O fracasso do governo de conciliação de classes

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O fracasso do governo de conciliação de classes
PAÍSES
Golpe Parlamentar no Paraguai
O fracasso do governo
de conciliação de classes
COCO ARCE
EM 21 DE JUNHO, deputados do Partido Colorado (o principal de oposição) apresentaram
ao plenário da Câmara de Deputados um pedido de impeachment do então presidente
Fernando Lugo “por mau desempenho de suas funções”, que foi aprovado por 73 votos
em um total de 80 deputados. O tema passou ao Senado que, no dia seguinte, anunciou
o seu veredito: 30 senadores, de um total de 45, decidiram destituir Lugo
por mau desempenho.
O
então presidente acatou a
sentença, declarou-se “apenas
mais um cidadão” e pediu calma
à população. Às 19:00 horas, o novo
presidente e até aquele momento vicepresidente, o liberal Federico Franco,
toma posse. Em menos de 36 horas
consumou-se um golpe de Estado no
Paraguai perpetrado pelo Parlamento.
Foi, claramente, um golpe de Estado.
Os parlamentares alteraram a vontade de
quem tem a soberania numa democracia: o povo. É o povo trabalhador quem
deve julgar e revogar o mandato de um
presidente, se assim decidir. O
impeachment de Lugo violou princípios
democráticos básicos, mas mesmo que
isso não tivesse ocorrido, a sentença já
estava decidida com antecedência.
Frederico Franco assumiu a presidência como resultado de um complô
reacionário, articulado por quatro setores
determinantes da grande burguesia no
Paraguai: os sindicatos de empresários,
a cúpula episcopal da Igreja Católica, os
meios empresariais de comunicação de
massas e as cúpulas dos partidos da
direita (tradicional e os novos), que têm
o controle completo do Congresso.
No Paraguai, os tradicionais partidos
de direita (Colorado e Liberal), soma42
ram-se aos novos, como os partidos
Pátria Querida (PPQ), União Nacional de
Cidadãos Éticos (UNACE) - do general
golpista Lino Oviedo - e o Partido Democrático Progressista (PDP), do ex-ministro
do Interior de Lugo, Rafael Filizzola.
O golpe relâmpago foi produto de um
amplo acordo conservador e reacionário.
A ação do corrupto Parlamento paraguaio
respondeu aos interesses dos grandes
capitalistas do país, sócios menores das
empresas transnacionais.
Tem um claro conteúdo reacionário
contra os interesses socioeconômicos e
políticos do povo trabalhador, isto é, o
regime burguês se endurece contra o
movimento de massas. Inaugura um
agravamento das condições políticas gerais para o povo trabalhador: maior
repressão; fortalecimento e maior impunidade para a repressão policial e
judicial; maior arbitrariedade nas medidas antipopulares, mais apoio e
favorecimento aos negócios patronais
além de ações contra o movimento de
massas e cortes nos direitos sociais e
econômicos ou nas conquistas jurídicas.
O que era o governo Lugo
Devemos partir do princípio. Lugo
chegou ao poder em abril de 2008 derro-
tando o principal partido da burguesia,
o Partido Colorado, que governou ininterruptamente por 61 anos. O povo
colocou todas suas esperanças e aspirações em um projeto político burguês e
pró-imperialista, apresentado com aparência “progressista”, porque teve o
apoio de amplos setores do movimento
de massas organizado e da maioria dos
partidos de esquerda.
Ele governou quatro anos com o apoio
de uma aliança entre o movimento social
e partidos de esquerda com um dos
principais partidos da burguesia paraguaia, o Partido Liberal Radical
Autêntico (o PLRA), um partido que acabou sendo fundamental para o golpe
traiçoeiro, a estocada final.
O governo Lugo teve um caráter de
conciliação de classes e, portanto, foi um
engano para a maioria empobrecida,
pois em uma sociedade de exploração e
opressão, que gera e reproduz classes
sociais, não se pode governar satisfazendo ao mesmo tempo as demandas de
empresários e operários, de latifundiários e sem terras, de ricos e pobres.
Não se pode estar “no centro” e ser uma
“dobradiça” entre a direita e a esquerda.
O governo Lugo era burguês no
sentido estrito da palavra porque, ao não
questionar a raiz e fonte de todos os
CORREIO INTERNACIONAL
PAÍSES
problemas - o poder capitalista - e ao
pretender diminuir “os excessos” do
sistema com algumas “regulações”,
colocou-se a serviço da minoria.
Mas foi um governo burguês “anormal”, porque grandes setores do povo
pobre, trabalhador e de organizações
populares, de camponeses e operárias,
assim como suas expressões políticas,
viram-no como “seu” governo, como um
governo popular ou de esquerda e, por
isso, apoiavam-no e assumem, até hoje,
sua defesa.
Também era “anormal” porque organismos sindicais e políticos da burguesia
sempre o atacaram e até se enfureceram
com ele, mas faziam isso para tê-lo no
cabresto, dando-lhe permanentemente a
linha política que deveria seguir.
O papel principal do governo de
conciliação de classes é manter a aplicação de políticas econômicas que
favoreçam a burguesia, evitando “agitações sociais” de maneira a garantir a
“paz social” que a burguesia necessita
para seguir com seus negócios e encher
seus cofres de dinheiro. Foi precisamente o que fez o governo Lugo/PLRA
durante esses quatro anos.
Causas do golpe
Um mês depois do golpe, já é indiscutível que suas causas são os interesses
econômicos da burguesia nacional e as
motivações políticas de classe ou de
setores de classe.
A causa central é que Lugo deixou,
paulatinamente, de ser útil à burguesia
e aos grandes proprietários na tarefa de
conter as lutas sociais,
fundamentalmente a
histórica luta
pela terra.
AGOSTO DE 2012
No Paraguai, 85% das terras estão nas
mãos de 3% dos proprietários do país.
Segundo a FAO, o Paraguai tem a maior
taxa do mundo de concentração de terras.
Lugo era cada vez menos eficaz na tarefa
de controlar o campesinato pobre, do qual
se desprendiam setores que começavam a
perder a paciência, como o grupo de Curuguaty, e que se mostravam dispostos a
“morrer matando” na luta e resistência
pela terra.
Em Curuguaty, 240 quilômetros a
noroeste da capital paraguaia, em 15 de
junho (uma semana antes do golpe), 11
camponeses que ocupavam terras devolutas e seis policiais, de um grupo maior
que tentava realizar uma invasão do local,
morreram em um enfrentamento.
O caso Curuguaty foi um detonante que
estimulou e acelerou o complô reacionário
que já vinha sendo tramado e amadurecia
devido a outros fatos que causavam crescente incômodo aos setores mais
reacionários e poderosos.
A preocupação da burguesia em relação
a Curuguaty era o fato de que, além de
Lugo não poder mais ser um dique efetivo
de contenção das massas, começavam a
morrer, em enfrentamentos, membros da
instituição armada encarregada de zelar
pelos seus interesses e garantir seus lucros.
Esse trabalho é confiado à Polícia e às
Forças Armadas.
Tornava-se inadmissível a situação de
instabilidade e imprevisibilidade para os
negócios da burguesia relativos à posse e
exploração da terra, fundamentais para a
economia capitalista do
país. Sendo a questão
agrária de caráter estrutural, o massacre de
Curuguaty fez soar o
alarme aos setores mais
raivosos e reacionários.
Enfrentamento com a direita
A maioria da esquerda paraguaia e
latino-americana caracteriza Lugo como
“progressista” e afirma que a causa do
golpe foi seu enfrentamento com os
privilégios dos ricos e do imperialismo.
O próprio Lugo explica os motivos do
golpe com tal afirmação.
Dizem que a direita tirou Lugo do
poder porque ele queria impulsionar a
reforma agrária contra os latifundiários,
enfrentar-se com as transnacionais ligadas ao agronegócio, opor-se à instalação
da transnacional Rio Tinto Alcan (empresa produtora de alumínio, de alto
consumo de energia elétrica) no Paraguai
e até que apoiava a luta dos camponeses
sem terras.
Nós sabemos que nada disso é
verdade. Na realidade, não se avançou
um só milímetro com a reforma agrária
e ele negociava um melhor preço de
energia elétrica para entregar a soberania
à Rio Tinto. A decisão de golpeá-lo deuse em um momento em que o respaldo
político das massas a Lugo estava em
aberto enfraquecimento, pois estas começavam a perceber que não era o “seu”
governo e sentiam na própria carne que
não havia melhoria na qualidade de suas
vidas.
Enquanto os empresários do agronegócio, graças à “paz social” garantida
por Lugo, obtiveram ganhos recordes
em 2010 e acumularam fortunas, o povo
trabalhador passa fome.
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PAÍSES
da direita – que culminou com o golpe
parlamentar – o movimento encontravase desmobilizado, desmoralizado e
confuso.
Coroamento de uma derrota
Atualmente, 32,4% da população é
pobre e 18% vivem na extrema pobreza
(menos de US$ 2 por dia). No campo, a
pobreza chega a 50%.
Em resumo, foi o próprio Lugo que preparou o terreno, facilitou e capitulou
vergonhosamente ao golpe da direita
reacionária paraguaia.
Favores à burguesia
Lugo e o conglomerado de partidos da
esquerda luguista – a Frente Guasu1 prestaram valiosos serviços à burguesia
e ao imperialismo, produtos da política
de conciliação de classes.
O maior e mais importante favor foi a
desmobilização das organizações populares e a cooptação da direção – social e
política – de amplos setores do movimento de massas, cumprindo com
grande eficiência o papel de conter o
movimento e conduzi-lo à via morta dos
corredores dos escritórios governamentais, por onde tentavam fazer chegar
suas reivindicações, que nunca foram
atendidas.
O neoliberalismo aplicado por Lugo,
com alta criminalização do movimento
social e repressão, além das promessas
não cumpridas e as nulas medidas socioeconômicas de mudanças reais para
o povo trabalhador, fez com que ele
perdesse o respaldo incondicional das
massas populares. Embora ele conseguisse manter o apoio político dos
dirigentes do movimento camponês e de
outros setores integrados ao aparato
estatal, era notória a queda do apoio
popular a seu governo.
Tamanha foi a eficácia do papel de
dique de contenção que, chegado o
momento de sair à luta contra a ofensiva
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O golpe parlamentar foi uma
derrota para o movimento de
massas. Na realidade, foi o coroamento de uma derrota já
iniciada durante o governo de Lugo, que cooptou os principais
dirigentes do movimento e desmobilizou as organizações populares.
Foi uma derrota incubada pela nefasta
política da conciliação com setores
burgueses “progressistas e democráticos” e com a adaptação ao regime
democrático burguês.
Durante seu governo, Lugo garantiu a
propriedade e o lucro recorde da burguesia e, em contrapartida, nenhuma
reivindicação histórica do movimento
sequer foi encaminhada. Nem ante esta
situação os dirigentes chamaram mobilizações de protesto, bloqueios de
estradas ou ocupações de terras, métodos de luta normalmente utilizados em
todos os governos anteriores.
E não houve resistência popular porque Lugo, em seus quase quatro anos
de governo, havia conseguido seu
objetivo central: confundir, desmobilizar e desmoralizar o movimento social.
Por isso, deve-se ressaltar de forma
permanente o trabalho essencial que
Lugo e o luguismo cumpriram e sua
responsabilidade neste golpe.
Continuidade
do papel desmobilizador
Uma vez consumado o golpe, a posição de Lugo e da Frente Guasu foi de
completa e vergonhosa capitulação.
Aceitaram o golpe da direita de forma
submissa e passiva.
Em sua ânsia de continuar no primeiro plano, denunciou Federico Franco
e seu governo como golpista, mas
também, para esvaziar qualquer tipo de
luta popular, insiste em que a resistência deve ser “pacifica” e “respeitosa
das leis” e convoca, no máximo, festivais de música pela “Democracia já”!
Lugo não tem nenhum interesse em
enfrentar o golpe com mobilização porque, como todos os demais setores
burgueses, quer evitar qualquer tipo de
instabilidade e desviar toda a crise para
as eleições, já convocadas para o dia 21
de abril de 2013.
A Frente Guasu também tem como
única mira as próximas eleições e
mantém sua proposta de reeditar a
aliança com Lugo, mas com este encabeçando a lista de senadores com o
mesmo programa de conciliação de
classes mantido durante os quatro anos
de seu governo.
Para que, então, sair às ruas para resistir, lutar e arriscar-se a enfrentar a
repressão de um governo golpista para
defender alguém que não defende a si
mesmo?
Esta política de Lugo e da Frente Guasu legitima o golpe parlamentar ao
mesmo tempo em que continua cumprindo um papel desmobilizador e
desmoralizador.
A tarefa do momento
A tarefa central no momento é reposicionar as organizações do movimento
de massas, retomando o caminho das
lutas e a necessária independência
política para enfrentar e derrotar o golpe
com mobilização unitária e coordenada
pelas organizações camponesas, sindicais, estudantis e populares.
O governo golpista já encontrou o seu
caminho para aprofundar as políticas de
fome, entreguistas e repressoras. Não
resta outra alternativa ao movimento, a
não ser resistir ao governo ilegítimo e
não permitir que a saída golpista se
fortaleça, pois vai terminar de liquidar
as diversas organizações do movimento
de massas que ainda resistem.
Também é uma tarefa central a
discussão de um balanço do governo de
conciliação de classes de Lugo e da
esquerda luguista, seu papel desmobilizador e sua contribuição para a
assimilação das organizações da classe
trabalhadora ao Estado e ao regime
burguês.
O primeiro passo para retomar o
caminho classista e de luta é fazer um
profundo balanço do significado do
governo Lugo para, assim, retificar o
rumo para a independência de classe,
pela única saída que a classe trabalhadora e o povo pobre têm: um governo
operário, camponês e popular que inicie
a edificação de um Paraguai socialista
revolucionário.
1 Frente Guasu – Frente Ampla. Guasu,
ou Guaçu, significa “grande” em
guarani.
CORREIO INTERNACIONAL

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