”, cit., p. 10.
557
MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and
Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., p. 20.
146
“promover um grupo de condições básicas necessárias para vidas que se
possam razoavelmente realizar, vidas merecedoras de dignidade humana”.
Caso não se atinja esse objectivo, o Estado deve ser responsabilizado e “não
se alcançou a justiça mínima”558.
Perante tudo isto, resta-nos agora tomar uma posição quanto à
concepção do Estado que nos parece mais consentânea com a nossa ordem
jurídica: se uma concepção que estabelece como objectivo a prossecução de
ideais morais (perfeccionismo) ou uma concepção que nega tal possibilidade
ao Estado (liberalismo neutral)559. A questão que temos que colocar é, então, a
de determinar se a liberdade individual é “compatível com a busca e assunção
de virtudes públicas”, ou se essa busca deve “ser entendida como uma ameaça
à liberdade e à tolerância”560.
558
MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and
Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., p. 24. Ainda que inicialmente a Autora
assuma expressamente que esta abordagem é perfeccionista, na medida em que as
capabilities devem ser promovidas pelo Estado (saúde, acesso à educação, etc),
independentemente daquela que seja a vontade das pessoas (embora seja um perfeccionismo
liberal, “na medida em que a tarefa das instituições públicas não é promover essas ‘perfeições’
da vida humana, mas antes criar as oportunidades para [as] exercer”), nos últimos anos tem
vindo a modificar a sua posição, uma vez que passou a enquadrar esta abordagem (capability
approach) dentro do contexto do liberalismo político rawlsiano. Consequentemente, passou a
considerar que as capabilities “devem ser promovidas pelo facto de serem o meio através do
qual cada ser humano escolherá a sua própria concepção do bem”. Nesse sentido, SÉVERINE
DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s Capability
Approach”, cit., pp. 2, 7, 9 e 10.
559
O TC não assumiu expressamente uma posição quanto a esta discussão. Efectivamente, no
Acórdão n.º 617/06, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html, relativo ao
referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, diz o seguinte: “A reflexão sobre valores
numa sociedade democrática, pluralista e de matriz liberal quanto aos direitos fundamentais
tem sido objecto privilegiado do pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se
na ideia de um “consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por John
Rawls (…). O Autor concebe a possibilidade de um consenso sobre valores políticos, como o
respeito mútuo ou a liberdade, sem o sacrifício de valores mais abrangentes e de visões
particulares, mas a partir da diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções
religiosas podem confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores
estritamente políticos. Ora, independentemente de se aceitarem as teses resultantes da
referida orientação, não poderá deixar de se registar que a discussão sobre valores induz a
reconhecer que a possibilidade de um Estado de Direito democrático os impor é problemática.
Uma tal imposição não se legitima na mera evidência intuída pela consciência individual, num
mandato divino ou até na decisão discricionária do poder político, ainda que legitimado pela
maioria. A decisão sobre valores é fundamentante do Estado de Direito e não está arredada da
discussão democrática, orientada por regras de liberdade, igualdade de oportunidades,
participação política efectiva e limites lógicos à autocontradição (cf. Arthur Kaufmann (…), onde
se lê que “só na livre discussão de opiniões a verdade tem uma chance” e que “a indagação da
verdade é um problema de liberdade”).”
560
JOÃO CARLOS ESPADA, A Tradição da Liberdade, Principia, Cascais, 1998, p. 116.
147
A posição defendida pelo liberalismo neutral “não é, sem mais,
evidente”. O liberalismo e o perfeccionismo não têm necessariamente de se
opor, na medida em que “também o estado liberal tem a possibilidade (e,
dependendo da sua conformação constitucional, o dever) de promover
objectivos morais”. Tal não torna, no entanto, a Constituição comunitarista,
desde que esta compreenda, no sentido liberal, “a autonomia individual, a
igualdade moral e a universalidade, enquanto inerentes à ideia de direito
moral”561.
Parece-nos efectivamente que se o respeito pelos indivíduos e pela sua
autonomia é fundamental em Estado de Direito, tal poderá implicar que os
poderes públicos sejam “não-neutrais” no que diz respeito a diferentes
“concepções do bem”. Sendo a autonomia um valor central na nossa ordem
jurídica, então será de exigir ao Estado “que não seja neutral entre concepções
de bem que valorizam a escolha autónoma e as que não o fazem”562.
Por outro lado, os preceitos relativos aos direitos fundamentais
traduzem o reconhecimento de “bens ou valores” importantes para uma dada
comunidade e que justificam esses mesmos preceitos563. O “núcleo principial”
do
Estado
Constitucional
“é
fruto
(…)
de
um
processo
longo
de
‘experimentação’ e ‘aprendizagem’”, sendo a Constituição “o espelho dos
valores fundamentais (…) de uma comunidade política”564.
Existe,
então,
uma
“unidade
de
sentido
cultural
nos
direitos
fundamentais”, o que não significa, no entanto, a aceitação de “uma
determinada teoria dos valores” ou “o reconhecimento de uma ordem de
561
ULRICH R. HALTERN, “Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren
Entwicklungen in der deutschen Verfassungstheorie”, cit., pp. 161 – 162.
562
ANDREW D. MASON, “Autonomy, liberalism and State Neutrality”, in The Philosophical
Quarterly, Vol. 40, n.º 160, p. 452.
563
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 100.
564
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., pp. 713 e 714. Este Autor
considera que “a dimensão valorativa do ‘constitucionalismo adequado’ exige que o sistema
jurídico seja compreendido como um sistema autónomo mas aberto à Moral”. Autónomo
porque “possui uma lógica própria, um código autónomo, em função do qual opera as suas
escolhas e estabelece as comunicações com outros subsistemas”. Aberto “porque os
conceitos-chave do sistema apresentam-se como uma expressão de racionalidade prática,
obrigando a pontes normativas entre a Ética e o Direito”. Nesse sentido, ver JOÃO LOUREIRO,
O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., pp. 172 e
173.
148
valores hierárquica, abstracta e fechada”, sendo “a ordem constitucional dos
direitos fundamentais uma ordem pluralista e aberta”565.
É o princípio da dignidade da pessoa humana que confere essa
“unidade de sentido” aos direitos fundamentais566. Tal implica que devamos
partir de uma concepção de bem que “inclua de maneira essencial a
autonomia”567, uma vez que o princípio da dignidade se consubstancia
precisamente na ideia de (igual) autonomia. Seguindo Raz, entendemos que
esta não é apenas defensável por permitir a cada um optar por uma
determinada “concepção de bem”, mas sim porque “está associada a valores
defensáveis em si mesmos”. No entanto, como vimos também, o Autor
considera que não existe apenas uma concepção do bem válida, pelo que a
atribuição de um papel central à dignidade e à autonomia individual exige
também “o pluralismo moral”568. O “fundamento do próprio pluralismo” está no
reconhecimento da dignidade de todos569.
Assim, o Estado plural não tem necessariamente de ser um Estado
neutral570. O “princípio do pluralismo” obriga o Estado a assegurar aos seus
565
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 100 e 101. Considerando que “a transformação da teoria dos valores numa
teoria dos princípios evita a temida ‘tirania dos valores’ sem se cair numa (impossível)
indiferença aos valores”, ver JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a
Eficiência e a Garantia dos Particulares, cit., p. 162. Defendendo que um dos topoi centrais da
moderna teoria da Constituição é a abertura material e a abertura ao tempo da Constituição,
ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, cit.,
pp. 146 ss.
566
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 103. JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a
Garantia dos Particulares, cit., p. 174, refere também que “no Estado Constitucional
Democrático as Constituições incorporam valores e princípios do Direito Justo (…), cuja
referência última é a dignidade da pessoa humana”. Ver também JORGE MIRANDA, Manual de
Direito Constitucional, cit., p. 197. FERNANDO J. BRONZE, A Metodonomologia entre a
Semelhança e a Diferença (Reflexão Problematizante dos Pólos da Radical Matriz Analógica
do Discurso Jurídico), Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 76, considera que a “pressuposição
da dignidade da pessoa” atesta a “dimensão ética do Direito”; LUÍS PEDRO PEREIRA
COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito
Constitucional, cit., p. 551, entende que “o Direito enquanto Direito reflecte uma ideia
parametrizadora de bem”, que é a dignidade humana.
567
CARLOS S. NINO, “Liberalismo versus Comunitarismo”, cit., p. 374.
568
JOÃO CARDOSO ROSAS, “Deverá o Estado liberal ser neutro?”, cit., pp. 80 e 81.
569
LUÍS PEDRO PEREIRA COUTINHO, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação
da Validade do Direito Constitucional, cit., p. 144.
570
Defendendo, no entanto, a ideia de neutralidade ética do Estado, ver PAULO MOTA PINTO,
“Nota sobre o ‘imperativo de tolerância’ e seus limites”, in Estudos em Memória do Conselheiro
149
cidadãos, “por intermédio da democracia e dos direitos fundamentais, ‘certos
espaços de autodeterminação em que [os poderes políticos e sociais] não
podem entrar’”. Por seu lado, “o princípio da neutralidade” impõe que o Estado
“escolha, em cada caso concreto, soluções inteiramente neutras em relação às
autocompreensões individuais e colectivas”. Daqui se retira que “o Estado
contemporâneo está subordinado ao princípio do pluralismo; não está, no
entanto, subordinado ao princípio da neutralidade”571.
As
democracias
pluralistas
devem
garantir
“os
princípios
da
heterogeneidade, da autonomia e da tolerância”, o que quer dizer que não há
“verdade total”, um “caminho único para a felicidade”, ou “condutores
iluminados que dirijam os homens nessa via de salvação”572. O pluralismo, seja
“religioso, mundividencial ou político”, é uma característica essencial de um
mundo livre, no qual devem “coexistir amigavelmente pessoas com convicções,
mundividências e valores muito distintos”573.
A nossa Constituição garante a “diversidade de convicções éticas,
religiosas
e
filosóficas”,
através
da
consagração
de
vários
direitos
fundamentais, como é maxime o caso do direito ao desenvolvimento da
personalidade, mas também do direito à imagem, à palavra ou das liberdades
de consciência, religião e culto. Constitui-se, deste modo, uma “sociedade
aberta plural”, através do “reconhecimento de uma autonomia ética do
Luís Nunes de Almeida, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 760 – 762, que estabelece que “a
ideia de neutralidade ética do Estado, e de um correspondente imperativo de subordinar a
actuação pública aos limites do ‘justo’ em vez de a particulares concepções do ‘bem’,
corresponde a uma concepção liberal e aberta da Constituição, e constitui um ponto central da
teoria e do Direito Constitucional, perante o crescente facto do pluralismo ético em sociedades
não formalmente estratificadas, como a maioria das sociedades contemporâneas. O domínio
de protecção dos direitos fundamentais tem de ser interpretado segundo pontos de vista
neutrais, com validade geral, não confessionais ou vinculados a certas mundividências,
garantindo que a protecção da liberdade não seja logo à partida limitada a um certo uso
correcto da liberdade.“
571
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 163.
572
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Pluralismo”, in Pólis – Enciclopédia Verbo da
Sociedade e do Estado, Vol. 4, Editorial Verbo, Lisboa, 1986, p. 1286. FERNANDO J. BRONZE,
A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão Problematizante dos Pólos da
Radical Matriz Analógica do Discurso Jurídico), cit., p. 267, defende que em democracia todas
as pessoas, iguais em dignidade, devem ver as suas diferenças respeitadas.
573
FRANZ JOSEF WETZ, Die Würde der Menschen ist antastbar. Eine Provokation, Klett-Cotta,
Stuttgart, 1998, p. 102.
150
indivíduo”574. Nas sociedades pluralistas actuais, que assimilam uma
multiplicidade de “grupos sociais com interesses, ideologias e projectos
distintos”, cabe à Constituição “não a tarefa de estabelecer directamente um
projecto pré-determinado de vida em comum, mas antes a de realizar as
condições de possibilidade da mesma”575. Numa perspectiva pluralista, os
poderes públicos devem ter em consideração que muitas controvérsias que são
chamados a resolver não representam “o conflito entre o bem e o mal, mas
antes o conflito entre o bem e o bem”576.
Por outro lado, parece-nos também relevante a ideia de que os direitos
fundamentais devem ser entendidos como “capabilities”.577 No fundo estes
direitos devem conferir as “condições para uma vida autónoma”, na medida em
que a “capabilities aproach” defende que cabe aos Estados promover um
conjunto de condições básicas que permitam a realização pessoal dos
indivíduos. No entanto, o facto de estas condições serem atribuídas não implica
que os indivíduos sejam obrigados a gozá-las578, ou pelo menos não implica
que tenham de o fazer a partir do momento em que a ordem jurídica lhes
confere capacidade para tomar essa decisão.
4. Perfeccionismo versus paternalismo
Finalmente, deve também distinguir-se o perfeccionismo político de
políticas paternalistas. Como vimos, para o perfeccionismo é legítimo que o
Estado promova “certos modos de vida ética” e desincentive outros579. Num
574
MIGUEL PRATA ROQUE, “Sociedade aberta e dissenso. Contributo para a compreensão
contemporânea do princípio do pluralismo político”, in Homenagem ao Prof. Doutor André
Gonçalves Pereira, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 379 e 385.
575
GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, cit., pp. 13 e 14.
576
WILLIAM A. GALSTON, Liberal Pluralism. The Implications of Value Pluralism for Political
Theory and Practice, Cambridge University Press, Cambridge, 2002, pp. 68 e 69; também
WILLIAM A GALSTON, “Value Pluralism and Political Liberalism”, cit., p. 59.
577
MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and
Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., p. 20.
578
MARTHA C. NUSSBAUM, “The Supreme Court 2006 Term. Foreword: Constitutions and
Capabilities: ‘Perception’ against lofty Formalism”, cit., pp. 20 e 24.
579
ROBERTO MERRILL – VINCENT BOURDEAU, “Republicanismo”, in JOÃO CARDOSO ROSAS
151
quadro perfeccionista, cabe aos poderes públicos “criar instituições (legais,
económicas e sociais)” nas quais os “bens” que constituem “a vida humana
boa” se possam realizar, independentemente da questão de saber se as
pessoas estão ou não de acordo com isso. Consequentemente, para essa
promoção o perfeccionismo poderá favorecer o uso da coacção estadual, razão
pela qual foi muitas vezes “assimilado ao paternalismo, de acordo com o qual a
liberdade e a autonomia da pessoa podem ser restringidas para o seu próprio
bem”580.
Contudo, o perfeccionismo não pressupõe necessariamente medidas
paternalistas581. Em bom rigor, “nem toda a acção perfeccionista implica a
imposição coactiva de uma forma de vida”, já que “grande parte dela pode
consistir em estimular ou facilitar a acção desejada ou desencorajar as
condutas indesejadas”582.
Partindo precisamente desta distinção, Simon Clarke defende uma via
intermédia, designada “neutralidade apenas para o paternalismo” e que se
traduz no seguinte: “no que diz respeito ao paternalismo, o Estado deve ser
neutro, mas a neutralidade não é uma exigência para as políticas não
paternalistas”. Assim, segundo o Autor, “nem todo o perfeccionismo é
paternalista”. A “essência do paternalismo” assenta em dois pressupostos: o
primeiro é que este “exclui uma opção ou impõe uma escolha”; o segundo é
(org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p.119.
580
SÉVERINE DENEULIN, “Perfectionism, Liberalism and Paternalism in Sen and Nussbaum’s
Capability Approach”, cit., pp. 2 e 3.
581
CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 299, por exemplo, separa os dois
conceitos na medida em que entende que uma política perfeccionista “contraria o princípio da
autonomia, uma vez que favorece a imposição coerciva de concepções do bem ou modelos de
excelência humana”, enquanto uma política paternalista “é compatível com esse princípio, na
medida em que apenas procura facilitar a conquista pelo indivíduo da sua própria concepção
de bem”. Parece-nos, no entanto, que esta perspectiva define o perfeccionismo como excluindo
necessariamente as formas mais moderadas de perfeccionismo liberal que referimos e que
atribuem um papel central à ideia de autonomia e, por outro lado, é demasiado redutora na
medida em que pressupõe que as medidas paternalistas apenas visam facilitar a conquista
pelo indivíduo da sua própria concepção de bem.
582
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 161. A crítica que alguns Autores fizeram a
esta opção é a de que “tanto a imposição de cargas fiscais como a concessão de subvenções”,
por exemplo, “implicam interferir nos custos de oportunidade das diferentes opções abertas à
escolha individual, modificando-os artificialmente”. Ver JOSÉ LUIS COLOMER, “Autonomía y
Gobierno. Sobre la posibilidad de un perfeccionismo liberal”, cit., p. 282;
152
que essa escolha se exclui ou se impõe “para o bem da própria pessoa”583.
As políticas perfeccionistas que não se enquadram no primeiro
pressuposto do paternalismo “são as acções estaduais motivadas por
considerações perfeccionistas que, em vez de restringir, aumentam as
possibilidades de escolha”. Para quem defende a neutralidade do Estado, este
tipo de políticas não é admissível, uma vez que “assenta numa concepção do
bem”, mas já será de aceitar pela “neutralidade apenas em relação ao
paternalismo”. Por outro lado, um tipo de acção estadual na qual o segundo
pressuposto do paternalismo não se preenche é “a restrição da liberdade de
uma pessoa para o bem perfeccionista dos outros”584. Também este tipo de
medidas seria de excluir pelo neutralismo em geral mas não pela “neutralidade
em relação ao paternalismo”. Os poderes públicos poderão, inclusivamente,
“ter um dever de agir de forma perfeccionista” nestas situações. Finalmente, a
neutralidade apenas em relação ao paternalismo sustenta que “é ilegítimo o
paternalismo
estadual
motivado
por
considerações
perfeccionistas”585.
Consequentemente, esta construção reforça aquilo que dissemos, no sentido
de que mesmo que se defenda um liberalismo perfeccionista, tal não tem
forçosamente de implicar que se considerem legítimas medidas estaduais
paternalistas.
O paternalismo jurídico, como já referimos, parte da ideia de que o
Estado poderá, justificadamente, “estabelecer uma proibição ou uma imposição
legal mesmo contra a vontade do destinatário, quando esta seja essencial para
afastar um dano (físico, psíquico ou económico)”586. No entanto, nem sempre
583
SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, cit., p. 117.
Também ANDREW VON HIRSCH, “Direkter Paternalismus: Sollten Selbstschädigungen bestraft
werden?”, in MICHAEL ANDERHEIDEN – PETER BÜRKLI – HANS MICHAEL HEINIG – STEPHAN
KIRSTE – KURT SEELMANN, Paternalismus und Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2006, p. 236,
sustenta que “as intervenções paternalistas têm duas características: em primeiro lugar
referem-se ao bem da própria pessoa; em segundo lugar implicam coacção”.
584
Este Autor dá como exemplo a não-permissão de destruição de edifícios com valor histórico
pelos seus proprietários.
585
SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, cit., p. 118.
Segundo o Autor, exemplo disso é forçar uma testemunha de Jeová a fazer uma transfusão de
sangue pois isso violaria a sua própria concepção de bem. A neutralidade apenas em relação
ao paternalismo proíbe tais políticas.
586
ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, in
Rechtstheorie, n.º 18, 1987, pp. 273 e 274. Segundo o Autor, é esse o caso da proibição de
venda de droga e da inabilitação ou interdição de pessoas portadoras de uma deficiência,
153
as medidas paternalistas instituídas visam apenas evitar que a própria pessoa
sofra um dano. Poderá ser também um propósito deste tipo de medidas proibir
determinadas acções por estas se considerarem “intrinsecamente imorais”587.
O paternalismo é, desde logo, suspeito na perspectiva dos direitos
fundamentais porque põe em causa o conteúdo de autonomia neles presente,
ao permitir que essa autonomia apenas se exerça se se dirigir à promoção do
próprio bem588. Em virtude disso, coloca-se a questão de determinar se existem
tipos de paternalismo jurídico que se podem “eticamente justificar”589.
Convém, antes do mais, distinguir os casos de verdadeiro paternalismo
dos casos de “falso paternalismo”. As situações de falso paternalismo dizem
respeito a medidas restritivas impostas à prática de determinados actos que
não afectam, directamente, interesses de terceiros, mas que, ainda assim,
poderão implicar custos para a colectividade. Em virtude disso, o falso
paternalismo, ao contrário do verdadeiro paternalismo, que origina o
estabelecimento de uma proibição ou de uma imposição legal contra a vontade
do destinatário para o seu próprio bem, não visa proteger a pessoa de si
própria, antes se baseando “na análise dos custos sociais que decorrem da
realização de certos riscos”590.
alcoólicos ou toxicodependentes, das disposições relativas à obrigatoriedade do uso de
capacete ou cinto de segurança, ou que proíbem nadar em praias não vigiadas, da proibição
de compra livre de certos medicamentos e das leis que proíbem determinados jogos de sorte.
587
Exemplos disso são a proibição da homossexualidade entre adultos, de sex-shows ou
actividades sexuais sadomasoquistas. Ver ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann
Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 274 e 275.
588
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 58.
589
Esta é precisamente a pergunta colocada no título do artigo de ERNESTO GARZÓN VALDÉS,
“Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 273 ss.
590
CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même.
Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 143. O TC português, no Acórdão 99/02,
http://w3.tribunalconstitucional.pt/ acordaos/acordaos02/1-100/9902.htm, relativo à lei do Jogo,
estabelece que “a punição penal da exploração de jogos de fortuna ou azar não autorizados
não se destina primacialmente a impedir a prática de uma actividade – o jogo – considerada
moralmente reprovável. Com efeito, o fundamento ético-social do sancionamento penal do jogo
de azar não se encontra tanto na necessidade de proteger o jogador contra as inclinações,
gostos ou vícios que lhe podem – e normalmente são – prejudiciais, quanto na necessidade de
reprimir a prática de uma actividade que constitui objecto de uma significativa reprovação
social, do ponto de vista ético, tendo em conta os males e prejuízos para a própria sociedade
que se considera encontrarem-se-lhe associados – por exemplo, acréscimo de burlas, usuras e
fraudes, bem como de litígios e violências, facilitando o alastramento do crime organizado;
significativa perturbação da vida familiar dos jogadores, com repercussão na capacidade de
manutenção e educação dos filhos; ou, ainda, possibilidade de incidência negativa no domínio
154
De facto, “a intervenção positiva do Estado, através de medidas
legislativas, na esfera da autonomia pessoal do cidadão só se justifica, (…) [em
princípio], com o propósito de salvaguardar valores de interesse colectivo - que
podem, no contexto actual de escassez de meios (…) traduzir-se no equilíbrio
orçamental”591. Assim, ainda que a liberdade geral de acção compreenda “a
possibilidade de adopção de actividades perigosas ou arriscadas”, não pode,
no entanto, tendo em conta os possíveis encargos que daí possam advir para a
comunidade, “excluir-se a possibilidade de intervenção estatal, mesmo que a
integridade de terceiros não seja imediatamente posta em causa”592.
Em Estado social democrático de Direito, parece, então, fazer sentido
considerar que “a repercussão dos custos sociais na colectividade por
condutas ‘temerárias’ pode justificar a imposição de restrições – limitações, não
proibições – desde que assentes em parâmetros de proporcionalidade”593.
das relações laborais ou económicas dos jogadores”.
591
CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era
tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, in Scientia Iuridica, Tomo LXLL, n.º 315, 2008,
pp. 422 e 423; CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soimême. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 144. Fora destes casos a Autora sustenta que
só se poderão justificar medidas de defesa da pessoa contra si própria quando haja risco para
a saúde ou segurança dos sujeitos aos quais se impõem essas medidas e esse risco seja
grave e certo. Parece-nos, no entanto, que nesses casos a defesa da pessoa contra si própria
é mais problemática. Por exemplo, nas situações em que testemunhas de Jeová se negam a
fazer uma transfusão de sangue, mesmo que se esteja perante um risco grave e certo para a
saúde, ainda assim tem-se entendido que deve prevalecer a decisão autónoma do doente.
Sobre esta questão, defendendo que quando se trate de um adulto consciente que não
autoriza a transfusão tal decisão deve ser respeitada, uma vez que “esta recusa está tutelada
pelos limites legítimos do princípio da autonomia da vontade do doente”, ver STELA MARCOS
DE ALMEIDA NEVES BARBAS, Direito ao Genoma Humano, Almedina, Coimbra, 2007, p. 382 ss;
também, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação MédicoPaciente. Estudo de Direito Civil, cit., pp. 503 ss; ver ainda o Parecer do Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida – Parecer 46/CNECV/05, http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres
/70D6F7C0-DADC-4475-AA603911837E0FFC/0/P046_ParecerTestemunhasJeova.pdf. Já nos
parece, no entanto, que o critério da certeza e gravidade do risco poderá ser útil para aferir se
há efectivamente um interesse público ou de terceiros que possa justificar uma restrição da
liberdade. Assim, ainda que este critério por si só não deva justificar medidas paternalistas,
poderá ser um instrumento relevante nos casos que a Autora designa de falso paternalismo
para aferir se efectivamente se justifica a medida restritiva.
592
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 202, nota
144.
593
CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era
tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, cit., pp. 421 e 422, que dá como exemplo “o
caso de aplicação de multa por condução sem cinto de segurança”. Esta Autora afirma que a
alternativa à obrigação de utilização de cintos de segurança seria “a dessocialização do risco
de acidente”, obrigando os condutores que não quisessem utilizá-lo a ter um “seguro contra
todos os riscos”. Tal significaria, no entanto, “no quadro da prestação pública universal de
155
Torna-se, por isso, imprescindível aferir se a medida em causa respeita o
princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso nas suas três
vertentes: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido
restrito. Ainda que se admita “a necessidade abstracta da imposição”, esta
deve “ser adequada ao fim em vista”, “concretamente necessária para que se
consiga realizar esse fim (num quadro de ponderação de alternativas)” e deve
ser proporcional em sentido restrito: a medida “não deve ser intolerável nem
deve anular totalmente o direito em causa”594.
De todo o modo, convém ressalvar que a determinação das situações
em que a repercussão dos custos sociais na colectividade pode justificar a
cuidados de saúde, tornar a liberdade individual refém de recursos económicos”. Ver também
CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques
topiques pour un débat“, cit., pp. 142 e 143. REINHARD SINGER, “Die Lehre vom
Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 187, considera que
neste caso há interesses de terceiros a tutelar, na medida em que os custos suplementares
advenientes do não-uso recaem sobre todos. RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA,
“Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p.
262, sustentam que a obrigatoriedade de uso de cinto de segurança e de capacete se
justificam pelo facto de o legislador estar vinculado “a um princípio de prevenção activa, nos
termos do qual devem todas as actividades que impliquem riscos significativos para as pessoas
nelas envolvidas (…) ser objecto de uma regulação jurídica destinada a controlar esses
mesmos riscos”. EDUARDO MAIA COSTA, “Obrigatoriedade do uso de cinto de segurança –
constitucionalidade”, in RMP, Ano 7, n.º 27, 1986, p. 101, considera que a sujeição dos que
praticam actividades perigosas “às normas de segurança não constitui qualquer violação dos
direitos fundamentais”, desde que estas “sejam adequadas a evitar a produção de perigos”.
JOSÉ CASALTA NABAIS, “Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais”, in
ANTUNES VARELA – DIOGO FREITAS DO AMARAL – JORGE MIRANDA – JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO (orgs.), Ab Uno Ad Omnes, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 94 e 95, entende
que estamos perante um “excessivo paternalismo” na exigência de cinto de segurança dentro
das localidades e em zonas com limites máximos de velocidade relativamente baixos, em que
o Estado aparece a garantir “a segurança do cidadão contra si próprio”. Também CHRISTIAN
HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 102, refere que contrariamente
ao que o Tribunal Constitucional Alemão estabelece, a obrigatoriedade do uso de capacete
visa a protecção da pessoa contra si própria e, nessa medida, lesa o direito ao
desenvolvimento da personalidade. O BVerfG considerou que essa obrigatoriedade não é
violadora dos preceitos constitucionais, na medida em que entendeu que um condutor que
tenha um acidente sem capacete e do qual decorram consequências graves não se lesa
apenas a si mesmo porque em muitos casos poderão ser evitadas determinadas
consequências de um acidente se o acidentado continuar consciente. Ver BVerfGE 59, pp. 275
ss. Quanto a esta questão, a Comissão Europeia dos Direitos Humanos, no caso X v. Reino
Unido, n.º 7992/77, decidiu que não estavam isentos da obrigatoriedade do uso de capacete
aqueles que, por motivos religiosos, usavam turbante e que, portanto, seriam obrigados a
retirá-lo. Ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à
vida”, cit., p. 86. JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p.
141, entende que o argumento não paternalista mais forte para a justificação da
obrigatoriedade do uso de capacete e cinto de segurança é “o custo psíquico para outros” que
pode decorrer do não uso, em caso de acidente.
594
CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même.
Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 145.
156
imposição de restrições não é isenta de dificuldades. Para que possam
legitimar uma restrição da liberdade esses custos devem efectivamente
decorrer da actuação em causa, ser certos e, finalmente, ter suficiente
expressão. É, para além disso, fundamental, na análise da proporcionalidade
da medida, considerar o direito que vai ser restringido e a afectação da
liberdade que aí vai envolvida. A protecção contra o paternalismo “deverá ser
tanto mais intensa quanto mais relevante para a personalidade seja o
comportamento em causa”595.
Para além disso, a medida restritiva “deve ser precedida (e
acompanhada) de tentativas de sensibilização da população para a
necessidade de mudar os seus comportamentos de risco, de modo a favorecer
uma distribuição dos benefícios sociais mais igualitária. É o princípio do
carácter restritivo das restrições (…) que o obriga: só quando o Estado verifica
que, apesar dos seus esforços, a situação não se altera, é que pode aprovar
medidas restritivas da liberdade individual”596. Estas deverão sempre ser a
última ratio.
Passando agora para as situações de verdadeiro paternalismo, Kai
595
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 186 e 187. Este Autor
exemplifica a sua posição afirmando que “é mais relevante o direito de decidir autonomamente
em questões que dizem respeito à vida sexual do indivíduo do que o direito de não usar cinto
de segurança”. Pensamos que este raciocínio se relaciona com uma ideia de limite de
“bagatela”: partindo desta ideia, “as bagatelas seriam sempre justificáveis, dada a
insignificância do prejuízo que provocam na liberdade”. No entanto, este limite de bagatelas
“não é pacífica e consensualmente reconhecível”. Exemplo disso será o facto de “para alguns
indivíduos a exigência de se apresentarem barbeados ou de cabelo curto é anódina, enquanto
que para outros poderá ser sentida como imposição humilhante e atentatória da dignidade
pessoal”. Ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não
Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 220 e 221, nota 378. Também quanto à
obrigatoriedade de uso de capacete, que parece implicar um prejuízo insignificante da
liberdade, vimos já que se colocou perante a Comissão Europeia dos Direitos Humanos, no
caso X versus Reino Unido, a questão de saber se estariam isentos da obrigatoriedade desse
uso aqueles que, por motivos religiosos, usavam turbante e que, portanto, seriam obrigados a
retirá-lo. Ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à
vida”, cit., p. 86. Assim, a avaliação da insignificância do prejuízo só se pode fazer caso a caso,
tendo em conta as circunstâncias concretas. PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, cit.,
p. 69 e 88, defende que “a interferência paternalista em algumas liberdades pode ser
justificável”, sendo de distinguir entre liberdades fundamentais e liberdades não fundamentais.
Para o Autor, “pode distinguir-se, por exemplo, entre uma lei paternalista que proíbe nadar em
praias com correntes perigosas de uma lei paternalista que proíbe o uso terapêutico de
marijuana, argumentando que o interesse do indivíduo em ter a liberdade de nadar em
correntes perigosas é menos importante do que o interesse em utilizar marijuana por razões
terapêuticas”.
596
CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même.
Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 144.
157
Möller, seguindo a perspectiva de John Kleinig597, defende que há medidas
paternalistas que se podem justificar quando se vise salvaguardar a integridade
do indivíduo. Para o Autor, “há diferenças significativas entre a solução de
integridade e as diferentes variantes da teoria dos valores”. Na “solução da
integridade” são “as próprias concepções do indivíduo que regem a actuação
estadual”, uma vez que “a liberdade de escolha é restringida não para a
protecção de valores objectivos, mas antes tendo em consideração prioridades
subjectivas do próprio indivíduo”598. O Autor entende que quando o propósito
do legislador é o de assegurar a integridade do sujeito, já não estamos perante
uma restrição ilegítima da liberdade jusfundamentalmente protegida. O
paternalismo deverá ser “tanto mais admissível quanto mais o indivíduo em
causa, através das suas decisões, esteja em contradição com a sua própria
integridade”599.
No entanto, sustenta ainda que o Estado não deverá ter o direito de
proteger alguém contra si próprio, argumentando que o faz para preservar a
integridade dessa mesma pessoa, quando lhe bastava adverti-la acerca do
carácter perigoso do seu comportamento. Deverá dar-se preferência ao
597
JOHN KLEINIG, Paternalism, Manchester University Press, Manchester, 1983, pp. 67 ss.
598
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 179 – 183 e 197 – 199. Este
Autor coloca a questão de saber se, no caso de um indivíduo que gosta de viver e por pura
negligência não utiliza o cinto de segurança, pondo em perigo o que lhe é caro contra as suas
próprias prioridades, será realmente uma lesão “do direito de conformar o seu destino” obrigálo a utilizar um cinto de segurança. Sendo “o ponto de partida da protecção constitucional do
direito geral de personalidade a componente de livre decisão”, a componente da integridade
será analisada, em contrapartida, no quadro do princípio da proporcionalidade enquanto fim
legítimo da restrição da liberdade”. Em termos algo semelhantes, REINHARD SINGER,
“Vertragsfreiheit, Grundrechte und Schutz des Menschen vor sich selbst”, in JZ, n.º 23, 1995, p.
1140, sustenta que é muito duvidosa a invocação da liberdade para a autodeterminação nos
casos da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança e de capacete. Para o Autor, o que
está aqui em causa “é a incapacidade psicológica de muitos automobilistas ou motociclistas de,
de uma forma abstracta, preverem correctamente os perigos da sua actuação, o que legitima a
restrição”. ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt
werden?”, cit., p. 284, entende que a pessoa não possui as suas” capacidades básicas” quando
considera um determinado bem importante, mas se recusa a tomar as medidas necessárias
para a sua concretização (este é o caso da obrigatoriedade de uso de cinto de segurança ou
de capacete).
599
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 185 e 187. CARLOS S. NINO,
The Ethics of Human Rights, cit., p. 148, defende que o princípio da autonomia deixa alguma
margem para um paternalismo legítimo. O princípio geral que está na base destas
considerações pode ser formulado como uma proibição de impor sacrifícios aos indivíduos sem
o seu consentimento que não se traduzam em benefícios para eles. Este princípio pode
designar-se como “princípio da inviolabilidade da pessoa”.
158
esclarecimento e informação dos indivíduos antes de admitir o recurso à
coacção estadual. Nesse sentido, não devem ser de aceitar medidas
paternalistas quando o esclarecimento seja suficiente para a protecção da
integridade individual600.
O Autor considera ainda que é de afastar o “paternalismo moral”.
Consubstanciam-se em “paternalismo moral aquelas situações em que o
Estado intervém impondo modos de comportamento morais no interesse da
pessoa em causa, que esta, por possuir diferentes quadros morais, considera
ser de afastar.” Neste tipo de questões deve deixar-se ao indivíduo a
possibilidade de decidir autonomamente601.
Para Kai Möller esta perspectiva conduz a soluções que na prática são
insuspeitas, uma vez que não contende com os “projectos centrais” dos
cidadãos e, para além disso, não lhes impõe um sistema de valores com o qual
não concordem. A contrapartida é, para o Autor, “uma maior protecção das
pessoas, a um preço relativamente baixo, ou seja, a utilização de coacção nos
casos em que o indivíduo, por negligência, age em sentido contrário aos seus
próprios valores”602.
Por seu lado, Cass R. Sunstein – Richard H. Thaler defendem aquilo
que designam por “paternalismo libertário” (libertarian paternalism)603. Segundo
600
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 190 e 191.
601
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 189 e 203, defende que nos
casos de Peep-show ou Big-brother (ver infra pp. 277 ss) é logo à partida duvidoso que
estejamos perante “um comportamento contrário à integridade”. Por outro lado, “daí também
não decorre uma lesão relevante”. Tendo em consideração “o valor elevado do direito de
autodeterminação em questões morais, a proibição do paternalismo estadual nestes casos
impõe-se”. Sobre a distinção entre “paternalismo moral” e “paternalismo de bem-estar”, ver
também GERALD DWORKIN, “Paternalism”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2005,
http://plato.stanford.edu/entries/paternalism (última visita a 12.04.2010). Nesta ordem de ideias,
GERALD DWORKIN, “Moral Paternalism”, in Law and Philosophy, n.º 24, 2005, p. 311, entende
que os homossexuais não consideram que a sua orientação sexual seja imoral; “os ateus não
julgam que vivem uma vida de pecado” e “quem vê pornografia não considera que esteja a ser
corrompido”. MACARIO ALEMANY, “El concepto e la justificación del paternalismo”, cit., p. 272,
propõe-se restringir o termo paternalismo de modo a que este signifique evitar danos físicos,
psíquicos e/ou económicos.
602
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 212.
603
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism”, in American Economic
Review, Vol. 93, n.º 3, 2003, pp. 175 ss, http://www.rasmusen.org/g406/readingsrefg406/Sunstein-thaler.AER.2003.paternislm.pdf (última visita a 12.04.2010), e também
“Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, http://ssrn.com/abstract_id=405940 (última visita
a 12.04.2010).
159
os Autores, este tipo de paternalismo é “relativamente fraco e não intrusivo”
porque, em bom rigor, não afasta a possibilidade de escolha. No entanto, tratase de uma forma de paternalismo, na medida em que os “planificadores
públicos e privados” tentam deliberadamente conduzir a acção dos indivíduos
de modo a promover o seu bem-estar. Entendem, para além do mais, que as
perspectivas não paternalistas partem de uma “falsa premissa”, que é a de
considerar que “a maior parte das pessoas faz escolhas que são no seu melhor
interesse ou que, pelo menos, são melhores na sua própria perspectiva do que
as que seriam tomadas por terceiros”. Por outro lado, julgam que é um
“equívoco considerar que há alternativas viáveis ao paternalismo”, uma vez que
há sempre situações em que têm de ser feitas escolhas que vão afectar o
comportamento de terceiros604. Finalmente, consideram ainda que é um erro
pressupor “que o paternalismo envolve sempre coacção”605.
Assim, para esta posição o respeito pelas escolhas individuais funda-se
na ideia de que as pessoas fazem “um excelente trabalho quando fazem
opções”, ou, pelo menos, “fazem um trabalho muito melhor do que terceiros
fariam”, o que não corresponde necessariamente à verdade. Admitem, no
entanto, que nem sempre é essa a razão, sendo que algumas críticas tecidas
ao paternalismo assentam “não nas consequências mas na autonomia” em si
mesma, sustentando-se que “as pessoas devem poder fazer as suas próprias
escolhas mesmo quando erram”. Contudo, sustentam que “seria fanatismo
tratar a autonomia, enquanto liberdade de escolha, como algo que não pode
ser ultrapassado por razões consequencialistas”. Este “argumento da
autonomia perde validade pelo facto de muitas vezes as preferências e as
escolhas serem feitas em função das soluções pré-dadas”606. Para além disso,
entendem que o respeito pela autonomia é suficientemente acautelado pelo
604
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,
pp. 4 e 5.
605
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,
p. 7. De facto, esta perspectiva implica um alargamento do conceito de paternalismo, uma vez
que vimos que se considera que o paternalismo assenta em dois pressupostos: o primeiro é
que este “exclui uma opção ou impõe uma escolha”; o segundo é que “essa escolha se exclui
ou se impõe para o bem da própria pessoa”. Nesse sentido, SIMON CLARKE, “Debate: State
Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, cit., p. 117. Ora o paternalismo libertário não
preenche o primeiro destes pressupostos.
606
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,
p. 9, também nota 19.
160
paternalismo libertário uma vez que há sempre a possibilidade de optar em
sentido contrário607.
A “inevitabilidade do paternalismo” torna-se mais clara quando o
“planificador” tem de se decidir por determinados “pontos de partida” ou criar
“normas subsidiárias”. Se o objectivo principal é maximizar o bem-estar, é
legítimo indagar se o “planificador” pode ir “para além do inevitável” quando
procede a essa escolha608. Desta feita, quando não haja interesses de terceiros
a salvaguardar, a “presunção geral” deverá ser no sentido de respeitar a
“liberdade de escolha” dos cidadãos. Essa “presunção será apenas de afastar
quando a escolha individual seja manifestamente contrária ao bem-estar
individual”. Partindo da constatação de que em muitas situações “as
preferências das pessoas são mal-formadas e frágeis, assumindo as normas
subsidiárias ou pontos de partida um papel de peso”, poderá ser de admitir a
possibilidade
de
os
poderes
públicos
procurarem
influenciar
essas
preferências, com o objectivo de promover o bem-estar das pessoas609.
Este novo tipo de paternalismo foi, no entanto, alvo de diversas críticas.
Claire A. Hill considera que “o facto de as pessoas cometerem erros e de, por
vezes, lhes faltar autocontrolo” não deve servir de justificação para o “anti-antipaternalismo” (nome que atribui ao paternalismo libertário). Os defensores do
“anti-anti-paternalismo” partem da ideia de que “nem sempre as pessoas fazem
aquilo que verdadeiramente pretendem”. Mas a questão que se deve aqui
colocar é a seguinte: “como podemos saber o que as pessoas realmente
querem”? Para a Autora, a posição “anti-anti-paternalista” parece assumir que
é possível saber o que os indivíduos realmente desejam, independentemente
607
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,
pp. 26 e 27. Estes Autores consideram que se uma lei impõe aos automobilistas o uso de cinto
de segurança e se o seu desrespeito implicar uma coima elevada, essa lei é “não-libertária
ainda que determinados violadores possam exercer a sua liberdade de escolha pagando a
coima”. Na medida em que “o valor da coima se aproxime do zero, a lei aproxima-se do
paternalismo libertário. Este pressupõe que as pessoas possam, como regra geral, evitar
facilmente a opção sugerida”.
608
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,
pp. 24 e 25. Os Autores dão como exemplo uma cafetaria, na qual a opção por colocar a fruta à
frente dos doces poderia condicionar a escolha das pessoas, induzindo-as a uma alimentação
mais saudável. Para os Autores esta é uma intervenção bastante suave, até porque não impõe
nada a ninguém.
609
CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,
p. 42.
161
do que escolhem, o que é um pressuposto indefensável. Através das
conclusões “do direito e da economia comportamentais podemos constatar que
as pessoas, por vezes, cometem erros” ou fazem coisas num determinado
momento de que posteriormente se arrependem. Mas daí não conseguimos
retirar quais são as suas reais pretensões e, consequentemente, falta-nos uma
base para a legislação paternalista, ainda que libertária. Por mais “conveniente
e tentador que seja extrapolar da nossa própria introspecção que os outros
querem ou deveriam querer o mesmo que nós, pura e simplesmente não temos
acesso aos seus desejos e convicções”610.
Também Mario J. Rizzo – Douglas Glen Whitman se opuseram a esta
perspectiva, questionando se faz sentido sustentar que quem decide as
políticas públicas conhece melhor as “verdadeiras preferências” dos indivíduos
do que os próprios. Sendo que “melhor se deve definir em termos de bem-estar
subjectivo individual (sob pena de estarmos de volta ao paternalismo
tradicional) temos de comparar a capacidade relativa dos indivíduos para
tomarem por si mesmos decisões que promovam o seu bem-estar com a de
entes externos que decidam em sua vez”611.
Os Autores entendem que é de acolher, por princípio, a ideia de
aumentar o bem-estar dos cidadãos atendendo às “suas próprias verdadeiras
preferências”. No entanto, “esse objectivo não se pode tornar operacional” sem
que quem decide consiga aceder a informação que não detém e que, a maior
parte das vezes, não tem meios de obter. As políticas públicas têm de se
escorar nalguma coisa, e quem toma decisões irá recorrer “às suas próprias
preferências, às preferências de peritos, ou às (supostas) preferências do
público em geral”. No entanto, e uma vez que estes Autores crêem que não é
possível “implementar as ‘verdadeiras’ preferências das pessoas”, mas sim as
que se consideram ser as “’correctas’”, “o novo paradigma paternalista vai
fornecer a cobertura intelectual para que tal aconteça”612.
610
CLAIRE A. HILL, “Anti-anti-paternalism”, cit., pp. 445 e 448.
611
MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”,
in Law & Economics Research Paper Series, Working Paper n.º 08-60,
http://ssrn.com/abstract=1310732 (última visita a 12.04. 2010), p. 22.
612
MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”,
cit., p. 78.
162
Partindo de tudo o que vimos e procurando responder à questão que
inicialmente colocámos, que é a de determinar se existem tipos de
paternalismo jurídico que se podem eticamente justificar, estamos, antes do
mais, de acordo com Kai Möller e Cass R. Sunstein – Richard H. Thaler, na
parte
em
que
defendem
que
as
políticas
paternalistas
devem
ser
inevitavelmente compatíveis com o respeito pela autonomia, não se devendo
admitir o “paternalismo moral”, ou seja, a imposição, pela parte dos poderes
públicos, de determinados padrões morais alegadamente no interesse da
pessoa, independentemente de esta estar ou não de acordo com eles.
Por outro lado, as perspectivas destes Autores concretizam-se em
propostas de um paternalismo que não tem como objectivo impor valores aos
indivíduos com os quais estes não estão de acordo, mas que visa antes a
protecção da sua “integridade”, tendo em consideração as escolhas que fariam
se pudessem antecipar as consequências dos seus actos.
No entanto, Cass R. Sunstein e Richard H. Thaler sustentam que o
“paternalismo libertário” só se pode justificar se as pessoas puderem, como
regra geral, evitar facilmente a opção sugerida. Trata-se de um “perfeccionismo
moderado”, pois não admite a utilização, pela parte do Estado, de medidas
coercivas para a promoção ou desincentivo de “certos modos de vida”. Este
“perfeccionismo moderado” parece “estar a salvo da objecção paternalista, se
partilharmos da definição de paternalismo como limitação da liberdade do
indivíduo para o seu próprio bem”. No entanto, se entendermos que a definição
de paternalismo não tem de, forçosamente, envolver uma “limitação da
liberdade”, como vimos ser o caso da definição proposta pelos Autores
referidos, estaremos a alargar o conceito em termos tais que “até os
perfeccionistas moderados são paternalistas”. Este alargamento terá como
consequência que “certas políticas perfeccionistas podem ser consideradas
como paternalistas sem serem inaceitáveis ou, pelo menos, sem serem tão
inaceitáveis como as políticas paternalistas coercivas”613.
Também Joseph Raz entende que o liberalismo perfeccionista que
preconiza é uma perspectiva apta a “abraçar várias medidas paternalistas”614.
613
ROBERTO MERRILL – VINCENT BOURDEAU, “Republicanismo”, cit., p. 120.
614
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 422. O Autor, na p. 426, entende que alguns
163
No entanto, segundo o Autor, estas políticas perfeccionistas ou paternalistas
sofrem duas restrições: “devem ser compatíveis com o respeito pela
autonomia”, pelo que se devem “limitar a criar condições de autonomia”; e, por
outro lado, “devem respeitar a limitação ao uso de coacção imposta pelo harm
principle”615.
Assim, o paternalismo libertário, porque não pressupõe coacção e deixa
sempre espaço para que as pessoas possam optar por outras vias, não é
diferente de um perfeccionismo moderado e, nessa medida, julgamos ser de
aceitar. São, apesar disso, pertinentes as críticas feitas a esta perspectiva no
sentido de ela padecer de um “problema cognitivo”616: a impossibilidade de
saber o que é que efectivamente a pessoa consideraria melhor para si se
conseguisse prever todas as implicações da sua decisão. No entanto, uma vez
que não há aqui restrição de liberdade, o risco é mínimo e poderá considerarse justificado.
Kai Möller vai mais longe, já que entende que para a salvaguarda da
integridade do indivíduo se poderão justificar restrições à liberdade. Como
tivemos oportunidade de constatar, quando o indivíduo age em sentido
contrário ao que são os seus próprios valores, para o Autor poderá ou até
deverá haver uma imposição coactiva. Esta posição, pelo contrário, já nos
parece excessivamente restritiva, na medida em que padece do mesmo
problema cognitivo da perspectiva anterior e implica efectivamente restrições
poderão considerar que “esta abordagem perfeccionista esquece a necessidade de afastar
medidas paternalistas uma vez que estas são contrárias à dignidade da pessoa humana”,
sendo o “respeito pelas pessoas enquanto agentes morais responsáveis incompatível com o
paternalismo”. No entanto, defende que esta perspectiva não tem em consideração “a
dependência dos valores e gostos individuais de formas sociais, convenções e práticas que
são o resultado da acção humana”. Uma vez que “o respeito pelas pessoas exige preocupação
pelo seu bem-estar”, tal implica que se atribua “um papel central à actividade do próprio agente
na conformação do seu bem-estar”. Uma “moralidade baseada na autonomia não é apenas
consistente com estas exigências, mas vai além delas ao impor que as pessoas devem ser
livres para conformar as suas próprias vidas”. Tal “não só é compatível com o perfeccionismo”
como “o exige”, na medida em que “apela para a criação de condições de autonomia através
da prossecução de políticas perfeccionistas”.
615
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 423. O Autor dá como exemplo o caso de
“medidas paternalistas que dizem respeito a questões que são consideradas por todos como
sendo questões de valor meramente instrumental e que não interferem com a autonomia, se
tiverem como consequência melhorar a segurança e tornar as actividades afectadas mais
aptas a realizar o seu objectivo”.
616
Este é precisamente o título do artigo de MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The
knowledge problem of new paternalism”, cit..
164
da liberdade.
Julgamos, no entanto, que deve haver uma excepção “ao limite do uso
de coacção imposto pelo harm principle”617, uma vez que entendemos que
serão ainda legítimas medidas estaduais paternalistas quanto estejam em
causa as possibilidades de “autodeterminação futura” da pessoa618.
Tendo nós considerado que a autonomia é um valor central na nossa
ordem jurídica e que o Estado deve criar condições de autonomia, será legítimo
exigir “que os indivíduos abandonem a liberdade ou o direito a renunciar
permanentemente à autonomia em si mesma”619. As “bases da autonomia do
titular do direito não devem elas mesmas ser ofendidas”, não podendo este
consentir “numa intervenção que lhe retire a possibilidade de princípio de se
autodeterminar livremente daí para a frente”620.
617
JOSEPH RAZ, The Morality of Freedom, cit., p. 423.
618
É também essa a posição de JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit.,
p. 318. Considerando que o ordenamento pretendeu consagrar a liberdade como uma
“situação duradoura”, ver ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p.
59. PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, cit., p. 81, entende que a autonomia pessoal
“implica ter o controlo sobre a própria vida como um todo”. Este aspecto da autonomia justifica
“políticas governamentais que desencorajam actividades que podem matar ou deixar o
indivíduo física ou mentalmente debilitado”. CHRISTOPH LEUENBERGER, Die unverzichtbaren
und unverjährbaren Grundrechte in der Rechtsprechung des Schweizerischen
Bundesgerichtes, cit., p. 54, afirma que há “uma determinada medida mínima de liberdade que
deve ser considerada inseparável da pessoa”. Este será o caso típico de contratos de
escravidão. DAVID ARCHARD, “Freedom not to be free: the case of the slavery contract in J. S.
Mill’s On Liberty”, in The Philosophical Quarterly, Vol. 40, n.º 160, 1990, pp. 461 e 462,
considera que algumas críticas foram feitas a Mill pelo facto de este, ao recusar que a pessoa
possa livremente converter-se em escrava, de alguma forma estar a abrir uma brecha no
princípio da liberdade e essa alteração representar uma concessão séria ao paternalismo. No
entanto, o Autor sustenta que a proibição de contratos de escravidão não é paternalista, na
medida em que a sociedade não interfere se tiver sido celebrado um contrato deste tipo.
Apenas o fará no momento em que se pretenda fazer valer esse contrato. Assim, “só intervirá
quando os termos do contrato sejam violados” e tal só acontecerá se o escravo se recusar a
obedecer, pelo que não se tratará já de uma defesa contra si mesmo, mas antes de uma
defesa desejada pelo próprio. Considerando também que esta proibição não impede ninguém
de viver uma situação de “escravidão de facto”, ver JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral
Limits of the Criminal Law, cit., p. 71. PAUL BOU-HABIB, “Compulsory Insurance without
Paternalism”, in Utilitas, Vol. 18, n.º 3, 2006, p. 261, considera que a condenação da
escravização pelo próprio parte de um entendimento da “autonomia enquanto valor intrínseco
que temos o dever de preservar”.
619
JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., pp. 290 e 291.
620
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 124;
REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 195. KNUT
AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 50 – 52,
considera, no entanto, que há casos nos quais está em causa a autodeterminação futura do
indivíduo em que o Estado poderá reconhecer o consentimento. Assim, entende que não é
absolutamente inadmissível alterar ou afectar os mecanismos de autodeterminação futura,
165
Por outro lado ainda, “na literatura anglo-saxónica tem-se feito a
distinção entre paternalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco (soft
paternalism)”. Os defensores do “paternalismo forte” sustentam que se pode
impor
protecção
a
pessoas
capazes
que
decidiram
voluntariamente
“autocolocar-se em perigo ou lesar-se”. Para o “paternalismo fraco” apenas
será de admitir uma interferência para a protecção do próprio quando a sua
decisão não é voluntária. Esta distinção também se demonstra noutro aspecto:
“o paternalismo forte recorre muitas vezes ao Direito Penal para evitar
autocolocações em perigo ou autolesões. No caso do paternalismo fraco não
faz sentido o recurso ao Direito Penal: é sempre moralmente indefensável
atribuir uma pena a alguém que se coloca em perigo involuntariamente”621.
O “paternalismo fraco” (também designado “paternalismo social”) “deve
ter uma base constitucional precisa que identifique as fraquezas das pessoas
visadas, seja devido a uma posição profissional (…), seja por causa da idade
(…), seja em virtude de uma incapacidade psíquica (…), seja, finalmente, por
causa de uma situação de prisão”. O Estado legislador tem aqui o papel
fundamental de realizar “os deveres de protecção associados aos direitos à
vida e à integridade física e psíquica” das pessoas mais frágeis622.
sendo que a admissibilidade do consentimento nestas situações antes dependerá dos motivos
que podem ser invocados para justificar a decisão (será o caso de uma operação ao cérebro
de um delinquente sexual que pretenda libertar-se da sua perversão, a possibilidade de
castração, etc.). Parece-nos, no entanto, que estes exemplos não se referem a situações
excludentes da autodeterminação futura, embora possam implicar uma alteração dessa
autodeterminação.
621
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 16 e 17. Ver também JOEL
FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 12 ss, que considera
que o paternalismo fraco é compatível com o liberalismo. Sobre esta distinção, ver ainda
GERALD DWORKIN, “Paternalism”, cit.
622
CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même.
Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 143. ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann
Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 283 – 289, estabelece que na
vida social se pressupõe que os cidadãos, no que se refere às questões do seu dia-a-dia,
dispõem de uma “competência de base”. A ausência dessa competência é uma “condição
justificativa de medidas paternalistas”, que visam a supressão de desigualdades que têm como
fundamento essa mesma ausência. Assim, segundo ele, se se estiver de acordo com isto,
então deve considerar-se que não se justifica uma interferência do Estado “quando alguém que
detém competência de base atenta contra a sua integridade física ou a sua própria vida”;
“quando alguém que detém competência de base tem consciência do risco de uma lesão certa
ou muito provável” que poderá decorrer do gozo de uma determinada actividade; e “quando
alguém, que detém competência de base, põe a vida em risco em favor dos outros”. Apenas
“quando se defenda uma concepção metafísica-religiosa do valor da vida é que é possível
justificar a proibição do suicídio ou de actividades que coloquem a vida em perigo”. Em
166
Justifica-se, então, uma abordagem paternalista quando se trate “de
direitos
ou
interesses
de
menores,
de
pessoas
incapazes
de
se
autodeterminarem ou que se encontrem numa posição conjuntural de
debilidade ou desfavor”623. Nestes casos, o Estado está legitimado a tomar
determinadas medidas paternalistas que em quaisquer outras circunstâncias
lhe estariam vedadas624. No entanto, “o alcance da autorização para restringir
deve obediência ao princípio da proporcionalidade, que deve ser rigorosamente
respeitado”625.
Temos, portanto, de ter em consideração que, mesmo existindo uma
posição de debilidade ou desfavor, poderá haver situações em que, apesar
disso, se mantém a voluntariedade da renúncia. Esta deve ser uma análise
feita caso a caso e não é defensável que, pelo simples facto de a renúncia ter
lugar numa relação de desigualdade, se conclua que ela é sempre reflexo
dessa desigualdade e, consequentemente, involuntária.
conclusão, só quando a medida em causa, que se aplica a uma incompetência de base,
“promove e protege essa autonomia ou visa a supressão de um défice de igualdade é que se
pode falar de um paternalismo eticamente justificado. Sob este ponto de vista é claro que
várias formas de paternalismo praticadas no passado e presente não se justificam eticamente,
ainda que se possam justificar do ponto de vista da moral positiva dos grupos dominantes”.
623
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 450, nota 785.
624
BERNHARD SCHLINK, “Die überforderte Menschenwürde. Welche Gewissheit kann Artikel 1
des Grundgesetzes geben?”, in Der Spiegel, n.º 51, 2003, p. 53. No que se refere, por exemplo
à posição dos trabalhadores, o TC, no Acórdão n.º 155/04, http://w3.tribunalconstitucional.
pt/acordaos/acordaos04/101-200/15504.htm, sobre o regime jurídico do contrato individual de
trabalho na Administração Pública, estabelece que “as normas sobre direitos fundamentais
detêm, no plano das relações de trabalho, uma eficácia de protecção da autonomia dos menos
autónomos. Aqui é evidente o desiderato constitucional de ligação da liberdade fáctica e da
liberdade jurídica. A Constituição faz depender a validade dos contratos não apenas do
consentimento das partes no caso particular, mas também do facto de que esse consentimento
«se haja dado dentro de um marco jurídico-normativo que assegure que a autonomia de um
dos indivíduos não está subordinada à do outro» (…)”.
625
CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 121 e 122. De
facto, em relação a menores e pessoas portadoras de uma deficiência não se deve afastar
completamente a sua opinião. No que se refere a tratamentos médicos, por exemplo, o n.º 2 do
art. 38.º Código Deontológico da Ordem dos Médicos, relativo ao dever de esclarecimento e
recusa de tratamento, estabelece que “[n]o caso de crianças ou incapazes, o Médico procurará
respeitar, na medida do possível, as opções do doente, de acordo com a capacidade de
discernimento que lhes reconheça, actuando sempre em consciência na defesa dos interesses
do doente”. É esse também o sentido do art. 6.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e
da Biomedicina (Convenção de Oviedo) do Conselho da Europa, onde se consagra que “a
opinião do menor é tomada em consideração como um factor cada vez mais determinante, em
função da sua idade e do seu grau de maturidade” e que, no caso de maiores que careçam de
capacidade para consentir “a pessoa em causa deve, na medida do possível, participar no
processo de autorização”.
167
Como exemplo podemos referir os casos de protecção da pessoa em
virtude da posição profissional626 ou de uma situação de prisão627.
626
Parece-nos, a título de exemplo, que apesar de nos encontrarmos aqui perante uma parte
que está numa posição de debilidade, a decisão do TC no Acórdão n.º 368/02,
http://www.tribunalconstitucional.pt/Acordaos/Acordaos02/301-400/36802.htm, é demasiado
restritiva. Nesse sentido, ver BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da
pessoa humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., p. 169. Este Acórdão referese à obrigatoriedade de realização de exames médicos para defesa da própria saúde, tendo o
TC considerado que esta obrigatoriedade era legítima, uma vez que perante uma “especial
fundamentação social” o legislador se encontra excepcionalmente autorizado a, relativamente a
certos direitos fundamentais, estabelecer “restrições justificadas pela protecção legislativa dos
indivíduos contra si próprios”. Já no Acórdão n.º 158/95, http://www.tribunalconstitucional.pt/
tc/acordaos/19950158.html, o TC determina que “por mais que o contrato de trabalho se
constitua em terreno adequado de ‘formas de paternalismo legítimo’ (C. S. Nino) existe aqui
uma lógica de proporcionalidade que aponta para a relevância, em certos termos, dos valores
da ‘equivalência’ de prestações do contrato”.
627
Nos casos de greve de fome, por exemplo, existem diferentes possibilidades de reacção:
admitir-se o respeito absoluto da livre decisão do recluso; a intervenção médico-penitenciária a
partir do momento em que, como consequência da inanição prolongada, surge para o recluso
um sério perigo para a saúde sem se esperar que perca a consciência; a intervenção da
administração penitenciária apenas no momento em que o recluso tenha perdido a
consciência. A nossa lei “admite casos de alimentação forçada de reclusos em greve de fome,
a partir do momento em que se verifica um perigo para a vida ou grave perigo para a saúde”
(D.L. n.º 265/79, de 1 de Agosto, alterado pelo D.L. n.º 49/80, de 22 de Março). No entanto, é
“controvertida a legitimidade constitucional deste regime, que priva o recluso de uma dimensão
importante do seu direito de autodeterminação”. Nesse sentido, ANDRÉ GONÇALO DIAS
PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil,
cit., pp. 582 – 584. Sobre esta questão, ver também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS – JORGE
SINDE MONTEIRO, “Responsabilidade médica em Portugal”, in Boletim do Ministério da Justiça,
n.º 332, 1984, p. 56; RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE
MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 258; JOÃO VAZ
RODRIGUES, O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico
Português, Coimbra Editora, 2001, p. 307; ANABELA RODRIGUES, Novo Olhar sobre a Questão
Penitenciária – Estatuto Jurídico do Recluso e Socialização, Jurisdicionalização,
Consensualismo e Prisão, Coimbra Editora, Coimbra, 2000; VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 87. Vários Autores, “seguindo a
Declaração de Tóquio da Assembleia Médica Mundial (1975)”, têm entendido que “quando um
preso recusa qualquer alimento” se o médico considerar que “ele está em condições de
formular um juízo racional e consciente quanto às consequências da sua recusa em se
alimentar, (…) não deve ser alimentado artificialmente”. Nesse sentido, JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 450 e
451. JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p.
204, defende que “a alimentação forçada, enquanto o paciente está capaz de se
autodeterminar, constitui uma intervenção restritiva da parte do Estado na liberdade geral de
acção e no direito à integridade física do recluso”. O Autor considera que, neste caso, “o dever
de protecção do Estado não deve entrar sequer em jogo”, assim como não entra “quando tem
lugar a alimentação forçada depois de o recluso ter perdido a consciência. Nessa altura deixa
de haver uma colisão entre a vontade actual do recluso e a medida estatal que será até
constitucionalmente exigida, nomeadamente enquanto tutela da saúde e da vida do
inconsciente”. LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p.
713, nota 937, defende também que “quando não há consciência deixa de haver vontade do
recluso e não basta a vontade presumida com base no que houver sido dito antes”. Ainda no
que diz respeito a pessoas detidas, podemos ver a decisão do TEDH, no caso Tanribilir v.
Turquia,http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight
168
Assim, o que determina, para o “paternalismo fraco”, a legitimidade de
medidas paternalistas é a existência ou a ausência de verdadeira
autodeterminação. Parece-nos, por isso, que será de aceitar também este tipo
de paternalismo, que apenas se justifica nas situações em que as pessoas em
causa não estejam de facto em posição de cuidar de si mesmas.
Não é, no entanto, de excluir que em situações onde seja difícil avaliar a
existência ou ausência de autodeterminação e onde haja uma forte presunção
de não-voluntariedade se equacione a possibilidade de pressupor essa
ausência628. Poderá, pois, haver restrições à possibilidade de renúncia “graças
ao custo associado com a determinação de autonomia caso a caso”629.
5. O dever do Estado de proteger a pessoa contra si própria
É duvidoso que, em Estado plural de Direito, a defesa da pessoa contra
si mesma possa ser considerada fundamento legítimo da restrição de direitos
fundamentais630. É particularmente controversa a recusa da possibilidade de
=Tanribilir%20%7C%2021422/93&sessionid=51613707&skin=hudoc-en, no qual estabelece
que há um dever do Estado de proteger o indivíduo de si mesmo nas situações de suicídio,
uma vez que foi o Estado que o colocou numa posição de maior vulnerabilidade. O TEDH
considerou ainda esta argumentação extensível a pessoas que prestam serviço militar. Ver
caso Kilinç e outros v. Turquia,http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm
&action=html&highlight=Kilin%E7%20%7C%2040145/98&sessionid=51615950&skin=hudoc-en.
628
JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 299, sustenta que uma das razões
para limitar a possibilidade de renúncia é precisamente o grau de dificuldade que pode implicar
a prova de que a renúncia preenche “o grau de autonomia exigido em cada caso”. MARGARET
JANE RADIN, “Market Inalienability”, cit., pp. 1909 e 1910, entende que algumas restrições
impostas à possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem das grandes
dificuldades que implica avaliar todas as transacções de modo a aferir se o consentimento é
verdadeiramente livre. ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” - die Einwilligung im Privatrecht,
cit., p. 107, defende que só se deve proteger a pessoa da sua própria actuação quando esta
não assente numa decisão autónoma, ou quando haja dúvidas legítimas acerca da sua
autonomia. Também JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit.,
pp. 79 e 174 ss, entende que em certas situações, como será o caso de contratos de
escravidão, tendo em consideração “a qualidade incerta da prova e a forte presunção de não
voluntariedade, poderá justificar-se que o Estado entenda que a medida menos arriscada seja
presumir a não voluntariedade em todos os casos”. Quando “o consentimento para uma dada
conduta perigosa é tão raro (…) que dificilmente seria dado a não ser em casos de ignorância,
coacção, ou de ausência de algumas faculdades, o legislador poderá simplesmente excluí-lo
com base no princípio do dano a terceiros” e não por razões paternalistas.
629
JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 325.
630
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Inconstitucionalidade do Artigo 6.º da Lei sobre a Colheita
e Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana”, in Scientia Iuridica, n.ºs 286/288,
169
renúncia quando com o acto de disposição o indivíduo não lesa quaisquer bens
da comunidade, fundamentando-se essa recusa “na protecção do titular do
direito fundamental para o seu próprio bem contra a sua vontade”631.
Quem afasta totalmente o paternalismo estadual não pode aceitar que
caiba ao Estado um dever de protecção contra a vontade do indivíduo. O
problema já se pode, no entanto, colocar para quem admite medidas
paternalistas632.
Como já tivemos oportunidade de referir, existe apenas um dever do
Estado de proteger a pessoa contra si mesma quando esta não esteja em
posição de cuidar de si ou quando estejam em risco as suas possibilidades de
“autodeterminação futura”. Para além destas situações não é de admitir uma
“protecção imposta” que restringa as possibilidades de actuação do visado e
que, por conseguinte, limite a sua possibilidade de renunciar a direitos
fundamentais633, já que tal protecção implica uma violação grave “da presunção
de liberdade que deriva do princípio da dignidade da pessoa humana”634.
2000, pp. 260 e 261. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 299 e 300, considera que “neste domínio é de exigir
ao legislador uma especial fundamentação social do desvalor atribuído às actividades
restringidas” uma vez que estas restrições contendem com o livre desenvolvimento da
personalidade. Este Autor considera também que nestes casos é “particularmente delicada a
apreciação da proporcionalidade das restrições legislativas no âmbito da fiscalização judicial da
constitucionalidade, tendo em conta que o apelo à ‘consciência jurídica geral’ ou ao ‘sentimento
comunitário’, num contexto abstracto pertence mais ao legislador do que ao juiz, de modo que
este tenderá a fazer mais um controle de evidência do que de defensabilidade, quando podem
estar em causa aspectos essenciais da vida das pessoas”. SANDRA MARQUES MAGALHÃES, “O
valor do corpo humano. Considerações sobre os actos de disposição do próprio corpo e os
transplantes de órgãos intervivos”, in DIOGO LEITE CAMPOS (coord.), Estudos sobre o Direito
das Pessoas, Almedina, Coimbra, 2007, p. 208, reconhece também que não é fácil justificar a
proibição de actos individuais que não afectem terceiros se tivermos em conta “o pluralismo, a
tolerância e a não-discriminação hoje preconizados”. JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il
protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, in Droits, n.º
48, 2009, p. 104, considera que não pode haver protecção da pessoa contra si própria “porque
o homem é livre e, consequentemente, responsável”. Entendendo ainda que a protecção da
pessoa contra si própria em si mesma considerada não pode legitimar uma restrição da
liberdade, ver CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 120
e 121.
631
MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 111.
632
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 214 - 215.
633
WERNER FROTSCHER, “’Big Brother’ und das deutsche Rundfunkrecht”, in Schriftenreihe der
LPR Hessen, n.º 12, 2000, p. 43. Considerando que a defesa da pessoa contra a autolesão não
está incluída no dever de protecção estadual, ver JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als
Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 190.
634
CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era
170
Poderá ainda haver medidas que protejam o indivíduo de si mesmo
quando tal protecção não seja mais do que “um efeito lateral da protecção de
interesses da colectividade ou de interesses jusfundamentalmente protegidos
de terceiros”, que sejam afectados pela renúncia e que, “no caso concreto,
devam ser valorados preferencialmente em relação à livre autodeterminação do
indivíduo”635. Porém, nestes casos são os interesses públicos ou de terceiros
que justificam a restrição da liberdade e não o dever de protecção da pessoa
contra si própria.
Vimos quais as limitações de uma abordagem paternalista numa ordem
jurídica que atribui um papel central ao princípio da dignidade da pessoa
humana e à autonomia individual, o que se reflecte na legitimidade da defesa
da pessoa contra si mesma636. A Constituição não atribui ao Estado a função
de ser o “guardião dos cidadãos”, antes realçando a importância da autoresponsabilidade individual637. Um Estado de Direito não pode “impor nem à
sociedade no seu todo nem a cada um dos seus membros individualmente
considerados uma resposta particular quanto às questões últimas da
existência”638.
Normalmente, as proibições de dispor sobre os próprios direitos
tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, cit., p. 423; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il
protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., p. 99.
DIETER DÖRR, Big Brother und die Menschenwürde, cit., p. 66, considera que o dever de
protecção do Estado nunca poderá ir ao ponto de “afectar a liberdade de conformação de vida
garantida pela dignidade”. Defendendo, no entanto, que o dever de protecção imposto ao
Estado “inclui até mesmo a protecção da pessoa contra si própria”, de tal modo “que o Estado
se encontra autorizado e obrigado a intervir em face de actos da pessoa que, mesmo
voluntariamente, atentem contra a sua própria dignidade, o que decorre do (…) cunho
irrenunciável da dignidade pessoal, ver INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., pp. 113 e 114. Para o
Autor, a dignidade implica “um dever geral de respeito por parte de todos (…) os integrantes da
comunidade para com os demais e, para além disso (…), até mesmo um dever das pessoas
para consigo mesmas”. Esta perspectiva não se coaduna, no entanto, com o sentido que
consideramos ser de atribuir ao conceito de dignidade.
635
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 203 e 204.
636
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 450, nota 785.
637
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 217. JOSÉ CASALTA NABAIS,
“Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais”, cit., p. 94, afirma que o Estado
ubíquo se manifesta na “usurpação de significativas parcelas da liberdade e autonomia
individuais, relativamente às quais nada exige que sejam objecto de qualquer ingerência (…)
dos poderes públicos”.
638
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 168.
171
fundamentais
visam
favorecer
determinados
indivíduos,
supostamente
beneficiados por essa mesma proibição. Temos, todavia, dúvidas se, em vez
de ajudar o sujeito que é protegido, não se estará pelo contrário a prejudicá-lo,
limitando a sua autodeterminação, o que nos leva “a considerar o conceito
relativo e subjectivo de benefício”639. Não cumpre ao Estado “’maximizar a
felicidade’, ou seja, promover concepções do mundo globais, mas sim
‘minimizar a infelicidade’”, garantindo “a tutela de bens fundamentais e a
subsistência da sociedade política, deixando à escolha individual o processo de
‘maximização da felicidade’”640.
Nesse sentido, entende-se que a opção por correr determinados riscos
se insere no “projecto de vida” do próprio indivíduo, projecto que deve ser
escolhido livremente “em função da sua mundividência”, porquanto em
“sociedades plurais” não é “desejável uma absoluta uniformização dos
comportamentos individuais”641. Assim, quando o sujeito se coloca em perigo
ou mesmo quando provoca uma lesão no seu direito, sendo ele capaz e
estando em causa um comportamento autodeterminado, trata-se ainda do gozo
de
“liberdade
jusconstitucionalmente
garantida”642.
Numa
sociedade
democrática e pluralista deve haver “um direito a errar, a tomar más decisões e
a correr riscos”, sem o qual “toda a ideia de autodeterminação perderia
sentido”643.
Não se coaduna, por isso, com a imagem de Homem pressuposta na
639
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 456.
640
JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de
Liberdade de Consciência, cit., pp. 128 e 129. O Tribunal Constitucional alemão diz
expressamente que o Estado não tem a função de “melhorar” os cidadãos e,
consequentemente, não tem o direito de lhes retirar a liberdade apenas para os “melhorar” sem
que, se continuassem livres, fizessem perigar terceiros ou a si mesmos. Ver BVerfGE 22, pp.
180 ss (em particular pp. 219 ss).
641
HELENA PEREIRA DE MELO, “A Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela “Estrada
do Tabaco”, cit., p. 163.
642
CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 116. Na
intervenção do Deputado JOSÉ DE MAGALHÃES, DAR, 1.ª série, n.º 94, cit., p. 3397, este diz
expressamente que a consagração do direito ao desenvolvimento da personalidade “implica
que ao legislador não cabe proteger os cidadãos contra si próprios e impor-lhes paradigmas
unidimensionais de comportamento digno, em nome daquilo a que poderia chamar-se a boa
personalidade, o retrato do bom cidadão e da personalidade modelo que caberia ao Estado
impor a cada um de nós, subordinando-nos a uma espécie de standard humano, cívico ou
político”.
643
JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 62.
172
Constituição uma concepção que, partindo de uma ideia de deveres de
protecção do Estado, considera que este tem legitimidade para proteger o
indivíduo de si próprio644. Não decorre das normas de direitos fundamentais,
em princípio, um dever de proteger bens jurídicos contra a vontade do titular do
direito, ou seja, contra aquele a quem o direito fundamental atribui o poder de
disposição sobre tais bens jurídicos645. Assim, deve evitar-se ceder “à tentação
de um paternalismo jurídico em que se transfere para a sociedade o encargo
de defender os titulares dos direitos contra as suas próprias condutas”646.
No que diz respeito à renúncia, será de um paternalismo “incompatível
com uma compreensão dos direitos fundamentais enquanto garantidores da
escolha individual” limitar a possibilidade de disposição sobre posições
jurídicas subjectivas de direitos fundamentais para protecção da pessoa contra
si mesma, fora das excepções que já referimos, se esta acredita que através
da renúncia irá prosseguir de forma mais adequada os seus interesses647.
Na base da protecção da pessoa contra si mesma encontra-se uma
644
Nesse sentido, referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 203 e 204; também CHRISTIAN HILLGRUBER,
Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 147; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als
Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 203. KAI MÖLLER, Paternalismus und
Persönlichkeitsrecht, cit., p. 115, considera que a Constituição não visa “a unidade através da
conformidade, mas antes a unidade através do respeito recíproco em pluralidade”. Nessa
medida, “não é possível uma protecção da pessoa contra si própria em virtude da dimensão
objectiva dos direitos fundamentais”. Em sentido contrário, PEDRO VAZ PATTO, No Cruzamento
do Direito e da Ética, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 200 e 201. Este Autor sustenta que é
justificada a defesa da pessoa contra si mesma em casos de “violações objectivas (ainda que
consentidas) da sua dignidade”.
645
JÜRGEN SCHWABE, “Der Schutz des Menschen vor sich selbst”, cit., p. 70. Em sentido
contrário, ver JEAN-FRANÇOIS FLAUSS, “L’interdiction de spectacles dégradants et la
Convention européenne des droits de l’homme”, in Revue Française de Droit Administratif, n.º
8, 1992, p. 1931.
646
RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI
MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 263. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE,
“Algumas reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois”, cit., p. 135, refere
precisamente que “nas sociedades de risco (...) sobressai a preocupação intensa (...) com a
saúde pública, a segurança alimentar e o ambiente, que tem conduzido a restrições igualmente
intensas das liberdades pessoais e económicas da generalidade das pessoas – a luta contra o
tabaco, o álcool e a obesidade, a vigilância sanitária aos medicamentos, géneros alimentícios,
(...) [etc.] – que, (...) por se revelarem por vezes excessivas ou indiferenciadas, suscitam
resistências, sendo entendidas como novas feições ditatoriais do Estado”. Para o Autor, na
nota 12, está aqui em causa a restrição da liberdade “não apenas para defesa da sociedade,
mas para protecção do próprio titular dos direitos”.
647
SETH F. KREIMER, “Allocational Sanctions: the problem of negative rights in a positive State”,
in University of Pennsylvania LR, n.º 132, 1984, p. 1383.
173
concepção
de
dignidade
enquanto
princípio
que
“se
exprime
pelo
reconhecimento da liberdade individual mas que transcende esta última e,
consequentemente, pode justificar restrições ao exercício das liberdades
individuais”. Para esta concepção “a dignidade não é renunciável pelo indivíduo
e pode haver a necessidade de o proteger de si mesmo”648. Uma das razões
invocadas pelo Estado para obrigar o titular da dignidade a um comportamento
conforme à dignidade é o facto de este considerar que sabe, melhor do que o
próprio titular, avaliar os seus interesses649.
A ideia de protecção da pessoa contra as suas próprias decisões está,
então, incindivelmente ligada a uma determinada interpretação do princípio da
dignidade da pessoa humana. Não estamos, no entanto, de acordo com esta
compreensão do princípio, como teremos oportunidade de desenvolver quando
o tratarmos enquanto limite da renúncia. Uma “valoração paternalista”, que
transfere para o Estado “a decisão última sobre aquilo que as pessoas devem
ou não valorar na sua vida”, independentemente da sua vontade, converte os
direitos em deveres650. Ora não há, nem deve haver, como regra, “direitos
obrigatórios” em Estado de Direito, embora, como já o dissemos, sejam de
admitir excepções, como é o caso dos direitos-deveres. Num Estado nãopaternalista que se funda na dignidade da pessoa humana e no livre
desenvolvimento da personalidade individual, a existência de “direitos de
exercício obrigatório (…) é claramente excepcional”. Do facto de a renúncia ser
também “uma forma de exercício de um direito fundamental”651, devem retirar-
648
JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et
la personne humaine”, cit., pp. 88 e 89. Será o caso, por exemplo, de JOSEF ISENSEE,
“Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, cit., p. 217,
que considera que “a dignidade obriga o Homem à protecção de si mesmo”. Sendo para o
Autor a dignidade “inalienável e irrenunciável, esta veda ao Homem que este se degrade.
Nessa medida, estabelece fronteiras à autonomia privada, em particular no que diz respeito à
autodeterminação nos limites da vida”. DIOGO LEITE DE CAMPOS, “A relação da pessoa
consigo mesma”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de
1977, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 143, entende que “o que cada um faz em
relação a si interessa radicalmente aos outros”, sendo que “não se deve fazer a si mesmo o
que não se deve fazer aos outros”.
649
KAI FISCHER, Die Zulässigkeit aufgedrängten staatlichen Schutzes vor Selbstschädigung,
Peter Lang, Frankfurt am Main, 1997, p. 192.
650
LUÍSA NETO, “O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo”, Revista da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano I, 2004, p. 226.
651
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 286 e 287.
174
se consequências no que se refere aos limites que a esta se podem
estabelecer, uma vez que estão em causa “limites que se vão impor ao próprio
direito fundamental” e, nessa medida, só se justificam “se visarem a
prossecução de finalidades constitucionalmente admissíveis”652. A decisão pela
inadmissibilidade de uma dada renúncia no caso concreto traduz-se, portanto,
numa restrição de direitos, pelo que só se justificará se for conforme às
exigências constitucionais653.
Destas considerações não se retira, no entanto, que o poder de dispor
seja ilimitado, uma vez que “a natureza jurídica da renúncia” não se confina ao
exercício
de
um
direito654.
Porque
“determina
objectivamente
um
655
enfraquecimento das posições individuais de direitos fundamentais”
, a
renúncia implica também uma afectação negativa dos direitos. Trataremos, no
Capítulo III, a figura da renúncia nessa sua outra vertente.
Capítulo II: A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no
âmbito da renúncia a direitos fundamentais656
652
REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das
Privatrecht”, cit., p. 176.
653
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., p. 897.
654
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 288.
655
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 288.
656
Sobre a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais ver, entre nós,
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, cit., pp. 384 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “O Provedor de Justiça e o efeito
horizontal dos direitos, liberdades e garantias”, in Provedor de Justiça – 20º Aniversário 1975 –
1995, Sessão Comemorativa na Assembleia da República, 30 de Novembro de 1995, Lisboa,
1996, pp. 59 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Dogmática de direitos fundamentais e
direito privado”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e
Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 339 ss (também in
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – LUIS MENEZES LEITÃO – JANUÁRIO DA COSTA GOMES (orgs.),
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina, Coimbra,
2003, pp. 63 ss); JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, cit., pp. 448 e 1285 ss; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit.,
pp. 298 ss; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, cit., pp. 156 ss; MARCELO REBELO DE SOUSA – JOSÉ DE MELO
ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lex, Lisboa, 2000, p. 97;
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais nas relações entre particulares”,
in Documentação e Direito Comparado, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 5,
Lisboa, 1981, pp. 233 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 231 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os
175
Outra das questões que se impõe abordar antes de tratarmos os limites
propriamente ditos é a da vinculação das entidades privadas aos direitos
fundamentais, uma vez que “o tratamento da problemática da renúncia no
âmbito das relações jurídicas privadas pressupõe a consideração prévia” da
natureza e do alcance desta vinculação657. Para que faça sentido tratar o tema
da renúncia nesta perspectiva é necessário que os particulares estejam
vinculados aos direitos fundamentais, pois de outro modo a questão não se
poderia pôr nestes termos.
1. Apresentação do problema
O reconhecimento de uma vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais começa a dar-se a partir do momento em que, no Estado social
de Direito, se deixa de encarar os direitos fundamentais como direitos que
desempenham essencialmente a função de proteger o indivíduo de ingerências
por parte dos órgãos estaduais, tal como foram configurados no Estado liberal
direitos fundamentais no século XXI”, cit., pp. 1070 ss; JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos
fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, in JORGE REIS NOVAIS, Direitos
Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, cit., pp. 69 ss; JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do
Provedor de Justiça nas relações entre privados”, cit., pp. 229 ss; PAULO MOTA PINTO, “O
direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 227 ss; PAULO MOTA PINTO, “A
influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado, in ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –
JÖRG NEUNER – INGO WOLFGANG SARLET (orgs.), Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Uma Perspectiva de Direito Comparado, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 145 ss; VASCO
PEREIRA DA SILVA, “A vinculação das entidades privadas pelos direitos liberdades e garantias”,
in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIX, Abril – Junho, 1987, pp. 259 ss; JOÃO
JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais,
Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990; JOÃO CAUPERS, Os Direitos
Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Lisboa, 1985, pp. 158 ss; JOAQUIM DE
SOUSA RIBEIRO, “Constitucionalização do Direito Civil”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol.
LXXIV, 1998, pp. 729 ss; MARIA JOÃO ESTORNINHO, A Fuga para o Direito Privado. Contributo
para o Estudo da Actividade de Direito Privado da Administração Pública, 2.ª reimpressão,
Almedina, Coimbra, 2009, pp. 223 ss; BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares
aos Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2005; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos
Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 92 ss; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito
Constitucional, Vol. II, cit., pp. 1102 ss; EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião
e de Manifestação no Direito Português, cit., pp. 115 ss; NUNO E SOUSA, “A liberdade de
imprensa”, Separata do Vol. XXVI do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Coimbra, 1984, pp. 103 ss; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado
de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, p.
204 ss.
657
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 266.
176
clássico658. De facto, “a restrição da eficácia das normas de protecção de
direitos fundamentais, apenas em relação ao Estado, decorre de uma
concepção liberal extremista”, que sustenta que a liberdade apenas pode ser
posta em risco pela acção do Estado, “ficcionando, pelo contrário, a sociedade
civil como isenta de agressões a direitos fundamentais cometidas por
privados”659.
A partir do momento em que se constata que os particulares, nas
relações que estabelecem entre si, não se encontram muitas vezes numa
verdadeira posição de igualdade, revela-se a necessidade de estender a
protecção dos direitos individuais às próprias relações jurídicas de direito
privado660. Tornam-se evidentes “as analogias entre o poder público e o poder
privado, um poder que aflora nas situações caracterizadas por uma
‘disparidade substancial das partes’. Esta falta de ‘simetria’ permite que a parte
que (…) se encontra numa posição dominante condicione a decisão da parte
‘débil’”. Não surpreende, por isso, que “a génese e o desenvolvimento mais
fecundo da teoria da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
tenha tido como cenário o campo das relações laborais”661.
O
reconhecimento
da
vinculação
dos
particulares
aos
direitos
fundamentais implica uma modificação do seu próprio sentido: ao lado de uma
dimensão subjectiva passa a afirmar-se também uma dimensão objectiva,
passando a encarar-se estes direitos igualmente como “princípios ou valores
658
INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., pp. 117
e 118.
659
ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, O Caleidoscópio do Direito. Direito e Justiça nos Dias e no
Mundo de Hoje, 2.ª Edição reelaborada, Almedina, Coimbra, 2009, p. 578.
660
JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, La Eficacia de los Derechos Fundamentales Frente a
Particulares, cit., pp. 233 – 239; JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades
Privadas aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 21 – 28. PEDRO CARLOS BACELAR DE
VASCONCELOS, Teoria Geral do Controlo Jurídico do Poder Público, Edições Cosmos, Lisboa,
1996, p. 30, entende que no Estado social “a esfera do político cresce e subverte
completamente o quadro das tarefas de polícia em que se julgava conter o Estado das
concepções liberais. Por isso, Estado e sociedade irão de novo aproximar-se por múltiplos
caminhos”.
661
JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, “En qué medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e
Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 302 – 305.
177
constitucionais”, aplicáveis à totalidade da ordem jurídica662.
Assim, “só a unidimensionalidade da teoria liberal dos direitos,
liberdades e garantias, que reconduziu (…) os direitos fundamentais a ‘direitos
de defesa-distanciação’ dos particulares ante as entidades públicas”663, justifica
que tivesse sido desprezado o problema da vinculação dos particulares aos
direitos
fundamentais.
Num
contexto
de
“pluridimensionalidade
e
plurifuncionalidade” destes direitos664 já é, no entanto, possível pôr-se a
questão da sua validade nas relações entre privados665. Não podemos
esquecer que, como qualquer norma jurídica, também a Constituição está
sujeita à influência dos tempos666. Verifica-se, hoje, “um processo de contínua
expansão dos direitos fundamentais, em várias direcções”, o que implica que o
seu conteúdo se tem vindo progressivamente a ampliar, “descobrindo os
tribunais novas possibilidades (…) de penetração destes direitos”, “novos
cenários onde se considera que podem operar”. É fundamental não esquecer a
“radical historicidade dos direitos fundamentais”: o seu sentido está em
constante transmutação porque a própria “realidade sociopolítica” a que se
destinam também se tem vindo a alterar. Em virtude disso, “poucas categorias
jurídicas se mostram tão permeáveis à evolução dos standards culturais”667.
O problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais decompõese em duas questões distintas: a primeira diz respeito “às consequências ou
efeitos das normas de direitos fundamentais sobre o direito privado como
662
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 234 e 235.
663
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Omissões normativas e deveres de protecção”, in
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 111.
664
JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, “Constitucionalização do Direito Civil”, cit., p. 742. Sobre a
plurifuncionalidade ou multifuncionalidade dos direitos fundamentais ver, mais
desenvolvidamente, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, cit., pp. 1402 ss; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., p.
68.
665
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 235.
666
PETER
LERCHE,
“Grundrechtlicher
Schutzbereich,
Grundrechtsprägung
und
Grundrechtseingriff”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts
der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p.
743.
667
JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, “En qué medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?”, cit., pp. 300 e 306.
178
sistema de princípios e de regras”; a segunda prende-se “com as
consequências ou efeitos das normas de direitos fundamentais sobre o direito
privado como sistema de relações jurídicas”668. Esta última questão, que
constitui precisamente o objecto da discussão em torno da vinculação das
entidades privadas aos direitos fundamentais é, e provavelmente continuará a
ser, uma questão controversa669.
Vimos já noutra sede670 que as “teorias de construção”671 tradicionais
defendidas a este propósito se dividem entre os que negam a vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, os que advogam a aplicabilidade
imediata destes preceitos constitucionais nas relações entre sujeitos privados
(posições monistas) e aqueles que só indirectamente admitem a relevância dos
direitos fundamentais nesta área (posições dualistas), abrangendo nós aqui a
tese da eficácia mediata e a tese dos deveres de protecção. Parece, no
entanto, que há consenso na doutrina no sentido de que a recusa de qualquer
eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas é, hoje,
indefensável672. Vamos, então, ver em traços gerais em que é que se
consubstanciam as restantes teorias673.
A tese da eficácia directa674 defende que os direitos fundamentais têm
uma “validade absoluta enquanto direitos subjectivos ou normas de valor”,
668
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 19 e 20. Quanto à primeira
questão, do facto de as normas de direitos fundamentais condicionarem o direito privado
(objectivo), compreendido como sistema de princípios e regras, decorre a vinculação do
legislador e do julgador pelas normas de direitos fundamentais. Nesse sentido, também JOSÉ
JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1292.
669
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 23.
670
BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp.
20 ss.
671
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 481.
672
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 72.
673
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 77, considera, inclusivamente, que hoje apenas “ restam verdadeiramente em combate a
tese dos deveres de protecção e a tese da aplicabilidade directa.”
674
Esta posição foi inicialmente desenvolvida e sustentada por Hans Carl Nipperdey e
posteriormente reforçada por Walter Leisner. Ver HANS CARL NIPPERDEY, “Grundrechte und
Privatrecht”, in Festschrift für E. Molitor zum 75. Geburtstag, Verlag C. H. Beck, München,
1962, pp. 17 ss; WALTER LEISNER, Grundrechte und Privatrecht, cit.; ver também INGO
WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em
179
sendo directamente aplicáveis nas relações jurídicas privadas675. Segundo esta
teoria, os particulares podem valer-se dos direitos, liberdades e garantias
“como fundamento autónomo de direitos e deveres relevantes nas relações
jurídico-privadas”, o que determina a “invalidade dos contratos (negócios
jurídicos) contrários às normas de direitos fundamentais” e a “qualificação
como ilícita, por violação de ‘direitos [absolutos] de outrem’, de toda a acção
e/ou de toda a omissão contrária aos direitos fundamentais”676. Assim, de
acordo com esta posição, os direitos, liberdades e garantias aplicam-se
obrigatória e directamente no comércio jurídico entre privados677.
A tese da eficácia mediata678 afirma que as relações entre particulares
são reguladas por um conjunto especial de leis, podendo os direitos
fundamentais
apenas
aí
actuar
indirectamente,
enquanto
“princípios
objectivos”, influenciando a interpretação do direito privado. A influência dos
direitos fundamentais, que, segundo esta perspectiva, se deverá levar a cabo,
principalmente, através da densificação de cláusulas gerais e conceitos
indeterminados, “pode ainda concretizar-se através da interpretação de normas
de direito privado e, em casos excepcionais, até justificar decisões contra o
torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, in INGO WOLFGANG SARLET
(org.), A Constituição Concretizada, Construindo Pontes com o Público e o Privado, Livraria do
Advogado Editora, Porto Alegre, 2000, p. 121; JESÚS GARCÍA TORRES – ANTÓNIO JIMÉNEZ–
BLANCO, Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares, Editorial Civitas, Madrid,
1986, p. 21; e ainda DIETER FLOREN, Grundrechtsdogmatik im Vertragsrecht, Spezifische
Mechanismen des Grundrechtschutzes gegenüber der gerichtlichen Anwendung von
Zivilvertragsrecht, Duncker und Humblot, Berlin, 1998, pp. 20 e 23.
675
JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos
Fundamentais, cit., p. 96; também ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 482.
676
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 23 – 27.
677
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1286.
678
Que se desenvolveu, sobretudo, a partir da formulação de Günter Dürig. Ver sobre esta
questão, GÜNTER DÜRIG, “Art. 1”, in THEODOR MAUNZ – GÜNTER DÜRIG, Grundgesetz
Kommentar, Verlag C. H. Beck, München, 1997, pp. 65 ss; GÜNTER DÜRIG, “Grundrechte und
Zivilrechtsprechung”, in THEODOR MAUNZ (org.), Vom Bonner Grundgesetz zur
gesamtdeutschen Verfassung, Festschrift zum 75. Geburtstag von Hans Nawiasky, Isar Verlag,
München, 1956, pp. 176 ss; também INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e
Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais”, cit., p. 123; JESÚS GARCÍA TORRES – ANTÓNIO JIMÉNEZ – BLANCO, Derechos
Fundamentales y Relaciones entre Particulares, cit., p. 25; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE,
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 236.
180
texto da lei”679. Esta teoria diz-nos que os particulares não podem recorrer aos
direitos, liberdades e garantias como “fundamento autónomo de direitos e
deveres relevantes nas relações jurídico-privadas”680.
Já a tese dos deveres de protecção baseia-se na distinção entre direitos
fundamentais enquanto direitos de defesa em relação ao Estado e direitos
fundamentais enquanto deveres de protecção (Schutzpflichten)681. Passa a
salientar-se também “a tutela supra-individual ou institucional dos direitos
fundamentais”, que deixam de ser encarados como meras “proibições de
ingerência” passando a reconhecer-se também a sua função de “normas de
protecção”. Estes direitos tornaram-se, assim, “o fundamento de uma
actividade do Estado positivamente prosseguida para conferir as condições de
uma efectiva garantia de tais posições subjectivas”682.
Segundo a teoria em análise, os direitos fundamentais vinculam apenas
os entes públicos, mas estes, para além do dever de os respeitar e concretizar,
têm ainda a responsabilidade de os proteger contra quaisquer ameaças, ainda
que essas ameaças resultem da actividade de outros particulares683. A
“garantia constitucional de um direito” origina uma obrigação do Estado de
“adoptar medidas positivas destinadas a proteger o exercício dos direitos
fundamentais perante actividades perturbadoras ou lesivas dos mesmos
praticadas por terceiros”684.
679
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 481.
680
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 23.
681
JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos
Fundamentais, cit., pp. 96 e 97; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais
na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 241. Sobre o desenvolvimento desta figura na
jurisprudência do BVerfG, ver HANS H. KLEIN, “Die Grundrechtliche Schutzpflicht”, in DVBl, n.º
9, 1994, pp. 489 ss. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação
no Direito Português, cit., p. 93, defende que os “deveres de protecção não integram o
conteúdo dos direitos a proteger, antes decorrem de uma obrigação geral de protecção” que,
na CRP, tem base nos arts. 2.º, 9.º, alínea b), 202.º, n.º 2 e 272.º, n.º 1.
682
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 801 e 802.
683
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 241.
684
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
409. Considerando que este dever decorre do princípio do Estado de Direito e do “monopólio
estadual do uso da autoridade e da força legítima”, uma vez que os particulares, salvo
situações de excepção, só se podem defender das agressões dos seus direitos por outros
181
Assim, nos termos desta perspectiva, da dimensão objectiva dos direitos
fundamentais dimana uma “garantia de um padrão mínimo de realização que,
não sendo atingido, significará a violação de uma proibição constitucional de
défice de actuação [Untermassverbot] que vincula juridicamente os poderes do
Estado”685. Haverá um défice de actuação “quando as entidades sobre quem
recai um dever de protecção (…) adoptam medidas insuficientes para garantir
uma protecção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais”686. A
proibição do défice tem duas características específicas: por um lado, limita-se
a um “controlo de resultados” e não a um controlo de meios; por outro lado,
trata-se de um “controlo mínimo”687.
Canaris é um dos principais defensores da teoria dos deveres de
protecção na sua aplicação às relações jurídicas privadas. Segundo ele, o
particulares através da actuação dos entes públicos, ver JOÃO JOSÉ NUNES ABRANTES, A
Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 96 e 97; JOSÉ CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p.
241; também JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche
Schutzpflicht”, cit., pp. 184 – 186. Este Autor critica a jurisprudência do BVerfG por, nas suas
decisões, fundamentar este dever de protecção no preceito que visa a garantia da dignidade da
pessoa humana e ainda na ordem de valores objectiva subjacente à Constituição. Também
PETER UNRUH, Zur Dogmatik der grundrechtlichen Schutzpflichten, Duncker & Humblot, Berlin,
1996, pp. 31 – 37, considera que o BVerfG apresenta apenas estas duas fundamentações para
os deveres de protecção. Ver ainda ECKART KLEIN, “Grundrechtliche Schutzpflicht des
Staates”, cit., p. 1635, que considera que o fundamento decisivo do dever de protecção
estadual se encontra “no estabelecimento do Estado enquanto ordem de paz”.
685
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 76 e 77.
686
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
273.
687
OLIVER KLEIN, “Das Untermassverbot – Über die Justiziabilität grundrechtlicher
Schutzpflichterfüllung”, in JuS, n.º 11, 2006, p. 961. Ver também DIETER GRIMM, “The
protective function of the state”, in GEORG NOLTE, European and US Constitutionalism,
Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p. 151, que sustenta que, graças à margem de
apreciação de que goza o legislador na concretização de um dever de proteger e uma vez que
a proibição do défice garante apenas um “standard mínimo”, a decisão de conferir mais
protecção não implica necessariamente a violação do princípio da proporcionalidade. No
Acórdão n.º 75/10, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos /20100075.html, o TC
estabelece que “enquanto que a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de
todas as acções de destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de
protecção ou promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional
nesse sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção,
nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência
é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado. Somente se existir uma única
acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se torna necessária para o cumprimento
do dever de protecção. O que se retira da Constituição é apenas o dever de proteger, não
estando predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção”.
182
destinatário deste dever de protecção nas relações entre particulares é não só
o legislador de Direito Civil, mas também o julgador de Direito Civil688. No
entanto, “o juiz só deve assumir o encargo de assegurar a protecção dos
direitos fundamentais em questão se considerar que se está abaixo de um
limiar mínimo de protecção, que exige a sua intervenção autónoma”689.
Trata-se de uma “nova tendência” no âmbito da denominada eficácia
indirecta690, uma vez que estende a aplicabilidade dos direitos fundamentais
para além do “preenchimento de cláusulas gerais de direito privado, impondo
aos poderes públicos (…) a obrigação de velarem efectivamente por que não
existam ofensas aos direitos fundamentais pela parte de entidades privadas”691.
Ao falar de deveres de protecção estamos, no fundo, ainda no âmbito da
vinculação do Estado aos direitos fundamentais.
De tudo o que vimos parece-nos que, independentemente da posição
adoptada, a existência de uma vinculação dos particulares, seja qual for a sua
forma e o seu alcance, é, hoje, inquestionável. E, apesar de partirem “de
pressupostos distintos ou operando por vias diversas”, a verdade é que estas
teorias chegam, muitas vezes, “ao mesmo resultado prático”692, até porque há
688
CLAUS-WILHELM CANARIS, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Almedina, Coimbra,
2003, pp. 39 – 41. Sobre esta questão, ver também, do mesmo Autor, “Grundrechte und
Privatrecht”, in AcP, Vol. 184, n.º 3, 1984, pp. 201 ss; “A influência dos direitos fundamentais
sobre o direito privado na Alemanha”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 223 ss.
689
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 108.
690
INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., pp. 126
e 127. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 96,
considera que, “sem prejuízo da adesão que merece a doutrina dos deveres de protecção, (…)
na base de uma resposta constitucionalmente adequada ao problema [da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais] deve estar o modelo doutrinário da eficácia indirecta”.
Determinar, por exemplo, “se é ou não lícito a uma entidade patronal exigir dos candidatos a
um lugar que se submetam a determinados exames médicos não deve ser resolvido por força
da aplicação directa” de preceitos constitucionais “mas sim através do recurso às soluções
desenhadas pelo legislador (…) ou, na sua ausência, por recurso aos princípios gerais de
Direito Comum”.
691
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 241 e 242.
692
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 246; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 303.
Considerando que a teoria da eficácia imediata e que a teoria da eficácia mediata “não se
afastam tanto quanto à partida poderia parecer”, ver CHRISTIAN STARCK, “Artikel 1”, in
CHRISTIAN STARCK – HERMANN VON MANGOLDT – FRIEDRICH KLEIN (orgs.), Das Bonner
183
entre elas vários pontos de convergência. Em primeiro lugar, estas teses estão
de acordo quanto ao papel central a assumir pelo legislador, a quem deve
caber, em primeira linha, “conformar a convivência entre as esferas de
autonomia e liberdade dos cidadãos”. São também unânimes na “aceitação das
modalidades menos contundentes de eficácia dos direitos fundamentais
(realização através da lei ordinária, interpretação conforme à Constituição e
densificação jusfundamentente orientada das cláusulas gerais)”. Finalmente,
concorrem ainda na ideia de que é ao julgador, em particular ao constitucional,
que compete apreciar “se aquela composição feita pelo legislador é
constitucionalmente aceitável”693.
Por outro lado, estas teses distanciam-se no que diz respeito ao papel
do julgador “quando não há lei ordinária aplicável”. Neste último caso, enquanto
a teoria da eficácia imediata aplicará o direito fundamental constitucionalmente
consagrado em quaisquer circunstâncias, a teoria dos deveres de protecção
apenas o fará quando esteja em causa um défice de protecção. Já a teoria da
eficácia mediata “recusará qualquer efeito suplementar produzido pelos direitos
fundamentais com apoio nas normas constitucionais”694.
2. Posição adoptada: a vinculação directa prima facie dos particulares aos
direitos fundamentais
Entre nós, a CRP refere expressamente a vinculação das entidades
privadas no n.º 1 do artigo 18.º695. Tem-se entendido, no entanto, que esta
Grundgesetz Kommentar, cit., p. 167.
693
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 74.
694
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 75.
695
O artigo 18.º, n.º 1, estabelece o seguinte: ”Os preceitos constitucionais respeitantes aos
direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e
privadas.” Esta disposição refere-se, então, apenas a direitos, liberdades e garantias. No
entanto, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre
particulares”, cit., p. 113, coloca a questão de saber por que razão não há uma eficácia directa
dos direitos sociais, na medida em que estes tanto podem ser ameaçados pela acção do
Estado como da sociedade. Apesar disso, parece-nos que, partindo da superação que o
próprio Autor faz da distinção constitucional entre direitos, liberdades e garantias e direitos
184
norma não é conclusiva, uma vez que “não revela a amplitude, a forma e a
intensidade desta vinculação”, sendo, para além disso, necessário averiguar
que sentido dar à palavra “entidades”696: se inclui todos os indivíduos ou
apenas as “pessoas colectivas ou individuais ‘poderosas’”697. Apesar disso,
pelo facto de o legislador constituinte ter consagrado expressamente tal
vinculação, deixa de se justificar, no nosso ordenamento jurídico, uma das
críticas
normalmente apontadas
às
teorias
da
eficácia
imediata
em
ordenamentos onde não existe uma disposição correspondente, que é
precisamente o facto de não haver, na letra da lei, qualquer fundamento para
essas teorias.
Quanto à tese da eficácia mediata, julgamos que esta não tem
devidamente em conta a evolução sofrida pelos direitos fundamentais,
reconduzindo-se “inteiramente à noção mais do que sedimentada de
interpretação conforme à Constituição”698 e, desse modo, “representando
apenas um corolário da afirmação da lei fundamental como norma jurídica e do
princípio da interpretação conforme a mesma”699.
económicos, sociais e culturais, aquilo que poderia ser aplicável nas relações entre particulares
são “refracções dos direitos sociais enquanto garantias típicas de direito de liberdade negativo”
e não já enquanto direitos a prestações positivas.
696
Nesse sentido, INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”,
cit., p. 120.
697
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 251; PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da
personalidade”, cit., p. 229; PEDRO CRUZ VILLALÓN, “Derechos Fundamentales y Derecho
Privado”, in La Curiosidad del Jurista Persa, y Otros Estúdios Sobre la Constitución, Centro de
Estúdios Políticos y Constitucionales, Madrid, 1999, p. 224; JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO,
“Constitucionalização do Direito Civil”, cit., pp. 741 e 742. JORGE SINDE MONTEIRO, “Culpa in
contrahendo”, cit., p. 6 considera, por sua vez, que a “querela sobre a aplicação imediata
(directa) ou mediata (indirecta) dos preceitos relativos aos direitos fundamentais nas relações
entre sujeitos privados (…) não deve ser resolvida a partir de argumentos de texto tirados do
art. 18.º, n.º 1, da CRP”, tratando-se antes de “um problema de metodologia jurídica”. NUNO E
SOUSA, “A liberdade de imprensa”, cit., p. 111, defende que a questão do efeito mediato ou
imediato não se resolve na CRP com clareza, pois ainda que se diga que os direitos vinculam
as entidades privadas, não se dá uma resposta definitiva quanto à questão de saber se o
regime de vinculação destas entidades e o das entidades públicas é inteiramente coincidente.
Já J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1288 ss,
entende, por seu lado, que o artigo 18.º da Constituição “consagra inequivocamente a eficácia
imediata em relação a entidades privadas”, sendo que apresenta “soluções diferenciadas” para
o problema.
698
DANIEL SARMENTO, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Editora Lúmen Juris, Rio
de Janeiro, 2004, p. 245.
699
LUIS PRIETO SANCHIS, Estudios sobre Derechos Fundamentales, Editorial Debate, Madrid,
185
Por outro lado, quando falamos de deveres de protecção estamos ainda
no âmbito da vinculação das entidades públicas, pois em última análise é aos
poderes públicos que cabe o dever de proteger os direitos fundamentais contra
quaisquer ameaças, ainda que essas ameaças resultem da actividade de
outros particulares. Ora a CRP diz algo mais do que isto. A nossa Constituição
“faz aplicar expressamente os direitos fundamentais às relações entre
entidades privadas sem qualquer restrição ou limitação”, pelo que não parece
“legítimo limitar essa eficácia apenas aos casos em que a doutrina estrangeira
[maxime a alemã] a admite quando nada nas respectivas leis fundamentais o
impõe700.
Tem-se considerado que a tese da eficácia directa acaba por
enfraquecer os direitos fundamentais, uma vez que aqui se confrontam titulares
de direitos fundamentais e direitos fundamentais dos dois lados. Nesse sentido,
“a força de trunfo” dos direitos “é desvitalizada ou neutralizada através da
recíproca invocação por parte do oponente”701. Já nas relações estabelecidas
entre indivíduo e Estado “a situação é qualitativamente diferente”, uma vez que
“da parte do Estado não há titularidade de direitos fundamentais”, pelo que este
“só dificilmente pode invocar razões jusfundamentais a favor do interesse que
visa prosseguir” 702.
Parece-nos, no entanto, que esta crítica não colhe, na medida em que
quando o Estado restringe direitos fundamentais fá-lo, precisamente, tendo em
consideração os direitos que conflituam ou poderão conflituar na situação
concreta. Assim, ainda que não haja, da parte do Estado, titularidade de
direitos fundamentais, são muitas vezes razões jusfundamentais que estão na
base das suas ponderações. Há também nesta análise “trunfos” dos dois lados,
1990, pp. 211 e 212.
700
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, cit., p. 386.
701
Como já tivemos oportunidade de ver, segundo a concepção dos “direitos fundamentais
como trunfos” ter um direito fundamental significa “ter um trunfo contra o Estado”, o que implica
“ter um trunfo contra a maioria”. O princípio da dignidade da pessoa humana é o “fundamento
desta perspectiva porque é dessa igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um
conformar autonomamente a existência segundo as suas próprias concepções e planos de
vida”. Sobre esta questão, ver, mais desenvolvidamente, JORGE REIS NOVAIS, “Direitos como
trunfos contra a maioria”, cit., pp. 17 ss.
702
Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre
particulares”, cit., pp. 92 e 93.
186
pelo que não vemos por que motivo a invocação de um direito subjectivo
fundamental contra outro particular é qualitativamente diferente.
Outra crítica prende-se com o facto de, “do ponto de vista da construção
do caso, qualquer conflito deste tipo se transmutar em colisão directa de
direitos fundamentais que (…) terá que ser decidida pelo juiz”. Assim, a tese da
vinculação imediata, “que procurava escapar à mediação do Estado (…), acaba
a reconduzir o problema para o plano das relações Estado/cidadão”703.
Pensamos
que
também
esta
crítica
não
procede.
Trata-se,
efectivamente, de uma restrição de direito fundamental através de decisão
judicial, pelo que temos, a final, uma relação entre Estado e indivíduo que
nasce da intervenção restritiva decidida pelo juiz. Mas essa intervenção
restritiva não deixa de partir do facto de estarmos perante um direito
fundamental de um outro titular que foi pesado pelo juiz. Nessa medida, não é
contraditório com a teoria da eficácia imediata que o Estado, neste caso o juiz,
tenha de intervir. Aquilo que a teoria da eficácia imediata visa garantir é que
este tenha em consideração os direitos fundamentais constitucionalmente
consagrados em quaisquer circunstâncias e não apenas quando haja um défice
de protecção.
Aponta-se ainda como crítica a esta posição o facto de a tese da eficácia
directa entregar “a regulação do problema ao juiz”. Assim, “em última análise
seria o juiz constitucional a decidir, [por exemplo], a controversa questão da
proibição de fumar em locais públicos, independentemente da decisão do
legislador democrático”, enquanto “para a tese dos deveres de protecção
deveria ser o legislador a encarregar-se da composição do conflito
subjacente”704.
703
Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre
particulares”, cit., pp. 94 e 95.
704
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 108. ERNST-WOLGANG BÖCKENFÖRDE, “Grundrechte als Grundsatznormen”, in Der
Staat, Vol. 29, n.º 1, 1990, pp. 30 e 31, faz essas mesmas críticas aos defensores de uma
dimensão objectiva e dos deveres de protecção do Estado. Este Autor sustenta que “ou se
entende que a Constituição, enquanto organiza a vida político-estadual e regula a relação
fundamental Estado – cidadão, estabelece uma ordem quadro e, nessa medida, não contém
em si o material que conduz à harmonização das diferentes posições jurídicas entre si”, ou é
vista como “a ordem jurídica fundamental da comunidade no seu conjunto”. A esta última
perspectiva “corresponde o entendimento dos direitos fundamentais enquanto normas de valor
objectivas, que produzem efeitos em todos os ramos do Direito”. Se a Constituição “é ordem
jurídica fundamental da comunidade”, na medida em que “as exigências constitucionais são
187
Parece-nos, no entanto, importante salientar que a tese da eficácia
directa não sustenta que deva ser o juiz a resolver a controvérsia. Aquilo que
esta perspectiva defende é que o juiz terá de decidir a questão que lhe é
colocada, no caso de o legislador nada dizer e até que o faça. Mesmo que um
qualquer tribunal, na resolução do caso sub judice, tenha feito uma
determinada aplicação do direito fundamental não concretizado por lei, o
legislador não passa a estar de alguma forma limitado ou impossibilitado de
desenvolver legislativamente esse mesmo direito, “afastando-se da linha
seguida pela decisão judicial”705. Para além disso, o reconhecimento de uma
vinculação
dos
particulares
aos
direitos
fundamentais
“não
potencia
substancialmente o risco de um juiz desvinculado mais do que o faz a
aplicação de cláusulas gerais contidas em leis infraconstitucionais”706.
Assim, defender uma vinculação directa dos particulares aos direitos
fundamentais não implica “negar ou subestimar o efeito de irradiação desses
direitos através da lei”. É, de facto, o legislador quem, em primeira linha, deve
resolver as situações de conflito de direitos fundamentais que possam surgir707.
É muito diferente “afirmar que as normas de direitos fundamentais têm eficácia
normativa no âmbito das relações entre particulares, sendo os cidadãos
titulares de tais direitos reconhecidos na Constituição também nas suas
relações jurídico-privadas”, ou considerar “que a Constituição é, por si só, o
instrumento adequado e auto-suficiente para regular a vigência dos direitos
fundamentais no seio de tais relações”708.
Esta perspectiva também não infirma a existência de um dever de
protecção do Estado, que o vincula a proteger os particulares de ofensas ou
ameaças aos seus direitos fundamentais cometidas por terceiros, uma vez que
indeterminadas, o Tribunal Constitucional no papel de concretização do seu âmbito de uma
determinada forma torna-se Senhor da Constituição”.
705
RAFAEL SARAZÁ JIMENEZ, Jueces, Derechos Fundamentales y Relaciones entre
Particulares, Universidad de La Rioja, Logroño, 2008, disponível in dialnet.unirioja.es, p. 636.
706
RAFAEL SARAZÁ JIMENEZ, Jueces, Derechos Fundamentales y Relaciones entre
Particulares, cit., p. 682.
707
JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS, “En qué medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?”, cit., p. 317.
708
RAFAEL SARAZÁ JIMENEZ, Jueces, Derechos Fundamentales y Relaciones entre
Particulares, cit., p. 691.
188
este dever não é incompatível ou contraditório com a ideia de vinculação
imediata. O que nos parece é que, para além disso, poderá ainda existir uma
vinculação imediata dos particulares a estes direitos709. Trata-se de “uma
inequívoca zona de confluência entre a vinculação do poder público (…) e a
vinculação - directa - dos particulares”710.
Vimos ainda que Canaris e os defensores da tese dos deveres de
protecção, enquanto “teoria de construção” mais adequada para resolver o
problema da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, consideram
que os direitos fundamentais só serão violados pelo Estado, quando a decisão
judicial não respeita o “mínimo de protecção” constitucionalmente exigido: vale
aqui o princípio da proibição do défice 711.
O problema está em determinar quando é que nos encontramos
efectivamente abaixo do limiar mínimo em que se consubstancia esse défice de
protecção, tarefa não isenta de dificuldades712. Trata-se de um “novo conceito
delimitador de um standard mínimo de direitos fundamentais protegido, sem
que se tenha conseguido clarificar a evolução deste limite713 ou a questão de
709
DANIEL SARMENTO, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, cit., p. 287.
710
INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 147.
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, cit., p. 387, entendem que “não é a mesma coisa falar-se em vinculação imediata de
entidades privadas (…) ou em dever de protecção (…) dos direitos, liberdades e garantias dos
privados contra privados através do Estado”.
711
CLAUS WILHELM CANARIS, “A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na
Alemanha”, cit., pp. 241 e 242.
712
GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 13. MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II,
Grundrechte, cit., p. 42, refere que “os deveres de protecção partilham da mesma fraqueza que
os direitos sociais, na medida em que o seu conteúdo não está fixado pela Constituição e,
muitas vezes, não se consegue precisar suficientemente pela via da interpretação. Como é que
a protecção do direito fundamental previsto através de um direito de defesa deve, em concreto
fazer-se, ou seja, que medidas é que são exigidas no caso concreto, não é, de modo nenhum,
claro”. O TC, no Acórdão n.º 166/10, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
20100166.html, procura concretizar mais este princípio, estabelecendo que “poderá considerarse que existe um deficit inconstitucional de protecção (ou de prestação normativa), quando as
entidades sobre as quais recai o dever de proteger adoptam medidas insuficientes para
garantir a protecção adequada às posições jusfundamentais em causa, sendo que tal sucede
sempre que se verificar um duplo teste: (i) sempre que se verificar que a protecção não satisfaz
as exigências mínimas de eficiência que são requeridas pelas posições referidas; (ii)
cumulativamente, sempre que se verificar que tal não é imposto por um relevante interesse
público, constitucionalmente tutelado”.
713
HANS HANAU, Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit als Schranke privater
Gestaltungsmacht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004, p. 68, entende que “os pressupostos de
utilização da proibição do défice de protecção são obscuros e de contornos pouco claros”. Tem
189
saber quem é que o pode determinar vinculativamente”714. Por outro lado, o
havido, de facto, alguma divergência na doutrina quanto à densificação deste princípio.
Considerando que “’não decorre da proibição do défice nada que não se retiraria já do princípio
da proibição do excesso’”, ver KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 814. Referindo a “vacuidade” do conceito de
proibição do défice, ver JOHANNES DIETLEIN, “Das Untermassverbot: Bestandaufnahme und
Entwicklungschancen einer neuen Rechtsfigur", in ZG, n.º 10, 1995, p. 133. KARL-EBERHARD
HAIN, "Der Gesetzgeber in der Klemme zwischen Übermaß- und Untermaßverbot", in DVBl,
1993, pp. 982 ss, defende que o meio mais necessário para o princípio da proibição do
excesso corresponde ao mínimo necessário exigido pela proibição do défice. Também JOSÉ
JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Omissões normativas e deveres de protecção”, cit., p. 118,
entende que “é discutível” a autonomia do “princípio da proibição de protecção insuficiente” em
relação ao do princípio da proporcionalidade. Considerando, no entanto, que não há uma
correspondência entre o princípio da proibição do excesso e o princípio da proibição do défice,
ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 242; JOHANNES DIETLEIN, “Das Untermassverbot: Bestandaufnahme und
Entwicklungschancen einer neuen Rechtsfigur", cit., pp. 136 – 138. DETLEF MERTEN,
“Grundrechtliche Schutzpflichten und Untermassverbot”, in Gedächtnisschrift für Joachim
Burmeister”, C.F. Müller Verlag, Heidelberg, 2005, pp. 239 ss, entende que “a proibição do
excesso e a proibição do défice estão nos antípodas uma da outra e que esta última não deriva
da primeira. A proibição do excesso dirige-se contra a actividade do Estado e a proibição do
défice dirige-se contra a passividade”. Tal não impede, no entanto, “que haja semelhanças
quanto aos elementos que estas contêm”. CHIEN-LIANG LEE, “Grundrechtschutz unter
Untermassverbot?”, in Die Ordnung der Freiheit. Festschrift für Christian Starck zum siebzigsten
Geburtstag, Mohr Siebeck, Tübingen, 2007, pp. 304 – 309, sustenta que “é essencial
distinguirmos duas constelações fundamentais nesta matéria: os casos em que existe uma
relação triangular (Estado, titular do direito e quem lesa o direito) e os casos em que não existe
essa relação”. Nestes últimos normalmente não se coloca a questão da proibição do excesso,
uma vez que não são necessárias intervenções em direitos de terceiros. Aqui não há uma
correspondência entre a proibição do défice e a proibição do excesso. A “tese da congruência
entre proibição do excesso e proibição do défice só poderá verificar-se (…) no caso de o
legislador ter criado uma norma de protecção restritiva. Na medida em que o legislador não
tenha levado a cabo qualquer medida protectora, ou quando diminui a protecção da/ou retira a
norma que concretiza o dever de protecção, só será aplicável a proibição do défice”. Sobre
esta questão, ver ainda MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie,
Nomos, Baden-Baden, 2005, em particular pp. 69 ss. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos
Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 77 – 79,
nota 103, entende que a proibição do défice não acrescenta nada ao que resulta do princípio
da proibição do excesso, “enquanto parâmetro de controlo da desproporcionalidade de uma
restrição”. Para o Autor, “o interesse dogmático do princípio da proibição do défice coloca-se
(…) a montante, isto é, no momento em que se trata de saber se, pelo facto de ter violado um
patamar mínimo de obrigatoriedade de realização de um direito fundamental (…), o Estado não
está a restringir ilegitimamente esse direito e se, quando se trata de controlar a ponderação de
bens que conduziu o Estado a preferir tal restrição, o juiz constitucional não goza (…) de um
controlo pleno sobre tal ponderação de bens”.
714
MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., p. 82. Maria Lúcia
Amaral, no seu voto de vencida no já citado Acórdão n.º 75/10, considera que, de facto,
“’cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento de mensuração exacta do
grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever.’ No
entanto, tal não implica que só se justifique uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de
manifesto erro de avaliação do legislador, detectado a partir de critérios de evidência. Enquanto
critério de identificação da existência, ou inexistência, de deficit de protecção legislativa esta
formulação parece-me claramente insuficiente. E parece-me antes que, sempre que o
legislador estiver constitucionalmente obrigado a proteger certo bem, tal significa que as
medidas a adoptar deverão propiciar a mais ampla protecção que seja fáctica e juridicamente
190
facto de o julgador ser chamado a tomar essa decisão envolve igualmente um
perigo para o princípio da separação de poderes715.
Coloca-se, para além disso, outro problema, que se prende com as
consequências que decorrem da decisão judicial. A dúvida com que nos
deparamos é se faz sentido que um particular, que não tem perante outro um
dever decorrente de um direito subjectivo, valendo apenas a “dimensão
objectiva do direito” e dela decorrendo um “dever geral de respeito”716, seja
eventualmente obrigado a indemnizá-lo ou a sofrer quaisquer outras
consequências que decorram da decisão judicial. É que se se entende que
quem tem o dever de proteger o direito fundamental em causa é o Estado,
neste caso o juiz (ou, em última análise, o legislador, que deveria ter legislado
de modo a acautelar a posição do sujeito), parece que deveria ser o próprio
Estado a sofrer as consequências do seu défice de protecção717.
Finalmente, uma vez que defendemos que não pode haver uma
restrição de um direito fundamental de um particular por parte de outro
particular, não consideramos que levar a sério a qualidade dos direitos
fundamentais como “direitos subjectivos oponíveis a outros particulares” tenha
possível, i.e., que não seja incompatível com outros princípios ou valores constitucionais que
se devam também prosseguir. Uma medida que fique aquém do fáctica e juridicamente
possível – isto é, que não confira a mais ampla protecção que seja ainda compatível com
outros princípios e valores constitucionais – não é, em princípio, ‘adequada’, pois não
concretiza o mandato de concordância prática entre diferentes bens jusfundamentais a que
está adstrito o legislador – tanto aquele que restringe, quanto aquele que protege ou promove”.
715
MICHAEL SACHS, Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 42.
716
Sobre esta questão, ver JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas
relações entre privados”, cit., pp. 281 e 282. Segundo o Autor, “a validade dos direitos
fundamentais nas relações entre privados não é idêntica à que se verifica nas relações entre
indivíduo e Estado. Nas relações entre privados os direitos fundamentais valem na sua
dimensão objectiva”. Essa dimensão objectiva nas relações entre privados traduz-se,
“relativamente ao Estado, num dever de protecção”. Quanto aos particulares, “significa um
dever geral de respeito a que todos se encontram obrigados”.
717
PETER PREU, “Freiheitsgefährdung durch die Lehre von den grundrechtlichen
Schutzpflichten”, in JZ, n.º 6, 1991, p. 267, referindo-se aos perigos da teoria dos deveres de
protecção, defende que “quando um comportamento não é proibido à luz do direito privado, o
cidadão deve poder confiar que ele é permitido”. Considerando que, na ausência de legislação
ordinária, “se os particulares não se encontrassem vinculados pelos direitos, liberdades e
garantias, tornar-se-ia problemático que um tribunal lhes impusesse directamente tal respeito
meramente alegando o seu dever jurisdicional de os proteger”, ver EDUARDO CORREIA
BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., p. 117.
Segundo o Autor, “uma coisa é um tribunal impor este respeito a entidades públicas, em nome
do dever de respeito e protecção dos direitos fundamentais. Outra é impô-lo a quem (nos
termos de uma eficácia meramente mediata ou indirecta), não teria dever de os respeitar”.
191
forçosamente de significar “que os novos destinatários” destes direitos estejam
sujeitos aos “diferentes princípios e subprincípios” que obrigam o Estado, ou
seja, que toda a dogmática das restrições tenha “de ser transposta para o
domínio das relações entre particulares”718. Quem renuncia perante o Estado
não está a lidar com um particular que se caracteriza pela sua autonomia
privada, mas antes “com um sujeito de Direito que, em toda a sua actuação,
tem de respeitar os princípios do Estado de Direito, da democracia e do Estado
social, assim como a própria repartição de competências” constitucionalmente
estabelecida. Ora “estes princípios estabelecem limites à renúncia que não têm
necessariamente correspondência num consentimento para uma actuação
privada”719.
Não nos parece, por isso, contraditório admitir uma vinculação directa
dos particulares aos direitos fundamentais e não admitir essa vinculação (ou
pelo menos não a admitir com o mesmo alcance), a princípios de natureza
objectiva que, pela sua própria natureza, não faria sentido estender às relações
entre particulares720.
Assim, o dever do Estado de proteger os direitos fundamentais não deve
ser absolutizado, pois “não é aceitável que, numa ordem constitucional assente
nos valores da liberdade e da responsabilidade individuais, se transforme o
Estado numa espécie de garante geral dos direitos das vítimas perante
quaisquer factos de terceiros que lesem os seus direitos fundamentais. Daí
que, não sendo o Estado que perturba os direitos fundamentais, mas outro
particular, o dever de protecção não possa substituir a vinculação das
718
Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre
particulares”, cit., p. 102.
719
KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 61
e 62.
720
Será esse, por exemplo, o caso do princípio da igualdade. Sobre a questão da vinculação
dos particulares ao princípio da igualdade, ver BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos
Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 41 ss. Não está aqui em causa, obviamente, a
importância destes princípios, que “pertencem ao direito positivo e são princípios estruturantes
da nossa ordem jurídica”, conferindo-lhe “fundamento normativo e emprestando-lhe o conteúdo
mínimo ético”. Ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Princípios. Entre a sabedoria e a
aprendizagem”, in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS – JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JOSÉ
FARIA COSTA, Ars Iudicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira
Neves, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 382. A sua natureza é que poderá implicar
que não faça sentido aplicá-los às relações jurídicas privadas.
192
entidades privadas pelos direitos fundamentais”721.
Por conseguinte e partindo também do que já tivemos oportunidade de
dizer noutros escritos722, parece-nos que será de reconhecer uma vinculação
directa “prima facie”, ou seja, a inviabilidade de uma vinculação directa “de
feições absolutas”, mas, ainda assim, uma vinculação directa dos particulares
aos direitos fundamentais723.
A impossibilidade “de uma eficácia directa ‘absoluta’ e a necessidade de
se adoptar soluções diferenciadas decorre (…) da estrutura normativa e da
natureza eminentemente principiológica” dos direitos fundamentais724. Os
privados vinculados pelos direitos em questão não estão vinculados nos
mesmos termos que as entidades públicas, pois são igualmente titulares de
outros direitos fundamentais725. Considerar que há uma vinculação imediata
dos particulares aos direitos fundamentais não implica, por isso, que deva
haver uma equiparação total entre pessoas públicas e privadas. Tratando-se de
relações entre titulares de direitos fundamentais, sempre se verificarão conflitos
que exigem soluções diversas, dependendo do caso concreto e dos direitos
fundamentais em causa, sendo, em última análise, “um problema de
721
RUI MEDEIROS, “O Estado de Direitos Fundamentais Português: alcance, limites e desafios”,
cit., pp. 31 e 32.
722
BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp.
86 ss.
723
Esta é a posição defendida por INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito
Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais”, cit., p. 157.
724
INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157.
Considerando também que nas relações entre particulares a vinculação dos particulares, sem
deixar de ser directa, é “menos absoluta”, ver JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, “O Problema do
Contrato”, cit., p. 137. Vários Autores propõem soluções diferenciadas. É o caso de PAULO
MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 237; JOSÉ JOAQUIM
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1246 – 1251;
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 305 e 306; JORGE MIRANDA, “Artigo
18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 158;
MARCELO REBELO DE SOUSA – JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição da República
Portuguesa Comentada, cit., p. 97; HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil
Português. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 96 ss. Em sentido
contrário, ver JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre
privados”, cit., pp. 254 ss.
725
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais nas relações entre
particulares”, cit., p. 243.
193
ponderação”726.
A vinculação directa ou imediata das entidades privadas aos direitos
fundamentais é uma vinculação directa ou imediata prima facie “porque em
princípio (…) os direitos fundamentais aplicam-se nas relações jurídicoprivadas; exceptuam-se os casos em que os direitos fundamentais não devam
aplicar-se, por causa de uma ponderação de bens e/ou valores”727.
3. Consequências para o problema da renúncia nas relações entre
particulares
Passando agora à questão que directamente nos ocupa, o facto de se
admitir uma vinculação directa prima facie dos particulares aos direitos
fundamentais não significa que estes não devam poder, “nas suas relações
recíprocas (…), renunciar às normas de direitos fundamentais”728. Admitir-se a
vinculação directa tem como consequência apenas que se terá de fazer a
análise da relação jurídico-privada através dos direitos fundamentais, o que
não quer dizer que o particular não possa, nessa relação, dispor sobre as suas
posições
jurídicas
subjectivas
protegidas
pelas
normas
de
direitos
fundamentais através de uma renúncia729.
Partindo da tese da vinculação imediata, isto é, sendo que entendemos
que os particulares são sujeitos activos e passivos de direitos fundamentais
726
INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157.
727
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 35. JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”,
in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 158, sustenta
como uma das “linhas de solução” para a questão da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais “a consideração dos problemas em concreto como problemas de escolha entre
vários bens pelos destinatários (…) das normas e como problema de colisão de direitos”.
728
Nesse sentido, KONRAD HESSE apud INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e
Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais”, cit., p. 144.
729
Não nos parece, por isso, que defender uma vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais tenha de implicar a defesa de uma tirania ou totalitarismo de valores.
Considerando que os que negam a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais são
os seguidores de “uma corrente de opinião que denuncia a chamada tirania ou totalitarismo de
valores”, ver PEDRO CRUZ VILLALÓN, “Derechos Fundamentales y Derecho Privado”, cit., p.
223.
194
nas relações que estabelecem entre si, faz sentido falar em renúncia nas
relações jurídico-privadas. Estando os entes privados directamente vinculados
por tais direitos, não há especificidades quanto à pertinência da renúncia neste
âmbito730. O mesmo já não se pode, contudo, dizer no que se refere aos limites
a respeitar, uma vez que neste caso o destinatário da declaração de renúncia é
um particular e não o Estado.
Se, por outro lado, se considerar que essa vinculação é apenas mediata,
ainda assim não é de excluir que se possa colocar o problema da renúncia.
Mesmo que se defenda a teoria da eficácia mediata tal como esta foi
originariamente concebida, partindo da ideia de que os particulares estão
vinculados a princípios e valores que se fazem valer no direito privado através
das cláusulas gerais da ordem pública e dos bons costumes, poderia colocarse a questão da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Quando “um indivíduo renuncia validamente a uma determinada
posição jurídica de direitos fundamentais, o negócio jurídico que contém a
renúncia não poderá mais ser considerado como contrário aos bons costumes
em virtude do significado dessa posição”. A determinação da contrariedade à
ordem pública ou aos bons costumes de uma declaração de vontade de direito
privado depende, por conseguinte, da validade da renúncia a uma determinada
posição de direitos fundamentais731.
O mesmo se poderá dizer partindo da teoria dos deveres de
protecção732. Vimos já que nela se sustenta que os poderes públicos têm o
dever de proteger os direitos fundamentais contra quaisquer ameaças, ainda
que essas ameaças resultem da actividade de outros particulares. Da
dimensão objectiva deriva um dever do Estado de garantir um mínimo de
protecção aos direitos fundamentais que se não for respeitado implica a
violação do princípio da proibição do défice.
730
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 217.
731
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 219.
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 930, considera que uma renúncia que não respeite os limites
previstos no art. 1.º e na 2.ª Parte do art. 19.º GG, viola os bons costumes nos termos do § 138
do Código Civil alemão.
732
Fazendo a análise da problemática partindo desta perspectiva, ver PHILIPP S. FISCHINGER,
“Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 812 ss.
195
Assim, segundo a teoria dos deveres de protecção os indivíduos não se
encontram vinculados aos direitos fundamentais nas relações jurídicas que
estabelecem entre si. No entanto, essas mesmas relações, quando levadas a
juízo, têm de ser avaliadas através das valorações da Constituição, em virtude
da vinculação do julgador aos direitos fundamentais. O juiz, segundo esta
perspectiva, só está autorizado a descurar a força de irradiação dos direitos
fundamentais em jogo se a renúncia for válida733.
Em conformidade com isso, os órgãos jurisdicionais que se tenham de
pronunciar acerca da validade de um negócio jurídico de direito privado têm de
ter em consideração os direitos fundamentais, apenas podendo permitir uma
disposição sobre posições jurídicas de direitos fundamentais quando a
renúncia seja admissível. Deste modo, mesmo para os defensores da teoria
dos deveres de protecção não deixa de se colocar o problema da renúncia a
direitos fundamentais nas relações entre privados. Parece-nos, todavia, que
quem parte desta perspectiva considerará que a autorização para o juiz intervir
deve ser “mais contida”, na medida em que, de acordo com a teoria dos
deveres de protecção, este só o deverá fazer “em casos extremos ou de
evidente défice de protecção da liberdade individual”734.
Assim, faz sentido colocar o problema da renúncia a direitos
fundamentais nas relações entre particulares quer se defenda a vinculação
imediata ou mediata (incluindo nós aqui a teoria dos deveres de protecção)
destes aos direitos fundamentais. Apenas quando se afasta completamente
qualquer eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas é
que a questão da renúncia nas relações entre particulares deixa de ter
qualquer significado735.
Uma vez que admitimos uma vinculação directa prima facie, quando os
particulares renunciam a direitos fundamentais perante outros particulares
estão a gozar do seu poder de disposição sobre posições jurídicas subjectivas
733
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 221.
734
JORGE REIS NOVAIS, “Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”,
cit., p. 107.
735
Considerando que se se nega “que os direitos, liberdades e garantias se aplicam
imediatamente em relação aos particulares em rigor não existe renúncia, precisamente por
estes não terem aplicação”, ver EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de
Manifestação no Direito Português, cit., p. 130.
196
de que são titulares. Tal não significa, no entanto, que não possa haver
diferenças atinentes aos limites a estabelecer à admissibilidade da renúncia
pelo facto de, neste caso, o destinatário da declaração de renúncia ser um
particular e não já o Estado. Quem renuncia está, através da renúncia, a dispor
de um seu direito fundamental. Nas relações entre privados temos, porém, de
ter em consideração que “o destinatário da renúncia, que actua com base no
consentimento de quem renuncia e que adquire através do consentimento um
direito a agir está, [ao contrário do Estado], a exercer também uma posição
jurídica jusconstitucionalmente protegida”. Esta posição jurídica teria como
limite os direitos fundamentais do outro particular que a ela se poderiam opor
se não houvesse consentimento736.
Assim
sendo,
vamos
finalmente
procurar
perceber
quais
as
especificidades da renúncia a posições subjectivas de direitos fundamentais
nas relações entre particulares.
Capítulo III: Os limites da renúncia propriamente ditos
Um dos problemas fundamentais com que o Direito tem inelutavelmente
de se confrontar é o de estabelecer um compromisso entre os valores em que
uma dada comunidade se revê e visa prosseguir e a liberdade dos indivíduos
de poderem escolher o modo de vida que pretendem levar737.
A renúncia nas relações entre particulares, como referimos já
oportunamente, envolve uma afectação negativa de um direito fundamental,
ainda que se traduza igualmente em exercício do direito. Por conseguinte, a
constatação de que existe um direito a renunciar não quer, contudo, dizer, que
o poder de dispor sobre posições subjectivas de direitos fundamentais seja
ilimitado, mesmo na renúncia entre entes privados. De facto, “num contexto
jurídico-constitucional em que (…) a liberdade individual está associada à
solidariedade cívica e a uma ética de responsabilidade comunitária (…),
736
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 222.
737
MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e
conteúdo normativo”, in INGO WOLFGANG SARLET (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e
Direito Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, pp. 108 e 109.
197
percebe-se que o primado da liberdade e o consequente princípio da
disponibilidade dos direitos fundamentais (…) estejam sujeitos a determinados
limites”738.
Cabe ao Estado garantir que o enfraquecimento do direito fundamental
resultante do acto de disposição não vai além do que é constitucionalmente
admissível. Nesse sentido, pode fazer determinadas exigências, de modo a
atribuir-lhe força jurídica. A protecção de bens essenciais para a comunidade
pode “justificar restrições à liberdade do indivíduo e para o legislador ordinário
ficou a tarefa de concretizar a harmonização de tais exigências”739. No entanto,
uma vez que a liberdade é a regra e a restrição a excepção, ao desempenhar
tal tarefa o legislador tem sempre o ónus de justificar a restrição da liberdade,
pelo que deve estar balizado no exercício das suas funções para evitar que se
cometam abusos, particularmente (e para o que nos interessa) no que diz
respeito à limitação do poder de dispor sobre posições de direitos
fundamentais.
Vamos então, neste capítulo, dedicar-nos ao problema dos limites da
renúncia nas relações entre particulares, partindo dos limites que a doutrina
tem vindo a invocar na renúncia no âmbito das relações que se estabelecem
entre o Estado e os cidadãos, de modo a apreciar em que termos são
extensíveis às relações jurídicas privadas740.
Antes disso, porém, veremos em que medida é que o facto de o poder
de disposição apresentar a natureza de princípio é relevante para aferir da
admissibilidade concreta de uma dada renúncia. Com efeito, uma vez que,
como já referimos, o poder de renúncia é um poder fundamentado na própria
titularidade do direito, consubstanciando-se ainda em exercício do direito, este
goza da natureza principiológica “típica dos direitos fundamentais”741.
738
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 309.
739
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 159.
740
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 266, entende que as
conclusões relativas à admissibilidade e limites da renúncia a direitos fundamentais na relação
Estado/cidadão são, excluindo a problemática da reserva de lei, essencialmente aplicáveis,
com as devidas adaptações, às relações jurídicas privadas.
741
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291.
198
1. Considerações prévias: os direitos fundamentais enquanto princípios
De acordo com o que designa de “modelo combinado de regras e
princípios”, Alexy considera que as normas de direitos fundamentais tanto
podem surgir com a estrutura de princípios como de regras, podendo
inclusivamente conter a “dupla natureza” de princípio e regra. Este modelo
inclui um “nível de princípios”, ao qual pertencem todos os princípios
constitucionalmente relevantes para uma ponderação e um “nível de regras”,
que são já o resultado de uma tentativa de ponderação entre exigências que
decorrem de princípios conflituantes742.
Em conformidade com isso, há normas da Constituição que detêm a
natureza de regra, que são aquelas em que o legislador constituinte, na sua
consagração constitucional, fez já “todas as ponderações que havia a fazer”.
No entanto, “estas regras são a excepção”. Normalmente as normas de direitos
fundamentais não detêm a natureza de regras, mas antes de princípios, o que
significa que, ainda que consagrados na Constituição, estes direitos “podem ter
de ceder perante outros bens ou interesses que apresentam, no caso concreto,
um maior peso”743. As situações de colisão de direitos fundamentais ou de
direitos fundamentais com outros bens constitucionalmente protegidos que não
sejam directamente resolvidas pela Constituição obrigam a uma ponderação
dos bens colidentes no caso concreto744. Para que possa verificar-se uma
colisão de princípios é necessário, antes do mais, que os princípios que
colidem sejam válidos745.
Assim, a natureza principiológica das normas de direitos fundamentais
implica que “os direitos nelas sustentados só se convertem em direitos
definitivos depois de passarem pelo crivo da ponderação com princípios
742
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 117 ss; JORGE REIS NOVAIS, As
Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit.,
pp. 334 e 335. Ver também, sobre esta questão, WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, Colisão de
Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade, Livraria do Advogado Editora, Porto
Alegre, 2001, pp. 122 ss.
743
JORGE REIS NOVAIS, “Direitos como trunfos contra a maioria”, cit., pp. 51 e 52.
744
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 626.
745
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 94.
199
opostos nas circunstâncias do caso concreto”. Até que seja feita essa
ponderação, são somente “direitos prima facie, ou seja, direitos que podem ter
de ceder face ao eventual maior peso que, no caso concreto, apresentem
outros princípios, interesses ou valores”746. Uma vez que os princípios
envolvem uma dimensão de ponderação, sendo “prioridades prima facie”, eles
“não fornecem uma solução definitiva”, antes criando “ónus de argumentação”,
abrindo-se “as portas para uma teoria da argumentação”747. O processo
metodológico é distinto quando se interpreta uma regra ou um princípio: “as
regras interpretam-se” e “os princípios concretizam-se,” o que significa que
estes últimos “apontam para os modelos de concretização e ponderação”748.
O carácter de princípio das normas de direitos fundamentais origina,
portanto, a necessidade de ponderações. O “processo de ponderação” é um
“processo racional” mas que “não conduz em todos os casos a uma mesma
solução”749. Se estivermos perante duas regras que se contradigam, estas
excluem-se uma à outra; se, por outro lado, se tratar de dois princípios que
conflituam, estes devem “ser compatibilizados pelo intérprete através de uma
solução que procure a conciliação entre os seus diferentes critérios ou
indicações”750.
Por conseguinte, nas relações que se estabelecem entre titulares de
direitos fundamentais, sempre existirão conflitos que exigem soluções distintas,
dependendo do caso concreto e dos direitos fundamentais envolvidos751. Do
746
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 339. Ver também JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e
Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, cit., p. 75;
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos
Fundamentais”, in RLJ, n.º 3815, 1992, p. 38; CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais
(Teoria Geral), cit., pp. 130 ss; VARELA DE MATOS, Conflito de Direitos Fundamentais em
Direito Constitucional e Conflito de Direitos em Direito Civil, E.L.C.L.A., Porto, 1998, p. 18.
747
JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos
Particulares, cit., pp. 167 – 169.
748
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem”, cit.,
p. 386.
749
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 494.
750
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 107; também JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1161; JOAQUIM FREITAS DA
ROCHA, Constituição, Ordenamento e Conflitos Normativos. Esboço de uma Teoria Analítica da
Ordenação Normativa, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 158 e 159.
751
INGO WOLFGANG SARLET, “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”, cit., p. 157.
200
“próprio conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma
questão de tudo ou nada, mas antes de uma tarefa de optimização”, pelo que o
modelo de ponderação “corresponde ao princípio da concordância prática”752.
As tentativas de fugir a métodos de ponderação partiam da existência de
uma relação hierárquica entre os diferentes direitos, podendo “deduzir[-se]
relações de preferência absolutas ou relativas entre direitos fundamentais e os
bens em colisão”753. É, porém, de negar uma “solução com base numa ordem
de valores ou numa mais-valia de um direito em relação ao outro”754. Não é
possível
estabelecer
uma
“ordenação
rígida”
na
teoria
dos
direitos
fundamentais755, pois não existe uma prevalência a priori de determinados
direitos.
Essa
prevalência
“requer
ulteriores
valorações
atinentes
ao
problema”756. Para que “os valores e princípios sobre os quais se deve hoje
basear a Constituição” possam coexistir torna-se inevitável não atribuir a cada
um desses valores e princípios “um carácter absoluto”, pois estes devem ser
necessariamente compatíveis com outros com que têm de conviver757.
O facto de se considerar que não existe uma ordem constitucional de
valores em abstracto, ou seja, sem se atender às circunstâncias do caso
752
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 152. Embora nem sempre estas
metodologias tenham andado a par. Sobre essa questão, ver, mais desenvolvidamente, JORGE
REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela
Constituição, cit., pp. 684 ss. Considerando também que, “em rigor, deve distinguir-se entre
harmonização de princípios e ponderação de princípios”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1241. Segundo o Autor,
enquanto “[p]onderar princípios significa sopesar a fim de se decidir qual dos princípios, num
caso concreto, tem maior peso”, “[h]armonizar princípios equivale a uma contemporização ou
transacção entre princípios de modo a assegurar, nesse caso concreto, a aplicação coexistente
dos princípios em conflito”. Ver também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição
Dirigente e Vinculação do Legislador, cit., pp. 199 e 200.
753
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 698.
754
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 381.
Também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., p. 1090,
considera que “em matéria de colisão de direitos (…) não seria admissível uma solução de tipo
rígido”. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de
Direitos Fundamentais”, in RLJ, n.º 3823, 1992, pp. 294, entende que “é hoje reconhecido que
não existe uma ordem de valores no catálogo de direitos fundamentais”.
755
JOÃO LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos
Particulares, cit., p. 171.
756
JOSÉ LAMEGO, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de
Liberdade de Consciência, cit., pp. 74 e 75.
757
GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, cit., p. 13.
201
concreto, não significa, no entanto, que se tenha de conceber a Constituição
como uma “ordem axiologicamente neutra”. Não está subjacente a esta
posição qualquer “ideia de nivelação ou relativismo ético”. Aquilo que se
defende é apenas que não é possível “fazer decorrer de uma ordem
constitucional de valores consequências jurídicas mecânicas (…) quanto às
prioridades de concretização de cada um desses bens quando a respectiva
realização colide com exigências de realização de outros”758.
Alexy entende, no entanto, que ainda que não seja de admitir uma
ordem de valores ou princípios forte, “que fixe a decisão jusfundamental em
todos os casos de uma maneira intersubjectivamente obrigatória”, não é de
afastar a possibilidade de “ordens mais fracas”. O Autor defende uma teoria
dos princípios que contém um leque de princípios jusfundamentais e que os
coloca numa ordem flexível, através de “prioridades prima facie”, em torno “dos
princípios da liberdade jurídica e da igualdade jurídica”. Tal não exclui o
afastamento, por exemplo, do princípio da liberdade jurídica por outros
princípios opostos. Simplesmente exige que para a solução requerida pelos
princípios opostos se aduzam razões mais fortes do que para a solução
requerida pelo princípio da liberdade jurídica759.
Parece-nos que o reconhecimento desta ordem constitucional de valores
branda tem consequências ao nível da distribuição do “ónus da argumentação”
e, consequentemente, poderá fazer sentido admiti-la, graças ao papel central
que o princípio da dignidade assume na nossa ordem constitucional e à ligação
incindível que detém com as ideias de autonomia e igualdade. Na medida em
que o poder de disposição individual sobre posições individuais de direitos
fundamentais se funda no conteúdo de autonomia ínsito nesses mesmos
direitos, quando estiver em causa o alcance prático desse poder de disposição
num caso concreto, o ónus da argumentação deve, então, recair sobre quem
758
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 705 e 706.
759
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 142, 143 e 516 – 518. EDUARDO
CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português, cit., p.
190, refere que a “prevalência não necessita de ser estabelecida meramente em situações
individuais e concretas”, podendo, pelo contrário, “ser estabelecida [uma prevalência relativa]
em termos abstractos”.
202
pretende impugnar essa possibilidade760.
Ainda assim, a “inexistência de uma ordem abstracta de bens
constitucionais” obriga a “uma operação de balanceamento desses bens”,
através da qual se obtém “uma norma de decisão adaptada às circunstâncias
do caso”761. O significado dos princípios, ao contrário do que acontece com as
regras, “não se pode determinar em abstracto, mas apenas em casos
concretos e só nesses casos (…) se pode compreender o seu alcance”762.
Deve, por isso, aplicar-se aqui o princípio da concordância prática o que
significa que, na resolução de conflitos ou colisões se deve tentar realizar, na
maior medida possível, os bens jurídicos em jogo763. Tal concordância prática
“evita a fuga dos problemas metódicos-constitucionais para os planos
metafísicos da ordem de valores, com a consequente tirania dos valores”764.
O princípio da concordância prática realiza-se “através de um critério de
proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito”765 e impõe
ponderações “que não devem efectuar-se numa única direcção”. É por essa
razão que alguns Autores têm dúvidas quanto à aplicação “do princípio in dubio
pro libertate” como critério de interpretação766.
760
Em sentido contrário, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não
Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 698 – 701, considera que “a
operatividade da existência” de uma “ordem constitucional de valores branda, relativa ou de
prima facie, isto é, meramente indicativa de preferências cuja definitividade estaria, contudo,
condicionada à verificação de circunstâncias concretas de cada caso” é “limitada já que, em
última análise, acaba por ser a valoração subjectiva dos factores e circunstâncias particulares
do caso concreto a determinar decisivamente a colisão de bens”. Para o Autor, “mesmo que
fosse possível construir teoricamente uma ordem constitucional de valores hierarquizada de
forma branda, ela nada mais forneceria à solução do caso concreto que uma frágil presunção
de partida ou de prima facie susceptível de ser infirmada pela configuração com que os bens
em colisão se apresentassem no caso concreto e pelas circunstâncias que o rodeassem”.
761
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1237.
762
GUSTAVO ZAGREBELSKY, El Derecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia, cit., p. 111. Nesse
sentido, também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp.
1090 e 1091.
763
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., p. 656; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, Almedina,
Coimbra, 2005, p. 664.
764
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, cit.,
pp. 199 e 200.
765
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 315.
766
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
203
Na prática, porém, surgem sempre situações de colisão que não
dispensam uma decisão de prevalência767, uma vez que este princípio é muitas
vezes pura e simplesmente irrealizável. Além disso, é muito discutível que seja
possível resolver conflitos de direitos fundamentais sem a invocação de
“considerações valorativas”, o que não quer dizer que se reconheça uma
hierarquia abstracta entre os diferentes direitos fundamentais, mas apenas que
poderá ser de admitir uma “hierarquia axiológica móvel”768.
Assim, uma “relação de prevalência” só se poderá decidir perante as
circunstâncias concretas do caso e após “um juízo de ponderação”, uma vez
que “só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso do que
outro”769. No limite, um dos direitos poderá ter de ceder completamente770.
1225. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 707 ss, considera que o recurso a uma presunção geral
em favor da liberdade não deve valer como forma de solucionar conflitos de direitos
fundamentais, na medida em que “estando toda a ordem constitucional e consequente
actividade do Estado estruturalmente orientadas à promoção da dignidade, liberdade e
autonomia individuais, o prejuízo de quaisquer bens constitucionalmente protegidos redunda
sempre, mais ou menos remota ou indirectamente, em prejuízo da liberdade”. Este Autor
entende ainda que Alexy reduz “a tradução prática” deste princípio in dubio pro libertate “a uma
distribuição do ónus de argumentação, o que implica o desaparecimento das “objecções de
fundo” a esta máxima, mas, por outro lado, tem como consequência que esta nada adiante
“relativamente ao princípio da repartição de Schmitt”, segundo o qual “sendo, em Estado de
Direito, a liberdade, em princípio, ilimitada e a intervenção estatal restritiva da liberdade, em
princípio limitada”, “toda a actuação do Estado restritiva da liberdade carece de ser justificada”.
Defende, no entanto, que o princípio in dubio pro libertate pode desempenhar uma função
importante “no plano da fixação dos factos que (…) justificam a restrição da liberdade. Nesse
plano, dado o ónus de argumentação que, por força do princípio da repartição, recai sobre o
poder público, deve entender-se não cumprir os requisitos de justificação a restrição actuada
com base em factos erróneos ou não indubitavelmente apurados, sendo essa exigência tanto
maior quanto maior for o sacrifício da liberdade imposto pela restrição”. Ver também JORGE
REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 53
ss. RUI MEDEIROS, “O Estado de Direitos Fundamentais Português: alcance, limites e
desafios”, cit., p. 33, defende também que do mesmo modo que é questionável que a relação
entre a liberdade e as suas limitações possa ser configurada como uma “relação regra –
excepção”, também não é de aceitar que as ponderações se façam “numa única direcção”.
Contra este princípio, ainda CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich
selbst, cit., p. 164; MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit.,
p. 63; JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 64; GERHARD SPIESS,
Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 176 e 177.
767
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 720 e 721.
768
RUI MEDEIROS, “O Estado de Direitos Fundamentais Português: alcance, limites e desafios”,
cit., p. 40.
769
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1274. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 81, entende que quando estamos
perante uma colisão de diferentes princípios a solução consiste em, “tendo em consideração as
circunstâncias do caso, se estabelecer entre os princípios uma relação de precedência
204
Destas “decisões de ponderação dos casos concretos” podemos, apesar disso,
“extrair regras de preferência susceptíveis de aplicação subsuntiva em casos
futuros”771.
Por outro lado, os “critérios de distinção” entre regras e princípios
apontados por Alexy denotam, contudo, algumas dificuldades que impedem
que os possamos aceitar sem reservas772. É que “a diferença entre essas
normas (...) não reside (…) no facto de as primeiras serem comandos de
optimização, de realização gradual, e as segundas serem regras, mas antes no
facto de a aplicação dos princípios envolver, em geral, a necessidade de juízos
complexos de ponderação e a realização das segundas apenas requerer, em
princípio, juízos subsuntivos simples”. Assim, tanto os princípios como as
regras apenas podem ser cumpridos ou violados, ainda que seja uma tarefa
muito mais árdua aferir o incumprimento daqueles do que destas773.
Finalmente, na medida em que seguimos uma teoria da vinculação
directa prima facie, pensamos que a aplicação dos preceitos relativos a direitos
fundamentais nas relações entre particulares não envolve “problemas
específicos”, devendo seguir-se “a regra material de harmonização, própria das
situações de conflito”774.
Tendo em consideração tudo o que vimos, a decisão quanto à
admissibilidade e à extensão de uma dada renúncia a direitos fundamentais
nas relações entre particulares dependerá, então, de saber se devem
condicionada. A determinação de uma relação de precedência condicionada traduz-se em,
tendo em conta as circunstâncias do caso, se indicarem as condições segundo as quais um
princípio precede o outro. Sob outras condições, a questão da precedência pode ser resolvida
de outra forma”.
770
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 117.
771
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 342.
772
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 344.
773
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 347. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp.
75 – 77, entende que os princípios “ordenam que algo seja realizado na maior medida possível,
dentro das possibilidades jurídicas e fácticas existentes”. As regras, por seu lado, são normas
“que só podem ser ou não cumpridas”. Também ROBERT ALEXY, El Concepto y la Validez del
Derecho, Gedisa, Barcelona, 1994, p. 162. Nesse sentido, ver ainda JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1161.
774
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os direitos fundamentais nas relações entre
particulares”, cit., pp. 262 e 263.
205
sobrelevar “as razões e os interesses constitucionalmente relevantes” que
apontam no sentido da admissibilidade da renúncia ou se, pelo contrário, as
razões e interesses que nos conduzem no sentido inverso”775. Uma vez que
entendemos ser de admitir uma “ordem constitucional de valores branda”, na
determinação do alcance prático do poder de dispor sobre posições jurídicas
de direitos fundamentais, que se funda no conteúdo de autonomia ínsito
nesses mesmos direitos, o “ónus da argumentação” deve recair sobre quem
pretenda impugnar a possibilidade de renúncia. Sendo que o poder de
disposição goza da natureza principiológica “típica dos direitos fundamentais”,
e “exige uma realização tão optimizada quanto possível (…), num quadro de
ponderação de bens, só deve ceder (…) quando houver disposições
constitucionais ou princípios mais fortes que exijam uma solução diversa”776.
É, por isso, essencial fazer uma ponderação entre a decisão individual,
que, como já tivemos oportunidade de desenvolver, goza de protecção
jusfundamental e o bem ou bens jurídicos também garantidos pela Constituição
que se poderão opor à renúncia, de maneira a estabelecer “uma ordem
hierárquica concreta”. Tendo em conta a multiplicidade de bens jurídicos que
podem estar em causa “não é possível estabelecer uma hierarquia abstracta”,
sendo apenas de apontar “linhas argumentativas”777. Consequentemente, é
importante o desenvolvimento de alguns “pontos de apoio que possibilitem
fundar racionalmente e de forma intersubjectivamente comprovável os
resultados da ponderação”. Trata-se essencialmente de fixar alguns “critérios
de orientação” que nos permitam racionalizar essa mesma ponderação778, ou
775
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 320.
776
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 291.
777
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., p. 923. JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., p. 864, defende também que a
melhor abordagem a utilizar para aferir a validade de uma determinada renúncia a direitos é
aquilo que designa de “abordagem orientada a valores (value oriented approach)”, na medida
em que esta oferece um método “flexível que permite resultados distintos consoante o direito
em causa e as circunstâncias do caso”.
778
Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 320 ss.
Segundo o Autor, essa ponderação deverá ter lugar “nos vários níveis em que se exija a sua
realização, ou seja, no plano da previsão normativa infra-constitucional da possibilidade ou
impossibilidade da renúncia, no plano do exercício concreto, pelo particular, do seu poder de
disposição sobre as próprias posições de direitos fundamentais, no plano da restrição concreta
de uma posição jurídica tutelada por uma norma de direito fundamental efectuada com base no
consentimento do particular e, por fim, no plano da verificação judicial da regularidade
206
seja, procuraremos aferir quais os tópicos de argumentação que se podem
extrair das normas constitucionais e aos quais se deve recorrer na tomada de
decisão quanto à validade ou invalidade de uma renúncia concreta779.
2.Tópicos de argumentação
Tem-se
entendido,
como
também
já
tivemos
oportunidade
de
mencionar, que a validade da renúncia perante o Estado depende, no
essencial,
“da
sua
conformidade
material
aos
princípios
e
regras
constitucionais”, sobretudo os que dizem respeito à restrição de direitos780,
ainda que estes não devam ser “indiferenciadamente transpostos para o titular
de direitos fundamentais”, graças à “dupla natureza” da renúncia enquanto
exercício e restrição781. Na aferição dessa “conformidade material” na relação
Estado/cidadão, Jorge Reis Novais indica quatro pontos de referência
decisivos: “a disponibilidade de posições de direitos fundamentais”, “a
dignidade
da
pessoa
humana”,
“o
conteúdo
essencial
dos
direitos
fundamentais” e “o princípio da proporcionalidade”782.
Gomes Canotilho, por seu lado, sustenta que “a admissibilidade de uma
auto-restrição mais ampla que a restrição legal está sujeita ao mesmo limite
absoluto da reserva de lei restritiva - manutenção do núcleo essencial do direito
afectado”783.
Na doutrina alemã, Klaus Stern e Michael Sachs defendem que ainda
que não deva haver uma transposição automática dos “limites aos limites”,
alguns deles serão de aplicar na problemática da renúncia, pelo que analisam
em que termos a reserva de lei, o princípio da proporcionalidade, a dignidade
da pessoa humana e o conteúdo essencial dos direitos fundamentais relevam
constitucional dos procedimentos anteriores”.
779
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 161.
780
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 320.
781
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 161.
782
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 320 ss.
783
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
465.
207
nesta sede. Para além disso, entendem ainda que se deve ter em conta “a
natureza dos direitos em causa”784.
Gerhard Robbers, por sua vez, considera que “a sistemática tradicional
das restrições a direitos fundamentais foi concebida para o uso positivo dos
direitos fundamentais e é aplicável apenas de uma forma limitada na renúncia”.
Para o Autor, a validade da renúncia prende-se precisamente com a questão
de saber em que medida é que o acto de disposição do titular do direito pode
afastar a aplicabilidade dessa “sistemática”. Por conseguinte, trata os seguintes
limites: as especiais reservas de lei e a reserva geral de lei, o princípio da
dignidade da pessoa humana, a inalienabilidade dos direitos do Homem e o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais785.
Também Martina Dorothee Eppelt sustenta que na renúncia perante o
Estado se justifica apreciar alguns limites que decorrem de determinadas
disposições da Constituição (alemã) e que têm sido invocados pela doutrina: a
2.ª parte do art. 1.º, que se refere à inalienabilidade dos direitos humanos; a 2.ª
parte do art. 19.º, que salvaguarda o conteúdo essencial dos direitos
fundamentais; a 3.ª parte do art. 1.º, que refere a vinculação das entidades
públicas aos direitos fundamentais; o art. 79.º, relativo à revisão da
Constituição; a reserva de lei e o princípio da proporcionalidade786.
Finalmente,
Gerhard Spiess aponta como limites da renúncia: a
dignidade da pessoa humana, a inalienabilidade dos direitos do Homem, o
conteúdo
essencial,
o
princípio
da
legalidade
e
outros
princípios
787
constitucionais
.
Vamos, então, partindo dos limites que consideramos mais relevantes e
que têm vindo a ser invocados para apreciar, nos casos concretos, a validade
784
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., pp. 917 ss.
785
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 928.
786
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 161 ss.
787
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 91 ss. DETLEF MERTEN, “Der
Grundrechtsverzicht”, cit., p. 63 – 72, trata como pressupostos da renúncia e não já como
limites: “o poder de disposição”, “a ausência de proibições legais”, “a declaração de renúncia”,
“a voluntariedade” e a “conformidade com os bons costumes”. Finalmente, RALPH MALACRIDA,
Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 131 ss, dedica um capítulo aos limites da renúncia, tratando
as seguintes questões : o “princípio da legalidade”, o “interesse público” e o “princípio da
proporcionalidade”.
208
da renúncia perante o Estado, procurar determinar se estes relevam também
enquanto limites da renúncia nas relações entre particulares. Parece-nos mais
coerente falar aqui uniformemente de “limites” da renúncia, seguindo a
designação tradicional de “limites aos limites”, ainda que os pontos de apoio de
que vamos tratar a eles não se restrinjam.
A aplicação dos limites da renúncia perante o Estado na renúncia entre
particulares (obviamente com as devidas adaptações) poderá justificar-se pelo
facto de esta última, como vimos, ainda que não se consubstanciando numa
restrição em sentido próprio, envolver um enfraquecimento de posições
individuais de direitos fundamentais. Tal aplicação não se funda, no entanto,
“numa ideia de defesa dos direitos fundamentais da pessoa contra si própria,
sendo antes concretização da vinculação do Estado aos direitos fundamentais,
que também abrange os direitos fundamentais na sua dimensão objectiva”788.
Por outro lado, os limites que vamos analisar devem ser entendidos,
nesta sede, como tópicos, ou seja, como “pontos fixos” ou “lugares” que
contribuem para estruturar a nossa argumentação789, racionalizando o
processo de ponderação que tem inevitavelmente de ter lugar quando se afere
a validade de uma dada renúncia, sendo que apenas será possível chegar a
uma resposta definitiva atendendo aos diferentes tópicos nas circunstâncias
concretas dos casos.
Julgamos que são relevantes, para o tema que nos ocupa, os seguintes
tópicos de argumentação: o princípio da dignidade da pessoa humana, o
princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, o conteúdo
essencial dos direitos fundamentais, a ordem pública e os bons costumes, a
maior ou menor disponibilidade dos direitos a que se renuncia e a exigência de
788
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 46.
789
Considerando que os métodos próprios de interpretação das normas constitucionais são,
essencialmente, métodos tópicos, ver MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p.
114. A Autora entende que, quando usado neste contexto, “o tópico designa um ponto fixo (ou
um “lugar”) que contribui para estruturar uma argumentação, funcionando como o dispositivo
lógico que nos auxilia, quer a encontrar as premissas dos raciocínios com que argumentamos
quer a fundamentar as conclusões que encerram a própria argumentação. Assim, os tópicos
“não substituem os cânones tradicionais da hermenêutica jurídica”, apenas os completando
“nos casos especialmente difíceis”. KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 923 referem a existência de “linhas
argumentativas” que poderão ajudar no processo de ponderação sobre a validade de uma
renúncia concreta.
209
acto legislativo prévio.
2.1. O princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite
Vamos tratar o princípio da dignidade da pessoa humana em primeiro
lugar, uma vez que este é normalmente o argumento central invocado para
fundamentar a invalidade do poder de disposição sobre posições subjectivas
de direitos fundamentais.
Quanto à questão de saber até que ponto podem as liberdades ou bens
pessoais ser limitados por contrato, com o acordo ou consentimento do
particular, tem-se entendido que nas relações entre indivíduos iguais os casos
de renúncia “são aqueles em que mais longe se pode ir na garantia da
liberdade negocial, aceitando-se (…) que ela exclua a aplicação do preceito
constitucional”. No entanto, estabelece-se aqui como limite a ideia de dignidade
da pessoa humana790.
Tal significa que o princípio da dignidade, graças à sua natureza, deve
vincular quer o Estado quer os particulares, pois enquanto princípio
estruturante da nossa ordem jurídica “é de aplicação geral, directa e imediata
em quaisquer circunstâncias, em quaisquer domínios e ramos de Direito”791.
Em conformidade com isso, vamos ver qual o papel a atribuir a este
princípio na aferição da validade de uma dada renúncia a direitos
fundamentais.
790
Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258.
791
JORGE REIS NOVAIS, “A intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre privados”,
cit., p. 260. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, cit., p. 387, consideram que “[p]arece óbvio que o princípio da dignidade
da pessoa humana obriga directamente as entidades privadas a não fazerem uso da
autonomia privada e negocial para (…) reduzirem a pessoa a nada ou a objecto (…) ou
eliminarem mesmo a existência física dessa pessoa”. Não estamos, no entanto, de acordo com
os Autores no que se refere a todos os exemplos dados: quanto à anulação de um negócio
jurídico possibilitador da escravidão ou de canibalismo, parece-nos, de facto, que se trata de
situações não admissíveis de renúncia a direitos fundamentais. Já no que diz respeito ao caso
do lançamento de anões, que desenvolveremos quando fizermos a análise de algumas
situações concretas, não nos parece que a resposta deva ser a mesma. Entendendo também
que o consentimento de uma pessoa para ser reduzida à escravidão é irrelevante, ver JORGE
DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 480; AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO,
Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 282.
210
O princípio da dignidade é considerado nesta sede enquanto argumento
a ter em conta na ponderação a realizar e não enquanto limite absoluto. Tal
deve-se ao facto de a renúncia assentar no consentimento do lesado, “o que
implica, em certa medida, a sua invocação não como valor de conteúdo prédeterminado, mas antes determinável no confronto com outros valores
relevantes no caso concreto”. Com efeito, determinadas condutas que seriam,
à partida, consideradas como violadoras da dignidade, poderão deixar de o ser
em virtude desse consentimento792.
Assim, na renúncia a direitos fundamentais cuida-se de determinar se a
definição da dignidade depende essencialmente do entendimento que o próprio
tenha acerca do que é para si mais ou menos digno e se, por outro lado, o
Estado pode impor limites a essa autodefinição. Por conseguinte, não está
tanto em causa apurar se o indivíduo pode renunciar à dignidade, mas antes
até que ponto lhe cabe decidir o que é ou não atentatório da sua dignidade793.
Em virtude disso, os principais problemas quanto à determinação deste
princípio levantam-se “quando a dignidade e o direito à autodeterminação se
confrontam, como é o caso clássico da renúncia a direitos fundamentais”794.
O Tribunal Constitucional português, seguindo a jurisprudência do
Tribunal Constitucional Federal Alemão, tem por vezes recorrido à fórmula do
objecto para densificar o conceito de dignidade795. Esta fórmula, como vimos,
792
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 326 e 327. Fazendo
considerações semelhantes no que se refere ao papel do princípio da dignidade humana em
relação à admissibilidade ou não admissibilidade da eutanásia, ver PHILIPPE FRUMER, La
Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à
l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., p. 273.
793
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 329.
794
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 92.
795
BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na
jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., pp. 171 ss. O TC invocou a fórmula do objecto
por exemplo nos Acórdãos n.º 130/88, n.º 426/91, n.º 89/00 e n.º 144/04. Considerando que a
forma do objecto é referida na jurisprudência do TC, particularmente nas decisões sobre
matéria de direito penal, ver INÊS LOBINHO MATOS, “A dignidade da pessoa humana na
jurisprudência do TC, mormente em matéria de Direito Penal e de Direito Processual Penal”, in
JORGE MIRANDA – MARCO ANTÓNIO MARQUES DA SILVA (coords.), Tratado Luso-Brasileiro da
Dignidade Humana, Quartier Latin, S. Paulo, 2008, pp. 90 e 91. Para a Autora, será ainda o
caso do já citado Acórdão n.º 16/84, e dos Acórdãos n.º 40/84, n.º 748/93, n.º 83/95, n.º
607/03, n.º 144/04, n.º 396/07 e n.º 591/07. Considerando que o TC “não se mostra
particularmente vinculado à fórmula do objecto”, embora esta “não esteja de todo ausente”, ver
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias
na Constituição Portuguesa, cit., p. 564. MARIA LÚCIA AMARAL, “O princípio da dignidade da
211
tem a sua origem na doutrina alemã, com Dürig796, e inspira-se na filosofia
moral de Kant797. Dürig considera que há um núcleo material mínimo de
dignidade que não depende da concepção que o próprio tenha sobre a sua
dignidade. Tal núcleo abrange as situações em que a pessoa é reduzida à
condição de objecto ou de um simples meio e quando é atingido a renúncia
deverá ser considerada irrelevante798.
Temos, no entanto, algumas dúvidas que a adopção desta fórmula seja
pessoa humana na jurisprudência constitucional”, cit., p. 5, entende que embora o Tribunal
“pareça ter aderido, em certos casos contados”, à fórmula do objecto, “a verdade é que na
maioria das decisões tem evitado fixar um sentido para a expressão constitucional”.
Finalmente, também ANDREIA SOFIA ESTEVES GOMES, “A dignidade da pessoa humana e o
seu valor partindo da experiência constitucional portuguesa”, cit., p. 32, entende que o TC tem
aderido, em algumas decisões, à fórmula do objecto.
796
PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., pp. 43 e 44, considera
que esta fórmula já havia sido utilizada em diferentes publicações anteriores ao escrito de
Dürig, que data de 1956. A novidade que traz este último Autor é o facto de deixar de a utilizar
“no contexto de um conceito de dignidade enquanto autonomia” e passar a utilizá-la num
“contexto de dignidade enquanto heteronomia”.
797
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 58 – 60, critica o facto
de “parte da doutrina considerar que segundo a filosofia kantiana aos indivíduos apenas é
atribuído um direito à autodeterminação que lhes permita cumprir o dever que decorre do
imperativo categórico”. Ele sustenta que esta perspectiva esquece que Kant estabelece uma
“distinção entre direito e moral” e que o direito não deve ser utilizado de forma a realizar a
dignidade. Através da liberdade “o direito estabelece apenas o pressuposto para a realização
do sentido de dever, mas não ordena esse sentido de dever”. Assim, a liberdade é entendida
por Kant como “livre arbítrio”. Ver também STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When Ambivalent
Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the Human
Dignity Principle“, cit., p. 5; STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The
Contemporary Principle of Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”,
cit., p. 18, nota 103.
798
Ver GÜNTER DÜRIG, “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, cit., pp. 125, 152 e 153.
Concordando com a fórmula do objecto, ver também PETER HÄBERLE, “Die Menschenwürde
als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, cit., p. 836. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE,
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 258, entende que a
renúncia só será válida enquanto “não atingir aquele mínimo de conteúdo do direito para além
do qual o indivíduo se reduz à condição de objecto ou de não-pessoa”. Nesse sentido, também
MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e
conteúdo normativo”, cit., p. 117. Considerando que a fórmula do objecto “constitui ainda, pelo
menos em situações extremas, o limite ao poder que assiste a cada particular de determinação
do sentido e do conteúdo da sua dignidade”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação
do Sistema dos Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 321.
Vários outros Autores defendem também a existência de limites materiais para a autodefinição
do indivíduo, ainda que não se refiram expressamente à fórmula do objecto. É o caso de
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., pp. 929 e 930; GERD STURM, “Probleme eines Verzichts auf
Grundrechte”, cit., p. 189; RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 98 e 99;
REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das
Privatrecht”, cit., pp. 185 e 186; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als
staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 204.
212
a solução mais adequada para a interpretação do conceito de dignidade e para
o estabelecimento de limites ao poder do particular de determinar por si próprio
o sentido e conteúdo da sua dignidade799, pelo menos nos termos em que tem
sido utilizada.
Por um lado, porque muitas vezes as pessoas são efectivamente objecto
de medidas estatais sem que dessa forma seja violada a sua dignidade800. O
próprio Tribunal Constitucional Federal alemão, que aderiu inicialmente à
fórmula do objecto, em virtude das críticas que lhe foram sendo tecidas
reconheceu que esta não constitui uma “fórmula mágica” e que apenas pode
“apontar uma direcção para a busca de lesões da dignidade”801. O Tribunal
passou a entender que tratar a pessoa como um objecto não envolve
automaticamente uma violação da dignidade, sendo necessário que se
verifique uma determinada intenção, ou seja, que o comportamento em análise
seja “manifestação de desprezo pela pessoa”802. Em consequência disso,
799
BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na
jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., pp. 171 – 173; JOSEF ISENSEE,
“Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, cit., p. 185,
considera que apenas com a fórmula do objecto “não se torna o princípio da dignidade
operacionável”.
800
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
57. Considerando também que a fórmula do objecto é “demasiado vaga e genérica, já que no
Estado contemporâneo sempre haverá que limitar a liberdade individual em benefício de
interesses gerais – e precisamente ao serviço da prossecução de condições dignas de
existência para todos –“, ver ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”,
cit., p. 125.
801
DIETER HÖMIG, “Die Menschenwürdegarantie des Grundgesetzes in der Rechtsprechung
der Bundesrepublik Deutschland” in EuGRZ, n.º 34, 2007, p. 637. Esta reserva à fórmula do
objecto foi feita pelo BVerfG no acórdão sobre escutas telefónicas (Abhör – Entscheidung),
BVerfGE 30, pp. 25 ss. Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional Federal estabeleceu que “as
fórmulas gerais – como o ser humano não deve ser reduzido à condição de simples objecto –
indicam simplesmente onde se poderá encontrar, no caso concreto, a violação da dignidade
humana”. Ver NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução
do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp.
113 e 114; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., p. 130.
Considerando que a fórmula do objecto “constitui apenas uma linha orientadora, na medida em
que deixa (…) na sombra aquisições tão importantes como as ideias de representação pessoal
e de atribuição (responsabilidade) individual, bem como as componentes de deveres de
protecção, promoção e prestação, componentes essas que desfrutaram de um claro
acolhimento constitucional”, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais.
Introdução Geral, cit., p. 61. JOHANNES REITER, “Menschenwürde als Massstab”, cit., p. 8,
afirma que “Dürig sempre entendeu a sua fórmula apenas como um fio condutor, carecendo de
concretização e interpretação”.
802
Ver INGO VON MÜNCH, “Die Würde des Menschen im Deutschen Verfassungsrecht”, in
JÖRN IPSEN – EDZARD SCHMIDT-JORTZIG, Recht – Staat – Gemeinwohl, Festschrift für Dietrich
Rauschning, Carl Heymanns Verlag KG, 2001, p. 33; DIETER HÖMIG, “Die
213
passou a referir-se a uma fórmula do objecto modificada, considerando que
não haverá esse desprezo quando a interferência se justifica através de um fim
legítimo. Esta formulação implica, no entanto, que se caia num “ciclo vicioso”
porque a questão de saber “se o fim justifica a interferência deve ser
respondida precisamente sob o ponto de vista da dignidade da pessoa
humana”803.
Por outro lado, a dignidade é uma noção que tanto pode ter “uma forte
carga emancipatória” como pode ser utilizada “para determinar uma pesada
restrição aos direitos de liberdade”804. O conceito de dignidade pode ser usado
para expressar um “ideal comunitário” ou pode estar mais direccionado para a
promoção da autonomia individual, pelo que a forma como este princípio é
aplicado em questões similares varia significativamente, sendo possível
encontrá-lo “em ambos os lados da discussão” e “a fundamentar conclusões
opostas”805.
Menschenwürdegarantie des Grundgesetzes in der Rechtsprechung der Bundesrepublik
Deutschland”, cit., p. 633; WALTER SCHMITT GLAESER, “Big Brother is watching you –
Menschenwürde bei RTL 2”, in ZRP, n.º 9, 2000, p. 397.
803
Nesse sentido, TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff,
cit., p. 48. HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 168, considera também que
a tentativa do BVerfG de precisar esta fórmula “através da referência à ideia de estar em causa
a qualidade de sujeito da pessoa ou do desprezo arbitrário da sua dignidade esquece que
também um desprezo não arbitrário da dignidade se pode traduzir em lesão desta. Assim, não
pode ser decisiva a questão de saber se há uma intenção de quem lesa, uma vez que poderá
haver lesões da dignidade mesmo com boas intenções“; ver também BODO PIEROTH –
BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 106. RALF POSCHER,
“Menschenwürde und Kernbereichschutz. Von den Gefahren einer Verräumlichung des
Grundrechtsdenken” in JZ, n.º 6, 2009, pp. 269 ss, considera, pelo contrário, que “o princípio da
dignidade não protege uma determinada substância ou um determinado espaço, seja ele físico
ou ideal, mas antes uma relação”. Esta garante “o cuidado com que o Estado deve tratar os
seus cidadãos em virtude da sua dignidade”. Assim, só haverá uma lesão da dignidade nos
casos em que o Estado aja arbitrariamente.
804
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 825 e 826, também nota 66. Este Autor considera
“particularmente significativos, deste ponto de vista, os riscos que um recurso pouco controlado
ao conceito de dignidade pode apresentar no debate bioético”. Ver também STÉPHANIE
HENNETTE-VAUCHEZ – CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche
sur un Processus de Juridicisation, cit., pp. 268 – 270. STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “When
Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation with the
Human Dignity Principle“, cit., pp. 17 e 18, alerta para o facto de ser hoje mais
consensualmente aceite a ideia de que o direito “tem uma função antropológica de definir e
preservar a dimensão humana da humanidade (e, em todo o caso, contra a vontade individual)”
e é importante não esquecer que “a dignidade pode ser concorrente feroz da liberdade”.
805
CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”,
cit. p. 48 – 50.
214
Em conformidade com isso, o conteúdo do princípio será diferente
consoante se adopte uma “noção liberal-individualista” ou uma “noção
paternalista” de dignidade806. Segundo a primeira, a dignidade é considerada
“um dos atributos da liberdade”, pelo que este princípio é invocável contra
violações provenientes de terceiros, mas já não o poderá ser para limitar a
esfera de liberdade do próprio indivíduo. Já para a “noção paternalista”, pelo
contrário, “a liberdade é concebida como um dos atributos da dignidade”, o que
quer dizer que se poderá invocar o princípio da dignidade para justificar
limitações a essa mesma liberdade. Qualquer uma destas perspectivas contém
“vantagens e riscos”: se se defende que a dignidade deve estar acima da
liberdade, tal pode implicar que se imponha uma concepção de dignidade que
não corresponde à noção que o indivíduo tem da sua própria dignidade. Se, por
outro lado, entendermos que a liberdade deve prevalecer sobre a dignidade,
teremos necessariamente uma concepção relativa de dignidade, uma vez que
a dignidade de cada um será aquilo que cada um definir807.
Consequentemente, as principais dificuldades quanto à determinação
do conteúdo do princípio da dignidade resultam da “falta de consenso acerca
do que torna a vida humana boa, tanto para os indivíduos como para as
sociedades”808 e do facto de nenhum outro preceito constitucional correr tanto o
806
Considerando que existe um conflito entre uma “noção liberal-individualista” e uma “noção
paternalista” de dignidade, ver DAVID FELDMAN, “Human Dignity as a Legal Value – Part II”, cit.,
p. 75. GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 833, estabelece também uma distinção similar entre um
“modelo processual/subjectivo” e um “modelo substancial/objectivo” de dignidade. Também
considerando que existem duas abordagens colidentes do conceito: a dignidade enquanto
“atribuição de poder” e a dignidade enquanto “constrangimento”, ver STÉPHANIE HENNETTEVAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’
Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., p. 3. Esta Autora distingue também estas
duas abordagens da dignidade designando-as como “dignidade que pode ser oposta pelo
homem a terceiros” e a “dignidade que pode ser oposta ao homem por terceiros”. A Autora
refere ainda uma terceira abordagem, que é a da dignidade enquanto característica que
decorre do exercício de uma função pública. Nesse sentido, STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ –
CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche sur un Processus de
Juridicisation, cit., pp. 24 – 33. Ver ainda NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas.
Sumários Desenvolvidos das Lições ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit.,
p. 62.
807
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., pp. 833 e 834, também nota 80.
808
DAVID FELDMAN, “Human Dignity as a Legal Value – Part II”, in Public Law, Spring, 2000, p.
75.
215
risco de se “diluir em subjectivismos moralizantes”809. Ora a fórmula do
objecto810 não traz nenhum contributo decisivo face a estas dificuldades porque
tanto pode ser usada “num contexto de autonomia como de heteronomia”811 e a
tendência tem sido no sentido de a invocar para justificar restrições da
liberdade. Os perigos da utilização da fórmula devem-se ao facto de esta poder
assumir diversos significados, tendo-se revelado como “passepartout para
valorações subjectivas de todos os tipos”812. A fórmula do objecto é demasiado
abstracta e, por isso, reduz-se a uma fórmula vazia, onde poderá caber tudo.
Determinar quais as situações em que a pessoa é tratada como um objecto ou
um meio pressupõe necessariamente “um juízo de valor moral”813, o que
significa deixar nas mãos do julgador a tarefa de determinar em que consiste o
núcleo material mínimo de dignidade que se pode sobrepor à concepção que a
própria pessoa tem da sua dignidade.
Este critério carece, por isso, de maior concretização, uma vez que
convoca fortemente “pré-compreensões subjectivas” e fornece apenas
“resultados confiáveis” no caso de o diagnóstico em causa ser evidente814. A
“fraqueza normativa” da fórmula do objecto tem tido como consequência uma
809
THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., p. 88.
810
Podemos ver também uma crítica à fórmula do objecto em JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO – JÓNATAS MACHADO, Reality Shows e Liberdade de Programação, cit., p. 48:
“alusões vagas à consideração dos indivíduos como ‘fins em si mesmos’, ou aos ‘perigos do
voyeurismo e do sensacionalismo’ e ’pesadelos de depravação’, apresentam-se
particularmente débeis quando confrontadas com o respeito devido aos indivíduos e à
pluralidade de razões que os mesmos podem invocar para a edificação do seu plano de vida”.
Também alertando para o facto de “o uso inflacionado desta expressão” conduzir “a uma certa
desvalorização argumentativa”, ver JOÃO LOUREIRO, “O direito à identidade genética do ser
humano”, cit., pp. 278 e 279. ARTHUR SCHOPENAUER apud NORBERT HÖRSTER, “Zur
Bedeutung des Prinzips der Menschenwürde”, in JuS, n.º 2, 1983, p. 93, considera que “a
formulação kantiana, ‘devemos tratar o homem nunca como um meio mas sempre e só como
um fim’ (…) é uma formulação vaga, indeterminada”, “insuficiente” e, para além do mais,
“problemática”. BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual
II, cit., p. 106, consideram o problema da fórmula do objecto “óbvio”: prende-se com o facto de
ser “demasiado indefinida”.
811
PAUL TIEDEMANN, Was ist Menschenwürde? Eine Einführung, cit., p. 45.
812
HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 168.
813
NORBERT HÖRSTER, “Zur Bedeutung des Prinzips der Menschenwürde”, cit. p. 95.
814
MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, cit., p. 21. KLAUS STERN – MICHAEL SACHS –
JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 19,
consideram que esta fórmula é clara no que se refere “às desumanidades da era nazi e
estalinista, assim como no que diz respeito a outros regimes totalitários”. No entanto, abrange
apenas “lesões manifestas da dignidade”. Para “lesões mais subtis” a fórmula não é suficiente.
216
“má utilização da norma constitucional”815.
Ainda que contenha riscos, consideramos ser de seguir uma “noção
liberal-individualista” do conceito de dignidade. Como já tivemos oportunidade
de referir noutros escritos, a solução para o conflito entre as duas noções de
dignidade deve ancorar-se no direito vigente, nomeadamente no direito ao
desenvolvimento da personalidade previsto na nossa Constituição desde
1997816. A consagração deste direito não pode deixar de ser vista como “uma
decisão valorativa fundamental” fundadora, em situações de dúvida, de “uma
presunção a favor da liberdade” de actuação. Como vimos, procurou-se através
dele consagrar “um direito de liberdade do indivíduo em relação a modelos de
personalidade”, que integra “um direito à diferença” e que deixa nas mãos de
cada individuo a decisão de como pretende viver, desde que não lese
terceiros817. O art. 26.º da CRP é “expressão directa do postulado (…) da
dignidade humana” e, ao mesmo tempo, “a dignidade encontra aqui uma sede
fundamental de definição normativa: quem invoca a dignidade não poderá
deixar de ter em conta (…) os direitos aqui consagrados, pois estes dão-lhe
expressão mais definida”818.
815
MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher
Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 84.
816
BENEDITA MAC CRORIE, “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na
jurisprudência do Tribunal Constitucional”, cit., p. 168. Considerando também que “a partir do
texto constitucional e da doutrina se pode dizer que a dignidade da pessoa humana (…) aponta
para o livre desenvolvimento da personalidade”, ver ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos,
Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição
Portuguesa, cit., p. 128. Também JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A dignidade da pessoa
humana e o fundamento dos direitos humanos”, cit., p. 117, sustenta que a dignidade do
homem se funda na “capacidade” e no “encargo de auto-construção” em que se traduz o direito
ao desenvolvimento da personalidade. Considerando que “o sentido do art. 26.º da CRP, ao
consagrar o direito ao desenvolvimento da personalidade”, é o de salvaguardar a “identidade
própria do indivíduo”, atendendo à “configuração actual da dignidade da pessoa humana”, ver
MARTA REBELO, “A doutrina contemporânea e a pós-modernidade dos Direitos Fundamentais”,
in Scientia Iuridica, Tomo LIV, n.º 302, 2005, p. 220. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa
humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais”, in JORGE MIRANDA –
MARCO ANTÓNIO MARQUES DA SILVA (coords.), Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana,
Quartier Latin, S. Paulo, 2008, p. 174, defende que a dignidade se consubstancia no respeito
pela liberdade da pessoa e pela sua autonomia, presentes em particular no direito ao
desenvolvimento da personalidade, na inviolabilidade da liberdade de consciência, religião e de
culto, entre outros.
817
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., pp. 157 -
161.
818
RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, “Artigo 26.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 282.
217
Há, então, uma relação incindível entre o princípio da dignidade da
pessoa humana e o direito ao desenvolvimento da personalidade819 que deve
ser considerada na interpretação do conceito de dignidade, uma vez que o juiz
deve tomar as suas decisões não com base nas suas “opiniões pessoais”, mas
sim partindo das “orientações” que retira “das normas constitucionais e/ou
legislativas, designadamente das normas de direitos fundamentais, na medida
em que estas são a expressão privilegiada (…) do ethos jurídico dominante da
comunidade”820.
Assim sendo, o princípio da dignidade deve ser interpretado em
conformidade com os “princípios e regras de direitos fundamentais” que
819
Também o TC afirmou a ligação estreita entre dignidade e desenvolvimento da
personalidade. Ver, exemplificativamente, o Acórdão n.º 436/00, http://www.tribunal
constitucional.pt/tc/acordaos/20000436.html, relativo à Lei do Jogo, no qual o TC refere que:
“[t]em este direito a ver com o livre desenvolvimento da personalidade dos seus titulares e,
nessa medida, com a garantia das suas identidade e integridade, sendo certo que o direito
geral de personalidade radica no princípio da dignidade da pessoa humana que o artigo 1º da
Constituição
proclama”.
Também
no
Acórdão
n.º
247/05,
http://www.tribunal
constitucional.pt/tc/acordaos/20050247.html, relativo à prática de actos homossexuais com
adolescentes, o TC diz expressamente que “os direitos à identidade pessoal e ao
desenvolvimento da personalidade, postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana,
traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas.” Finalmente,
também no Acórdão n.º 154/09, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos09/101200/15409.htm, relativo à recusa de testemunha a depor, defende que o direito (geral) ao
desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, é
uma materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana.
820
REINHOLD ZIPPELIUS apud JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais
não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 722. Há também noutras ordens
jurídicas decisões judiciais que utilizam o conceito de dignidade associando-o à autonomia
individual e ao livre desenvolvimento de personalidade. Independentemente de estarmos de
acordo com a decisão, no caso Roe v. Wade, do Supremo Tribunal Federal Americano,
http://laws.findlaw.com/us/410/113.html, relativo à interrupção voluntária da gravidez, foi
utilizada a linguagem da dignidade para fundamentar o direito à escolha da mulher. Também
no caso Planned Parenthood v. Casey, http://laws.findlaw.com/us/505/833.html, se considerou
haver uma estreita relação entre privacidade e dignidade. Fala-se aqui em privacidade porque
nos EUA a privacy refere-se não só à tutela da “informação sobre a vida privada” mas também
da “liberdade da vida privada”. Nesse sentido, FRANÇOIS RIGAUX, “L’élaboration d’un «right of
privacy» par la jurisprudence américaine”, in Revue internationale de droit comparé, n.º 4, 1980,
pp. 704 e 729; PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”,
cit., pp. 512 – 515. Outro caso relevante nestas matérias é o caso Eisenstadt v. Baird,
http://laws.findlaw.com/us/405/438.html, relativo ao uso de contraceptivos por pessoas não
casadas. Também no caso Lawrence v. Texas, http://laws.findlaw.com/us/000/02-102.html, no
qual estava em causa a inconstitucionalidade da legislação do Texas que criminalizava a
prática de determinados actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, o Tribunal considerou
que o direito à liberdade confere aos requerentes o direito de manterem a sua conduta sem
qualquer intervenção governamental. Ainda num caso relativo à mesma questão, National
Coalition for Gay and Lesbian Equality v. Minister of Justice, do Tribunal Constitucional da
África do Sul, http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/1998/15.html, foi salientado que a proibição
da sodomia consubstanciava uma violação da dignidade, assim como da igualdade.
218
conferem ao indivíduo a possibilidade de eleger o seu modo de vida, com
autodeterminação e sem a ingerência estadual821. A CRP deve proteger uma
multiplicidade de “perspectivas de vida”, pelo que não faria sentido que
impusesse “uma concepção determinada ou, menos ainda, fechada, da
dignidade da pessoa humana”822. O reconhecimento constitucional da
dignidade da pessoa humana significa “o contrário de ‘verdades’ ou ‘fixismos’
políticos, religiosos ou filosóficos”823. Acima de tudo, a dignidade da pessoa
humana garante a autonomia de cada indivíduo, como “valor a realizar em
concreto”824.
O princípio da dignidade “não impõe, nem pode impor sem íntima
contradição, um figurino determinado de Homem”, sendo “um princípio que
contribui para a abertura do sistema jurídico dos direitos fundamentais”825. Não
é função do Estado erigir um “reino da virtude”826, pelo que deriva da dignidade
“a legítima expectativa de cada indivíduo a ser respeitado na sua
personalidade”827. Consequentemente, a dignidade não deve ser entendida
como um valor objectivo, que se pode, inclusivamente, opor à própria vontade
do indivíduo, mas antes como “liberdade subjectivamente protegida”828.
Compreendendo nós a dignidade como “conceito aberto” que cabe ao
821
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 64 e 65.
822
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e
Garantias na Constituição Portuguesa, cit., pp. 309 e 310.
823
J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 226.
824
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 359. Considerando que “a liberdade
positiva de cada pessoa tem um valor (…) próprio, o que pode lançar luz sobre o obscuro
conceito de dignidade da pessoa humana”, ver LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à
Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 459.
825
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 49. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Teoria da Constituição, cit., p. 250, sustenta
que se a liberdade se consubstancia cada vez mais na ausência de “constrangimentos injustos”
à acção humana, a dignidade do homem deve traduzir-se nessa liberdade (não se justificando
medidas estaduais paternalistas) e na responsabilidade dela adveniente, o que significa que o
“Homem está definitivamente diante de si mesmo e a si mesmo tem que tomar as mãos”.
826
JOÃO LOUREIRO, “Pessoa, dignidade e cristianismo”, cit., p. 698.
827
JOÃO VAZ RODRIGUES, O consentimento informado para o acto médico no ordenamento
jurídico português, cit., p. 377. Considerando ainda que para a CRP, “o elemento valorativo
último da dignidade da pessoa humana é a liberdade pessoal, ver MANUEL AFONSO VAZ, Lei e
Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 341.
828
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 124.
219
próprio indivíduo densificar de forma autónoma, não é de admitir que lhe
possam ser impostas “representações da dignidade (…) pretensamente
objectivas” nas quais este não se reveja829. Uma vez que adoptamos uma
concepção de dignidade baseada na autonomia e na possibilidade de escolha
individual, não faz sentido que o particular não possa, pelo menos em alguma
medida, determinar por si próprio o sentido e o conteúdo da sua dignidade, sob
pena de estarmos perante um paternalismo estatal inadmissível830.
De facto, justificar a defesa da pessoa contra si própria invocando o
princípio da dignidade corresponderia a aplicar este princípio “contra a sua
própria teleologia intrínseca”, pois, como vimos, a dignidade traduz-se
precisamente na possibilidade de o indivíduo escolher em liberdade o rumo que
pretende seguir na sua vida831. O princípio da dignidade envolve respeito pela
autonomia da pessoa832 e não deve ser encarado como intocável, no sentido
de não ser passível de uma pluralidade de interpretações833. Ao reconhecer
que a nossa comunidade política se baseia na dignidade da pessoa humana, a
Constituição distancia-se de “qualquer tipo de interpretação (…) autoritária que
pudesse permitir o sacrifício dos direitos ou até da personalidade individual em
nome de pretensos interesses colectivos”834.
Tal não significa, no entanto, que não haja situações em que a vontade
829
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
61.
830
CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights”,
cit. p. 56. Considerando também que “a dignidade humana está mais ligada à ideia de
autodeterminação do que a aspirações paternalistas do Estado”, ver VERA LÚCIA RAPOSO, “O
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 86.
831
LUÍS VASCONCELOS ABREU, “Limitação do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada mediante o acordo do seu titular. O caso do Big Brother”, in RMP, n.º 101, 2005, p. 116;
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Vol I, cit., p. 199.
832
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 209; também JORGE MIRANDA,
“Artigo 1.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 57.
833
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 47. Considerando também que a dignidade “designa as características
intrínsecas da pessoa como ser dotado de inteligência e vontade que se autodetermina”, ver
JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Direitos Fundamentais Atípicos, cit., p. 397.
834
Nesse sentido, referindo-se à distinção entre as expressões dignidade da pessoa humana e
dignidade humana, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 201, nota 2.
Contra esta distinção, ver PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, cit., pp. 545 –
547.
220
individual tenha de ceder sem que tal origine necessariamente uma lesão da
dignidade835. Ainda que tal entendimento represente alguma “relativização” do
conceito, não se deve considerar a dignidade “ilegitimamente afectada só pelo
facto de os direitos fundamentais em que se desenvolve e concretiza poderem
ou deverem ser restringidos com vista à garantia de outros valores dignos de
protecção”836. O princípio da dignidade não é forçosamente violado através de
qualquer medida ou regulamentação estatal que restrinja a liberdade
individual837, uma vez que, como já tivemos oportunidade de ver, a “imagem de
homem” que subjaz à nossa Constituição não é a do indivíduo isolado, mas
antes a do sujeito socialmente integrado e que, por isso, está “socialmente
vinculado ao cumprimento de deveres e obrigações que a decisão popular
soberana lhe impõe”838.
O que se retira, então, do princípio da dignidade da pessoa humana é a
garantia de que os cidadãos não verão a sua liberdade restringida, “a não ser
quando tal seja estrita e impreterivelmente exigido pela prossecução, por parte
dos poderes públicos, de outros valores igualmente dignos de protecção
jurídica”839. Apenas se poderá limitar a autonomia individual quando haja fins
de interesse colectivo que o justifiquem840. Seguindo esta perspectiva, a
protecção da dignidade deverá ser tanto mais intensa quanto mais relevante
835
JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem
Absoluten”, cit., p. 211, entende que “a ideia de dignidade não tem um âmbito de protecção
delimitado, como acontece com os direitos fundamentais (por exemplo a liberdade de opinião,
a liberdade de reunião ou a propriedade)”. INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., p. 135, entende que
“partindo-se de um conceito mais restrito de dignidade”, segundo o qual “apenas uma grave
violação da condição da pessoa” se traduz em violação da dignidade, todas as outras condutas
restritivas deixariam de ser reconhecidas “como verdadeiras restrições à dignidade” passando
a ser encaradas como “ofensas a outros direitos fundamentais específicos”.
836
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 55.
837
HANS HOFMANN, “Artikel 1” in BRUNO SCHMIDT-BLEIBTREU – HANS HOFMANN – AXEL
HOPFAUF, Kommentar zum Grundgesetz, 11ª Edição, Carl Heymanns Verlag, 2008, p. 110.
838
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 53.
839
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
57.
840
CARLA AMADO GOMES, Defesa da saúde pública vs. Liberdade individual, cit., p. 21;
também ARMIN G. WILDFEUER, “Menschenwürde – Leerformel oder unverzichtbarer
Gedanke?”, cit., p. 89.
221
para a personalidade seja o comportamento em causa841.
Assim, o modo como o indivíduo perceba a dignidade bem como as
consequências que daí advêm para a forma como decide conduzir a sua vida é
algo que deve ser deixado à sua própria responsabilidade, o que não significa
que não haja limites à autodeterminação. Como já tivemos oportunidade de
desenvolver, é legítima a protecção de terceiros ou da comunidade, mas já não
o serão, em princípio, as restrições da liberdade que visem proteger a pessoa
de si própria ou que pretendam fazer face a uma “concepção duvidosa de
dignidade”, uma vez que não é função do Estado “corrigir os cidadãos”842.
Entendemos então que a dignidade é atribuída ao Homem porque este
deve ser concebido como um “ser autónomo, capaz de autodeterminação”843.
Desse modo, a dignidade “é apenas algo indisponível para o Estado e não já
para o indivíduo, pelo que dever de protecção que incumbe aos poderes
públicos vincula-os a “respeitar e proteger a dignidade”, mas já não os obriga “a
forçar
comportamentos
conformes
à
dignidade”.
Uma
tal
obrigação
transformaria o sentido deste princípio no seu oposto844.
Por tudo o que vimos, o princípio da dignidade “não é, e não deve ser, a
841
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 197.
842
ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, cit., p. 144.
843
MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher
Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 93. Este Autor entende que aquilo que
Dürig pretendia no seu comentário à Constituição era a “formulação de um princípio
fundamental ético-estadual”. Ao dizer que o princípio da dignidade proíbe que se transforme a
pessoa em objecto, Dürig “formula uma regra ético-estadual” que deve apenas vincular os
titulares de poder público. A confusão que se gerou a partir daí deve-se ao facto de se ter
transposto esta interpretação do princípio da dignidade para as relações entre privados, ou
seja, ter-se considerado que também decorre do princípio da dignidade o dever do Estado de
evitar que os indivíduos, nas suas relações privadas, se transformem em objectos. Por outro
lado, este Autor defende que o conteúdo jurídico-constitucional do princípio da dignidade “não
se esgota na fundamentação de obrigações ético-estaduais fundamentais”. A par com “uma
dimensão ético-estadual”, existe também “uma dimensão liberal e jusfundamental, cujo
objectivo é a defesa de lesões concretas da dignidade humana”. Na sua “dimensão liberal” o
princípio da dignidade garante a liberdade individual, bem como a capacidade do sujeito para
realizar a sua personalidade. Nesta dimensão já não será, no entanto, de aplicar a fórmula do
objecto. Nesse sentido, MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen
metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., pp. 100 – 106.
844
DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 64. JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 199, considera que o “denominador comum” a todas as pessoas é o facto
de serem “dotadas de razão e consciência” (seguindo o art. 1.º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem). Parece-nos que, pelo facto de todas as pessoas serem dotadas dessa
“razão e consciência”, deverão prevalecer as suas próprias escolhas, pelas quais se
responsabilizarão.
222
fórmula por que se dificulta a institucionalização da liberdade; não é, nem deve
ser, a fórmula por que se facilita a institucionalização das restrições à
liberdade”, pelo que “o ónus da argumentação recai sempre, ou deve recair
sempre, sobre quem propõe a restrição da liberdade”845. Entende-se que “a
liberdade [se] justifica (…) a si própria”, ao contrário das restrições à liberdade,
que apenas podem ter lugar quando haja interesses públicos ou de terceiros
que o justifiquem846.
Desta feita, a fórmula do objecto não deve servir para limitar o poder de
disposição sobre posições de direitos fundamentais, pois não é compatível com
a perspectiva que vê o Homem como um fim em si mesmo sustentar que o
Estado pode impor contra a própria vontade do indivíduo “um conteúdo
objectivo da dignidade”847. Se se entender que “o sentido essencial da
definição da dignidade da pessoa se centra na impossibilidade de a pessoa ser
tratada como mero objecto, então tal terá, como consequência lógica, que na
sua plena assunção como sujeito é ao indivíduo que cabe, primacialmente, a
configuração e a densificação do conteúdo preciso da dignidade”848. A
845
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “O princípio da dignidade da pessoa humana e a regulação
jurídica da bioética”, intervenção apresentada na Acção de Educação Contínua de Curta
Duração: Direito e Bioética, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, a 6 de Março de
2007, pp. 5 e 6. WILLIAM A. GALSTON, Liberal Pluralism. The Implications of Value Pluralism for
Political Theory and Practice, cit., p. 19, considera também que numa sociedade livre deve
garantir-se aos indivíduos a liberdade de viverem modos de vida distintos, pelo que deve valer
o que os juristas designam de “presunção ilidível a favor da liberdade: o ónus da prova recai
naqueles que visam restringir a liberdade e não naqueles que a defendem”.
846
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 65.
847
KAI FISCHER, Die Zulässigkeit aufgedrängten staatlichen Schutzes vor Selbstschädigung,
cit., pp. 193 e 194; MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, cit., pp. 21 e 22. Considerando
que a fórmula deve ser aceite “como o indicador de uma mera sugestão para estabelecer uma
linha de raciocínio prático mas nada mais”, uma vez que “não resolve, por si mesma, questões
conceptuais importantes, como quem é ou não um ser humano e quando estamos perante um
tratamento coisificador do ser humano”, ver PEDRO SERNA, “La dignidad humana en la
Constitución Europea”, cit., p. 58. No entanto, este Autor entende que é preferível a utilização
da fórmula, uma vez que, caso contrário, vincular-se-ia a “dignidade a algum direito em
concreto ou a vários deles, privando-a de consequências jurídicas próprias independentes”, ou
então implicaria “o emprego meramente retórico e, em consequência, impossível de controlar
racionalmente”, deste princípio. Também PAUL TIEDEMANN, “Vom inflationären Gebrauch der
Menschenwürde in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts”, cit., p. 612,
considera que esta fórmula é demasiado vaga, ainda que aponte para o sentido correcto.
848
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
58. MICHAEL KÖHNE, “Abstrakte Menschenwürde”, in GewArch, n.º 7, 2004, p. 287, defende a
imposição de um determinado conteúdo da dignidade por terceiros significa obrigar o indivíduo
a respeitar uma determinada concepção da dignidade que este não partilha, o que implica
223
formulação kantiana deve, então, ser interpretada em conformidade com o
princípio da autonomia pessoal849.
Se o princípio da dignidade for entendido neste sentido, só em casos
extremos poderá justificar restrições da liberdade e, por conseguinte, servir
como limite da renúncia. Para tal é necessário apreciar em que medida o
exercício dessa liberdade contende com a autodeterminação e livre
desenvolvimento futuros da pessoa. Só se verificará uma violação da dignidade
quando o indivíduo “anua na destruição ou anulação das condições da sua
autodeterminação futura, ou aceite colocar-se numa situação que iniba a
possibilidade de continuar a conformar a sua vida de acordo com planos
pessoais livremente concebidos”850. Esta perspectiva tem a vantagem de não
implicar uma relativização total do conceito de dignidade.
A determinação dessa medida só poderá, no entanto, fazer-se pesando
todas as “circunstâncias relevantes do caso concreto”851. De facto, só
conseguimos chegar à conclusão de que houve uma lesão da dignidade
através de um juízo de ponderação852. Ainda que “se tenha a dignidade como
“convertê-lo em mero objecto da valoração acerca do que é ou não digno”.
849
CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 150. Este Autor considera que “só
quando eu tenho em consideração no modo como trato os outros os fins que estes escolhem
para si próprios é que não lhes estou a impor sacrifícios ilegítimos”.
850
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 327 e 330. Considerando
também que só em situações limite é que a dignidade pode servir para restringir a liberdade,
ver ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, cit., p. 104.
851
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 327 e 328. Este Autor dá o
exemplo de alguém que se voluntariza para experiências de teste de um medicamento que
pode provocar lesões irreversíveis. Para o Autor, sem olhar para as circunstâncias do caso
concreto não se pode dizer que há necessariamente violação do princípio da dignidade. Tal
será o caso quando se trate, por exemplo, de um recluso, que o faz a troco de uma melhoria
das condições de reclusão. A solução já não parece, no entanto, ser a mesma quando se trate
de um doente infectado com o vírus HIV, que vê nesta experiência a última hipótese de salvar
a própria vida.
852
MATTHIAS HERDEGEN, “Die Menschenwürde im Fluss des bioethischen Diskurses”, in JZ,
n.º 15/16, 2001, p. 773 e ainda MATTHIAS HERDEGEN, “Artikel 1, Abs. 1”, cit., pp. 24 - 27,
entende que este princípio está aberto a uma ponderação de valores, na medida em que se
deve considerar, a par da existência de um “núcleo de dignidade”, um outro “âmbito de
protecção periférico”, susceptível de ponderação. Böckenförde sustenta que esta perspectiva
significa uma revisão completa do comentário de Dürig, segundo o qual a determinação do art.
1.º não é dada através de uma ponderação, sendo antes o fundamento da ordem jurídica
estadual. Ver ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE, “Bleibt die Menschenwürde Unantastbar?”
http://www.wissensgesellschaft.org/themen/biopolitik/ menschenwuerde.pdf (última visita a
12.04.2010). Sobre esta questão, ver também MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der
Menschenwürde zwischen metaphysicher Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p.
75. JORGE MIRANDA, “ A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de
224
bem jurídico absoluto, o que é absoluto (…) encontra-se de certa forma em
aberto e (…) irá depender da vontade do intérprete e de uma construção de
sentido cultural e socialmente vinculada”853. O princípio da dignidade,
“enquanto princípio complexo”, tem, como já tivemos oportunidade de
desenvolver, uma relação incindível com as “ideias de igualdade e liberdade”,
que, por sua vez, “apenas podem ser operacionalizadas através de ponderação
e não através da subsunção”. Em conformidade com isso, a questão de saber
se a dignidade foi ou não lesada apenas pode ser respondida atendendo às
circunstâncias concretas do caso854.
direitos fundamentais”, cit., p. 170 e JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p.
200, considera que a dignidade é um “valor absoluto”. Poderá haver ponderação
dignidade/dignidade, mas não com qualquer outro princípio ou interesse. Nesse sentido,
também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 94. Considerando a dignidade da pessoa
humana como um “valor insusceptível de ponderações”, ver PEDRO VAZ PATTO, No
Cruzamento do Direito e da Ética, cit., p. 199; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p. 49;
JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem
Absoluten”, cit., p. 212; DIETER HÖMIG, “Die Menschenwürdegarantie des Grundgesetzes in der
Rechtsprechung der Bundesrepublik Deutschland”, cit., p. 640; RALF POSCHER, “Die Würde
des Menschen ist unantastbar”, cit., p. 762; WOLFRAM HÖFLING, “Wer definiert des Menschen
Leben und Würde?”, in OTTO DEPENHEUER – MARKUS HEINTZEN – MATTHIAS JESTAEDT –
PETER AXER, Staat im Wort. Festschrift für Josef Isensee, C. F, Müller Verlag, Heidelberg,
2007; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, Mohr Siebeck, Tübingen,
2004, p. 135. Em sentido contrário, CHRISTOPHER MCCRUDDEN, “Human Dignity and Judicial
Interpretation of Human Rights”, cit. p. 50, refere que noutros ordenamentos jurídicos se tem
entendido que o princípio da dignidade é susceptível de ponderação. Será o caso da África do
Sul, da Hungria, de Israel e da França. Também ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Princípio da
consubstancialidade parcial dos direitos fundamentais na dignidade do Homem”, cit., pp. 319 –
322. INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, cit., p. 132, entende que a dignidade da pessoa humana, “como
norma jurídica fundamental, possui um núcleo essencial” e que “apenas este (…) é intangível”.
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 95 – 97, defende que o princípio da
dignidade da pessoa humana não é um princípio absoluto: o que lhe dá esta aparência é o
facto de “a norma da dignidade ser tratada em parte como regra e em parte como princípio e
também o facto de existir, para o princípio da dignidade da pessoa humana, um amplo grupo
de condições de precedência, nas quais existe um alto grau de segurança quanto ao facto de,
sob essas condições, o princípio da dignidade preceder em relação aos princípios opostos”.
KARL–E. HAIN, ”Konkretisierung der Menschenwürde durch Abwägung?”, in Der Staat, Vol. 45,
2006, p. 202 e também KARL–EBERHARD HAIN, ”Menschenwürde als Rechtsprinzip”, in HANS
JÖRG SANDKÜHLER (org.), Menschenwürde. Philosophische, theologische und juristische
Analysen, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2007, p. 96, sustenta que “no centro desta
concepção está a concretização do conteúdo da dignidade através de ponderação”. Ainda
WINFRIED BRUGGER, Menschenwürde, Menschenrechte, Grundrechte, Nomos, Baden-Baden,
1996, pp. 22 ss, entende que o princípio da dignidade deve ser passível de ponderação.
853
INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, cit., pp. 134 e 135.
854
KARL–E. HAIN, ”Konkretisierung der Menschenwürde durch Abwägung?”, cit., pp. 191, 192,
200 e 205. Este Autor considera ainda que “é questionável que o núcleo da dignidade deva ser
determinado de uma forma puramente objectiva, ou seja, sem se ter em consideração a
225
No caso da renúncia, o facto de haver a anuência da pessoa em causa
deve ser obviamente tido em conta na ponderação a fazer. Assentando a
dignidade na autonomia individual, quando o titular do direito consente na
afectação negativa do seu direito através da renúncia não há, de facto,
qualquer lesão da sua dignidade, uma vez que “a acção em causa se traduz
em exercício de autonomia”. Para além disso, é duvidoso que se possa afigurar
uma lesão da dignidade de uma pessoa “quando esta não se apercebeu
disso”855. Um “paradigma de ponderação” não traz grandes vantagens no que
se refere “à certeza do resultado”, mas implica, não obstante, uma maior
“racionalidade” na aferição da violação do princípio856. A “noção de dignidade
surge necessariamente contextualizada e relativizada, não no sentido que se
lhe atribua menos valor, mas no sentido de que ao seu valor (…) podem
corresponder diferentes configurações”857.
Nas situações em que o próprio consente deverá, então, prevalecer a
sua vontade, ressalvado o limite que já referimos. É em primeira linha o
indivíduo que deve determinar o que é ou não violador da sua dignidade, o que
leva a uma “necessária relativização do alcance deste princípio como base
para a limitação do poder de disposição sobre o conteúdo de posições
jusfundamentais”858.
finalidade da actuação que põe em causa a dignidade da pessoa humana”. Ver também KARL–
EBERHARD HAIN, ”Menschenwürde als Rechtsprinzip, cit., pp. 93 ss.
855
KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 118. Também HORST DREIER
(org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 123, estabelece que “na determinação de uma lesão
da dignidade deve ser tida em conta a anuência da pessoa em causa. Para este Autor, uma
protecção da dignidade contra a actuação livre da própria pessoa apenas se justifica
excepcionalmente“. REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht,
cit., pp. 195 e 209, consideram que “cada pessoa deve ter um direito abrangente de decidir o
que é para si mais digno”. JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da
República Portuguesa, cit., p. 60, considera ainda que “são sempre problemáticas, em Estado
de Direito, as situações em que o Estado se arroga o poder de defender a dignidade de uma
pessoa contra a vontade, as representações ou as convicções livre e conscientemente
formadas por essa pessoa”.
856
KARL-EBERHARD HAIN, ”Menschenwürde als Rechtsprinzip”, cit., p. 102.
857
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 501.
858
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e
Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 321. Referindo também os “perigos da
objectivação do valor da dignidade” no que se refere, em particular, à restrição da liberdade de
expressão, ver JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 362. KNUT AMELUNG, Die
Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 49 e 50, considera que, no
caso de existir consentimento, o princípio da dignidade não está sequer em causa, “uma vez
que tal declaração afasta qualquer lesão no bem jurídico protegido”. JORGE REIS NOVAIS,
226
2.2. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso
Um Estado que se funda na dignidade da pessoa humana e atribui um
papel central à liberdade e autonomia individuais só poderá interferir nessa
liberdade
e
autonomia
dos
cidadãos quando
tal seja efectivamente
indispensável para a salvaguarda de outros valores dignos de tutela jurídica e
na estrita medida dessa necessidade. À luz da CRP “é constitucionalmente
ilegítima (…) qualquer ingerência estatal na esfera de autonomia dos
particulares (…) que vá para além do (…) necessário”859.
Assim, o princípio da proporcionalidade860 ou da proibição do excesso861
“Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 326, nota 93, entende, pelo contrário, que “o
consentimento não exclui, por si só, a possibilidade de violação da dignidade da pessoa
humana, mas (…) abre a determinação do conteúdo desta (…) à consideração da vontade e
das representações do lesado”.
859
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp.
163 e 164; ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 60.
860
Sobre este princípio ver, entre outros, ANABELA LEÃO, “Notas sobre o princípio da
proporcionalidade ou da proibição do excesso”, in Estudos em Comemoração dos cinco anos
da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 1032 e
1033; JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., pp.
458 e 459; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp. 824 ss;
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 729 ss; JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais
Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 161 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 289 – 291; JOSÉ JOAQUIM
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 266 – 272, 457 e
458; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, cit., pp. 279 ss, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit.,
pp. 207 – 209; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 162; MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República,
cit., p. 184 ss; VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, in DJAP, Vol. 6, Lisboa,
1994, pp. 592 ss; VITALINO CANAS, “O princípio da proibição do excesso na Constituição:
arqueologia e aplicações”, in Perspectivas Constitucionais, Nos 20 anos da Constituição de
1976, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 323 ss; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO,
Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., pp. 124 ss; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O
Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de
“Constitucionalização” do Direito Civil, cit., pp. 178 e 179; WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO,
“Notas em torno ao princípio da proporcionalidade” in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas
Constitucionais - Nos 20 anos da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 249 ss;
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “O proporcional e o razoável”, in Revista dos Tribunais, n.º 798,
2002,
http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/69_SILVA,%20Virgilio%20Afonso%20da%20%20O%20proporcional%20e%20o%20razoavel.pdf (última visita a 12.04.2010); ROBERT
ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., pp. 269 ss; ROBERT ALEXY, “Epílogo a la teoría de los
derechos fundamentales”, in REDC, n.º 66, 2002, pp. 26 ss; BODO PIEROTH – BERNHARD
SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., pp. 81 ss; BERNHARD SCHLINK, “Der
Grundsatz der Verhältnismässigkeit”, in PETER BADURA – HORST DREIER (orgs.), Festschrift 50
Jahre Bundesverfassunsgericht, Vol. 2, Mohr Siebeck, Tübingen, 2001; ALBERT BLECKMANN,
“Begündung und Anwendungsbereich des Verhältnismässigkeitsprinzip”, in JuS, n.º 3, 1994, pp.
227
deriva “dos conceitos de liberdade e livre expressão e desenvolvimento da
personalidade”, inscritos no valor da “dignidade e autonomia da pessoa” e que
são “condicionantes máxim[o]s e absolut[o]s da acção (…) do Estado”862.
Quanto à aplicabilidade do princípio da proporcionalidade enquanto
limite da renúncia a direitos fundamentais, no que se refere à renúncia no
âmbito da relação Estado/cidadão e uma vez que esta se traduz,
simultaneamente, em exercício e restrição de direitos, tem-se entendido que
este princípio serve, antes do mais, como “limite à limitação do poder de
disposição” pela parte do Estado, que terá de se justificar pela “necessidade de
garantir outros valores constitucionalmente relevantes que, no caso concreto,
devam sobrelevar o interesse subjacente ao reconhecimento do poder da
renúncia”863. Por outro lado, também se defende que as restrições levadas a
cabo pelo Estado na sequência da renúncia do particular terão de respeitar as
exigências da proporcionalidade.
São quatro os critérios que se distinguem no seio deste princípio: a
idoneidade, a necessidade, a proporcionalidade em sentido restrito864 e a
razoabilidade865. Para se verificar se uma medida restritiva de um direito
177 ss; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., pp. 761 ss; MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit.,
pp. 158 ss; JUAN CARLOS GAVARA DE CARA, Derechos Fundamentales y Desarrollo
Legislativo. La Garantía del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales en la Ley
Fundamental de Bonn, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1994, pp. 295 ss.
861
Considerando mais feliz a designação princípio da proibição do excesso do que princípio da
proporcionalidade (em sentido amplo), ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos
Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 731. Este Autor
considera “mais feliz a proposta de tomar o princípio da proibição do excesso como o princípio
mais abrangente onde se integram diferentes elementos constitutivos, entre os quais a
proporcionalidade”. Também MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 185; KLAUS
STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p.
763; DIETER MEDICUS, “Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit im Privatrecht”, in AcP, n.º
192, 1992, p. 51. Entendendo, por outro lado, que “a expressão mais corrente ‘princípio da
proporcionalidade’ é preferível à expressão ‘proibição do excesso’”, ver VITALINO CANAS,
“Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., pp. 595 e 596. Vamos, ao longo deste texto, utilizar
indistintamente estas duas expressões.
862
VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., pp. 598 e 599.
863
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 332 e 333. Ver também
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 155.
864
Falando aqui também em racionalidade, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 285; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II,
cit., p. 828.
865
Sobre o princípio da razoabilidade, ver JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais
Estruturantes da República Portuguesa, cit., pp. 187 ss.
228
fundamental supera o teste da proibição do excesso importa conferir se foram
cumpridas essas quatro condições.
Em primeiro lugar, este princípio “impõe que a medida adoptada para a
realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou
fins a ele subjacentes”866. Torna-se, portanto, necessário averiguar se essa
medida é idónea ou apta para prosseguir o objectivo proposto: princípio da
idoneidade, aptidão ou adequação867. Quando se afere a idoneidade de uma
medida, aquilo que se avalia é, essencialmente, a “aptidão objectiva ou formal
de um meio para realizar um fim” não estando aqui implicada uma “avaliação
substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida restritiva”868.
O sub-princípio da adequação obriga a que se tenha em conta se um dado
meio é apto para a realização do fim em vista869, não sendo exigível, nesta
primeira fase, a demonstração de que o meio adoptado “permitiu a realização
efectiva do fim a que a actuação estadual se propunha”. Basta “um juízo de
razoabilidade”, sendo suficiente “provar que, razoavelmente, ou em condições
normais da vida”, com “o meio escolhido pelo Estado” será expectável
“alcançar o fim de interesse público inscrito na decisão estadual”870.
O teste da adequação no que diz respeito a medidas ainda não
concluídas depende, então, de “juízos de prognose”871, o que significa que,
para que haja violação do princípio da proporcionalidade nesta vertente, a
inaptidão tem de ser previsível quando se leva a cabo a medida872. Deve
reconhecer-se, consequentemente, uma margem de apreciação ao legislador,
só se devendo considerar a existência de uma violação deste princípio se fosse
866
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
269.
867
Considerando que o termo adequação não é tão apropriado, uma vez que “parece sugerir
uma aproximação (…) axiológica que, aqui, não é a determinante”, ver JORGE REIS NOVAIS, Os
Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p. 167.
868
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 736.
869
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 733 e 734.
870
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 188.
871
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., p. 777.
872
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 169.
229
possível concluir, no momento da adopção da medida, que esta era “totalmente
inapta” para prosseguir o fim em vista873.
Há, contudo, “um pressuposto lógico da idoneidade”874, que é a
legitimidade constitucional do fim visado e do meio empregue875. Se os meios
forem expressamente proibidos pela Constituição, deixa de fazer sentido
apurar se são aptos, mesmo que visem prosseguir um fim legítimo876.
A segunda condição diz respeito à necessidade da medida: trata-se de
apreciar se não existe outra menos gravosa capaz de assegurar o objectivo
com o mesmo grau de eficácia: princípio da necessidade ou indispensabilidade.
De facto, para que se respeite o princípio da proporcionalidade (em sentido
amplo) não é suficiente que, em circunstâncias normais da vida, “as vias
escolhidas pela acção estadual” sejam “adequadas ou aptas para a obtenção
de um determinado fim”877. O princípio da necessidade assenta na ideia “de
que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível”878, pelo que, o que
se pretende agora avaliar é se não haverá outro meio igualmente apto para a
prossecução do fim mas que seja menos oneroso para os particulares879. Se se
873
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 739. VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”,
cit., p. 622, considera que com o teste da idoneidade da medida se procura “evitar o excesso e
não garantir resultados óptimos”.
874
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 737.
875
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 730 – 733; JORGE REIS NOVAIS, As
Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit.,
p. 737.
876
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., p. 732.
877
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 188.
878
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
270.
879
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 741 – 743 e 752. O Autor faz, no entanto, a ressalva de
que a avaliação do grau de aptidão ou idoneidade de cada um dos meios para fins de controlo
da indispensabilidade é complexa, não só “porque raramente dois meios revelam, de forma
evidente”, o mesmo grau de aptidão, “mas também porque uma variação no grau de realização
do fim prosseguido será normalmente acompanhada de variações correspondentes nos efeitos
restritivos da liberdade por eles provocados. Assim, aquilo que à partida era um controlo
objectivo e de fundamentação intersubjectivamente demonstrável, na prática acaba por remeter
(…) para juízos decisivos de valoração e ponderação”. Enquanto nas situações de aplicação
deste princípio em que se verifica “uma identidade de graus de eficácia dos meios restritivos
em comparação e evidência das diferenças dos efeitos restritivos produzidos” não deve haver
“qualquer condescendência na intensidade do controlo da indispensabilidade aplicável”, já nos
casos mais complexos “o poder judicial tem de observar uma maior contenção, nomeadamente
230
chegar à conclusão que, “para a realização da mesma finalidade de interesse
público, o Estado tem à disposição vários meios, todos eles igualmente
adequados” e que, para além disso, estes meios “só diferem entre si pela
intensidade dos encargos que impõem aos destinatários da decisão”, para
respeitar o princípio da necessidade deve optar pelo meio que seja menos
agressivo para os cidadãos880.
Em terceiro lugar, no teste da proporcionalidade em sentido restrito deve
aferir-se se a medida adoptada é equilibrada no sentido de as desvantagens
dela advenientes não serem superiores aos benefícios que se visam alcançar.
Está aqui em causa, “valorar, sopesar, comparar sacrifícios (da liberdade
individual) e benefícios obtidos ou visados, vantagens e desvantagens da
restrição objecto de controlo”. Para isso, é necessário confrontar “o sacrifício
imposto à liberdade” e “o valor do bem que se pretende atingir”881.
Enquanto nos testes da idoneidade e necessidade se parte do princípio
que o fim que o Estado visa prosseguir justifica a intervenção estatal, no
controlo da proporcionalidade em sentido restrito avalia-se “a gravidade da
restrição em associação à importância e imperatividade das razões que a
justificam”882. Interessa nesta sede “pesar as desvantagens dos meios em
relação às vantagens do fim”883. Na proporcionalidade em sentido restrito
colocam-se em confronto custos e benefícios, no sentido de avaliar se é
exigível que os cidadãos sofram esses custos, tendo em conta o “bem” que
resulta para o interesse público da medida a prosseguir884.
Assim, devem aqui comparar-se “os encargos” da medida “para todos
aqueles que são especialmente afectados pelo seu conteúdo” com “os
quando lida com as ponderações realizadas pelo legislador democraticamente legitimado”.
VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 626, diz precisamente que o
BVerfG tem considerado que poderá não se verificar uma violação da exigência de
necessidade se for aplicada uma medida mais lesiva do que outra, desde que mais eficaz.
880
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 188.
881
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 753 e 755; VITALINO CANAS, “Proporcionalidade
(Princípio da)”, cit., p.628.
882
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
181.
883
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
270.
884
VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 628.
231
benefícios que da mesma decisão decorrem para o interesse público”. Se,
nessa comparação, se concluir que os encargos se sobrepõem “de forma
desmesurada ou desproporcionada” aos benefícios, estamos perante um
“excesso na actuação estadual”885.
Finalmente, Jorge Reis Novais faz ainda referência ao princípio da
razoabilidade, que considera corresponder “a uma dimensão autónoma da
garantia da proibição do excesso”. Para o Autor, trata-se da “avaliação da
razoabilidade da imposição, dever ou obrigação restritiva da liberdade na
exclusiva perspectiva das suas consequências na esfera pessoal daquele que
é desvantajosamente afectado”. Uma norma que seja conforme ao princípio da
proporcionalidade em sentido restrito pode, ainda assim, violar o princípio da
razoabilidade, “na medida em que a exigência ou o encargo que se impõe a
alguém surja, nesse específico contexto, como excessivo, demasiado grave ou
injusto”. Enquanto no teste da proporcionalidade (em sentido restrito) da
restrição se faz uma avaliação do fim prosseguido, no sentido de considerar
(ou não) que a importância da sua prossecução justifica os prejuízos
advenientes dessa mesma restrição, na razoabilidade o que se aprecia é
fundamentalmente as consequências da medida para a “autonomia da
personalidade do afectado” 886.
Em conformidade com isso, na renúncia perante o Estado as restrições
resultantes do acto de disposição do particular terão de respeitar as exigências
da proibição do excesso. No entanto, no que se refere à proporcionalidade em
sentido restrito tem-se sustentado que é necessário ter em consideração que o
titular do direito anuiu na restrição. Quando se confronta o sacrifício do
particular com as vantagens que, com a medida levada a cabo, se pretendem
alcançar para o interesse público, não pode deixar de se ter em conta que o
próprio tem interesse nessa restrição887.
885
MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, cit., p. 189.
886
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., pp. 187 – 189. Também JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não
Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., p. 768. Sobre este princípio, ver ainda
WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da
Proporcionalidade, cit., pp. 183 ss.
887
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 333 – 335. Este Autor
considera que respeita o princípio da proporcionalidade, por exemplo, o compromisso
assumido por cadetes de uma Academia Militar ou de uma Escola Naval de não casar ou
232
Também quanto à razoabilidade da medida e uma vez que o que aqui se
avalia é a razoabilidade da restrição na “perspectiva das suas consequências
na esfera pessoal daquele que é desvantajosamente afectado”888, parece claro
que terá de se considerar a vontade do titular ao aceitar a restrição. Apesar
disso, as restantes exigências do princípio da proibição do excesso, ou seja, a
idoneidade e a necessidade das medidas restritivas devem continuar a ser
respeitadas889.
Procuraremos
agora
indagar
em
que
termos
o
princípio
da
proporcionalidade poderá ser aplicável na renúncia entre particulares.
Na verdade, nos dias de hoje a importância do princípio da
proporcionalidade não se cinge aos “domínios de intervenção e actuação
pública com reflexos nas esferas dos privados”. Tem-se, de facto, verificado
uma difusão do princípio também no âmbito do direito privado, tanto pelas
mãos dos tribunais como da doutrina. Os órgãos jurisdicionais têm vindo a
utilizar o princípio da proporcionalidade como “instrumento que permite modelar
normas jurídicas que têm como objecto a conciliação dos interesses privados
em conflito”. A doutrina, por seu lado, “recorre às ideias de proporção, justa
medida e necessidade como fundamentos da explicação teórica de institutos
constituir família durante os anos de formação militar. No entanto, considera também que tal
não significa que, “por alteração das circunstâncias”, uma renúncia que era proporcional se
possa vir a revelar “desproporcionada e, como tal, não eficaz”. Foi esse o caso, “julgado pelos
tribunais alemães, do polícia que, admitido num serviço de operações especiais, se
comprometera a não casar (…), mas que, entretanto, porque a namorada engravidou,
pretendeu fazê-lo”. Nesta situação, “os elementos a ter em conta na ponderação para avaliar a
proporcionalidade, em sentido restrito (…) alteraram-se, pelo que a restrição passou a ser
excessiva”. Ver BVerwGE 14, p. 21 ss. Sobre esta decisão, ver também GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., p. 73. KNUT AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines
Grundrechtgutes, cit., p. 62, defende também que na resposta à questão de saber de que
forma devem ser pesados os prejuízos decorrentes de uma actuação estatal deve ser tida em
consideração a percepção do próprio particular.
888
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
cit., p. 187.
889
Nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 334;
também KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland,
Vol. III/2, cit., p. 921. Em sentido contrário, GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp.
154 e 155, defende que ao princípio da proporcionalidade não deve ser atribuída qualquer
função enquanto limite da renúncia. MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und
Humangenetik, cit., p. 194, entende ainda que o consentimento do titular também é relevante
na determinação de qual a medida menos onerosa (no teste da necessidade). Quando o titular
consente numa dada medida deverá ser de considerar que o faz porque a considera a menos
restritiva.
233
jurídicos de direito privado”890.
O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 302/01891, considera
que “[é] assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um
princípio objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio
da proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos
poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer
que foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal
princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros
obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas. Não se
contesta, portanto, que o princípio da proporcionalidade seja princípio geral de
direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo
menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de
soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado”.
Por
conseguinte,
ainda
que,
à
partida,
a
autonomia
privada
constitucionalmente protegida892 goze “de uma primazia que torna muitas das
relações privadas opacas à refracção do princípio da proporcionalidade”, tais
considerações não invalidam a influência do princípio neste âmbito. Vimos já
que os particulares se encontram vinculados aos direitos fundamentais, “pelo
que o princípio da proporcionalidade, sem o qual aqueles não atingem
estabilidade plena”, opera “como limite a opções que, numa primeira
impressão, dependeriam exclusivamente do jogo da autonomia privada”. Nesse
sentido, cabe ao princípio da proporcionalidade “uma dupla função” no que se
refere à determinação da “autonomia da vontade”: por um lado, é através deste
princípio que se afere “a validade das limitações que o legislador poderá querer
traçar-lhe”; por outro, deve servir “como instrumento (porventura excepcional)
890
ANDRÉ FIGUEIREDO, “O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito
privado”, in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2008, p. 31. Defendendo também que o princípio da
proporcionalidade é aplicável no direito privado, ver, mais desenvolvidamente, HANS HANAU,
Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit als Schranke privater Gestaltungsmacht, cit..
Finalmente,
ALBERT
BLECKMANN,
“Begründung
und
Anwendungsbereich
des
Verhältnismässigkeitsprinzip”, cit., p. 179, considera que o princípio da proporcionalidade se
deve aplicar a actos privados que se traduzam em sacrifício de direitos de terceiros.
891
892
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010302.html.
Sobre a protecção constitucional da autonomia privada ver, mais desenvolvidamente,
BENEDITA MAC CRORIE, A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, cit., pp. 81
ss.
234
de limitação do exercício da autonomia privada nas relações entre
particulares”893.
Daqui retiramos que também no que se refere à renúncia a direitos
fundamentais no âmbito das relações entre particulares o princípio da
proporcionalidade serve, em primeiro lugar, como “limite à limitação do poder
de disposição” pela parte do Estado, que apenas se pode justificar se houver
outros valores constitucionalmente relevantes que, no caso concreto, se devam
sobrepor ao poder de renunciar, também constitucionalmente protegido894.
Quanto às intervenções prosseguidas pelos particulares na decorrência
da habilitação concedida pelo acto de disposição do titular do direito no âmbito
das relações jurídicas privadas é necessário ter em consideração “as diferentes
situações relacionais” em que pode ter lugar a renúncia, sendo “a diferença
mais relevante a que atende à existência, ou não, de uma relação de sujeição
ou de dependência do titular do direito perante outrem”895. Quando seja
evidente que estamos perante “uma situação de desequilíbrio” em que uma das
partes é dotada de poderes de facto, deve recorrer-se ao “princípio da
proporcionalidade como instrumento de racionalização da prevalência de um
sujeito (…) sobre o outro”896.
Assim, a importância do princípio da proporcionalidade nas relações
jurídicas
privadas
revela-se
particularmente
quando
se
verifique
um
desequilíbrio entre as partes, porquanto uma delas se encontra numa posição
de supremacia em relação à outra897. No caso da renúncia a direitos
893
VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 635, também nota 190.
894
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 332 e 333.
895
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 313 e 314; também JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp.
738 e 739; ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62.
896
ANDRÉ FIGUEIREDO, “O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito
privado”, cit., p. 50.
897
ANDRÉ FIGUEIREDO, “O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito
privado”, cit., pp. 31 – 35. Segundo o Autor, no Direito do Trabalho, por exemplo, será “à luz do
princípio da proporcionalidade (…) que deverão ser escrutinadas certas formas de controlo do
trabalhador que se mostrem contrárias (…) à intimidade da vida privada, à não discriminação
ou à liberdade de expressão”. No domínio do direito dos contratos, este princípio “actua
naqueles casos em que a simples aplicação da autonomia contratual conduz (…) a resultados
manifestamente desproporcionais” e nos quais “se torna necessário que o Direito intervenha de
modo a garantir um equilíbrio razoável entre as prestações” – será, por exemplo, o caso da
“redução da cláusula penal (…) manifestamente desproporcionada em face do prejuízo
235
fundamentais, se existir efectivamente uma relação de sujeição o julgador deve
ter legitimidade para avaliar o respeito pelo princípio da proporcionalidade, nas
diferentes
vertentes
já
referidas,
“pressupondo-se
a
vulnerabilidade,
inferioridade e fraqueza - tanto mais intensamente quanto maior for a duração,
a intensidade ou o grau de perigo da limitação”898.
Contudo, também aqui, tal como na renúncia perante o Estado, tem de
se considerar a vontade do titular ao aceitar a interferência no seu direito, tanto
no que se refere à proporcionalidade em sentido restrito, que exige que os
meios legais não sejam desajustados em relação aos resultados obtidos ou a
obter, como no que diz respeito à razoabilidade, uma vez que se trata de
avaliar a razoabilidade da afectação na perspectiva da pessoa afectada. A
aplicabilidade deste princípio deverá, então, variar conforme os tipos de
situações e as circunstâncias que só em concreto podem ser determinadas899,
até porque já vimos que não basta a existência de uma relação de
desigualdade entre as partes para se considerar que a renúncia é
necessariamente involuntária.
Por outro lado, uma restrição estatal só se justifica quando se visa a
salvaguarda de um interesse público ou de terceiros, o que obviamente não
será de exigir na renúncia entre privados. Nas relações entre iguais o titular do
direito não tem de justificar a autolimitação por um qualquer valor social ou
público900. Tal não quer dizer, no entanto, como já referimos oportunamente,
sofrido”. Considerando o caso Bürgschaft, BVerfGE 89, pp. 214 ss, como um exemplo de uma
decisão do BVerfG na qual este se baseou em critérios de proporcionalidade, ver DIETER
MEDICUS, “Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit im Privatrecht”, cit., p. 41. Neste caso, um
banco concedeu a um comerciante um empréstimo de 100.000 DM, na condição de que a filha
deste último fosse fiadora. Antes da assinatura, o empregado do banco pediu à filha para
assinar, dizendo-lhe apenas que necessitava da assinatura para os ficheiros. Quatro anos mais
tarde, o banco veio pedir-lhe este montante acrescido de 60.000 DM de juros e o BGH deu-lhe
razão. Já o BVerfG, na sua decisão, considerou que os Tribunais cíveis devem, na
concretização e utilização de cláusulas gerais como os parágrafos 138º e 242º do BGB, ter em
consideração a protecção constitucional da autonomia privada. Daí decorre um dever de
controlo do conteúdo dos contratos que onerem uma das partes de forma excessiva.
Consequentemente, entendeu que o BGH violou o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade da requerente, na medida em que deveria ter aplicado uma destas cláusulas e
não o fez.
898
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 313.
899
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62.
900
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 258, nota 67; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p.
236
que o fim que motiva a anuência do titular do direito não possa ou até não deva
ser um dos elementos a ponderar quando se está a aferir a validade de uma
determinada renúncia num caso concreto901.
Para além disso, entre iguais tem-se ainda considerado que o
“ajustamento recíproco” de interesses deve ser feito pelas próprias partes “ao
acordarem os termos da sua relação negocial”. Em princípio não é, nestes
casos, necessário qualquer outro ajustamento, pois as partes “fixaram, por
decisão livre, uma modelação dos seus interesses, em que os sacrifícios a
suportar na respectiva esfera de liberdades são compensados pela aquisição
de novos direitos”902.
José Carlos Vieira de Andrade entende, efectivamente, que desde que
se respeitem “as condições de uma vontade livre e esclarecida”, os princípios
da proporcionalidade ou da racionalidade não devem funcionar como limites da
renúncia. O Autor considera como limites “apenas os que sejam (…) impostos
pelo respeito do núcleo essencial dos direitos (a dignidade da pessoa humana)
328, nota 96. ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62, considera,
por seu lado, que os princípios da adequação e da necessidade também devem ser aplicáveis
nos contratos de direito privado. Se uma das partes do contrato visar prosseguir interesses que
não gozam da protecção da ordem jurídica, este contrato deve ser considerado ilegal.
901
Parece-nos, por exemplo, que merecerá um tratamento diferente uma renúncia ao direito à
vida de alguém que se encontra em estado terminal e pretende acabar com um grande
sofrimento e a renúncia de alguém que, sem mais, pretende pôr termo à sua vida. Ainda que
possamos ter dúvidas quanto à decisão, parece-nos que foi este tipo de considerações que
esteve em causa numa decisão alemã quanto a um acordo de divórcio no qual o marido se
vinculou a mudar de cidade renunciando assim ao seu direito fundamental de liberdade de
circulação. O Tribunal considerou que este acordo era nulo e que uma renúncia à liberdade de
circulação só poderia ser atendível se fosse justificada por razões muito importantes. Ver
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 72. Um resumo deste caso está disponível
na NJW, n.º 32, 1972, p. 72. KEVIN HOPKINS, “Constitutional Rights and the question of waiver:
how fundamental are fundamental rights?”, cit., p. 137, considera que uma renúncia contratual
deve respeitar duas exigências: que haja “uma ‘boa razão” para a renúncia e que seja uma
medida proporcional”.
902
Nesse sentido, JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, O Problema do Contrato. As Cláusulas
Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, cit., p. 138. ALBERT BLECKMANN,
“Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 62, sustenta que “no caso de poderes negociais
iguais os direitos fundamentais maximizam-se quando os seus titulares, nas suas relações
mútuas, determinam por si mesmos, de uma forma ampla, o conteúdo e o peso dos seus
interesses”. Para o Autor “a autonomia privada assenta na ideia de que através de um contrato
se prosseguem melhor os interesses dos indivíduos do que através de uma lei”. Também
PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, cit., p. 234, entende
que “o acordo dos particulares é, no domínio jurídico-privado, considerado determinante para a
ponderação e avaliação do peso relativo de certos bens, sobretudo no domínio patrimonial”.
Obviamente desde que respeitados os “limites positivos e negativos” da liberdade contratual.
Sobre essa matéria, ver ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 613.
237
ou de valores comunitários básicos”903.
Jorge Reis Novais, por seu lado, discorda desta posição, na medida em
que parece apontar, para “uma compreensão do limite mínimo que deve
constituir a dignidade da pessoa humana em termos que parecem não obrigar
a relevar todas as circunstâncias do caso concreto, uma vez que exclui
expressamente as razões de proporção”904.
Estamos de acordo com esta última posição uma vez que julgamos,
efectivamente, que “as razões de proporção” devem também ser tidas em
conta na renúncia nas relações entre os particulares. Parece-nos, não
obstante, que fará sentido relacioná-las com uma ideia de “intensidade da
intervenção (Eingriffsintensität)”, que subjaz aos subprincípios da necessidade
e da proporcionalidade em sentido restrito. De facto, o exame da necessidade
traduz “uma exigência de intervenção menor”, uma vez que se deve levar a
cabo uma “comparação entre o meio adoptado (…) e os meios hipotéticos
alternativos”. Estamos perante “vários meios que detêm um ‘diverso grau de
intensidade’”, sendo que a “valoração da intensidade” se consubstancia na
“apreciação das ‘repercussões no afectado’”. O mesmo se verifica na
apreciação da proporcionalidade em sentido estrito. Aqui tem lugar “uma
operação que consiste na comparação entre duas variáveis: a intensidade da
intervenção no direito e a importância da razão que a justifica”905.
903
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 314. Na nota 67 da p. 258, o Autor entende que a proporcionalidade não tem
de ser respeitada neste âmbito, “mas apenas a dignidade da pessoa humana como mínimo
indisponível”. Assim, considera “válida a renúncia à integridade física, para operação de
estética, mesmo que o risco seja grande e os eventuais resultados escassos”. Em sentido
contrário, ver CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 216, que
defende que nestas situações não é de admitir o consentimento. Considerando que nas
relações privadas “valerá, quando muito, um mínimo de equilíbrio”, ver JOSÉ DE MELO
ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 141. Defendendo que este
princípio se deve aplicar às “renúncias induzidas, incorporadas num contrato com
contrapartidas para o Autor da renúncia”, “como se de uma restrição se tratasse”, ver
EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Os Direitos de Reunião e de Manifestação no Direito Português,
cit., pp. 137 e 138. No entanto, o Autor ressalva que “o facto de existir um acordo, com
vantagens recíprocas, deve aligeirar a ponderação da proporcionalidade”. Terá de se “apurar
se o objectivo da parte que recebe como contrapartida a limitação do direito da outra não é
ilícito, abusivo ou caprichoso”.
904
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 328, nota 96.
905
MIJAIL MENDOZA ESCALANTE, “‘Intensidad’ de la intervención o afectación de derechos
fundamentales y principio de proporcionalidad”, in Revista Jurídica del Perú, Tomo 80, 2007,
http://www.consultoriaconstitucional.com/articulospdf/vi/intensidad.de.intervencin.pdf
(última
visita a 12.04.2010), pp. 7 e 8. Referindo também esta ideia de “intensidade da intervenção”,
238
Em conformidade com isso, na problemática que estamos a analisar
pensamos que também a “intensidade da intervenção”, mesmo na renúncia nas
relações entre particulares, deverá ser um elemento a atender na ponderação a
realizar. É relevante considerar, quando aferimos a validade de uma dada
renúncia, qual o grau de afectação ou enfraquecimento do direito fundamental
que decorre do acto de disposição. O que também se relaciona com o facto de,
nessa ponderação, devermos aquilatar se se trata de uma renúncia ao direito
fundamental como um todo, uma renúncia permanente ou definitiva.
2.3. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais
Alguma doutrina sustenta ainda que a renúncia está sujeita ao mesmo
limite absoluto da reserva de lei restritiva, isto é, a manutenção do conteúdo
essencial do direito afectado906, ainda que haja Autores que defendem que
neste âmbito o conteúdo essencial é mais limitado do que aquele que deve ser
preservado nas restrições estaduais907.
ver ROBERT ALEXY, “Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales”, cit., pp. 33 ss; BODO
PIEROTH, – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 86,
estabelecem que “tanto quanto se possam estabelecer graus de intensidade de ingerência, o
princípio da proporcionalidade exige que o legislador só passe para o grau de ingerência mais
intensa se não puder atingir o seu fim no grau de ingerência menos intensa”. Também
VITALINO CANAS, “Proporcionalidade (Princípio da)”, cit., p. 624, refere que quando se avalia a
necessidade de uma dada medida, “para sabermos se uma lesão é comparativamente menor”
torna-se necessário, entre outras coisas, “medir a sua intensidade: qual “o número de pessoas
atingidas, extensão territorial, custos [e] duração temporal”. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições
aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 755 e
756, entende que “no domínio das restrições a direitos fundamentais acontece (…) que na
apreciação das duas grandezas ou bens em avaliação” (por exemplo, ao restringir “a liberdade
de acção de um indivíduo para proteger a sua própria vida”) “se esbate frequentemente a
relação meio-fim, típica do controlo da proporcionalidade, para sobressair (…) a apreciação da
afectação positiva e da afectação desvantajosa dos dois bens jurídicos envolvidos na restrição,
considerando-se, para uma devida valoração dos dados circunstanciais de facto, tanto a
intensidade da afectação como o tempo durante o qual eles são afectados”.
906
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht”, cit., p. 929; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p.
331; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, cit., p. 311; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, cit., p. 464. Em sentido contrário, considerando que a garantia do
conteúdo essencial diz apenas respeito à restrição de direitos fundamentais através do
legislador e não à possibilidade de disposição do próprio titular de direitos fundamentais, ver
DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 57.
907
Nesse sentido, GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 131 – 133. Assim,
239
Também na renúncia
nas
relações entre
particulares
se tem
argumentado que na concordância prática a estabelecer entre a autonomia
privada e os restantes direitos, liberdades e garantias é indispensável preservar
sempre o conteúdo essencial destes últimos908. Segundo esta perspectiva, a
indisponibilidade de um “standard jurídico mínimo vale não apenas contra
intervenções estaduais mas também nas relações que os particulares
estabelecem entre si”909.
Não é, no entanto, tarefa fácil determinar o que é o conteúdo essencial
de um direito, liberdade e garantia910, não existindo consenso na doutrina sobre
o seu significado911. Coloca-se, antes do mais, a dúvida se o conteúdo
essencial é uma realidade de natureza absoluta ou relativa.
Para a teoria absoluta o conteúdo essencial consiste num núcleo
fundamental intocável presente em cada direito fundamental e que é
independente da colisão de interesses verificada no caso concreto912. Assim
sendo, tal teoria não tem em consideração outros bens na determinação desse
conteúdo913.
segundo ele, “devem estabelecer-se dois conteúdos essenciais do direito distintos: por um
lado, um mais restrito para o indivíduo; por outro lado, um mais amplo para o Estado”. Parecenos, no entanto, que dadas as dificuldades na determinação do conteúdo essencial, não será
viável esta distinção.
908
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 302. Como vimos, também JOSÉ
CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,
cit., p. 314, considera como limites da autolimitação os que sejam “impostos pelo respeito do
núcleo essencial dos direitos (a dignidade da pessoa humana) ou de valores comunitários
básicos”.
909
REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das
Privatrecht”, cit., p. 186.
910
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 314 e 315; MANUEL AFONSO
VAZ, Lei e Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 332.
911
KLAUS STERN, “Idee und Elemente eines Systems der Grundrechte”, cit., p. 95.
912
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 269; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O
Direito Geral de Personalidade e a “Solução do Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de
“Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 82, nota 138.
913
Defendendo as teorias absolutas, ver JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos
Direitos Fundamentais”, cit., p. 459; JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito
Constitucional, Vol. II, cit., p. 1112; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p.
315; LUIS PRIETO SANCHIS, Estudios sobre Derechos Fundamentales, cit., pp. 143 ss;
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 126; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit.,
p. 46; EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., p. 239; KLAUS STERN – MICHAEL
SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 865. Tendendo para
a teoria absoluta, embora deixando a questão em aberto, ver JÓNATAS MACHADO, Liberdade
de Expressão, cit., p. 743.
240
A grande dificuldade que a teoria absoluta levanta é a de saber em que
consiste
efectivamente
o
“âmbito
nuclear
intocável”
de
cada
direito
fundamental914. As “tentativas de delimitação substancialista de um núcleo ou
âmbito essencial dos direitos fundamentais” não têm conseguido dar uma
resposta conveniente a esta questão porque não fornecem qualquer critério
seguro para distinguir o que deve pertencer ao núcleo essencial do direito e o
que deve ser dele excluído. Há, efectivamente, uma grande diversidade de
posições quanto ao que se deve entender por conteúdo essencial do direito,
mas nenhuma “ultrapassa um nível de abstracção que permite, na situação
concreta, uma aplicação da garantia com um qualquer sentido”
915
. Por outro
lado, as definições do conteúdo essencial com “um grau suficiente de precisão”
reconduzem-no a outros princípios constitucionais “como a proporcionalidade,
a igualdade ou a dignidade da pessoa humana”, deixando esta garantia de ter
“utilidade prática autónoma” 916.
Mas mesmo ultrapassando esta primeira dificuldade, logo se coloca uma
outra, que é a de decidir se a garantia protege “o conteúdo essencial de cada
direito subjectivo”, que é o que preconiza a teoria subjectiva, ou se se tem de
914
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 783.
915
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 788 e 789. Para o Autor este é (entre outros), por
exemplo, o caso da perspectiva que defende que o núcleo essencial se determina “em função
do significado que, após a restrição, o direito fundamental ainda mantivesse para a vida social”,
ou das que consideram que se deve identificar o conteúdo essencial “com a garantia
institucional proporcionada pelo direito” ou com o “que é essencial ou típico na respectiva
instituição jurídica”.
916
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 789 e 790. Considerando que o reduto mínimo do direito
que deve ser sempre salvaguardado e não pode estar dependente de uma ponderação de
bens, se parece reconduzir ao princípio da dignidade da pessoa humana, ver JORGE BACELAR
GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., p. 459; JORGE MIRANDA,
Manual de Direito Constitucional, cit., p. 309; JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos
fundamentais”, cit., p. 331; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 287 e 311; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de
Lei, A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 344; MICHAEL SACHS,
Verfassungsrecht II, Grundrechte, cit., p. 146; REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS
WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 191. GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., p. 129, entende, no entanto, que “uma identidade entre o conteúdo de
dignidade e o conteúdo essencial só pode estabelecer-se nos casos em que o conteúdo do
direito fundamental se refere à dignidade da pessoa”. Para o Autor “este não é sempre o caso,
uma vez que nem todos os direitos fundamentais têm uma relação estreita obrigatória com a
dignidade”.
241
entender como dirigida “não ao direito mas ao preceito constitucional (…)
enquanto norma de valor e garantia”, que é a perspectiva da teoria objectiva917.
A primeira teoria não corresponde à realidade, uma vez que “são
normalmente frequentes, e tidas pacificamente como legítimas em Estado de
Direito, intervenções restritivas que reduzem drasticamente ou aniquilam
mesmo qualquer possibilidade de exercício de um direito fundamental por parte
de um indivíduo concreto”918, sem que, por isso, sejam consideradas
inconstitucionais.
Quanto à segunda, a protecção que esta confere é meramente residual,
na medida em que só actua “perante tentativas extremas de imposição de
soluções totalitárias de regulação da liberdade”919. De facto, se se entende que
917
Considerando que o conteúdo essencial “tem de entender-se como referido não ao direito
mas ao preceito constitucional (…) enquanto norma de valor e garantia”, seguindo-se um
sentido objectivista, ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 287 e 288; GERRIT MANSSEN, Grundrechte, cit., p.
45; PETER HÄBERLE, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19, Abs. 2 Grundgesetz, 3ª Edição, C.
F. Müller Verlag, Heidelberg, 1983, pp. 236 ss. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 459, sustenta que não se pode reconduzir a
solução do problema “a alternativas radicais porque a restrição (…) deve ter em atenção a
função dos direitos na vida comunitária, sendo irrealista uma teoria subjectiva desconhecedora
desta função”. No entanto, entende que “a protecção do núcleo essencial não pode abdicar da
dimensão subjectiva dos direitos fundamentais e daí a necessidade de evitar restrições
conducentes à aniquilação de um direito subjectivo individual”. No sentido de considerar que
para determinados direitos que assumem uma especial importância deve “prevalecer uma
concepção subjectivista”, ver JORGE BACELAR GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos
Fundamentais”, cit., p. 459 e também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito
Constitucional, Vol. II, cit., p. 1112. Defendendo a teoria subjectiva, ver JOSÉ LAMEGO,
Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência. O Direito Fundamental de Liberdade de
Consciência, cit., p. 79; THEODOR SCHRAMM, Staatsrecht, cit., p. 44; KLAUS STERN, “Idee und
Elemente eines Systems der Grundrechte”, cit., p. 96; BODO PIEROTH – BERNHARD SCHLINK,
Direitos Fundamentais, Direito Estadual II, cit., p. 89; GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., p. 122; KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. III/2, cit., p. 870. Considerando que “o carácter dos direitos
fundamentais como direitos individuais fala a favor da manutenção da teoria subjectiva, ainda
que a par da objectiva”, ver ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 269. Sobre estas
teorías, ver ainda JUAN CARLOS GAVARA DE CARA, Derechos Fundamentales y Desarrollo
Legislativo. La Garantía del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales en la Ley
Fundamental de Bonn,cit., pp.23 ss.
918
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 784; também ISABEL MOREIRA, A Solução dos Direitos,
Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição
Portuguesa, cit., p., 94; MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie,
cit., p. 177.
919
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 791; também MATTHIAS MAYER, Untermass, Übermass
und Wesensgehaltgarantie, cit., p. 176, considera que esta teoria “apenas evitaria aquilo que
sob as exigências do Estado de Direito seria impensável”.
242
o conteúdo essencial do direito é apenas violado se se atentar contra o preceito
“enquanto norma de valor e garantia”, muito dificilmente uma restrição será
considerada inconstitucional por violação desta exigência constitucional.
As teorias relativas, por sua vez, reconduzem o conteúdo essencial ao
princípio da proporcionalidade, só podendo conhecer-se o núcleo do direito em
cada caso concreto, mediante a ponderação dos bens e interesses em
conflito920. Assim, segundo estas teorias “o conteúdo essencial é o que sobra
depois de uma ponderação”, pelo que “as restrições que respeitam o princípio
da proporcionalidade não lesam a garantia do conteúdo essencial mesmo
quando no caso concreto nada reste do direito fundamental”921.
Como crítica a esta doutrina aponta-se “a relativização consciente e
intencional da validade dos direitos fundamentais” uma vez que em última
análise poderá implicar que nada sobre do direito, “desde que tal seja exigido
pela maior valia dos bens que com ele colidam”922.
Há ainda quem recorra a uma teoria mista, alegando que, apesar de a
delimitação do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias não estar
isenta de uma ponderação de bens, para que se garanta realmente o conteúdo
essencial deve sempre preservar-se “um resto substancial de direito, liberdade
e garantia que assegure a sua utilidade constitucional”923. Esta teoria, uma vez
920
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O Direito Geral de Personalidade e a “Solução do
Dissentimento” – Ensaio Sobre um Caso de “Constitucionalização” do Direito Civil, cit., p. 82,
nota 138;GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 124 e 125.
921
ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 269.
922
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 783; ANTONIO LUIS MARTÍNEZ-PUJALTE,La Garantía del
Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales,
Madrid, 1997, p. 27.
923
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO - VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada,
cit., p. 395. Defendendo também as teorias mistas, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 286; JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 461. Embora não o dizendo
expressamente, parece ser também essa a perspectiva de SÉRVULO CORREIA, O Direito de
Manifestação. Âmbito de Protecção e Restrições, cit., p. 75; GÜNTER DÜRIG, “Der
Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, cit., pp. 133 ss. Também MAX MIDDENDORF, “Zur
Wesensgehaltgarantie des Grundgesetzes”, in JURA, n.º 4, 2003, p. 235, parece defender uma
teoria mista, na medida em que considera que “da teoria relativa se deve retirar que o conteúdo
essencial não pode ser concretizado, em todas as situações, independentemente dos restantes
interesses”. Verificando-se “uma colisão de conteúdos essenciais pode haver uma lesão de um
deles e ser tomada uma decisão favorável para o titular do direito fundamental que deva ser
nessa situação mais protegido. A decisão quanto a qual o bem jurídico que merece, no caso
concreto, maior protecção exige uma ponderação de bens”. Se não for esse o caso, o Autor
243
que combina “elementos de cada uma das perspectivas unilaterais referidas”,
está também sujeita às críticas apontadas às restantes teorias, uma vez que
padece “das debilidades que afectam cada uma daquelas construções”924.
Perante estas considerações, deparamo-nos com a questão de
determinar em que medida pode o conteúdo essencial dos direitos
fundamentais servir como limite à renúncia a direitos fundamentais. Vimos que
este,
segundo
as
teorias
relativas,
se
reconduz
ao
princípio
da
proporcionalidade e que, nos termos das teorias absolutas, se consubtancia
num núcleo material mínimo cuja determinação acaba por remeter para outros
princípios constitucionais, em particular o princípio da dignidade da pessoa
humana, sob pena de ser demasiado vago.
Assim sendo, parece ser de entender que a garantia do conteúdo
essencial não cumpre “qualquer papel autónomo significativo nem desenvolve
qualquer efeito jurídico efectivo enquanto limite aos limites dos direitos
fundamentais”925. De igual modo, também não desempenha qualquer papel
entende que deve seguir-se a teoria absoluta.
924
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 795.
925
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 786. Também ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte,
cit., pp. 271 e 272, entende que a garantia do conteúdo essencial não formula, a par com o
princípio da proporcionalidade, “nenhum limite adicional à restringibilidade dos direitos
fundamentais”. Para o Autor, “o carácter absoluto da protecção de um direito fundamental é
uma questão de relações entre princípios. Não pode excluir-se uma constelação na qual os
princípios opostos tenham precedência”. No entanto, “uma vez que quanto mais se esvazia um
princípio mais resistente este se torna”, “a segurança da protecção é tão alta que, em
circunstâncias normais, se pode falar de uma protecção absoluta”. Assim, a garantia do
conteúdo essencial é sobretudo “mais uma razão a favor da validade do princípio da
proporcionalidade”. JOST PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 536
e 537, considera que o conteúdo essencial é definido pelo núcleo de dignidade ou pela
proibição do excesso, pelo que o recurso a este conceito enquanto limite da renúncia envolve o
risco de conduzir a uma “argumentação circular”, na medida em que não está aqui em causa
uma “grandeza fixa” mas antes “uma variável dependente também do consentimento do
próprio”. ARTHUR KAUFMANN, “Was heisst ‘Wesensgehalt’ der Grundrechte? Überlegungen zu
Artikel 19 Absatz 2 Grundgesetz”, in BERND SCHÜNEMANN – JÖRG PAUL MÜLLER – LOTHAR
PHILIPPS, Das Menschenbild im weltweitem Wandel der Grundrechte, Duncker & Humblot,
Berlin, 2002, pp. 31 ss, defende que a disposição constitucional que consagra a garantia do
conteúdo essencial tem meramente uma “’função simbólica’”. Para o Autor, a questão de saber
“quando é que o conteúdo essencial do direito é afectado não se pode responder de forma
abstracta, uma vez que não há um ‘conteúdo essencial’ enquanto uma ‘parte componente’
substancial do direito. Apenas há um conteúdo essencial em relação a algo”. JOSÉ JOAQUIM
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 461, por seu lado,
entende ser de rejeitar “a ideia (…) de que a garantia do conteúdo essencial não é mais do que
uma ‘mera proclamação e sinalização da ponderação e vinculação do legislador ordinário e
244
autónomo enquanto limite à renúncia, seja perante o Estado, seja perante
outros particulares.
2.4. A ordem pública e os bons costumes
Quanto à possibilidade de auto-suspensão de direitos926, Jorge Miranda
(convocando o art. 29.º, n.º 2 da DUDH) sustenta que não podem ser admitidas
situações “que colidam com a moral, a ordem pública e o bem-estar numa
sociedade democrática”927. Também na doutrina alemã Detlef Merten considera
um pressuposto da renúncia a sua “conformidade com os bons costumes”928.
Na sequência disso, procuraremos ver como é que a ordem pública e os bons
costumes, conceitos que o direito português invoca em matéria de
consentimento929, podem servir para o estabelecimento de limites à renúncia.
Para o efeito, indagaremos de que modo é que estes conceitos têm vindo a ser
densificados no Direito Civil e no Direito Penal.
O legislador civil estabelece, no art. 340.º do CC, que “o acto lesivo dos
direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. Tal
significa que se o consentimento for válido a violação passa a ser lícita, não
podendo ser invocado o direito em causa930. Porém, segundo o n.º 2 deste
artigo a ilicitude do acto não é afastada se o consentimento do lesado for
contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes. Ainda no que diz
respeito à limitação voluntária ao exercício de direitos de personalidade, o n.º 1
restantes poderes constituídos pelos direitos fundamentais’”. Para o Autor a garantia de um
núcleo absoluto pretende afirmar “o valor da liberdade individual” como “constitutivo da ordem
constitucional”. EKKEHART STEIN – GÖTZ FRANK, Staatsrecht, cit., p. 240, consideram que o
conteúdo essencial é desrespeitado quando a pessoa em causa “não possa mais prosseguir o
seu interesse jusfundamentalmente protegido, ou seja, quando lhe sejam vedadas todas as
formas de realização desse interesse”.
926
Vimos já que esta é a designação que o Autor utiliza para se referir à renúncia. JORGE
MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 384 e 385.
927
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 386.
928
DETLEF MERTEN, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., pp. 70 ss.
929
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., p. 141.
930
HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do
Direito Civil, cit., p. 268.
245
do art. 81.º do CC, que é uma “lex specialis em relação ao n.º 2 do art. 340.º
CC”, determina que esta é nula quando contrarie os princípios da ordem
pública931.
No Direito Penal, também o n.º 1 do art. 38.º do CP estabelece que “o
consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos
livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes”.
Tem-se entendido que os bons costumes se consubstanciam nas
“regras morais e de conduta social generalizadamente reconhecidas, em dado
momento, numa sociedade”932. São uma “noção variável com os tempos e os
lugares”933, tratando-se de “um conceito indeterminado “a que o intérprete,
maxime o julgador, terá de atribuir conteúdo caso a caso”934.
Este conceito refere-se a “um conjunto de normas extrajurídicas”935, ou
seja, os bons costumes “consistem em normas de conduta de carácter não
jurídico e que reflectem as regras dominantes da moral social de uma
determinada época”936. No entanto, deve ter-se presente, na densificação do
conceito, “a sua depuração de quaisquer valores ou referências de índole
religiosa”937. Verifica-se, de facto, hoje “uma tendência para ‘des-eticizar’ ou
931
HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do
Direito Civil, cit., p. 268. Considerando que no Direito Civil a declaração de limitação voluntária
pode “ser anulada ou objecto de uma declaração de nulidade quer com fundamento nas regras
sobre incapacidade (…) quer (…) com fundamento na sua ilicitude ou contrariedade à ordem
pública ou aos bons costumes, ver PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à
reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 54; ORLANDO CARVALHO, Teoria Geral do
Direito Civil. Sumários Desenvolvidos, cit., p. 91; 0; PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código
Civil Anotado, cit., pp. 110 e 304.
932
ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 125.
933
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 559.
934
ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 125. Ver também RABINDRANATH CAPELO DE
SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 531. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado
de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, cit., p. 506, defende que partindo do
conceito de bons costumes não devem ser admissíveis “negócios jurídicos - excluindo os actos
próprios do Direito da Família e que a lei tipifica - que tenham por objecto prestações que
envolvam relações familiares (…) ou condutas sexuais”. Para o Autor, ainda que tenha “havido
modificações neste domínio”, devido à “evolução cultural recente”, continuam a existir regras.
Para além disso, considera que os bons costumes se podem alargar “a regras deontológicas
formuladas por instâncias profissionais próprias”.
935
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 61.
936
HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do
Direito Civil, cit., p. 524.
937
ÁLVARO DA CUNHA RODRIGUES, “Consentimento informado – pedra angular da
246
‘des-moralizar’ o conceito de bons costumes”, pelo que a doutrina e a
jurisprudência se têm servido das “normas de direitos fundamentais em geral” e
do “princípio da dignidade da pessoa humana em particular” para aferir “a
licitude ou a ilicitude, a validade ou a invalidade, do consentimento na agressão
ou ofensa”938.
Já a ordem pública “é o conjunto de princípios basilares de uma dada
ordem jurídica (…) que regulam interesses gerais e fundamentais da
colectividade”939 e que, pela importância que assumem, “devem prevalecer
sobre as convenções privadas”940. Esta compreende “as normas que servem à
realização e à protecção dos valores e bens fundamentais para a vida em
comunidade e que encontramos nomeadamente na Constituição”941. O
consentimento deve considerar-se contrário à ordem pública sempre que
ofenda “princípios constitucionais”942.
Perante isto, e uma vez que, como referimos, a tendência vai no sentido
de retirar a carga moral tradicionalmente associada ao conceito de bons
responsabilidade criminal do médico”, in Direito da Medicina – I, Coimbra Editora, Coimbra,
2002, p. 29. Considerando que, no que se refere a restrições à liberdade de manifestação,
“numa sociedade pluralista a moral relevante não será o conjunto de cânones eventualmente
professados pela maioria ou por instituições consolidadas”, ver SÉRVULO CORREIA, O Direito
de Manifestação. Âmbito de Protecção e Restrições, cit., p. 76.
938
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., pp. 61 e 62. Sobre a equiparação
entre bons costumes e dignidade, ver também STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “Une dignitas
humaine? Vieilles outres, vin nouveau”, in Droits, n.º 48, 2009, pp. 60 e 61. Para a Autora o
princípio da dignidade e os bons costumes “partilham uma similitude de funções: constituir um
limite juridicamente oponível à (…) vontade individual”. Também no Direito Penal é hoje
consensual “a tese da ilegitimidade da promoção ou prossecução, através dos bons costumes,
de finalidades transcendentes à danosidade social com dignidade penal”. Ver, MANUEL DA
COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 543. Este Autor entende
que tal vale sobretudo “para as tentativas (…) de punição de lesões corporais consentidas em
nome da sua imoralidade, o que “sucedeu (…) com as ofensas corporais (mesmo ligeiras),
praticadas para a satisfação de perversões sadomasoquistas ou com a esterilização
voluntária”. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 481, considera que
o limite dos bons costumes imposto pela lei não deve ser entendido em termos de moral
sexual, estando em causa antes a gravidade da ofensa, até em termos de gravidade física.
939
ANA PRATA, Dicionário Jurídico, cit., p. 707.
940
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 557 e 558.
941
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 478. Ver
também PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral de Direito Civil, cit., p. 591.
942
NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das Pessoas. Sumários Desenvolvidos das Lições
ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito, cit., p. 61; HEINRICH EWALD HÖRSTER, A
Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 523.
247
costumes, cada vez mais estas duas noções propendem a ser complementares
e até a se sobreporem parcialmente, “o que explica (…) porque são geralmente
referidas conjuntamente”943.
Por outro lado, uma vez que a concretização dos bons costumes e da
ordem pública se tem vindo a fazer através do recurso aos direitos
fundamentais944 entendemos que estas duas noções não se consubstanciam
num limite autónomo para o problema dos limites da renúncia945, uma vez que,
no fundo, somos reconduzidos para a questão da “conformidade material da
renúncia aos princípios e regras constitucionais”.
De facto, o conceito de ordem pública (e pensamos que estas
considerações valem também para o conceito de bons costumes) deve ser
densificado no sentido de permitir que os cidadãos gozem dos seus direitos
fundamentais “sem quaisquer interferências ilegítimas de terceiros”, pelo que a
ordem pública “deve traduzir (…) o ponto óptimo de equilíbrio de todos os
direitos e interesses consagrados na lei fundamental e não apenas alguns
deles”. Por conseguinte, a ordem pública não pode ser entendida “como uma
realidade ontológica anterior e superior aos direitos fundamentais”. Quando se
943
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 478. A
Autora considera, no entanto, que o conteúdo dos bons costumes é menos concretizado em
normas jurídicas positivas, reflectindo antes o denominador cultural comum espontâneo de
uma comunidade nacional.
944
Considerando que seguindo “uma perspectiva liberal-democrática são precisamente os
direitos fundamentais que constituem a essência da própria ideia de ordem pública”, ver LUIS
MARÍA DÍEZ-PICAZO, “Nota sobre la renuncia a los derechos fundamentales”, cit., pp. 133 e 134.
FRANZ JÜRGEN SÄCKER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Vol. I, 3ª
Edição, Verlag C. H. Beck, München, 1993, p. 1139, entende, por sua vez, que “os direitos
fundamentais são um elemento especialmente importante para a concretização dos bons
costumes através do ordenamento interno”. DIETER MEDICUS, Allgemeiner Teil des BGB, 8.ª
Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2002, p. 269, defende que “os valores da Constituição,
sobretudo os direitos fundamentais, têm efeitos na validade de negócios jurídicos”, “através da
cláusula geral de bons costumes”. Também MANUEL ANTÓNIO CARNEIRO DA FRADA, Teoria da
Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 846, nota 940, faz referência
a um preenchimento da cláusula dos bons costumes” à luz da protecção constitucional dos
direitos fundamentais” e ao facto de que vários princípios jurídicos fundamentais obtêm
realização através dela. Finalmente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil
Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, cit., p. 508, em relação ao conceito de ordem pública,
entende que “são contrários à ordem pública negócios que atinjam valores constitucionais
importantes”.
945
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 849 e 850, refere que “a
operacionalidade” dos bons costumes (ou da moral pública, uma vez que considera que se
trata de “noções irmãs”) e da ordem pública “como fundamentos autónomos de restrições aos
direitos fundamentais tem vindo a ser progressivamente enfraquecida”.
248
pretendem fundar restrições a direitos fundamentais recorrendo a esta noção,
não se pode “prescindir da discussão (…) [acerca] da posição relativa em que
se encontram os direitos e interesses que a ordem pública visa acautelar, feita
a partir de critérios valorativos de natureza constitucional”946. Nesse sentido, a
ordem pública e os bons costumes podem inclusivamente ser “fundamento
para a disponibilidade”947.
Apesar disso, há alguns contributos quanto à densificação destes
conceitos que julgamos pertinente salientar, pois vão ao encontro de
considerações que fomos tecendo ao longo deste trabalho relativamente ao
problema da renúncia. Em primeiro lugar, tem-se entendido que a invocação
dos bons costumes e da ordem pública como limites do consentimento não
poderá servir para uma pretensa protecção da pessoa contra si própria ou para
impor um determinado “conceito objectivo de ‘dignidade humana’”948.
Remetemos, quanto a esta questão, para tudo o que dissemos relativamente à
legitimidade da defesa da pessoa contra si mesma e ao princípio da dignidade
da pessoa humana enquanto limite da renúncia a direitos fundamentais.
Para além disso, no Direito Penal tem-se privilegiado, como resposta ao
problema dos bons costumes, a contraposição entre “lesões ligeiras e graves,
estas últimas normalmente qualificadas pela sua irreversibilidade e pelo teor
das suas sequelas”949, uma vez que se entende que com a referência aos bons
costumes “não se quer remeter para a contrariedade moral (…) do facto
consentido”950. Quanto à existência de uma violação dos bons costumes
quando se verifiquem lesões graves a corrente maioritária tem vindo a admitir
“a intervenção de um fim positivo susceptível de neutralizar o estigma da
ofensa (…), em princípio indiciado pela gravidade da lesão”951, nos casos em
946
JÓNATAS MACHADO, Liberdade de Expressão, cit., pp. 857 e 858.
947
LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 475.
948
Nesse sentido, PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada”, cit., p. 547. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit.,
pp. 173 e 174, também nota 1, considera que “não raro, na experiência histórica, a invocação
da ‘ordem pública’ tem sido feita como conceito (…) beligerante contra a liberdade. No entanto,
a ordem pública “só vale enquanto permite a realização do bem comum, aferido pelo equilíbrio
entre liberdade e autoridade”.
949
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 546.
950
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 481.
951
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 546 e
249
que esta “esteja ao serviço de interesses de superior e inquestionável
dignidade, reconhecida pela ordem jurídica”952. Uma parte da doutrina entende
ainda que esta perspectiva deve ser recebida, “como orientação geral, pelo
Direito Civil”953.
Daqui retiramos duas ideias que julgamos ser importantes para o
problema da renúncia: por um lado, o carácter grave e irreversível da lesão,
que serve para integrar a cláusula dos bons costumes, pode ser útil para aferir
a validade de uma renúncia concreta a direitos fundamentais, devendo ser
mais um elemento a ter em conta na ponderação. Fizemos considerações
semelhantes quando distinguimos renúncia reversível de renúncia definitiva e
dissemos que, na ponderação de valores a realizar para a tomada de decisão
quanto à admissibilidade da renúncia, também se deverá, efectivamente,
atender a esta distinção.
547. Para o Autor esta ressalva é pensada “para abrir a porta a lesões mais ou menos graves
para efeitos de transplante entre vivos”, mas que se projecta “em áreas como as
experimentações humanas, as intervenções cosméticas, operações trans-sexuais”, etc. Assim,
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 481, defende que “o
consentimento será ineficaz quando a ofensa à integridade física possua uma gravidade tal nomeadamente uma irreversibilidade (…) - que, perante ela, o valor da auto-realização pessoal
deva ceder o passo”. Nesse sentido, também TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, cit., p.
270.
952
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., pp. 144 e 145. Assim, entende-se que “há lesões da integridade
física (…) com um tal potencial de danosidade social e de destruição do outro ‘que a sociedade
só pode conformar-se com elas, apesar do consentimento, quando acresça um fim susceptível
de justificar o facto. Isto, dada a responsabilidade da sociedade pela garantia e respeito face ao
núcleo essencial da integridade física das pessoas’”. Nesse sentido, ver H. J. HIRSCH apud
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., p. 548. Este
Autor diz-nos ainda que Jakobs considera que se trata “de saber se ‘o facto ainda se pode
valorar como um lidar racional com os bens, no sentido de juridicamente sustentável. Os
critérios hão-de, para tanto, pedir-se à ponderação de bens do estado de necessidade, com o
alcance de o bem jurídico sacrificado não poder ser desproporcionado em relação ao fim
prosseguido com a lesão’”. A lei portuguesa manda, no art. 149.º do CP, atender aos fins do
agente e mesmo do ofendido para decidir se a ofensa à saúde ou ao corpo contraria os bons
costumes. Ver MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do
Código Penal, Parte Especial, cit., pp. 292 e 293. Este Autor entende que “concretamente é a
chamada dos fins ao círculo hermenêutico dos bons costumes que pode legitimar a cedência
de órgãos para fins de transplante”.
953
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente.
Estudo de Direito Civil, cit., pp. 145 e 146. No entanto, o Autor sustenta ainda que se poderá ir
um pouco mais além “para efeitos do Direito Civil”, na medida em que “há intervenções que,
não causando lesões graves e irreversíveis devem ser consideradas como actos violadores
dos bons costumes”. Será o caso de “mutilações gratuitas, desfiguração duradoura e sem
razão clínica do doente; intervenções com risco de vida sem utilidade notória; experiências
gratuitas com seres humanos; tormentos ou torturas sádicas dos doentes”.
250
Por outro lado, também entendemos que é relevante para o problema
que estamos a tratar a importância atribuída, em sede de consentimento, “aos
‘fins do agente’ e mesmo do ‘ofendido’”954. Será transponível para a renúncia a
ideia de que pode haver um fim positivo capaz de “neutralizar” a ofensa aos
bons costumes, que pareceria verificar-se, atendendo à gravidade da lesão.
Também a propósito do princípio da proporcionalidade tínhamos já referido que
o fim que motivou a renúncia deve ser um dos elementos a ponderar para aferir
se o acto de disposição é válido. Parece-nos ser igualmente esta a posição de
Gomes Canotilho, ao entender que na apreciação da validade da renúncia se
deve ter em atenção não apenas “o direito fundamental concreto” mas também
“o fim da renúncia”955.
Pensamos que nas situações em que a renúncia é definitiva a existência
de um fim que se sobreponha à lesão do bem pode implicar que esta possa,
ainda assim, ser considerada admissível. Por consequinte, entendemos que
estas considerações reforçam aquilo que dissemos sobre a possibilidade de
uma renúncia definitiva: não se pode dizer, à partida, que uma renúncia
definitiva a posições jurídicas subjectivas de direitos fundamentais seja
inadmissível, embora essa definitividade deva ser tida em conta na decisão
concreta acerca da validade da renúncia956.
2.5. A maior ou menor disponibilidade dos direitos fundamentais
Considerando que no conteúdo dos direitos-liberdades está incluída “a
954
MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 149.º”, in Comentário Conimbricense do Código
Penal, Parte Especial, cit., pp. 292 e 293.
955
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
465. Também JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p.
138, defende que a admissibilidade da renúncia tem de ser avaliada “em função do direito
fundamental em concreto, (…) das circunstâncias particulares do caso, (…) da condição do
respectivo titular e (…) do fim da renúncia.
956
Sobre o problema da interrupção voluntária da gravidez, RUI MEDEIROS E JORGE PEREIRA
DA SILVA entendem que “para que a concordância prática não se esgote numa fórmula vazia,
(…) seria necessário que o motivo determinante da prática de aborto não fosse irrelevante para
a ordem jurídica”. RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA
– RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 231.
251
faculdade de não agir”957, assim como o “carácter instrumental (…) dos direitosgarantias”958, a questão da disponibilidade dos direitos fundamentais “põe-se
especialmente no que respeita aos ‘direitos-direitos’”959.
A disponibilidade do bem jurídico a que se pretende renunciar é uma
condição de renúncia, uma vez que “só se pode renunciar a algo de que se
dispõe”. No entanto, tal não quer dizer que não se justifique considerá-la
igualmente como um dos tópicos a ter em conta quando se afere a validade
concreta de uma dada renúncia. É que ainda que tenhamos já reconhecido que
o particular detém, a priori, o poder de renunciar às suas posições subjectivas
de direitos fundamentais, esse poder não é “absoluto”, uma vez que a maior ou
menor disponibilidade do direito fundamental “depende da “natureza do bem
tutelado”, das “circunstâncias do caso e do peso relativo das razões e
interesses em conflito”960.
Deve-se, antes do mais, através da interpretação do direito fundamental
em causa, determinar se segundo o seu sentido o bem jurídico protegido é
disponível pelo seu titular961. Existem algumas situações em que as próprias
normas de direitos fundamentais atribuem ou negam “relevância jurídica à
vontade do titular”, ou seja, erigem-na “como elemento positivo ou negativo da
previsão normativa de uma garantia de direito fundamental”. A negação de
relevância jurídica tem como consequência que os direitos não possam ser
957
Mais desenvolvidamente, ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 198; JORGE
MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 113.
958
Quanto à distinção entre direitos e garantias, no sentido de que os direitos dizem respeito à
“fruição” de um bem jurídico, sendo assim “principais”, enquanto as garantias servem para
assegurar essa fruição, mas em termos acessórios, ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 113. Criticando a designação constitucional de direitos, liberdades e
garantias, ver JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Estatuto Constitucional da Actividade de
Televisão, cit., p. 77.
959
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 312.
960
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 322. JOSÉ DE MELO
ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 140, também notas 431 e 432,
afirma que um dos requisitos da renúncia é a disponibilidade “sobre certos efeitos de protecção
de uma posição de direito fundamental por parte do seu titular”. O Autor defende que não é
“adequada a ideia de disponibilidade sobre os bens ou interesses protegidos pela norma”, pois
“o que é enfraquecido não é o bem, mas sim os efeitos de protecção potenciais de uma norma
que garante um bem”. Uma vez que “a renúncia se situa no plano jurídico (e não no plano da
realidade social) ela tem de ter uma relação directa com a norma e com os efeitos da norma,
repercutindo-se no bem apenas de forma interposta”.
961
CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 141.
252
renunciados, que é o que sucede com as normas de direitos fundamentais que
estabelecem direitos-deveres. Será, por exemplo, o caso da inadmissibilidade
de renúncia a normas como as do n.º 5 do art. 36.º, (direito-dever de educação
e manutenção dos filhos), dos n.ºs 1 e 2 do art. 74.º, (direito-dever de acesso
ao ensino básico) e do n.º 1 do 276.º (direito-dever de defesa da Pátria) da
CRP962.
Estamos aqui perante deveres fundamentais conexos com determinados
direitos cuja consagração se traduz no reconhecimento expresso de um valor
962
Ver JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 267, também nota 10
e 286; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, cit., p. 313. Sobre a irrenunciabilidade de normas que consagram direitosdeveres, ver também KLAUS RÜDIGER WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche
Rechte, cit., pp. 120 e 121; GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz,’
volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., p. 928. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO –
VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 319 e 320,
consideram ainda consagradoras de “deveres conexos com direitos fundamentais” as normas
do n.º 2 do art. 49.º (dever cívico de voto, conjugado com o direito de voto); do n.º 3 do art. 57.º
(dever de prestação de serviços durante a greve); do n.º 1 do art. 64.º (o dever de defesa e
promoção da saúde, “conjugado com o direito à saúde”); do n.º 1 do art. 66.º (dever de defesa
do ambiente, “conotado com o respectivo direito”); do n.º 2 do art. 71.º (deveres de pais e
tutores para com pessoas com deficiência); e do n.º 1 do art. 78.º (dever de defesa do
património, “ligado ao direito com igual objecto”). JOSÉ CASALTA NABAIS, “Dos deveres
fundamentais”, cit., p. 320, considera que pertencem a uma “categoria própria”, designada
como “direitos de solidariedade”, “os direitos ao ambiente, à fruição do património cultural e o
direito à saúde, no segmento em que tem por objecto a saúde pública”. Também JOSÉ CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p.
158, se refere a esta categoria autónoma de “direitos de solidariedade”. Parece-nos, no
entanto, que no que se refere ao problema que estamos a tratar a autonomização desta
categoria não é relevante. Deve, para além disso, fazer-se uma precisão no que diz respeito ao
dever de defesa e promoção da saúde. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Dos deveres fundamentais”,
cit., pp. 320 e 321, nota 295, considera que este tem “quatro dimensões: “um direito-liberdade”,
“um direito-dever de solidariedade, virado para a defesa e promoção da saúde própria
enquanto condição da defesa e promoção da saúde pública”; “um direito social às prestações
estaduais necessárias à saúde de cada um” e “um dever (…) objectivo, que visa a defesa e a
promoção da saúde pública”. Ora só deverá haver um dever de promover a saúde pública e
não um dever de promover a própria saúde. Também CARLA AMADO GOMES, Defesa da Saúde
Pública vs. Liberdade Individual, Associação Académica da Faculdade de Direito, Lisboa, 1999,
pp. 22 e 23, sustenta que “este dever tem como objecto a saúde pública e não a saúde
privada”. Apenas “na medida em que o mau estado de saúde de alguém possa reflectir-se no
estado sanitário comunitário é que o Estado pode intervir”. Nesse sentido, ver ainda SÓNIA
FIDALGO, “Internamento compulsivo de doentes com tuberculose”, in Lex Medicinae, n.º 2,
2004, p. 91. JOÃO LOUREIRO, “Direito à (protecção da) saúde”, in Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. I, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Lisboa, 2006, p. 664, coloca a questão de saber se o art. 64.º da CRP estabelece um dever
fundamental de proteger a própria saúde, “independentemente dos seus reflexos para terceiros
(embora na maioria dos casos, em sistemas em que não é o utilizador final a pagar haja, em
regra, reflexos para todos, pelo que se discutem também aqui problemas de justiça
distributiva)”.
253
ou interesse comunitário963, o que justifica a sua irrenunciabilidade. O exercício
fáctico dos direitos-deveres fundamentais resulta vinculado, desaparecendo a
livre disposição individual. É, no entanto, importante realçar que estes são a
excepção e não a regra964.
Já quando a Constituição institui a vontade ou consentimento do titular
como elemento positivo da previsão normativa de uma garantia de direito
fundamental trata-se, em princípio, de situações de mero exercício de direitos e
não de verdadeira renúncia965. Nestas situações estamos, como já referimos,
perante
uma
disposição
de
direitos
cujo
bem
jurídico
protegido
é
primacialmente a autonomia individual.
Vimos, no entanto, que a distinção entre mero exercício e renúncia não
é uma distinção categórica, que implique uma diferenciação cortante, devendo
entender-se que há um “princípio de disponibilidade” dos direitos nas situações
que, à partida, reconduzimos ao mero exercício966. Esta distinção é útil porque
pode ser decisiva para o estabelecimento de uma prevalência a favor da
disponibilidade do bem num mundo de ponderação, mas não exclui que as
situações de mero exercício estejam sujeitas a essa mesma ponderação.
Assim sendo, mesmo nos casos de mero exercício, nos quais consideramos
que há um “princípio de disponibilidade” dos direitos, não é possível concluir,
em termos abstractos, pela disponibilidade ou indisponibilidade dos bens
protegidos por normas de direitos fundamentais.
963
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 158 e 159. Considerando que estes deveres não são outra coisa do que “a
responsabilidade comunitária que os indivíduos assumem ao integrar uma comunidade
organizada”, ver JOSÉ CASALTA NABAIS, “A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e
os custos dos direitos”, in Por Uma Liberdade com Responsabilidade, Coimbra Editora,
Coimbra, 2007, p. 193. Sobre os deveres fundamentais em geral, ver ainda JOSÉ CASALTA
NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, Coimbra, 1998; JORGE MIRANDA,
Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 189 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 531 ss.
964
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 287.
965
Como já tivemos oportunidade de referir, não é, no entanto, apenas “o facto de a lei fazer ou
não referência expressa à vontade ou ao consentimento” que determina que estamos perante
uma situação de mero exercício, pelo que “serão mais esclarecedoras e consistentes as
conclusões a retirar de uma leitura teleológica, orientada por e para o bem jurídico. Só
identificando o bem jurídico protegido e a respectiva área de tutela se poderá (…) definir (…) o
papel reservado à vontade do portador concreto”. Nesse sentido, MANUEL DA COSTA
ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, cit., pp. 365 e 366.
966
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., pp. 313 e 314.
254
Quanto aos restantes direitos, a “praxis dos direitos fundamentais”
desenvolveu uma “imagem de Homem” que deve ser tida em conta na sua
interpretação967. Como tivemos oportunidade de analisar com mais cuidado, no
nosso ordenamento jurídico o princípio da dignidade e o livre desenvolvimento
da personalidade do indivíduo assumem um papel fundamental968. No entanto,
“a
Constituição
não
coloca
apenas
a
dignidade
da
pessoa
e
a
autodeterminação no centro da ordem constitucional, tendo também em conta
a ligação comunitária do indivíduo”969. A pessoa não pode conduzir a sua vida
como se vivesse isoladamente, uma vez que as acções que leva a cabo e que
traduzem o exercício do desenvolvimento da sua personalidade podem
repercutir-se, mais ou menos intensamente, na vida da comunidade970.
Assim, “a liberdade, enquanto liberdade jurídica, não pode ser ilimitada
ou absoluta”971. Ainda que exista “uma presunção de partida a favor da
autonomia pessoal”, o Homem vive em comunidade e deve nela integrar-se,
sendo inevitável conciliar “os bens e interesses da comunidade e os bens e
interesses da liberdade individual”972. Em conformidade com isso, não
podemos deixar de ter em conta que a pessoa titular de direitos fundamentais é
a pessoa socialmente “situada” e “inserida”973. A ligação comunitária do
967
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 109 e 110.
968
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 323.
969
Nesse sentido, referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 112. No caso Investitionshilfe, BVerfGE 4, pp. 7
ss, o BVerfG considera que “a imagem de Homem da Constituição não é a do indivíduo
soberano isolado”. Para o Tribunal, “a Constituição decidiu a tensão indivíduo/sociedade
sobretudo através da pertença e da ligação à comunidade, sem, no entanto, lesar o valor
intrínseco do indivíduo”. Tal significa “que este deve tolerar as restrições à sua liberdade de
actuação que o legislador estabelece para a tutela e promoção da vida social, tendo como
limite a garantia da autonomia da pessoa”. Nesse sentido, ULRICH R. HALTERN,
“Kommunitarismus und Grundgesetz – Überlegungen zu neueren Entwicklungen in der
deutschen Verfassungstheorie”, cit., p. 162. ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la
personalidad”, cit., p. 119, diz-nos que “esta declaração do BVerfG tem consequências
consideráveis”, pois assim “não apenas se afastam as concepções individualistas do
liberalismo clássico, como também as tentações colectivistas; renunciando a soluções
extremas, procura-se uma linha intermédia”.
970
CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 63.
971
HERBERT BETHGE, “Gewissensfreiheit”, cit., p. 446.
972
JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema dos Direitos, Liberdades e
Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 314.
973
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 60.
255
indivíduo não deve, no entanto, justificar uma “reserva imanente de
comunidade”, no sentido de, em caso de conflito, deverem prevalecer sempre
os bens jurídicos comunitários974.
Há, então, “factores objectivos que condicionam (…) o poder de
disposição individual sobre posições de direitos fundamentais”. De facto, esse
poder será maior se o bem jurídico protegido pelo direito fundamental tiver uma
natureza eminentemente pessoal, ou seja, se a protecção se dirigir sobretudo
aos próprios interesses do indivíduo; será menor se o direito fundamental em
jogo tiver em vista também ou sobretudo bens jurídicos relevantes para a
comunidade, ou seja, quando se trate de direitos que prosseguem também
interesses públicos, como é, por exemplo, o caso dos direitos de participação
política975. Existem, efectivamente, “direitos fundamentais que são atribuídos
aos indivíduos, mas cujo exercício desempenha objectivamente uma (…)
função
social,
institucional
ou
democrática”,
que
pode
resultar
“indiscutivelmente afectada com a renúncia”976.
Em virtude disso, o problema da renúncia coloca-se com mais
frequência em relação aos direitos fundamentais que protegem bens jurídicos
pessoais, pois a disposição individual destes direitos confronta-se com menos
obstáculos do que a disposição de direitos que protegem bens jurídicos que se
refiram de uma forma decisiva à comunidade977.
Não basta, contudo, determinar o “carácter pessoal ou social dos bens
protegidos de direitos fundamentais” para decidir se a renúncia deve ou não ser
974
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 113. Este
parece ser também o entendimento do Tribunal Constitucional alemão, no caso Apotheken,
BVerfGE 7, pp. 377 ss, ao contrariar a decisão do Tribunal Administrativo que considerava “que
os direitos fundamentais não deviam prevalecer quando se fizesse perigar bens fundamentais
da colectividade”. O BVerfG entendeu, para além disso, que “só deverão limitar a liberdade de
disposição individual os interesses públicos que são eles mesmos elementos de protecção do
direito fundamental ou então se encontrem ancorados no Direito Constitucional”. Nesse
sentido, GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’
im Verfassungsrecht.”, cit., p. 930.
975
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 323. Também JASON
MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., pp. 864 e 865, refere que um dos elementos a ter em
conta na aferição da validade de uma dada renúncia diz respeito à questão de saber se o
direito em causa visa proteger essencialmente um bem público ou se protege sobretudo
interesses individuais.
976
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 293 e 294.
977
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Vol.
III/2, cit., p. 911.
256
admissível, uma vez que “não é a natureza abstracta da posição de direito
fundamental que determina decisivamente a sua disponibilidade, mas antes o
balanceamento dos interesses e razões contrárias que, a propósito da
disponibilidade, se projectam e confrontam na situação concreta de renúncia”,
ainda que nesse balanceamento se deva ter em conta se são afectados
interesses públicos ou apenas interesses do próprio sujeito que renuncia978. Os
direitos pessoais, por exemplo, “reforçam o direito de autodeterminação
subjacente à renúncia a direitos fundamentais”, o que não significa, no entanto,
que a renúncia no caso concreto tenha de ser sempre admissível979.
Até porque esta é muitas vezes uma fronteira difícil de traçar, já que
alguns dos bens jurídicos pessoais protegidos por normas de direitos
fundamentais, pela importância que assumem, “constituem simultaneamente
(…) valores comunitários”, o que origina, frequentemente, posições distintas
quanto a esta questão980. Em última análise, poderá defender-se a
“indisponibilidade
de
um
bem
pessoal”,
fundamentando-se
essa
indisponibilidade numa ideia de protecção do próprio indivíduo que renuncia981,
mas apenas nas situações extremas em que admitimos que pode ter lugar uma
defesa de uma pessoa capaz contra si própria, ou seja, quando estejam em
causa as possibilidades da sua “autodeterminação futura”.
O facto de preponderar em alguns direitos fundamentais, à partida, um
dos lados, não significa que não intervenham outros aspectos que podem
novamente relativizar o carácter inicial do direito. A divisão entre estes tipos de
direitos tem a virtualidade de realçar um aspecto a atender na ponderação a
efectuar, mas em caso algum pode ver-se aqui a solução para o problema da
978
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 323 e 324. Este Autor
considera que é possível, “em nome da relevância extrema que (…) [certos direitos
fundamentais pessoais] apresentam e da sua ligação íntima à dignidade da pessoa defender a
sua indisponibilidade (veja-se a discussão sobre a eutanásia)”. Não nos parece, contudo, que
possa haver direitos pessoais que sejam considerados à partida como indisponíveis.
979
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 184.
980
Considerando que são “direitos relativos a bens que, sendo pessoais, constituem
simultaneamente (…) valores comunitários”, por exemplo: a “vida”, a “integridade física”, a
“identidade pessoal”, a “cidadania”, a “informação jornalística” e o “segredo de voto”, ver JOSÉ
CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,
cit., p. 312.
981
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 323 e 324.
257
renúncia982, uma vez que a questão da maior ou menor disponibilidade dos
direitos, liberdades e garantias não se soluciona em abstracto983.
Também o facto de os direitos fundamentais gozarem de uma dupla
dimensão tem significado para o problema da sua disponibilidade. Se, no caso
concreto, há uma consequência que coloca em perigo a dimensão objectiva do
direito, tal deve ser devidamente pesado na ponderação984. É, por isso,
essencial aferir se na renúncia em causa se atenta realmente contra a
dimensão objectiva do direito985. Vimos já que, dependendo das circunstâncias
do caso, a renúncia não tem necessariamente de implicar que se atinja o direito
na sua dimensão objectiva986, pelo que nem todas as renúncias a direitos
fundamentais causam um dano na ordem objectiva geral estabelecida através
dos direitos fundamentais987.
Finalmente, não consideramos relevante, nesta sede, o recurso às
982
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 188 e 191. Este Autor considera que
há, para além disso, alguns direitos fundamentais em relação aos quais “não é possível uma
clara ordenação como direitos primacialmente individuais ou da colectividade”. Será o caso dos
“direitos de comunicação (opinião, informação, expressão artística e ciência), mas também das
garantias institucionais que se baseiam nos direitos fundamentais”.
983
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 313.
984
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 214.
985
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 323.
986
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 297 e 323. Exemplificando
esta distinção, o Autor entende que dependendo das circunstâncias concretas do caso poderá
haver situações em que, apesar da função democrática da liberdade de opinião e de imprensa,
se considera admissível a renúncia a estes direitos. Ainda que se trate do mesmo direito
fundamental, terá consequências diferentes na sua dimensão objectiva “a renúncia de alguém
que exerce funções de porta voz do Governo, a publicitar, na imprensa, posições próprias
divergentes das orientações governamentais”, da renúncia “de um director de informação à
garantia do pluralismo informativo”
987
REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das
Privatrecht”, cit., pp. 180 e 181. Para o Autor, este raciocínio é, por exemplo, aplicável aos
direitos de participação política. No que diz respeito ao direito ao segredo de voto, JORGE REIS
NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 322 e 323, defende que sendo este “um
direito em princípio indisponível, uma vez que é concedido” tendo também em conta a
“salvaguarda dos mecanismos da vida política democrática, pode vir a ser (…) deixado à
disponibilidade do titular, quando este, por razões objectivamente comprováveis, não esteja,
por exemplo, em condições físicas que lhe permitam o exercício autónomo do direito”. Parecenos ser precisamente essa a posição seguida pela jurisprudência alemã: quanto à renúncia ao
segredo de voto, esta foi unanimemente considerada inadmissível, ainda que voluntária. Em
virtude “do significado do segredo de voto para o processo democrático, entendeu-se que
nesses casos deve prevalecer o interesse público sobre o interesse particular numa renúncia”.
Ver, por exemplo, OVGE 14, pp. 257 ss. GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 72.
No entanto, o BVerfG considerou admissível a renúncia ao segredo de voto nos casos em que
a pessoa não seja capaz de preencher o boletim de voto sozinha. Ver BVerfGE 21, pp. 200 ss.
258
teorias tradicionais de direitos fundamentais na determinação da maior ou
menor disponibilidade dos direitos, já que, como tivemos oportunidade de ver,
num ordenamento jurídico pluralista se tem de atribuir aos direitos
fundamentais “uma multifuncionalidade, para acentuar todas e cada uma das
funções que as teorias de direitos fundamentais captavam unilateralmente”988.
O problema da maior ou menor disponibilidade das posições subjectivas
de direitos fundamentais não merece um tratamento distinto na renúncia entre
particulares e na renúncia perante o Estado. Também na renúncia entre
privados é relevante, para a ponderação a realizar, perceber se estamos
perante direitos que protegem predominantemente interesses pessoais ou que
prosseguem também ou predominantemente interesses públicos. Ainda assim,
só é possível chegar a uma solução atendendo às particularidades dos casos
concretos.
Não basta, portanto, aferir o significado dos direitos no sistema geral de
direitos fundamentais e da Constituição, optar por uma das diferentes teorias
de direitos fundamentais ou ainda apelar à dimensão objectiva dos direitos para
resolver a questão989. Uma vez que este problema só é passível de ser
resolvido perante as circunstâncias concretas do caso990, é indispensável
recorrer aos restantes tópicos de argumentação. Sendo que não existem, na
maioria das situações, “orientações gerais” quanto à questão de saber em que
medida o titular do direito pode dele dispor, o que é decisivo aqui é, em última
análise,
“uma
ponderação
ampla
de
todas
as
circunstâncias”991.
Consequentemente, julgamos que não há, à partida, direitos indisponíveis992.
988
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
1402.
989
Considerando que “tem sido difícil, (…) na doutrina portuguesa, uma real aceitação da
renúncia em termos generalizados, em razão de uma consideração (…) exacerbada (…) da
dimensão objectiva dos direitos fundamentais, ver LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à
Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., p. 376.
990
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, cit., p. 313.
991
PHILIPP S. FISCHINGER, “Der Grundrechtsverzicht”, cit., p. 810.
992
Excluímos aqui, obviamente, os direitos-deveres. TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal,
cit., pp. 268 e 269, entende que mesmo no direito à vida, que grande parte da doutrina
considera um direito indisponível, esta indisponibilidade não é total, pois por um lado, “o
suicídio não é punido” (só faria sentido, claro, punir o suicídio tentado ou falhado)”; “por outro
lado, embora o auxílio ao suicídio seja punido, ele não é punido como homicídio”. De certo
modo, o consentimento do suicida “atenua a pena” porque a pessoa que auxilia é punida com
259
2.6. A exigência de acto legislativo prévio
O último tópico que vamos tratar refere-se à exigência de acto legislativo
prévio para que se possa verificar uma disposição sobre posições subjectivas
de direitos fundamentais. Uma vez que “em Estado de Direito toda a actuação
da Administração no domínio dos direitos fundamentais carece de previsão e
fundamento legislativos, ou, pelo menos, de uma habilitação por norma
jurídica”993, o problema que se coloca nesta sede é o de determinar a
relevância desta exigência na renúncia a direitos fundamentais.
Nas situações de renúncia perante o Estado tem-se admitido que faz
sentido invocar a reserva de lei na problemática da renúncia quer através do
recurso ao princípio da legalidade994 quer por se aplicar neste âmbito a
sistemática tradicional das restrições a direitos fundamentais995.
uma pena mais leve do que a pena de homicídio. Para a Autora, olhando para estes exemplos
constatamos “que a indisponibilidade não é tão absoluta como isso”. Considerando, pelo
contrário, que o direito à vida é indisponível, ver JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal.
Parte Geral, cit., p. 479; GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português. Parte Geral,
cit., p. 142; AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 282; ANTÓNIO
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, cit., p.
124. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais. Introdução Geral, cit., p. 140,
também nota 431, considera que na renúncia deve existir, numa determinada situação
concreta, o “poder jurídico de dispor, no sentido da sua redução, numa certa parcela dos
efeitos jurídicos de protecção de um direito fundamental”. O Autor considera que não existe
essa margem de decisão “na generalidade dos direitos, liberdades e garantias consagrados em
regras, nos direitos, liberdades e garantias de participação política, nos direitos processuais e
porventura até na generalidade dos direitos sociais”. Assim, entende que não são renunciáveis
as normas de garantia enunciadas no art. 20.º, no art. 22.º, no art. 23.º, no n.º 2 do art. 24.º, no
n.º 2 do art. 25.º, nos arts. 28.º a 33.º, no n.º 2 do art. 37.º, no n.º 4 do art. 41.º e nos arts. 48.º
a 52.º da CRP. Também o TEDH, no caso Albert e Le Compte v. Bélgica, http://cmiskp.echr.
coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Albert%20%7C%20et%2
0%7C%20Le%20%7C%20Compte&sessionid=51617205&skin=hudoc-en, considerou que “a
natureza de alguns dos direitos salvaguardados na Convenção” exclui a possibilidade de
renunciar ao seu exercício, o que não se poderá, no entanto, dizer em relação a outros direitos.
Também no caso De Wilde, Ooms e Versyp v. Bélgica, http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.
asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=de%20%7C%20wilde&sessionid=51618620&
skin=hudoc-en, relativo a dois indivíduos que anuíram voluntariamente numa privação da sua
liberdade, o TEDH entende que “o direito à liberdade é demasiado importante numa sociedade
democrática, no sentido atribuído pela Convenção, para que a pessoa possa perder o benefício
da protecção da Convenção pela simples razão de se entregar para se ser detido”. Ver também
VERA LÚCIA RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, in
Jurisprudência Constitucional, n.º 14, 2007, p. 87.
993
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 310.
994
Criticando estas posições, ver GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 133 e
134.
995
Considerando que “mesmo a aceitar-se uma dimensão voluntária da restrição de direitos a
260
Uma vez que fazemos referência à doutrina alemã, convém distinguir
aqui entre reserva de lei entendida “no sentido comum de reserva de lei
enquanto domínio material ou funcional reservado à lei ou ao legislador”, só
podendo a administração agir desde que legalmente autorizada a fazê-lo, e
ainda reserva de lei no “sentido de que há direitos fundamentais
constitucionalmente garantidos com uma validade condicionada ou, pelo
menos,
com
uma
abertura
à
intervenção
dos
poderes
constituídos
expressamente prevista”996. Assim, há Autores que defendem que também as
especiais reservas de lei, enquanto manifestações da reserva geral de lei, são
significativas para a problemática da renúncia a posições de direitos
fundamentais997.
Entre nós o conceito de reserva de lei é utilizado no primeiro sentido998.
Através deste conceito “pretende-se delimitar um conjunto de matérias” que
apenas podem ser objecto de regulação por acto legislativo. Quando se exige,
para além disso, que o acto legislativo em causa seja proveniente do
Parlamento”, estamos a falar de uma reserva de Parlamento999.
vontade pura do particular não pode conduzir a uma relativização completa do princípio da
reserva de lei”, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, cit., p. 463.
996
Sobre esta distinção, ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais
não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit., pp. 17 e 19 nota 14. Também ALBERT
BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 61, distingue entre reserva de lei em
sentido restrito, enquanto domínio material ou funcional reservado à lei ou ao legislador e em
sentido amplo, significando que os direitos fundamentais “só podem ser restringidos na medida
em que a Constituição lhes estabeleça limites expressos ou implícitos”.
997
É o caso de WALTER LEISNER, Grundrechte und Privatrecht, Verlag C. H. Beck, München,
1960, pp. 384 ss. Ver ainda sobre esta questão GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht.
Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht.”, cit., pp. 928 e 929.
998
Sobre o princípio da reserva de lei, ver na doutrina portuguesa JORGE MIRANDA, Funções,
Órgãos e Actos do Estado, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990, pp.
270 ss; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
cit., pp. 703 ss; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de Lei, A Causa da Lei na Constituição
Portuguesa de 1976, cit.; MANUEL AFONSO VAZ, “A reserva de Lei na Constituição Portuguesa
de 1976”, in Anuário Português de Direito Constitucional, Vol. V, 2006, pp. 143 ss; MARIA LÚCIA
AMARAL, “Reserva de Lei”, in Pólis – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. 5,
Editorial Verbo, Lisboa, 1987, pp. 428 ss; ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, “Princípio da
legalidade e administração constitutiva”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LVII, 1981, pp.
169 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Autonomia regulamentar e reserva de lei”, in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Vol. I, Coimbra, 1984, pp.
1 ss; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos,
Almedina, Coimbra, 1987.
999
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp.
724 – 726; também MANUEL AFONSO VAZ, “A reserva de Lei na Constituição Portuguesa de
261
Convém, no entanto, ter em consideração as reflexões tecidas pela
doutrina alemã acerca das especiais reservas de lei para ver se estas são
transponíveis para a nossa ordem jurídica, já que, no que se refere às
restrições a direitos fundamentais, também a nossa Constituição consagra
expressamente quais os direitos fundamentais passíveis de restrição. Na
Alemanha discute-se se as reservas especiais de lei devem “estabelecer o
quadro dentro do qual a renúncia a direitos fundamentais é admissível”, ou
seja, se os direitos fundamentais são apenas renunciáveis quando a
Constituição permite a sua restrição por lei. Tem-se reconhecido, no entanto,
que tal posição deve ser de afastar, pois consubstanciando-se a renúncia a
direitos fundamentais num acto de exercício de liberdade, não faz sentido a sua
equiparação a uma ingerência estatal1000. Esta concepção “transfere os limites
de intervenção direccionados para as entidades públicas de uma forma
indiferenciada para os titulares de direitos fundamentais”1001.
Assim, as reservas especiais de lei da Constituição devem apenas
relevar quando tenham lugar intervenções restritivas1002. Até porque mesmo
em direitos fundamentais onde não se consagra expressamente a possiblidade
de restrição, poderá ser necessário o legislador intervir para resolver eventuais
conflitos1003, não se compreendendo porque é que o próprio titular dos direitos
1976”, cit., p. 148. Os direitos, liberdades e garantias fazem, em geral, parte da reserva relativa
da Assembleia da República, o que está previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 165.º da
Constituição. Há, no entanto, determinadas matérias relativas a direitos, liberdades e garantias
que estão abrangidas pela reserva absoluta da Assembleia da República (AR). É o caso das
alíneas a), b), c), e), h), i), j), l), m) e o) do art. 164º. Aqui a Constituição confere exclusiva e
irrenunciavelmente à AR a competência política para disciplinar estas matérias.
1000
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., pp. 134 e 135.
1001
GERHARD ROBBERS, “Der Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im
Verfassungsrecht.”, cit., pp. 928 e 929; também MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 177.
1002
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., pp. 61 e 62; também KNUT
AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., p. 24.
1003
Sobre a problemática das restrições aos direitos fundamentais não expressamente
autorizadas pela Constituição, ver, entre nós, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos
Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, cit.; JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 1276 e 1277; JOSÉ
JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos
Fundamentais”, cit., p. 294; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA, Constituição
da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 388 ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 265 ss; JORGE MIRANDA,
Manual de Direito Constitucional, cit., pp. 370 ss; JORGE MIRANDA, “Artigo 18.º”, in JORGE
MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., pp. 160 ss; JORGE BACELAR
262
não haveria de poder a eles renunciar1004. Tal argumentação é também de
afastar na renúncia entre particulares, onde não existe sequer uma restrição de
direitos em sentido próprio.
Uma vez que a sistemática das reservas especiais de lei não traz
qualquer resposta para o problema da renúncia, vamos agora ver em que
termos é que, na renúncia perante o Estado, a reserva de lei no seu sentido
restrito, de acto legislativo, tem sido considerada relevante enquanto limite
dessa mesma renúncia. É que se se entender que toda a renúncia exige uma
“prévia e expressa autorização legal o alcance do instituto resulta seriamente
diminuído, pois o poder de disposição de um particular sobre os seus direitos
fundamentais seria um poder à mercê do legislador, dependendo da
autorização deste”1005.
Neste sentido, reserva de lei significa, como vimos, “espaço reservado
ao legislador ou ao Parlamento, no sentido de excluir os restantes poderes de
quaisquer
intervenções
não
previamente
reguladas,
determinadas
ou
autorizadas pela lei respectiva”1006. O princípio da reserva de lei significa,
portanto, que a prática de um acto da Administração tem de estar prevista na
lei1007. Este princípio “produz efeitos nos dois sentidos da relação entre a Lei e
a Administração: por um lado, proíbe a Administração de invadir o
correspondente domínio da realidade sem autorização expressa da lei, quer no
âmbito da sua actividade concreta (…) quer no uso de poderes normativos; por
outro lado, proíbe o legislador de delegar a sua competência (…) na
Administração (…), obrigando-o (…) a disciplinar as matérias em causa com
um determinado grau de intensidade”1008.
GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, cit., pp. 1110 – 1111; JORGE BACELAR
GOUVEIA, “Regulação e Limites dos Direitos Fundamentais”, cit., pp. 455 ss; CRISTINA
QUEIROZ, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), cit., pp. 199 ss; JOSÉ MANUEL CARDOSO DA
COSTA, “A hierarquia das normas constitucionais e a sua função na protecção dos direitos
fundamentais”, in BMJ, n.º 396, 1990, pp. 16 - 18.
1004
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 177 e 178.
1005
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 310.
1006
Ver JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 17, nota 14.
1007
SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit.,
p. 18.
1008
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Autonomia regulamentar e reserva de lei”, cit., pp. 7 e
263
Na renúncia perante o Estado tem-se defendido que, pelo menos em
certa medida, é necessário respeitar o princípio da reserva de lei para que o
acto de disposição seja admissível. É que, se assim não fosse, as autoridades
públicas poderiam, apenas com base na renúncia do particular, restringir o seu
direito fundamental. Jorge Reis Novais sustenta que “a restrição a direitos
fundamentais operada através da renúncia se manifesta a dois níveis: num
primeiro nível, a restrição ocorre, desde logo, quando o particular se vincula
juridicamente a não exercer o direito fundamental; (…) num segundo nível (…),
quando, por força da renúncia, a entidade pública, porque foi habilitada a isso
pelo particular, intervém (…) numa área protegida de direito fundamental1009.
O Autor entende que no primeiro nível, isto é, quando o particular emite
a sua declaração de vontade, a restrição que daí decorre não tem de obedecer
ao princípio da reserva de lei, porque “essa restrição está tão intimamente
associada à dimensão da renúncia como exercício de direitos fundamentais
que a distinção entre as duas dimensões só tem valor heurístico”. No segundo
nível, apenas será de aplicar o princípio da reserva de lei quando a renúncia
envolva uma actuação administrativa que restrinja um direito fundamental.
Quando a Administração se limita à “pura e simples recepção da declaração de
renúncia”, também não será de exigir um fundamento legislativo, “por falta de
objecto”. Para além disso, mesmo quando se verifica uma actuação restritiva
da Administração, deve ainda atender-se à circunstância de ter havido a
anuência do particular que renunciou ao seu direito fundamental, para
determinar se no caso em análise as funções prosseguidas por este princípio
justificam a sua aplicação1010.
Há, em contrapartida, Autores que entendem que a reserva de lei é um
argumento débil para a doutrina da renúncia, alegando que esta visa
essencialmente garantir a autonomia do titular do direito. Sendo a renúncia a
direitos fundamentais livre uma manifestação dessa autonomia, não interfere
com o sentido e finalidade da reserva de lei. Se assim fosse, este princípio
deixaria de existir a favor do indivíduo, convertendo-se numa restrição da
8.
1009
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 315.
1010
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 315 - 317.
264
liberdade1011.
Se se considerar que o que fundamenta a reserva de lei é o facto de as
restrições aos bens jurídicos protegidos dos cidadãos só deverem ter lugar com
o seu consentimento (que se concretiza através do consenso dos seus
representantes) parece que a finalidade protectora do princípio da legalidade
deixa de se justificar a partir do momento em que o próprio autoriza essa
mesma restrição1012. No entanto, é contestável a “redução” do papel da reserva
de lei à garantia da autonomia do titular do direito, bem como a consequente
exclusão da sua relevância para a renúncia a direitos fundamentais1013. Tal
“redução” esquece que numa democracia parlamentar o princípio da reserva de
lei poderá também exercer outras funções1014.
Para Sérvulo Correia o princípio da legalidade administrativa pode
desempenhar três funções distintas: a “garantística”, a de “indirizzo” e a de
“factor de justiça e racionalidade administrativa”1015. Ora ainda que nas
1011
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 180 e 181.
É, por exemplo, o caso de RALPH MALACRIDA, Der Grundrechtsverzicht, cit., p. 142; JOST
PIETZCKER, “Die Rechtsfigur des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 534; REINHARD SINGER, “Die
Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das Privatrecht”, cit., p. 175;
JÜRGEN SCHWABE, Probleme der Grundrechtsdogmatik, cit., p. 99. GERHARD SPIESS, Der
Grundrechtsverzicht, cit., pp. 147 e 148, considera que “a componente democrática da reserva
de lei exerce o importante papel de garantir a influência democrática do Parlamento em relação
à Administração, não devendo, no entanto, ser atendível na renúncia a direitos fundamentais
graças às suas consequências restritivas da liberdade”. Apenas no “caso improvável de a
função do Parlamento, enquanto órgão de legitimação democrática, estar em perigo é que a
renúncia deve ser considerada inadmissível”.
1012
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 181; KNUT
AMELUNG, Die Einwilligung in die Beeinträchtigung eines Grundrechtgutes, cit., pp. 64 e 65.
1013
Embora não se negue “a estreita ligação entre liberdade e lei”, “que remonta ao
constitucionalismo liberal”. Nesse sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional,
cit., p. 365.
1014
MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 182 e 183;
GERHARD SPIESS, Der Grundrechtsverzicht, cit., p.142. Também GERHARD ROBBERS, “Der
Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 929,
sustenta que “hoje a reserva de lei se encontra desligada da sua relação com a fórmula
ultrapassada de intervenções contra a liberdade e a propriedade e passou a ter um novo
fundamento, considerando a sua função em Estado de Direito democrático. Esta “componente
democrática” exige que também na renúncia a posições de direitos fundamentais “a reserva
geral de lei actue como uma garantia do sistema representativo”, servindo para “assegurar o
primado do legislador no seu âmbito de competência”. Assim, para ele, “a renúncia a posições
de direitos fundamentais não produz efeitos onde a tarefa de condução política do Parlamento
subsiste”. JASON MAZZONE, “The waiver paradox”, cit., p. 872, considera que “as renúncias que
se fundam em actos legislativos parecem mais adequadas para a salvaguarda de interesses
públicos, uma vez que a actividade legislativa está sujeita a escrutínio (….) público”.
1015
SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit.,
265
situações de renúncia a função garantística da reserva resulte “fortemente
atenuada ou supérflua” graças ao consentimento do interessado, tudo passará
por saber se, “no caso concreto, têm cabimento as razões de indirizzo político e
de racionalização da actividade administrativa”. Existem, portanto, outras
razões que podem justificar a manutenção da exigência desta reserva1016.
Para além disso, “o princípio fundamental do Estado de direito
democrático não é o de que o que a Constituição não proíbe é permitido (…),
mas sim o de que os órgãos do Estado só têm competência para fazer aquilo
que a Constituição lhes permite”1017. No que se refere à actividade da
Administração “a regra geral (…) não é o princípio da liberdade, é o princípio da
competência”1018.
Desta feita, só não terá de se respeitar a exigência de reserva de lei
quando a renúncia envolva também “uma verdadeira restrição heterónoma”, se
esta não cumprir “a sua vocação originária de protecção individual”, nem
devam as outras funções que justificam este princípio “sobrelevar, no caso
concreto, as razões que decorrem do princípio de que, tanto quanto possível,
deve o Estado deixar ao indivíduo a livre prossecução dos seus interesses”1019.
pp. 188 e 769. Para este Autor, a “função garantística” refere-se “à garantia da verificação de
requisitos mínimos de parametricidade e previsibilidade da actuação da administração que
afectem o ‘status negativus’ dos particulares ou que conformem o seu ‘status positivus’ em
termos que eventualmente possam contender com imperativos do Estado social de Direito”; a
“função democrática ou de indirizzo” diz respeito “à salvaguarda da função de direcção política
dos órgãos a quem a Constituição reserva, em atenção às matérias, a primeira normação
substantiva, ou, ao menos, a habilitação necessária à disciplina das relações através de
normas secundárias”; a “função de racionalidade administrativa” refere-se “à necessidade de
uma disciplina homogénea da actuação administrativa e da sujeição desta à prossecução de
interesses públicos que se imponham como dado externo de legalidade objectiva aos órgãos
autores de actos concretos”.
1016
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 312 e 317.
1017
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.
247. Também SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos
Administrativos, cit., p. 500, considera que, na ordem jurídica portuguesa, se estabelece um
limite de competência no que respeita à autonomia pública. JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a
direitos fundamentais”, cit., p. 311 e nota 81 entende que, embora este último Autor “não trate
especificamente da renúncia a direitos fundamentais”, os argumentos por ele invocados para
defender a tese de que não é possível “o consentimento do interessado fundamentar qualquer
excepção à reserva de lei no domínio dos direitos fundamentais”, são “aplicáveis à renúncia a
direitos fundamentais”.
1018
DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Legalidade (Princípio da)” in Pólis – Enciclopédia Verbo da
Sociedade e do Estado, Vol. 3, Editorial Verbo, Lisboa, 1985, p. 978.
1019
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 318 e 319. Este Autor
entende ainda que, “quando a actuação da Administração se realiza num quadro negocial ou
266
Por outro lado, não basta que se verifique uma renúncia para que a
função garantística do princípio da reserva de lei se torne supérflua, pois há
situações em que se verifica um “desequilíbrio do poder de negociação”,
desequilíbrio esse que pode interferir com a voluntariedade da declaração de
renúncia. Em algumas dessas situações, a reserva de lei cumprirá “uma função
de protecção contra decisões de consentimento do particular que possam
afectar as condições do livre desenvolvimento da sua personalidade e de uma
existência digna”1020. A reserva de lei visa sobretudo proteger os indivíduos que
não estão em posição de se valerem a si mesmos, ou seja, que não
conseguem, por si só, realizar os seus interesses protegidos pelos direitos
fundamentais1021.
Perante isto, a questão que devemos colocar é se se justifica a
aplicação do princípio da reserva de lei na renúncia entre privados, sendo que
“o significado da autonomia privada consiste, precisamente, em deixar nas
mãos dos indivíduos a conformação das suas relações jurídicas”1022.
Antes do mais, não faz sentido na renúncia a direitos fundamentais nas
relações entre particulares a distinção entre “dois níveis” que entendemos ser
pertinente na renúncia perante o Estado. Não há, nestes casos, uma restrição
em sentido próprio nem um acto da Administração que careça de previsão e
fundamento legislativos ou, pelo menos, de uma habilitação por norma jurídica,
mas sim uma actuação de um particular. Ora ao contrário do Estado, que
apenas está jurídico-constitucionalmente autorizado a agir quando tenha uma
competência positiva para tal, o particular pode sempre fazê-lo, desde que a
sua acção não seja proibida.
com o assentimento do particular afectado, as exigências da reserva de lei (…) devem bastarse com um grau de densidade da norma habilitadora muito menor do que aquele que é exigido
para o comum dos actos administrativos ablativos”.
1020
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 318 e 319.
1021
ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, cit., p. 61 e ALBERT
BLECKMANN, Staatsrecht II – Die Grundrechte, cit., pp. 495 e 496. Será o caso, por exemplo,
da legislação laboral ou do regime do arrendamento.
1022
REINHARD SINGER, “Die Lehre vom Grundrechtsverzicht und ihre ‘Ausstrahlung’ auf das
Privatrecht”, cit., p. 175, que responde negativamente a esta questão. Considerando também
que, quando se trate de renúncia a direitos fundamentais no âmbito de relações jurídicas
privadas, esta exigência, em princípio, não faz sentido, uma vez que o princípio da legalidade
vale para a actuação restritiva do Estado, mas não para a actuação de privados, ver KLAUS
RÜDIGER WILDE, Der Verzicht Privater auf subjective öffentliche Rechte, cit., pp. 116 e 117.
267
Tal não quer dizer, contudo, que uma vez que também na renúncia entre
particulares se verifica um enfraquecimento de posições individuais de direitos
fundamentais não possam relevar, nesta sede, as razões que invocamos para
a aplicação da reserva de lei na renúncia perante o Estado. É óbvio que a
questão não se coloca aqui nos mesmos termos porque efectivamente não
estamos perante uma actuação de um ente público, o que significa que não se
trata de saber se é legítimo que o consentimento do particular desvincule a
Administração do respeito pelo princípio da reserva de lei. Mas pensamos que
há situações em que poderá ser relevante que a possibilidade de renúncia
perante outros particulares seja prevista e regulada através de um acto
legislativo prévio, o que se pode justificar quer por “razões garantísticas” quer
por razões de “indirizzo político”.
Vimos que a função garantística do princípio se manifesta igualmente
quando se verifica um “desequilíbrio do poder de negociação”, já que esse
desequilíbrio pode interferir com a voluntariedade da declaração de renúncia.
Ora a função garantística, nesta sua dimensão, tem também aplicação na
renúncia perante outros particulares, maxime em situações em que uma das
partes seja dotada de poderes de facto. Ainda que o destinatário da renúncia
não seja uma entidade pública, quem renuncia encontra-se numa posição de
maior fragilidade, o que poderá legitimar a exigência de um acto legislativo que
venha estabelecer em que termos pode ter lugar o acto de disposição, de modo
a garantir a voluntariedade do consentimento.
Por outro lado, também na renúncia entre particulares poderá fazer
sentido exigir-se um acto legislativo prévio graças à função de “indirizzo”,
função esta que tem como finalidade garantir a competência de “direcção
política”1023. Para Jorge Reis Novais é precisamente essa a razão que justifica
que se entenda que “não seria legítimo que, sem a correspondente previsão
legal, a Administração pudesse acordar com o interessado a substituição de
uma pena ou de uma medida de segurança por uma castração consentida”.
Está aqui em jogo a “compatibilização dos direitos fundamentais com a
definição de políticas criminais”, o que exige uma “prévia decisão e
1023
SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit.,
p. 769; também MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p.
183.
268
regulamentação por parte dos órgãos democraticamente legitimados”1024.
Ora há também situações de renúncia entre particulares que contendem
com este tipo de questões, o que justifica que o Estado, que vai atribuir força
jurídica à renúncia, considere que a importância da matéria em causa exige
uma lei prévia para que esse acto de disposição possa ter lugar1025.
Em conformidade com isso, ainda que não se possa propriamente falar
em aplicação do princípio de reserva de lei na renúncia nas relações entre
particulares, uma vez que esta não envolve qualquer intervenção da
Administração, quando haja razões garantísticas ou relativas à importância das
matérias que o justifiquem, poderá ser de exigir um acto legislativo prévio que
venha regulamentar os termos em que poderá ser exercido o poder de
disposição. A regra, no entanto, é a de que a renúncia não carece de
fundamento legal habilitante1026.
1024
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 317 e 318.
1025
Parece-nos ser esse o caso da Lei n.º 12/93 de 22 de Abril, com as alterações introduzidas
pela Lei n.º 22/07 de 29 de Junho, relativa ao transplante de órgãos e que estabelece regras
quanto à doação, bem como da Lei n.º 46/04 de 19 de Agosto, sobre o regime jurídico aplicável
aos ensaios clínicos com medicamentos de uso humano. Sobre esta última Lei, ver ainda
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “A transposição da Directiva sobre Ensaios Clínicos de
Medicamentos para uso humano no direito português”, in Lex Medicinae, n.º 11, 2009. pp. 5 ss.
1026
A nossa Constituição, em matéria de direitos fundamentais, estabelece não só uma reserva
de lei, mas também uma reserva de Parlamento. Se tal acontece é porque se entende que se
devem “reservar para as formas de criação normativa que no sistema jurídico-constitucional se
presumem portadoras de mais garantias (que podem ser simplesmente técnicas) os ataques
aos valores que mais sensibilizam uma determinada comunidade”. Nesse sentido, ver
ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, “Princípio da legalidade e administração constitutiva”, cit., p.
181. Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, cit., p. 725, entende que “a publicidade que rodeia a sua discussão, o
acompanhamento dos debates pela opinião pública, a sua difusão pelas mass media [e] a
possibilidade de intervenção de todos os partidos representados” justificam que a CRP “reserve
à lei formal da Assembleia a disciplina de certas matérias”. MANUEL AFONSO VAZ, “A reserva
de Lei na Constituição Portuguesa de 1976”, cit., p. 153, estabelece que a CRP, através da
reserva do Parlamento consagrada nos arts. 164.º e 165.º, “textualmente determina aquilo que
a doutrina e jurisprudência alemãs procuram estabelecer através da Wesentlichkeitstheorie”.
Segundo a teoria da essencialidade “uma decisão parlamentar será necessária quando se trate
de uma matéria que justifica a colaboração de várias instâncias, um discurso público e uma
decisão através de um órgão plural”. O critério da essencialidade é útil na medida em que
remete para questões políticas controversas que exigem uma ponderação de interesses
divergentes. Ora essa ponderação deverá ter lugar, preferencialmente, numa instância
pluralista e através de um processo público. Ver MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 190 – 192; GERHARD ROBBERS, “Der
Grundrechtsverzicht. Zum Grundsatz, ‘volenti non fit iniuria’ im Verfassungsrecht”, cit., p. 926;
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 852. Ainda que estas considerações digam respeito à
repartição de competências entre diferentes órgãos de soberania, pensamos que poderão ser,
em alguma medida, transponíveis para a questão que estamos a tratar. Na verdade, há
269
Capítulo IV: Tendências paternalistas na doutrina e na jurisprudência:
análise de alguns casos
Vamos agora analisar alguns casos que entendemos que se
consubstanciam em situações de renúncia a direitos fundamentais nas
relações entre particulares1027, para ver de que modo é que este tipo de
questões tem sido abordado e decidido em diferentes instâncias jurisdicionais.
Vários dos casos em análise foram resolvidos através da invocação do
princípio da dignidade da pessoa humana, o que demonstra que o problema
central da densificação deste conceito “não tem um relevo meramente teórico,
pondo-se em diversas ocasiões nos tribunais em relação a casos de disposição
contratual de atributos da pessoa”1028. Pode efectivamente encontrar-se a
invocação do respeito pela dignidade da pessoa humana, de modo a justificar
limitações
à
liberdade,
em
várias
decisões
de
diferentes
instâncias
jurisdicionais. Vamos, consequentemente, ver algumas dessas decisões, que
consideramos que ilustram bem o problema que estamos a tratar.
Temos, antes do mais, o primeiro caso Peep-Show, do BVerwG1029, que
se refere a espectáculos de strip-tease para um espectador individual que têm
lugar dentro de cabinas fechadas, mediante remuneração. Neste caso o
situações de renúncia entre particulares que se referem a questões políticas controversas e
que exigem uma ponderação de interesses divergentes, pelo que se poderá justificar a criação
de uma lei que vem regular os termos em que essa renúncia pode vir a ter lugar. MATTHIAS
MAYER, Untermass, Übermass und Wesensgehaltgarantie, cit., pp. 104 ss, entende ainda que
esta teoria é relevante para a distribuição de competências entre legislador e juiz
constitucional. Nos Estados Unidos, em termos de repartição de competências entre Tribunais
e Parlamento, é de referir a political question doctrine: esta diz respeito a uma decisão judicial
substantiva na qual se considera que o problema constitucional relativo ao âmbito de uma
determinada disposição, ou alguns aspectos de uma determinada disposição, devem ser
resolvidos não pela Supreme Court, mas antes por outro órgão de soberania. Ver, mais
desenvolvidamente, JESSE H CHOPER, “The political question doctrine: suggested criteria”,
http://ssrn.com/abstract=757964 (última visita a 12.04.2010), pp. 3 e 4; PAUL DALY,
“Justiciability and the ‘Political Question’ Doctrine”, in Public Law, January, 2010, p. 161.
1027
Ou que podem também traduzir-se em situações de renúncia entre entidades privadas. Há,
de facto, situações de renúncia que se podem colocar quer perante o Estado quer perante
privados, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Assim, por exemplo, uma situação
de eutanásia poderá consubstanciar-se numa renúncia perante o Estado se esta tiver lugar
numa instituição pública mas já se traduzirá numa renúncia entre privados se o consentimento
for dado a outro particular.
1028
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a
margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 829.
1029
BVerwGE 64, pp. 274 ss.
270
Tribunal entendeu haver uma renúncia ilegítima à dignidade da pessoa humana
por parte das mulheres que neles participam. Para o Tribunal, as circunstâncias
específicas destes espectáculos distinguem-nos dos tradicionais espectáculos
de strip-tease, já que implicam que as mulheres que neles tomam parte sejam
tratadas como uma “mercadoria”, o que envolve a sua “instrumentalização”,
violadora da dignidade e, por conseguinte, contrária os bons costumes.
Quanto a esta decisão é, antes do mais, interessante constatar que o
Tribunal densifica o conceito de bons costumes recorrendo aos princípios
constitucionais, em particular, ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, reconheceu ainda que a dignidade não é apenas passível de
ser posta em causa pelo Estado, podendo também sê-lo por privados.
Já quanto à violação do princípio da dignidade propriamente dita, a
resposta dada pelo Tribunal quanto ao sentido a atribuir ao conceito de
dignidade é clara: esta consiste “num valor objectivo, enquanto tal subtraído da
disponibilidade da pessoa interessada” cabendo aos órgãos jurisdicionais “a
competência para determinar o seu conteúdo”1030. Esta decisão do BVerwG foi
muito criticada pela doutrina, que denunciou os riscos de um “absolutismo dos
valores (Wertabsolutismus)”1031.
1030
Nesse sentido, GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della
dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 834.
1031
Sobre esta decisão, ver WOLFRAM HÖFLING, “Menschenwürde und Gute Sitten”, in NJW,
n.º 29, 1983, pp. 1582 – 1585; ALFONS GERN, “Menschenwürde und Gute Sitten”, in NJW, n.º
29, 1983, pp. 1585 – 1590; ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, cit., p. 215; CHRISTIAN HILLGRUBER,
Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 170 – 172; HENNING VON OLSHAUSEN,
“Menschenwürde im Grundgesetz: Wertabsolutismus oder Selbstbestimmung?”, in NJW, n.º 40,
1982, pp. 2221 ss; ANDREAS GRONIMUS, “Forum: noch einmal Peep-Show und
Menschenwürde” in JuS, n.º 3, 1985; THOMAS DISCHER, “Die Peep-Show-Urteile des BVerwG”,
in JuS, n.º 8, 1991; BODO PIEROTH, – BERNHARD SCHLINK, Direitos Fundamentais, Direito
Estadual II, cit., p. 105; NADINE KLASS, Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, cit., pp.
148 ss. HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., p. 219, entende que esta decisão
“ilustra o real perigo do recurso a argumentos referentes à dignidade ‘para justificar restrições à
liberdade dos indivíduos‘“. ERNST BERNA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”,
cit., p. 144, defende que esta decisão é errada porque não está em causa a possibilidade de o
indivíduo renunciar à dignidade, mas sim saber se pode “determinar por si mesmo a forma
como se apresenta a terceiros ou no espaço público civil”. Convém, no entanto, referir, que em
decisões posteriores sobre este tipo de espectáculos “o Tribunal não fundamentou a sua
decisão na violação do princípio da dignidade mas antes nas convicções da maioria da
população, segundo as quais estes espectáculos deveriam continuar a ser considerados
indecentes”. Nesse sentido, ROLF SCHMIDT, Grundrechte, cit., p. 120, nota 384. MARTINA
DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., p. 1, considera que a mesma
questão se pode também colocar quanto a eventos que incluem a exibição de relações sexuais
em palco. Sobre esta questão, ver, o Parecer n.º 62/1995, da Procuradoria-Geral da República,
http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/cef5659fd428518b80256617
271
O Tribunal sustenta que se verifica uma renúncia à dignidade por parte
das mulheres que participam neste tipo de espectáculos, o que não é
admissível, já que a dignidade é indisponível. No entanto, como tivemos
oportunidade de ver, na renúncia não se trata tanto de saber se o titular pode
dispor da sua dignidade mas antes de compreender em que medida lhe cabe
determinar por si próprio o sentido que pretende atribuir à sua dignidade. Tratase de avaliar até que ponto pode a definição da dignidade depender do
entendimento que o próprio tenha acerca do que é para si mais ou menos
digno e, por outro lado, que limites pode o Estado impor a esta autodefinição.
Uma vez que seguimos uma concepção de dignidade “como conceito
aberto a um preenchimento onde impera a autonomia do interessado e o seu
poder consequente de conformação da própria vida”1032, pensamos que o
Tribunal decidiu erradamente ao pretender proteger a pessoa de si mesma1033.
Esta decisão foi criticada por implicar uma “’objectivação’ paternalista da
dignidade”1034, pois estamos aqui claramente perante uma medida restritiva
que visa proteger a pessoa de si própria, não se verificando nenhuma das
situações que podem legitimar essa protecção: que a pessoa não esteja em
posição de consentir validamente ou quando a renúncia contenda com as suas
possibilidades de “autodeterminação futura”.
Tal decisão não foi uma pronúncia isolada, antes tendo constituído um
precedente para a resolução de casos análogos. Também se afirmou a
invalidade de contratos atinentes a “chat lines eróticos” recorrendo ao mesmo
00420807OpenDocument&Highlight=0,P000621995, onde se considera que “os espectáculos
de sexo ao vivo não são, enquanto tais, ilegais, desde que essa sua natureza se encontre
claramente anunciada nas respectivas afixações obrigatórias”. Mais recentemente, em 2002, o
BVerwG foi chamado a pronunciar-se sobre uma autorização para um clube de swing (troca de
casais), e nessa decisão considerou que não há qualquer lesão da dignidade na pertença a um
clube deste tipo, uma vez que entende que a qualidade de sujeito dos participantes não é posta
em causa. Um resumo desta decisão encontra-se disponível in http://www.juralotse.de/newsletter/nl69-005.shtml (última visita a 12.04.2010).
1032
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
61.
1033
INGO VON MÜNCH, “Die Würde des Menschen im Deutschen Verfassungsrecht”, cit., p. 38.
Ver também ANSGAR OHLY, “Volenti non fit iniuria” – die Einwilligung im Privatrecht, Mohr
Siebeck, Tübingen 2002, pp. 81 ss.
1034
TATJANA GEDDERT – STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, cit., pp. 89 e
90.
272
tipo de argumentação1035.
Outro caso relevante também do BVerwG1036 é o chamado caso
Laserdrome, que é um jogo de entretenimento entre equipas e no qual se
simulam homicídios através de raios lazer. Ainda que dele não resultem
quaisquer consequências para a integridade física dos participantes, o Tribunal
entendeu que a exploração comercial de um jogo que simula homicídios e
implica uma “trivialização da violência” é contrária à dignidade da pessoa
humana1037.
Esta decisão causa alguma perplexidade porque se justifica a proibição
de um mero jogo de entretenimento, que não envolve qualquer lesão na
integridade física de quem nele participa voluntariamente, através de uma
interpretação do princípio da dignidade como algo que pode ser imposto contra
o próprio titular. Subjaz igualmente a este caso uma concepção de dignidade
enquanto princípio que “se exprime pelo reconhecimento da liberdade
individual mas que transcende esta última e que, por conseguinte, pode
justificar restrições ao exercício das liberdades individuais”1038. Vimos já que
uma tal concepção deve ser de afastar.
1035
De facto, outro caso também relacionado com este é o caso Telefonsex, disponível na
NJW, n.º 51, 1995, pp. 3398 ss. Neste caso o Tribunal considerou que um contrato sobre
ligações telefónicas com conteúdo sexual remuneradas é atentatório da dignidade da pessoa
humana. Ver GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità
(Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 835.
1036
BVerwGE 115, pp. 189 ss.
1037
Sobre esta decisão, assumindo uma postura crítica, ver STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ,
“When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’ Infatuation
with the Human Dignity Principle“, cit., pp. 9 e 10; também DIRK HECKMANN, “Der praktische
Fall – Öffentliches Recht: Laserdrom und öffentliche Ordnung”, in JuS, n.º 10, 1999, pp. 991 ss;
TOBIAS AUBEL, “Das menschenunwürdige Laserdrome”, in JURA, n.º 4, 2004, pp. 255 ss;
MICHAEL KÖHNE, “Abstrakte Menschenwürde”, cit., pp. 285 ss; ALFRED SCHEIDLER,
“Verstoßen Tötungsspiele gegen die Menschenwürde?”, in JURA, n.º 8, 2009, pp. 575 ss. O
Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) considerou, por sua vez, que estava
dentro da margem de apreciação do Estado considerar que esta proibição se justificava por
razões de ordem pública. A questão chegou ao TJCE na medida em que a empresa em causa
invocou que a liberdade de prestação de serviços foi ilegitimamente violada pela decisão alemã
que proibiu este jogo. Sobre esta decisão, ver PEDRO CABRAL, “Protecção da dignidade
humana e livre prestação de serviços na ordem jurídica comunitária”, in ROA, Ano 66, Vol. III,
2006, pp. 1533 ss; M. K. BULTERMAN – H. R. KRANENBORG, “What if rules on free movement
and human rights collide? About laser games and human dignity: the Omega case”, in
European LR, Vol. 31, 2006, pp. 93 ss; THOMAS ACKERMANN, “Case Law: Case C-36/02”, in
Common Market LR, n.º 42, 2005, pp. 1107 ss.
1038
JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu
et la personne humaine”, cit., pp. 88 e 89.
273
Parece-nos, por outro lado, que para além de este tipo de decisões
poder conduzir a uma “banalização” do recurso a este princípio, se abre aqui
um precedente perigoso: se se considera este jogo atentatório da dignidade, o
que dizer, por exemplo, de desportos violentos que implicam efectivas lesões
na integridade física, como é o caso do boxe? E segundo esta ordem de ideias
não deveriam também ser proibidos jogos de vídeo onde se simulam
homicídios? Há um sem número de outras actividades que podem ser proibidas
se seguirmos este tipo de argumentação e é essencial não esquecer que nem
tudo o que pode ser considerado “uma forma duvidosa de passar o tempo ou
falta de gosto se traduz em lesão da dignidade”1039.
Outra situação onde também se colocou o problema da determinação
pela própria pessoa do sentido e conteúdo da sua dignidade foi o caso francês
sobre a proibição de competições de lançamento de anões. Trata-se de um
passatempo que consiste em lançar anões o mais longe possível (estando o
anão vestido com equipamento protector e sendo o lançamento feito para um
colchão) e que tem lugar geralmente em bares e discotecas.
Na sua decisão, o Conselho de Estado afirmou que a dignidade humana
é um princípio que não tolera limitações nem sequer da parte do seu titular1040.
1039
HORST DREIER (org.), Grundgesetz. Kommentar, cit., pp. 220 e 221.
1040
Esta decisão encontra-se disponível na Revue Française de Droit Administratif, n.º 11, (6),
1995, pp. 1024 ss. Sobre este caso, ver também DAVID FELDMAN, “Human Dignity as a Legal
Value – Part I”, in Public Law, Winter 1999, pp. 701 e 702; TOMÁS PRIETO ALVARÉZ, La
Dignidad de la Persona. Núcleo de la Moralidad y el Orden Públicos, Límite al Exercício de
Libertades Públicas, Editorial Aranzadi, Navarra, 2005, pp. 175 ss; PHILIPPE FRUMER, La
Renonciation aux Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à
l’Épreuve de la Volonté Individuelle, cit., pp. 298 ss; MARIA ROSARIA MARELLA, “The old and
the new limits to freedom of contract in Europe”, cit., pp. 273 e 274; STÉPHANIE HENNETTEVAUCHEZ, “When Ambivalent Principles Prevail. Leads for Explaining Western Legal Orders’
Infatuation with the Human Dignity Principle“, cit., pp. 14 e 15; STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ
– CHARLOTTE GIRARD, La Dignité de la Personne Humaine. Recherche sur un Processus de
Juridicisation, cit., pp. 27 – 29; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre luimême? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., pp. 91 e 92; OLIVIER DE SCHUTTER,
“Waiver of Rights and State Paternalism under the European Convention on Human Rights“,
cit., pp. 503 e 504; OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits
fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 458 e 459; PATRICK
FRYDMAN, “L’atteinte à la dignité de la personne et les pouvoirs de police municipale”, in Revue
Française de Droit Administratif, n.º 11, 1995, pp. 1204 ss; SÉBASTIEN GUILLEN, “Dignité de la
personne humaine et Police administrative. Essai sur l’ambivalence du standard” in PHILIPPE
PEDROT (org.), Ethique, Droit et Dignité de la Personne. Mélanges Christian Bolze, Economica,
Paris, 1999, pp. 175 ss; BERNARD EDELMAN, “La dignité de la personne humaine, un concept
nouveau” in MARIE-LUCE PAVIA – THIERRY REVET (orgs.), La Dignité de la Personne Humaine,
Economica, Paris, 1999, pp. 31 ss; LAURENCE WEIL, “La dignité de la personne humaine en
droit administratif”, in MARIE-LUCE PAVIA – THIERRY REVET (orgs.), La Dignité de la Personne
274
A argumentação utilizada segue a mesma linha da anteriormente adoptada
pelo juiz alemão: a dignidade é assumida como um” valor objectivo e
inderrogável”1041.
Não estamos também de acordo com esta decisão. Ainda que caiba ao
Estado conferir uma protecção acrescida a pessoas portadoras de uma
deficiência, nesta situação concreta não está em dúvida a capacidade para
consentir. Vimos que apenas se justifica objectivamente uma abordagem
paternalista nos casos de direitos ou interesses de menores, de pessoas
incapazes de se autodeterminarem ou que se encontrem numa “posição
conjuntural de debilidade ou desfavor”1042. Para além disso, não é também a
integridade física dos intervenientes que se visa garantir, já que estes se
encontram devidamente protegidos.
Julgamos ainda que esta prática não implica uma “intolerável
‘coisificação’” da pessoa, que justifica a proibição estatal1043, uma vez que não
pode haver uma “coisificação” ou instrumentalização da pessoa quando esta
consente, livre e conscientemente, em determinado acto. Vimos já quais as
fragilidades do uso da fórmula do objecto para a densificação do princípio da
dignidade e enquanto limite ao poder de diposição sobre posições subjectivas
de direitos fundamentais. Se do princípio da dignidade retiramos a
impossibilidade de tratar a pessoa como mero objecto, isso significa que deve
ser o próprio indivíduo, enquanto sujeito de pleno direito, a determinar o que é
Humaine, cit., pp. 91 ss ; EMMANUEL DREYER, “Les mutations du concept juridique de dignité”,
in RRJ,, n.º 1, 2005, pp. 27 ss; PAUL MARTENS, “Encore la dignité humaine: réflexions d’un juge
sur la promotion par les juges d’une norme suspecte”, in Les Droits de l’Homme au Seuil du
Troisième Millénaire. Mélanges en Hommage à Pierre Lambert, Bruylant, Brusseles, 2000, pp.
562 ss. Esta questão colocou-se também no nosso país, relativamente ao lançamento de
anões numa discoteca de Vila do Conde, embora não tenha chegado aos tribunais. Nesse
sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, cit., p. 311 nota 113; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição
sobre o Próprio Corpo, cit., p. 525.
1041
Nesse sentido, GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della
dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 840. Também o Comité dos Direitos
Humanos das Nações Unidas corroborou esta decisão, embora tenha baseado a sua
argumentação na não-violação da proibição de discriminação. A decisão do Comité está
disponível in http://www1.umn.edu/humanrts//undocs/854-1999.html.
1042
JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, cit., p. 450, nota 785.
1043
Nesse sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 311, nota 113; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO –
VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 387.
275
para si atentatório da sua dignidade, sob pena de, ao não ter liberdade para o
fazer, estar a ser transformado em objecto ou instrumento1044. Tal só não
deverá acontecer em situações extremas, que são aquelas em que o exercício
da
liberdade
pelo
sujeito
ponha
em
risco
as
“condições
da
sua
1045
autodeterminação futura”
, o que não é, no entanto, o que sucede neste
caso. Pensamos, por isso, que estamos mais uma vez perante uma
interpretação paternalista da dignidade.
Finalmente, tem-se ainda defendido que esta decisão parte de uma
interpretação da dignidade como “bem fora do comércio”, não devendo a
renúncia ser considerada uma verdadeira manifestação de autonomia
individual quando a decisão de renunciar seja ditada por necessidades
económicas, uma vez que nesses casos a pessoa não procura o seu
desenvolvimento mas pretende apenas fazer face a uma situação complicada,
em particular “uma situação económica difícil”1046. No entanto, como também já
referimos, não estamos de acordo com esta posição, na medida em que pode
haver situações de renúncia em que esta seja contrapartida de vantagens
materiais e, ainda assim, traduzir uma escolha voluntária, o que julgamos ser o
caso.
Também por ocasião da transmissão televisiva do concurso Big Brother
se colocou “a questão da relação entre autonomia contratual e respeito da
dignidade humana em toda a sua complexidade”1047. Embora não tenha havido
1044
JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, cit., p.
58. MICHAEL KÖHNE, “Abstrakte Menschenwürde”, in GewArch, n.º 7, 2004, p. 287, defende
que a determinação da dignidade por terceiros significa impor ao indivíduo uma concepção da
dignidade com a qual este pode não estar de acordo, o que implica convertê-lo em mero
objecto da valoração acerca do que é ou não digno.
1045
JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., p. 330.
1046
OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La
libre disposition du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 457 – 460.
1047
Neste sentido, ver GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della
dignità (Note a margine della Carta dei Diritti)”, cit., p. 835. Sobre esta questão, ver JOSÉ
JOAQUIM GOMES CANOTILHO – JÓNATAS MACHADO, Reality Shows e Liberdade de
Programação, cit.; PEDRO VAZ PATTO, “A propósito do Big Brother. Reflexões sobre o conteúdo
do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, in Brotéria, n.º 6, 2003, pp. 451 ss
(também in No Cruzamento do Direito e da Ética, cit., pp. 199 ss); LUÍS VASCONCELOS ABREU,
“Limitação do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada mediante o acordo do seu
titular. O caso do Big Brother”, cit., pp. 113 ss; BENEDITA MAC CRORIE, “A renúncia ao direito à
reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 618 ss; DIETER DÖRR, Big Brother und die
Menschenwürde, cit.; HUBERTUS GERSDORF, Medienrechtliche Zulässigkeit des TV-Formats
276
qualquer decisão judicial sobre esta matéria, o debate que o concurso suscitou
na doutrina justifica que também o analisemos.
Este programa televisivo é um reality show onde, por vontade própria, os
concorrentes vão viver para uma casa permanentemente filmada em todas as
divisórias, o que implica o despojamento, “de forma praticamente total, do
controlo sobre a captação e divulgação de informação sobre a vida privada”
durante um maior ou menor período de tempo1048. Consequentemente, vários
Autores se pronunciaram no sentido de que este tipo de programas é
atentatório da dignidade da pessoa humana1049.
Não partilhamos, no entanto, dessa posição, pois uma vez mais
entendemos que “uma protecção imposta que limite as possibilidades de
actuação do visado” e que, consequentemente, restrinja a sua possibilidade de
renunciar a direitos fundamentais, protegendo-o de si próprio, não se ajusta
aqui1050. Nestes programas a declaração de vontade de renúncia é dada pelo
«Big-Brother», C. F. Müller, 2000; HANS HOFMANN, “Artikel 1” in BRUNO SCHMIDT-BLEIBTREU –
HANS HOFMANN – AXEL HOPFAUF, Kommentar zum Grundgesetz, cit., p. 111; WERNER
FROTSCHER, “«Big Brother» und das deutsche Rundfunkrecht”, cit.; WALTER SCHMITT
GLAESER, “Big Brother is watching you – Menschenwürde bei RTL 2”, cit., pp. 395 ss; HENNING
HARTWIG, “«Big Brother» und die Folgen”, in JZ, n.º 20, 2000, pp. 967 ss; NADINE KLASS,
Rechtliche Grenzen des Realitätsfernsehens, Mohr Siebeck, Tübingen, 2004; MICHAEL KÖHNE,
“Big Brother – Die modernen Superstars als “Reformer” der Verfassung”, in ZRP, n.º 2, 2002,
pp. 92 ss; STEPHAN HUSTER, “Individuelle Menschenwürde und öffentliche Ordnung?”, in NJW,
n.º 47, 2000, pp. 3477 ss.
1048
PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, cit., p. 549.
1049
É, por exemplo, o caso de PEDRO VAZ PATTO, “A propósito do Big Brother. Reflexões sobre
o conteúdo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, cit., pp. 451 ss; ELKE
HINTZ – MICHAEL WINTERBERG, “Big Brother – Die modernen Superstars als “Reformer” der
Verfassung”, in ZRP, n.º 7, 2001, pp. 293 ss; ULRIKE HINRICHS, “«Big Brother» und die
Menschenwürde”, in NJW, n.º 30, 2000, pp. 2173 ss. Considerando que “ao entender-se que o
consentimento dos candidatos produz efeitos se estaria a desistir da inalienabilidade da
dignidade e a tratar a 2.ª parte do art. 1.º da Constituição alemã como uma mera fórmula
vazia”, ver ROLF SCHMIDT, Grundrechte, cit., p. 121. Também em França a transmissão
televisiva do programa Loft Story (também um reality show) “esteve no centro de contestação
política e violenta manifestação pública”. O Conselho Superior do Audiovisual (CSA,
communiqué n.º 449, de 14 de Maio de 2001) interveio, “impondo, em nome da ‘dignidade da
pessoa humana’, uma modificação das regras do jogo, tendo passado a ser obrigatório desligar
as câmaras de televisão durante algumas horas do dia”. Sobre esta questão, ver também
GIORGIO RESTA, “La disponibilitá dei diritti fondamentali e i limiti della dignità (Note a margine
della Carta dei Diritti)”, cit., p. 837; DANY COHEN – LAURENT GAMET, “Loft story: le jeu-travail”,
in Droit social, n.º 9/10, 2001, pp. 791 ss; BERNARD EDELMAN, “«Quatre pattes, oui; deux
pattes, non». Loft story – une nouvelle fonction – auteur”, in Recueil Dalloz, n.º 34, 2001, pp.
2763 ss.
1050
WERNER FROTSCHER, “’Big Brother’ und das deutsche Rundfunkrecht”, cit., p. 43.
277
próprio titular e é produto de uma vontade livre e esclarecida, estando o titular
do direito “consciente de todas as implicações da sua participação”1051. Ainda
que se verifique uma renúncia quase total à reserva da vida privada, esta é
uma renúncia temporalmente delimitada e que, para além disso, é livremente
revogável, podendo o candidato, a qualquer momento, sair do programa, sem
com isso sofrer qualquer outro tipo de consequências que não seja a perda da
possibilidade de ganhar o concurso1052.
Assim, a utilização do princípio da dignidade da pessoa humana nas
situações que referimos “assenta invariavelmente no mesmo tipo de raciocínio”.
Cada ser humano “é um repositório (mas não o proprietário) de uma parcela de
humanidade, em nome da qual pode ser sujeito a uma série de obrigações que
dizem respeito à preservação dessa parcela”. Segundo esta perspectiva, na
medida em que “a dignidade da pessoa humana se relaciona mais com a
humanidade do que com o indivíduo, está fora do alcance deste último”,
correspondendo a humanidade “ao status a que o indivíduo foi elevado ou
admitido”1053.
Como vimos mais desenvolvidamente, a dignidade não deve, porém, ser
imposta contra o seu próprio titular. O indivíduo deve poder dispor dos seus
direitos e não deve ser instrumentalizado em virtude de uma qualquer
concepção
de
dignidade
que
não
partilhe.
A
dignidade
enquanto
disponibilidade contraria uma ideia de protecção da dignidade contra si
mesmo1054.
1051
Nesse sentido, WALTER SCHMITT GLAESER, “Big Brother is watching you –
Menschenwürde bei RTL 2”, cit., p. 399.
1052
WERNER FROTSCHER, “«Big Brother» und das deutsche Rundfunkrecht”, cit., p. 50;
também STEPHAN HUSTER, “Individuelle Menschenwürde und öffentliche Ordnung?”, cit., p.
3477.
1053
STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of
Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., pp. 14, 21, 23 e 24.
Partindo da distinção entre uma noção de dignidade associada à ideia de status (por definição,
desigual) e uma noção de dignidade associada à ideia de igualdade que não pode ser
considerada de forma convincente herdeira da dignitas, esta Autora considera fundamental
perceber se o princípio da dignidade da pessoa humana, tal como hoje é utilizado, “pertence ao
paradigma dos direitos humanos” e se a sua aplicação vai no sentido “da promessa de 1948
(‘todos os homens nasceram iguais em direitos e dignidade’)”.
1054
KLAUS STERN – MICHAEL SACHS – JOHANNES DIETLEIN, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, Vol. IV/1, cit., p. 94.
278
Há ainda decisões relevantes nesta matéria ao nível do TEDH1055.
Mesmo que nos casos que vamos analisar não se faça uma referência
expressa ao princípio da dignidade, parece-nos que a fundamentação de
algumas das decisões assenta também numa ideia de defesa da pessoa contra
si própria, pelo que achamos pertinente referi-las.
No caso Laskey, Jaggard e Brown v. Reino Unido1056, os requerentes
haviam
sido
condenados
no
Reino
Unido
pela
prática
de
actos
sadomasoquistas entre adultos com o seu consentimento, actos esses que não
tiveram como consequência quaisquer lesões sérias permanentes, ainda que
fossem práticas susceptíveis de as causar. A questão com que o TEDH se
debateu foi a de saber se a criminalização de práticas sadomasoquistas
violentas deve ser considerada uma violação do art. 8.º da CEDH. O TEDH, na
fundamentação da sua decisão, fez apelo à margem de apreciação dos
Estados nessa matéria e, consequentemente, não considerou a condenação
estabelecida pelo Reino Unido desproporcionada1057. Este Tribunal entendeu
que as autoridades nacionais têm legitimidade para considerar que a acusação
e a condenação dos recorrentes são necessárias numa sociedade democrática
para a protecção da saúde, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Convenção1058.
1055
No que se refere à renúncia a direitos fundamentais, na jurisprudência do TEDH podemos
distinguir duas questões: a primeira é a de saber “se uma Parte Contratante pode evitar ser
considerada violadora da CEDH por invocar o facto de o indivíduo que recorre, embora alegue
uma violação do seu direito pelo Estado, ter consentido no tratamento de que agora se vem
queixar”. A segunda questão é a de saber “se a Parte Contratante pode ser responsabilizada
pelo facto de ter violado aquilo que o indivíduo considera ser a sua pretensão legitima de não
lhe ver imposto o benefício de um direito que considera como um peso e que preferiria
simplesmente sacrificar”. Ver OLIVIER DE SCHUTTER, “Waiver of Rights and State Paternalism
under the European Convention on Human Rights“, cit., p. 482.
1056
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=las
key&sessionid=51620806&skin=hudoc-en.
1057
Criticando a decisão do TEDH neste caso, ver PHILIPPE FRUMER, La Renonciation aux
Droits et Libertés. La Convention Européene des Droits de l’Homme à l’Épreuve de la Volonté
Individuelle, cit., pp. 346 ss; CHRISTOPHER NOWLIN, “The Protection of Morals Under the
European Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms”, in
Human Rights Quarterly, n.º 24, 2002, p. 284; RICHARD GREEN, “(Serious) Sadomasochism: A
Protected Right of Privacy?” in Archives of Sexual Behaviour, Vol. 30, n.º 5, 2001, pp. 543 ss;
LESLIE J. MORAN, “Laskey v. The United Kingdom: Learning The Limits of Privacy”, in The
Modern LR, Vol. 61, 1998, pp. 77 ss; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme
contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., p. 101.
1058
Na sua declaração de voto, o juiz Petitti considerou inclusivamente que o art. 8.º não é
sequer aplicável ao caso. Na sua perspectiva o conceito de vida privada não pode ser alargado
indefinidamente, pelo que as práticas sadomasoquistas não devem sequer estar incluídas no
âmbito de protecção do artigo em causa. O próprio Tribunal coloca essa questão, embora
279
Assim, o Tribunal admite uma protecção da saúde contra a vontade do
próprio, sem atender ao facto de não estarem em causa lesões graves e
irreversíveis. Uma vez que neste caso não havia dúvidas quanto ao
consentimento das partes e das práticas sadomasoquistas não decorreram
quaisquer lesões sérias permanentes, pensamos que está subjacente à
decisão (ainda que tal não decorra dela expressamente) um juízo de
reprovação moral dos comportamentos em análise. Ora vimos já que deve ser
de afastar um paternalismo moral, ou seja, a imposição de modos de
comportamento por razões morais no interesse da pessoa e com as quais esta
não está de acordo1059.
Também no caso KA e AD v. Bélgica1060 o TEDH foi novamente
confrontado com a mesma questão. Neste caso o Tribunal considerou que o
Direito Penal não deve, em princípio, ser chamado a intervir quando estejam
em causa práticas sexuais consentidas “a não ser que haja razões imperiosas
para que o faça”. Entendeu ainda que “no caso concreto se verificaram razões
imperiosas justificativas da interferência porque decorreu dos factos analisados
que não houve sempre livre vontade, uma vez que o consentimento de um dos
participantes não foi sempre respeitado”1061.
Se compararmos estas duas decisões constatamos que houve uma
evolução significativa na jurisprudência do TEDH, já que no caso KA e AD v.
Bélgica este reconheceu que o direito de ter relações sexuais, mesmo com
depois não a desenvolva, uma vez que nenhuma das partes a invocou.
1059
Considerando que “a vida sexual é justamente o domínio onde o Estado se deve abster de
intervir em nome da moral”, ver JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD, “Liberté sexuelle et droit de
disposer de son corps”, in Droits, n.º 49, 2009, p. 23.
1060
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=K.
A.%20%7C%20A.D.%20%7C%20belgium%20%7C%20%2242758/98%20%7C%2045558/99%
22&sessionid=51621190&skin=hudoc-en.
1061
STÉPHANIE HENNETTE-VAUCHEZ, “A human dignitas? The Contemporary Principle of
Human Dignity as a Mere Reappraisal of an Ancient Legal Concept”, cit., p. 10. Sobre este
caso, ver também MURIEL FABRE-MAGNAN – MICHEL LEVINET – JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD –
FRANÇOISE TULKENS, “Controverse sur l’autonomie personelle et la liberté du consentement”,
in Droits, n.º 48, 2009, pp. 3 ss; XAVIER PIN, “Le consentement à lésion de soi-même en Droit
Pénal vers la reconnaissance d’un fait justificatif?”, in Droits, n.º 49, 2009, p. 87. Assumindo
uma postura crítica, considerando que “uma tal abordagem da autonomia pessoal (…) parece
bem mortífera para os direitos do Homem”, ver MICHEL LEVINET, “La notion d’autonomie
personnelle dans la jurisprudence de la Cour Européenne des Droits de l’Homme”, in Droits, n.º
49, 2009, pp. 17 e 18. O Autor considera que “ao privilegiar uma abordagem hipersubjectivista
da noção de autonomia pessoal o TEDH esquece que, em geral, ‘são os fracos que
consentem’”.
280
violência, está compreendido no direito a dispor sobre o próprio corpo, parte
integrante da noção de autonomia individual. Para o Tribunal, “o fundamento da
repressão penal das lesões corporais” deixa de ser “a protecção da saúde da
vítima mas antes a protecção da vontade, o que implica atribuir ao
consentimento para a lesão (…) uma plena força justificativa”1062. Pensamos
que esta evolução jurisprudencial é de louvar1063.
Finalmente, é ainda de referir o caso Diane Pretty v. Reino Unido1064, no
qual se colocou a questão de determinar se a proibição da eutanásia1065 no
1062
XAVIER PIN, “Le consentement à lésion de soi-même en Droit Pénal vers la reconnaissance
d’un fait justificatif?”, cit., p. 88. Também JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD, “Liberté sexuelle et droit
de disposer de son corps”, cit. p. 23, entende que este caso “é o grande caso que fixa clara e
precisamente os limites da intervenção do Estado nas relações sexuais entre adultos capazes
de consentir”. O TEDH afasta-se do caso Laskey, Jaggard e Brown “ao excluir a moral do
campo de argumentação e ao incluir aí o direito a dispor sobre o próprio corpo”.
1063
Essa é também a perspectiva de Jean Pierre Marguénaud, que considera que “a liberdade
sexual (…) não deve ser limitada pela moral”. Ver MURIEL FABRE-MAGNAN – MICHEL LEVINET JEAN-PIERRE MARGUÉNAUD - FRANÇOISE TULKENS, “Controverse sur l’autonomie personelle
et la liberté du consentement”, cit., pp. 11 e 12.
1064
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=pre
tty&sessionid=51621425&skin=hudoc-en. Sobre este caso, ver também ANTÓNIO HENRIQUES
GASPAR, “Eutanásia. Não obrigado? (caso Pretty v. Reino Unido)”, in Sub Judice, n.ºs 22/23,
2001, pp. 171 ss; CATARINA SANTOS BOTELHO, A Tutela Directa dos Direitos Fundamentais.
Avanços e Recuos na Dinâmica Garantística das Justiças Constitucional, Administrativa e
Internacional, cit., pp. 362 ss; OLIVIER DE SCHUTTER, “L’aide au suicide devant la Cour
européenne des droits de l’homme (A propos de l’arrêt Pretty c. Royaume-Uni du 29 avril
2002)”, in Rev. trim. dr. h., n.º 53, 2003, pp. 71 ss; OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM,
“La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”,
cit., p. 478.
1065
O termo eutanásia provém do grego e significa “boa morte”. Trata-se de pôr termo à vida
de um terceiro para evitar o sofrimento de que padece em virtude de uma doença terminal ou
irreversível. As considerações que fazemos referem-se às situações de eutanásia voluntária
(onde há uma vontade expressa, livre e esclarecida do doente). Para mais desenvolvimentos
sobre esta questão, ver, entre outros, ANTÓNIO JOSÉ DOS SANTOS LOPES DE BRITO – JOSÉ
MANUEL SUBTIL LOPES RIJO, Estudo Jurídico da Eutanásia em Portugal, Direito sobre a Vida
ou Direito de Morrer?, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 25 – 27 e 39; AUGUSTO LOPES CARDOSO,
“Alguns aspectos jurídicos da eutanásia”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 401, 1990, pp.
5 ss; JOÃO LOUREIRO, “Os rostos de Job: tecnociência, direito, sofrimento e vida”, in Boletim da
Faculdade de Direito, n.º 80, 2004, pp. 137 ss; JOSÉ DE FARIA COSTA, “ O fim da vida e o
direito penal”, in MANUEL DA COSTA ANDRADE – JOSÉ DE FARIA COSTA – ANABELA MIRANDA
RODRIGUES – MARIA JOÃO ANTUNES (orgs.), Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo
Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 759 ss; LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à
Disposição sobre o Próprio Corpo, cit., pp. 780 ss; MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Artigo 134.º”,
in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, cit., p. 62; ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo III, cit., pp. 126 ss.
FERNANDO J. BRONZE, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão
Problematizante dos Pólos da Radical Matriz Analógica do Discurso Jurídico), cit., pp. 171 ss;
BENEDITA MAC CRORIE, “A doutrina da renúncia a direitos fundamentais – os casos da
eutanásia e da colheita de órgãos em vida”, in MANUEL CURADO – NUNO PINTO OLIVEIRA
(org.), Pessoas Transparentes. Questões Actuais da Bioética, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 93
281
Reino Unido deveria ser considerada admissível à luz da Convenção. Nesta
decisão o TEDH sustentou que o direito à vida garantido no art. 2.º da CEDH
não pode ser interpretado “como envolvendo um aspecto negativo”, isto é, um
direito a morrer1066. Já quanto à violação do art. 8.º da Convenção, sendo que
“o conceito de vida privada é amplo e não susceptível de definição exaustiva”,
o Tribunal considerou “não estar preparado para excluir que a proibição legal
da eutanásia constitua uma ingerência no direito ao respeito da vida privada”.
No entanto, entendeu ainda que se pode considerar tal ingerência necessária
numa sociedade democrática, se o que se pretende “é a protecção dos fracos e
dos vulneráveis e especialmente daqueles que não estão em condições de
tomar decisões informadas sobre actos destinados a pôr termo à vida ou que
se destinem a auxiliar outrem a pôr termo à vida”1067.
Perante isto, o Tribunal invoca a necessidade de protecção de pessoas
que se encontram numa posição de especial fragilidade ou fraqueza na
fundamentação da sua decisão. Pensamos, no entanto, que, embora haja a
ss; MARTIN KOPPERNOCK, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung. Zur
Rekonstruktion des allgemeinen Persönlichkeitsrechts, cit., p. 194.
1066
No sentido de considerar que é possível retirar do artigo 2.º da CEDH nenhuma conclusão
quanto à questão de saber se o direito à vida abrange um “direito à morte”, ver TORKEL
OPSAHL, “The right to life”, in R. ST. J. MACDONALD – F. MATSCHER – H. PETZOLD (ed.), The
European System for the Protection of Human Rights, Kluwer Academic Publishers,
Netherlands, 1993, pp. 221 e 222.
1067
H. J. HIRSCH apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito
Penal, cit., p. 216, considera que “’(…) quando a lei prescreve a punibilidade da morte a pedido
tal dá-se, sobretudo, em nome de uma consideração decisiva: a de que, no interesse da
segurança da vida de terceiros, se torna necessário converter a vida alheia num tabu,
garantindo-lhe uma intangibilidade de princípio’”. OLIVIER DE SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM,
“La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”,
cit., p. 447, consideram que “um ‘testamento vital’, no qual se renuncia, à partida, ao ‘direito à
vida’ - ou seja, ao direito a receber um tratamento que manteria a pessoa em causa viva ainda
que se encontrasse em estado vegetativo permanente e irreversível - é em princípio preparado
em condições mais serenas do que as que envolvem o pedido de eutanásia realizado por um
indivíduo em sofrimento e para quem o anúncio do carácter inelutável da sua morte poderá
constituir a fonte de um estado depressivo grave”. Sobre os testamentos vitais (designados
entre nós também como “decisões/directivas/disposições antecipadas ou prévias de vontade”,
“living-wills”, “testamentos de paciente, de vida, em vida, de cuidados médicos, biológicos, de
moribundo ou morte”), ver também JOÃO LOUREIRO, “Advance Directives – A Portuguese
Approach”, in Lex Medicinae, n.º 9, 2008, pp. 5 ss; JOAQUIM SABINO ROGÉRIO, “«Living-will» –
reflexão sobre o que se discute e se propõe. Enfoque jurídico-penal”, in Lex Medicinae, n.º 10,
2008, pp. 115 ss; ISABEL RENAUD – MICHEL RENAUD, “O testamento vital. Elementos de
análise”, in Revista Portuguesa de Bioética, n.º 9, 2009, pp. 321 ss; SELMA MARINA LOPES
MARTINS, “Disposições antecipadas da vontade”, in DIOGO LEITE CAMPOS (coord.), Estudos
sobre o Direito das Pessoas, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 221 ss. Ver ainda sobre esta
matéria o Parecer n.º P/16/APB/2009, http://www.apbioetica.org/fotos/gca/1273053917
parecer_16_testamento_vital_2009.pdf, da Associação Portuguesa de Bioética.
282
necessidade de se estabelecer maiores exigências quanto à aferição da
voluntariedade da renúncia nestes casos, a garantia da liberdade da decisão e
a salvaguarda dos indivíduos dos riscos implicados na eutanásia se consegue
“instituindo procedimentos por intermédio dos quais se controlam as condições”
em que (…) [esta liberdade] é exercida, e não suprimindo-a”1068. Julgamos,
portanto, que faz sentido que a possibilidade de renunciar ao direito à vida
esteja prevista e regulada através de um acto legislativo prévio, o que se
justifica por razões garantísticas.
Também nas situações de eutanásia, e partindo da construção de
dignidade que apresentámos, esta não deve ser utilizada contra a autonomia
individual. Não se coaduna com o sentido constitucional do princípio que o
Estado, invocando a protecção da dignidade, pretenda impedir um indivíduo em
sofrimento, responsável e capaz, de dispor sobre a sua própria vida1069.
Vimos que apenas são legítimas medidas estaduais paternalistas quanto
possam ser afectadas as possibilidades de “autodeterminação futura” da
1068
Fazendo estas considerações sobre a liberdade da dádiva de órgãos, ver NUNO MANUEL
PINTO OLIVEIRA, “Inconstitucionalidade do Artigo 6.º da Lei sobre a Colheita e Transplante de
Órgãos e Tecidos de Origem Humana”, cit., p. 258 - 260. Considerando que “a eventualidade
da aceitação da impunibilidade penal da prática de eutanásia activa levada a cabo por médico
implica a definição de um rigorosíssimo regime procedimental para a sua concretização”, ver
JOSÉ DE FARIA COSTA, “ O fim da vida e o direito penal”, cit., p. 795. Também OLIVIER DE
SCHUTTER – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition
du soi el le règne de l’échange”, cit., pp. 460 e 461, defendem que quando se admita a
eutanásia é essencial estabelecer “procedimentos rigorosos de modo a assegurar, em cada
caso, que o pedido reflecte a vontade real do paciente”. Nessa medida, entendem que é
imperioso que “a despenalização parcial da eutanásia seja acompanhada pelo
desenvolvimento de cuidados paliativos de maneira a atenuar, na medida do possível, o
desespero das pessoas em fim de vida, que poderia conduzi-las a um pedido de eutanasia”.
RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 256, consideram que “as soluções legislativas isentas
de laivos paternalistas - isto é, que reconheçam a cada uma das pessoas a faculdade de
renunciar aos seus direitos fundamentais, no pressuposto de que o fazem de forma consciente,
informada e voluntária - sempre permitirão a subsistência de sérias dúvidas sobre a natureza
verdadeiramente livre e racional da decisão contra natura de pôr termo à própria vida”.
Segundo os Autores, “trata-se de um domínio no qual todas as garantias de autenticidade da
declaração parecem ser escassas”. Apesar disso, entendem que “a absolutização da vida,
traduzida na criminalização indiferenciada de todas as condutas eutanásicas, redundará no
esmagamento da autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais
centrais da sua própria existência”.
1069
MARTIN NETTESHEIM, “Die Garantie der Menschenwürde zwischen metaphysicher
Überhöhung und blossem Abwägungstopos”, cit., p. 106; ADALBERT PODLECH, “Art. 1”, cit., p.
218. Considerando um erro a “necessária assimilação entre dignidade humana e preservação
da vida a qualquer custo”, uma vez que “a vida é um direito e não um dever”, ver VERA LÚCIA
RAPOSO, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o direito à vida”, cit., p. 86.
283
pessoa. Pensamos que este raciocínio não deve, no entanto, aplicar-se à
renúncia ao direito à vida. Não há dúvida que a decisão deliberada de pôr
termo à própria vida tem como consequência que a pessoa não pode continuar
a exercer a sua liberdade no futuro. Mas, mais do que isso, essa decisão
implica que deixa de haver futuro. A pessoa não continua, consequentemente,
a viver a sua vida sem uma parcela de liberdade que possa pôr em causa a
sua autodeterminação. Assim, esta situação é distinta porque nos casos de
renúncia à própria vida deixa de existir a pessoa que poderia agir ou não agir
livremente, pelo que a renúncia se consubstancia numa situação em relação à
qual já não se aplica “o princípio da liberdade”1070.
Para além disso, parece-nos que esta é precisamente uma das
situações em que o fim, isto é, pôr termo à vida em situações de grande
sofrimento1071, pode justificar que seja de admitir uma renúncia que é, por
natureza, ao direito fundamental como um todo, permanente e irreversível.
Vimos que o carácter grave e irreversível da lesão pode ser útil para aferir a
validade de uma renúncia a direitos fundamentais, devendo ser mais um
elemento a ter em conta na ponderação. No entanto, vimos também que se
houver um fim que se sobreponha à lesão a renúncia poderá ser considerada
válida. Não nos parece que a salvaguarda do direito à vida, enquanto valor
objectivo, esteja numa relação razoável ou proporcional com a medida e a
importância dos efeitos danosos produzidos na esfera do titular do direito ao
não se permitir que este possa optar por pôr termo à sua vida nas situações
extremas que referimos. Não é, por isso, evidente que o direito à vida seja
indisponível.
De tudo o que vimos, pensamos que são necessárias cautelas para não
se ceder à tentação de um paternalismo jurídico, em que se transfere para a
sociedade o encargo de defender os titulares dos direitos contra as suas
próprias condutas. A defesa da pessoa contra si própria deve ser a excepção e
só é legítima nas situações em que o indivíduo não esteja em posição de
1070
Nesse sentido, DAVID ARCHARD, “Freedom not to be free: the case of the slavery contract
in J. S. Mill’s On Liberty”, cit., p. 462.
1071
Seja esse sofrimento decorrente de uma doença terminal ou de uma doença incurável.
Sobre o “alargamento das indicações que legitimariam a eutanásia”, ver JOÃO LOUREIRO, “Os
rostos de Job: tecnociência, direito, sofrimento e vida, cit., p. 166.
284
cuidar de si ou quando contenda com as suas possibilidades de
“autodeterminação futura”. Como já referimos, para além destas situações não
é de admitir uma protecção imposta que limite as possibilidades de actuação
do visado e que, consequentemente, limite a sua possibilidade de renunciar a
direitos fundamentais, uma vez que esta protecção é uma violação grave da
presunção de liberdade que deriva da dignidade da pessoa humana.
285
Síntese conclusiva
1. Escolhemos como ponto central deste trabalho o problema dos limites
da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares. Assim, a
questão fundamental de que nos ocupámos foi a de saber se o titular de um
direito fundamental pode validamente dele dispor perante outro particular,
através de um acto de renúncia, e em que termos esse poder de disposição é
passível de ser exercido. Uma vez que considerámos que há uma “vinculação
directa prima facie” dos particulares aos direitos fundamentais, sendo os entes
privados sujeitos activos e passivos destes direitos nas relações que
estabelecem entre si, faz sentido falar em renúncia nas relações jurídicoprivadas.
2. Tratando primeiramente a figura da renúncia em geral, defendemos
um entendimento amplo deste conceito, sob pena de estarmos a excluir à
partida situações de renúncia que não devem ser necessariamente de afastar,
ou pelo menos não o devem ser antes de verificarmos se respeitam as
condições e os limites impostos ao poder de renunciar. Seguindo a definição de
Jorge Reis Novais, entendemos por renúncia “o poder individual de dispor
sobre
posições
jurídicas
próprias,
tuteladas
por
normas
de
direitos
fundamentais, de cujo exercício resulta, como consequência jurídica, uma
diminuição da protecção do indivíduo” face às entidades públicas ou um ente
privado. Nessa medida, a renúncia implica um enfraquecimento efectivo do
direito fundamental, enfraquecimento esse que decorre de um acto voluntário
do seu titular.
3. a) Deve distinguir-se a renúncia de figuras afins como é o caso da
perda e do não-exercício de direitos fundamentais, da autolesão e do mero
exercício de direitos.
b) Na perda também se verifica um enfraquecimento de um direito
fundamental, mas neste caso o enfraquecimento não deriva de um acto
voluntário do titular do direito, sendo antes uma consequência que lhe é
imposta “de fora”, ao contrário da renúncia que, como já referimos, parte
286
inevitavelmente de uma decisão voluntária do titular do direito.
c) Nas situações de não-exercício não se verifica, pela parte do titular do
direito, a assunção de qualquer vínculo jurídico. Está aqui em causa uma
posição subjectiva de direito fundamental que este pode optar por exercer ou
não exercer e, mesmo que não o faça num dado momento, tal não invalida que
posteriormente o venha a fazer. O mesmo já não acontece na renúncia, uma
vez que a esta subjaz sempre um vínculo jurídico.
d) Na autolesão é o próprio titular que leva a cabo a intervenção no seu
direito, o que significa que nestes casos não haverá dúvidas de que estamos
perante uma decisão autónoma (exceptuando obviamente as situações de
incapacidade
para
decidir).
A
renúncia,
por
seu
lado,
envolve
um
enfraquecimento do direito perante um ente público ou um terceiro, não se
cingindo à esfera do próprio indivíduo. Para além disso, nas situações de
autolesão estamos a referir-nos ao exercício de um poder fáctico, enquanto a
renúncia a direitos fundamentais implica um poder jurídico.
e) No mero exercício de direitos há uma identificação, pelo menos
tendencial, entre a autonomia e o bem jurídico protegido pela disposição
jusfundamental, o que não acontece na renúncia, na qual o titular do direito
reconhece que há uma lesão no seu direito, ainda que nela consinta.
4. a) No que se refere às diferentes configurações da renúncia, não é
relevante distinguir entre renúncia à titularidade e renúncia ao exercício. Apesar
disso, em estreita ligação com esta diferenciação, justifica-se a destrinça entre
renúncia definitiva ou irreversível e renúncia não definitiva ou reversível, que
deverá ser pesada na decisão sobre a admissibilidade concreta de uma dada
renúncia.
b) Também a distinção entre renúncia total e renúncia parcial deve ser
tida em conta quando se afere a validade de uma renúncia concreta. Aquilo
que se avalia aqui é, em primeiro lugar, se estamos perante uma renúncia ao
direito fundamental “como um todo” ou apenas a “algumas das faculdades que
287
o integram”. Em segundo lugar, importa verificar a duração temporal da
renúncia, isto é, se se trata ou não de uma renúncia delimitada no tempo.
Entendemos que não é de excluir algum tipo de renúncia à partida.
5. a) Quanto à questão de determinar se os direitos fundamentais são
sequer renunciáveis, não colhem os argumentos das perspectivas que excluem
a renunciabilidade de partida de todos ou alguns direitos fundamentais. A
caracterização
destes
direitos
enquanto
direitos
inalienáveis,
direitos
subjectivos públicos, normas de competência negativa, bem como o recurso a
diferentes teorias de direitos fundamentais, à distinção entre tipos de direitos ou
ainda à dimensão objectiva dos direitos fundamentais não justificam que se
considere que o indivíduo não possa deles dispor. Assumindo, em Estado de
Direito, a autonomia do indivíduo um papel fundamental, não faria sentido
condicionar o exercício dos direitos fundamentais por fins supra-individuais que
devessem sempre prevalecer.
b) O direito a renunciar estriba-se nos direitos fundamentais em
especial. O poder de dispor sobre os direitos fundamentais funda-se, com
efeito, no conteúdo de dignidade e autonomia presente em cada um destes
direitos. Consequentemente, devemos considerar a renúncia admissível, ainda
que sujeita a determinadas condições e limites.
6. a) A renúncia a direitos fundamentais implica a existência de uma
declaração de vontade. É através dessa declaração que o titular manifesta a
intenção de dispor do seu direito, o que envolve fundamentalmente um
momento de voluntariedade. De facto, para que possa ter lugar uma renúncia o
acto de disposição deve ser livre e autodeterminado, sob pena de não
estarmos já perante um acto de renúncia mas antes de uma restrição
heterónoma.
b) Em geral há liberdade de forma na renúncia, desde que o conteúdo
da declaração seja suficientemente claro. Poderá, no entanto, haver excepções
a esta liberdade quando a lei entenda que é de exigir uma forma específica
para garantir a voluntariedade da renúncia, nas situações em que seja mais
288
difícil aferir essa voluntariedade.
c) A renúncia deverá também ser livremente revogável, o que não
significa que não haja uma obrigação de indemnizar os prejuízos causados.
Existem, no entanto, direitos que pela sua natureza excluem a livre
revogabilidade, uma vez que envolvem necessariamente uma renúncia
definitiva. Excepcionalmente poderá ainda haver situações nas quais se
justifique excluir a livre revogabilidade, sob pena de estarmos perante uma
situação de abuso do instituto.
d) Sendo a renúncia na sua essência um acto de voluntariedade só
pode, então, admitir-se se for produto de uma vontade “livre, esclarecida, isenta
de erro e inequívoca”. É, por isso, necessário garantir que esta não é
condicionada por qualquer tipo de coacção, seja física, moral ou económica.
e) O critério da existência de “alternativas reais de comportamento” não
procede para determinar se há ou não coacção, uma vez que pode ser
precisamente por se encontrar numa situação de ausência de alternativas que
a renúncia assume particular relevância para o titular do direito. Ainda que essa
ausência deva ser tida em conta, não deve considerar-se que necessariamente
exclui a voluntariedade da renúncia.
f) O “grau de autonomia real das partes” deve ser um critério válido e útil
para a questão da voluntariedade do consentimento. Não basta, contudo,
estarmos perante uma relação em que há uma desigualdade entre as partes
para que a renúncia seja forçosamente involuntária. Para que a consequência
seja essa é necessário que o desequilíbrio de poderes seja utilizado para
influenciar a parte que renuncia e que as consequências da renúncia sejam
excessivamente onerosas para o titular do direito, mesmo tendo em
consideração as eventuais vantagens que este receba como contraprestação,
o que só se consegue determinar atendendo às circunstâncias concretas do
caso.
g) Deverão ainda estabelecer-se maiores exigências quanto à
289
apreciação da voluntariedade da renúncia nos casos em que esta serve
essencialmente interesses de terceiros, quando se trata de condutas de
especial risco ou quando se avalia a voluntariedade de actos que conduzem a
lesões irrevogáveis.
7. a) É ainda condição da renúncia a capacidade para uma
determinação livre da vontade. Para que o consentimento seja encarado como
um verdadeiro acto de autodeterminação, é indispensável que quem consente
tenha capacidade para o fazer.
b) A capacidade para consentir numa renúncia não coincide com a
capacidade negocial, embora as regras vigentes relativas à capacidade de
celebração de negócios jurídicos possam servir como critério orientador na
aferição da capacidade de dispor sobre direitos fundamentais. Assim, a partir
dos dezoito anos pode consentir-se validamente numa renúncia, mas tal não
significa que os maiores de dezasseis anos, desde que compreendam o
sentido e o alcance da sua decisão, não o possam igualmente fazer.
c) O poder de renúncia é um poder inseparável do titular do direito, o
que significa que deve ser este quem manifesta a vontade de renúncia e não
terceiros em seu nome.
8. a) Por outro lado, uma vez que o poder de renúncia se funda na
dignidade e autonomia presentes nos direitos fundamentais, a limitação deste
poder traduz-se numa restrição ao exercício de direitos, pelo que só poderá ter
lugar se houver outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
que justifiquem a restrição e na estrita medida do necessário para a garantia
desses outros direitos ou interesses.
b) Colocámos, consequentemente, a questão de saber se é legítima a
aceitação da falta de poder de disposição sobre o próprio direito fundamental
quando não estão em causa quaisquer bens da comunidade, mas antes se
pretende proteger o titular do direito fundamental para o seu próprio bem contra
a sua vontade.
290
c) A ideia de defesa da pessoa contra si própria está intimamente ligada
com o paternalismo estadual, uma vez que se devem considerar paternalistas
as medidas que limitam ou excluem a liberdade de escolha do indivíduo para o
seu próprio bem, por se entender que este poderá levar a cabo actos que
contrariam os seus próprios interesses.
d) Apenas serão legítimas medidas estaduais paternalistas em relação a
indivíduos capazes quando a renúncia possa contender com as possibilidades
de “autodeterminação futura” da pessoa. Sendo a nossa ordem jurídica
fundada no princípio da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, na
autonomia individual, justifica-se a limitação dessa mesma autonomia no
sentido de não permitir uma renúncia que a ponha definitivamente em causa.
e) Justifica-se ainda uma abordagem paternalista nos casos de direitos
ou interesses de menores, de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou
que se encontrem numa posição de partida de maior fragilidade. Contudo, o
alcance da autorização para restringir nestes casos deve igualmente
obediência ao princípio da proporcionalidade, que deve ser rigorosamente
respeitado.
f) Assim sendo, é apenas legítimo que o Estado proteja a pessoa de si
mesma se esta não estiver em posição de cuidar de si ou quando contenda
com as suas possibilidades de “autodeterminação futura”. Para além destas
situações não é de admitir uma protecção imposta que restrinja as
possibilidades de actuação do visado e que, consequentemente, limite a sua
possibilidade de renunciar a direitos fundamentais.
9. a) A renúncia nas relações entre particulares, ao contrário da renúncia
perante o Estado que se traduz simultaneamente em exercício e restrição de
um direito, já não goza desta “dupla dimensão”, na medida em que o conceito
de restrição se refere ao Estado. Uma vez que defendemos uma vinculação
directa dos particulares aos direitos fundamentais, na renúncia nesse âmbito
tanto quem renuncia como os destinatários da renúncia são entidades
privadas.
291
b) Apesar disso, a renúncia entre particulares envolve uma afectação
negativa de um direito fundamental, ainda que se consubstancie também em
exercício do direito. Nesse sentido, a constatação de que existe um direito a
renunciar não invalida que lhe possam ser impostos certos limites também na
renúncia entre entes privados. Uma vez que cabe ao Estado garantir que o
enfraquecimento
do
direito
fundamental
não
vai
além
do
que
é
constitucionalmente admissível, este pode fazer determinadas exigências ao
acto de renúncia de modo a atribuir-lhe força jurídica. Assim sendo, faz sentido
equiparar, pelo menos em certa medida, a renúncia nas relações entre
particulares e a renúncia perante o Estado.
10. a) Fundando-se o poder de renunciar na própria titularidade dos
direitos, a decisão quanto à validade de uma dada renúncia nas relações entre
particulares depende de saber se há interesses constitucionalmente protegidos
que, no caso concreto, devam sobrelevar o poder de renúncia e que possam
justificar uma restrição a esse mesmo poder, o que quer dizer que esta é uma
conclusão a que apenas se poderá chegar atendendo às circunstâncias do
caso concreto, através de uma ponderação de bens.
b) Para essa poderação contamos com o auxílio de alguns tópicos, que
são os designados limites da renúncia. Partindo dos limites que a doutrina tem
vindo a invocar na renúncia perante o Estado julgamos que devem ser tidos em
conta, na renúncia entre particulares: o princípio da dignidade da pessoa
humana, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a ordem pública e os bons
costumes, a maior ou menor disponibilidade de posições de direitos
fundamentais e a exigência de acto legislativo prévio. Tais limites devem ser
entendidos como tópicos de argumentação que visam racionalizar o processo
de ponderação que tem inevitavelmente de ocorrer quando se afere a validade
da renúncia.
11. a) A relevância do princípio da dignidade da pessoa humana
enquanto limite da renúncia reside sobretudo em determinar até onde pode a
densificação deste conceito depender do entendimento que o próprio indivíduo
292
tenha quanto ao que é para si mais ou menos digno e não se este pode
renunciar à sua dignidade.
b) Uma vez que adoptámos uma concepção de dignidade baseada na
autonomia e na responsabilidade individual, o particular deve poder definir por
si próprio o sentido e o conteúdo da sua dignidade, sob pena de estarmos
perante um paternalismo estadual inadmissível.
c) Em conformidade com isso, só em casos extremos o princípio da
dignidade poderá justificar restrições da liberdade. Partindo de uma “imagem
de Homem” que assenta na autonomia, este princípio não deve servir de
fundamento legitimador de uma protecção do indivíduo contra si próprio, sendo
de afastar quaisquer medidas que visem tal protecção fora dos casos em que
possa ser perturbada a “autodeterminação futura” do sujeito.
12. a) Quanto ao princípio da proporcionalidade, também no que se
refere à renúncia a direitos fundamentais no âmbito das relações entre
particulares, este serve, antes do mais, para confinar a acção do Estado
quando visa restringir o poder de disposição do titular do direito, o que só
poderá acontecer, como em qualquer outra restrição, quando haja outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos a salvaguardar e que, na
situação concreta, devam sobrelevar o poder de renúncia.
b) No que diz respeito à aplicação do princípio da proporcionalidade
enquanto limite da renúncia nas relações entre particulares é fundamental,
antes do mais, aferir se as partes se encontram numa posição de paridade ou
se, pelo contrário, se verifica a existência de uma relação de supra/infraordenação entre quem renuncia e o destinatário da renúncia.
c) Mesmo que estejamos perante uma situação em que há um
desequilíbrio de poderes, não se pode olvidar que o particular anuiu na
afectação do seu direito, o que deve ser considerado quando se avalia o
respeito da proporcionalidade em sentido restrito e da razoabilidade da medida.
Para além disso, a aplicabilidade deste princípio deve atender também às
293
circunstâncias do caso concreto porque a mera existência de uma relação de
desigualdade nem sempre significa que a decisão de renúncia seja menos
livre.
d) Nas relações entre iguais não há razões que obriguem o titular do
direito a justificar a autolimitação por um qualquer valor social ou público, o que
não quer dizer que o fim da renúncia não possa e até não deva ser um dos
elementos a ponderar quando se está a aferir a validade concreta de uma dada
renúncia.
e) Para além disso, também a intensidade da intervenção deverá ser um
elemento a ter em conta na ponderação a realizar. É relevante perceber o grau
de enfraquecimento do direito fundamental que decorre da renúncia, o que nos
reconduz à questão de saber se estamos perante uma renúncia ao direito
fundamental como um todo, uma renúncia de duração indefinida ou uma
renúncia definitiva.
13. Quanto ao respeito do conteúdo essencial, as dificuldades inerentes
à densificação do conceito implicam que esta garantia não acrescente nada em
relação aos outros limites da renúncia perante particulares já referidos.
14. a) No que se refere aos limites da ordem pública e dos bons
costumes, a concretização destas cláusulas tem vindo a fazer-se através do
recurso aos direitos fundamentais, pelo que estas não constituem um limite
autónomo para o problema dos limites da renúncia já que, no fundo, estamos
perante a questão da “conformidade material da renúncia aos princípios e
regras constitucionais”.
b) Apesar disso, há alguns contributos quanto à densificação destes
conceitos indeterminados que são úteis para o problema da renúncia. O facto
de o carácter grave e irreversível da lesão servir para integrar a cláusula dos
bons costumes reforça aquilo que se disse quanto à necessidade de atender,
na ponderação a efectuar, à definitividade ou irreversibilidade da renuncia. Por
outro lado, é também relevante para o problema da renúncia a ideia de que
294
pode haver um fim positivo capaz de “anular” a ofensa aos bons costumes, que
em princípio se verificaria, atendendo à gravidade da lesão.
15. a) No que diz respeito à disponibilidade das posições subjectivas de
direitos fundamentais, o poder de renunciar depende também do próprio direito
fundamental em causa, o que significa que será maior se esse direito garantir
essencialmente bens que dizem respeito ao próprio indivíduo e será menor se
tiver em vista também ou sobretudo bens jurídicos relevantes para a
comunidade. Assim, mesmo que seja de reconhecer, à partida, um poder de
disposição dos titulares sobre os seus direitos fundamentais, esse poder tem
de conviver com outros interesses que também gozam de protecção
constitucional.
b) Não basta, porém, perscrutar o significado dos direitos renunciados
no sistema geral dos direitos fundamentais e da Constituição ou ainda apelar à
dimensão objectiva destes direitos para resolver a questão, ainda que estes
sejam aspectos que devem ser tidos em conta na decisão de ponderação. Uma
vez que este problema só é susceptível de uma solução nas circunstâncias dos
casos concretos, é necessário recorrer aos demais tópicos para podermos
chegar a uma conclusão.
16. Finalmente, quanto à exigência de acto legislativo prévio, não se
pode propriamente falar em aplicação do princípio de reserva de lei na renúncia
nas relações entre particulares já que não há neste âmbito qualquer
intervenção da Administração. Apesar disso, em matérias particularmente
sensíveis ou nas situações de renúncia em que os titulares dos direitos se
possam encontrar numa posição de maior vulnerabilidade poderá fazer sentido
a exigência de um acto legislativo que venha estabelecer os termos dessa
renúncia. A regra, no entanto, é a de que o poder de disposição não carece de
lei prévia que consagre a sua possibilidade.
17. Assim, de tudo o que vimos até aqui retiramos que não é possível
dar uma resposta, à partida, quanto à validade ou invalidade de uma
determinada renúncia a direitos fundamentais, uma vez que tal resposta
295
depende inevitavelmente das circunstâncias dos casos concretos. Apesar
disso, partindo da “imagem de Homem” que consideramos perpassar a nossa
Constituição, que é a do Homem digno e capaz de conformar livremente o seu
próprio destino, entendemos que a limitação da possibilidade da renúncia deve
ser rigorosamente fundamentada. Para isso, apontamos algumas linhas de
argumentação que permitem tornar o processo de ponderação mais racional e
menos sujeito a interpretações subjectivas, que nos parece ser muitas vezes a
tendência na resolução dos chamados “casos difíceis”.
296
Bibliografia citada:
ABRANTES, JOSÉ JOÃO, “O novo Código de Trabalho e os direitos de
personalidade do trabalhador” in Estudos sobre o Código do Trabalho, Coimbra
Editora, Coimbra, 2004.
ACKERMANN, THOMAS, “Case Law: Case C-36/02”, in Common Market LR,
n.º 42, 2005.
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