baixa - Avatares Antenados

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baixa - Avatares Antenados
Universidade Federal do Rio de Janeiro
A RELAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS EM ...Y NO SE LO TRAGÓ
LA TIERRA, DE TOMÁS RIVERA, E LA FRONTERA DE CRISTAL, DE CARLOS
FUENTES
Luciano Prado Da Silva
2015
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
A RELAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS EM ...Y NO SE LO TRAGÓ
LA TIERRA, DE TOMÁS RIVERA, E LA FRONTERA DE CRISTAL, DE CARLOS
FUENTES
Luciano Prado Da Silva
Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Letras
Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/Literaturas
Hispânicas).
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa
Impellizieri Luna Ferreira da Silva.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
CIP - Catalogação na Publicação
S586r
Silva, Luciano Prado da
A relação literariedade, imagem e imaginários
em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera,
e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes /
Luciano Prado da Silva. -- Rio de Janeiro, 2015.
224 f.
Orientadora: Cláudia Heloisa Impellizieri Luna
Ferreira da Silva.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós
Graduação em Letras Neolatinas, 2015.
1. Literariedade. 2. Imagem. 3. Imaginários.
4. Fronteira. 5. México-EUA. I. Silva, Cláudia
Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da, orient.
II. Título.
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os
dados fornecidos pelo(a) autor(a).
A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás
Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes
Luciano Prado da Silva
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva.
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/Literaturas Hispânicas).
Aprovada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Banca examinadora:
______________________________________________________________________
Professora Doutora Elena Cristina Palmero González
______________________________________________________________________
Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho
______________________________________________________________________
Professora Doutora Ana Cristina dos Santos
______________________________________________________________________
Professora Doutora Elda Firmo Braga
______________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Lizete dos Santos (Suplente)
______________________________________________________________________
Professora Doutora Carla de Figueiredo Portilho (Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Para Shirlei e João Gabriel, meus dois.
Para Genivaldo, Maria de Lourdes e toda
minha família, sempre.
À memória de Sonia, Sérgio, Paulo, Regina,
Laura, Denise e Jaílton.
Agradecimentos
A Claudia Luna, pela mão amiga todo o tempo, e pela imensa generosidade com que sempre
me tratou. Sem seu incentivo constante, eu não chegaria até aqui.
A Shirlei e João Gabriel, meus dois amores, porque me mantiveram de pé com seu amor
incondicional ao longo desses quatro anos de lutas.
A Elena Palmero, por reconhecer em mim algo de que sempre duvidei: minha capacidade e
competência para realizar trabalhos de grande monta. Agora eu sei quem sou.
A Reginaldo Aquino, por prontamente financiar minha primeira viagem para meu primeiro
congresso internacional, em UTEP, na fronteira entre El Paso (EUA) e Ciudad Juárez
(México).
A Adriana Ortega, pelo envio do e-mail que me informava do XVII Congresso de Literatura
Mexicana Contemporânea em El Paso (Texas).
A Ana Maria Aquino, por me guiar nos caminhos do conhecimento desde há muito tempo.
A Ana Cristina dos Santos, por ser inspiração para tantos alunos formados na UERJ.
A Alessandra Corrêa, por me incentivar quando eu já não acreditava. A Antonia Claudene,
Diogo de Hollanda e Gabriel Poeys.
A Vivian Pizzinga e Mônica Fadista, porque o clichê deixa de sê-lo quando a frase se volta
para vocês: “Sem vocês nada disso, nenhuma dessas linhas teria acontecido”. Muito obrigado
por tudo, sempre.
Ao meu grupo da UERJ: Giselle, Aldenise, Michele, Andreia, João, Aninha Paula, Anderson,
Carine, Caíque, Silvia, Karina, Helena, Marcelle e tantos outros.
A Maria Aparecida, madrinha de coração maior que o mundo.
A Viviana Gelado, pelo e-mail em que me dava ciência da preciosa, e fundamental, edição
argentina de ...y no se lo tragó la tierra.
A Sonia Torres, por me apresentar ao romance de Tomás Rivera.
A Monica Gomes e Nilciléia, amigas do mestrado e para toda a vida.
A Graciela Silva Rodríguez, a Luiza Elberg, Hermes Delano pelos livros enviados. E a todos
os amigos que fiz entre El Paso e Cd. Juárez.
A meus irmãos e a todos os meus entes paternos e maternos, pelo apoio, incentivo e exemplo
constante.
A todos os alunos dos quais senti muita falta em um ano de afastamento para a tese.
A Patrícia, Joana e Anderson, pela tradução. E aos meus amigos-irmãos de infância.
A Patrícia e Nádia, da Secretaria da Pós, pela paciência diante das muitas solicitações.
Cuando lleguemos, cuando lleguemos, ya, la mera verdad estoy
cansado de llegar. Es la misma cosa llegar que partir porque apenas
llegamos y… la mera verdad estoy cansado de llegar. Mejor debería
decir, cuando no lleguemos porque esa es la mera verdad. Nunca
llegamos.
(Tomás Rivera, 1971)
RESUMO
SILVA, Luciano Prado da. A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo
tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Rio de
Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Com a presente tese de doutorado, trabalho o tema da relação literariedade, imagem e
imaginários na abordagem dos conflitos de alteridade entre mexicanos, chicanos e
estadunidenses, à luz dos romances ...y no se lo tragó la tierra (1971), de Tomás Rivera
(1935-1984), e La frontera de cristal (1995), de Carlos Fuentes (1928-2012). Concedendo um
todo romanesco a contos que podem ser lidos e compreendidos isoladamente, ambas as obras
convergem na estruturação fragmentada de suas narrativas sobre a fronteira México-Estados
Unidos e as problemáticas advindas de quase duzentos anos de contato e choque, identitários
e culturais. Assim, a partir da leitura atenta dos corpora, meu objetivo é demonstrar as
estratégias literárias usadas pelos autores para, por meio de especificidades próprias da
literatura, estabelecerem contato com imaginários acerca das situações de conflito bifronteiriço suscitadas em seus enredos. Para tanto, a fundamentação teórica que norteia este
estudo, em termos gerais, passa por textos do formalismo russo (1914-1927), para
literaturidade, e de Gilbert Durand (2011) e Wolfgang Iser (1983), para as correlações entre
ficção, imagética e imaginário. No tangente a considerações acerca de literatura, cultura e
identidade chicanas, tomadas do romance de Rivera, colaboram os argumentos de Ramos e
Buenrostro (2012). Já no que toca a questões de identidade mexicana levadas à ordem do
literário por Fuentes, contribui diálogo entretecido para com as observações de Bartra (2000)
e García-García (2004). Após os estudos materializados nesta pesquisa de doutoramento,
minha constatação é a de que ambos os autores dos romances em tela, mais do que apontarem
para uma intencionalidade de composição com imaginários, deixam transparecer nas mostras
aqui trabalhadas algo de seus posicionamentos político-ideológicos. Tais posições é que
estreitam ligação, em maior ou menor medida, com imaginários prévios acerca dos eventos
potencializados pela linguagem literária impressa por ambos, cabendo também às instâncias
de recepção do leitor o caráter de permanência e agregação das imagens verbais produzidas ao
aspecto de realidade caro a um imaginário.
Palavras-chave: Literariedade. Imagem. Imaginários. Fronteira. México-EUA.
RESUMEN
SILVA, Luciano Prado da. A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y
no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Rio
de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Con la presente tesis de doctorado, trabajo el tema de la relación literariedad, imagen e
imaginarios en el abordaje de los conflictos de otredad entre mexicanos, chicanos y
estadounidenses, a la luz de las novelas ...y no se lo tragó la tierra (1971) de Tomás Rivera
(1935-1984) y La frontera de cristal (1995) de Carlos Fuentes (1928-2012). Al brindar un
todo novelesco a cuentos que se pueden leer y comprender aisladamente, ambas obras
coinciden en la estructuración fragmentada de sus narrativas sobre la frontera México-Estados
Unidos y las problemáticas que advienen de casi doscientos años de contacto y choque,
identitarios y culturales. Así que, a partir de la lectura atenta de los corpora, mi objetivo es
demostrar las estrategias literarias usadas por los autores para que, a través de especificidades
propias de la literatura, establezcan contacto con imaginarios acerca de las situaciones de
conflicto bi-fronterizo suscitadas en sus enredos. De este modo, en términos generales, la
fundamentación teórica que orienta este estudio pasa por textos del formalismo ruso (19141927), para literaturidad, y de Gilbert Durand (2011) y Wolfgang Iser (1983), para las
correlaciones entre ficción, lo imagético e imaginarios. Con relación a consideraciones, desde
la novela de Rivera, sobre literatura, cultura e identidad chicanas aportan los razonamientos
de Ramos y Buenrostro (2012). En lo que toca a cuestiones de identidad mexicana llevadas
hacia lo literario por Fuentes, contribuye diálogo entretejido para con las observaciones de
Bartra (2000) y García-García (2004). Tras los estudios que en esta investigación doctoral se
materializan, mi constatación es la de que ambos autores de las novelas en destaque, más allá
de que demuestren evidencia de intencionalidad de composición con imaginarios, dejan
traslucir en las muestras aquí trabajadas algo de sus posicionamientos político-ideológicos.
Dichas posiciones son las que responden por estrechar ligación, en mayor o menor grado, con
imaginarios anteriores respecto a los eventos potencializados por el lenguaje literario que
ambos imprimen a sus narrados. Cabe, además, a las instancias de recepción del lector el
carácter de permanencia y agregación, de las imágenes verbales que se producen, al aspecto
de realidad propio de un imaginario.
Palabras clave: Literariedad. Imagen. Imaginarios. Frontera. México-EE.UU.
ABSTRACT
SILVA, Luciano Prado da. A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y
no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Rio
de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
This doctoral thesis discusses the relationship of literariness, image and imaginary by
addressing conflicts of otherness among Mexicans, Chicanos and Americans. It is done in the
light of the novels "...y no se lo tragó la tierra" (1971), by Tomás Rivera (1935-1984), and
"La frontera de cristal" (1995), by Carlos Fuentes (1928-2012). Giving a whole Romanesque
perspective to the tales – which can be read and understood in isolation – both works
converge in the fragmented structure of their narratives on the US-Mexico border and the
problems resulting from almost two hundred years of cultural-identity contact and shock.
Thus, from the careful reading of the corpora, my goal is to demonstrate the literary strategies
used by the authors to establish contact with imaginary about the bi-border conflict situations
arising in their plots through specificities of literature. Therefore, in general terms, the
theoretical framework that guides this study goes through texts of Russian formalism (19141927) for literariness; and through texts of Gilbert Durand (2011) and Wolfgang Iser (1983)
for correlations among fiction, imagery and imaginary. In regard to considerations about
Chicanos literature, culture and identity from Rivera's novel, Ramos and Buenrostro (2012)
give their contribution. When it comes to Mexican identity issues brought to literary order by
Fuentes, Bartra's (2000) and García-García's (2004) observations collaborate to the dialogue.
After the studies realized for this doctoral research, my finding is that, more than suggesting a
composition of intentionality with imaginary, both authors of the novels analyzed show some
of their political and ideological positions. Such positions narrow down connections, to a
greater or lesser extent, with previous imaginary about events enhanced by printed literary
language for both. It is also due to the reader's reception instances the character of
permanence and aggregation of verbal images produced by dear aspect of reality to an
imaginary.
Keywords: Literariness. Image. Imaginary. Border. México-USA.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
pg. 11
1 A IMBRICAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS
pg. 20
1.1 Da noção de literariedade
pg. 20
1.2 Imagem e(m) literatura
pg. 34
1.3 Historicizar para pensar: o que é um imaginário?
pg. 59
2 ELIPSE E LACONISMO: A NARRATIVA EM INSTANTÂNEOS LITERÁRIOS DE ...Y
NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA
pg. 68
2.1 A elipse romanesca de Tomás Rivera
pg. 69
2.2 A ficção do menino narrador riverano: um problema ontológico (?)
pg. 85
2.3 Imaginária e imaginários de ...Tierra: “sacralidades” em questionamento
3 LA FRONTERA DE CRISTAL: COMPONDO (COM) IMAGINÁRIOS
pg. 103
pg. 123
3.1 Nas trampas de um narrador coiote, (des)caminhos para os imaginários
pg. 124
3.2 Metáfora ampla, o recurso de imagem na obra
pg. 140
3.3“Mex-(anglo)-chicanidades”
como
resultado
da
equação
“metáfora
ampla
=
imagem → metonímia = imaginários”
pg. 157
4 APROXIMAÇÕES FRONTEIRIÇAS: SIMILARIDADES E DIFERENÇAS
pg. 184
4.1 Da literariedade em ambas
pg. 184
4.2 Rivera: do implícito ao imagético. Fuentes e sua imagética explícita
pg. 192
4.3 Os imaginários de dois romances em contos
pg. 199
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pg. 206
BIBLIOGRAFIA
pg. 211
ANEXOS
pg. 221
11
INTRODUÇÃO
Na presente de tese de doutorado tomo como objeto de estudo os romances ... y no se
lo tragó la tierra (1971), do escritor chicano Tomás Rivera, e La frontera de cristal (1995),
do escritor mexicano Carlos Fuentes. Neste trabalho científico, busco dar continuidade aos
estudos de mestrado que levei a cabo. A saber: as conflituosas relações entre mexicanos,
chicanos e estadunidenses à luz do olhar literário. Se em minha pós-graduação strictu senso
(UFF, 2010) baseei meus estudos na supracitada obra de Fuentes, foi também durante esse
período que travei contato, sem a leitura, entretanto, com o referido romance de Tomás
Rivera.
La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, é uma obra constituída por nove contos1 que,
devido à grande força intrínseca a uni-los, acabam por compor um romance. Nesse livro,
contam-se as glórias e os infortúnios, a servidão e, ao mesmo passo, a grandeza das
personagens de uma família: os Barroso – especialmente de don Leonardo Barroso, uma
espécie de self-made man mexicano, rico, poderoso e influente. Para tanto, Fuentes utiliza
como pano de fundo os históricos laços de amor e ódio, de rancor e admiração entre dois
países de conturbadas relações fronteiriças: o México e os Estados Unidos.
Dessa forma, será utilizando esses vínculos históricos como base de sustentação para
seus contos tão intimamente interligados que outros personagens e enredos vão, pouco a
pouco, sendo apresentados ao leitor, inseridos, cada qual com seu devido destaque, no
mosaico de imagens de encontros e desencontros fronteiriços que o romance quer transmitir.
Em La frontera de cristal, destaco uma espécie de profusão da palavra literária, artifício
levado quase ao excesso em construções sintáticas repletas de sinonímias, repetições usadas
sem qualquer desejo de economia linguística na procura pela representação e transmissão das
imagens que se quer transferir ao leitor, imagens que encaminhem a imaginários sobre as
conflituosas relações fronteiriças entre mexicanos, chicanos e estadunidenses.
E isso ocorre com o leitor sendo atravessado para o outro lado de uma escrita ora
vibrante, pulsante e apaixonante, ora seca, crua e desalentadora; por vezes óbvia, mas
comovente; ora surpreendente, mas execrável; ora suave e poética, às vezes abjeta e
nauseante; uma verve léxica, adotada no uso de um traiçoeiro narrador (a que chamo de
narrador coiote), a qual chega a confundir-se com o próprio fluxo linguístico, profuso e
1
Importa ressaltar que tal proposta (conto=capítulo=ROMANCE) se vê explicitada já no subtítulo que
acompanha as primeiras edições da obra, tal qual no exemplar de 1997 da Editorial Alfaguarra, que faz parte da
bibliografia desta tese, onde se lê: La frontera de cristal – una novela en nueve cuentos.
12
sedutor de Fuentes em ensaios como os de seu El espejo enterrado (1992), cujos
antecedentes, não nos custa lembrar, advêm de uma homônima série televisiva (imagem)
escrita e narrada pelo escritor mexicano para a instituição acadêmica estadunidense
Smithsonian2.
Além disso, desenvolve-se o enredo de La frontera sob o trabalho de “criação” e o
contar das ações de personagens-tipo, ou, até mesmo, tipificados (entressacados de imagens
prévias, anteriores, quase-que engessadas no “real” em que se baseiam). Assim, como prismas
de um cristal aos cuidados de um narrador cambiante, tais personagens são o intento do autor
em representar na ficção o modo de vida do mexicano (repleto de tradições, contradições,
transculturações3 e mesclas multiculturais4), atormentado de um lado pela corrupção de seus
governos e do outro pela discriminação no “eldorado” estadunidense.
Para tanto, o gosto pelo desenrolar da palavra na narrativa de Fuentes se apega ao e se
vale do processo de singularização do narrado que faz através do uso de duas figuras de
linguagem essenciais para a apresentação de imagens que a obra quer emitir: a metonímia (na
qual, a parte representada na inserção do personagem-tipo busca, finge, em verdade, abarcar a
representação de um todo, contendo, dando margem a equações bastante reducionistas,
simplistas, simplificadoras); e a metáfora, observada desde seu uso em sentenças mais curtas,
frases, períodos, até o processo ao qual chamo de metáfora ampla, quando capítulos-contos
quase por completo servem de grandes metáforas, agindo como extensas metaforizações das
situações de alteridade com as quais estabelecem relação.
2
À época de apresentação do projeto para a imprensa estadunidense, em 1989, a Smithsonian agrupava um todo
de catorze museus em Washington (EUA), sendo considerada já naquele tempo, e até hoje (contando agora com
dezenove museus entre Washington, D.C. e Nova Iorque), um dos principais centros de investigação acadêmica
do mundo (Cf.: G. BASTERDA para El País, 1989, p. 1 e M. HENSON, 2013, p.115).
3
No presente trabalho, o termo “transculturação” será utilizado como um dos abrangentes às mesclas
multiculturais formadoras do povo mexicano desde tempos pré-colombianos. Vale lembrar, entretanto, que tal
verbete foi usado pela primeira vez pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), em seu ensaio “Del
fenómeno social de la ‘transculturación’ y de su importancia en Cuba” (1940). Cunhado para poder mais bem
explicar as diferentes fases do processo de transição de uma cultura a outra, o conceito, em Ortiz, implica em
potencial perda ou desarraigo de determinada cultura precedente, envolvidas estas nos entrechoques culturais a
que se viu forçada a viver a América Latina, a partir dos “descobrimentos”. Mais tarde, o termo é levado, ainda,
ao campo dos estudos literários pelo intelectual uruguaio Ángel Rama (1926-1983), em suas considerações sobre
a transculturação em autores da narrativa literária latino-americana. Não sendo esse meu enfoque aqui, remeto o
leitor ao artigo “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”, de Rama (1974 [2001]), e aos
capítulos 2 e 3 de minha dissertação de mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em La
frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010), onde o recorte ali adotado me permitiu desenvolver o tema.
4
Pelo termo “mesclas multiculturais”, aqui utilizado, entenda-se a pluralidade cultural que perpassa toda a
trajetória de formação do povo mexicano desde antes da chegada do invasor europeu. Nesse sentido, advirto que
meu uso dessa expressão (e de outras semelhantes) no presente trabalho não tem por finalidade maior
aproximação ao temário dos estudos multiculturais no campo da literatura. Para tanto, para aprofundamento do
assunto, remeto o leitor a, por exemplo, obras como Literatura e estudos culturais (FALE-UFMG), organizada
pelas intelectuais brasileiras Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenço de L. Reis (2000).
13
Tal como o romance de Fuentes acima apresentado, a obra de Tomás Rivera ...y no se
lo tragó la tierra, concebida vinte e seis anos antes, é um romance constituído de contos que
se entrelaçam, “entre-enredam-se” para dar forma a algo maior, um romance de tom mais
introspectivo, composto por catorze contos, catorze espécies de micro-narrativas. Neles, o
protagonista busca os caminhos de sua identidade reconstruindo histórias vividas e a ele
contadas durante doze meses de migração familiar, a maior parte do tempo, pelos campos de
cultivo da região sudoeste dos Estados Unidos. Neste enredo, não expositivo, repleto de
implícitos, ressalta-se a força do movimento chicano, dos trabalhadores migratórios e sua
tenacidade.
O termo “chicano” surge inicialmente para designar, de modo pejorativo, os
mexicanos e os “americanos” de origem mexicana que, após o Tratado de Guadalupe-Hidalgo
(produto do fim da guerra de fronteiras mexicano-americana, 1846-1848), passam a integrar a
nação estadunidense. Ao fim da guerra, os mexicanos que optassem por permanecer do lado
“anglo-americano” da fronteira teriam, teoricamente, direitos garantidos por lei. No entanto,
seguiu-se a isso que essas pessoas, doravante denominados chicanos (alusão depreciativa ao
inimigo mexicano facilmente derrotado), passaram a ser tratadas como uma classe de segunda
ordem, a ser explorada como uma classe obreira, servil, braçal.
A partir dos anos de 1960, entretanto, com a eclosão da luta pelos direitos civis nos
Estados Unidos, os braceiros chicanos se unem na luta por melhores salários, condições
dignas de vida e trabalho e igualdade de direitos. A partir de então, a manifestação com
grande apoio popular que viria a ser conhecida como Movimiento Chicano concede nova
semantização ao termo, agora assumidamente utilizado como marca de afirmação de uma
identidade, a qual muitas das vezes busca marcar sua alteridade tanto diante dos Estados
Unidos da América do Norte quanto ante os Estados Unidos Mexicanos. Importa ainda dizer
que, mesmo havendo uma produção literária desenvolvida pela comunidade mexicanoamericana desde a existência das primeiras disputas fronteiriças entre ambas as nações5,
somente a partir dos anos de 1960 tal produção passou a estar relacionada, vinculada aos
movimentos sócio-políticos. Nesse tocante, o professor universitário e escritor Tomás Rivera
passa a ser um dos nomes marcantes dessa nova vinculação, sempre preocupado em assumirse como um escritor chicano.
5
A esse respeito, remeto o leitor para o artigo “Apuntes para la historia de la literatura chicana”, de Lauro
Flores, publicado em América Latina: palavra, literatura e cultura (PIZARRO, Ana (org.), 1995, 3v. p. 581600).
14
...y no se lo tragó la tierra (cujos elos não são fáceis de serem unidos tão-somente em
uma primeira leitura) conta a história de um garoto de ascendência mexicana, radicado nos
Estados Unidos, criado, porém, dentro da cultura mexicana trazida por seus pais. Através de
um recurrido quase todo ele em solilóquio (há a presença de uma narração em terceira pessoa,
que só ao fim se revela como o mesmo protagonista que narra também em primeira pessoa)
pode o leitor enveredar-se pelas difíceis sendas de um tempo repleto de preconceitos sofridos
por conta da cultura e etnicidade de seu personagem principal. Pela narração nos são
fornecidos dados, como a Guerra da Coréia em “El rezo” e em outros capítulos, que
estabelecem um contexto sócio-histórico de finais dos anos de 1940 e início dos de 1950.
Porém, se em Fuentes o destaque está em parte por conta do que poderíamos chamar
de profusão da palavra literária, sua oposição estaria na economia linguística de Tomás Rivera
em ...y no se lo tragó la tierra. Ainda assim, há que se observar que no romance em contos
(catorze pequenas histórias aparentemente desatreladas; contudo, a união semântica da
primeira para com a última short story dá a circularidade romanesca que quase passa
despercebida na leitura das doze outras que entremeiam a obra) de 1971, do mencionado autor
chicano, o laconismo no narrado sugere e ativa, instiga a percepção do leitor/receptor a partir
do rumor que deixa a secura do narrar, a “ausência” de palavras a mais, ausência do que é
“excesso” na obra de Fuentes, a profusão linguístico-literária. Essa mesma habilidade com o
lacônico se assemelha à estilística de Juan Rulfo6, autor mexicano precedente ao chicano
Tomás Rivera no uso desse estilo. E a observação nos serve de remissão à importância do
trabalho empiricamente fotográfico realizado por Rulfo para a consecução de suas narrativas
literárias.
Assim, o elíptico em Rivera é também a orquestração, o manejo entre ficção, imagem
(“fotografia”) e memória (história?). Isso também o há na narrativa de Fuentes; entretanto, há
neste (em La frontera) todo um imaginário de guerra quase que perpetrado: à ficção, unem-se
ensaio e História, como não houvesse terminado a Guerra Mexicano-Americana de 1846 a
1848. Naquele (em ...y no se lo tragó), contrariamente, o imaginário de conflitos entre
mexicanos, chicanos e estadunidenses passa pelo viés psicológico, identitário de seu narrador
e os narradores outros que são invocados por suas lembranças. E as imagens levantadas
6
Semelhança trabalhada pelos críticos Julio Ramos e Gustavo Buenrostro em edição argentina de ... y no se lo
tragó la tierra (Ediciones Corregidor, 2012), a qual serve de apoio e diálogo teórico em parte da análise textual
da citada obra de T. Rivera, no capítulo a ela destinado na presente tese.
15
surgem de antigos cuentos7 rememorados também em estampas 8 elípticas que introduzem os
contos-capítulos da obra.
Dessa maneira, do acima exposto se extrai algo das estratégias utilizadas pelos autores
do corpus componentes da presente pesquisa até o encontro de suas obras para com os
imaginários acerca das conflituosas relações de alteridade sobre as quais se inclinam. Assim, a
partir do trabalho em conjunto com os dois romances, o tema de minha tese é a relação
literatura, imagem e imaginários na abordagem dos conflitos de alteridade entre mexicanos,
chicanos e anglo-americanos, tal como representados nos romances supracitados.
No tocante à originalidade deste trabalho, muitos estudos foram feitos sobre o
romance de Tomás Rivera. Porém, mesmo nos trabalhos mais recentes, não se observou a
comparação do referido romance com a obra de Carlos Fuentes, tampouco uma análise crítica
que abordasse a proposta de vínculo da narrativa de Rivera junto ao temário
literatura/imagem/imaginários. Acerca dos estudos sobre o romance de Fuentes, mesmo nos
artigos em que se trata da questão da simbólica na obra desse autor9, não se observaram
abordagens ao teor imagético de La frontera agindo com e na construção dos imaginários
sobre os quais debruço meus estudos nesta tese.
A relevância desta pesquisa está em pensar uma vez mais a literatura como fonte de
atuação e composição de imaginários sociais, agindo não somente a partir do real com o qual
se relaciona, mas, também, sobre, junto a este mesmo real que visa ficcionalizar. Está, ainda,
em buscar, através do estudo crítico de obras de autores que se debruçaram sobre o tema do
imaginário, estabelecer uma definição, ou conceituação teórica mais palpável do termo que
nos leva ao tema, para além do vocábulo “imaginário” qual uma palavra dada, quase um senso
comum.
As questões do sujeito migratório, e as consequências dos embates e entrecruzamentos
culturais que surgem desse processo são outro ponto relevante a colocar a literatura dos livros
em tela em consonância com importantes temas do homem contemporâneo, tal qual a
7
Cuento entra aqui não como o gênero literário escrito; mas, antes, como parte dos recuerdos, das histórias
passadas entre as gerações, contadas e reinventadas sob as asas da imaginação, mais propriamente ligados à
tradição oral, ao desenvolvimento de uma literatura oral. No caso de ...y no se lo tragó la tierra, e das raízes de
trabalhador rural de seu autor, um método de narrar que usava sua gente nos campos migratórios.
8
Do termo “estampa” dou ênfase não somente ao seu aspecto de imagem que acompanha ou introduz um texto;
mas, também, a sua sinonímia para com o termo anécdota, ou seja, um relato breve e ilustrativo ou simplesmente
usado como exemplo e/ou entretenimento. Em ...y no se lo tragó la tierra, as estampas (ou anécdotas) podem
servir tanto como imagem que abre o conto-capítulo que precede quanto serem micro narrativas que trazem em
si ressonâncias de um ou mais contos do todo da obra.
9
A este respeito, remeto o leitor para a obra de referência Formação da simbólica erótica na obra de Carlos
Fuentes, de 1995, onde a intelectual brasileira Maria Aparecida da Silva trabalha com pertinência a abordagem
do simbólico em Fuentes.
16
migração como forma de sobrevivência em movimento, geradora de relações de
subalternidade e, em contrapartida, atos de resistência carregados de contradições, dualidades,
ambivalências e, por conseguinte, crises identitárias, aspectos (também refletidos na escrita,
composição e representação levada a cabo pelo corpus escolhido) próprios do processo de
choques entre culturas, das relações interculturais, talvez atualmente ainda mais agudos em
regiões de fronteira.
Ademais, a comparação entre ambos os romances (e os resultados dela obtidos)
permite não apenas a simples aproximação entre as literaturas chicana, mexicana e
estadunidense10; mas, sobretudo, o papel relevante de propor o pensar, refletir e entender
academicamente a literatura chicana como um verdadeiro sistema literário; e, não, como um
mero, um reles subsistema de produção literária orbitando entre e dependente de dois outros
sistemas literários mais “fortes”: o mexicano e o estadunidense.
Com relação ao problema principal deste trabalho, ele se constituiu em identificar de
que modo o processo migratório no entorno fronteiriço que compartem México e Estados
Unidos e as problemáticas relações entre os sujeitos envolvidos em tal processo são
representados nas obras escolhidas. E de que modo tal tratamento literário trabalha com
imaginários precedentes sobre esses choques interculturais, além de agir na perpetuação e
renovação desses mesmos imaginários. A partir do reconhecimento deste problema principal,
a ele agregadas se veem as seguintes questões: a) de que modo se desenvolve a relação entre
literatura, imagem e imaginários nas obras em relevo? b) que elementos do imaginário sobre
as conflituosas relações de alteridade entre mexicanos e estadunidenses estão presentes em
ambas as obras? Como se dá, nas narrativas em questão, a relação com estes imaginários? c)
que estratégias literárias são utilizadas por cada autor na inserção de seus posicionamentos
político-ideológicos nos romances ora estudados? E, por fim: d) qual o ponto-chave
observado na comparação de ambas as obras? Qual a relação estabelecida entre ambos os
romances e o imaginário sobre os conflitos de alteridade entre mexicanos e estadunidenses?
10
Sobre tal aproximação, remeto o leitor à tese Contextualización de la obra de Tomás Rivera, de Ignacio J.
Esteban Giner (2005, p.73-4-5-6-7), na qual o autor menciona a influência e comparação estilística e formal que
exerceriam no romance de Rivera autores que vão desde o mexicano Juan Rulfo, ao chicano Américo Paredes,
passando ainda pelos norte-americanos William Faulkner, John Steinbeck, Sherwood Anderson e Ernest
Hemingway. No entanto, a meu ver, ao escrever também que o romance de Tomás Rivera encarna perfeitamente
o modelo de Mexicanamerican literature, J. Esteban, ainda que bem intencionado pela utilização de um termo
definidor sem o uso de espaços nem hífens, parece-me cair na armadilha de relegar-se a literatura chicana ao
velho esquema de subsistema (ou mesmo modelo) literário relegado a vagar indeciso (inferior que seria),
“perdido” entre dois outros sistemas (ou modelos) “maiores”, devidamente explicitados no vocábulo que
antecede o inglês literature.
17
A premissa sobre a qual iniciei meus trabalhos se estrutura em torno do entendimento de
que, em um primeiro momento, o elo comum que possibilita ser identificada a relação
suscitada (literatura/imagem/imaginários) a partir da análise comparativa do corpus é a
temática por sobre a qual ambas as obras debruçam seus enredos: a migração na região de
confluência mexicano-estadunidense.
Isto posto, a hipótese da qual parti é a de que ambos os autores relacionam (de forma
mais explícita em Fuentes e mais implícita em Rivera) ficção e a inserção de dados da História
que compartilham entre si México e Estados Unidos, com vistas a rivalizar e imbricar em um
segundo momento memória e olvido, produto do embate entre os sujeitos das conturbadas
relações mexicano-estadunidenses. Para tanto, fincam apelo às raízes da oralidade, buscando
representá-la na escrita. Tal oralidade estará materializada, representada nos cuentos (forma que
se “transforma” em capítulos nestes romances) que são passados de geração em geração. Assim,
seria o caráter de permanência nas histórias contadas entre as gerações e a força imagética dessas
pequenas histórias que auxiliariam na inserção dos imaginários a que estão presos os personagens
desses enredos, sujeitos fragmentados em narrativas que partem do trecho para a busca do todo.
Deste modo, a literatura, criadora também de imagens, coadunar-se-ia a imaginários já
existentes sobre as conflituosas relações entre mexicanos, chicanos e anglo-americanos e, ainda,
serviria para a perpetuação, renovação e recriação destes mesmos imaginários sociais. Tais
cuentos, estampas e recuentos11 (formas de composição privilegiadas nos capítulos-contos
dos dois romances) evocam imagens formadoras de algo maior, uma espécie de imaginário
coletivo sobre as colisões interculturais entre mexicanos, chicanos e anglo-americanos. Mais
que isso, a partir da busca de apreensão e representação do real vivido acerca dessa situação
de embate, a literatura (nas observações levantadas da interpretação atenta dos corpora)
estabelece também seu lugar de importância na renovação dos imaginários acerca dos
conflitos de alteridade ora discutidos. Assim, observa-se que a literatura seguiria, passado
muito tempo desde o auge de seu poder de ação sobre os imaginários nacionais (operando
através de estratégias estético-estilísticas, conforme observado no estudo dos romances em
destaque), com poder para agir junto com e junto ao real sobre o qual ancora sua apreensão e
representação, agregando-se à criação de imaginários com força metonímica de “realidade”12.
11
Por recuentos, podem ser entendidas as histórias, os cuentos que, passados de geração em geração pela
oralidade, passam também pelo viés da imaginação de seus receptores, que os recontam, recriam, reinventam,
omitindo ou acrescentando-lhes novas ocorrências, agentes que são (ou serão) de características próprias da
transmissão da tradição dos narrados orais.
12
Nesse tocante, parece-me bastante propícia a observação da célebre hispanista brasileira Bella Jozef (2006,
p.166), a qual, sobre a relação possível entre real e ficção, escreveu que “a realidade, no sentido do artista, é
sempre algo criado, embora o real empírico constitua um referente do qual o autor se serve para sua criação”.
18
Direcionado pela hipótese acima delineada, meu objetivo geral é estabelecer uma
reflexão sobre as estratégias literárias levadas a cabo por Fuentes e Rivera para re(a)presentar,
agir com e atuar sobre imaginários que a literatura ajuda a compor, atuando junto ao real
apreendido das relações correspondentes ao entrecruzamento cultural mexicano-estadunidense. A
este objetivo geral se agregam os seguintes objetivos específicos: a) demonstrar como se
desenvolve a relação literatura, imagem e imaginários nas obras em epígrafe; b) descrever que
elementos do imaginário acerca das conflituosas relações de alteridade entre mexicanos, chicanos
e estadunidenses estão presentes em ambas as obras; c) apresentar as estratégias literárias
utilizadas por cada autor na inserção de seus posicionamentos político-pedagógicos nos romances
estudados; d) demonstrar o ponto chave a permitir a comparação entre ambas as obras. Evidenciar
que relação se estabelece entre ambos os romances e o imaginário sobre os conflitos de alteridade
entre mexicanos e estadunidenses.
A metodologia utilizada parte de pesquisa e análise bibliográfica dos dados coletados.
A pesquisa se embasa em textos literários, textos críticos sobre as temáticas levantadas e de
crítica literária e cultural. Por conseguinte, a investigação científica em questão se caracteriza
por ser uma análise qualitativa, documental e de caráter bibliográfico e comparativista. No
que toca a este aspecto comparatista da pesquisa, agregou valor à metodologia adotada minha
participação em congresso literário realizado entre as cidades que formam espaço privilegiado
nos romances estudados: El Paso (EUA) e Juárez (México). Dessa maneira, ressalto que
minhas participações nos XVII e XVIII Congreso de Literatura Mexicana Contemporánea em
The University of Texas at El Paso (EUA), em março de 2012 e 2013, respectivamente,
terminaram por proporcionar acesso quase direto a obras importantes para a referenciação
bibliográfica de meu estudo.
A partir de todo o material colhido, estabeleci um quadro teórico que entrasse em diálogo
com os argumentos desenvolvidos ao longo dos quatro capítulos que deram forma a esta tese de
doutoramento. Assim, no primeiro capítulo (talvez o mais rebuscado em função de estarem nele
os principais traços definidores da tese) a fundamentação teórica sobre a imbricação
literariedade, imagem e imaginários contou, em linhas gerais, com os trabalhos de: formalistas
russos (1914-1927), Iser (1983), Lima (2010, 2011) e Durand (2011). No segundo, a
abordagem acerca de literatura e identidade chicanas a partir da análise textual de ...y no se lo
tragó la tierra passa, principalmente, pela argumentação de Ramos e Buenrostro (2012).
No terceiro capítulo, a partir da interpretação voltada para o romance de Fuentes,
discuto, em especial, a questão da mexicanidade suscitada pelo autor em sua representação
narrativa. Nesse aspecto, destaco o diálogo estabelecido para com as observações de Bartra
19
(2000) e García-García (2004). Já o quarto, e último, capítulo da presente tese de
doutoramento se constitui em uma seção menor que as anteriores por trazer enfim
compactados os argumentos expostos em separado até então, razão pela qual retornam os
componentes de toda minha fundamentação teórica, agora em posição de troca ainda mais
entretecida.
Por fim, para além da originalidade na escolha de comparação das obras em tela,
distantes no tempo de sua publicação (1971 para T. Rivera e 1995 para C. Fuentes) e no
cânone em que estão inseridos seus autores (apesar da proximidade cultural relativa chicanomexicana), acredito, com a realização do presente estudo, poder contribuir para novas leituras
acerca do temário das relações de alteridade entre mexicanos, chicanos e estadunidenses e seu
trato ficcional dentro das literaturas hispânicas.
20
1 A IMBRICAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS
Neste capítulo de abertura, apresento boa parte da fundamentação teórica norteadora
do presente trabalho de doutorado. Aqui, irei da importância da noção formalista de
literariedade junto à questão da imagem na literatura até uma abordagem algo mais
aprofundada do que chamo grande amálgama IMAGEM e daí para a relação direta desse todo
com imaginários que podem advir da leitura de obras literárias.
No tangente de forma mais estrita ao imaginário, apresentarei no terceiro tópico deste
primeiro segmento meu entendimento de que o imaginário está vinculado ao âmbito das
faculdades humanas e de que sua tomada indômita desde a literatura dependerá, também, das
instâncias de cognição e receptivas do leitor. Entendo, dessa forma, que este primeiro capítulo
é base para o desenvolvimento das análises textuais dos capítulos subsequentes. Ao número 1,
então.
1.1 Da noção de literariedade
A abordagem teórica em que baseio os argumentos sobre literariedade na presente
pesquisa toma em consideração o teor de inovação usado nas narrativas das duas obras em
relevo. Dos dois livros ora analisados, há que se destacar a observação de que ambos são
romances que compõem seu corpo, seu constructo, a partir de uma operação narrativa a qual
poderíamos denominar como um “entre-mesclar” de contos. Isto implica dizer que fazem de
contos os capítulos que enredam sua trama maior, ao mesmo passo em que também fazem de
capítulos contos os quais podem ser lidos e compreendidos isoladamente. É certo que tal
constatação, porém, não tem sua explicação esgotada de modo tão simplista, necessitando,
para tanto, maior atenção, um desmembramento mais analítico. Sem desejar esgotar
abruptamente debate tão promissor, informo que essa necessária discussão encontrará hora e
vez mais adiante, nos capítulos em que se desenvolve de modo mais específico a análise sobre
o corpus escolhido. Por ora, a intenção é abrir caminho para justificar o entorno teórico sobre
o qual se trabalha a literatura, já que a relação proposta se estabelece iniciando-se de preceitos
literários em destaque, para, só depois, apontar e demonstrar seu vínculo possível para com a
imagem e a formação e perpetuação de imaginários, respeitando-se os limites do recorte
proposto a partir da leitura interpretativa dos romances em tela.
Isto posto, partindo-se do reconhecimento de arrojo na estética e na construção do
corpus escolhido, onde ganham importância para o todo das obras as correspondências fundo
21
e forma, forma e conteúdo, reconhece-se encontro dessas operações discursivo-narrativoliterárias com preceitos (noções) levantados e defendidos pelos formalistas russos, em suas
considerações para a formação de uma nova crítica literária em princípios do século XX.
O grupo que viria a ser conhecido como formalistas russos nasce em 1917 das
atividades da OPOIAZ (Óbchchestvo por izutchéniu poetítcheskovo iaziká – Associação para
o Estudo da Linguagem Poética), cooperando ativamente com os esforços lançados pelo
Círculo Linguístico de Moscou, este fundado no inverno de 1914-1915 por estudantes da
Universidade de Moscou que objetivavam promover estudos sobre poética e linguística. De
um modo geral, pode-se dizer que a OPOIAZ não somente colabora, mas que também avança
sobre os caminhos iniciados pelo Círculo. Contando com nomes que viriam a se destacar nos
estudos da ciência da literatura (dentre os quais figuraram Boris Eikhenbaum, Viktor
Chklovski, Roman Jakobson, Viktor Jirmunski, Óssip Brik, Iuri Tynianov, Boris
Tomachevski, Vladimir Propp, Viktor Vinogradov, entre outros), os jovens que compuseram
a OPOIAZ tinham por objeto expor sua oposição à importância dada para os muitos campos
da investigação científica extraliterária, aquela que se aportava e se detinha demasiado nos
ramos de ciências outras, quer fossem essas, por exemplo, a história, a sociologia ou mesmo a
psicologia ou a filosofia.
Durante muito tempo, tal conduta opositiva fez com que boa parte do que havia de
novo nos moldes do que muitos chamaram de formalismo fosse reduzido a uma possível
tentativa de isolamento total da obra literária, alienando-a por completo, a título de exemplo,
da História que a produz, ou, mais ainda, dentro da qual ela se produz. No entanto, a busca
formalista era antes partir da análise estrita do texto literário (de sua estética, de sua forma,
sua composição estrutural) em direção a prováveis e conseguintes correspondências advindas
desse ato fundamental, do que propriamente excluir da pesquisa científica o estudo histórico
da linguagem e sua aplicação na literatura. Ao contrário, o “método formal” nunca deixou,
inclusive, de acentuar o valor que tem para a ciência literária a relação dialética entre
sincronia e diacronia, a correspondência entre os fatos da linguagem e seu acontecimento, sua
correlação com o tempo histórico.
No entanto, haja vista que se toca aqui no estudo das particularidades, na abordagem
sobre “os traços específicos da obra literária”, conforme apontava Eikhenbaum ([1925] 1973,
p. 15), entendo como relevante elencar, descrever e desmembrar alguns desses traços
característicos levantados pelo formalismo russo, com atenção especial àqueles que mais bem
se integram e complementam a análise dos dois romances-foco do presente trabalho. Dentre
22
tais aspectos, destaco, pela ligação que têm entre si, as noções de forma (em contraste com a
noção de fundo), literariedade, estranhamento e a de construção.
É justamente a noção de forma (aquela cujo significante é aproveitado pelos que
buscaram nominar, e (de)limitar a amplitude dos trabalhos dos formalistas) talvez a teorização
de mais difícil tangência, dada a porosidade do tema. Discutir uma suposta correlação entre
forma e fundo era ponto pacífico entre os que fizeram parte da OPOIAZ, isso porque seus
integrantes coincidiam no entendimento de que a noção de forma devia distanciar-se da
concepção desta como uma espécie de invólucro, como uma espécie de recipiente em que se
deposita o líquido (o conteúdo), um (seu) fundo.
Para os formalistas, “os fatos artísticos testemunhavam que a differentia specifica da
arte não se exprimia através dos elementos que constituem a obra, mas através da utilização
particular que se faz deles” (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13). Dessa maneira, apontavam
esses estudiosos para a compreensão de que a forma não precisava ater-se a nenhuma noção
que a ‘complementasse’, não necessitando, portanto, de nenhuma correlação externa; como
conseguinte, tem-se que a noção de forma adquire então, segundo os pressupostos formalistas,
novo sentido, “não é mais um invólucro, mas uma integridade dinâmica” (EIKHENBAUM,
[1925] 1973, p.13). Tal dinamismo permitiria à forma seu próprio desenvolvimento, através
do qual se evidenciam elementos ligados não por um sinal de adição ou igualdade, mas, antes,
por um sentido, um sinal, um movimento dinâmico de correlação (não uma correlação externa
e, sim, interna) e integração.
Ainda que tais argumentos apenas iniciem uma discussão verdadeiramente profusa,
essas linhas iniciais sobre o assunto encontrarão eco na abordagem crítica do corpus que
compõem a presente pesquisa científica, principalmente no que tange ao uso particular de
“elementos outros” que não capítulos na composição, na formação de dois romances em que a
utilização do “elemento conto” não prejudica a assunção, a preservação da forma romance,
algo que, a meu ver, reitera, torna a encontrar respaldo na questão apresentada há pouco: o
dinamismo da forma.
Como coloquei no princípio desse tópico, existe muito de arenoso na questão da noção
de forma, e os formalistas não se furtaram em buscar aprofundar a dialética que iniciavam
com suas ponderações. No entanto, sua insistência em discutir a questão da forma na obra
literária era antes um intento de chamar a atenção para a estimação excessiva desta noção
usada como contrapartida, contraposição ao seu fundo, seu conteúdo. Pondo-a em discussão,
os formalistas propunham, antes de simplificar e elucidar o problema levantado, uma
23
ressignificação da forma, através da qual fosse possível analisar a forma compreendida como
o seu próprio fundo/conteúdo e, não, como uma noção associada a este.
Para tanto, havia-se que passar pela sensação da forma, quer dizer, havia-se que sentila, experimentá-la, percebê-la enquanto arte, enquanto “palavra” artística, porquanto a
impossibilidade dessas ações sem a transformação, sem a transposição da palavra habitual,
quotidiana em forma artística. Para além de antepor interpretação mais detida, cabe o adendo
de que tal operação é passível de ser notada em ambos os romances aqui estudados, nos quais
transparece, por exemplo, ademais de procedimentos outros que importarão para a pesquisa, a
busca da representação de uma pretensa oralidade (talvez algo da palavra quotidiana de que
falavam nossos formalistas) por intermédio dos artifícios e procedimentos que permite a obra
artística, o gênero/a forma romance quando da utilização, por exemplo, do recurso da
repetição persistente de termos e expressões de suposto cunho mais popular, nas falas e em
diálogos de personagens que buscam caracterizar, mimetizar, metonimizar características,
traços das gentes mais simples captadas do real que se quer apreendido pela lente de seus
caracterizadores, em nosso caso, os escritores Carlos Fuentes e Tomás Rivera.
Para buscar deixar mais claro, procuremos pensar que, no caso mencionado, a arte é
necessária para o afastamento do comum, do cotidiano, o qual, retomado pelo viés da escrita
literária e seus atributos e artifícios próprios, passa a ser passível de percepção, nova
apreensão e, portanto, provável reinterpretação, ressignificação. Ou seja, através de
procedimentos artísticos, experimentar o que antes talvez passasse sem a devida detenção (a
detenção para a qual querem chamar a atenção os autores) aos olhos (e ouvidos).
Com o anterior exposto, sobressai, evidencia-se que o intento formalista não era a
simplificação da noção de forma, mas o afastamento do caráter abstrato que lhe era atribuído
até então, muito devido ao fato da justaposição para com a também confusa utilização do
termo fundo, ambos usados como “correlatos” quase que estanques. A procura era pela
concretização da forma, sua aproximação com o fato literário, algo a dar conta de que seus
principais esforços se direcionavam menos para a procura obsessiva de um método particular
do que para, em verdade sua real intenção, o estabelecimento da tese segundo a qual nos
estudos de literatura deve ser privilegiada a abordagem dos aspectos específicos da obra
literária (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.15). Com isso, podemos inferir que
intimamente ligada à noção de forma se encontra a noção de literariedade, aquela que trata do
que há de especificidade na obra literária, ou seja, o que lhe confere contornos próprios,
distintos dos de outras áreas do saber.
24
Quando Eikhenbaum ([1925] 1973, p. 4) afirma não existir uma ciência completa, pois
“a ciência vive enquanto supera os erros, e não enquanto estabelece verdades”, é preciso que
nos atenhamos ao fato de que esse seu artigo, de onde se extrai a frase acima, entra já como
uma quase defesa das distorções a que se viram expostos os integrantes da OPOIAZ no
alcance de seus pensamentos sobre a ciência literária. Assim sendo, a frase visa reafirmar que
o intento desses jovens cientistas literários de 1914 a 1917 não era o estabelecimento de um
método, de uma metodologia formal imutável. Em verdade, a grande preocupação dos jovens
“formalistas” era para com o devido destaque às características intrínsecas de uma obra de
literatura. Tal preocupação perpassa toda a trajetória formalista e é estrategicamente retomada
e reiterada por Eikhenbaum, quem, nesse mesmo texto de 1925, “A teoria do ‘método
formal’”, faz um apanhado das teorizações, por exemplo, de membros como V. Chklovski e
V. Jirmunski para reforçar que o principal objetivo da corrente de estudos da forma na
literatura
não é o formalismo enquanto teoria estética, nem uma metodologia representando
um sistema científico definido, mas o desejo de criar uma ciência literária autônoma
a partir das qualidades intrínsecas do material literário. Nosso único objetivo é a
consciência teórica dos fatos que se destacam na arte literária enquanto tal
(EIKHENBAUM, [1925] 1973, p. 5).
A fixação de suas posições era algo merecedor de relevo, algo que importava ser
demarcado pela repetição. Dessa forma, mais adiante, o teórico reforça seu discurso ao
afirmar: “Estabelecíamos e estabelecemos ainda como afirmação fundamental que o objeto da
ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários,
distinguindo-os de qualquer outra matéria” (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p. 8). Ainda
assim, apresentados e desenvolvidos seus argumentos, o referido autor não se furta de, uma
vez mais, após elencados e devidamente abordados os trabalhos de seus contemporâneos,
reapresentar o cerne da questão “formalista”, de novo a necessidade de detenção daquela que,
apoiada à busca de um novo sentido da noção de forma, talvez fosse a marca maior, quem
sabe a principal bandeira do movimento:
A partir dos estudos citados, é possível darmo-nos conta de que os principais
esforços dos formalistas não se conduziam para o estudo da chamada forma, nem
para a construção de um método particular, mas de que eles visavam estabelecer a
tese segundo a qual devemos estudar os traços específicos da arte literária
(EIKHENBAUM, [1925] 1973, p. 15).
No entanto, de todos os argumentos retomados, talvez o mais expressivo seja o de
outro coetâneo do grupo, Roman Jakobson, pois é dele o termo que daria contornos mais
25
significativos à proposta de uma noção que melhor apresentasse, mais bem definisse um
caráter específico, próprio, o das particularidades inerentes à obra literária. Extrai-se de
Jakobson o célebre trecho de sua Noviéichaia rúskaia poesia – nabrossok piérvi (A novíssima
poesia russa – esboço primeiro), de 1919 (obra publicada em 1921), que terminaria servindo
como espécie de manifesto do movimento seu e de seus colegas:
A poesia é linguagem em sua função estética. (...) Deste modo, o objeto do estudo
literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada
obra uma obra literária (...). Se o estudo da literatura quer tornar-se uma ciência, ele
deve reconhecer o “processo” como seu único “herói” (JAKOBSON, [1919] 1921,
pág. 11).
Pode-se dizer ser o termo cunhado por Jakobson, sua literaturnost (literaturidade,
literariedade), verbete responsável por condensar o que entendia o pensamento formalista
como particularidades intrínsecas do texto literário, da obra artística literária, o que a
diferenciava da vida quotidiana que por vezes buscava representar e, ademais, diferenciava-a
também de outras áreas do saber. Para os formalistas, talvez estivesse na noção de
literariedade a questão sine qua non, primordial, base sobre a qual deveria partir a ciência que
se dispusesse a debruçar-se sobre os estudos de literatura.
Essa literariedade integra algo das estratégias utilizadas pelos autores do corpus
componentes da presente pesquisa até o encontro de suas obras com os imaginários acerca das
conflituosas relações de alteridade sobre as quais se inclinam. Porém, antes de avançar em
direção a seu desenvolvimento nos romances de C. Fuentes e T. Rivera, para melhor
compreendê-la, é preciso desvelar algo mais, destrinchar um pouco mais essa noção de
literariedade. Para tanto, une-se a esta a noção de estranhamento, a noção do efeito de
estranheza, preponderante para a identificação, para a percepção da literaturnost de um texto
de literatura.
Para abarcar o difícil campo da noção do efeito de estranheza, é preciso tocar
primeiramente em um dos pontos de partida das colocações formalistas. A saber: muito do
que postulavam os jovens do Círculo de Moscou e também da OPOIAZ tinha a ver com a
oposição de suas ideias diante da abordagem da imagem, da relevância da imagem para e na
literatura; ou pelo menos no modo como era alçada a um status de importância máxima a
percepção do uso da imagem para o entendimento da literatura, nos estudos que, até então,
apresentavam-se como científicos (e preponderantes) nessa área do saber.
No tocante a essa questão, vale agregar que, ao proporem novas abordagens teóricas
nos estudos da poética (e aqui se mesclam e se confundem os termos poética, arte e literatura)
26
e da linguística, os formalistas, análogos historicamente ao futurismo (Cf. EIKHENBAUM,
[1925] 1973, p.6), apresentam-se como opositores abertos da escola que, pouco a pouco
passava a perder muito do espaço e predomínio conquistados até então: o simbolismo russo e
a teoria que se desenvolveu ao redor desse estilo poético. A esse respeito, um dos nomes mais
confrontados, mais questionados é o do teórico literário Potebnia 13, defensor da associação
imediata e inequívoca entre arte, entre a poética, a literatura e o pensamento por imagens.
Em “A arte como procedimento”
14
(1917), o formalista Viktor Chklovski parte do
axioma simbolista “A arte é pensar por imagens” e da frase “Não existe arte e particularmente
poesia sem imagem” (POTEBNIA, 1905, p.83) para criticar tal associação. Segundo
Chklovski, tais “argumentos” poderiam ser reduzidos a uma espécie de equação das mais
simplórias, contida em termos onde teríamos “a poesia = a imagem”. Ainda para V.
Chklovski, esta “equação”
[s]erviu de fundamento a toda teoria que afirma que a imagem = o símbolo, = a
faculdade de a imagem tornar-se um predicado constante para sujeitos diferentes.
Esta conclusão seduziu os simbolistas (...) pela afinidade com as suas ideias, e se
acha na base da teoria simbolista (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 41).
O que por vezes se confunde é o fato de que a crítica formalista não foi direcionada
propriamente à questão da imagem na literatura, mas, sim, ao modo como tal questão era
colocada pelo movimento e pela teoria simbolistas. A crítica está no resumir arte, literatura,
poesia
em
imagem;
está,
até
mesmo,
na
simplificação
simbolista
da
relação
imagem/arte/literatura. Tal simplificação exagerada depõe contra o papel da imagem em sua
correlação com a literatura, simplismo que se deixa evidenciar nos apontamentos de Potebnia,
já seja quando este escreve que “a imagem é muito mais simples e muito mais clara do que
aquilo que ela explica” (POTEBNIA, 1905, p. 314), ou mesmo quando expõe opinião
segundo a qual a imagem “deve ser para nós mais familiar do que aquilo que ela explica”
(POTEBNIA, 1905, p. 291).
Eis, assim, uma das bases da cisão entre o pensamento formalista e o pensamento
simbolista a partir das considerações de Potebnia. Para V. Chklovski, e como uma
representação do pensamento formalista, a imagem a partir das observações de Potebnia tem
status totalizador no estudo e no desenvolvimento artístico da poética levados a cabo pelo
13
Aleksandr Potebnia (1835-1891). As proposições apresentadas pelo ucraniano Potebnia viriam a influenciar
não somente a poesia simbolista russa, mas, também, toda a crítica e busca de teorização literária que se
desenvolveu ao redor do simbolismo russo.
14
Também traduzido como “A arte como processo”, derivando das possibilidades de tradução para o termo russo
priom.
27
simbolismo russo, reduzindo ao extremo a amplidão de possibilidades advindas do estudo
mais atento do poema. Deste modo, partindo do poema para um todo literário, à relevância da
imagem levantada por Potebnia o formalismo opõe e apresenta o estudo do som nos versos,
na rima, na métrica, na poética. No entanto, ainda assim, resulta de interesse para a presente
pesquisa a inversão proposta pelo formalismo, evidenciada desde Chklovski.
Para o formalismo, a definição de Potebnia quanto à imagem na literatura, esse
simplismo, dá-se porque se a vincula à linguagem poética, quando, em verdade, tal
familiarização deveria ater-se tão somente à linguagem quotidiana. E é justo na oposição
linguagem quotidiana x linguagem poética que entra em cena a inversão de papéis na relação
imagem/literatura defendida pelos formalistas. Por conseguinte, é aqui que entra em jogo a
questão do estranhamento de que falará Viktor Chklovski, vinculada ao novo entendimento do
papel da imagem como um correlato da linguagem poética e, não, da cotidiana.
O termo ostranenie (остранение) utilizado por V. Chklovski para designar o que hoje
se tornou comum traduzir-se na teoria literária em língua portuguesa por “estranhamento” é
um neologismo introduzido à língua russa por esse formalista. Ao longo dos anos, sua
abrangência derivou desde certo desfamiliarizar, singularizar como característica própria e
atinente ao processo de compreensão, apreensão da arte como um todo e, mais
especificamente, da linguagem poética, da arte literária, até a identificação do que causam no
receptor desse processo artístico tais efeitos de estranheza, de estranhamento (para o caso
literário, por exemplo, sua estética própria, o estilo de um autor, o uso da metáfora, da
metonímia ou de outras figuras de linguagem).
Em suma, a complementação, derivação e evolução das proposições iniciadas por e em
Chklovski passa da busca de tradução de seu neologismo a todo um processo de
desdobramento da noção teórica proposta por esse formalista a partir de seu
остранение.
Ainda
assim, em todo esse processo de desenvolvimento do termo (ou da[s] terminologia[s] que
surge[m] a partir dele), são em certa medida análogas a desautomatização, a desfamiliarização
da língua quotidiana buscada desde o trabalho com a arte, a linguagem poética, a arte literária,
singular. É nesse ponto-chave que se chocam a função da imagem para Potebnia e a função da
imagem para os formalistas. Enquanto para aquele a imagem, apesar de exercer papel
fundamental na arte poética (na literatura), é mais familiar do que aquilo que tem por função
explicar, para estes (e em especial quando tocamos no texto de Viktor Chklovski) a imagem
tem por objetivo buscar criar uma percepção singular do objeto, oferecendo-nos uma visão, a
visão desse objeto e, não, seu reconhecimento.
28
Seguindo os termos de Chklovski, entende-se que está na transposição da percepção
usual que comumente se tem de um objeto para uma esfera que altere tal percepção,
deslocando-a do anterior lugar comum, anterior lugar de automatismo em que figurava para o
receptor; está em tal transposição um dos atributos base da arte, um de seus procedimentos, o
procedimento de singularização, “criado conscientemente para libertar a percepção do
automatismo” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54).
É interessante notar o caráter de permanência da descrição do procedimento de
singularização, mesmo com as variantes e desdobramentos apresentados ao longo dos anos
que sucederam os traços inovadores das teorizações formalistas. No caso particular da busca
por expor tal procedimento literário, há que se destacar o trabalho com bases até mesmo
aristotélicas. Chklovski encontra em Aristóteles campo para diálogo com o clássico (pese a
toda revolução formalista requerida a partir de então no uso da ciência da literatura), certo
fundamento para seus argumentos. Para esse formalista: “Segundo Aristóteles, a língua
poética deve ter um caráter estranho, surpreendente” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54 –
grifo meu). Aqui, então, talvez esteja a base para a formulação que visava destacar a
existência do procedimento literário de estranheza, o surpreendente na literatura, o que lhe
confere boa parte de sua literariedade, de seus traços característicos, intrínsecos, próprios,
diferenciadores, particulares, singulares. Não se identificasse a existência desse(s) efeito(s) de
estranheza e talvez não poderíamos chegar à literaturnost de Jakobson: dissecando-se a
literaturnost, chega-se aos efeitos de estranheza; identificando-se estes, podemos falar da
presença daquela como característica indissociável da obra literária.
Ora, por certo é questionável por meios teóricos, pela observação atenta dos mais
variados corpus se toda obra literária de fato tem evidente, se toda obra literária deve carregar
em si, deve trazer em sua interpretação, ou seja, se se extrai de sua leitura a observação
explícita de literariedade, de efeitos de estranheza tal como anotados a partir dos moldes
formalistas. Contudo, no que toca a esta pesquisa, a abordagem literária tomando como marco
teórico preceitos formalistas resulta de estudo reiterado dos romances sobre os quais me
atenho para a composição da presente tese.
Com relação à noção de forma, pude apresentar nos parágrafos referidos a ela sua
correspondência, seu diálogo e relevância para com as obras em relevo nesta investigação. Já
no tocante às noções de literariedade e de estranhamento, antes de serem apresentados dados
mais específicos nos capítulos propriamente destinados para a análise textual dos corpora,
pode-se aqui adiantar algo da evidência dessas noções nas obras ora estudadas e de sua
importância no alcance dos objetivos apresentados para o desenvolvimento desta tese.
29
Em La frontera de cristal e ...y no se lo tragó la tierra, a eleição de se escreverem
ambos os romances em contos, apesar de não se constituir um feito inédito 15, representa
“estratégia” literária carregada de arrojo em seu intento estético e de construção narrativa, ato
que confere caráter singular ao que busca representar, apreender do real vivido, incitando,
“convidando” o leitor/receptor a uma abordagem minimamente distinta à que costuma dedicar
à leitura/recepção e percepção e interpretação da forma/gênero romance.
Mas, a literaturnost nas referidas obras de C. Fuentes e T. Rivera não se limita apenas
ao efeito de estranheza estético acima descrito. Em La frontera de cristal, de modo resumido
por ora, pode-se dizer que, além dos elementos até aqui já levemente destacados, faz parte
ainda de seu processo de desautomatização do quotidiano o orquestrar mescla entre certo tom
mais poético da linguagem (porquanto mais literário?) até seu caráter mais cru (porquanto
mais popular?) ou histórico-ensaístico (porquanto mais elaborado?) no intuito de mostra das
imagens que deseja passar, perpassar ou, inclusive, repassar. É importante lembrar que tal
jogo de e entre linguagens é também enfocado pelo formalista Chklovski em suas explanações
sobre os caminhos, sobre as estratégias literárias utilizadas para e na obtenção dos efeitos de
estranheza, aqueles que conferirão a literariedade de que fala outro dos formalistas, Jakobson.
Mas, se em Fuentes o destaque de estranhamentos está em parte por conta do que
poderíamos chamar de profusão da palavra literária, sua oposição estaria na elipse dos contos
curtos, e das estampas que os antecedem, em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera.
Estará também nessas mesmas estampas “introdutórias”, quase epígrafes, o logro de efeito de
estranheza da obra, porque sugerem, por serem aparentes introduções, coesão de enredo com
os contos que precedem; algo, todavia, só alcançado com a chegada ao último conto,
responsável pela circularidade romanesca do narrado.
Enquanto isso, no La frontera de Fuentes (1995), este encontro se dá de maneira
semelhante no último conto; entretanto, apesar da independência dos textos que o compõem,
os nexos nos são apresentados, pouco a pouco, aqui e ali, em um ou outro conto componente
do todo capitular da obra, pela repetição explícita de personagens de contos-capítulos
anteriores, inseridos em contos-capítulos posteriores.
Outra aproximação na literariedade de ambas as obras é o “apego” à oralidade, a busca
por sua representação, imitação e emulação, o que lhes confere certo caráter popular,
inclinando-se sobre o imaginário fônico, fonético (a imagem não é muda, crítica iminente na
15
Encontramos exemplos de estruturação semelhante em modelos dos mais distintos entre si, dentre os quais
podem ser citados mesmo obras distantes em tempo e espaço, tais como o Decameron (1351/1353), do italiano
Bocaccio (1313-1375), e Noite na Taverna (1855), do brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852).
30
leitura dos formalistas russos), ou seja, sugerindo-nos (ou mesmo enlevando-nos a crer,
dependendo do grau de conhecimento, preparo e aceitação do leitor-receptor) sentenças,
pensamentos, questionamentos tais quais: fala assim o mexicano pueblerino, o mexicano das
camadas menos privilegiadas, mais populares? Fala assim todo mexicano?
Seguro é que tais sentenças simplistas nos remetem a um pensamento, a um receptor
estrangeiro. E é interessante lembrar que os formalistas também tocavam nessa questão
linguístico-literária, na oposição e, porque não dizer, na complementação e intercâmbio entre
a linguagem cotidiana e a linguagem poética, literária. Quando cita Aristóteles para tratar do
caráter de estranho, de surpreendente que deve ter a língua literária, Chklovski acrescenta o
adendo de que, em prática, essa língua é frequentemente uma língua estrangeira, e chega a
citar o velho búlgaro como base do russo literário de sua época, tocando mais adiante na
influência desta mesma linguagem literária russa nas massas populares, fato que trouxe ao seu
nível muitos elementos dos dialetos dos quais se originou; e, ressoa interessante seu chamar a
atenção para a preferência por dialetos e barbarismos, em movimento oposto ao exposto
anteriormente (porém, a meu ver, em verdade, um movimento complementário), na literatura
russa de seu tempo (Cf. CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54-5).
Ainda que, ao fim e ao cabo, a defesa formalista parta da premissa de diferenciação
entre língua poética (literária) e língua prosaica (cotidiana), esta em detrimento daquela,
parece-me importante realçar a observação da influência e intercâmbio próprio a ambas as
linguagens relatadas, relação igualmente extraída da leitura do corpus componentes da
presente tese. Em uma correlação ainda mais expressa, é pensar também a possibilidade do
trato literário de imagens trabalhadas desde o real apreendido podendo agir, atuar (por meio
do receptor e da ação da literariedade e poder de conquista que a obra terá nesse mesmo leitor
e, inclusive, sobre suas instâncias cognitivas) sobre e para a reinserção desses mesmos
imaginários no real vivido, conferindo-lhe novos contornos ou não, (re)criando-lhes ou não,
dependendo de todos os fatores anteriores o caráter de perpetuação, permanência, alcance e
amplidão de tais imaginários.
Tal caráter de permanência próprio de determinados imaginários 16, tocado e
perpetrado pela obra de literatura, em princípio não pode ser mensurado; no entanto, a
possibilidade de que se possa falar de uma relação entre imaginários e obra literária passa não
somente pela identificação da presença, da representação e repetição destes em exemplares
literários, mas, também, e principalmente, pelo modo como eles serão tratados,
16
Trabalharei uma conceituação mais detida sobre imaginários no tópico 1.3 do presente capítulo.
31
desenvolvidos, representados nas obras que acabam por imiscuírem-se (e aqui não se fala em
intencionalidade) em seu universo “de ação”.
Para tanto, podem ser vitais (como é o caso das mostras em que se baseia a presente
tese) os estranhamentos que ajudam a compor sua literariedade, a qual – ainda que não uma
regra fixa para a gama de abordagens que nos têm permitido até hoje a literatura e os estudos
a partir dela advindos – se apresenta com relevância para a obtenção das ações ora propostas
neste trabalho científico. Resulta que importa na correlação dessa literariedade para com a
imagem e imaginários muito daquilo a que se atinham os formalistas russos; ou seja, as
especificidades do literário na obra de literatura, sua estética, sua forma, sua composição
estrutural, seu labor de construção. Assim, sem que se ignorem (ledo engano repetido nas
críticas dirigidas ao formalismo) seus desdobramentos, as vias com as quais vai se
conectando, importa também a formação do constructo literário da obra. É aqui que tornamos
aos formalistas, encerrando momentaneamente a contribuição de suas teorizações (no tocante
a este tópico) com uma leitura acerca da noção de construção.
É Yuri Tynianov quem toca na questão acima em seu artigo “A noção de construção”,
de 1923. O formalista baseia suas observações em duas espécies de dificuldades às quais
estaria ligado o estudo teórico da arte literária: as primeiras, presas a seu material (a palavra, o
vocábulo); as seguintes, ligadas ao princípio de construção de tal arte. Para Tynianov, a noção
de material está intimamente vinculada à qualidade heterogênea, polissêmica que carrega em
si a palavra, e o uno que é o vocábulo (enquanto significante) importará ao todo literário
justamente em sua variabilidade, nas suas múltiplas possibilidades de significação (Cf.
TYNIANOV, [1923] 1973, p. 99-100).
No tangente de modo mais próprio ao princípio de construção, ou formação (como
também o denomina o autor), Y. Tinyanov chama a atenção para o equívoco de abordagem
deste princípio como um evento estático, sem dinamismo. Volta à tona aqui, a questão do
dinamismo da forma (já brevemente abordada neste mesmo tópico), a qual faz com que as
noções de construção e de formação se aproximem e se equivalham. Em relação à forma e seu
caráter dinâmico, Tinyanov aponta que a unidade de uma obra de literatura é, em verdade,
uma integridade dinâmica, com seu próprio desenvolvimento. Segundo o formalista, esse
mesmo dinamismo a que se refere está também no princípio de construção. Nele, percebe-se a
forma dinâmica ocorrendo na promoção de fatores em detrimento de outros; a deformação
como característica marcante do processo de interação da forma, em que determinado fator
promovido deforma os que a ele são subordinados.
32
Assim, para Tinyanov, nota-se a forma através da evolução (dinâmica, desatrelada da
dimensão de tempo) do vínculo existente entre o fator subordinante construtivo e os fatores
subordinados. A partir do exposto por Y. Tynianov, podemos apontar como condição sine qua
non para a sobrevivência do fato artístico a interação enquanto conflito, desde a sensação de
submissão, de deformação de fatores outros pelo fator construtivo. Se deixar de existir a
sensação de interação dos fatores (com realce para a presença de dois elementos: subordinante
e subordinado), o fato artístico se desvanece, a arte passa a ser automatismo, não se tem a
experimentação da arte, não a experimentamos mais (Cf. TYNIANOV, [1923] 1973, p. 1012-3).
Para trazer o que expõe sobre a arte à esfera mais estrita da arte literária, Tynianov
recorre, por fim, ao metro da poesia. Grosso modo, a título de resumo, tem-se que o que é
inovador em determinado momento na arte literária deixa-o de ser a partir do momento em
que sua função subordinante, deformante, desaparece pela associação de fatores que lhe
confiram somente a repetição, mera cópia com capa de “novo”. Não basta com que se
introduza um fator qualquer, há que se buscar uma nova interação, conflituosa entre si, entre
os fatores que faz interagir. Dando contornos finais ao que busca explicar, Tynianov nos diz,
ainda sobre o metro: “Se colocamos esse metro em contato com alguns fatores novos, nós o
renovamos, despertamos nele novas possibilidades construtivas” (TYNIANOV, [1923] 1973,
p. 103). Tal exemplo serve de alusão e ponte ao que de fato me interessa no tangente à noção
ora trabalhada: o princípio de construção na arte literária em prosa; aqui, no material
selecionado de Carlos Fuentes e Tomás Rivera.
Em La frontera de cristal e ...y no se lo tragó la tierra, a forma romance prevalece,
mas não se apresenta como uma forma sacralizada, imutável. Ela, a forma romance, é o
elemento subordinante, e a obviedade, a automatização estaria em pensar o que nos salta à
vista: seus elementos subordinados são os capítulos que a compõem, o que, em parte, não é
mentira. No entanto, o fato da dúvida (pro)posta na (in)certa dependência de seus (nas obras
citadas) “capítulos” dá a perceber uma interação conflituosa entre fatores. O fator promovido
são dois romances entrecortados, fragmentados, porque buscam a representação artísticoliterária de relações fragmentadas, de identidades fragmentadas em um espaço geográfico
fragmentário por excelência: (um)a fronteira.
A partir da fragmentação sobre a qual debruçam sua representação, o fator promovido,
ou seja, em nosso caso, dois romances entrecortados, fragmentados “necessitam” deformar
seu elemento subordinado mais evidente, o capítulo. E o fazem pela dúvida inarmônica, se
capítulos que são contos ou contos que são capítulos. Deforma-se a “natureza”, o sentido
33
“mais natural” do capítulo: nestas duas obras eleitas, de Fuentes e Rivera, ele, o capítulo, não
mais depende de estar junto ao todo para obtenção de seu sentido, de seu entendimento mais
amplo; sozinho, tem seu sentido próprio, como um conto, pois é um conto; mas, ao carregar
no seu narrar elementos do todo, a este se pode agregar, construindo algo maior e um tanto
diferente: um romance que tem como fator construtivo principal a deformação do elemento
subordinativo capítulo. No entanto, subordinado ao fator preponderante também está a forma
conto, cuja independência se vê ao mesmo passo amarrada, costurada a uma narrativa maior, a
qual, portanto, a deforma, interagindo e, porque não dizer, deformando a independência que
dele se espera, ora deformado de seu isolamento também “mais natural”, o entendimento na
concisão de seu alcance, a concisão como caractere básico a distanciá-lo da forma romance,
distância rearranjada, desarrumada, quase não mais existente, já que foi deformada na
proposta estética colocada em prática, levada a cabo na construção evidenciada em La
frontera e ...y no se lo tragó.
Ainda importará à noção de construção o que expõe Tynianov sobre função
construtiva, ao dissertar sobre evolução literária em artigo seu de 1927 (Cf. TYNIANOV,
[1927] 1973, p. 105-18). Outro trabalho que viria a auxiliar o exposto sobre o princípio de
construção é a seleção reunida “Sobre a teoria da prosa”, na qual B. Eikhenbaum (1925)
também faz exposição sobre limites entre os gêneros literários (especialmente sobre o
romance, a novela e o conto). No entanto, entendo aqui que, no tocante à questão de
construção na literatura, as primeiras considerações de Tynianov sobre o assunto bastam,
nesse momento da tese, como contribuição para o caminho que nos leve ao passo a passo da
relação literária para com imaginários. E no tangente ao texto de Eikhenbaum, por ora
importa dizer que ele nos serve como reforço a um arcabouço o qual será mais necessário nos
capítulos que tratem da análise específica dos romances em evidência.
Tudo até aqui exposto visou fundamentar minha observação de relevância da noção de
literariedade para a vinculação que estabelece, nas obras em tela, junto à questão de imagem e
imaginários em ação com e a partir do literário. Os apontamentos do formalismo russo, depois
de quase execrados por seus detratores, são retomados e desenvolvidos nas “Teses de 1929”,
do Círculo de Praga. A partir de então, “esquecidos” e retomados costumeiramente, sua
influência é notória, reverberam seus apanhados iniciais na crítica literária, na teoria literária
ulterior, importando também para o estudo da historiografia literária, transcendendo, em
muito, limites territoriais, posto que seus trabalhos não se limitassem a tratar tão-somente da
literatura de seu país.
34
A dialética, acima do tom de manifesto próprio da tenra idade com que muitos de seus
representantes começaram a escrever criticamente, é algo que perpassa o formalismo. Há em
teóricos que ainda emprestarão seu conhecimento ao desenvolvimento do presente estudo
científico ecos e desenrolar do nascido na fonte crítica do formalismo russo. Começar, pois,
esta tese com o nascedouro do aporte teórico que me importará resulta do entendimento de
encontro da literariedade segundo os preceitos formalistas para com a literatura enquanto arte
de representação em La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, e ...y no se lo tragó la tierra,
de Tomás Rivera.
1.2 Imagem e(m) literatura
i.ma.gem
1.Representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou de objeto.
2.Representação plástica de Cristo, da Virgem, dum santo, etc.
3.Estampa
que
representa
assunto
ou
motivo
religioso.
4.Reprodução de pessoa ou de objeto numa superfície refletora.
5.Representação mental dum objeto, impressão, etc.; lembrança, recordação.
6.Representação cinematográfica ou televisionada, de pessoa, animal, objeto, cena,
etc.
7. Metáfora. [Pl.: –gens.]
§ i.ma.gé.ti.co adj. (FERREIRA, 2004, s/p.)17
A citação acima nos serve de amparo e introdução para o trato da conceituação em que
me pautarei de agora em diante. A escolha das possibilidades apresentadas pelo Dicionário
Aurélio de língua portuguesa (2004) tem a ver com a repetição em outros dicionários, apesar
de acréscimos e pequenas variações, da maior parte das definições nele apresentadas para o
vocábulo “imagem”. Ainda que todas estejam de certo modo interligadas no âmbito de
desenvolvimento da presente tese, as significações que mais bem servirão de apoio para os
argumentos ora apresentados são: a de representação mental (número 5), por sua
correspondência para com o que entendo como caminho até a irrupção de um imaginário
(argumentação melhor trabalhada no próximo segmento, tópico 1.3); a de metáfora (número
7), pelo entendimento de que é o principal recurso de imagem trazido à baila por Carlos
Fuentes em La frontera de cristal; e a de representação fotográfica de pessoa ou objeto
(número 1), por sua aproximação para com a linguagem de instantâneos fotográficos que
surgem do laconismo, da economia linguístico-narrativa de ...y no se lo tragó la tierra, de
Tomás Rivera.
17
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Eletrônico versão 5.12 (2004).
35
Em consonância com o acima exposto e com observações do norte-americano
historiador da arte William John Thomas Mitchel (1986), a professora, pesquisadora e
antropóloga da Universidade de São Paulo (USP), Sylvia Caiuby Novaes, descreve várias
possibilidades e/ou tipos de abordagem mais usuais, mais “comuns” para as imagens. Seriam
elas: “gráficas (como as pinturas, as estátuas e os desenhos); óticas (como os reflexos no
espelho e as projeções); perceptivas (como as aparências); mentais (como os sonhos, as
memórias, as ideias); verbais (como as metáforas e as descrições)” (NOVAES, 2008, p. 455).
Reitero que, tanto o recorte de acepções lexicográficas quanto o pequeno apanhado de
conceituações teóricas têm por objetivo realçar como é constante e por isso mesmo possível a
correlação das partes “imagem”, como vocábulo, como termo, a um todo maior, um grande
amálgama chamado IMAGEM. Dessa forma, espero assim explicar que, apesar da existência
de um enfoque no presente trabalho, grande parte das abordagens sobre imagem até aqui
suscitadas serão retomadas hora e vez durante o desenvolvimento de materialização deste
estudo, pois essas imagens se fazem presentes no corpus e muito porque, como poderemos
verificar, nem sempre são ou serão estanques entre si.
Assim sendo, repito, ainda, que as atenções principais do presente tópico estão
voltadas para a imagem como fruto, como resultado de um processo mental, muito próximo
da percepção, onde envolvidos estão os atores de tal processo: o autor – transmissor e
“projetor”, incitador, provocador de imagens; e o leitor – ora também agente participativo e
criador nessa demanda, ora receptor à mercê da voz ou de vozes narrativas criadas por seu
(des)orientador, o escritor do texto literário.
É sabido, porém, que a imagem, pensada como fruto de uma demanda, de todo um
processo cerebral se apresenta como um terreno arenoso, a ser o mais das vezes evitado, ou,
ainda, evitado de ser aprofundado, mesmo em abordagens teóricas de nomes já consagrados.
Tal é o caso dos autores em que ancoro meus argumentos neste apartado. Porém, ainda que
apenas resvalando na (ou mesmo desviando-se da) questão da imagem e, por conseguinte, do
imaginário, como produto de todo um trabalho mental, acrescento que sem o diálogo com o
raciocínio teórico desses mesmos autores, pouco elucidaríamos das teias em que se enovelam
as imagens que saltam das linhas dos romances nos quais se calca o presente estudo.
Um destes nomes é o de Gilbert Durand (1921-2012), filósofo francês, especialista do
imaginário, referência nos estudos sobre este tema, fundador (1966) do Centro de Pesquisa do
Imaginário e do CRI-GRECO 56 (C.N.R.S. 1982), que reúne 43 centros de pesquisa sobre o
imaginário no mundo. De toda sua produção, a obra deste importante autor com a qual aqui
dialogo é o seu O imaginário ([1994] 2011). Para além da relevância de um ensaio desse peso
36
a quem se debruce sobre o tema do imaginário, o recorte que mais bem se aproxima da
reflexão a que me proponho no presente segmento tem a ver com o momento em que as linhas
durandianas se inclinam a falar sobre uma espécie de base filosófica triádica da qual
aparentemente não se pode furtar aquele que investigue sobre o conceito de imagem (e sua
consequente ressonância na conceituação acerca do imaginário). Base da filosofia clássica, a
tríade sugerida é a que traz os nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Para Gilbert Durand, apesar da certeza de termos nos dos últimos integrantes da tríade
supracitada herdeiros do pensamento socrático, será Aristóteles (seguidor de Platão, portanto,
o terceiro em ordem cronológica) um dos nomes que, de fato, fundamentam o método da
verdade. Para Durand, tal procedimento é a base de sustentação e fortalecimento da
civilização ocidental, principalmente após o que o filósofo francês chama de “batismo cristão”
desse mesmo método da verdade, quando da redescoberta e retomada dos escritos
aristotélicos, nos séculos XII ao XIV. Antes disso, as obras de Aristóteles estiveram
praticamente desaparecidas por treze longos séculos, durante os quais a história do Ocidente
testemunhou desde a queda da civilização grega e do Império de Alexandre, O Grande, até o
principiar e o fim do Império Romano, o surgimento do Cristianismo, os cismas bizantino e
romano, o nascer do Islamismo e das Cruzadas etc. (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 11-2).
Foi Averroes de Córdoba (1126-1198), um sábio muçulmano de uma Espanha já há
muito conquistada pelos mouros, quem redescobriu e traduziu para o árabe os escritos de
Aristóteles. Tais traduções foram então lidas e relidas pelos filósofos e teólogos cristãos,
dentre os quais estava a figura chave de São Tomás de Aquino, quem, obstinado por conciliar
o racionalismo do método aristotélico às verdades da fé, acaba por estabelecer o sistema que
se torna a filosofia oficial da Igreja Romana e a doutrina das universidades sob a égide da
Igreja, a escolástica, nos séculos XIII e XIV (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 12).
O método da verdade é baseado em uma lógica binária, na qual somente dois valores
estão em jogo: “um falso e um verdadeiro” (DURAND, [1994] 2011, p. 9 – grifo do autor). A
este pensamento binário o denominamos dialética: raciocínio, método, estilo e gênero eleito
pela tríade supracitada um meio para difusão de seus preceitos filosóficos. Porém, conforme
destacado anteriormente, vale reafirmar ser em Aristóteles que tal método viria a encontrar
sua vertente mais fechada, menos aberta ao que foge da lógica do raciocínio. E é nesse
aspecto em especial que se encontram a austeridade do pensamento aristotélico, de sua prática
do raciocínio da verdade e a paradoxal relação da cristandade para com a imagem (aqui, uma
vez mais, uma das partes do amálgama IMAGEM). Assim, entre o destruir e/ou o venerar,
pode-se dizer que a linha de raciocínio aristotélica para a imagem “coincide” de modo
37
oportuno com um iconoclasmo religioso até certo ponto curiosamente conflitante,
contraditório; mas, existente, sim, dentro da filosofia e da afirmação do cristianismo.
Conforme afirma Durand ([1994] 2011: p. 9): “A proibição de criar qualquer imagem
(êidolon) como um substituto para o divino encontra-se impressa no segundo mandamento da
lei de Moisés”. Durante séculos, e principalmente a partir de Aristóteles (século IV a.C.),
contaram a experiência dos fatos, as certezas do raciocínio lógico como única via de acesso à
verdade. É conveniente, pois, a união do método binário da verdade a esse primeiro momento
cristão de iconoclasmo. O binarismo da dialética, socrática, herdada por Platão e de tom mais
agudo em Aristóteles, propõe para questões que visam ao alcance da Verdade uma solução
absolutamente verdadeira e outra completamente falsa, excluindo de seu raciocínio, de suas
possibilidades um terceiro argumento.
Nesse tocante, se consideramos a imagem como algo incerto e ambíguo, objeto de
contemplação, mais do que de apreensão pura e simples, mais do que entendimento, se certa
ou errada, de descrição, como já pude apontar, quase inesgotável, porque se desenrola e se
entretece a muitas mais definições, veremos quão impossível é obter desde sua percepção, sua
“visão” apenas uma proposta de resposta, “verdadeiro” ou “falso”. Ainda sobre a questão da
imagem em Aristóteles, Gilbert Durand diz que ela, a imagem, “propõe uma ‘realidade
velada’ enquanto a lógica aristotélica exige ‘claridade e diferença’” (DURAND, [1994] 2011,
p. 10, grifos do autor).
Herdados principalmente a partir de Aristóteles, tendo a razão como seu único meio de
acesso, ecos do método da verdade reverberariam e serviriam de base, ainda, para o avanço,
para a caminhada rumo à supremacia, à “vitória” do pensamento científico sobre tudo aquilo
que não pudesse estar minimamente próximo de ser, pelo menos, uma arte digna de ser
considerada demonstrativa; e, preso a esta negativa, tal era o caso da imagem. Passando por
cima, por exemplo, do que era a poética para Aristóteles, mas ainda ancorada em seu
raciocínio lógico, racionalista e binário, essa continuidade de desprezo de valor do imagético
poderá ser vista tanto em Galileu como em Descartes, se nos atemos ao século XVII; e tanto
em Hume como em Newton, em um século XVIII no qual a imagem (e, por conseguinte, seu
“produto”, ou seu igual, o imaginário) se afasta cada vez mais do então preponderante apego
empirista ao “fato” (já o seja considerado histórico ou fruto da observação e da experiência)
para aproximar-se mais e mais (ou relegada ser ao plano) do delírio, do sonho, do irracional
(Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 12-3-4).
Ainda para Durand, o positivismo, as filosofias da História, o cientificismo – “doutrina
que só reconhece a verdade comprovada por métodos científicos” – e o historicismo –
38
“doutrina que só reconhece as causas reais expressas de forma concreta por um evento
histórico” (DURAND, [1994] 2011, p. 14) – dão o tom final do triunfo do fato, do factual
sobre o imaginário no ocidente. E é tal afã por uma espécie de conhecimento mais “concreto”
(algo visto desde o início da agudez contida na busca de supremacia desse racionalismo
lógico) que possibilitará o impulso do progresso técnico e o domínio do poder material do
ocidente sobre as outras civilizações não-ocidentais, as quais
nunca separaram as informações (digamos, “as verdades”) fornecidas pela imagem
daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Os ideogramas (...) dos hieróglifos
egípcios ou os caracteres chineses, por exemplo, misturam com eficácia os signos
das imagens e as sintaxes abstratas (DURAND, [1994] 2011, p. 6 – grifo do autor).
O que nos propõe Gilbert Durand é uma relação entre “verdades”, no plural, e
imagem, no que toca às civilizações não-ocidentais, muitas das quais politeístas; e, em
contrapartida, a busca de estabelecimento de uma única verdade, “A Verdade”, “A Verdade
Ocidental” e sua correlação com o apego à Razão e à lógica em detrimento do “vaguear”, do
“bruxulear” da imagem, do imaginário. Durand também se exemplifica citando a América
pré-colombiana, a África negra e a Polinésia como berços de “antigas e importantes
civilizações” (DURAND, [1994] 2011, p.6), mas a estas parece, em verdade, diminuir sua
relevância quando, a respeito delas, afirma que “mesmo possuindo uma linguagem e um
sistema rico em objetos simbólicos, jamais utilizaram uma escrita” (DURAND, [1994] 2011,
p. 6), informação hoje questionável, se levamos em conta outros preciosos estudos
contemporâneos acerca do assunto18.
Ainda assim, o autor francês acende uma chama sobre os diversos momentos de
“encontro”, de choque da civilização ocidental para com as não ocidentais19. Na maior parte
das vezes, vitoriosa, impondo-se pela força, inclusive, de suas doutrinas, importa dizer que
muito do vigor impositivo dessa civilização ocidental vinha da resultante de todo um processo
18
Remeto o leitor para obras como La colonización de lo imaginario (1988), de Serge Gruzinski ou, ainda, La
palabra de los aztecas (1993), de Patrick Johansson Kéraudren.
19
Remeto o leitor uma vez mais a Serge Gruzinski em La colonización de lo imaginario (1988) e A guerra das
imagens ([1990] 2006). Informo ao leitor que não é o foco de meu trabalho a abordagem dessa guerra de
imagens desde o choque do invasor ocidental com o indígena autóctone. A atenção maior à imagem desde uma
ótica mais ocidental, desde um entendimento mais ocidentalizado da questão da imagem se dá devido a sua
aproximação para com a estética de imagem observada no corpus em questão. Talvez em T. Rivera as imagens
sejam algo mais mescladas, mais carregadas de uma mescla plural, um teor mais pluralizado de imagem. Mas,
ainda assim, pelo não aprofundamento ao trato indígena, a raízes da cultura indígena e sua forte influência na
cultura hispano-americana (em Fuentes o indígena quase sempre serve de remissão preconceituosa,
menosprezada na fala de narrador e personagens), entendo que a leitura das imagens que “saltam”, ululam das
obras se encaixa mais a uma visão desde uma teorização ocidental (nem sempre universalista).
39
de iconoclasmo 20 necessário à obtenção da supremacia do pensamento lógico, racionalista,
algo que curiosamente fará parte de um imaginário a ser imposto ao mundo como
característica, marca, na verdade capa, do homem ocidental: o homem “branco e civilizado”,
diante de “culturas ‘pré-lógicas’, ‘primitivas’ ou ‘arcaicas’” (DURAND, [1994] 2011, p. 15 –
grifo do autor), ainda reféns da limitação e do engano nas e das imagens.
No entanto, é sabido que essa necessidade iconoclasta que atravessa a história do
racionalismo ocidental não se dá sem resistências em seu próprio cerne, tampouco
contradições ou paradoxos. Bem o representam os cismas da cristandade, a Reforma
protestante e a resposta católica romana da Contrarreforma. Mas, também o representam
séculos anteriores de “querelas”, “disputas” em que toda uma imaginária sacra cristã esteve
entre a remissão icônica própria do culto aos santos21 (perpetuada, tal como o que o autor
chama de mariolatria – o culto à Virgem –, por centenas e centenas de anos pela arte
bizantina, a arte cristã do oriente) e os rastros deixados pela antiga tradição iconoclasta
originária do monoteísmo judeu.
Contudo, tal embate do imagético ocidental foi ainda mais além. Este passou pelo
esplendor da iconodulie22 gótica dos séculos XIII e XIV, fomentada por e com seu êxito
maior na ordem de São Francisco de Assis, atravessando também o tempo das catedrais e toda
sua figurativa de vitrais, estátuas, iluminuras etc. Encontrou, ainda, nos monges franciscanos
os criadores das mais variadas transposições da religiosidade, dos mistérios da fé para
imagens (já fossem representações, encenações teatrais dos “Mistérios, da Via Crucis do
Cristo, já fosse na divulgação das bíblias de mensagem moralizante, amplamente ilustradas).
Mas, a imagem da santidade foi também, no posteriori franciscano e muito através de
seu sucessor, São Boaventura, caminho, vestigium de “Toda a Bondade do Criador”
(DURAND, [1994] 2011, p. 19). E, assim, temos nesse momento que é pela imagem (imago)
que a alma humana melhor representa as virtudes da santidade (algo que se assemelha ao
caminho proposto por Platão para que se chegue até A Verdade). Alcança-se, enfim, a
similitudo, a sintetização de que Deus em sua infinita benevolência pode dar, pode conceder à
20
Ação de iconoclastia, de iconoclastas (do grego eikón, onos como elemento compositivo para “imagem”, mais
Klastés, como “aquele que quebra”) (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 18).
21
Para Durand, uma das primeiras reabilitações das imagens no ocidente cristão está no ícone protótipo da
imagem de Deus encarnada na pessoa de seu filho, Jesus (o que nos remete, ainda, à representatividade da
imagem do santo sudário para a cristandade católica). A essa imagem “concreta” da santidade de Deus no Cristo,
somar-se-ia a adoração das imagens de todas as pessoas santas – aquelas que, por conta de sua trajetória,
tivessem de certo modo se assemelhado a Deus –, da mãe do Cristo (théotokos, “a mãe de Deus”), seguida pelas
de João Batista, dos apóstolos e, por fim, de todos os santos (Cf. DURAND, [1994] 2011, p.17).
22
“Icono” (do grego eikón, onos como elemento compositivo para “imagem”), mais “dulia” (do grego douleía:
culto prestado aos santos e aos anjos) (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 18).
40
alma santa uma “semelhança” a sua própria imagem, sendo assim o vestígio, a imagem
propriamente dita e a similitude os graus das três representações imaginárias (ou seja, por
imagem) a conduzirem a alma criada de volta ao seu Criador (Cf. DURAND, [1994] 2011, p.
20).
Posteriormente, esse mesmo embate do imagético ocidental se materializa na resposta
da Reforma Protestante, um contraponto ao ápice da imaginária sacra de então 23. Neste
aspecto, são interessantes as observações de Durand sobre mais algumas contradições no seio
do iconoclasmo cristão. Para o autor, embora a Reforma iniciada em Lutero combata (com a
consequente destruição de estátuas e quadros) o que poderíamos chamar de estética da
imagem na Igreja e sua agudeza sacrílega contida no culto aos santos, há, sim, uma
aproximação à imagem na resposta protestante ao “exagero” da imaginária sacra de Bizâncio
e Roma. E tal aproximação se dá tanto por imagens literárias (sem apoiar-se no icônico, mas
como via de recondução à santidade de seu Deus Único, tal é o caso da linguagem poética das
Escrituras em livros como o “Cântico dos Cânticos”, mantido na Bíblia protestante) como
pela linguagem musical (onde entra, por exemplo – ainda que livre das imagens visuais dos
quadros, estátuas e santos católicos –, todo o “imaginário” de incrível profundidade das
cantatas e “Paixões” daquele que talvez tenha sido o maior compositor protestante, JohannSebastian Bach).
Fato é que, entremeadas e quem sabe até como soluções exteriores a tanta “disputa” da
questão da imagem pelo sagrado, a arte e a literatura pouco a pouco surgem como uma
espécie de possibilidade de independência da imagem diante das querelas religiosas que a
envolviam (e revolviam). A partir daí pode ser citado um nome como o de Shakespeare e sua
imaginária teatral. Mas também entram em cena respostas a novas tentativas de impor rigores
que estivessem mais próximos à Razão que ao “devaneio da arte, da imagem”. Assim, por
exemplo, ao rigor racionalista do Neoclassicismo opor-se-ão o pré-romantismo (na Alemanha,
Sturm und Drang) e o Romantismo e suas estéticas de clamor “da arte pela arte”, na busca de
reconhecimento de algo mais que os clássicos cinco sentidos para apoiar a percepção, um
“sexto sentido (...), uma terceira via de conhecimento, permitindo a entrada de uma nova
ordem de realidades” (DURAND, [1994] 2011, p. 27). Ainda um maldito, o poeta, e isso
estará em Hölderlin, Baudelaire, Rimbaud, passa então a reivindicar o status de “gênio,
“vidente”, “guia”, “mago”, “profeta”, ou seja, o de uma espécie de condutor de imagens.
23
Aproximação cristã a paganismos celtas (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 20-1).
41
Tal apego ao lado imagético em detrimento do racionalista deixará heranças mesmo na
busca pela perfeição do parnasianismo; porém, será ainda mais contundente, agudo e ousado
na busca de uma independência da arte, da poesia, da imagem; será ainda mais evidente no
simbolismo (fim do século XIX)24. Depois dele, a obra de arte, e sua consequente ligação com
a imagem, pouco a pouco se libertam, afastam-se de seus serviços vinculados à religião e à
política. Há uma busca por independência, por explicar-se a partir da identificação de que
pode conter, criar realidades outras. Assim, para Gilbert Durand ([1994] 2011, p. 29-30, grifos
do autor), pode-se dizer que
O Surrealismo da primeira metade do século 20 será o resultado natural e
reconhecido do Simbolismo. Este “sexto sentido”, que no século das Luzes revelou
ingenuamente a estética, desabrochou na filosofia de um universo “completamente
diferente” do pensamento humano.
Isto opõe essa liberdade do imagético uma vez mais ao racionalismo aristotélico
herdado, com marcas também no empirismo positivista que ainda deixará seus lastros durante
todo o século vinte. A arte abstrata será o extremo, a aventura máxima da afirmação de
emancipação da pintura, da música em relação até mesmo ao imaginário. Porém, não me
aventuro nela eu, por ora; por entender que, no concernente à análise do corpus dessa
pesquisa, adentrar o universo abstrato da arte pouco dialogaria com a proposta de leitura
interpretativa aqui trabalhada. Retorno, então, a um dos pontos que abriram a argumentação
do presente tópico.
Da proposta de olhar lançado à questão da imagem a partir das observações do filósofo
francês Gilbert Durand, extrai-se seu posicionamento de que, da tríade base do que o autor
chama de Método da Verdade, o nome que mais influenciaria uma visão pejorativa lançada ao
imagético seria o de Aristóteles. É interessante notar que Durand aponta, ainda, estar no
predecessor de Aristóteles uma atenção menos radical para o papel da imagem na filosofia.
Dessa forma, é no primeiro seguidor do socratismo que a imagem encontra talvez
então o ponto de apoio para sua sobrevivência diante do racionalismo ocidental, o mesmo que
(ainda plantando suas sementes) encontraria nas Américas, quando do Choque e Violência
dos “descobrimentos” e das conseguintes colonizações, sociedades que através do
pictográfico exerciam sua expressividade, seu poder de expressão e comunicação baseados na
representação por imagens e que, de uma hora para outra, em determinado momento tiveram,
ou melhor, viram-se forçadas a perceber a necessidade de “organizar” também as coisas
24
Remeto o leitor para o tópico 1.1 do presente capítulo, quando toco na importância que tem esse movimento
estético nas argumentações que tecem os formalistas contra algo que poderia ser chamado de “ditadura da
imagem”, “imposta” pelo simbolismo russo.
42
observadas, os frutos de sua observação e registro através da escrita alfabética, até mesmo
para que sobrevivessem, conservadas fossem, diante da aceitação de derrota e consequente
submissão, os traços de suas memórias, suas identidades, suas marcas.
Com esse aparte, entretanto, quero tocar, antes, no choque dos conceitos e da relação
para com a imagem, no choque da conturbada relação ocidental com o imagético e a imagem
como meio, modo de expressão para os povos originários da América pré-hispânica, précolombiana. Isso implica tocar em uma ocidentalização do imaginário pré-americano. Porém,
é necessário reiterar que, referente às obras literárias em destaque na presente tese, há muito
mais um eco, uma via de acesso à abordagem da imagem desde seu âmbito ocidental de
cismas, imbricações, vaivéns, contradições – razão pela qual privilegiei até o momento um
remissivo olhar voltado para a imagem, digamos, algo mais ocidentalizado.
Nesse aspecto, uma ressalva que, segundo Durand, propiciaria a sobrevivência, a
resistência do imaginário dentro de um longo período de iconoclasmo, tem a ver com a figura
de Platão e a importância de sua concepção de imagem, que acabou dando margem à
resistência a toda uma iconoclastia não somente física (contra quadros, imagens, estátuas,
etc.); mas, também, mental, espiritual (a imagem, a imaginação, o imaginário negados ou,
quando muito, menosprezados e, até mesmo, ridicularizados).
Embora a máxima aristotélica diga ser o filósofo também um “philômito”, um amigo
do mito, “pois o mito é uma reunião de maravilhas” (ARISTÓTELES apud MORAES, 2007,
p. 4), coincido com Gilbert Durand, quando este entende extrair-se de, ler-se, identificar-se
em Platão, apesar, é lógico, de sua herança socrática, uma doutrina mais aberta relativa à
imagem, menos aguda e de tom menos depreciativo do que a de Aristóteles, seu continuador
(Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 16). A partir deste raciocínio, abre-se espaço para que
pensemos, ademais, na imagem como e no processo de (re)produção do pensamento filosófico
destes mestres tão importantes para o estabelecimento da figura do homem ocidental
civilizado. Isto porque, se conceituaram sobre a imagem, foi também muito através dela que
se expressaram, natural “contaminação” em seus textos, haja vista que era também a imagem
assunto de seus argumentos. Assim sendo, damos passo e espaço para que tratemos da
imagem também como categoria textual, como peça importante na produção de um texto, algo
que vem ao encontro do tema ora abordado neste trabalho.
Na teorização de Platão sobre a imagem, o “mito”, a figura evocada de Sócrates, traz
conceitos (como, por exemplo, o da Verdade Absoluta como ponto de referência para a
promulgação de leis que discorressem sobre o belo, o justo, o bom) que reverberariam e
respaldariam o Método da Verdade explorado e desenvolvido por Aristóteles. No tracejar da
43
linha platônica que divide a ordem do que é inteligível da outra ordem de coisas pertencentes
ao gênero visível, a imagem encontra-se em uma das secções deste segundo gênero, abordada,
comparada sob uma perspectiva binária, em que se relacionam obscuridade (as sombras,
absolutamente ininteligíveis, porque não têm, de maneira alguma, sua razão em si mesmas) e
claridade (as imagens refletidas na água e as que se formam nos corpos compactos, lisos e
brilhantes, que remetem, da mesma forma que as sombras, porém, com um pouco mais de
clareza, àquilo de que são cópias, reflexos).
Ainda para Platão, como a opinião está para o saber, estaria a imagem para o modelo,
este já pertencente ao primeiro segmento, o campo do inteligível. Nesta primeira secção,
estariam o entendimento e a inteligência, ambos pertencentes à órbita, ao âmbito das ideias,
estas mais próximas a um princípio original que as sombras e imagens do segmento do
visível, que não separa as propriedades das coisas, dos modelos de que são cópias.
O entendimento no campo das ideias, do inteligível, subjaz à verdadeira intelecção,
porque faz de hipóteses princípios como se estas fossem claras para todos. Refere-se Platão
em seu texto de remissão socrática à figura dos geômetras e aritméticos, razão pela qual
classifica seu entendimento como o modo de pensar das ciências, que tratam como cópias o
que traçam e cardam, obtendo entendimento pelo sensível, sem ter o alcance, a intelecção de
que tratam de ver, em verdade (ao contrário das sombras e reflexos que geram suas
figurações), as figuras absolutas, o princípio primeiro sobre o qual terminam por não se
debruçarem, deixando de agir pela inteligência da Visão no Pensamento, para quase se
igualarem à visão diretamente relacionada à ordem do sensível.
À frente destas ciências, na primeira secção deste primeiro segmento da linha de
raciocínio trazida à baila por Platão, está a secção da pura intelecção. Nela, a Ciência da
Dialética adianta-se às ciências outras porque, como é próprio dos diálogos, seu movimento é
o de ir, é o de partir de, é o de tomar hipóteses não como princípios, mas como hipóteses de
fato (ao contrário dos geômetras que, mesmo operando suas demonstrações ante um
interlocutor, tomam suas hipóteses como princípios claros a toda gente) para chegar-se, assim,
ao princípio que as fundamenta ou rechaça, “para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é
o princípio de tudo, (...) até chegar à conclusão, sem se servir em nada e de qualquer dado
sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias” (PLATÃO [Séc.
IV a.C.], (Trad.: Pietro Nassetti) 2000, p. 209).
O raciocínio de Platão realça a relação claro/escuro, em que se parte da gradação mais
escura da sombra (passando pelas nuances reflexo/imagem e ciência, tal qual aplicada desde a
ótica dos geômetras/modelo) para o ápice da luz redentora contida na, e à qual se chega pela
44
ciência da dialética, aquela que pelo exercício dos diálogos conduz à essência de tudo. Tal
linha de pensamento se vê em Aristóteles mais acentuada, sendo levada ao extremo da lógica
binária do certo (de novo, o claro) ou errado (aqui, toda a gradação modelo, reflexo/imagem e
sombra, sinônimos aristotélicos de obscuridade, engano e ignorância). Assim, tem-se, por um
lado uma filosofia aristotélica de caráter por assim dizer mais realista, que deprime, decanta a
imagem como deturpadora do real, posto que distante da Verdade Absoluta que também
permeará as vertentes do pensamento racionalista ocidental desde a redescoberta e retomada
dos escritos de Aristóteles; e, por outro, as matizes mais brandas lançadas para a imagem no
pensamento do primeiro herdeiro socrático, Platão.
Importa ressaltar que, ainda para Gilbert Durand, esta herança platônica de um olhar
mais matizado para a imagem acabará por reanimar ora e vez o que o filósofo francês chama
de resistências do imaginário ante todo um iconoclasmo que se agigantava, pouco a pouco se
sobrepondo a ele, o imagético, o imaginário; algo mais evidente nas disputas religiosas sobre
a questão da imagem desde o século VIII cristão, mas que, a meu ver, complementando o
caráter mais propriamente material do assunto, também se aplica a todo um iconoclasmo que
abrange ainda o campo das ideias, do pensar, do pensamento, do mental. E, em minha
opinião, está justo nas tramas dessa gradação, justo nessa matização platônica em que
entremetida está a imagem, é justamente aí que inserida está uma espécie de respeito, de
consideração maior pelo imagético, pelo imaginário.
Nesse tocante, um temário ganha relevância na órbita de considerações platônicas
sobre a imagem. Nas palavras de Durand (2011, p.16, grifo meu), “Platão sabe que muitas
verdades escapam à filtragem lógica do método, pois limitam a Razão à antinomia e revelamse (...) por uma intuição visionária da alma que a antiguidade grega conhecia muito bem: o
mito”. Sim. O mûthos, que animará a observação aristotélica sobre o filósofo ser também um
philómuthos, é em Platão mais do que “uma reunião de maravilhas” (respeitando-se os dizeres
aristotélicos já mencionados). Desse modo, parece-me complementar tal observação o
argumento de que
[g]raças à linguagem imaginária do mito, Platão admite uma via de acesso para as
verdades indemonstráveis: a existência da alma, o além, a morte, os mistérios do
amor... Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica fala
diretamente à alma (DURAND, 2011, p. 16-7).
Isto exposto, vale pensar na concepção que Durand dá ao mito: “uma intuição
visionária da alma”, unindo, através da utilização do adjetivo “visionária”, certo aspecto
mítico (mais ligado a um passado no qual o mito se origina na tradição oral) a outros dois
45
pontos estabelecidos assim pela presentificação contida na figura do sujeito visionário e no
sujeito paciente do que é “visto” e pelo futuro como objeto, ponto final da “visão”, daquilo
que é visualizado ou, em outros termos, “visionarizado”.
No entanto, em meu modo de ver serve ainda inquerir-se sobre o mito desde a
perspectiva apresentada pelo historiador e sociólogo canadense Gérard Bouchard (2005, p.
3,), para quem “o mito (...) deve ser avaliado não na relação com a verdade (a conformidade
com o real), mas na relação com a eficacidade (a capacidade de superar as contradições)” 25.
Aparentemente dicotômicas, vejo ambas as concepções como complementares entre si, as
quais podem dialogar, também de maneira complementária, com outras concepções mais
tradicionais sobre o mito. Entretanto, para além do quão valioso seria aprofundar uma
discussão mais abrangente das concepções, da percepção de relação do mito com a imagem
nas letras (mesmo as que se originam no registro oral), no literário e na filosofia, entendo que,
no presente estudo, tal aprofundamento contribuiria mais como um exercício de erudição do
que propriamente de aporte.
Por conta disso, e por conta do recorte ora proposto neste estudo, apresenta-se como
mais produtivo debruçar-se acerca de como esses campos se mesclam, também, às ciências
nos diálogos socráticos de Platão; ou seja, refletir brevemente sobre o modus operandi da
imagem no texto platônico, na tecedura de suas exposições, algo que virá, enfim, ao encontro
de tópico importante a respeito do trato do imagético na ficção de uma das mostras literárias
(o La frontera de cristal, de Carlos Fuentes) componentes do presente trabalho doutoral.
Passo, então, a tratar; anuncio, assim, que dou vez à abordagem da relevância da metáfora
como recurso linguístico de imagem em um texto, buscando evidenciar abaixo as razões de tal
escolha.
Ainda que o termo “figura” tenha parte de sua significação prontamente aproximada à
noção de imagem (ou à amplitude de suas significações), cogito a compreensão de tropos
como a metáfora, a alegoria, a metonímia, para mais além da categorização gramatical e
linguística de figuras de linguagem ou de palavras. Assim como Aristóteles (Livro III, IV, 1)
primeiro afirma que “a imagem é uma metáfora” para logo em seguida apontar que “entre
uma e outra a diferença é pequena” – deixando escapar ao fim que, sim, existe diferença,
mesmo que pequena, entre ambas, explicando-se pelo uso da comparação (imagem) e da
metáfora propriamente dita –, aponto diferença entre figura e imagem, concernente, baseado
25
Tradução de Zilá Bernd (2007).
46
no caráter ulterior da primeira, de reconhecida realização exterior à mente, e anterior da
segunda, com sua formação e mesmo realização ainda no pensamento.
Sendo assim, dada a expressividade do caráter imagético contido em tais tropos e seu
atributo de anterioridade em relação à ulterioridade da figura, pode-se mesmo cogitá-los como
a própria imagem na linguagem (já seja sob os auspícios de suas variações popular, culta,
literária, etc.), o que nos permite (re)pensá-los até mesmo sob o epíteto, aparentemente
tautológico, de “figuras de imagem”. Figuras de imagem na palavra, pela, através da palavra;
figuras de imagem na linguagem, agindo sobre a linguagem – mesmo a poética, em verdade
literária, que ora permeia e por onde às vezes “passeiam” a linguagem, a fala, a
expressividade, o modo de se expressar de tantos outros campos do saber como a filosofia, a
história, a antropologia; mas também ciências tidas como de caráter de expressão mais literal,
mais objetivo, já sirvam como exemplo as físicas, as matemáticas, as biológicas –; agindo
sobre a linguagem a partir do pensamento, de sua formação gestáltica como imagens no
pensamento.
Sobre a metáfora, cabe observar o caráter dúbio desde o qual pode ser interpretado o
uso de tal figura de imagem26. A metáfora aparece muitas vezes como uma das sinonímias de
imagem, recorrente nos mais variados dicionários. Assim, essa imagem verbalizada (imagem
que verbo vira) é, grosso modo, a operação do raciocínio por semelhança (o que remete à
lembrança de que similitudo é também um caráter dado às origens do termo “imagem”),
transpõe-nos de determinadas significações de uma palavra para outra com quem tem essa já
dita relação de similitude. Com vistas a “esclarecer”, facilitar a compreensão de algo no
discurso, pode tanto aproximar-se a certo requinte de recurso linguístico em seu expressar-se
por imagens, na sua transição de um sentido literal para outro tácito, latente, figurado; como
ter em sua utilização um alvo de críticas, por, se usada em exagero, transferir a quem assim a
utiliza aparente falta de objetividade ao expressar-se. Assim, parece estar precisamente entre
objetividade e subjetividade o campo das discussões que atravessam as possibilidades do
termo.
No que toca à abordagem da imagem voltada para a análise literária das obras que
compõem minha tese, o papel da metáfora é fundamental para a interpretação que dedico ao
26
Figura de imagem na/pela/através da palavra: chamo-a assim porque ela é, antes de tudo, imagem no
pensamento para, depois, “materializar-se” no registro que a requer, ou do qual se tem ação subsequente,
imediata a sua formulação e/ou estabelecimento no pensamento, o que não implica dizer que não possa haver aí
uma relação de reciprocidade com momentos em que também a linguagem (ainda que entendida como pronta
ação do pensar, resposta quase sempre imediata do/ao pensamento) serve, com informações que já prestou e
emprestou ao cérebro que mnemonicamente as armazenou, à metáfora no seu processo mental de formação,
reafirmação, reformulação ou reapresentação.
47
romance de Carlos Fuentes. Desse modo, afirmo que a metáfora nesse autor pode ser avaliada
desde um diálogo entre uma apreensão teórica mais tradicional fundada em Aristóteles e uma
visão mais contemporânea, eco talvez de uma abertura existente já nos preceitos platônicos
sobre o assunto. A respeito da primeira apreensão, destaco os trabalhos do filólogo brasileiro
Walter de Castro (1977), quem, ao refletir sobre o papel da metáfora em obras de Machado de
Assis, elenca uma série de concepções de autores calcados em uma visão mais aristotélica que
restringia a metáfora à ordem da poética, do literário, como efeito de estranheza. Apesar da
plêiade de considerações teóricas que traz à baila, Walter de Castro não deixa, contudo, de
fixar suas próprias observações sobre o temário, com destaque para a categorização que
apresenta acerca dos tipos de formulação da metáfora: ligadas pela preposição “de”, verbais,
adjetivas, em aposto, com o verbo de ligação “ser”, iniciadas por demonstrativo, de um só
termo e associações mistas como o que chama de metáfora metonímica (Cf. CASTRO, 1977,
p. 44-75).
No tangente ao olhar teórico contemporâneo sobre a metáfora, ressalto o trabalho
conjunto do antropólogo francês Dan Sperber com a linguista britânica Deirdre Wilson. Esses
autores, através da perspectiva que denominam de teoria da relevância (1995), defendem a
metáfora como elemento, produto linguístico, abordada a partir do ponto de vista de produção
da e na linguagem, sem, para isso, afastar-se tanto (a metáfora em seu aspecto de produção)
da linguagem literal. Também empenhados em explicitar que o papel, o uso e a relevância da
metáfora não se restringem à linguagem literária, o linguista estadunidense George Lakoff e o
filósofo também estadunidense Mark Johnson, através de sua teoria cognitivista de metáfora
conceitual (1988), apontam para a importância do processo de metaforização que se destaca
mesmo na linguagem cotidiana, algo que vai de encontro ao realce dado à questão pela linha
teórica de tradição aristotélica, que destaca o valor do tropo metáfora como habilidade
distintiva de escritores, em especial, dos poetas. Apesar de convergirem em ressaltar que a
metáfora é própria também da comunicação quotidiana, Sperber & Wilson e Lakoff &
Johnson divergem quanto ao ponto de partida do processo metafórico: para estes, importa
mais seu processo mnemônico de formação primeira no pensamento; para aqueles, a
metáfora, em verdade, vai da linguagem, primeiro, ao pensamento, depois.
Com relação à abordagem que ora viso destacar, informo não fazer parte de meus
objetivos neste trabalho doutoral refletir com profundidade sobre a natureza e a estrutura da
metáfora. Ainda que por certo se vá reconhecer a leitura anterior de teóricos do assunto, a
intenção aqui é, antes, expor, estudar e aprofundar os mecanismos de uso da metáfora como
recurso de imagem literária no texto fuentesiano e a importância desse uso na contribuição de
48
formação e/ou reafirmação de imaginários. Nesse aspecto, se por um lado minha linha de
análise por certo tende a coincidir bastante com a visão contemporânea (e creio mesmo que
ambas as perspectivas linguistas não se excluem, antes, complementam-se, principalmente por
entender que há a possibilidade de existência das duas vias defendidas por tais correntes, no
que toca ao processo de construção/realização da metáfora); por outro, sob meus termos não
se adentrará em demasia nos domínios da linguística, mormente importando, repito, a
metáfora como recurso literário de imagem. Mesmo na abordagem de sua ação sobre
imaginários, consequente de sua ação sobre e com o leitor-receptor, serão as especificidades
literárias de tal ação que mais importarão, razão pela qual (e me explicarei ainda melhor mais
adiante) há predileção pela remissão à metáfora em Platão, em detrimento da argumentação
aristotélica.
Muito do que então defendo quanto ao temário imagem/imaginário coincide com a
teoria cognitivista que amplia o olhar lançado para a metáfora. No entanto, ainda que seja uma
de minhas postulações entender a imagem, o imaginário como frutos de um processo no qual
interagem mente-cérebro-pensamento, prisma a que se adere a psicologia gestáltica de
fechamento de formas; ainda assim, é ao trato metafórico e metonímico da imagem, por vezes
contrapondo-se à alegoria, dentro da literatura (reitero, aqui ainda em Fuentes), que procurarei
mais bem me ater. Assim, é entre Platão e cognitivismo que se situa minha concepção
particular, na visão que dedico à relevância da metáfora no romance de Fuentes, no processo
que estabeleço como um amplo processo de metaforização, doravante ampla metáfora, como
veio, via e caminho de relação com imaginários sobre os (des)encontros de alteridade com os
quais dialoga a obra.
As vias de acesso à metáfora, a busca por compreendê-la e até delimitá-la de maneira
teórica acabam o mais das vezes por cair em um lugar comum. Do modelo aristotélico aos
estudos mais contemporâneos sobre o assunto, temos variações que sintetizam a translação de
sentidos própria do processo metafórico descritas em termos como A e B, A é B, B é A,
domínio origem para domínio alvo, etc. Dessa maneira, percebe-se uma busca por abordar-se
esquematicamente a essência da metáfora, comumente encontrada em toda ordem de
teorizações onde o que se absorve, ao fim, é certo aspecto da qualidade metafórica de
transferência de sentidos expressa a partir de estruturações cuja maior diferença entre si acaba
por limitar-se ao âmbito das nomenclaturas. Por isso, ora ela é a mãe de todos os tropos, ou o
único e verdadeiro tropo, ora ela se agiganta de outras maneiras, preenchendo toda a
linguagem. Porém, em minha opinião termina por ser desprestigiado, ou ao menos não ser
49
explorado como deveria, seu princípio a meu ver mais importante: de fato, o da
TRANSFERÊNCIA.
Nesse aspecto, talvez tenham sido cognitivistas como Lakoff e Johnson 27 os que mais
bem se aproximaram de tocar justo no deslocamento que sugere a metáfora, defendendo a
existência do mapeamento entre os conceitos constitutivos dela. Ainda assim, mesmo que
estes se aproximassem de ressaltar o caminho, resultam, tanto dos esquemas aristotélicos
quanto da esquematização cognitivista, produtos binários, resultados de uma organização
binária que beira, em verdade, a comparação: objetivo/subjetivo, concreto/abstrato,
literal/figurado, A/B.
A atenção voltada para o uso da metáfora em La frontera de cristal (título por si
introdutor de uma grande metáfora), decerto tende a aproximar o leitor à comparação por
meio de binarismos; mas, aí está o segredo: apenas tende. De fato há nas imagens de Fuentes
duas pontas na linha de transição semântica de suas amplas metaforizações. Porém, passa a
importar o caminho sinuoso dessa TRANSFERÊNCIA de sentidos, caminho que traz às
pontas dessa transposição não verdades extremas, mas conceitos, relações de limites porosos.
Assim, o que às vezes é aparência recebe profundidade.
Desse modo, importa em La frontera pensar, na verdade, se o ponto aparentemente
abstrato da linha de transferência de sentidos, que teoricamente pode ser que parta do
aparentemente concreto, de fato é abstrato para o receptor; pois sucede que o autor usa de
artifícios estético-literários para que, com efeito, esse sentido aparentemente abstrato seja, soe
familiar ao leitor/receptor, a tal ponto que ganhe grau de concretude, germinando, ou
atraindo-o para um imaginário.
Deturpando, então, subvertendo, aproveitando-se da instabilidade que há no binarismo
concreto/abstrato, literal/figurado, Fuentes dá margem a que se pense em “concretudes” outras
para significantes cujo teor de concreção é aparentemente estável. Entretanto, cessam aí as
artimanhas, porque tais significantes outros não se deixam interpretar sob outros universos de
conceptualização, sob outras constelações semânticas, para aproveitar o termo cunhado por
Zilá Bernd em interessantíssimo mapeamento de figuras e mitos das Américas (2007).
É, em tal impossibilidade de reinterpretação em novos contextos, que a ampla
metaforização fuentesiana se afasta de outra figura de imagem, a alegoria; por essa razão,
aproximando-a, metáfora ampla, da composição com imaginários: por relacionar-se com a
27
Com argumentação desenvolvida a partir do que chamam metáfora e teoria popular no discurso, que advém de
sua crítica e complementação à Teoria da Metáfora do Canal, do também linguista estadunidense Michael Reddy
(1979).
50
alegoria através do afastamento, da oposição, da diferença; e com a metonímia pela
proximidade, “parceria” entre ambas, da qual se aproveita o autor. Convém agora, explicitar
tal relação, primeiro para explicar o que chamo de metáfora ampla/ampla metáfora e, depois,
para esclarecer as correspondências e distanciamentos que a levam a compor com
imaginários.
Como já expus anteriormente, o uso da metáfora em La frontera de cristal parte
primeiro da relativização de relações entre os extremos da ordem binária a que costumam ser
vinculados os termos de uma metaforização. Assim como a fronteira mexicana (e)levada a um
prisma de cristal atrai como ímã os personagens principais, Fuentes “convoca” os leitores por
meio de suas imagens, as imagens que tece, trabalha, embaralha, desorganiza, reorganiza.
Por meio da semelhança que propõem, as metáforas da fronteira em Fuentes são
metáforas das relações de alteridade sobre as quais se debruça o ficto da obra em epígrafe.
Para tanto, há a construção da metáfora ampla, que se caracteriza por basear-se em uma
metáfora principal preponderante dentro de certos contos-chave do romance, uma imagem
principal (particular para e em cada um desses contos) que é apresentada de forma
fragmentada, porém repetida, pouco a pouco em tais contos-capítulo. Seu poder de agregar-se
a, ou de implantar imaginários, é lógico, depende das instâncias de recepção de cada leitor.
Mas, também para que tal articulação resulte eficiente, receba seu grau de efetividade, de
eficacidade – relembrando o termo cunhado por Bouchard (2005, p. 3) em sua abordagem
sobre o mito –, há apoio dessa repetição da metáfora principal, há o apoio desse processo de
metaforização em outra figura de imagem importante para conduzir a metáfora ampla a um
imaginário determinado: a metonímia.
Sobre a metonímia, cabe o adendo de que alguns autores não enxergam razão para que
se a separe da metáfora, entendendo-a como uma extensão desta, tamanha a possibilidade de
tomar-se uma pela outra, de confundir-se uma com a outra, decorrência ainda da compreensão
de metáfora como “mãe” de todos os tropos, de todas as figuras, e de que ambas trabalham
com uma extensão associativa de significados. Linha diferencial tênue, porém bastante
pertinente, é a de que enquanto a metáfora trabalha sob uma transferência entre termos de
campos sêmicos, teoricamente, o mais das vezes bastante separados entre si, o que aumenta a
possibilidade de estranhamento, de surpresa no efeito produzido, a metonímia atua desde um
lugar em que os sentidos dos termos, dos nomes relacionados têm aproximação mais
imediata, dado o caráter de maior contiguidade semântica que conservam entre si.
Podemos dizer que há ainda na metonímia uma atenção maior à troca e uma
consequente associação de sentidos entre nomes. Nesse caso, podem ocorrer as seguintes
51
relações de inclusão: hiponímica, a pars pro toto, em que há a substituição de nomes, da parte
pelo todo; e hiperonímica, a totum pro parte, da parte que através do nome se toma pelo todo.
Há autores que defendem hiponímia e hiperonímia como casos de outro tropo, a sinédoque.
Outros autores, entretanto, colocam a sinédoque como um tipo de metonímia. Meu
entendimento vai ao encontro da segunda opção, por entender que a origem grega de ambos
os termos, “além do nome, o que sucede o nome”, para metonímia, e “compreensão
simultânea” para sinédoque (Cf. FIORIN, 2013, p.2), acaba por ser respeitada nas abordagens
sobre e para a compreensão mais ampla do sentido de metonímia; ou seja, segue respeitada a
questão do nome, a qual se atém a etimologia do termo, tanto na transnominação simultânea
de ordem hiponímica quanto na hiperonímica.
Desse modo, a expressividade das imagens-metáforas escolhidas para se repetirem
pelo narrado de cada conto se agrega ao poder sintetizador da operação metonímica todo pela
parte, parte pelo todo, alcançando, obtendo efeito de imaginário, efeito plausível de inclusão e
apreensão por parte do imaginário, de um imaginário, de imaginários, já que um imaginário
para assim ser considerado necessita, em seu efeito totalizador, condensar sua coleção de
imagens, as imagens que totaliza, sintetizando-as, produzindo, introduzindo, reproduzindo,
reapresentando intencionalmente no texto conceitos e pré-conceitos, ideias que formarão,
unir-se-ão a esse mesmo imaginário.
Sendo assim, é desse modo que se dá a apreensão do receptor pelos imaginários
sugeridos em La frontera de cristal: o leitor é submetido aos imaginários suscitados através
de uma ampla metaforização inserida em contos-capítulos de forte relação de
complementação entre a metonímia (condensadora de ideias) e a metáfora-base do conto,
repetida até que se chegue à imagem final, à metáfora final, nada mais que reflexo da
metáfora-base, mas que ganha caráter expressivo ainda maior, pelo uso dos recursos
anteriores que a anunciam, fazendo dela cena expressiva de grande força imagética, ampla
metáfora, metáfora aumentada, imagem maior, mas que sem o apoio na condensação e no
poder de generalização da metonímia e na repetição de sua metáfora-base pouco produziria de
efeito, pouco contribuiria para que se pensasse em imaginários na obra.
Ainda com relação à contribuição das imagens suscitadas pela e trabalhadas na obra
para a abordagem de imaginários, será interessante como a presença de outra figura de
imagem não exercerá tal papel. Falo da alegoria, também presente em La frontera. Assim
como a metáfora, a metáfora ampla que apresento e defendo como elemento constitutivo
essencial para a leitura da obra desde seu teor mais imagético, aproxima-se, a meu ver,
sobremaneira de imaginários, deles se afasta a alegoria pelas mesmas pequenas diferenças que
52
a afastam da metáfora. Pequenas, porém precisas e importantes para explicitar ainda mais o
intrínseco da relação metáfora/imaginários. E nesta relação, por que esta (a metáfora) e não
aquela (a alegoria)?
Para entender a distinção que faço entre o uso da metáfora ampla e da alegoria em La
frontera de cristal, é importante ressaltar que ambas são resultantes de processos de
metaforização por que passam os contos-capítulos que integram a obra. Ocorre que, quando
desse processo metafórico resulta uma leitura aproximativa de imaginários, isso advém do
fato de que o produto final do conto-capítulo é uma metáfora ampla. Enquanto isso, nos
contos cujo resultado final venha a ser uma alegoria, não há uma possibilidade de
aproximação dessa resultante para com a formação ou perpetuação de imaginários. Para tanto,
é necessário fixar bases de conceituação de um imaginário, tarefa da qual não me furto. Antes,
porém, é necessário revisitar a alegoria e as concepções que envolvem os conceitos
norteadores de sua apreensão.
A alegoria, mesmo tomada como figura de imagem de relevante papel para a
expressão do pensamento na linguagem (respeitando-se uma vez mais a via de mão dupla
possível nessa interação), ganha desde Walter Benjamin (1892-1940) um caráter a mais, o de
conceito crítico contemporâneo, majoritariamente aplicado, atinente à arte. Dessa maneira,
somada a sua origem grega denotativa de usar linguagem pública para dizer algo expressando,
em verdade, outra coisa, e a sua conotação e remissão à expressão voltada para difundir
valores religiosos e políticos pela arte; somado a esses tópicos de historicidade do termo,
Benjamin percebe analogia entre os sentimentos de perda do homem seiscentista barroco e do
oitocentista romântico (este, a partir de Baudelaire, que, ao contrário do Romantismo vigente
à sua época, vê no símbolo uma impossibilidade de expressão diante da submissão da arte
pelo capital). Mesmo assim, enquanto em Benjamin o luto ante um mundo para ele em ruínas
aproxima a melancolia ao grotesco, na linha divisória notada em Baudelaire, desde a cisão
romântica, a ruína e a perda serão tratadas alegoricamente pela arte através da cólera (Cf.
BENJAMIN, 1989, p. 164).
Partindo-se, então, dessa concepção benjaminiana da alegoria, a perda, a ruína, o
silêncio e o luto tornam ao alegorista, são de novo suas instâncias. Quanto à ruína, seu caráter
de fragmento poderia ser pensado como aproximação à fragmentação da fronteira proposta já
na divisão do enredo da obra de Fuentes em epígrafe. Entretanto, a fragmentação de um todo
narrativo em contos não implica a construção de um romance fadado a falar sobre ruínas.
Não. Quando quer ser alegórico, Fuentes o é em alguns contos da obra, os quais contribuem
mais a uma nova rede de interpretações do que para um entendimento total de aceitação de
53
perda, consequente luto. E aí está outra importante diferença da alegoria para a metáfora
ampla em La frontera. A variedade interpretativa, a possibilidade de releitura do alegórico em
outros contextos é ponto pacífico da teoria que se debruça sobre a alegoria28.
Já a metáfora, e mesmo a metáfora ampla em Fuentes, coincide em certa medida com
a obliquidade do caminho que faz do abstrato algo concreto também no alegórico; mas, a
quantidade de significados pertinentes a um determinado significante, por maiores que sejam
as possibilidades, vai ater-se, restringida estará a um campo de significações muito próximas
em seu grau de concretude para o receptor, presa a metáfora a uma mesma constelação
semântica.
Na alegoria, o que hoje pode ser lido de uma maneira; em contextos outros, será
perfeitamente passível de novas interpretações. Por outro lado, nas metáforas de Fuentes, um
homem e uma mulher que se “beijam” separados por uma vitrine de cristal, beijam-se
metaforicamente em uma fronteira onde o encontro, a conciliação é dada como impossível. E
ainda que a esses valores se agreguem o espelho e a fragilidade do cristal, o máximo que
acontecerá será o empréstimo do frágil do cristal para a fronteira mexicano-estadunidense,
que já tem como preestabelecida essa condição enquanto parte de suas significações com grau
maior de concretude do que permite a aparência de abstrato do campo de significações a que
pertence o frágil. Dada toda construção imagética, apoiada, ancorada, calcada na repetição da
metáfora base do conto adjunta a momentos de metonimização, a interpretação mostrada pela
metáfora ampla não é passível de releitura, com a mesma expressividade, em um contexto que
dela excluísse a fronteira México-EUA e a fragilidade das relações nela estabelecidas.
Do exposto acima, extrai-se outra característica que afasta a alegoria de imaginários:
sua provisoriedade. Essa possibilidade de uma leitura de elementos outrora deixados de lado,
passíveis de releitura em outros contextos históricos a afasta do caráter de permanência de um
imaginário. Um imaginário pode até permanecer latente certo tempo; mas, ao ressurgir, o seu
ressurgir indômito não traz em si uma possibilidade de reinterpretação dos caracteres que o
compõem, que forjam sua inteireza. Inteireza forjada a partir da justaposição de elementos
como conceitos, ideias e pré-conceitos a cuja ordem sintética melhor se adaptam e se agregam
a metonímia, a metonimização e a metáfora, que em Fuentes não quer, não traz em si qualquer
intenção de provisoriedade, razão pela qual pode unir-se a um imaginário.
28
Para aprofundamento ainda maior a respeito do tema, remeto o leitor para a interessante síntese que traz sobre
a questão e a historicidade da alegoria a filósofa brasileira Zahira Souki, no artigo “Alegoria: A linguagem do
silêncio” (2006), cujos dados completos de publicação constam na bibliografia da presente tese.
54
Uma alegorização pode até mesmo estruturar-se a partir de um processo metafórico, a
partir do trabalho com imagens sugeridas por metáforas. Tal caso pode inclusive ser
observado em Platão, nos livros VI e VII do seu A República (IV a.C.), quando as ideias que
levam a ideias e a outras ideias até que se chegue ao princípio absoluto são repetidas vezes
transmitidas a Glauco pela figura evocada de Sócrates através de imagens, explicações via
metáforas. Não à toa o enredo dos dois livros, dada a maior proximidade do pensamento
platônico para com o mito, é tratado tanto como Mito quanto como Alegoria da Caverna,
provocadora de leituras e releituras, arbitrárias e intencionais, de acordo com o contexto
histórico em que retomadas são.
De maneira contrária, nas histórias que em La frontera se agregam a imaginários,
apesar destas também se apoiarem no trabalho com metáforas, o processo de metaforização
em que se ancoram gera não uma alegoria; mas, antes, uma metáfora ampla que terá seu lugar
somente no contexto sobre o qual se debruça, buscando inserir-se dentro de um temário de
força já bicentenária, a migração, os (des)caminhos de migração na zona fronteiriça de
confluência que compartem México e Estados Unidos.
Ainda com vistas a tratar da relação entre imagem e literatura, cabe agora expor
considerações sobre tal leitura na outra obra componente do corpus deste estudo de
doutoramento: o também romance em contos ...y no se lo tragó la tierra. Se em Fuentes
sobressai a relação com o que podemos chamar de imagem verbal (categoria em que se insere
o tropo metáfora mesmo quando, no caso da ampla metáfora, intensifica-se como conceito), a
ligação do literário com a imagem em Rivera parte do estilo lacônico do texto para com a
fotografia e a pintura.
A elipse é a forma e o estilo que permitem a leitura do laconismo no texto de Rivera.
Configura seus nexos de modo que, de fato, possa ser percebida certa harmonização de forma
elíptica (da elipse matemática mesmo) no aparente “caos”, na aparente desorganização
contida nas histórias de um chicano narrador sobre doze meses de migração e exploração de
trabalho rural, braçal e as relações de exclusão e tentativa de inclusão vividas por ele e sua
família em solo estadunidense, durante meados dos anos de 1950. A configuração elíptica da
obra revela de modo curioso a relação entre dois números desde os quais se apoiam a volta da
elipse na narrativa. O número 1 e 2 estreitam laços já na estruturação do romance. Os doze
(12) contos que compõem o corpo narrativo da obra estão ladeados por dois outros
localizados entre uma ponta e outra da narrativa. Apertura e cierre, início e fim, curiosamente
os dois contos podem, inclusive, ser invertidos, ter sua posição oposta em cada ponta do
narrado que, ainda assim, irão manter sua função de Introdução e Conclusão, artifício que nos
55
remete à lembrança de que Tomás Rivera, autor da obra, foi não só ficcionista mas também
importante e atuante acadêmico dentro das letras chicanas nos Estados Unidos.
Pois bem, a essa estruturação do doze (12) ladeado por 1 (Introdução) e 2
(Conclusão) se apoia outra: uma estampa introdutória para cada um desses doze contos que
sucedem o conto-introdução e que precedem o conto-conclusão (e mais uma, para esse
mesmo capítulo-conclusão). Dessa maneira, temos que, da estruturação 1 (12 e 12) (1) 2, lê-se
uma introdução que precede doze estampas e doze contos antecedentes de uma última
estampa e uma conclusão, um conto-conclusão em estrita relação de troca com a história
introdutória, sem perda do ciclo elíptico-narrativo, com a conservação daquilo que em ...y no
se lo tragó la tierra se pode chamar de elipse romanesca dada ao todo narrativo da obra, uma
reunião supostamente desordenada de contos.
Ora, se considerarmos que a elipse como figuração matemática se trata de uma curva
plana fechada na qual todos os pontos apresentam uma propriedade comum, que é a soma das
suas distâncias em relação a dois pontos fixos no interior dessa mesma curva, estabelece-se
desde já uma analogia possível em que os dois pontos fixos (ainda que em constante
possibilidade de troca de posição como eixos, razão pela qual podem ser mais bem entendidos
como focos) na referida obra de T. Rivera são seus contos 1, de abertura, e 2, de fechamento;
e todos os pontos restantes estão reunidos também no interior da curva elíptica narrativa,
através da relação 1 e 1 (uma estampa, um conto-capítulo), repetida doze vezes, com suas
distâncias relacionadas (não de forma linear, herança rulfoniana da qual falarei em posterior
capítulo-análise dedicado ao texto riverano) para com os nexos que se estabelecem com os
pontos “fixos” Introdução e Conclusão, conforme figura que poderá ser vista no primeiro
tópico do segundo capítulo do presente trabalho.
Estabelecida a “visão” dessa elipse como imagem formadora, ou seja, que empresta
seu “desenho” à forma do texto, é importante anotar, ainda, de que maneira são orquestrados
os recursos a permitir falar-se, também de modo relevante, em implícitos, em subentendidos,
em omissão de palavras (características próprias da elipse gramatical, além de propriedade
cara ao gênero conto do qual se forma o romance ora em destaque) em ...y no se lo tragó. A
relação de leitura da obra supracitada é feita em um jogo de interdependência para com o
leitor, pois é dele, receptor, que se espera a procura e o estabelecimento dos nexos que a
narrativa deixa aparentemente de abordar, deixa aparentemente “no ar”. Entram então em
cena a estampa29, como um micro episódio narrativo, um micro conto, e o conto breve que a
29
Remeto o leitor para a nota 6, onde busquei apresentar algumas das definições nas quais pauto minha
abordagem para o termo estampa.
56
segue. Será o efeito de imagem inserido, produzido desde a realização de cada uma dessas
estruturas narratológicas que permitirá visualizar a relação do narrado, do escrito com o
imagético e o pensar a obra sob o ponto de vista de alocação junto a um ou mais imaginários.
A estampa e o conto breve neste romance têm ligação intrínseca com a origem do
próprio Tomás Rivera, nascido em Crystal City, Texas (EUA), no seio de uma família de
raízes mexicanas. Filho de trabalhadores rurais migrantes, Rivera, quando menino, percorreu
e viveu a migração e a exploração do trabalho chicano no sudoeste estadunidense, e as
mazelas e os desvios que com tal percurso vieram na busca por sobreviver e por viver o que
Julio Ramos e Gustavo Buenrostro (2012, p. 49) chamam de “ficção de cidadania”, o sentir-se
cidadão do ou nos Estados Unidos da América do Norte. Assim, aceita já por toda uma crítica
em torno do romance, há a interligação entre o que conta o menino narrador da obra (e as
vozes que este rememora) e o que viveu o próprio autor em sua infância, fato que sugere uma
estrita vinculação entre ficção e memória.
Desse modo – como em um excêntrico memorial de um ano de migração familiar de
um menino que se dividia entre o trabalho rural e o inserir-se em escolas onde o uso da língua
falada com seus pais e a gente com a qual convivia nos bairros chicanos era constantemente
repreendido –, as estampas e os contos da obra se apresentam como fragmentos de memória
dispostos numa aparente desordem linear que, em verdade, quer remeter, quer fazer jus à falta
de linearidade própria da irrupção de memórias no indivíduo, em qualquer indivíduo. No
entanto, para a aparente desordem de suas recordações, de seus recuerdos, o narrador riverano
deixa o conto primeiro e o último capítulo de seu romance, que mesmo se invertidos fecham
em elipse sua narrativa, a qual necessita da volta do leitor aos nexos dispostos nas estampas
que apresentam (ou não, pois nem sempre há uma relação imediata) os contos que as
sucedem.
Tais estampas trazem a relação com histórias contadas ao menino, e com sua ação e
receptividade diante do religioso, do fantasmagórico e mesmo do cotidiano dos bairros ou dos
assentamentos rurais em que vivia. Nesse aspecto, “brincam”, jogam, juegan tais estampas
com o caráter dado a uma das significações possíveis para o todo, para o significante, para o
grande amálgama IMAGEM: o de estampa que representa assunto ou motivo religioso, valor
às vezes subvertido nas estampas de ...y no se lo tragó, representando também a posição de un
niño ante tal religiosidade e a flutuação e maneira de lidar e apreender todo um sincretismo e
cosmogonia que atravessam a interculturalidade de sua gente, entre raízes mexicanas já
pluriculturais, entre o sentimento chicano (mais forte na ruptura do menino, no não “encaixar-
57
se” aqui ou ali, como um sentimento de geração ainda sem nome), e entre a imposição do
estadunidense.
Porém, além da pintura, enquanto representativa de estampa em relação com o
cultural, o cotidiano e o religioso de uma coletividade, a estampa e seu laconismo funcionam
também como um instantâneo advindo da memória, “fotografia” rápida de um momento, foto
revelada da memória, instante que se finge captado, apreendido, pela lente da memória,
apoiado na descrição de uma escrita lacônica, que sugere necessitar do receptor dessas
imagens, na busca de um nexo, de um antes e depois da tomada da fotografia, na busca de
sujeitos, na busca de saber e entender quem é agente e quem é paciente nestas, destas fotos,
imagens, instantâneos, estampas lacônicas. Eis daí outra vinculação, pois subsequentes a estes
instantâneos, a estas estampas estão vinculados os contos seguintes, não necessariamente de
modo esquemático, a título de causa e efeito, porque não são todas as estampas que
apresentam, que têm relação estrita com o conto que as sucedem. Mas, tal vinculação é dada à
ordem de seu tamanho. Enquanto a estampa se assemelha a um instantâneo, o conto, o
capítulo que a sucede é maior, é algo mais extenso. Assim, nessa hierarquização de
brevidades, por ainda ser breve sugere a brevidade de uma fotografia mais detida, advinda de
um fragmento de memória mais trabalhado (talvez no tempo maior que teve o narrador para
pensá-las no conto final, conto conclusão “Debajo de la casa”, como veremos melhor no
capítulo dois desta tese).
Entretanto, enquanto as estampas-instantâneos trazem uma ou outra cor a mais,
próprias da e necessárias para a descrição impressa na carga breve de sua narratividade, os
contos-capítulos que as sucedem têm, em seu laconismo, no rumor que deixam suas
(in)conclusões, aproximação maior com outro tipo de fotografia, a que se revela em preto e
branco. Sim, pois na dureza e secura do narrado lacônico que apresentam, as narrativas dos
contos pós-estampas deixam algo por conta do receptor; faltam-lhes “cores”, presas, caladas
dentro do leitor-receptor das palavras que o tragam para dentro da narrativa. Esse algo a mais
pensará o leitor, tornando a ler os contos, suas estampas precedentes e dando a volta inteira,
como sugere o narrador na abertura, com os nexos estabelecidos em relação de troca nos
contos introdução e conclusão. Mas, a remissão a essas fotos em preto e branco não é fruto de
mera abstração descabida ou gratuita. É, antes, fruto do contato evidente da obra de Tomás
Rivera para com a de Juan Rulfo, aspecto que melhor defino no tópico 2.1 desta tese.
Por fim, ressoa importante contributo para a relevância da imagem na literatura e sua
apropriação por imaginários pensar nas imagens de Tomás Rivera como um trato original para
58
questões repetidas, anteriores, mas vistas sob outros focos30. Ao mesmo tempo, seria
interessante pensar nas imagens de Fuentes como imagens repetidas, mesmo que também de
modo original, sobre um tema ainda relevante para o homem contemporâneo. Nesse aspecto,
a reprovação formalista do valor da imagem segundo Potebnia acaba por agregar-se a um dos
aspectos que defendo como de formação e reafirmação de imaginários. Há toda uma defesa
dos formalistas que aponta que as imagens pouco têm de variável, pouco têm de variação, que
Quanto mais se compreende uma época mais nos persuadimos de que as imagens
que consideramos como a criação de tal poeta, são tomadas de empréstimo de outros
poetas quase que sem nenhuma alteração. Todo o trabalho das escolas poéticas não é
mais do que a acumulação e a revelação de novos procedimentos para dispor e
utilizar o material verbal, e isto consiste mais na disposição das imagens que na sua
criação (CHKLOVSKI apud EIKHEINBAUM, [1925] 1973, p. 15).
Já que não toco aqui de maneira ferrenha em questões de originalidade, pois entendo
que um imaginário pouco se apoia na originalidade das imagens que o compõem e antes sim
no acúmulo, na repetição e na recuperação indômita dessas imagens por seu(s) vetor(es),
aqueles que de algum modo (no nosso caso, pela literatura) estiveram sujeitos a tal
imaginária, a citação de Chklovski ilustra com precisão a relação Rulfo, Rivera, Fuentes ora
levantada. Ainda que o termo “poética” fosse abordado pelo formalista russo de modo mais
estrito para a poesia (principalmente o simbolismo russo) e com um pouco mais de boa
vontade para a literatura de ficção como um todo, pode-se fazer uma retomada do termo a
partir do conceito contemporâneo de poéticas, donde extrairíamos o debruçar de Rivera e
Fuentes (e algo trabalhado em Rulfo) sobre poéticas do deslocamento, da migração e das
relações daí advindas. Aos imaginários em que vão tocar, aos quais vão se aproximar entram
em destaque muito pelo procedimento que adota cada autor no tratamento de imagens
acumuladas de uma já citada poética que se estende pela contemporaneidade. Esse acumular
serve à continuidade dos imaginários, e o procedimento de cada autor, vinculado a suas
instâncias sócio-étnico-culturais vai ditar a apreensão de leitores que acabam por se identificar
a essas mesmas instâncias, latentes na ficção de cada um desses escritores.
30
Para o tópico do tema de exploração do trabalho migratório dos chicanos nos Estados Unidos, abordado desde
outras perfectivas ficcionais de um lado e do outro da fronteira mexicano-estadunidense, remeto o leitor uma vez
mais ao prólogo de Julio Ramos e Gustavo Buenrostro da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra (2012,
p. 43-6).
59
1.3 Historicizar para pensar: o que é um imaginário?
Imaginarium
imaginario, ria. (Del lat. imaginarĭus).
1. adj. Que solo existe en la imaginación.
2. adj. Se decía del estatuario o del pintor de imágenes.
3. m. Imagen que un grupo social, un país o una época tienen de sí mismos o de
alguno de sus rasgos esenciales.
4. m. Repertorio de elementos simbólicos y conceptuales de un autor, una escuela o
una tradición.
5. m. Psicol. Imagen simbólica a partir de la que se desarrolla una representación
mental. (Diccionario de La Real Academia Española en Línea/RAE).
Da epígrafe deste tópico nos fixemos primeiro no tautológico de tomar o termo
imaginário aqui antes como substantivo do que como adjetivo; ou seja, falamos antes de o
imaginário que de algo imaginário, razão pela qual, para efeitos de continuidade desde já
eliminamos as duas primeiras definições da palavra (ainda que, no caso da definição 2, como
exercício de abstração, possamos sim pensar o escritor como uma espécie de “pintor de
imagens”). Porém, as três propostas seguintes para definir o termo, por serem substantivações,
mostram-se mais de acordo com o que busco descrever de agora em diante.
O teórico literário alemão Wolfgang Iser, em sua busca por desvendar o que de fato há
de fictício na escrita de ficção, escreve que o texto ficcional carrega em si uma finalidade
fingida, a qual nada mais é que a preparação de um imaginário (Cf. ISER, 1983, p. 385). Para
o autor, o fingir não pode ser deduzido da realidade que busca repetir, fator pelo qual desse
modo nele surgiria um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Por
conseguinte, a realidade repetida se transformaria em signo, enquanto que, o imaginário, em
um efeito daquilo a que se refere (Cf. ISER, 1983, p. 385-6).
Já em nota adjunta ao artigo de onde se extraem estas considerações 31, Iser deixa claro
que trabalha o termo ‘imaginário’ como uma designação comparativamente neutra,
distinguindo-a, portanto, de conceitos como faculdade imaginativa, imaginação e fantasia,
constantemente justificados como faculdades humanas. O fato de que pudessem ser encaradas
como faculdades humanas é questionável para W. Iser, pois para ele cada conceito destes
pode ter significados distintos mesmo dentro de uma mesma área do saber; por exemplo, o da
fantasia: um para Freud, outro para Lacan, se nos atemos tão somente ao que se enquadra à
psicanálise. O teórico alemão esclarece dessa maneira não buscar determinar o imaginário,
31
Traduzido ao português como “Os atos de fingir ou O que é fictício no texto ficcional” pelos conceituados
intelectuais brasileiros Heidrun Krieger Olinto e Luiz Costa Lima.
60
mas, sim, circunscrever as maneiras como se manifesta e opera. Pretende antes descobrir
como ele funciona, para que, desde os efeitos descritíveis se possam abrir vias, caminhos
rumo, em direção ao imaginário, algo que resultaria da conexão, de acordo com o que trabalha
em seu artigo, entre o fictício e o próprio imaginário (Cf. ISER, 1983, p. 413).
Haja vista que a argumentação de Iser se refere, frente ao texto literário, à não
determinação do imaginário como uma faculdade humana, parece-me razoável, em dialética
com os argumentos expostos pelo autor alemão, expor certa divergência que trago em relação
a suas colocações. A partir das observações que surgem do eixo de minhas investigações,
creio, sim, que se possa relacionar a questão dos imaginários como algo que de fato tem a ver
com o âmbito das faculdades humanas, em especial com a psicologia (o que nos faz voltar ao
significado quatro que o dicionário da RAE confere ao vocábulo ‘imaginário’) e com
processos mentais, químicos, cerebrais os quais, estes, sim, penso estejam envolvidos na
função de abrirem vias para o imaginário. Não obstante, será o próprio Iser quem, em
determinado momento de seu texto irá, quase à maneira de um discurso que se complementa,
porém que ao mesmo passo “trai” a si mesmo, destacar o caráter de produção psicológica na
relação do real e do fictício com o imaginário. Irei utilizar tal “ato de autotraição” algo mais
adiante, pois parece uma boa ilustração para o fechamento das questões que desenvolvo neste
breve diálogo com Iser.
No entanto, há ainda para explorar outras interessantes aclarações do teórico alemão
sobre o tema imaginários. Uma delas diz respeito a apontar que no ato de fingir “o imaginário
ganha uma determinação que não lhe é própria, e adquire, deste modo, um predicado de
realidade” (ISER, 1983, p. 386). Para Iser, o real tem a característica da determinação (a qual
se alcança através do ato de fingir) como sua definição mínima. Em consequência, ainda que
não se transforme em real por este efeito determinante logrado pela ação de fingir, o
imaginário pode, em verdade, adquirir aparência de real enquanto puder por esse ato penetrar
no mundo e só então nele agir (Cf. ISER, 1983, p. 386). Neste aspecto, o imaginário
desempenha um papel transgressor de limites ao sair de seu caráter de surgimento difuso para
uma configuração determinada, razão pela qual só assim se assemelharia, confundir-se-ia
mais com o real. De tal operação se depreende, ainda segundo Iser, que sucede ao imaginário
uma realização (ein Realwerden) na conversão deste mesmo imaginário (que perde seu rasgo
fluido em favor de uma determinação) em efeito da realidade vivencial, retomada pelo texto, à
qual este mesmo imaginário se refere e com a qual ao mesmo tempo se relaciona (Cf. ISER,
1983, p. 387).
61
Ainda acerca da correlação que se estabelece entre realidade e imaginário, cabe
observar que inclusive a eterna discussão sobre a intenção autoral merece a atenção de Iser no
desenrolar de sua exposição. Para W. Iser, para além da intencionalidade do autor estaria a
intencionalidade do texto, pois ela se manifestaria na decomposição dos campos de referência
com que trabalha este mesmo texto literário. Dessa maneira, a intencionalidade textual passa a
apresentar-se como figura de transição (Übergangsgestalt) entre o real e o imaginário, sob o
preceito da atualidade que lhe é própria e inerente. Segundo sua linha de raciocínio, entendase por atualidade a forma de expressão do acontecimento; tal atualidade se refere ao processo
pelo qual o imaginário age no espaço do real.
Estabelecidas essas bases, Wolfgang Iser segue além com sua proposta substitutiva do
binarismo que advém do lugar comum onde se costuma opor de maneira simplista ficção e
realidade. A esse simplismo Iser propõe a entrada de outra visão: a de que se trabalhe a
relação complementária entre real, fictício e imaginário. Nesse aspecto, há que destacar-se,
ademais, o papel do fictício, uma espécie de conjunto de ficções (em um sentido que não se
restringe apenas à arte ou à literatura, senão melhor como uma gama de entidades fictícias,
compreendidas tais objetos de existência fingida pela imaginação).32 Para W. Iser, o fictício se
qualifica como uma forma específica de passagem a mover-se entre o real e o imaginário,
com a finalidade de provocar a complementação que um confere ao outro (Cf. ISER, p. 387).
Com efeito, o papel principal do fictício seria o de garantir ao imaginário sua significação, por
intermédio tanto da determinação de sua configuração quanto de sua referência a algo real, o
que apenas poderia ocorrer através da língua. É pela língua que as ficções adquiririam
aparência de realidade, aparência esta que teria origem na configuração concreta que as
ficções, entidades fictícias, outorgam ao imaginário. Assim sendo, as ficções tomariam por
empréstimo o caráter de realidade da língua. Como consequência, pode-se assim dizer que o
imaginário sai de sua “irrealização” na imaginação para um caráter de “realização” na língua,
seja, como aqui se nos apresenta como eixo analítico, em sua forma cotidiana ou literária.
Isto exposto, é importante destacar que essa realização do imaginário por intermédio
da língua passa antes por todo um processo de procura de significado, ou seja, uma busca de
semantização da experiência do imaginário, necessidade sentida, vivida pelo receptor, para
que o advento do imaginário se torne ou, melhor dito, molde-se a tons de mais familiaridade,
tornando-se mais compreensível, menos expansivo e, portanto, mais controlável. Neste
32
Aqui Iser trabalha a partir dos estudos do filósofo inglês Jeremy Bentham, materializados em Theory of
fictions, publicado em 1959, mais de um século após sua morte e passados dois anos da morte de C. K. Ogden,
responsável por cuidar da organização desta obra de Bentham.
62
tocante, tenha-se o sentido em um texto ficcional como uma inevitável operação em que a
semantização produz nos receptores o mesmo processo de tradução que o fictício efetua em
seus agentes produtores. Tais processos complementares de tradução do imaginário
comprovariam, assim, ser este a energia constitutiva do texto ficcional. Para Iser (1983, p.
409), “se o fictício é a tradução do imaginário na configuração concreta para o fim de uso, a
semantização é a tradução de um acontecimento experimentado na compreensão do
produzido”.
Tudo isso resulta de outra correspondência com a psicologia, levada a cabo por
Wolfgang Iser. Nela, o autor alemão trabalha a correlação entre percepção e representação tal
como empregada pela psicologia gestaltista. A tomada que faz desta teoria advém da corrente
da psicologia da Gestalt em que representação e percepção se empregam no sentido de
fechamento de formas, com as quais ambas ocorrem ao mesmo tempo, em que ambas são
produzidas através de nosso hábito psíquico de orientar a atividade de classificação dos
elementos absorvidos do real. Compreendida a Gestalt, grosso modo, como um processo, um
ato de buscar dar forma, de configurar o que se apresenta, o que se vê, o que se tem posto
diante dos olhos, exposto à nossa mirada 33, pode-se dizer, a partir dos argumentos iserianos,
que somente quando uma Gestalt se fecha é que se realiza a percepção, ou seja, apenas a
partir de então o objeto imaginário surge na consciência imaginante. Por isso, buscamos a
‘ordenação’ dos dados, para que os possamos distribuir de maneira a possibilitar a eliminação
da tensão que há no surgir aparentemente indômito do imaginário até enfim alcançar-se, já na
Gestalt fechada, a determinação que se pretende ter, a procura por fornecer ao imaginário um
caráter de “concretude”, diferente de sua inicial característica difusa de surgimento. Isso faz
com que, do caractere arbitrário que traz consigo o imaginário quando de seu ‘nascimento’,
produza-se de modo consequente a necessidade humana do receptor em controlar a
experiência de acontecimento do imaginário (das ereignishafte Erfahren des Imaginaren) (Cf.
ISER, 1983, p. 408).
No que diz respeito a essa espécie de busca por controlar o imaginário, coincidem
algumas ideias de Iser com as de outro teórico que lança olhar sobre o assunto. Trata-se do
teórico literário brasileiro Luiz Costa Lima, contemporâneo do alemão e em quem ao mesmo
passo ele encontra margem para diálogos entretecidos sobre algumas das questões teóricoliterárias que movem a ambos.
33
Entende-se aqui que mesmo os cegos podem “ver”, portanto imaginar, através e a partir de seus outros
sentidos, portas aguçadas tanto para sua percepção quanto para sua representação (ou reapresentação) do que
captam.
63
Embora o controle do imaginário a que se refere Wolfgang Iser seja tratado de modo
mais abrangente pelo autor brasileiro (saindo um tanto mais da esfera do indivíduo para o uso
dos aparelhos controladores do Estado, da Igreja, do mercado etc.), resulta complementador
trazer à luz alguns de seus esclarecimentos sobre a abordagem do imaginário. Entretanto, é
importante repetir que suas observações não se detêm tanto em teorizar o imaginário, mas, na
verdade, referir-se ao controle exercido sobre este34. Ainda assim, em seu percurso na direção
das origens de tal controle há também o registro do encontro do autor com possibilidades de
origens do termo imaginário, estivessem estas tanto na mímema grega quanto na tradução
romana, e depois renascentista, de mímesis por imitatio e não, por exemplo, por emulatio, que
em verdade levaria até o sentido de emulação que talvez quisessem transmitir romanos e
renascentistas (neste caso, uma provável escolha com propósito, ainda que não declarado,
controlador).
Porém, são as coincidências de pensamento entre o brasileiro e o alemão as que mais
cobram atenção. Costa Lima retoma seu colega alemão ao corroborar uma questão chave na
explanação iseriana sobre o que é fictício no texto ficcional: a explicação dos atos de fingir
através de sua ligação com a estrutura que Iser denomina como se. Costa Lima concorda com
Iser quando este aponta que é sob a ótica do como se que o ato de fingir se refere ao mundo e
se conecta ao imaginário, atualizando-o. Por essa referência e conexão é que são assim
transgredidos os limites tanto do mundo como do imaginário (Cf. LIMA, 2007, p. 96). O
teórico brasileiro ainda estende um pouco mais suas explicações ao diferenciar ficção interna
de externa. A primeira é a que se realiza em uma obra ficcional (um romance, um poema, uma
peça teatral, um filme ou uma pintura não estritamente abstrata, por exemplo). As ficções
externas seriam aquelas em que se dá a utilização do como se, por serem formas de presunção
que presidem o inter-relacionamento humano, que não se baseiam em uma convenção
estabelecida ou mesmo em uma hipótese razoável (Cf. LIMA in BASTOS, 2010, p. 381)35.
34
Haja vista, por exemplo, os títulos de suas obras dedicadas ao tema, como: Trilogia do controle (2007),
compilação que reúne os volumes de O controle do imaginário. Razão e imaginação nos tempos modernos
(1984), Sociedade e discurso ficcional (1986) e O fingidor e o censor (1988). Além de O controle do imaginário
& a afirmação do romance (2009). Algo também preponderante em outro autor de suma importância a tratar do
imaginário. O filósofo francês Gilbert Durand (2011, p. 12), já trabalhado no tópico 1.2 e que ora e vez será
retomado na análise dos corpora, aborda muito o tema imaginário desde o ponto de vista de “resistências do
imaginário”, resistências de toda uma imaginária (termo também do autor) por um iconoclasmo ocidental de
cunho não só religioso, mas também ideológico, atinente ao campo das ideias, imposto pela retomada do
pensamento racionalista aristotélico por correntes como o positivismo e o cientificismo ocidentais.
35
Explicação de Costa Lima sobre ficção interna e externa, no livro Luiz Costa Lima: uma obra em questão
(2010), que reúne uma série de entrevistas concedidas a diferentes teóricos interlocutores, organizadas pelo
teórico brasileiro Dau Bastos.
64
É curioso notar que estes dois relevantes teóricos, inclinando-se a estudar os efeitos, as
relações e o controle sobre o imaginário se assemelham inclusive em possíveis contradições
existentes em seus raciocínios, o que, a meu modo de ver, reflete-se principalmente no que
toca à questão do imaginário como condição inerente a faculdades humanas. Costa Lima,
voltado mais especificamente aos atos de controle, minimiza a importância, por exemplo, de
teorias que vinculam a capacidade humana de imaginar a funções físicas básicas de
sobrevivência ou a partes “arcaicas” do cérebro (Cf. LIMA, 2007, p. 168). Ao mesmo passo,
contraditoriamente, traz exemplos nos quais o controle exercido sobre o imaginário
encontrava sua “justificativa” na associação deste mesmo imaginário a divagações mentais,
algo que o tornavam desde inimigo da Razão a partícipe na fratura humana entre a capacidade
positiva de alcançar representações exatas e a negativa de sofrer paixões e criar imagens,
limites estes demonstrados por Descartes e até mesmo pela Ilustração. Ainda que não se ateste
aqui uma abordagem sua acerca do tema, pode-se verificar a proximidade de uma
historicização do termo.
E se em Luiz Costa Lima a vinculação do imaginário às faculdades humanas passa
pelas ramas filosóficas, em Wolfgang Iser o questionamento a tal vínculo parece contradizerse quando este eleva suas abordagens a correspondências com a psicologia. Nelas talvez
esteja a dicotomia de seu texto, pois, ao mesmo tempo em que questiona o imaginário como
produto de uma faculdade humana, Iser dialoga com a psicologia e a psicanálise como parte
do embasamento teórico que utiliza no aprofundamento de sua argumentação. Apoio-me,
então, em um desses “deslizes” para reafirmar minha opinião de que o imaginário passa de
fato por vias das faculdades humanas, apoiando-me para tanto no próprio Iser, quando ele
escreve que
o imaginário é por nós experimentado antes de modo difuso, informe, fluido e sem
um objeto de referência. Ele se manifesta em situações inesperadas e daí que de
advento arbitrário, situações que ou se interrompem ou prosseguem noutras bem
diversas (ISER, 1983, p.386).
Temos, pois, no fragmento acima a explanação iseriana sobre o modo como
experimentamos o imaginário; sua característica difusa, informe, fluida, sem referencialidade
só pode assim ser colocada se pensamos seu principal ponto de impacto no receptor: a mente,
sua psique, as sensações (advindas de suas faculdades humanas, faculdades mentais) que nele
despertam as situações inesperadas de que pode surgir num dado momento o imaginário, ou
imaginários. Porém, para ainda uma melhor compreensão de que o imaginário passa pelas
65
vias de sensações e faculdades humanas, proponho uma espécie de exercício de imaginação,
com a participação de um convidado ilustre: Octavio Paz Lozano.
A figura de Octavio Paz é central no presente trabalho devido, primeiro, ao encontro
de suas convicções com as de Samuel Ramos, outro grande pensador da identidade mexicana;
e, depois, devido à influência de ambos sobre muitos dos temas levantados pela escrita de
Carlos Fuentes36, um dos “carros-chefes” da pesquisa que ora se materializa. Dentre tais
temas em que os três coincidem, está o da mexicanidade frente à alteridade ianque, anglo,
norte-americana, estadunidense. Destaca-se, ainda, o registro da leitura e apreço ao clássico
livro de ensaios pazianos El laberinto de la soledad, expressado em carta enviada por Tomás
Rivera (junto com um exemplar de seu ...y no se lo tragó la tierra) a Paz em 197237.
Referências apresentadas, tornemos enfim ao exercício em que viso aprofundar ainda
mais a ligação do imaginário com faculdades mentais. Para tanto, interessa-me trazer à luz
uma “imagem” imersa no cenário de conflitos identitários de que tratam meus argumentos.
Evocada em seu El Laberinto de la soledad, nessa imagem é o próprio Octávio Paz quem
“participa” da “cena”, mesclando-se ao imaginário do qual passa a formar parte quase como
um personagem:
Al iniciar mi vida en los Estados Unidos residí algún tiempo en Los Ángeles, ciudad
habitada por más de un millón de personas de origen mexicano. A primera vista
sorprende al viajero – además de la pureza del cielo y de la fealdad de las dispersas y
ostentosas construcciones – la atmósfera vagamente mexicana de la ciudad (…).
Esta mexicanidad – gusto por los adornos, descuido y Fausto, negligencia, pasión y
reserva – flota en el aire (…) porque no se mezcla ni se funde (…) con el mundo
norteamericano, hecho de precisión y eficacia. Flota, pero no se opone (PAZ, [1950]
1959, p. 12).
Perceba-se que no fragmento acima travamos contato com um Paz quase baudeleriano,
benjaminiano, um flâneur, um viajero que interfere sobre uma imagem a qual retoma,
interagindo junto a ela, a esta paisagem, sob o auxílio da memória (“Ao iniciar minha vida
nos Estados Unidos residi algum tempo em Los Angeles”/Tradução e grifo meus). Interpreta
o que vê, o que sente, extrai disso uma mexicanidade (“negativa”, é bem verdade: “gosto
pelos adornos, descuido e Fausto, negligência, paixão e reserva”) e, poeticamente, através de
traços e tipos (também retomados por Fuentes em La frontera de cristal) subjacentes sob o
36
Para a leitura ainda mais aprofundada de vinculação entre estes três grandes intelectuais mexicanos, remeto o
leitor aos capítulos 1 e 3 de minha dissertação de mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito
mexicano em La frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010). Ali, ao tratar de modo mais específico do
interesse convergente dos três autores em deslindar uma pretensa identidade nacional mexicana, desenvolvo
argumentação sobre a ligação entre as linhas de pensamento adotadas pelos três autores.
37
Remeto o leitor à seção de anexos da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra (2012, p. 262), onde
consta fotocópia autorizada da referida correspondência.
66
manto da descrição, mas, também, como um yo quase personagem lhe outorga a essa mesma
imagem-paisagem sua marca; sua contribuição a um imaginário (comparativo pendente para o
“positivo” quando descreve o mundo norte-americano: “feito de precisão e eficácia”) o qual,
este sim, flotará en el aire até que se o tome ou se deixe tomar por outro viajero, outro
receptor, outro leitor de sua obra38.
Entretanto, como parte final do exercício proposto, haveria que imaginar-se a um novo
viajero, que, pela primeira vez, pisa em Paso del Norte Ciudad Juárez, parte do solo de seu
objeto de estudo, presente em mostras literárias “reveladoras” de imagens utilizadas na
composição, assunção e perpetuação de imaginários acerca das conturbadas relações
mexicano-estadunidenses. Haveria que questionar-se alguém sobre o que sente, o que vê, que
caminhos percorrem o imaginário, o depositário de imagens que traz de suas leituras
contrapondo-se, entremesclando-se à ótica que insere neste real agora experimentado, porém
antes imaginado por ele graças à literatura em Samuel Ramos, Octavio Paz, Carlos Fuentes,
Tomás Rivera, Juan Rulfo. Lográssemos imaginá-lo e talvez nos déssemos conta da
quantidade de sensações quem sabe, e/ou inclusive, químicas que a literatura tem o poder de
despertar, enquanto evocadora, provocadora de imagens, despertando, incitando a
imaginação, participando em, fomentando a criação de imaginários, particulares ou mesmo
coletivos.
Imaginemos por fim que a este novo viajero se lhe surge de modo inesperado
(semelhante ao defendido por Iser) a confrontação de seu imaginário prévio, particular (por
que não dizer carregado de pré-conceitos, preconceitos) com o olor, a poeira, o espaço do
deserto, com a guerra que já não há (não lhe tratam mal os “anglos”) e a guerra discursiva
(nela o ano de 1848 não encerrou a Guerra mexicano-americana), ainda que por vezes quase,
quase silenciosa, que ainda segue existindo em cidades onde pode alguém confundir-se se
mexicanoestadunidencizadas ou estadounidensemexicanizadas. Daí que se pode inferir desse
exercício de imagens em ação a possível renovação de imaginários sociais, transnacionais
com os quais a mesma literatura que um dia se quis confundir com a História (contribuindo
para a fixação do nacional) interage a partir dos efeitos que causa, da ação que proporciona
junto às sensações, ao cérebro e à psique humana.
Cabe, dessa forma, uma última proposta de contributo necessário à teorização do
imaginário: o que se imagina de; ideia sobre; conjunto, depositário de imagens, de ideias
assentadas na mente, na memória (individual e/ou coletiva), flutuantes em um inconsciente
38
Análises comparativas mais estendidas fazem parte dos capítulos de leitura do corpus.
67
coletivo, reconstruídas, (re)despertadas a partir de determinadas sensações, situações em que
pode desempenhar papel decisivo a literatura.
68
2 ELIPSE E LACONISMO: A NARRATIVA EM INSTANTÂNEOS LITERÁRIOS DE
...Y NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA
O termo “chicana” figura em variados dicionários brasileiros de língua portuguesa o
mais das vezes como um substantivo representativo de ardil, astúcia, malícia 39. Pouco usual
na fala comum, cotidiana, é raro seu uso até mesmo nos discursos da dita norma culta, tendo
utilização mais bem alocada ao meio jurídico, onde aparece como sinônimo de manobra
capciosa, abuso de recursos com base em sutilezas propiciadas pela própria formalidade da
justiça, mas encaradas como utilização intencional de meios, de detalhes irrelevantes dos
quais pode se valer o advogado para atrasar todo um processo.
Abordadas essas duas possibilidades semânticas do termo, esses dois aspectos do
verbete em português, o fato é que em ambos há o encontro de que a palavra deriva do francês
chicane. Tal galicismo parece remontar suas origens ao século XVI, com o significado bélico
de desvio em ziguezague por um entrincheiramento. Essa mesma origem francesa acompanha,
ainda, o significado de mecanismo que obstaculiza a livre passagem de um elemento fluido ou
sólido, transposto, também, ao meio jurídico da mesma forma que em português e à outra
utilização contemporânea no círculo automobilístico, como objeto de desvio, desaceleração
por intermédio de pneus dispostos de modo lateral à pista ou por uma sequencial de curvas em
“s” logo após uma grande reta.
Não. Em sua etimologia, o galicismo feminino e o “mechicanismo”, tanto em
masculino como em feminino, não parecem ter a mesma origem, algo que evidencie uma
mesma raiz semântica. No entanto, resulta minimamente curioso o fato de que coincidam de
certa maneira nas heranças neolatinas de chicane/chicana (do gálico ao francês e daí ao
português) e meso-hispano-americanas de chicano (do náuatle que dá origem a “mexica” à
apropriação espanhola, portanto também neolatina, com contribuição sufixal no termo
“mexicano” e daí ao nome cortado – como sugere Jean-Luc Nancy em interessante ensaio de
201240 – “chicano”, já em solo estadunidense); resulta interessante, pois, a permanência
semântica da relação com o movimento (migratório no caso chicano) e com o desvio (já seja
encarado como desvio físico ou mesmo como desvio à norma, a regras, razão pela qual aqui
tal caráter se assemelha à carga de imposições/significações depreciativas dadas ao nome
“chicano” enquanto denominação estrangeira em solo ianque).
39
Dicionário Aurélio da língua portuguesa em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio
Eletrônico versão 5.12 (2004).
40
“Sol cuello cortado” (NANCY, 2012, p. 163-79).
69
É, então, atrelado a esse caráter chicano de deslocamento, que movo meus argumentos
neste segundo capítulo. Seguindo essa linha de raciocínio, a interpretação que dedico ao
clássico da literatura chicana ...y no se lo tragó la tierra se movimenta ao redor do seguinte
eixo de abordagem: a) num primeiro momento, analiso a estrutura romanesca em elipse
orquestrada por Rivera, com destaque para sua coincidência quanto ao modo elíptico de narrar
usado pelo autor; b) em seguida, no segundo tópico do capítulo, volto meu olhar para o
narrador (ou narradores) criado(s) por Rivera para contar uma história intimamente vinculada
à infância do próprio autor, sem que isso, entretanto, afaste a obra ora em epígrafe do poder
imaginativo caro às narrativas literárias de ficção; e c) terceira parte do capítulo, na qual as
questões tratadas nos tópicos anteriores acabam por desembocar no imagético que se levanta
do romance. Assim, é a partir da proposição de movimento acima descrita que me pauto para
a consecução da leitura exposta a seguir.
2.1 A elipse romanesca de Tomás Rivera
...y no se lo tragó la tierra é um romance cujo tom introspectivo é ditado pelos catorze
contos que o compõem de modo sugestivamente descontínuo, desconexo. Neles, o
protagonista busca os caminhos de sua identidade reconstruindo histórias vividas e a ele
contadas durante doze meses de migração familiar pelos campos de cultivo da região sudoeste
dos Estados Unidos. Neste enredo, não expositivo, repleto de implícitos, ressalta-se a força do
movimento chicano, dos trabalhadores migratórios e sua tenacidade.
Esta narrativa, quase todo o tempo em primeira pessoa (cujos elos não são fáceis de
serem unidos tão-somente em uma primeira leitura), conta a história de um adolescente de
ascendência mexicana, radicado nos Estados Unidos, criado, porém, dentro da cultura
mexicana trazida por seus pais. Através de um “relato”41 quase todo ele em solilóquio
(havendo também a presença de outras “vozes” evocadas pelo próprio menino protagonista e
ainda uma narração em terceira pessoa, que só ao fim se revela como pertencente a este
41
O termo “relato” aparece aqui entre aspas porque é comum que em espanhol ele seja usado também como
sinônimo de conto, de narração. Ocorre que, em português, o termo tem sua semântica bastante aproximada à
narração de fatos, algo que poderia dar-lhe uma carga maior de proximidade com o real, com a realidade
empírica. Por essa razão, embora seja comum encontrar na crítica em espanhol a palavra relato para referir-se
aos contos que dão forma à ...y no se lo tragó la tierra, tal palavra será aqui evitada o mais das vezes com vistas
a desaconselhar uma possível, porém perigosa se excessiva aproximação da obra literária para com o real
empírico. Ainda que seja um consenso crítico a vinculação do enredo ficcional de ...y no se lo tragó para com a
vida de seu autor Tomás Rivera, é preciso que se separe o que em sua obra aparece, como o próprio escritor
afirma (1975, p. 66-77), como parte de um processo imaginativo, perto, muito perto de seu passado de menino
chicano, mas, ainda assim, simulacro que joga com o real empírico em relação de similitude, semelhança e não
de perfeita igualdade, de retrato “fiel”.
70
mesmo “menino” narrador) pode o leitor enveredar-se pelos caminhos e descaminhos de um
recurrido traspassado de preconceitos sofridos por conta da cultura e etnicidade de seu
personagem principal42.
O estilo trazido à baila nesta obra de Tomás Rivera indica a predileção pelo uso do que
podemos chamar de economia linguística. Assim, o laconismo no narrado sugere e ativa,
instiga a percepção do leitor/receptor a partir do rumor que deixa a secura desse mesmo
narrar, certa “ausência” de palavras a mais demonstrada já no título do romance, iniciado de
forma elíptica por reticências e pela conjunção y, sugerindo uma anterioridade ausente,
“continuada” e abruptamente cortada em tierra. Em uma operação que cobra mais perguntas
do que respostas, a busca de nexos para esse título elíptico dá esperanças ao leitor de
encontradas serem tais “soluções” em um conto homônimo, na sétima história que empresta
seu título à obra.
Porém, mais do que o encontro com uma evidente e já esperada remissão à exploração
do trabalho laboral com a terra, o leitor se depara ante a ação das resultantes desse trabaje y
trabaje debaixo de sol e suor sobre a mente de um irmão de nosso personagem principal.
Sentindo ódio e coragem, inconformado pela perda sucessiva de parentes próximos para a
tuberculose, o irmão mais velho do menino narrador amaldiçoa a Deus, quando vê seu irmão
menor e seu pai acometidos pela mesma doença que levara seus entes ou ao sanatório ou à
morte. Desse modo, acaba sendo ledo engano do leitor a busca de nexos que respondessem
pelo todo do enredo a partir do encontro de um correspondente para o título em elipse. Em
vez disso, o que se tem é um contar seco em que o maior destaque é o desafio desesperado ao
apego a tradições religiosas, forte na mãe dos meninos, entre conformada e esperançosa de
que a vontade divina não fosse a de que a terra tragasse nem pai, nem filho menor, sequer o
filho mais velho que amaldiçoava dessa maneira a Deus:
Como a medio camino se empezó a enfurecer y luego comenzó a llorar de puro
coraje. (…) Luego empezó a echar maldiciones. Y no supo ni cuándo, pero lo que
dijo lo había tenido ganas de decir desde hacía mucho tiempo. Maldijo a Dios. Al
hacerlo sintió el miedo infundido por los años y por sus padres. Por un segundo vio
que se abría la tierra para tragárselo. Luego se sintió andando por la tierra bien
apretada, más apretada que nunca. Entonces le entró el coraje de nuevo y se
42
Tal narrado de descaminhos não impede, porém, que se perceba na obra uma relativização da condição
chicana, não havendo uma heroicização excessiva dos sujeitos migrantes e sequer uma demonização antitética,
por assim dizer, da alteridade estadunidense. Ilustram tal observação a presença de personagens chicanos ladrões
e assassinos, que tomam conta do menino narrador para que ele termine seu ano letivo durante uma das
migrações trabalhistas rurais de sua família no conto “La mano en la bolsa”, e de personagens (especialmente
professoras) estadunidenses “anglos” tocados (algo não muito comum nem à época nem no enredo do romance)
pela ternura do menino chicano, como no caso de “La profesora se asombró...”, estampa que antecede o conto
“Los quemaditos”.
71
desahogó maldiciendo a Dios. Cuando vio a su hermanito ya no se le hacía tan
enfermo.
(…)
Esa noche no se durmió hasta muy tarde. Tenía una paz que nunca había sentido
antes. (…) para cuando amaneció su padre estaba mejor. Ya iba de alivio. A su
hermanito también casi le fueron de encima los calambres (Rivera, [1971] 2012, p.
49).
Assim sendo, se vai o leitor direto ao conto que dá título ao romance em busca de um
resumo da obra, o único com o qual se depara é uma proposta (em elipse lacônica) de que leia
mais do todo para encontrar seus nexos. E é essa proposição de movimento que nos impele,
pois, que tornemos à elipse e sua relação com a imagem em ...y no se lo tragó.
Conforme adiantei ainda no primeiro capítulo, a elipse em Tomás Rivera, além de
figura de estilo, é também uma remissão à forma geométrica de mesmo nome. Em forma de
elipse matemática, a construção narrativa de ...y no se lo tragó concede ligação a pontos de
aparente descontinuidade, ligados, contudo, entre dois outros pontos de fixação. Nessa
configuração elíptica, os números 1 e 2 são essenciais na organização estrutural da obra. Os
doze (12) contos componentes do corpo de desenvolvimento do romance estão ladeados por
dois outros colocados entre um extremo e outro do enredo. Estas duas “extremidades” têm
fixidez variável e, ainda que desaconselhável, uma possível troca de posição entre ambas não
alteraria sua função de Introdução e Conclusão para a já mencionada “seção” de
Desenvolvimento.
Em tal construção narrativa do doze (12) ladeado por 1 (Introdução) e 2 (Conclusão)
se apoia outra: uma estampa introdutória para cada um desses doze contos que sucedem o
conto-introdução e que precedem o conto-conclusão (este também antecedido por uma
estampa). Desse modo, como anunciei em meu primeiro capítulo, a estrutura 1 (12 e 12) (1) 2
leva à leitura de uma introdução precedente a doze estampas e doze contos antecedentes de
uma conclusão (também precedida por outra estampa). Esse último conto é um capítulo
conclusivo em possibilidade de troca posicional apenas com o capítulo introdutório, sem
prejuízo do que em ...y no se lo tragó la tierra pode ser chamado de ciclo narrativo elípticoromanesco, uma grande elipse que encerra, na organização variável de seus elementos
aparentemente descontínuos, uma totalidade romanesca cujo princípio dramático se vê
preservado na trama de rememoração crítica que nos é oferecida pelo protagonista do
romance.
A lembrança da elipse como figuração geométrica – ou seja, uma curva plana fechada
na qual todos os pontos têm como propriedade comum a soma das suas distâncias em relação
a dois eixos fixos no interior dessa mesma figura – estabelece a possibilidade da seguinte
72
analogia: assim como na elipse matemática, há também, no romance de Tomás Rivera, dois
pontos fixos, dois focos que são os contos 1, de abertura, e 2, de encerramento;
concomitantemente, todos os pontos que restam se veem reunidos no interior da curva elíptica
narrativa, por intermédio da relação 1 e 1 (uma estampa, um conto-capítulo), repetida doze
vezes, com suas distâncias relacionadas (não de forma linear) para com os nexos que se
estabelecem com os eixos “fixos” Introdução e Conclusão (esta também precedida por uma
última estampa). A figura que criei e insiro abaixo busca ilustrar algo da descrição de
construção elíptica operada pela narrativa de Rivera:
1 [(1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1)] (1) 2
Figura 1 – A elipse romanesca de Rivera em ...y no se lo tragó la tierra.
A visão dessa elipse como imagem formadora do “desenho” do texto é importante,
ainda, para anotar de que modo se correlacionam implícitos, subentendidos, omissão de
palavras (propriedades tanto da elipse sintática quanto do gênero conto) em ...y no se lo tragó.
O laconismo das elipses no romance de Rivera parece convocar o leitor a pensar a partir dos
espaços deixados “em branco”, esperando desse receptor a procura de elos coesivos que a
narrativa supostamente deixa em aberto. É quando chama a atenção o papel da estampa e da
narrativa breve que vem logo em seguida, pois é do efeito de imagem alcançado por cada uma
dessas esferas narratológicas que será estabelecido o vínculo do enredo com o imagético e,
por conseguinte, com imaginários.
O vínculo crítico entre parte da vida de Tomás Rivera e o enredo de seu romance,
apesar de perigoso, acaba por fazer com que se possa pensar também essa obra como uma
espécie de memorial de um ano de repetidos momentos de migração rural familiar de um
menino, seus pais, seus irmãos e sua gente. Nesse sentido, estampas e contos na obra
funcionam como a representação literária de fragmentos de memória dispostos em aparente
descontinuidade que remete não só à fragmentação identitária de um sujeito entre bifronteiridades, bem como à ausência de linearidade comum à irrupção de memórias no
indivíduo. Para a falta de linearidade em seus recuerdos, o “menino” narrador riverano deixa,
porém, a disposição dos dois capítulos que, mesmo que trocados seus lugares entre si, abrem e
fecham em elipse uma narrativa a qual necessita da procura leitora por elos coesivos nas
73
estampas que apresentam (embora nem sempre haja uma relação imediata) os contos que as
seguem.
Essas mesmas estampas irruptivas terminam, ao fim, por se revelarem como histórias
contadas ao menino protagonista, e a ação dele ante os costumes e a cultura dos seus nos
bairros e assentamentos rurais por onde passava em seu giro migratório e laboral familiar.
Está, pois na relação das estampas narrativas com costumes e cultura uma imbricação
seguinte desse modo breve de contar para com outra significação possível para o significante
IMAGEM: a de estampa representativa de motivo ou assunto religioso, valores muitas vezes
postos em xeque nas estampas rememorativas das ações de un niño, um muchacho diante de
tal religiosidade em um solo alheio e hostil a tantas marcas pluriculturais, próprias do
universo chicano.
Entretanto, mais que pintura representativa de relação com o cultural, os costumes e o
religioso de toda uma coletividade, a estampa e seu laconismo servem de verdadeiros
instantâneos fotográficos de memória, instantes apreendidos por uma lente de reminiscências.
Apoiadas em um registro literário lacônico, que sugere precisar do leitor/receptor dessas
imagens na busca por um antes e depois da tomada desses instantâneos, essas imagens
lacônicas incitam, ainda, a busca por saber quem é agente e quem é paciente na apreensão
dessas “fotos”.
É assim que, na procura por esses nexos coesivos há que se notar que, enquanto, em
...y no se lo tragó la tierra, estampa e instantâneo se assemelham, seu capítulo imediatamente
seguinte é algo um pouco mais extenso, sugerindo pensar nele como uma fotografia, digamos,
“mais trabalhada”, como um fragmento de memória para o qual se detém mais quem o
recupera, para o qual dá talvez mais atenção o narrador dessas “fotos”.
Dessa maneira, identifica-se até mesmo certa gradação entre as cores das imagens
promovidas pela narrativa de Rivera. Enquanto, apesar de menores em extensão, as estampasinstantâneos trazem uma ou outra cor a mais ao narrarem, inclusive, embora não sempre,
alguns momentos que beiram certo sentido (às vezes irônico) de felicidade e ternura; enquanto
isso, como ia dizendo, os contos que as seguem têm, no rumor lacônico de suas
(in)conclusões, aproximação maior com outro tipo de foto, a que se revela em preto e branco.
Parece propositadamente faltarem cores às narrativas dos contos pós-estampas, com a
intenção que se deixe por conta do receptor a reflexão do estranhamento causado pela elipse
em preto e branco deixada em suas mãos.
Esses nexos só poderão ser encontrados pelo leitor quando ele se propuser a reler os
contos e suas estampas precedentes no romance, em um movimento de completar a volta
74
inteira da elipse narrativa de Rivera, como sugere o protagonista narrador na abertura, com os
elos coesivos compreendidos na relação de troca evidenciada entre os contos introdução e
conclusão. A remissão a essas fotos em preto e branco, todavia, leva, ainda, a outro ponto de
análise da imagem no romance de Tomás Rivera, um contato evidente de sua obra para com a
de Juan Rulfo, como demonstro a seguir.
Na primeira edição latino-americana de ...y no se lo tragó la tierra, os já mencionados
Ramos e Buenrostro (2012, p. 8-63) destacam tal vinculação, apontando para o fato de Rulfo
fazer parte das genealogias literárias de Rivera 43. No entanto, ainda que esses autores realcem
a proximidade estilística entre Rulfo e Rivera (pondo em relevo que muitos elementos do
estilo rulfoniano terminariam por fazer escola, por influenciar autores tanto do gênero conto
quanto de toda uma narrativa romanesca mais introspectiva, entrecortada por planos
simultâneos), deixam de aproximar o caráter cru do laconismo com o trabalho empírico do
mesmo Juan Rulfo como fotógrafo, de suas imagens em preto e branco, flagrantes de
instantâneos de vida e espaço (“identidade”, topos e tempo) do mexicano.
Ramos e Buenrostro, antes, aproximam o texto riverano a fotógrafos que lançaram um
olhar particular para questões migratórias e fronteiriças44, o que é perfeitamente
compreensível e pertinente. Contudo, ainda que Juan Rulfo em El llano en llamas não cruze a
fronteira para os Estados Unidos e caminho inverso praticamente não o faça Tomás Rivera em
...y no se lo tragó la tierra (a não ser pela identidade de personagens carregados de
mexicanidade), a obra de Rivera toca na fotografia rulfoniana. E o faz pela mesma crueza que
estabelece correspondência para com os textos de Rulfo, através de narrados secos, duros e
crus que só a elipse e o laconismo poderiam revelar, não como fotos que se apresentem, que
finjam ser fiéis retratos da vida, mas como fragmentos de memória passíveis de toda
observação, repaginação, removimentação e reapresentação. Fragmentos de memória, essa
mesma instância, faculdade do pensamento carregada de imagens incertas, volúveis, que
precisam ser completadas e recompletadas em sua rememoração, assim sendo carregadas de
ficção. Crus, como uma foto em preto e branco está para a mesma foto em cores. Crus na
ficção de memória proposta pelo menino narrador protagonista do chicano Tomás Rivera.
Antes de encerrar este tópico, cabe, porém, um retorno à informação de que, ao
postular a questão da elipse matemática como imagem maior à qual se encaixam a elipse
43
Apesar da primorosa contribuição dos argumentos de Ramos e Buenrostro (2012) para quem se inclina sobre o
tema, destaco que tal vinculação Rivera-Rulfo já havia sido por mim demonstrada na comunicação “...y no se lo
tragó la tierra: ¿De qué literatura hablamos aquí?”, apresentada durante o XVII Congreso de Literatura
Mexicana Contemporánea, na University of Texas at El Paso (EUA), em março de 2012; enquanto a inestimável
publicação argentina terminaria de ser impressa em outubro daquele mesmo ano.
44
São eles a estadunidense Dorothea Lange e o argentino Julio Pantoja.
75
gramática e o laconismo, apresentei também uma provável relação de troca entre o conto
introdução e o conto conclusão. No entanto, versei tal operação como desaconselhável por
entender, ao fim e ao cabo, que introdução e conclusão na obra em epígrafe têm, ou
apresentam, em verdade, uma falsa, mesmo que possível, relação de troca. Tal proposição de
troca de posições entre o conto introdução e o conto conclusão foi feita a primeira vez de
modo bastante interessante pelo crítico literário e escritor espanhol especialista em literatura
chicana Justo S. Alarcón (1988, p. 67-74). Nela, tal autor questiona a circularidade romanesca
da obra de Rivera, observando desde um ponto de vista fenomenológico que
[p]or una parte, el capítulo introductorio no es más que un pedazo desprendido del
capítulo de la conclusión. Más aún, creemos que está mal colocado. Nos parece que
la Introducción y la Conclusión debieran invertirse. La razón es simple: en la
Introducción se nos habla de los «sueños» del narrador que no tienen agarre en
ninguna parte. No hay conceptos, porque tal cual está planteado el problema no lleva
a ningún lugar (…) ¿Cómo es posible, pues, que dicho capitulito sea la puerta,
fabricada de sueños, para dejarnos pasar a los que sigue, que es un mundo realista en
extremo? Es, pues, alógico, por no decir ilógico (ALARCÓN, 1988, s/p).
A partir do acima exposto, tem-se que a pertinência dos argumentos de Alarcón
praticamente “obriga” a um retorno, a novo exame aprofundado, a uma revisão da estrutura
organizacional (ou “desorganizacional”, se assim pode ser dito) do romance de Rivera. Desta
forma, contemplemos, a título de apoio a esta nova mirada, o capítulo que abre a compilação
romanesca de contos de ...y no se lo tragó la tierra:
Aquel año se le perdió. A veces trataba de recordar y ya para cuando creía que se
estaba aclarando todo un poco se le perdían las palabras. Casi siempre empezaba con
un sueño donde despertaba de pronto y luego se daba cuenta de que realmente estaba
dormido. Luego ya no supo si lo que pensaba había pasado o no.
Siempre empezaba todo cuando oía que alguien le llamaba por su nombre, pero
cuando volteaba la cabeza a ver quién era el que le llamaba, daba la vuelta entera y
así quedaba donde mismo. Por eso nunca podía acertar ni quién le llamaba ni por
qué, y luego hasta se le olvidaba el nombre que le habían llamado. Pero sabía que él
era a quien llamaban.
Una vez se detuvo antes de dar la vuelta entera y le entró miedo. Se dio cuenta de
que él mismo se había llamado. Y así empezó el año perdido.
Trataba de acertar cuándo había empezado aquel tiempo que había llegado a llamar
año. Se dio cuenta de que siempre pensaba que pensaba y de allí no podía salir.
Luego se ponía a pensar en que nunca pensaba y era cuando se le volvía todo blanco
y se quedaba dormido. Pero antes de dormirse veía y oía muchas cosas... (RIVERA,
[1971] 2012, p. 77, grifo meu).
A oração “daba la vuelta entera”, a qual grifei na citação acima, além de outros tópicos
desse texto abertura, encontra correspondências que realçam a associação do conto riverano
para com o conto “El hombre”, do El llano en llamas de Juan Rulfo. Isto atesta de novo a
conotação de instantâneos literários entre ambos os autores, algo a que já me referi páginas
76
atrás. Porém, há mais a extrair das considerações sobre os contos-capítulos que abrem e
fecham o romance de Tomás Rivera. Em primeiro lugar, o conto inicial, ao contrário dos
outros doze conformativos do desenvolvimento da obra e do conto final, não é precedido por
uma estampa curta, o que desde já lhe confere um caráter de distinção no que toca ao seu
posicionamento, usado, no mínimo, de forma estratégica – reiterando: de modo evidente a que
introduzam e concluam a obra de maneira cíclica, circular.
A relação entre as doze estampas e os doze contos que ficam no intervalo, no lapso
introdução – conclusão é outro aspecto que comunga, de modo contrário ao que defendeu
Alarcón em seu artigo aqui utilizado, para a existência de um todo circular, ou, ainda melhor,
um todo elíptico, como já apontei, na reunião contística orquestrada por Rivera. Conforme
coloquei anteriormente, estampas e episódios que as seguem podem ou não ter estrita
correlação. O próprio Tomás Rivera confirma isto ao afirmar, ainda sobre a estampa, que ela
“a veces se puede ligar bien al cuento que precede pero no necessariamente. Sirve de ligación
para la obra total” (Documento, Archivo Tomás Rivera apud OLIVARES, 1992, p. 417).
Exemplificam tal correlação variável o caso de “Lo que nunca supo”, primeira estampa pósconto introdução, e o conto “Los niños no se aguantaron”. Entre esses dois primeiros narrados
do desenvolvimento, a relação latente se transfere ao campo do elemento água; assim,
enquanto na estampa o menino narrador burla a cosmogonia de sua mãe bebendo, sem nunca
lhe contar, a água do copo que ela depositava em baixo da cama para os espíritos em que
acreditava, deixando-a crer que eram estes mesmos espíritos que esvaziavam o copo;
enquanto isso, no conto seguinte a água vem rememorada pela falta que faz na labuta rural de
dois meninos que, ao contrário do que lhes dizia seu empregador, vão-se a um tanque sem
permissão, onde um deles é morto por acidente, com um disparo, que seria apenas para
assustá-los, dados pelo mesmo velho que os empregara e que, após o ocorrido, fica entre a
loucura e a mendicância.
Há, ainda, ligação evidente no caso do segundo par estampa-conto, caso da estampa
“Se había dormido” e do conto imediatamente seguinte “Un rezo”, quando em ambos a mãe
do menino protagonista roga pela vida e por notícias de seu filho mais velho, perdido na
Guerra da Coréia (na estampa, a consulta é a um espírito em uma caixa; e, no conto, roga-se a
Deus, à Virgem de Guadalupe, à Virgem de San Juan e a Jesus Cristo). Outra coligação
imediata o há no nono par estampa-conto, que opõe as “cores”, a beleza poética da preparação
para e da festa de um casamento (me)chicano da estampa “Fue um día muy bonito” à triste
história seguinte “La noche en que las luces se apagaron”, na qual um ex-namorado se mata
77
preso a um transformador de luz num dia de baile, de festa, porque sua ex-namorada não
queria reatar a história de amor que viveram.
No entanto, note-se que são apenas três pares, de doze, ou treze (se consideramos
ainda a última estampa “somada” ao conto conclusão) passíveis de interpretação sequencial,
de ligação imediata entre um e outro, conferindo à estampa um caráter evidente de ilustração
para o conto que a segue. No mais, há toda uma espécie de rompecabezas com estampas que
ou se relacionarão a contos muito à frente daqueles que de fato as sucedem imediatamente ou
então estarão relacionadas ao enredo como um todo, existindo ainda contos que estabelecem
relação não imediata entre si.
Tamanha assimetria visa como já expus a assemelhar-se ao recordar da memória,
raramente linear. No entanto, visa também a um processo de movimento, a fazer mover-se,
sair de seu lugar comum, de certa zona de conforto o leitor. Assim, na introdução do romance,
além da proposta implícita em “daba la vuelta entera”, o conto termina com outra espécie de
convite: “Pero antes de dormirse veía y oía muchas cosas...”. As reticências, antes à frente no
título do romance, agora anunciam, prenunciam que algo virá; algo rememorado, talvez em
estado de vigília, antes do dormir. Na sequência, há uma predileção por protagonistas e
narrador(es) sem nome, o que impede saber se esses personagens se repetem nos contos
subsequentes. É então que entra em cena a conclusão do narrado, o conto final e sua estampa,
esta sim, algo mais próxima a uma epígrafe anunciativa não apenas da conclusão, mas, antes,
do espírito, da poética de toda a obra. Na proposta de “fórmula” elíptica que apresentei como
representação da volta romanesca de ...y no se lo tragó la tierra, de modo esquemático a
estampa final “Bartolo pasaba por el pueblo...” é a única que isolo em um parênteses antes do
conto seguinte. Em primeiro lugar, dada à localização do capítulo que tal estampa precede:
uma posição estratégica, formal diferente daquela ocupada pelos doze contos do meio, estes
também precedidos por estampas. Ocorre, entretanto, que, apesar de também vir precedido
por uma estampa, o conto final está mais próximo, quanto a sua função estrutural, do conto
abertura, este sem estampa precedente, do que dos doze contos-capítulos do desenvolvimento,
também precedidos de estampas. Entender, pois, a razão para que o capítulo conclusão seja,
dos dois contos que ladeiam a obra, o único que “imita” a estética de desenvolvimento do
romance tem a ver com apreender algo da função, da ideia apresentada, re(a)presentada na
última estampa de ...y no se lo tragó.
A última estampa “Bartolo pasaba por el pueblo...” vai ao encontro de algunas
explicações críticas recorrentes sobre estilo e estética do romance de Tomás Rivera. Já na tese
“Contextualización de la obra de Tomás Rivera”, o espanhol Ignacio J. Esteban Giner aponta
78
para certa semelhança temática do romance riverano para com o corrido mexicano, enquanto
gênero literário de resistência. Assim, para o doutor espanhol:
La novela de Rivera podría ser entendida como una nueva forma de corrido
mejicano en prosa, pues sus temas se refieren a la lucha, aventura o leyenda del
pueblo chicano, donde los personajes combaten distintas injusticias sociales,
realzando a la vez el orgullo de su herencia cultural (GINER, 2005, p.69-70 – grifo
do autor em itálico).
Neste aspecto, coincide tal observação com as colocações de Ramos e Buenrostro
(2012) sobre a aproximação estético-estilística entre o romance de Rivera e os corridos. Desse
modo, para a opinião (ancorada em entrevistas dadas pelo próprio Rivera) de Giner (2005, p.
70) de que, sobre as influências marcantes de Tomás Rivera, “fue la obra de Américo Paredes,
With his pistol in his hand (1958), la que le influyó em mayor medida”, tem-se o
complemento fornecido por Buenrostro e Ramos apontando o mesmíssimo Paredes, ao ser um
dos primeiros pesquisadores da cultura chicana, como um narrador e antropólogo que inicia
suas investigações a partir do gênero poético-narrativo do corrido da fronteira (Cf. RAMOS e
BUENROSTRO, 2012, p. 22).
Sendo assim, enquanto Giner materializa sua linha de pensamento a um nível de
parentesco mais ideológico entre o romance de Rivera e o gênero corrido, Ramos e
Buenrostro encontram na fonte já apontada por Giner (repetindo: Américo Paredes) caminhos
mais amplos para a compreensão da função que cumpre o personagem Bartolo na estampa
última do romance, como descreve o fragmento descrito:
Bartolo pasaba por el pueblo por aquello de diciembre cuando tanteaba que la mayor
parte de la gente había regresado de los trabajos. Siempre venía vendiendo sus
poemas. Se le acababan casi para el primer día porque en los poemas se encontraban
los nombres de la gente del pueblo. Y cuando los leía en voz alta era algo
emocionante y serio. Recuerdo que una vez le dijo a la raza que leyeran sus poemas
en voz alta porque la voz era la semilla del amor en la oscuridad (RIVERA, [1971]
2012, p. 154).
A meu ver, Buenrostro e Ramos enfatizam demasiado certa função, certa importância
de fundo linguístico na apresentação, na inserção do personagem Bartolo. Porém, parece-me,
ainda que também abordado, deixarem um pouco de lado o valor simbólico da personagem, a
representatividade desse mesmo caráter simbólico para a estruturação da obra. Ora, se nos
atemos ao entendimento de que o gênero corrido é comumente aceito pela crítica como um
gênero de poética narrativa oral (para alguns, com origens que remontam até mesmo ao antigo
romancero espanhol), a estampa de Bartolo é emblemática justo pela aparente obviedade de
inclinar-se sobre poéticas: desde as que se relacionam com o ritmo poético próprio mesmo da
79
oralidade, da estética dos corridos enquanto gênero literário, até poéticas que sobressaem do
debruçar-se por sobre significados outros possíveis para o mesmo significante.
O verbete corrido, além de sua característica substantivada, na qual se insere seu
significado como gênero literário poético narrativo nascido para ser musicado, cantado,
revela, também, ao ser particípio passado do verbo correr, adjetivação que denota, dentre
outros aspectos que já abordarei, algo ou alguém deslocado, que está fora de lugar (Cf. o
verbete no Dicionário Eletrônico Santillana de Espanhol, 2008). Eis então aqui outro aspecto
das poéticas às quais está relacionada a estampa de Bartolo: poéticas que se relacionam com o
movimento, o de partida, o de chegada, com o deslocamento; poéticas de movimentos
migratórios em entornos fronteiriços, poéticas fronteiriças e seus embates e entrechoques de
fronteiras outras onde instâncias culturais de alteridade entram ao mesmo tempo em contato e
choque. Não parece ser à toa, portanto, que anteceda esta estampa o conto “Cuando
lleguemos”, um capítulo em que, na sugestão de rememoração dos percalços de condução até
novos postos de trabalho rural, uma das muitas vozes evocadas pelo menino narrador se
mostra cansada desse aparente nunca chegar:
- Cuando lleguemos, cuando lleguemos, ya, la mera verdad estoy cansado de llegar.
Es la misma cosa llegar que partir porque apenas llegamos y… la mera verdad estoy
cansado de llegar. Mejor debería decir, cuando no lleguemos porque esa es la mera
verdad. Nunca llegamos (RIVERA, [1971] 2012, p. 153).
No entanto, enquanto o final de “Cuando lleguemos” parece encerrar um processo
apontando para uma demonstração de cansaço derivado de um nunca alcançar, de um eterno
buscar, na estampa seguinte a esse conto, o deslocamento transladado à figura de Bartolo
apresenta um caráter ainda mais formal, mais estrutural do que aparenta ter. Além é claro da
possibilidade pertinente de remissão à figura do sujeito chicano que ainda busca um lugar,
razão pela qual podemos pensar na busca identitária de um menino que se sente, que ainda
busca, ainda está, como sugere a adjetivação corrido, fora de lugar; além disso, se pensamos
na correlação de sentidos entre o corrido sugerido na poética do poeta Bartolo e corrido como
adjetivo significativo de deslocado, veremos que a estampa “Bartolo pasaba por el pueblo...”
tem estrita relação formal com o deslocamento de leitura que sugere a obra. Nesse aspecto, tal
estampa seja talvez em todo o romance o único caso em que esse artifício funcione, ou seja,
tenha, apresente uma função de epígrafe anunciativa, epígrafe que de fato abre o narrado que
a segue, o todo da obra que a segue. Esse argumento só se completa, entretanto, se retornamos
à questão de deslocamento estrutural, de coisas fora do lugar, levantada por Justo S. Alarcón,
questionamento onde se lê, primeiramente: que o capítulo introdutório não seria mais que uma
80
parte desprendida da conclusão; e, segundo: que introdução e conclusão, tal como estão
colocadas na versão editada para o público (questão não abordada, talvez por
desconhecimento das versões anteriores à edição, por Alarcón), deveriam ser invertidas 45.
Em certa medida, há pertinência nas colocações de S. Alarcón (1988) ao observarmos
informações relevantes expostas anos depois por Ramos e Buenrostro, quando da primeira
edição latino-americana de ...y no se lo tragó la tierra (2012). Para tanto, observem-se, por
exemplo, as palavras dos próprios Gustavo Buenrostro e Julio Ramos (2012, p. 43-4, grifo
meu), os quais, no apartado “Elipsis y fragmentación”, parte integrante do prólogo escrito por
ambos para esta edição da obra, escrevem, sobre a “desconexão” na obra, que “la
discontinuidad es un rasgo distintivo de esta escritura que por años mantuvo a Rivera en
cierta indecisión entre la consideración de su escrito como un conjunto de relatos o como
una novela”. Agregam valor a tal informação, os resultados que demonstram pesquisa detida
de Julio Ramos apresentados na introdução aos anexos que complementam a edição de 2012
de ...y no se lo tragó. Nessa introdução consta logo em suas linhas iniciais a importante
contribuição de que o primeiro manuscrito enviado por Tomás Rivera em finais de outubro de
1970 para fins de participação no primeiro prêmio de literatura chicana da editorial Quinto
Sol (prêmio do qual Rivera terminaria por sair vencedor, já em 1971, com a conseguinte
publicação de sua obra) levava o título de Debajo de la casa y otros cuentos (Cf. RAMOS,
2012, p. 183). E é dessa maneira que tornamos, enfim, ao conto capítulo conclusão da obra e
às considerações de troca propostas com propriedade por S. Alarcón.
Em “Debajo de la casa”, conto final do romance riverano, ali sim, os poucos nomes e
os caracteres principais de alguns personagens ressurgem como marca identificadora de
rememoração, em um texto-rio em cursivas que rivaliza com um texto não em itálico, símile,
ambos talvez, do curso descontínuo das memórias. Repare-se, pois, a relação de nexo a qual
se pode extrair da conclusão, em sua parte final:
– Quisiera ver a toda esa gente junta. Y luego si tuviera unos brazos bien grandes
los podría abrazar a todos. Quisiera poder platicar con todos otra vez, pero que
todos estuvieran juntos (…) Necesitaba esconderme para poder comprender muchas
cosas (RIVERA, [1971] 2012, p. 160, grifo do autor).
Retornando ao conto inicial, não custa recordar que ele termina com a expressão
“muchas cosas…”, cujas reticências parecem encontrar nexo somente, enfim, no trecho final
supracitado, onde essas mesmas “muchas cosas”, enunciadas já sem a elipse das reticências
de seu igual frasal da introdução, informam, por fim, haverem sido ditas ao longo do traçado
45
Remeto aqui o leitor a esse trecho escrito por Justo S. Alarcón, citado por mim integralmente há alguns
parágrafos acima.
81
de memórias disposto em aparente falta de unidade, pelo menos no que diz respeito a uma
unidade que apontasse para um todo mais romanesco. Cabe, ainda, o adendo de que,
conforme explicita Julio Ramos (2012, p. 186), também na introdução aos anexos da edição
latino-americana de ...y no se lo tragó, em um índice preliminar do romance “Rivera también
había consignado al último texto el título alternativo ‘El año encontrado’”; algo que –
compreendidos os doze contos do interior do enredo como alusivos aos doze meses de um ano
de migração laborativa rural na vida de um menino chicano e sua família por volta dos anos
de 1950 no sudoeste estadunidense – fecha com a estruturação “El año perdido”, como
introdução, e “Debajo de la casa” (“El año encontrado”) como conclusão para o
desdobramento descontínuo do recordar estes mesmos doze meses no desenvolvimento do
romance, ladeado pelos já citados textos, capítulos de abertura e fechamento.
Contudo, há mais a demonstrar na operação a ser realizada na busca de nexos para o
romance. Essa lógica, mesmo que excêntrica, encontra-a o menino narrador no conto
conclusão da obra, quando sai debaixo de uma casa onde havia estado, na dúvida ruminante
de contar a seus pais ou não que havia sido expulso da escola ianque onde era desrespeitado
por conta de sua etnicidade, para juntar os cacos de sua identidade nos fragmentos de
memória de um ano perdido:
Había encontrado. Encontrar y reencontrar y juntar. Relacionar esto con esto, eso
con aquello, todo con todo. Eso era. Eso era todo. Y le dio más gusto. Luego cuando
llegó a la casa se fue al árbol que estaba en el solar. Se subió. En el horizonte
encontró una palma y se imaginó que ahí estaba alguien trepado viéndolo a él. Y
hasta levantó el brazo y lo movió para atrás y para adelante para que viera que él
sabía que estaba allí (RIVERA, [1971] 2012, p. 161).
O presente trabalho é fruto de um estudo doutoral em que comparo esta obra de Tomás
Rivera com La frontera de cristal (1995), outro romance em contos, este escrito pelo escritor
mexicano Carlos Fuentes. E é interessante como na obra de Fuentes o nome próprio chicano é
bastante explorado como marca de uma terceira alteridade nas relações identitárias do entorno
fronteiriço mexicano-estadunidense. Curiosamente, em ...y no se lo tragó la tierra, obra de
um militante autor chicano, tal escolha não é realizada. Em ...y no se lo tragó, a marca é o
implícito, é o subentendido aos quais se vê “convidado”, impelido a buscar seus elos o leitor.
Enquanto Justo S. Alarcón (1988) propõe a troca de posições dos contos margem da
obra riverana, vinte e quatro anos depois, na primeira edição latino-americana do romance,
Julio Ramos (2012) informa que, em apêndice de abertura da seção última da publicação (uma
seção de anexos de manuscritos e trocas de correspondências entre Rivera e outros autores e
acadêmicos), o primeiro manuscrito enviado pelo autor para participação no prêmio do qual
terminaria por sair vencedor, logrando assim a edição de seu livro, tinha o título de Debajo de
82
la casa y otros cuentos. Somente com a inclusão, a pedidos, de outros contos é que a obra
viria a fechar a elipse romanesca que a organização do evento já vislumbrava pela união
coesiva dos contos. Isto demonstra que, no concernente à ligação de dependência entre o
primeiro e o último capítulo, de parte desprendida que seria do último o primeiro conto, tem
Justo Alarcón certa razão.
No entanto, o fator pelo qual o último “ato” não é o primeiro está em que, se tal
operação fosse levada a cabo, a busca, se existisse, por juntar e encontrar os nexos necessários
para a apreensão do drama romanesco na obra seria facilitada. Ao fim e ao cabo, o que o
menino narrador propõe é que o ato de juntar, contar, arrumar e rejuntar tudo, o ato de rever e
reunir toda a sua gente (os personagens que sua narrativa “faz desfilar” nos doze contos de
desenvolvimento do seu entremeado de memórias) tenha para o leitor o mesmo grau de
dificuldade que ele, narrador, aponta ter nos últimos trechos de seu recuerdo “final”. Propõe,
então, o menino narrador a mimetização do seu ato de recordar, a mimetização de sua ficção
de memória. É um convite para dar a volta inteira, um convite à identificação. Identificação
que se inicia na própria epígrafe “Bartolo pasaba por el pueblo...”. Sim, pois mais do que
estampa fotográfica, como defendo, ou um de seus quadros coesivos entre os contos, como
sugere o próprio Rivera em carta a um dos editores de Quinto Sol46; mais do que isso, esta
passagem sobre o poeta Bartolo é uma epígrafe que encerra uma identificação do autor da
obra e de seu jovem narrador, de seu narrador menino, adolescente para com o próprio
Bartolo.
Já no texto “Chicano Literature: Fiesta of the Living”, de 1975, portanto posterior à
primeira edição de seu único romance, Rivera aclararia um pouco da translação de Bartolo,
“personagem” de sua vida real, e a relevância desse movimento para a ficção de sua obra:
When I met Bartolo, our town's itinerant poet, and when on a visit to the Mexican
side of the border, I also heard of him - for he would wander on both sides of the
border to sell his poetry - I was engulfed with alegría. It was an exaltation brought
on by the sudden sensation that my own life had relationships, that my own family
had relationships, that the people I lived with had connections beyond those at the
conscious level. It was Bartolo's poetry – or was it simply those papers that looked
like his poetry - that gave me this awareness (RIVERA, 1975 apud OLIVARES,
1992, p.339, grifo do autor)47.
46
Remeto o leitor à seção de anexos da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra (2012, p. 249-50), onde
consta fotocópia autorizada da referida correspondência.
47
“Quando eu conheci Bartolo, poeta itinerante da nossa cidade e, quando em uma visita ao lado mexicano da
fronteira, eu também ouvi falar dele – pois ele viria a vagar por ambos os lados da fronteira para vender a sua
poesia – eu estava envolto em alegria. Foi uma exaltação provocada pela súbita sensação de que minha vida
tinha relações, que a minha própria família tinha relações, que as pessoas que viviam conosco tinham conexões
para além daquelas que tinham em nível consciente. Foi a poesia de Bartolo – ou simplesmente aqueles papéis
que pareciam sua poesia – que me deu essa consciência.” (Tradução minha)
83
Um pouco mais adiante e Rivera escreve ainda que Bartolo foi seu primeiro, e viria a
ser seu único, contato durante muito tempo com a literatura a partir de sua própria gente (fora
das escolas em que era obrigado a aprender em inglês) (Cf. RIVERA, 1975 apud
OLIVARES, 1992, p.339-40). E eis aqui a mimese, a introjeção, pois, ao introduzir a figura
de um poeta itinerante que anuncia a leitura e o comércio de seus poemas a sua gente, Rivera
anuncia a si mesmo, ou melhor, a seu menino protagonista como um narrador que fará quase
o mesmo. Anuncia assim Rivera sua poética, suas poéticas. Por isso “Bartolo pasaba por el
pueblo...” é epígrafe: por anunciar histórias por contar, espécie de corridos em prosa (na
similitude ideológica entre este gênero poético e a função ético-política do narrado riverano
defendida, como já apontei anteriormente, por Giner, 2005) por contar. Rivera, assim,
introjeta o efeito de Bartolo sobre sua visão de menino e projeta essa figura como um símbolo
nas linhas da narrativa de seu menino protagonista, do menino narrador de seu romance.
Desse modo, a epígrafe de Bartolo anunciaria, como de fato termina por anunciar o
“primeiro” capítulo do romance (seu último conto, último ato deslocado) e o faria mesmo se
estivesse à frente de seu fragmento despedaçado, “El año perdido”, ou ainda que este próprio
año perdido, primeiro ato mal colocado, como sugeriu S. Alarcón, complementasse el año
encontrado em “Debajo de la casa”. Porém, é mister ainda mais singular entender o papel que
cumpre a epígrafe Bartolo junto com o deslocamento contido não somente nas poéticas que
anuncia mas também na estética estrutural da obra que as enuncia. É essa singularidade, é tal
singularização, tal manter-se fiel ao deslocamento e fragmentação que permitem (sem
esquecer que a mão editorial por sobre a estrutura e até mesmo a “definição” do gênero da
obra contou sempre com o diálogo para com o autor48) perceber o poder, o alcance da
literariedade desse, nesse romance.
O narrador criado por Rivera é, ao fim e ao cabo, uma metáfora, uma projeção
simbólica (pois a partir dele, da imitação de seu ato se projeta) do experiente Bartolo (figura
introjetada), ou pelo menos cumpre papel, função metafórica, alusiva, atentando-se ainda ao
fato de que corrido é também “Aquele que tem experiência. Experiente” (Cf. o verbete no
Dicionário Eletrônico Santillana de Espanhol, 2008). Seguindo a linha de raciocínio iniciada
em Giner (2005) e continuada em Ramos e Buenrostro (2012), complementando-as com algo
da introdução que dei a este segmento, o jovem narrador riverano é, ainda, e também, em
“outros termos” (outros significados para o mesmo significante), um menino corrido,
48
E nos revelam isso toda a conjuntura, toda a troca epistolar que antecedeu a edição final do romance, razão
pela qual remeto o leitor para os anexos da primeira edição latino-americana de ...y no se lo tragó (2012, p. 24974).
84
deslocado, quem nos guiará, leitores, por chicanas, através de chicanes, num vaivém em
ziguezague por entre caminhos bastante obstaculizados; sendo o compor, juntar, formar elos
por esse percurso entrincheirado o que confere a sua narrativa caráter singular,
desfamiliarizando a forma romance não apenas por compô-la a partir de contos; mas,
principalmente pela maneira descontínua, ex-cêntrica como o faz. Esse seu modus operandi,
seu modus descontinuum, espalhando, espaçando, “esparsando” os elos dramáticos da elipse
romanesca de um mesmo enredo, além das múltiplas e variáveis relações que revela(m) os
contos e as estampas entre si, possibilita ainda à leitura encontrar uma estrita correlação entre
tempo e locus, entre imagem (memória “fotográfica”) e espaço.
A memória é o passado que se presentifica, daí sua relação expressa, explícita, embora
quem saiba tensa, com o tempo (cronos). O tempo da memória é em primeira instância o
passado. Passado potencializado pela ficção, pelo fingir, enganar, enlevar ser (estar?)
presente, como se presente de fato fosse. Dessa maneira, são seus verbos o “ser” e o “estar”:
como pode o cronos da memória ser o passado, se os espaços, locus, topos que ela me faz
estar, “viver”, são, me são tão presentes? Decorre que, apesar de o passado ser em suma sua
matéria, sua instância primeira, é no presente, em seus ares de presente que ela se instaura. E é
nessa presentificação que a memória salta aos mais diferentes espaços (topos),
proporcionando, instanciando encontros com espacializações descontinuadas no tempo. Tal o
faz o narrador de Rivera em seus elos mnemônicos aparentemente desconexos, aparentemente
sem um centro ou, melhor, sem uma centralidade, sem uma centralização; tal o faz o narrador
riverano em sua mnemônica “(in)coesa”, em sua imitação formal da memória, porquanto sua
ficção de memória.
Quando, ainda na conclusão “Debajo de la casa”, do alto de uma árvore no quintal de
sua casa o protagonista acena para um alguém imaginário em uma palmeira no horizonte a sua
frente, além de uma nova projeção de um menino que acena para um si próprio, porém mais
velho; além disso, é ainda seu povo, sua gente, é um dos seus paisanos chicanos que ele,
menino narrador, imagina estar na palmeira que avista. Entretanto, é também para o leitor que
ele acena, demonstrando que ele sabe do leitor ali, dando a saber o que espera desse leitor:
que ele dê a volta inteira para que entenda a dramaticidade excêntrica de seu romance contado
em fragmentos de memória. Está, pois, nessa provocação de deslocamento também do leitor
algo da literariedade da obra, o estranhamento contido em sua própria forma, levado às raias
das instâncias de leitura daquele que lhe é estrangeiro; estranho, estrangeiro a tão ex-cêntrica
forma de se narrar um romance em contos de relação tão intrínseca e, ao mesmo passo, tão
85
descontínua, quebradiça, movediça quanto a extensa região fronteiriça sobre a qual migram
em busca de trabalho seus personagens.
Tal movimento proposto para uma narrativa que trata do movimento imposto por um
ano de trabalho rural migratório é a singularização, a desfamiliarização do narrado, de um
narrado que prima por seus implícitos, por elos, nexos que somente serão encontrados em um
movimento de volta inteira, como sugere o narrador na introdução “El año perdido”, pela
elipse que o contorna e em respostas dadas pelo autor externamente, em entrevistas, nos seus
ensaios, e na crítica que se debruça por sobre a obra. É o que lhe torna peculiar, sendo sua
literariedade.
2.2 A ficção do menino narrador riverano: um problema ontológico (?)
Este tópico se inicia a partir de um breve, porém necessário, retorno a algumas das
últimas considerações expostas no segmento anterior. São elas as que se referem à correlação
entre ficções de memória e sua desembocadura, sua afluência, sua concorrência para outro
aspecto ficto: a ficção do menino narrador.
Acerca da memória, sua aproximação máxima nesse romance de Tomás Rivera é para
com as qualidades de uma memória fotográfica. Não por acaso, talvez, a possibilidade de
comparação das estampas e contos-capítulos que compõem a obra com a fotografia, já sejam
as que se assemelham à pintura ou instantâneos, caso das estampas, ou as que se achegam à
crueza que pode haver em uma foto em preto e branco. Mas, vigora de igual maneira a
questão do detalhe para o possuidor da faculdade mnemônica fotográfica. Atendo-se ao
exemplo da epígrafe “Bartolo pasaba por el pueblo”, há de se notar, pela explicação fornecida
por Rivera no artigo em que revela a existência de um Bartolo empiricamente real, a riqueza
de detalhes captados em seu espírito, no espírito da ocasião dos encontros e dos efeitos sobre
o menino Tomás Rivera, rica cena captada e levada à ficção quase como uma epígrafe real,
repito, quase como uma epígrafe cuja origem empírica está no real vivido, qual mera
descrição de fatos realmente acontecidos. Agora, se nos detemos na esclarecedora edição
argentina, primeira edição de fato latino-americana de ...y no se lo tragó, outro exemplo
revolve ainda mais a possibilidade de leitura da obra como resultante de um processo onde
envolvido está um sujeito com memória fotográfica: trata-se de um capítulo que desenrola sua
narrativa a partir de acontecimentos que se sucedem em torno à realização (ou tentativa de
criação) de um retrato. Nesse caso, será interessante notar como justamente “realização” e
86
“criação” estabelecem proposital relação aproximativa entre “real” e “imaginativo”,
ocasionando um efeito que sugere ser uma importante proposta do capítulo.
Precedido pela estampa “Antes de que la gente se fuera”, o conto “El retrato” é o
penúltimo dos doze capítulos componentes do corpo de desenvolvimento da obra. Apesar de
relacionar-se com sua estampa anterior através da poética de deslocamento sobre a qual
ambas investem, “El retrato” tem seu narrado revestido de situações distintas às que ocorrem
no “quadro” coesivo imediatamente anterior. E, por ter ligação estrita com o recorte ora em
relevo, é para a abordagem desse conto com algo de imagem já em seu título que convergem
as linhas a seguir.
Em “El retrato” um desfile sobre o poder e alcance da imagem é contado primando
sempre pela dúvida, pela ambiguidade do ir e vir, do limiar entre o que pode ser verdade e o
que se quer como verdade. Chuy, filho de um amigo do pai do menino protagonista, foi
enviado à Guerra da Coreia e desde a partida para o combate sua família não mais voltou a
vê-lo. Em meio à falta do jovem, seus familiares recebem um dentre tantos outros vendedores
de retratos que visitavam povoados chicanos oferecendo seus trabalhos para transformar
fotografias em retratos tridimensionais em alto relevo talhados e incrustados em madeira,
garantindo-lhes, como diz o vendedor à família do soldado Chuy, um aspecto “así abultadito
(...) Para que se vea como que está vivo” (RIVERA, [1971] 2012, p. 141-2). Após alguns
impedimentos, certos percalços a aproximar o prometido (e pago) de uma trapaça, chega-se a
um resultado forçado pelo pai do soldado desaparecido, desaparecida também sua foto,
quando, após reencontrar o vendedor, obriga-o, mesmo sem a fotografia de Chuy, a dar conta
do retrato-escultura a partir unicamente da lembrança do objeto fotográfico perdido. Tal
resultado se evidencia no trecho do diálogo a seguir, no qual um amigo em visita à casa dos
familiares de Chuy indaga ao pai do jovem soldado sobre o fato de o vendedor haver enfim
produzido o retrato así abultadito todo de memória:
– Y, ¿cómo lo hizo?
– No sé. Pero, con miedo, yo creo que uno es capaz de todo. A los tres días me trajo
el retrato acabadito así como lo ve cerquita de la virgen en esa tarima. ¿Usted dirá?
¿Cómo se ve m’ijo?
– Pues, yo la mera verdad ya no me acuerdo cómo era Chuy. Pero ya se estaba, entre
más y más, pareciéndose a usted, ¿verdad?
– Sí. Yo creo que sí. Es lo que me dice la gente ahora. Que Chuy, entre más y más,
se iba a parecer a mí y que se estaba pareciendo a mí. Ahí está el retrato. Como
quien dice, somos la misma cosa (RIVERA, [1971] 2012, p. 145).
87
Uma pequena ficção de memória resulta, pois, da busca do pai de Chuy por um
sentido de justiça que obrigasse o vendedor a “corrigir” seu erro em não apenas perder a
fotografia de seu filho bem como, principalmente, em deixar de compor um novo retrato em
três dimensões com um relevo em madeira que lhe conferiria um aspecto de parecer estar ali
vivo, presente o referente da foto. Seu filho é um dos tantos que foram tragados (desde Cuba
em 1898, passando pela 2ª Grande Guerra e pela intervenção na Coreia, até a Guerra do
Vietnã) por certa invenção de cidadania, verdadeiro “drama político de la ciudadanía, la
garantía sacrificial del acceso de sujetos minoritarios o coloniales a los exclusivos territorios
de una supuesta plenitud ciudadana” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 49, a partir de
Álvarez Curbelo, 1999).
Por ter seu filho mais velho dado “somente” como desaparecido na Guerra da Coreia
(1950-1953), a esperança de tê-lo vivo se vê renovada em seus familiares quando se deixam
levar pelo prometido por um vendedor de retratos esculpidos em três dimensões. Portanto, a
partir da ficção do “como que vive”, do “como que está vivo”, não lhes importará à mãe nem
ao pai de Chuy que, ao fim e ao cabo, o retrato feito todo de memória pelo vendedor em
apuros seja fruto da observação diária que lhe fora imposta e do aproveitar-se da máxima
oportuna de que os filhos sempre “lembram” o pai. E se não lembram, lembrarão, parecerão
com eles um dia, mesmo que isso esteja apenas na ilusão forçosa, forçada, memória desejada,
fingida, “realizada” na construção de um retrato baseado em um referente já inexistente,
persistente senão somente na ilusão/ficção de um pai; ou, ainda melhor, na construção de um
retrato tendo o pai como referente/“modelo” e, não o filho, aquele que deveria ser o
verdadeiro referente do “retrato” abultadito, “retrato-pintura-escultura”.
Porém, a partir da noção dessa ficção de memória proposta já por Ramos e Buenrostro
(2012) em seu prólogo à edição argentina do único romance de Rivera, pretendo tocar
também num seu desdobramento, a relação estabelecida para com observações de uso de
artifícios de mimese de memória fotográfica e sua consequente relevância para minhas
observações sobre a questão da ficção envolta na eleição/identificação de um menino
narrador, um menino como narrador de ...y no se lo tragó la tierra.
Uma memória fotográfica seria aquela em que a pessoa teria a capacidade de
reproduzir, de descrever através da recordação (com surpreendente riqueza e precisão de
detalhes) momentos, situações por ela vistas, ouvidas, vividas. No que se refere ao contocapítulo “El retrato” chama atenção uma carta do autor para o professor David L. Epstein.
Datada de 14 de fevereiro de 1978, nela Tomás Rivera descreve para Epstein, em resposta a
um pedido deste último, “some thoughts I had when I set about writing ‘The Portrait’”
88
(RIVERA, [1978] 2012, p. 264)49. A partir de então, Rivera conta haver tido a ideia para “El
retrato” quando, durante o período em que se achava escrevendo ...y no se lo tragó la tierra,
visitou um tio em San Antonio (Texas) e viu em sua casa um retrato dele incrustado em
madeira que ele, Rivera, não via fazia já algo em torno de vinte anos. O autor conta, ainda,
que o retrato trazia a sua lembrança o/um vendedor que ia a sua cidade natal, Crystal City, a
recolher pedidos para a transformação de fotos em retratos tridimensionais com relevo em
madeira – tal e qual a situação descrita na ficção de “El retrato”.
Na referida correspondência, segue como destaque o relato de outra recordação que o
retrato na casa de seu tio provocara em Rivera. A lembrança era a de uma ocasião da infância
do próprio Tomás Rivera na qual ele e outros meninos, brincando dentro de um bueiro,
encontraram uma bolsa repleta de fotografias que haviam sido recolhidas pelo vendedor, mas
que aparentavam haverem sido descartadas, ali abandonadas. Se lançamos olhar novamente
para o conto-capítulo ora trabalhado será interessante notar a semelhança quase “fotográfica”
do relato epistolar de Rivera para com o trecho mais para o final de “El retrato”, onde é
descoberta a farsa na demora de entrega do produto encomendado pelos pais de Chuy:
Y pasaron dos semanas más para cuando se descubrió todo. Se vinieron unas aguas
muy fuertes y unos niños que andaban jugando en uno de los túneles que salían para
el dompe se hallaron un costal lleno de retratos todos carcomidos y mojados. Nomás
se notaban que eran retratos porque eran muchos y del mismo tamaño y casi se
distinguían las caras. Comprendieron todos luego luego. Don Mateo se enojó tanto
que se fue para San Antonio para buscar al fulano que los había engañado
(RIVERA, [1971] 2012, p. 144).
A correlação mimética, fotográfica, a situação que nos faz pensar no uso de uma
memória fotográfica, por assim dizer, “a serviço da ficção”, torna-se inda mais aguda quando
se observa o fragmento final “Don Mateo se enojó tanto que se fue para San Antonio”. Esta
mesma San Antonio está tanto nesse trecho do conto quanto em seu início, quando se narra
que é de lá que vêm os vendedores de retratos para os bairros chicanos. E está também San
Antonio tanto no início da carta enviada por Rivera em resposta ao Sr. Epstein – quando
Tomás conta da visita à casa de seu tio – como mais para o final dessa mesma carta, onde o
autor chicano relata que
I also recalled that one man had gone to San Antonio in search of the place where
they inlaid portraits because apparently the salesman had taken his money and after
almost a year he hadn't returned. This man returned with the inlaid picture of his son
who had been killed in the war. I knew the young man and when I saw the inlaid
49
“algumas ideias que tive quando comecei a escrever ‘El retrato’” (Tradução minha).
89
picture it didn't look like him at all. Everyone said it did and of course the parents
were sure it did (RIVERA, [1978] 2012, p. 265)50.
Espacialização repetida e potencializada na e pela ficção de ...y no se lo tragó la
tierra, San Antonio e as situações nela vividas por Tomás Rivera transcorrem espaços do e no
tempo como uma espécie de registro de uma memória fotográfica. Tal prodígio se revela
ainda mais próximo de evidência na comparação entre as “cenas” do encontro dos retratos no
bueiro, descritas em detalhes bastante semelhantes, opondo uma curta distância entre o relato
epistolar de Rivera e a ficção de seu menino narrador. Decorre daí a questão da memória
fotográfica: ao fim e ao cabo, também uma ficção.
Memória eidética é um termo cunhado a partir do vocábulo grego εἶδος, “eidos”.
Ligado grosso modo ao campo do visual, portanto da memória visual, o termo é comumente
conhecido por seu sinônimo mais popular, a memória fotográfica. Ocorre que, na verdade, o
que leva ao emprego de tal terminologia é certo aspecto de perfeição imputado, conferido com
especial recorrência às técnicas de reprodução fotográfica.
Tornando a interessante artigo sobre a relação entre texto e imagem, trabalhado no fim
do primeiro capítulo desta tese, coincido com as palavras da antropóloga brasileira Sylvia
Caiuby Novaes (2008). Nele, a autora, refletindo colocações do renomado antropólogo e
filósofo francês Lévi-Strauss (1969), observa com propriedade que de um modo geral
“Imagens não reproduzem o real. Elas o representam ou o reapresentam. Nenhuma delas é
idêntica ao real” (NOVAES, 2008, p. 456 – grifo meu). Coincido, ainda, com as ponderações
de Sylvia Caiuby quando esta complementa sua argumentação a respeito da relação
imagem/objeto. Para a antropóloga, apesar de que não se possa pensar em termos de nenhuma
relação entre a imagem e o objeto/referente que ela representa, ou reapresenta; apesar disso,
tal relação (mínima que seja em alguns casos e muito mais evidente em outros), a qual sempre
existirá, não deveria implicar em que se absorvesse a imagem como cópia exata daquilo de
onde é tomada, pois, conforme explica a mesma autora, “se a imagem fosse uma imitação
completa do objeto, já não seria um sistema de signos” (NOVAES, 2008, p. 456).
E é justo a essa simbologia, à questão da imagem como um sistema de signos, à
questão da imagem, e nesse caso mesmo a fotográfica, como uma reprodução que simboliza
em vez de ser tomada como o próprio objeto de quem parte sua reprodutibilidade; é a tal
50
“Também recordei que um homem tinha ido a San Antonio em busca do lugar onde eram feitos os retratos
incrustados porque aparentemente o vendedor tinha levado o seu dinheiro e depois de quase um ano ainda não
havia retornado. Aquele homem voltou com o retrato incrustado de seu filho, que tinha sido morto na guerra. Eu
conhecia o jovem e, quando vi a imagem incrustada, ela em nada se parecia com ele. Todos disseram que sim
parecia e, desde então, os pais estavam certos de que assim o era” (Tradução minha).
90
questão que se prende o levantado por mim acerca da memória fotográfica em Rivera,
especialmente em seu “El retrato”. Para tanto, é interessante abordar esse viés a partir de outra
argumentação de Caiuby Novaes, para quem
Imagens, especificamente as que resultam das modernas técnicas de reprodução,
como as fílmicas ou fotográficas, são signos que pretendem completa identidade
com a coisa representada, como se não fossem signos. Iludem-nos em sua
aparência de naturalidade e transparência, a qual esconde os inúmeros
mecanismos de representação de que resultam. Eficientes na comunicação
simbólica, sem constrangimento sintático, estas imagens podem ser eloquentes
(NOVAES, 2008, p. 456 – grifos meus).
Assim como no trecho supracitado, em “El retrato” se pretende, pela falta, por
saudade, por carência afetiva, uma completa identidade do signo que é uma fotografia original
para com seu referente empírico, real, para com o objeto/sujeito representado na foto, pela
foto: Chuy, o filho dado como desaparecido em uma das tantas intervenções bélicas
estadunidenses que serviram como bengala, ficção de cidadania para sujeitos de classes,
etnias minoritárias, marginais, marginalizadas. Não importarão aos pais, principalmente a
Don Mateo, pai de Chuy, os mecanismos de reprodução que darão vez ao retrato abultadito de
seu filho; mas, antes, o resultado eloquente do produto, quer dizer, o quanto ele fala à
memória, a sua quase inconsciente ficção de memória. Rivera toca dessa maneira em partes
do amálgama IMAGEM ao problematizar os limites da imagem existentes entre foto, retrato,
pintura e escultura, ao serem tomados, pelo poder imaginativo também da memória, repetindo
o trecho supracitado, “como se não fossem signos”.
“Como que está vivo (...) como que vive” (RIVERA, [1971] 2012, p. 142 – grifo meu).
Este como que do “retrato riverano”, qual o “como se” de Sylvia Caiuby, remete-nos à noção
do como se deslindada e estruturada pelo teórico literário alemão Wolfgang Iser, cujos
preceitos sobre o imaginário se veem presentes já desde o terceiro tópico do primeiro capítulo
da presente tese. Ao tecer sobre o fingir no texto ficcional, o autor alemão observa que por
trazer a sua realidade criada traços identificáveis do real empírico – selecionados ou de um
contexto sociocultural ou de outros exemplos literários nos quais este novo texto busca suas
bases –, o mundo representado no texto literário é posto entre parênteses, para que ele seja
entendido como se fosse o mundo dado.
O teórico toca ainda no aspecto de totalidade que é conferido por este real posto entre
parênteses na caracterização do como se. Esta totalidade, também fingida, é não mais que um
aspecto, porque foi construída a partir de partes dos contextos que dão forma ao texto
ficcional. Tais contextos são incorporados à ficção em função do uso a ela dado, sempre
91
objetivo, pragmático. Por isso mesmo, o autor considera que a própria realidade representada
no texto não deve ser tomada de fato como real, pois pela fórmula condicionante vigente na
expressão como se, a qual põe o mundo que em si encerra entre parênteses, dá-se uma
irrealização indicadora de seu referente. Desse modo: “A literatura recebe característica geral
de mundo representado e posto entre parênteses” (ISER, 1983, p. 401).
Mas, quando se observam os constituintes de um imaginário, o imperativo de que a
realidade re(a)presentada no texto ficcional não deve, ou seja, não tem que ser tomada como
real empírico, a meu ver cai por terra, dando lugar à observação que mais bem define a ele,
imaginário, levado em conta seu veículo, o sujeito imaginante; a observação de que tal
realidade representada não deveria ser tomada como real, como se real fosse. Não deveria,
mas o é, pois, quando se fala em imaginário, somente ao admitir que ela seja muitas vezes (e
nem sempre à revelia da intencionalidade do autor) tomada como real pelo imaginante é que
se pode dizer que a realidade do texto toca em imaginários, demasiado reais para quem os
vive, realizando-os em sua absorção mental e sensível, ainda que não passem, ao fim das
contas, de... imaginários.
Esse adendo se completa no seguimento de argumentação do próprio Iser acerca do
assunto levantado pela funcionalidade do como se para o texto de ficção. Entram em cena
então as características, envoltas em sua tomada como real, de remissão do texto ficcional e,
por
conseguinte,
de
tornar-se,
de
querer,
de
buscar
tornar-se
visível,
seu
Wahrgenommenwerden. A essas se agregam particularidades outras, atividades de orientação,
Einstellungenaktivitaten, que resultam do imaginar o mundo do texto literário como se o
mundo real ele fosse. No entanto, a observação mais efetiva destacada por W. Iser está em
apontar que tais características ocorrem porque “a ficção do como se utiliza o mundo
representado para suscitar reações afetivas nos receptores dos textos ficcionais” (ISER, 1983,
p. 405, grifo do autor). É, pois, a este suscitar reações afetivas, as quais de fato operam sobre
a e a partir da apreensão que faz o imaginante sobre o texto ficcional, que a meu modo de ver
está ligada sobremaneira a relação ficção/imaginários. Nessa relação irreal/concreção, para o
mesmo Iser (1983, p. 406), “a representação do sujeito enche de vida o mundo do texto e
assim realiza o contato com um mundo irreal”. Irreal que, insisto, torna-se real para o
imaginante/leitor, ou melhor, real em sua visibilidade, seu Wahrgenommenwerden, ato
provocado também pelo receptor ao se representar, se reapresentar, identificar-se no mundo
apresentado pelo texto de ficção, tomando-o em sua irrealidade como se real empírico fosse,
mais do que representasse.
Dessa maneira, resumem-se assim tais concepções iserianas sobre a ficção do como se:
92
[O] mundo do texto entre parênteses não se representa a si mesmo, mas a um outro.
Este outro constitui a possibilidade de seu tornar-se visível, que, ao mesmo tempo,
provoca impressões afetivas no sujeito, que, de sua parte, causam atividades de
orientação e, desta forma, reações sobre o mundo do texto. Causar reações sobre o
mundo seria então a função de uso produzida pelo como se. Para isso é necessário
irrealizar-se o mundo do texto, para assim transformá-lo em análogo, ou seja, em
exemplificação do mundo, para que com isso se provoque uma relação de reação
quanto ao mundo (ISER, 1983, p. 406 – grifo do autor).
Chamo atenção uma vez mais, portanto, para o indicador de que a relação de reação quanto ao
mundo realçada pelo teórico alemão somente se dá através do efeito que tem o texto ficcional
de provocar impressões, reações afetivas no sujeito receptor desse mesmo texto. Ocorre,
porém, que abordar essas reações afetivas sugere de certa maneira pensar na questão como
passível apenas da absorção leitora de receptores teoricamente acríticos, comuns,
despreparados ou vulgos, como muitas vezes denomina a crítica científica, apuradíssima que
é. Entretanto, se toquei, nos últimos parágrafos do leque aberto acerca do texto literário, no
caráter das reações do como se por sobre o leitor/sujeito imaginante/receptor, é porque a
abordagem iseriana toca de um modo geral na ficção não apenas do texto literário, mas de
textos outros, de margens outras, de tomadas outras. Isso se aplica à questão da possibilidade
de tomada da fotografia como idêntica ao real, em vez de signo que este representa ou
reapresenta como de fato o faz. Em consequência, faz findar o aparte para que retornemos, o
leitor desta tese e eu, ao abordado por mim a respeito da ficção de memória fotográfica na
interpretação de ...y no se lo tragó la tierra e sua implicação conseguinte nos efeitos que
possibilitam identificar e falar sobre a ficção que envolve e revolve o problema do menino
narrador no romance de Tomás Rivera.
Talvez engane aquele (não seríamos todos, mesmo que “de vez em quando”?) que se
deixa levar pela “total realidade”, ou totalidade realizativa, da fotografia um dos termos
usados para a lente de um instrumento fotográfico. O fato de que a lente de uma câmera de
fotografar seja chamada de objetiva supõe muitas vezes, ao contrário da observação de que
leva esse nome por destinar-se à captação fotográfica de objetos, uma nada evidente, porém
pretensa objetividade que tende a ocultar os sujeitos (objeto, referente: subjetividade, pois, em
vez da dita objetividade) envolvidos na situação captada pelo instantâneo, pelo “roubado”
instante da foto. A objetiva da lente de uma câmera é, então, ao invés de algo que visa a uma
apreensão objetiva, um acessório cujo fim, cujo produto final objetiva ser, ou objetiva fingir
ser como o referente do qual toma, apanha de empréstimo sua imagem, antes de realmente ser
o próprio referente.
Quando Tomás Rivera leva para a ficção do conto-capítulo “El retrato” aspectos de
seu real vivido, elementos de comprovada ligação com momentos, instantes, passagens de sua
93
vida, em especial de sua infância, sugere na relativização espaço/tempo (o do ocorrido, o do
romance) uma “recuperação” de suas memórias, seus recuerdos. Tal renovação, tal realização
memorialística aponta para a, supõe a habilidade de uso de uma memória fotográfica, a qual,
potencializada na e pela ficção, torna-se, em verdade, uma ficção de memória fotográfica.
Será este caráter a recair, a pairar por sobre a ficção de ...y no se lo tragó a meu ver
responsável de ação direta em outro engano por que se deixa levar até mesmo a crítica que se
debruça a analisar o romance riverano: a ficção do menino narrador. Há, contudo, mais
porquês a decerto implicar em segundo plano sobre essa questão do menino-protagonista(autor)-narrador. E todas elas se desdobram a partir da memória fotográfica enquanto termo
que falha em suas intenções.
A concepção de memória fotográfica carrega em si um duplo aspecto, por assim dizer,
decepcionante. Em primeira instância, ela se revela uma ficção mesmo para ramos da ciência
que se dedicaram a estudá-la, sendo que a neurociência é, em especial, um dos campos
científicos que mais pesquisaram sobre o assunto. Tomando em conta que uma memória
fotográfica pressupõe sua “aferição” pelo contraste com a de outro sujeito partícipe dos ou
nos eventos rememorados, resulta que dessa “acareação” nada mais poderá ser extraído que
profundas considerações sobre prismas, perspectivas, pontos de vista. Por essa razão, quando
revolve o assunto, a neurociência baseia seus resultados em testes objetivos, os quais,
nenhum, até hoje, apontou de fato para o registro de uma verdadeira memória fotográfica, ao
menos não como se a quer 51. Vem, enfim, da ciência seu primeiro teor “decepcionante”: a
constatação objetiva de que a memória fotográfica, a memória como produto de registro de
uma lente fotográfica humana não existe.
O segundo aspecto “decepcionante” ligado à questão da memória fotográfica está,
pois, justamente, intimamente ligado aos objetivos da ciência que se dedica a estudá-la. Lidos
os artigos voltados a tratar do tema, observa-se a busca na verdade por uma espécie de
memória perfeita, capaz de rememorar tudo, e com total precisão. Ora, certo está que
tampouco a origem filosófica do termo eidético (coincidentemente mais vinculada ao
conhecimento intuitivo e por consequência à relação entre aparência e perspectiva) ou mesmo
a moderna e popular acepção adjetiva “fotográfica” dariam conta de uma completa apreensão
e reprodução da disposição de objetos captados pela observação humana. Está então no
engodo do que pode vir a ser uma fotografia o segundo aspecto decepcionante do termo
“memória fotográfica”.
51
Os artigos revisados sobre o assunto constam da bibliografia desta tese.
94
É a própria fotografia decepcionante se se a quer tomada como retrato fiel do referente
do qual é apanhada. A memória fotográfica é, portanto, nessa linha, uma ficção por ser
também a própria fotografia uma ficção, pelo menos no desejo a ela costumeiramente
transferido de total identidade com, de que seja totalmente idêntica ao objeto desde o qual
apanha, capta a imagem. Assim, ao aludir, ao remeter ao processo fotográfico é a memória
fotográfica uma ficção pela própria imperfeição, pela própria incompletude da fotografia em
sua ficção, em seu parecer, seu fingimento de cópia total e perfeita, quando, na verdade,
apenas revela um momento sujeito às mais variadas apreensões e, a partir daí, hipóteses,
sugestões, interpretações. Das interpretações da ficção de memória a que nos submetemos na
ficção de Tomás Rivera, uma delas é a de que o caso de “El retrato” daria conta de outro
termo cunhado pela neurociência: o de síndrome hipertimésica (do grego timesis, lembrar),
evento em que a perfeição fotográfica de certas memórias estaria em realidade restrita às
experiências pessoais dos sujeitos que as detêm. Em todo caso, parece demandar tal apreensão
mais cabível aos artifícios de que lança mão Rivera na construção de seu enredo um caso de
memória fotográfica mais particular; o que não impede, por conseguinte, que seja lido “El
retrato” como um desnudamento de ficção de memória fotográfica. É nesse tipo de ficção de
memória que se insere o menino e o leitor (acrítico, comum, leigo, vulgo ou não) atrapado
por seu narrado. É tal efeito de memória que instaura, por fim, a ficção do menino narrador.
Há também um terceiro aspecto decepcionante relacionado à questão da memória
fotográfica e sua ficção, sua simulação, sua noção aproximativa em ...y no se lo tragó la
tierra. A evidência dessa característica, dessa possibilidade de leitura está, como vimos, tanto
em um dos últimos capítulos da obra, o conto “El retrato”, quanto na última anécdota, a
estampa “Bartolo pasaba por el pueblo”. A estampa de Bartolo, ao servir, como já expliquei,
de epígrafe que abriria (pelos métodos descontínuos da lógica elíptica impressa ao e pelo
enredo) a obra inteira, e o capítulo “El retrato” (conto disposto descontinuamente a um conto
e outra estampa antes de “Bartolo...”) acabam dessa forma, (des)localizados, por
“contaminar”, por espalhar sua aura, seus ares de memória fotográfica (com devidos
“respaldo” e “justificativa” no registro ensaístico e epistolar de seu autor) através de todo o
romance.
Esse conjunto de ficções de memória se desenha do interior da narrativa (onde em “El
retrato”, por exemplo, os pais do personagem Chuy, figura retratada, borrada e redesenhada,
porquanto recriada e (re)inventada, deixam-se levar pela força fingida, tingida de memória
que têm do filho) a seu exterior: desde os ecos que a ficção encontra nos relatos explicativos
de Tomás Rivera em artigos e cartas a toda uma crítica que termina por se deixar enlevar pela
95
aparente falta de linhas limítrofes (tênues que em efeito são) entre a figura do narrador e de
seu autor. Convém, portanto, tecer os porquês que me permitem tocar na incidência da ficção
de memória sobre a existência da ficção do menino narrador.
Julio Ramos e Gustavo Buenrostro (2012, p. 43) destacam com propriedade que ...y no
se lo tragó la tierra é “una novela recorrida por las múltiples voces que proliferan en el marco
de un uso muy flexible de la primera persona, el discurso indirecto libre y las conversaciones
corales”. Parece ser justamente esse uso bastante flexível das várias vozes que se apresentam
ou evocadas são na narrativa o artifício responsável pelo equívoco de confundir-se a figura do
protagonista do romance com a pessoa de seu autor, algo que incidirá diretamente também
sobre a problemática de que se assevere que o narrador a deliberar as outras vozes (da[s])
narrativa(s) é um menino que decerto alude à infância do escritor da obra.
Quando toca no processo de edição da obra, pelo qual contos foram incluídos e
excluídos desde a primeira versão enviada a Quinto Sol até a publicação final, é também
Gustavo Buenrostro (2012, p. 193) quem afirma, mais especificamente a respeito da exclusão
do conto “El Pete Fonseca”, que os editores “acaso no comprendieron bien la distancia entre
el autor y su personaje”. Isto se explica pelo fato de que, ainda segundo Buenrostro (2012, p.
191), há em “El Pete Fonseca” uma “marcada distancia del narrador ante los eventos que
narra”. O conto citado52 “es un relato picaresco sobre las peripecias ‘amorales’ de un
protagonista pachuco” (BUENROSTRO, 2012, p. 192 – grifo do autor) que conquista, engana
e foge com o carro e todo o dinheiro de uma família (mulher e filhos) chicana. Por uma parte,
entende-se a eliminação do conto se compreendemos a prioridade do pensamento intelectual
chicano à época de afirmar os valores de sua gente frente a estereótipos a partir dos quais
eram frequentemente submetidos, julgados e menosprezados.
Daí a necessidade de afastamento de uma iminente, mas também já eminente, figura
no campo intelectual chicano, como propagadora talvez desses mesmos estereótipos, por mais
que, na verdade, a intenção de Rivera passasse pelo desnudamento e reconhecimento da
coexistência interna para que esta eliminasse a necessidade do reconhecimento e, portanto,
construção externa ao seio chicano (Cf. Buenrostro, 2012, p. 202). Por outro lado, entende-se
que, havendo uma distância maior entre o narrador e os eventos que conta em “El Pete”, é
52
Conforme aponta o próprio Buenrostro (Cf. 2012, 223), em nota explicativa aos anexos da edição argentina,
“El Pete Fonseca” foi escrito em espanhol, mas, uma vez excluído da edição final de ...y no se lo tragó, foi
publicado a primeira vez em inglês somente no ano seguinte à edição do romance, em Aztlán: an Anthology of
Mexican-American Literature (1972).
96
natural pensar-se na preservação mais coesiva de uma não tão distante ubiquação no todo,
ainda que ex-cêntrico, do romance do qual foi excluído tal conto.
No entanto, apesar de atribuírem, mesmo quem sabe de forma justificada, essa falta de
compreensão da distância autor/personagem a outrem, os próprios Ramos e Buenrostro em
2012 parecem quase recair na confusão que causam os limites tênues entre figura e pessoa,
algo presente desde críticas anteriores, como em Justo S. Alarcón, quem em 1988 intitulava
seu artigo, já aqui utilizado, de “El autor como narrador em ...y no se lo tragó la tierra, de
Tomás Rivera”.
Situado temporalmente entre ambas as mostras críticas, há de se ressaltar também o
trabalho já mencionado de Ignacio J. Esteban Giner (2005). Em sua tese doutoral publicada
naquele ano sobre a contextualização da obra de Tomás Rivera, Giner dedica todo um
capítulo ao único romance do referido autor chicano. Assim, sua apreensão/aproximação
autor/narrador passa por uma cuidadosa proposta de identificação, quando, por exemplo, ao
abordar certa passagem do conto final sobre a qual me estenderei mais à frente, escreve que
“se puede identificar al muchacho protagonista con el propio autor” (GINER, 2005, p. 86).
Mas, ao mesmo passo, um pouco antes, esta mesma apreensão se apresenta, aqui em tom de
conversão, um tanto mais próxima de um Rivera autor e narrador, quando Giner (2005, p. 81
– grifo meu), ao tocar nas variadas pessoas, nas múltiplas vozes orquestradas pela narrativa,
aponta que “El rol de narrador lo asumen varias personas a lo largo de la novela, ya sea el
muchacho protagonista, el muchacho ya adulto y convertido en autor de su autobiografía, en
narrador omnisciente, o incluso el propio Tomás Rivera”. Porém, a cuidadosa conversão
proposta por Giner parece render-se à flutuação perigosa que vida e obra do autor chegam
mesmo a permitir, quando, logo após o trecho supracitado, ele afirma que
El narrador omnisciente se presenta a veces también como un niño que ve el mundo
con sus propios ojos (...) o como un hombre mayor, que podría ser el mismo Rivera
ya convertido en escritor, pues, como sabemos, la novela está repleta de elementos
autobiográficos (GINER, 2005, p.81).
Vêm, enfim, desta arriscada proximidade com a autobiografia, as incursões do
mesclar-se, e confundir-se, narrador e autor em ...y no se lo tragó la tierra, posição assumida
de maneira mais efetiva pelo já mencionado S. Alarcón. É importante ressaltar que, mesmo
bastante anterior aos posicionamentos dos outros críticos trabalhados no presente final de
97
tópico, Alarcón mencionava também a Juan Rodríguez53 como o único que até aquele então
havia “asociado a la persona del autor con lo que los críticos nombran ‘narradores’, sean estos
explícitos o implícitos o virtuales” (S. ALARCÓN, 1988, p. 67 – grifo do autor). Assim,
mesmo expressando-se de forma metafórica, Alarcón coincide com o crítico evocado da
seguinte maneira:
Estoy de acuerdo con lo siguiente: que, al fin de cuentas, el autor, como
prestidigitador, tira de las cuerdas o hilos de sus personajes, narradores o voces a
través de su obra. Por tanto, todo lo que se haga o diga en dicha obra, al fin de
cuentas, es el autor el que, escondido detrás de una o varias máscaras, manipula de
una u otra forma a esa legión de narradores (S. ALARCÓN, 1988, p. 67).
Embora um tanto evasivo nesse primeiro momento, S. Alarcón termina por fazer da
remissão ao autor como narrador no romance de Rivera, não sendo apenas algo já explicitado
no título de seu texto bem como em toda a crítica ao que chama de contradições na narrativa
riverana. Tais críticas se estreitam sobre supostos problemas ontológicos os quais estariam
intimamente ligados à forte presença de Tomás sobre a figura do menino narrador, vinculação
fortemente defendida pelo crítico espanhol até o final de seu artigo, quando, ao citar um
pensamento ligado a um livro acerca da filosofia da existência, assim escreve: “Esto es lo que
le pasó también a nuestro autor/narrador en ...y no se lo tragó la tierra: ‘se aterrorizó’ y no
pudo pensar. Y, sin embargo, se lanzó y se atrevió a contarnos doce cuentos o experiencias”
(S. ALARCÓN, 1988, p. 74 – grifo do autor em aspa única – grifo meu em itálico).
A fina ironia contida na crítica de S. Alarcón não é de todo descabida. Há também na
ficção de ...y no se lo tragó la tierra, em contos como o já mencionado “El retrato”, o desfile
estilístico do que Esteban Giner (2005, p. 84) chama de “un uso delicadísimo de la ironía”. E
os críticos, por vezes, mesmo à revelia, terminamos por vencidos sermos por uma
contaminação de estilo advinda mesmo de autores sobre os quais despejamos poderosas
críticas. Não é, ainda, a crítica de S. Alarcón desmedida se aceitarmos que muitas vezes certos
clássicos exigem para sua maior compreensão e aceitação como tal um afastamento crítico
que demanda em conjunto maior distância no tempo e nas instâncias sócio-étnico-culturais e
cognitivas desde as quais discursam seus analisadores. É ainda menos impertinente a crítica
de Alarcón se não nos esquecemos de que, mesmo com tal distanciamento no tempo e de
instâncias, um Giner (2005), mais preocupado com a contextualização da obra riverana como
um todo (mostras contempladoras de poesia, conto e romance no autor), também se vê à
mercê dos frágeis limites entre Rivera e seu “menino” narrador. Contudo, inclusive a recente,
53
Crítico chicano cujas observações sobre Rivera aparecem no artigo de 1978 “The Problematic in Tomás
Rivera's ... y no se lo tragó la tierra”, reeditado em 1986 na compilação bilíngue Contemporary Chicano
Fiction: A Critical Survey, da Vernon Lattin Ed.
98
e excelente, primeira edição latino-americana do romance de Tomás Rivera quase se deixa
tragar, quase se deixa “cegar” pela nuvem de terra que ...y no se lo tragó levanta acerca da
questão autor/narrador. Tornemos a Ramos e Buenrostro.
A pesquisa materializada por Julio Ramos e Gustavo Buenrostro resulta em verdadeiro
tesouro tanto para investigadores da literatura chicana quanto para quem, tomando fins dos
anos de 1960 e início dos de 1970 como datas decisivas no e para o processo de
(re)florescimento e estabelecimento definitivo de um novo-antigo sistema literário, encontram
em Tomás Rivera uma figura chave cujo papel pioneiro nesses eventos não deve ser ignorado.
A concepção final da edição de ...y no se lo tragó la tierra, abraçada pela argentina Ediciones
Corregidor, que a publica em 2012, é fruto, pois, de uma profunda investigação científica de
cunho também bibliográfico que demandou a obtenção de acesso a arquivos do escritor junto
a sua família e, principalmente, à Biblioteca Tomás Rivera, localizada em Riverside, na
Universidade da Califórnia (EUA), lugar onde Rivera ocupou seu último cargo acadêmico
(tendo sido nomeado, sem que houvesse solicitado, reitor de um dos centros/uma das cadeiras
daquela instituição) antes de seu falecimento. Porém, embora o caráter bastante objetivo
adotado por ambos os pesquisadores se evidencie na concepção de abertura (prólogo) e
fechamento (introdução aos anexos que encerram a edição argentina), um aspecto de leve tom
subjetivado subjaz das reflexões que emprestam aos segmentos citados. Refiro-me aqui ao
uso, já citado por mim na nota de número 41, do termo relato, em espanhol, para tocar na
narrativa de Rivera.
Conforme adiantei, relato em espanhol é um sinônimo para narração, e para conto;
mas, encontra também, na plêiade semântica para narração, o ato, a ação de narrar, de contar
um fato, ou fatos, detalhadamente (Cf. relato em Diccionario de la lengua española de la Real
Academia en línea e no sítio Wordreference.com). Instaura-se desde já a ambiguidade do que
seja fato (mais próximo de um real empírico) em relação ao processo criativo e (re)criador
envolto no ato de repetir, contando-se (ou recontando-se) un hecho (de fato, de hecho)
acontecido. Relato nos remete ainda aos antigos relatos de viagem dos “descobridores”,
encarnando assim toda uma mnemônica que envolve em seu processo todo um caráter de
seleção, nem sempre objetiva, e, inclusive, de recriação, porquanto é de igual modo
imaginativo e, mesmo, inventivo.
Ao longo das páginas dos segmentos aqui mencionados, ao se referirem ao romance de
Rivera e a seus contos-capítulos componentes, Ramos e Buenrostro os tratam pelo espanhol
novela (o gênero literário romance, em português), narrativa, histórias, algumas vezes
cuento(s) (conto), não muitas vezes capítulo(s) e, em muitíssimas ocasiões, por relato(s).
99
Decerto um ato coesivo para evitar-se ao máximo a repetição de cuento, relato é usado como
sinônimo daquele, principalmente quando Ramos e Buenrostro em seus textos críticos
justapõem este mesmo termo relato, de forma repetida, a ficción (ficção) ou ficciones
(ficções). A proximidade para com a ficção é ainda mais bem apreensível quando, ao
comparar a obra riverana com a reunião de contos rulfianos El llano en llamas, os termos
ficções e relatos são também, além de cuento(s), designados para especificar as narrativas de
Rulfo na obra citada. No entanto, dois momentos em especial se aproximam da mescla
comum autor/narrador.
Um deles se refere a um trecho do prólogo em que Ramos e Buenrostro (2012, p. 24 –
grifo meu) escrevem sobre a figura do poeta “benjaminiano” da última estampa do romance
riverano. Este poeta, como já sabemos, é “Bartolo, poeta itinerante, viajero, como la misma
familia de Rivera”. Adiante, outro fragmento quase leva à comparação uma completa
identificação, quando os autores (2012, p. 26-7 – grifo meu) apontam que
Rivera (...) se había educado en un sistema escolar angloparlante donde
explícitamente se les prohibía a los niños hablar el español, sometiéndolos a un
aparato pedagógico que los introduce, como a varios de los personajes de Rivera, en
un mundo lingüístico violentamente escindido, diferenciado del precario espacio
familiar que continuaba siendo casi exclusivamente hispanohablante.
Nesses dois exemplos, há uma mostra ainda apenas aproximativa entre comparação e
apreensão identificadora total. Entretanto, dizer “apenas aproximativa” implica mesmo assim
em perigosa proximidade com a pessoa do autor. Nesse caso, a ausência tão-somente da
partícula condicionante “se” ao lado da conjunção “como” em Buenrostro e Ramos sugere
que ambos terminam por cair na malha das impressões afetivas provocadas pelo mundo outro
de Rivera posto entre parênteses pelo como se, por assim dizer iseriano, de seu texto literário.
Assim, mesmo substituindo por vezes o termo cuentos por ficciones para tratar do que
chamam também de “as ficções de Rivera”, Ramos e Buenrostro acabam por flertar com a
remissão que propõe a ficção do como se, algo que neles se explicita ainda mais em outros
dois fragmentos de sua abordagem sobre o romance riverano.
No início do prólogo cuja autoria dividem Buenrostro e Ramos, ao proporem – a partir
de reflexão da leitura que Octavio Paz tece sobre pachuquismo54 e mexicanidade em seu El
54
E importa ressaltar que o pachuco foi figura bastante explorada por uma nascente classe intelectual chicana
como símbolo de resistência e similar de aceitação e afirmação de uma realmente existente identidade chicana
que se estabelecia. O termo pachuco se refere, em primeira instância, àquele que vive ou vem da cidade de
Pachuca, capital do estado de Hidalgo (México). Mas, tem sua acepção estendida ao mexicano ou chicano que,
em comportamento que se torna mais evidente desde os anos de 1940, encontrou maneiras de marcar suas
diferenças identitárias nos Estados Unidos, tanto pelo uso de roupas extravagantes (grosso modo, ternos
compridos, calças folgadas, chapéus decorados com uma pena, tudo, o mais das vezes, bem colorido) quanto
100
laberinto de la soledad (1951, 1959) – uma releitura da situação dos sujeitos migrantes à
margem dos encontrazos a que estão submetidos diante das fronteiras culturais sob as quais se
veem obrigados a conviver, esses pesquisadores assim escrevem:
Tal vez ahora – por el impacto del capital global que domina el mundo
contemporáneo – estamos listos para reconocer que la trayectoria del sujeto que
(e)migra y el relato de su viaje como pérdida o proceso de desposesión abyecta es
un aspecto constitutivo del patrimonio, de las ficciones de herencia y del orden
simbólico nacional (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 17 – grifo dos autores
entre parênteses; grifo meu em negrito).
Mesmo tocando com propriedade uma vez mais em ficções, questão muito bem
pontuada pelos dois investigadores, o trecho supracitado encontra par com informação já
conhecida pelos estudiosos do grande escritor chicano e sua obra, a de que “Rivera se había
criado en un pueblo de Texas. Viajó durante años como hijo de jornalero 55 entre las fincas
del agronegocio” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 26 – grifo meu). Embora
aparentemente à revelia da intencionalidade do texto, mesclam-se aí, parecendo fundirem-se
de vez, as identidades de autor e seu protagonista; algo que com todo o cuidado praticamente
torna a ocorrer na introdução aos anexos, escrita dessa feita apenas por Buenrostro, no final da
edição argentina do romance de Rivera. Nesse segmento, quando toca em uma passagem
revelada por Tomás Rivera numa entrevista, Buenrostro transcreve que, sabedor do gosto de
seu filho pela leitura, o pai de Rivera o conduzia de porta em porta na vizinhança para pedir
revistas usadas. Ocorre que tal busca se dava às vezes também em aterros sanitários, lixões. E
é tal ação que Buenrostro vincula a um trecho do conto “Es que duele”, onde o protagonista,
expulso de sua escola por haver brigado com um menino anglo que o provocava por conta de
sua etnicidade, encontra refúgio para a situação na companhia da personagem Doña Cuquita,
que faz o mesmo itinerário de buscas nos lixões.
Classificando este processo vivido na infância como de acumulação, Buenrostro se
refere a este como “niño Rivera” (2012, p. 212), sendo curioso o fato de que é ele quem
melhor parece definir a personagem principal de ...y no se lo tragó reiteradamente como
“niño protagonista”, mais do que a oscilação principal do discurso crítico que comumente
denomina tal personagem como niño, muchacho ou joven narrador. Mais ao fim, Buenrostro
(2012, p. 212 – grifo meu) insere a seguinte complementação: “juntando el fragmento de la
pelo uso de um modo de falar bastante peculiar, unindo gírias variadas a um iminente espanglês. A esse conjunto
de comportamentos tende desde então a denominar-se pachuquismos. Remeto o leitor, ainda, ao conto “El Pete
Fonseca” (RIVERA, 1971 apud BUENROSTRO, 2012, p. 223-238), ao texto “Ficción del límite” (RAMOS e
BUENROSTRO: 2012, p. 9-17), ao ensaio “El pachuco y otros extremos” (PAZ, 1950) e ao Diccionario breve
de mexicanismos (DE SILVA, 2001, p. 157).
55
Trabalhador que no agronegócio exercia suas atividades laborais, e por elas recebia (pouco que fosse), por
jornada diária.
101
novela y el fragmento de lo biográfico, nos damos cuenta de la importancia de esta zona de
peligro tóxico para la entrada permanente a la lógica de acumulación de objetos del
conocimiento”. Juntar tudo, todos os cacos de seus fragmentos, seus flashes de memória é a
proposta final da estranha (re)tomada de consciência do protagonista da narrativa de Tomás
Rivera. Juntar acaba sendo para a crítica tarefa das mais difíceis ante a ação mais prudente,
quase óbvia de separar o menino Rivera do menino narrador, algo justificado pelos limites de
gênero impostos pelo enredo do romance desse autor chicano falecido precocemente em 1984.
O vínculo expressivo entre ...y no se lo tragó la tierra e a vida de Tomás Rivera faz
com que sua obra chegue a flutuar entre a categorização de romance autobiográfico ao que
hoje em dia se acostumou chamar de autoficção; não sendo, ao final das contas, qualquer das
duas. É uma quase “(im)pura” ficção, ou ficção criada a partir da recriação da retomada de
memórias, potencializadas pelo poder realizativo da ficção (Cf. RAMOS e BUENROSTRO,
2012, p. 43), através da superposição de ficções mnemônicas, memória sob memória,
memória sobre memória, memória questionando memória e seu poder imaginativo. Nesse
aspecto, Giner (2005) defende a ficção, mas por pouco se deixa por ela confundir-se.
Enquanto isso, Ramos e Buenrostro (2012) se aproximam da total separação; mas quase-que
tragados são pela escolha lexical dos relatos, que terminam por aproximar ficção aos fatos
(questionáveis, selecionáveis sim, embora demasiado desejosos do atestado serem como
verdade) aos relatos de viagem, ou mesmo ao gênero testemunho. E S. Alarcón (1988) borra a
linha tênue, porém, exagera na provocação acirrada menino-autor-narrador.
Sabemos que a ficção (o famoso lembrete de filmes e telenovelas: “Esta é uma obra de
ficção...”) pode até vir a ser uma escusa do autor com vistas a evitar até mesmo eventuais,
mas possíveis (e não são raros os exemplos) arengas judiciais. Por essa linha de raciocínio
transita algo da questão de Rivera, estabelecida e aceita desde já a afirmação de que ele,
Tomás Rivera, não é o narrador de seu romance, não sendo ele, enquanto autor, o narrador da
ficção por ele orquestrada, arquitetada, construída e materializada. Tome-se como instrumento
de verificação, por exemplo, o caso do conto “La mano en la bolsa”, um dos primeiros
capítulos do corpo de doze que remetem a um ano migratório pelas áreas de cultivo não
somente do sudoeste, mas, além disso, de partes do norte estadunidense. Pertencente a este
corpo que também alude ao ano letivo do menino protagonista, “La mano en la bolsa” conta a
estadia do menino com um casal chicano para que ele pudesse estudar enquanto seus pais
laboravam nos campos distantes do agronegócio.
Sucede que o casal, sem que o saiba sua gente, que o tem na mais alta conta como
pessoas generosas, é uma dupla que desfila tal generosidade a partir de chicanas, armações e
102
furtos. Para o fim da história, um desses furtos provém de un mojadito que se deixa seduzir
por Doña Bone, a mulher, sendo depois morto por ela e seu marido, Don Laíto, os quais, além
de inicialmente esconderem o corpo no quarto do menino de que tomavam conta, intimidamno e obrigam-no a ajudar-lhes a enterrar o corpo do homem assassinado, mais tarde, inclusive,
“presenteando” o menino com um dos anéis do mojadito morto.
Ora, cabe desde ali então uma pergunta tonta, mas de caráter sugestivamente
ontológico acerca da participação de um Rivera menino na ocultação de um cadáver; “fato”
contado por um Rivera já adulto e, quem sabe por isso, livre de qualquer investigação na
suposição de existência desse mesmo “fato” em seu passado? Esta é uma hipótese, claro está,
das mais inexequíveis; no entanto, cabível para a demonstração do nível de criação que
Tomás Rivera imprime a seu narrado, poder imaginativo sempre abordado por ele em seus
ensaios e entrevistas, professor ele também de oficinas de criação literária, as quais desejava
pudessem ajudar a gerar toda uma emancipação intelectual baseada em um projeto de
invenção, símile à construção por que ainda passava a identidade da gente chicana. Não,
Rivera não é o narrador de sua ficção. Porém, talvez surpreenda o feito de que tampouco o
seja um menino. Reparemos o exemplo final do próprio “La mano en la bolsa”, sobre o anel
do assassinado que lhe ofertam ao menino os dois chicanos enganadores:
Después de unos dos meses, ya cuando parecía que se me estaba olvidando todo
aquello, vinieron a visitarnos al rancho. Me traían un presente. Un anillo. Me
hicieron que me lo pusiera y recordé que era el que traía el mojadito. Nomás se
fueron y traté de tirarlo pero no sé por qué no pude. Se me hacía que alguien se lo
hallaba. Y lo peor fue que por mucho tiempo, nomás veía a algún desconocido, me
metía la mano a la bolsa. Esa maña me duró mucho tiempo (RIVERA, [1971] 2012,
p. 98).
Joven, muchacho, niño, entende-se, mesmo sem a precisão de sua idade, o
protagonismo de um menino em idade escolar. Talvez mais menino, mais criança que
adolescente, se tornamos ao episódio em que, mesmo temendo a repreensão dos pais, vagueia
e se deixa guiar por lixões com a personagem Doña Cuquita em “Es que duele”; ou inclusive
se se vai, de volta a “La mano en la bolsa”, ao asco do menino ao sexo praticado por Doña
Bone com o mojadito, antes do momento em que o matam, ela e seu marido. Seguro que, para
fins de apreensão efetiva, evidente, sim, ele é um menino narrador que é “realizado”,
configurado como protagonista e narrador. Porém, enquanto menino esse protagonista é, com
efeito, um projeto fingido, uma ficção de narrador. Há que se reparar, tomando como
exemplo, portanto, o trecho supracitado, um discurso demasiado elaborado, de palavras que
pressupõem demasiada elaboração. E aqui de nada, para nada contribui pensar em tal
elaboração como fruto de sua ficção, da ficção do menino; mas, antes, em verdade, da
103
construção rememorativa a que se impõe e se nos é imposta por um sujeito amadurecido,
infante ainda talvez em todo seu processo mnemônico de tomada de consciência.
Essa suspeição de uma introspecção um tanto imprópria para um garoto (Cf. Giner,
2005, p. 81) encontra ainda justificativa se observarmos com atenção o trecho abaixo, quando
no último capítulo do romance um menino descobre o protagonista da obra embaixo da casa
onde esteve escondido reencontrando suas memórias:
– Mami, mami, aquí está un viejo debajo de la casa. Mami, mami, mami, pronto,
sal, aquí está un viejo.
– ¿Dónde? ¿Dónde? ¡Ah!... deja traer unas tablas y tú, anda a traer el perro de doña
Luz.
Y vio sinnúmero de ojos y caras en lo blanco y luego se puso más oscuro debajo del
piso. (…)
– ¿Quién será?
Tuvo que salir. Todos se sorprendieron que fuera él. Al retirarse de ellos no les digo
nada y luego oyó que dijo la señora:
– Pobre familia. Primero la mamá, y ahora éste. Se estará volviendo loco. Yo creo
que se está yendo la mente. Está perdiendo los años (RIVERA, [1971] 2012, p. 161
– grifo meu).
Indo embora sua mente ou não, importa que do limiar, da ambiguidade entre razão e
loucura56, infância e idade adulta sobressai, paira a certeza, proposta do alto da criação de
Rivera, de que o suposto viejo obrigado a sair debaixo da casa pode ser elevado, no máximo, a
um caráter proposital, sim, de alusão ao autor, sendo, entretanto, mais correto afirmar o
menino como introjecção (re)criada, rememorada, recuperada pelo adulto, pelo “velho” que
faz do menino, enfim, outra ficção (uma ficção de que é o narrador um menino) dentro da
ficção maior de Tomás Rivera, ou seja: fazer de sua ficção de memória uma ficção de
memória fotográfica.
2.3 Imaginária e imaginários de ...Tierra: “sacralidades” em questionamento
Tamanha “simbiose”, com a qual se encerra a linha argumentativa do tópico anterior,
decorre de uma habilidade narratológica que em Rivera, conforme já explicitado a partir das
considerações teóricas utilizadas nesse segmento anterior, vê-se orquestrada desde a
justaposição, e contraposição muitas vezes, das vozes que sobre o texto interferem, que sobre
o texto intervêm. Nesse sentido, é possível compreender o texto ficcional riverano, de certo
modo, sob um ponto de vista polifônico.
56
Apenas mais uma das tantas similitudes com Rulfo, para além do âmbito de observações possíveis de um
Regionalismo em ambos (coincidentes neste aspecto também com o brasileiro Guimarães Rosa).
104
A polifonia em literatura é, desde Bakhtin (1929, 1963) e suas considerações acerca
dela e de sua implicatura e aplicação no gênero romanesco (tendo a análise do gênio
Dostoiévski à cabeça), matéria que fala, grosso modo, do entrechoque de vozes sociais
polêmicas, contraditórias, como constitutivo básico do gênero romance. Todavia, em ...y no se
lo tragó la tierra, primeira e terceira pessoas narrativas, discurso indireto livre e diálogos que
os complementam e a eles se sobrepõem, mais as vozes corais, vozes anônimas que opinam,
sem sequer haverem sido anunciadas, sobre as mais diversas situações trazidas à tona pelo
enredo; enfim, toda essa multiplicidade discursivo-enunciativa de vozes que confundem mais
do que propriamente polemizam parece mais bem condensar-se sob os efeitos de outro tipo de
polifonia, ou da observação da polifonia, partindo-se de outros termos.
Mesmo a polifonia no discurso literário, da qual trata Bakhtin, origina seus termos na
música, em especial da música litúrgico-clássica europeia do medievo, que alcançaria em
influência grandes nomes do gênero nos séculos seguintes. Resumidamente se explica pela
união em harmonia de vozes distintas, cada qual, entretanto, com sua própria melodia. Nesse
aspecto, a narrativa de Rivera opera sob o que se convencionou chamar de “canto fixo” (do
latinismo cantus firmus) na polifonia. Um cantus firmus em que três vozes maiores reunidas
confundem pela composição algo contraditória que propõem: capítulo, conto e romance.
Ocorre que na narratividade de sua obra, Rivera subverte a ritualística quase sempre
previsível do romance emprestando à forma composicional romanesca capítulo tons do canto
do conto. Revolvem, ainda, as entranhas desse canto maior: uma voz que seria a primeira,
também previsível (por “falsa” ser, sendo, por isso mesmo, base necessária para toda a ficção
desenvolvida) do “menino” narrador; a esta se justapõe em parataxe (Cf. Ramos e Buenrostro:
2012, p. 43)57 o conjunto de vozes corais e das anônimas dos diálogos interpostos que ajudam
a contar a(s) história(s); e a terceira voz é a que de fato surpreende, é o viejo narrador que sai
debaixo da casa no último conto-capítulo, fechando, assim, em trítono, um canto fixo
migratório, porque ora a narrativa se sustenta no menino, ora em outras vozes evocadas;
sendo, porém, um tenor maduro o responsável por introduzir, enfim, ao cantus firmus
riverano, o tom de um real, de um verdadeiro cantus fictus.
A tensão criada pela problemática, da qual se estabelece que o narrador é
(simbolicamente) e não é (na “razão retomada” na figura final do velho embaixo da casa) um
menino, termina por corresponder-se de certa maneira às vozes contraditórias como parte
57
Quando, ao falarem da operação narrativa levada a cabo por Rivera, os autores tocam no processo de
intensificação da língua que se dá através de uma redução ou subtração paratática (falam, ainda na mesma
página, de “un ensamblaje paratáctico de las voces” – grifo meu). Na ordem do gramatical, a parataxe
corresponde à coordenação e justaposição de orações.
105
fundamental da constituição do gênero romance, das quais fala Bakhtin. Nessa contradição e
espécie de polêmica oracional de uma voz que aparentemente não fala, quando em verdade é
a responsável pelas várias vozes que falam, minha posição é a de que, reiterando, é o
narrador, ao fim e ao cabo, o “velho” encontrado debaixo da casa no final do romance; mas
um “velho” que, ao dar vez e voz à memória de um ano de sua infância, faz, desse menino
que ele foi, o protagonista, sim, de tal mnemônica.
Sendo assim, tendo para fins de consideração efetiva que é o menino rememorado o
protagonista recuperado na construção mnemônica de um narrador maduro, tem-se, nesse um
ano de sua infância, outra tensão, um atrito entre fronteiras, mais culturais do que
propriamente a física que compartem México e Estados Unidos. Estabelecida já sua migração
laboral e agrária em solo estadunidense, a família do menino protagonista traz, ainda,
entretanto, raízes culturais, raízes que invocam seu pertencimento do lado mexicano dessa
fronteira evocada a entrar em ...y no se lo tragó como problemática cultural. Tal problemática
atravessa o menino, já seja no ano de sua vida, visto desde o aspecto de trabalho nas terras do
agronegócio norte-americano, nos campos de cultivo, já seja desde o aspecto de
confrontamento de suas raízes cosmogônicas, culturais, familiares e linguísticas desde um ano
letivo em um novo sistema, um novo “universo” onde eram outros os atributos que vigoravam
nas práticas majoritárias primeiromundistas estadunidenses (por exemplo, o inglês como
única língua no ambiente, no aparato escolar, e a submissão, práticas vexatórias de
menosprezo às minorias, dentre as quais as de mexicanos... e chicanos).
Assim, temos que: a inserção da figura de um “velho”, e sua estranha aceitação do
passado, a duras penas conseguida, apontam para um futuro em que suas antigas formas de
resistência já se transformaram, solidificando-se em afirmação identitária e em uma nova
forma de resistência às demandas do poder, tanto o originário do México quanto o
confrontado nos Estados Unidos. No entanto, tal afirmação não se dá antes sem
questionamento, sem que sejam desafiadas, sem que sejam feitas, na figura evocada e
construída do menino protagonista, certas interdições sobre sacralidades, sobre “tradições”.
Segundo Gustavo Buenrostro (2012, p. 193 – grifo meu), em sua busca por obter e
instaurar um marco identitário coerente, a emergente intelectualidade chicana coetânea a
Rivera, procura, antes, no México encontrar algo que lhe orientasse com “un sentido de
historia y de identidad; una tradición”. Ainda conforme Buenrostro, o próprio Tomás Rivera
aponta que nos primeiros anos desse (re)florescimento da identidade chicana “hubo un
empeño en hallar nuestros valores en México, es decir, regresar allí y encontrar la piedra
106
filosofal; encontrar nuestros antepasados y obtener así la fuerza dinámica que nos ayudaría
aquí” (RIVERA, 1979, s/p. apud BUENROSTRO, 2012, p. 194).
Allí e aquí denotam proximidade de espaços, mas é justo esse entre-fronteiras que
separa o tempo do menino protagonista do tempo do narrador maduro, o “velho” que “finda”
o romance, a figura com a qual finda seu romance Tomás Rivera. E, em seu tempo, o menino
protagonista defronta as questões de pertencimento que envolvem sua gente num apanhado de
apreensões culturais ainda mexicanas. Ocorre que esse menino recuperado traz para a
surpreendente figura “presentificadora” do velho descoberto embaixo da casa a atualização de
seu passado infante de questionamento ao apego cultural de sua gente e sua família a
costumes cuja validade se vê posta em xeque em solo estadunidense, onde se mostram
exacerbadas problemáticas de alteridade, mesmo que aceita a sujeição das classes minoritárias
diante do controle exercido pela cultura anglo dominante, algo que impõe a esse sujeito
minoritário uma situação de constante, e incômoda para muitos (tal é o caso do menino e
outras jovens vozes evocadas), subalternidade.
Entretanto, há um desafio implícito no confrontamento de que fez parte o jovem
narrador, o jovem no narrador. E tal desafio diz respeito a buscar entender de que modo se dá
todo esse questionamento de espírito jovem. Veremos que ele se atém, primeiro, ao âmbito da
imagem, e uma possível relação com imaginários. Possível porque, antes, o menino
protagonista relativiza toda uma imaginária que trazem consigo os seus. Cabe, então, um
aprofundamento desse aspecto relativo à imagem.
O termo “imaginária” aparece no desenvolvimento da obra O imaginário ([1994]
2011), do filósofo francês Gilbert Durand. Nesse ensaio sobre as ciências e a filosofia da
imagem, Durand lança mão do verbete “imaginária” (“imaginaire” em francês), não como
adjetivo, mas, sim, como substantivo, para referir-se/ou quando se refere a uma das vias da
resistência do imaginário ao iconoclasmo herdeiro do pensamento racionalista do Ocidente
desde Aristóteles (IV a.C.). As querelas a que se referem Durand tornam-se mais agudas,
principalmente, a partir da redescoberta dos textos aristotélicos (quase desaparecidos por
praticamente treze séculos) durante o século XII d.C. Desde então, a imagem se vê entre a
postura racionalista do pensamento, da experiência através do acesso aos fatos e entre a
Reforma Cristã Protestante, que abole em seus dogmas, suas doutrinas aquilo que tinha como
excessos imagéticos provenientes da idolatria abraçada e difundida pelo cristianismo católico.
E é a essa idolatria que Durand denomina, como parte da resistência do imaginário a um
profundo e amplo processo de iconoclasmo no Ocidente, de imaginária sacra.
107
Assim, fosse gótica durante certo tempo (séculos XIII e XIV), ou mesmo barroca,
como é o caso da arte em que se apoia a imagética católica romana a partir da ContraReforma no século XVI, é interessante notar que o termo imaginária se difere de imaginário
justo por ser aquele mais atinente a uma espécie de coletivo, de coletividade, de reunião, de
uma verdadeira coleção de imagens visuais (quadros, pinturas, estátuas, santos). Mesmo
assim, ao usar os dois termos, Durand chega a utilizá-los quase como sinônimos. Tocarei,
mais à frente, no entanto, em como, em meu modo de ver, o imaginário se apropria disso, ou
seja, apropria-se de toda uma imaginária para que ela possa fazer parte, impregnando a mente
do imaginante; não sendo, contudo, o imaginário, em seu caráter difuso de surgimento, apenas
isso: quer dizer, apenas uma coleção, apenas uma imaginária. Esta faz parte daquele, ajudando
a compô-lo; sem, entretanto, dar conta de tudo o que é ou pode ser um imaginário. Mas, como
via de acesso, como meio que pode servir de acesso à formação de um imaginário, é mister
estudar o papel da imaginária sacra mexicana questionada pelo menino protagonista do
romance de Tomás Rivera.
A propósito de um inicial e necessário retorno às origens mexicanas, o dramaturgo
chicano Luis Valdez, em carta a Tomás Rivera, escreve sobre a publicação de “El Pete
Fonseca” (conto excluído da edição final de ...y no se lo tragó) em AZTLAN: An Anthology of
la Raza Literature. A Rivera, Valdez informa que a publicação da qual seu texto viria a fazer
parte tentava mostrar a evolução do chicano “desde sus comienzos como indígena, su
sufrimiento como mestizo, su incipiente nacionalismo como mexicano y su lucha contra la
colonización como revolucionario – específicamente como magonista 58 – y como chicano”
(VALDEZ [1971] – Traduzido do original em inglês por BUENROSTRO – in: RIVERA,
[1971] 2012, p. 273). Entendamos que faz parte desse nacionalismo, de que fala Valdez, toda
uma rede de artefatos culturais construídos na composição da ideia de nação. Assim, fazem
parte desse ideário nacional, construções que “ensinam” o que é ser nacional pela propagação
de tradições, muitas inventadas, que intentam um objetivo mor: um sentido, um sentimento de
pertencimento. Para tanto, para apreendido ser, envolvido ser o sujeito nessa rede de
construções, o questionamento passa longe desses artefatos culturais tecedores, criadores,
construtores de identificações pelo nacional, de identidades que se forjam pelo nacional; sem
que, nem sempre, deem-se conta disso.
58
O termo remete, em especial, à figura de Ricardo Flores Magón. Líder do Partido Liberal Mexicano, Magón
encabeçou um evento de cunho libertário que viria a ser denominado por historiadores como “A rebelião armada
magonista de 1911 em Baja California”. De cunho libertário e anarquista, este evento toma parte do contexto de
revoltas iniciado em 1910 contra o porfiriato, a ditadura de Porfirio Diaz, que durou de 1876 a 1911 (Cf.
GARCÍA, 2013, s/p.)
108
Tal rede de artefatos culturais 59 é descrita brilhantemente por Benedict Anderson em
seu já clássico Comunidades Imaginadas (1989). Vejo como plenamente cabível que a essa
categoria se inclua a imaginária que toma parte da simbologia do sentido do que é ser
nacional. Para entender a imaginária que emerge das narrativas de ...y no se lo tragó la tierra
é interessante voltar no tempo, como sugere Valdez, e tomar o exemplo emblemático da
usurpação espanhola de Tenochtlán. Ali, ergueu-se o lugar que viria a ser conhecido como
Cidade do México a partir dos escombros da metrópole asteca destruída. Utilizando-se mesmo
as ruínas, as pedras da capital indígena destroçada, dominada, ergueram-se novas construções
com a arquitetura hispânica de então. Assim, casas e templos foram erguidos por sobre os
destroços de casas e templos do Império autóctone vencido. Ocorre que a mesma mão
indígena que serviu colonizada a esta reconstrução deixou vazar nesse seu ato obrigado
(especialmente na decoração dos emergentes templos católicos) os traços de seu passado,
dando margem a uma sobreposição à sobreposição já imposta pela devastação espanhola. É
nesses traços que se deixa ver a herança indígena, a qual com o tempo chegará às vias do
sincretismo, servindo este oportunamente ainda mais tarde (muitas vezes pelas mãos e os
instrumentos de influência de que dispunham os protagonistas das batalhas pela
independência e, depois, nas lutas de revolução) ao tal incipiente nacionalismo mexicano, o
qual, não diferentemente do que se passou em quase toda a América católica, cria, apanha e
apoia parte de seu simbolismo (tão necessário à construção e manutenção imagética do
nacional) na imaginária que tomam como sacra, tradicional, as gentes do povo enredado nas
malhas ilusórias do nacionalismo.
É importante ressaltar, entretanto, como, apesar do constructo que é, esse
nacionalismo emergente em toda a América desde as guerras de independência terminará por
ser um essencial escudo diante da potência expansionista (de imposição também cultural) que
se tornam os Estados Unidos da América do Norte. Sucede que o menino protagonista do
romance de Tomás Rivera sugere novas questões sobre o binarismo de forças México x
Inimigo Ianque: qual a pertinência de apego a valores culturais mexicanos quando se é
chicano in USA? De que valem os artefatos culturais mexicanos perpetuados pelos mais
velhos de sua gente quando se é um menino me(x)chicano criado, mas que ainda busca
inserção social (como sujeito de direitos, como estudante cuja etnia mereceria ser respeitada),
59
O autor destaca, grosso modo, dentre tais artefatos: a associação entre uma língua única e limites geográficos
definidos; o desenvolvimento do capitalismo mercantil; e o surgimento e progressão da imprensa, que permitiu
uma difusão quase simultânea de conhecimentos em relação às metrópoles e entre as colônias, além de ajudar a
propagar os ideais que viriam a legitimar o sentimento, a consciência da qualidade do ser nacional
(ANDERSON, [1989] 2005, p. 65-75).
109
do lado anglo dessa bi-fronteira que “compartilham” México e Estados Unidos? Perguntas
que coincidem com e correspondem a um “¿Nosotros qué?”, elíptica e fatídica pergunta que
encerra de forma anônima a quarta estampa “introdutória” ¿Para qué van tanto a la escuela?
(RIVERA, [1971] 2012, p. 92). A busca por respostas para tais questionamentos só se passa
através de uma revisitação a toda imaginária sacralizada, tida como sacra, como sagrada, fruto
de tradição e apego, porquanto pertencimento, pelos seus. Vejamos, pois, de que modo se dá o
desfile de tal imaginária passeando pela contestação revisitada na narrativa de reminiscências
do protagonista do único romance riverano.
Num primeiro momento, logo na primeira estampa que abre o narrado de
desenvolvimento da obra após o primeiro conto-capítulo, o menino protagonista se interpõe
ao jogo de sobreposições multiculturais caros à tradição mexicana herdada, trazida por sua
família. Nesse jogo, o sagrado se atém ao apego a pedidos feitos a espíritos. Assim, o
questionar se posiciona entre a burla e o temor (implícito no caráter elíptico-sugestivo do
narrado) às possíveis repreensões que poderiam advir do ato assim contado:
Lo que nunca supo su madre fue que todas las noches se tomaba el vaso de agua que
ella les ponía a los espíritus debajo de la cama. Ella siempre creyó que eran éstos los
que se tomaban el agua y así seguía haciendo su deber. Él le iba a decir una vez pero
luego pensó que mejor lo haría cuando ya estuviera grande (RIVERA, [1971] 2012,
p. 78).
Nesse primeiro instante, mesmo que com bastante cuidado, questionado é o “dever” de
sua mãe, este dever “tradicional” de “todas las noches”, cuja tradição a narrativa se deixa,
através da oração “Ella siempre creyó”, desvelar por não mais que uma crença a qual tem, na
verdade, em seu “siempre” o estabelecimento de ato (con)sagrado de tradição. Mas, os
espíritos rememorados pelo menino não se aquietam aqui. Tornam espíritos e a inquietação do
protagonista, logo na estampa seguinte à anterior:
Se había dormido luego, luego, y todos con mucho cuidado de no tener los brazos ni
las piernas ni las manos cruzadas, la veían intensamente. Ya estaba el espíritu en su
caja.
– A ver ¿en qué les puedo ayudar esta noche, hermanos?
– Pues, mire, no he tenido razón de m’ijo hace ya dos meses. Ayer me cayó una
carta del gobierno que me manda decir que está perdido en acción. Yo quisiera saber
si vive o no. Ya me estoy volviendo loca nomás a piense y piense en eso.
– No tenga cuidado, hermana. Julianito está bien. Está muy bien. Ya no se preocupe
por él. Pronto lo tendrá en sus brazos. Ya va a regresar el mes que entra.
– Muchas gracias, muchas gracias (RIVERA, [1971] 2012, p. 81).
110
Aqui a imaginária vem ainda por força da imaginação de sua gente, representada pela
imaginação da mãe do menino protagonista. Porém, a narrativa subverte tal imaginária
inventiva a seus subentendidos. Algo perceptível desde a frase “Ya estaba el espíritu en su
caja”, pois, se levamos em conta a dúvida metafísica de um onde seria o “Está muy bien” de
que fala um espírito e como dar-se-ia a materialização de sua outra fala “Pronto lo tendrá en
sus brazos”, tal caixa como corpo em que aporta o espírito que fala à mãe desesperada por
notícias de seu filho dado como perdido em guerra pode metaforicamente, dubiamente,
também representar outro objeto. Assim, essa caixa pode denotar, conforme apontam Ramos e
Buenrostro – ao tocarem no tema da guerra também tratado pelo porto-riquenho José Luis
González em seu conto “Una caja de plomo que no se podía abrir” (1973) –, “esa hermética
cajita de plomo donde los representantes del ejército le ‘entregan’ a la madre los restos de su
hijo desaparecido en la guerra” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 49 – grifo dos autores
em aspa simples).
Mas, se até aqui a relativização se atém mais à imaginação do que propriamente a uma
imaginária, tal ação se intensifica mesmo na continuidade desse drama que passa pela ficção
de cidadania a que se viam submetidos os sujeitos de etnia minoritária em solo estadunidense.
Como se percebe, pela apresentação de dados anteriores, a dramaticidade da situação advinda
dessa ficção e busca por reconhecimento de cidadania, desemboca no conto “El retrato”, o
qual já abordei. No entanto, antes que se chegue a ele, imediatamente após a estampa “Se
había dormido...” está o conto “Un rezo”, onde não apenas se desenvolve a passagem iniciada
na primeira estampa “Lo que nunca supo...”, bem como se intensifica a apresentação e
relativização da imaginária me(x)chicana.
Assim, apresenta o conto uma voz em primeira pessoa referente à mãe do já referido
jovem dado como desaparecido na intervenção estadunidense à Guerra da Coreia. Tal voz
conta suplicar pelo terceiro domingo seguido a “Dios, Jesucristo, santo de mi corazón”
(RIVERA, [1971] 2012, p. 82) para que estes lhe deem notícias de seu filho. A estes pede
ainda que o protejam das balas inimigas, para “que una bala no vaya a atravesarle el corazón
como al de doña Virginia, que Dios lo tenga en paz” (Ibid.); sendo, neste caso, bastante
perspicaz a “coincidência” forçosa, forçada, a fina ironia de que conste a referência do
ocorrido a alguma amiga cujo nome se assemelha à designação da Virgem católica, sobre
quem também pesou a dor do martírio de seu filho, Jesus, de coração também atravessado
pelo inimigo com uma lança romana.
No entanto, as remissões à mariolatria, esse apego e culto da Virgem (Cf. DURAND,
[1994] 2011, p.18), com efeito, revelam-se em pedidos mais específicos como: “Por favor,
111
Virgen María, tú también cobíjalo. Cúbrele su cuerpo, tápale la cabeza, tápale los ojos a los
comunistas y a los coreanos y a los chinos para que no lo vean, para que no lo maten”
(RIVERA, [1971] 2012, p. 82). E segue ainda mais agudo nas promesas feitas: “Ya le tengo
prometido a la Virgen de San Juan una visita y a la Virgen de Guadalupe también. Él también
trae una medallita de la Virgen de San Juan del Valle y él también le prometió algo, quiere
vivir” (Ibid.).
E a respeito da sobreposição de imagens própria do caráter de construção implícito na
formação das tradições é interessante notar nesses pedidos a recorrência à figura da padroeira
mexicana, a Virgem de Guadalupe, que retorna em: “Tráemelo bueno y sano de Corea. Tápale
el corazón con tus manos. Jesucristo, Dios santo, Virgen de Guadalupe, regrésenme su vida,
regrésenme su corazón” (RIVERA, [1971] 2012, p. 83). Tal justaposição de imagens santas
inclui em sua invocação a sobreposição transculturadora da imagem evocada de Tonantzin,
pois, conforme explicaria Carlos Fuentes em seu clássico ensaístico El espejo enterrado
([1992] 2010: p. 246), “en México, Tonantzin, la diosa de los aztecas, se convirtío en la
virgen morena de Guadalupe”.
Como ressaltei, esse drama de cidadania iniciado em “Se había dormido...”, e
imediatamente seguido por “Un rezo”, encontra seu ápice, ou sua correspondência, em “El
retrato”, penúltimo conto do corpo de doze capítulos de desenvolvimento da obra, relativos a
um ano letivo e de vida laboral do menino protagonista e sua família. E é importante perceber
como Rivera relativiza ainda outras questões, referentes uma vez mais à imaginária de que faz
uso sua narrativa de proposições mnemônicas e sua relação com o ficcional. O personagem
citado como desaparecido em guerra leva primeiramente o apelido carinhoso de Julianito,
que, salvo algum engano na resposta do espírito en la caja de “Se había dormido...”, quem diz
“Julianito está bien”, pode muito bem ser o filho morto de Virginia, amiga da mãe narradora
do subsequente “Un rezo”. Já sobre o nome daquele que merece as rogações neste mesmo
“Un rezo”, poder-se-ia até mesmo pensá-lo como Juan, quem, tal qual sua mãe, prometera
algo à Virgem de San Juan del Valle, de quem traz, ainda, uma medalhinha.
O interessante é que na proposição desse jogo de nomes entra em cena Chuy, nome
enunciado do desaparecido na mesma Guerra da Coreia em “El retrato”. Dado a conta de que
Chuy é um apelido bastante mexicano para o nome Jesús, nome tomado como o do filho da
Virgem, “coincidentemente” Virginia, e está estabelecida aí uma série de possibilidades
próprias do jogo ficcional, confundindo serem três, ou dois, o que talvez seja apenas um. Há,
porém, ainda mais. Se nos recordamos de que o final de “El retrato” traz a reconstrução
forçada do rosto prometido do filho, reconstruído a partir da observação obrigada do rosto do
112
pai, damo-nos conta da abordagem riverana correspondente à questão máxima da imagem
para o cristianismo: a do homem criado à imagem e semelhança de Deus, seu Pai; assim como
o seria Jesus, seu primogênito na terra, que ao terceiro dia de seu sepultamento ressuscitou,
sem esquecermos que o pai de Chuy (Jesús), interpelado por um amigo sobre a situação
exposta em “El retrato”, conta também que o retratista enganador finalmente “a los tres días
me trajo el retrato” (RIVERA, [1971] 2012: p. 145 – grifo meu); trabalho que, ao fim e ao
cabo, se vê mostrado “curiosamente”, “acabadito así como lo ve cerquita de la virgen en esa
tarima” (Ibid. – grifo meu).
A narratura imposta por Rivera no caso acima responde a dois planos de hipóteses
viáveis. O primeiro seria de ordem editorial, aquele que encerra a dúvida de Rivera entre
saber se estava por publicar um volume de contos, com as estampas entremeando tais contos,
como ele mesmo informa em carta à Editorial Quinto Sol, “to give the total work a
cohesiveness that I thought was needed” 60 (RIVERA, [1970] 2012: p. 249), ou um romance,
como o próprio e a editora em conjunto terminam por se convencerem. Nesta dúvida, talvez
esteja a explicação para a ambiguidade identificadora que percorre de maneira deslocada a
estampa e os dois contos que tocam no drama de cidadania aos quais dediquei os últimos
parágrafos.
O segundo, e a meu ver mais plausível, plano ao qual responderiam as “coincidências”
e ambiguidades impressas por Tomás Rivera no trato literário de tal drama de cidadania vem
da ordem de relações entre imagem (com destaque para a imaginária católica de sua gente),
mimese e ficção, em um jogo de imagens literárias amarradas propositalmente de modo a
servirem a toda uma ambiguidade interpretativa, provocada pelo poder criador, criativo da
imaginação na construção da ficção literária apresentada pelo autor. Observe-se que, mesmo
que consideremos tais coincidências como justapostas e sobrepostas inconscientemente, é
sabido desde Freud o poder de ação do inconsciente sobre o consciente dos sujeitos
discursivos.
Importa, ao fim e ao cabo, uma construção que pela desconstrução propõe, por um fio
tênue de ironia, a posta em xeque de valores e costumes em solo onde outra cultura se mostra
dominante. Tornando a “Un rezo”, poder-se-ia pensar a estratégia de dar-se vez a outra voz
narrativa, a da mãe do soldado desaparecido, como fruto de uma estratégia que se afasta do
subjetivo, diminuindo, assim, os tons de um provável questionamento. Algo que, em verdade,
é puro fingimento ficcional, dado que o narrador em terceira pessoa retorna em outros
60
“para dar à totalidade do trabalho uma coesão que considerei necessária” (Tradução minha).
113
momentos de posta em xeque dos costumes, da tradição, da imaginária de seu povo, sua
gente. Imaginária, é bem verdade, advinda de todo um poder imaginativo, mas com ares de
fixidez quase tão material quanto a das imagens evocadas nos apelos católicos até aqui
tratados. É quando entra em cena a figura, a figuração do diabo pelas vias do desafio, pelas
vias de enfrentamento do medo que tal oposição, necessária para a afirmação do bem na
imaginária católica romana, poderia provocar à mente do menino protagonista e seus jovens
irmãos.
No conto-capítulo “La noche estaba plateada”, nosso maduro narrador rememora um
momento em que ele, na figura de menino protagonista, desafia a que aparecera o diabo,
imagem que lhe havia chamado a atenção desde uma encenação pastoral em casa de uma tia
sua. O desafio está no espírito impetuoso do menino, quem promove um desmascaramento
desse medo ao encontrar a fantasia sob a casa de quem interpretara o personagem. A esse
primeiro desmascaramento promovido por Rivera em sua narrativa ficcional sucede a
materialização oral do menino, que busca invocar a presença do diabo no alto de uma colina à
meia-noite de uma noite prateada. Mais uma vez, dá-se a proposição de um jogo entre
fantasia, palavra e imagem; entre crenças e verdades construídas, impostas na construção do
medo pelas tradições, as quais resultam relativizadas na conclusão a que chega o maduro
narrador travestido na memória que tem de si quando menino:
Pensó que bien decía la gente que no se jugaba con el diablo. Luego comprendió
todo. Los que le llamaban al diablo y se volvían locos, no se volvían locos porque se
les aparecía sino al contrario, porque no se les aparecía. Y se quedó dormido viendo
cómo la luna saltaba entre las nubes y los árboles contentísima de algo (RIVERA,
[1971] 2012, p. 103).
Tal desafio ao medo na tradição religiosa e nas crenças de seu povo, de seus pais, de
sua gente se potencializa ainda mais no conto-capítulo “...y no se lo tragó la tierra”,
imediatamente seguinte ao anterior e, de modo bastante perspicaz e interessante, antecedido
por uma estampa que apresenta um caso de adultério, relativizando de maneira irônica o
protestantismo de um ministro evangelista que prometia a um povoado chicano que lhes
viriam sua esposa como intérprete e um outro “fulano”, palavra da própria narrativa, a ensinar
trabalhos de carpintaria aos homens de lá, para que esses não precisassem somente do
trabalho com a terra para sobreviver, o que ao cabo termina por nunca acontecer. No conto
que empresta seu título ao romance, a mensagem de desafio é clara. Nele, temos um irmão
mais velho do menino protagonista maldizendo a Deus por caírem doentes de tanto trabalho
ao sol seu pai e seu irmão menor, situações já recorrentes numa família em que tios e tias já se
haviam ido pela tuberculose ou a sanatórios ou tragados pela terra, mortos pela mesma doença
114
de sangue cuspido em razão da fatal combinação de suor, sol, pouca hidratação e trabalho
intermitente junto à terra. De tal maldição jogada a Deus, o rapaz vê abrir-se a terra como a
tragá-lo, sentimento-visão resultante do medo de anos. Mas, do emblemático desafio resulta
outra crença: a da cura de seu pai e seu irmão mais novo, imediatamente subsequente às
maldições que havia dedicado a Deus. Na manhã seguinte, batendo firme seu pé ao solo,
sentindo-se vitorioso sobre a terra, representação simbólica da vitória sobre o medo em solo
até ali alheio e hostil, o jovem sentencia: “Todavía no, todavía no me puedes tragar. Algún
día, sí. Pero yo ni sabré” (RIVERA, [1971] 2012, p. 111).
Esta relação imagética entre “La noche estaba plateada” e “...y no se lo tragó la tierra”,
a proposição imagética que levantam é tão emblemática como prova do poder sugestivo,
criador de imagens pela descrição da palavra literária que viria, inclusive, a servir de
ilustração para a capa de uma edição do romance datada de 1996 [2011], publicada pela
texana Piñata Books, da Arte Público Press (University of Houston)61. Nesta capa,
desenhados estão de um lado um menino em roupas de dormir, com o medo estampado no
rosto; e, do outro, uma representação do diabo a partir da descrição narrativa da fantasia dele
feita em “La noche estaba plateada”. E, entre ambas as figurações, separando ambas as figuras
desenhadas o desenho de uma fenda aberta no chão, tal qual a descrição da terra se abrindo
em “...y no se lo tragó la tierra”.
Mas, as remissões imagéticas a céu e inferno e “seus” personagens se espalham no
mais da obra, e o desfile de imagens no romance de Rivera segue ainda em capítulos como
“Primera comunión”, com o medo, infundido pela religião sobreposta às heranças sincréticas
e multiculturais mexicanas, sendo ironizado e desafiado:
[N]o había podido dormir la noche anterior tratando de recordar los pecados que
tenía y, peor, tratando de llegar a un número exacto. Además, como mamá me había
puesto um cuadro del infierno en la cabecera y como el cuarto estaba empapelado de
caricaturas del fantasma y como quería salvarme de todo mal, pensaba sólo en eso
(RIVERA, [1971] 2012, p. 113).
E se neste mesmo conto as questões impostas pela Igreja referentes ao pecado são revolvidas,
na estampa “Antes de que la gente se fuera”, a qual antecede justamente o conto “El retrato”,
a Igreja retorna, desta feita numa sobreposição de crenças, quando um padre espanhol
consegue, através do dinheiro ganho em bendições a automóveis da gente do povoado em que
congregava, reunir valor suficiente para viajar a sua terra natal. Ao retornar deixa do lado de
fora da pequena igreja postais de uma igreja espanhola muito moderna, o que, ao contrário do
que esperava, passa a ser alvo de adorações que começaram por “palabras en las tarjetas,
61
Uma reprodução consta dos anexos do presente trabalho.
115
luego cruces, rayas y con safos así como había passado con las bancas nuevas. El cura nunca
pudo comprender el sacrilegio” (RIVERA, [1971] 2012, p. 140).
Porém, mais do que polemizar, a viagem pela imaginária em ...y no se lo tragó la
tierra se insere em um projeto maior de revisitação a raízes formadoras, com sua consequente
reavaliação crítica para fins de formação de uma consciência nova, a do sujeito chicano. E
porque, nesse processo de formação, de autoafirmação identitária essa consciência passa pelas
vias do ideológico, passa também, mesmo por isso, deliberadamente pelo poder imaginativo
que desse corpo à possibilidade de união de um povo. Embora, conforme explicitam Ramos e
Buenrostro em seu prólogo à edição argentina do romance riverano, o chicano se encaixe na
denominação de povos sem Estado, o poder criador da literatura e a emergente
intelectualidade chicana entendem, abraçam e auxiliam em seu processo ideológico de que
seja, mais que uma unidade, um povo com unidade, aceitando suas origens étnicas (muitas das
quais também fruto de um longo processo de criação, recriação, construção e sobreposição de
valores e costumes) e impondo e apresentando sua diferença em uma épica que remonta a
tempos inda mais antigos de peregrinação, de nomadismo e movimento migratório. Seguro é
que a ficção de ...y no se lo tragó la tierra não chega a esse tópico de origem asteca, ao tópico
da origem em Aztlán, como o fazem outros coetâneos de Rivera; mas, é justo pela
relativização de valores, pela ambiguidade de sentidos que atravessam sua narrativa, que ele,
Tomás Rivera, através da rememoração do menino protagonista de seu romance, abraça a
insurgente causa chicana inserida no contexto das mobilizações pelos direitos civis que
sacudiram os Estados Unidos a partir de fins dos anos de 1960.
Tanto é assim que a proposta de abraçar, entender, acolher e aceitar suas origens e sua
gente só se dá após o desnudamento da validade desses artefatos culturais em um espaço de
menosprezo a uma alteridade que finalmente se agiganta, afirma-se como parte desse todo
caleidoscópico, um povo com uma unidade imaginada, sim (tocando-se nos termos de
Benedict Anderson (1989) em sua obra já citada), mas, isso porque passa primeiro pelo
necessário poder da imaginação para, só depois, afirmar-se ideologicamente.
Todo este processo, toda essa busca e essa longa caminhada rumo à aceitação de si
mesmo como uma só vez igual e diferente, semelhante e dessemelhante, está no final de ...y
no se lo tragó quando voltam, a maioria por um texto-rio (Cf. PEREIRA, 1997, p. 105) todo
em cursivas, os personagens que atravessaram a imaginária riverana. E fossem eles
mexicanos ou chicanos e seus costumes antigos, fossem eles ministros anglos protestantes
traídos ou professores anglos benfeitores, o que importa é que a toda essa gente o maduro
116
narrador travestido de menino rememorado quer abraçar, pois já revisou talvez o ano mais
difícil de sua vida, o ano em que seus embates, suas dúvidas identitárias eram mais agudas.
Agora, exposta, enfim, a importância da imaginária em Rivera, importa diferenciá-la
do que é um imaginário, para que sobre o trato dele também no romance riverano, para que
sobre a relação literatura e imaginários em ...y no se lo tragó eu possa fechar o raciocínio
proposto neste tópico.
A partir do que demonstrei, por raramente ser utilizado em português como
substantivo, o termo “imaginária” encontraria correspondente no verbete “estatuaria”, este,
sim, um substantivo. Porém, enquanto este se restringe a denotar uma coleção de estátuas,
aquele abre seu leque semântico de modo a abarcar uma série de imagens visuais. Incluídas
em sua amplidão não apenas estátuas (ícones, ídolos) bem como quadros, pinturas, gravuras, o
termo é usado por Gilbert Durand quando este francês especialista do imaginário faz
referência ao que ele chama de imaginária sacra cristã como parte demonstrativa de diferentes
momentos de resistência do imaginário diante de uma contínua e progressiva cultura de
iconoclasmo no Ocidente.
Observada a pertinência do termo junto ao recorte aqui adotado na análise de ...y no se
lo tragó la tierra, percebe-se que a imaginária contida nesse romance de Tomás Rivera se
insere como parte de toda uma mescla cristã-indígena propriamente mexicana (Cf.
FUENTES, [1992] 2010, p. 246). Característica que atravessa a fronteira em Rivera, esse
sincretismo, que é, portanto, também chicano, perturba e move questionamentos no menino
protagonista do romance. Dessa maneira, embora não se aprofunde na causa indígena, Rivera
e sua imaginária tocam, mesmo indiretamente, na face multicultural índia de tal sincretismo.
Assim, seja na remissão narrativa à Virgem “Indígena” de Guadalupe, aos quadros de
fantasmas, na consulta aos espíritos e mesmo nas (trans)figurações do diabo, o componente
cultural indígena está, de certa forma, representado, e posto em dúvida, na imaginária de ...y
no se lo tragó. E é assim, questionando, que a imaginária riverana questiona igualmente
imaginários de valores e de costumes, imaginários culturais, por assim dizer, apontados para o
chicano.
Um imaginário é um conjunto de apreensões de pensamento que tendem a reduzir
demasiadamente a complexidade de assuntos sobre os quais costuma dedicar, debruçar,
apontar sua lente, suas imagens. As imagens de que se serve necessitam de fato desse caráter
redutor, pois respondem à faculdade humana de pensar compartimentado, pensar por
compartimentos, à necessidade humana de classificar e, por suas classificações, pelas
compartimentações que produz, através desse ato ter a noção regozijante (e enganadora) de
117
que apreende (e entende) um todo determinado, ou determinadas totalidades. A ele,
imaginário, responde o que Gilbert Durand ([1994] 2011) chama de mente imaginante, ao que
poderíamos agregar mente do imaginante e, por conseguinte, sujeito imaginante. Tal aspecto
lhe conferiria o caráter, ou classificação, ou, ainda, dar-nos-ia a percepção da existência do
que muitos chamam de imaginário pessoal, ou imaginários pessoais. Tal classificação não é
de todo incorreta, mas o mais comum é que mesmo um imaginário pessoal se apoie em um, só
exista a partir de um todo maior, um universo maior, no qual se insere um imaginário plural,
pluralizado pela carga de imagens que traz em si. Tal relação de coexistência de um
imaginário pessoal para com um imaginário plural, ou para imaginários plurais, revela-nos o
caráter de latência, de característica estática que tem o imaginário plural: como uma nuvem
que paira à espera da mente imaginante que o tome de assalto, um imaginário pode mover-se
mais lenta ou rapidamente, podendo a ele se agregarem outras nuvens, outros imaginários ou
instâncias pessoais que sobre ele determinam a mente do sujeito imaginante.
Dele, imaginário, faz parte a coleção de imagens da imaginária, ou de uma imaginária;
mas ele, imaginário, não se restringe a isso. Um imaginário é um denso corpo vivo, pois seu
caráter coletivo é mental, já que é sobre a faculdade mental do imaginar que ele atua. Mesmo
seu caráter de estático é relativo, já que a determinados imaginários podem se agregar, de
tempos em tempos, imagens novas, frutos do poder de ação e influência, de persuasão dos
produtores, criadores, difusores, propagadores, veiculadores de todo e qualquer tipo de
imagem que abarcada possa ser pelo amálgama maior chamado IMAGEM. Será a força, a
profundidade que empresta à aparência das imagens produzidas e propagadas em cada época
que ditará a “pertenência”, o pertencimento, o poder de fixação ou não dessas imagens aos
imaginários pelos quais podem ser apreendidas. Há que se entender, por fim, que, dada a
necessidade classificatória do imaginário, suas imagens tendem a se valerem, mormente, da
produção de pré-conceitos (os quais por vezes resultam na disseminação de preconceitos),
servindo-se bastante de tipos, figurações, estereótipos e da força de muitos mitos. Em alguns
momentos, tal é o caso da literatura, embora esse efeito nem sempre seja intencional, dele
dependendo também a capacidade de decodificação, o filtro de apreensão do leitor receptor
das imagens que às vezes quer transmitir o texto literário.
No tocante ao romance ...y no se lo tragó la tierra, a relação da obra para com
imaginários se dá desde um ponto de vista de provocação de transtorno, de desafio. Assim,
quase todo o tempo são relativizados, questionados, revolvidos, trastocados pela obra os
seguintes tipos de imaginários:
118
- de costumes: abrangentes de construções, como crenças, religião, religiosidade,
tradição, sincretismos, cosmogonia;
- sociais: de relações em sociedade, de relações sociais, referentes, principalmente, à
mobilidade, à “movedura” própria dos deslocamentos sociais. Nessa ação da narrativa
riverana, entram em cena a não heroicização do sujeito migrante, a particularização do
nomadismo ou do sentimento nomádico (distinto para cada sujeito), e a ficção da e na busca
por cidadania, por aceitação e inclusão social;
- nacionais: por um lado, ao tocar na questão chicana e, por conseguinte, das classes e
das etnias minoritárias, dentro do imaginário nacional norte-americano (estadunidense). E, por
outro, ao defrontar sua narrativa com o imagético envolto por trás do tido como tipicamente
mexicano, com as imagens dessa cultura, algo provocado por um intencional retorno a raízes
mexicanas e a um incipiente nacionalismo mexicano (relacionado principalmente com o que
da Revolução restou); isto é, ao realizar tal ação a obra teoricamente termina por produzir
sentidos para que pouco a pouco se fosse “criando” e estabelecendo uma identidade e
autonomia de pensamento, um ideal verdadeiramente chicano. A respeito desses sentidos, não
é à toa que o antropólogo jamaicano Stuart Hall (2006, p. 50-1) os relaciona com a formação
de uma cultura nacional. Para ele:
Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia
e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (...). As
culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais
podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas
estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com
seu passado e imagens que dela são construídas.
Tal intencionalidade de construção de sentidos se faz presente, relativizada, o que a
torna mais interessante porque crítica e norteadora. E essa presença intencional de construção
de sentidos leva a pensar num ideário de existência do qual se aproveitariam coetâneos e
vindouros no arroubo sugestivo do epíteto Raza Cósmica para o povo chicano. Ideário entre a
utopia de uma “pseudonação” e a assertiva de que se toca quase, em verdade, aproveitando-se
os termos de Ramos e Buenrostro quando estes falam em povos sem Estado (2012, 17-31), na
existência de, quem sabe, uma nação não sem território, mas, antes, uma nação sem Estado.
A respeito do termo “povos sem Estado”, a partir do qual derivei o meu “nação sem
Estado”, Ramos e Buenrostro (2012) tocam também em outra questão, explícita na expressão
“línguas sem Estado”. É, pois, junto a esta questão que se aprofunda, mais do que na
polemização e relativização impressa na correlação com os imaginários supracitados, a
relação riverana para com a formação de determinado imaginário, um imaginário outro para
com o qual o romance de Rivera contribui de maneira mais efetiva.
119
Quando se pensa em um imaginário, a apreensão mais lógica, e óbvia, é a que se
detém, é claro, sobre a imagem, inclusive na ligação mais rasa que tem o termo para com a
palavra ideia. Isto é, um imaginário se estabelece aparentando abarcar toda uma coletividade,
visando também a uma apreensão coletiva de aspectos que serão tomados como totalidade.
Nesse sentido, o imaginário age através do caráter mais vago que empresta ao verbete ideia:
nele, ela, ideia (muito aquém da complexidade que a faz conceito em Platão, por exemplo), é
uma vaga impressão, uma impressão imprecisa, mas que, entretanto, simula, deseja dar
profundidade ao que, no entanto, não passa apenas de aparência.
Contudo, há que se consentir que uma imagem raramente é muda, seus sons fazem
parte da completude do imaginário; ou seja, com os sons se completa o imaginário. Tal
particularidade em Tomás Rivera é representada ao nível da fala, quer dizer, da representação
da fala, de uma busca por ser fiel a certa oralidade como marca dos seus, como elemento
marcante dele próprio e de sua gente. A este respeito, é interessante anotar o que o autor
informa quando, ao referir-se, como ele mesmo diz, “al método de narrar que usaba la gente”,
completa seu raciocínio da seguinte maneira:
[R]ecuerdo lo que ellos recordaban y la manera en que narraban. Siempre existía una
manera de comprimir y exaltar una sensibilidad con mínimas palabras (…) Esto,
claro está, es lo que elabora la tradición oral. Aunque muchos de aquellos padres que
andaban en los trabajos eran analfabetos, el sistema narrativo predominaba (…) De
esta manera, en los campos migratorios, se desarrolló una literatura oral (…) Desde
luego en los niños se desarrolló también una especie de mundo narrativo y en el
tedio del trabajo de cada día se cristalizaron mundos.
Las narraciones orales se formulaban también sobre México, o sobre las costumbres,
sobre la revolución de 1910 (RIVERA, [1975] 1995, p. 360-1).
Tradição oral, mínimas palavras, um sistema narrativo predominante mesmo com
contadores em sua maioria analfabetos e narrações orais que se formulavam também sobre a
Revolução Mexicana de 1910. É aqui nessa encruzilhada bifronteiriça (do norte dos Estados
Unidos Mexicanos ao sudoeste dos Estados Unidos da América do Norte) que as narrativas de
Tomás Rivera encontram as de El llano en llamas de Juan Rulfo, onde uma elipse encontra a
outra para formar um novo conjunto de idiossincrasias linguísticas. Assim é que, sem cruzar a
fronteira62, as narrativas de Rulfo refletem a crítica sobre a questão da terra pós-Revolução,
traçados a partir da captação e re(a)presentação da sabedoria popular em uma oralidade a qual
questiona os mais diferentes aspectos dos discursos hegemônicos vigentes. Enquanto isso, na
62
O deslocamento a que se veem obrigados a imprimir os personagens de El llano não logra êxito na busca por
atravessar a fronteira com os Estados Unidos. No único conto que desse espaço mais se aproxima, o personagem
principal se vê repelido por vigilantes texanos a balazos, ação que o faz retornar a sua vida sem esperanças no
norte de seu país.
120
busca intelectual por uma pedra fundante no México é natural que Rivera reflita uma
cuidadosa leitura da obra rulfiana. E se, conforme acrescentei, a linguagem popular usada por
Rulfo não atravessa a linha bifronteiriça mexicano-estadunidense, a oratura chicana (Cf.
RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 23) de Rivera – tal qual um revés da concepção
turneriana e expansionista estadunidense de fronteira fluida, móvel, em movimento de
alargamento de terras63 – não apenas avança pelo sudoeste dos Estados Unidos, bem como se
estende a caminhos mais amplos, como é o caso do norte anglo, receptivo ao, mas, também,
explorador do trabalho braçal para o agronegócio.
É preciso anotar que a elaboração e o tratamento literário de um discurso calcado na
oralidade popular, tanto em Rulfo quanto em Rivera refletem, ademais, posicionamentos
críticos diante da imposição de um espanhol estandardizado, ibérico, nos sistemas escolares.
Desse modo, o imaginário age em Rulfo através da capa do tipicamente nacional, tipicamente
mexicano. Isso porque, ao tornar-se um clássico (e os clássicos têm seu poder de criação de
fixidez) que emprestaria seu sucesso ao grande êxito da literatura latino-americana a partir dos
anos de 1960, muito pelo tom de interioridade humanista de seus personagens, camponeses
como os que tão bem conheceu em sua infância na província de Jalisco, Juan Rulfo agrega ao
imaginário (e sua tendência totalizadora) estrangeiro sobre o tipicamente nacional mexicano a
ideia de que todo mexicano fala tal e qual os personagens de El llano en llamas (e de Pedro
Páramo).
Do outro lado, o aspecto de tipicamente chicano na língua popular literatizada de ...y
no se lo tragó la tierra é também ato demonstrativo de resistência e posicionamento crítico64;
algo demonstrativo de outro intento fundante, o de “crear por medio del bilingüismo y
pachuquismos, nuestro propio caló; ir hacia nuestra propia gente y documentarnos aquí”
(RIVERA, 1979, s/p). O bilinguismo desse caló próprio proposto por Rivera está, em seu
romance, no uso de um sugestivo (e talvez incipiente) spanglish, tanto nos momentos
narrativos em que se mesclam no mesmo discurso termos do inglês e do espanhol, quanto no
uso de termos por assim dizer espanholizados do inglês, sendo o caso da utilização de
63
Remeto o leitor uma vez mais a minha dissertação ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em
La frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010) e, por conseguinte, à figura do historiador Frederick
Jackson Turner e sua frontier thesis como braço e discurso legitimador do expansionismo estadunidense rumo às
free lands do oeste e alargamento de suas linhas de fronteira até o Oceano Pacífico.
64
Nesse tocante, é emblemático um exemplo recente (experiência pinçada do real vivido) da Dra. Graciela Silva
Rodríguez, co-autora do indispensável Chican@s y Mexican@s Norteñ@s: Bi-Borderlands Dialogues on
Literary and Cultural Production (2012), quem, em 2013, durante sua participação no XVIII (?) Congresso de
Literatura Mexicana Contemporânea, realizado na University of Texas at El Paso, abre sua fala afirmando-se,
com orgulho, “Chicana porque o meu espanhol é demasiadamente popular para a Academia Mexicana de la
Lengua; e o meu inglês, pouco compreensível do lado de cá nos Estados Unidos” (Tradução e grifo meus).
121
palavras como “troca” (“truck”, caminhão) “lunche” (lanche), “jamborgues” (hambúrgueres),
“Crismes” (Christmas), “Iuta” (Utah), etc. E o pachuquismo a que se refere, se vê presente,
com toda a crítica de uma magistral e fina ironia, por exemplo, em passagens como a que
segue (cuja frase final de teor elíptico já foi alvo de citação neste tópico):
– ¿Para qué van tanto a la escuela?
(…)
– N’ombre. Yo que ustedes ni me preocupara por eso. Que al cabo de jodido
no pasa uno. Ya no puede uno estar más jodido, así que ni me preocupo. Los que sí
tienen que jugársela chango son los que están arriba y tienen algo que perder.
Pueden bajar a donde estamos nosotros. ¿Nosotros qué? (RIVERA, [1971] 2012, p.
92).
Com o uso de bilinguismos e pachuquismos, “Rivera elabora literariamente el español
de su comunidade texana” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 19) e, assim, une-se a Rulfo
(cuja família de origem rica tem seus bens tomados pela Revolução e cuja infância se deu
num México nortenho junto aos camponeses que tão bem descreve) como dois escritores que
falam a partir da, e não sobre a, fronteira com o que poderíamos chamar de conhecimento de
causa(s). Tamanho pormenor termina por conferir teor de certa veracidade linguística a seus
personagens, o que implica de modo atuante no imaginário linguístico sobre o qual passam a
agir, a contribuir suas obras. No que toca a Rulfo, influem no aporte de suas idiossincrasias
linguístico-literárias ao imaginário do tipicamente mexicano a difusão, as traduções e o êxito
comercial de suas obras, advindo também do crescente interesse lançado à literatura latinoamericana de sua época, culminando nos sucessos do boom e adjunto ao respeito e alcance
cada vez maior da intelectualidade da América Latina, inclusive dentro de uma amplitude
acadêmica estadunidense (embora ainda reticente e pelas vias do exame do ex-ótico) a cada
dia mais interessada em debruçar-se sobre sua própria hispano-americanidade.
Quanto a Rivera, sua obra é também um clássico; porém, um clássico dentro de um
universo literário que não obtém por muitas vezes o devido respeito e, principalmente, alcance
forâneo, haja vista que o sistema literário chicano, hoje plenamente estabelecido, é encarado,
o mais das vezes, como um subsistema literário, achatado, imprensado, espremido entre dois
grandes sistemas literário-comerciais: o mexicano e o estadunidense. O fato de que tenha
merecido uma premiada versão cinematográfica em 1995 e toda uma produção críticoensaística que ainda hoje se inclina sobre o romance, a vida e a obra de Tomás Rivera (com
destaque para a primeira edição de fato latino-americana pela argentina Ediciones Corregidor,
no recente 2012), ainda assim limita a propagação de seu contributo a imaginários do
tipicamente chicano a um universo quase que exclusivamente acadêmico, muitas vezes, ainda
avesso à massificação de que tanto necessitam e se aproveitam as imagens de um imaginário.
122
A ligação e transcendência evidentes do romance de Rivera para com a obra de Juan
Rulfo aportam, mesmo assim, para sua contribuição junto a imaginários, algo que talvez se
potencializasse com traduções para além da obviedade da necessidade comercial do inglês e,
quem sabe, um remake de sua versão fílmica, feito tão comum na indústria cinematográfica
estadunidense atual.
Por fim, vale apontar que um imaginário só existe, somente de fato se “materializa”,
em seu momento de comparação, pela comparação com o real empírico, a partir do instante
em que verdadeiramente, indomitamente dele se dá conta a consciência (do) imaginante, a
consciência imaginativa. No que se refere ainda a Tomás Rivera, alguém que levado por
dever acadêmico ou pelo prazer do conhecimento venha a interagir nesta zona bifronteiriça
abrangente do norte mexicano ao sudoeste (e um pouco mais) estadunidense, verá que,
mesmo passados mais de sessenta anos de temporalidade do enredo romanesco riverano e já
após mais de quarenta anos da publicação de sua obra, muito do caló bilinguístico, do
pachuquismo e do spanglish que elipticamente empregados formam parte da literariedade de
sua obra; muito disso, ainda atravessa, preenche as conversações das gentes dessa fronteira de
culturas em constante choque, troca e atualizações. Algo fruto do caráter dos clássicos, seu
tom, seu dom, sua propriedade universal de permanência.
123
3 LA FRONTERA DE CRISTAL: COMPONDO (COM) IMAGINÁRIOS
La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, é um romance narrado em nove contos.
Nessa obra, o autor se volta ao tema da profunda ligação entre México e Estados Unidos, já
evidente em obras como Gringo Viejo, por exemplo. Entretanto, a atração mais profunda de
La frontera de cristal vai ao encontro de um propósito desde há muito praticado por uma elite
letrada de grande valor no México: a análise, de objetivo definidor, do sujeito mexicano; ou,
pelo menos, de sua psique formadora. Assim, apesar de narrativa ficcional, esse romance de
Fuentes encontra, na leitura que nos propõe a fazer, estreita correspondência com o gênero
ensaio em pensadores mexicanos tais quais Samuel Ramos, em 1934, e Octavio Paz, em 1950,
espécie de predecessores, pelas vias abertas do ensaio 65, da linha de pensamento desenvolvida
na ficção de La frontera.
Contudo, a ligação ainda mais clara de La frontera de cristal se dá de modo bastante
estreito para com El espejo enterrado (1992), aclamado livro de ensaios do próprio Carlos
Fuentes. Nele, o autor perfaz o mesmo caminho inquiridor dos antecessores supracitados.
Estabelece, entretanto, sua tese teórica com o que chama de três hispanidades: o
prolongamento da hispanidade ibérica, alastrada na América colonial espanhola até certa
hispanidade contemporânea que eclode tanto do épico e não menos violento avanço do
estadunidense rumo ao atual oeste quanto da política expansionista (e porque não dizer
intervencionista) de um Estados Unidos já estabelecido como potência mundial voltada para
uma América terceiro-mundista de frágeis bases políticas. Às resultantes desse terceiro
movimento de eclosão de hispanidades, Fuentes (Cf. 1992, p. 441) chama de hispanidade
norte-americana, uma terceira hispanidade, o revés cromossomático da imigração mexicana,
sul (em menor escala) e centro-americana que cobra dos Estados Unidos da América do Norte
seu status propagandeado de potência e de terra das oportunidades.
Entendo que a partir dessa relação de dependência da ficção de La frontera para com
amostras específicas do gênero ensaio, Fuentes acaba por criar caminhos viáveis para a leitura
de seu romance desde um ponto de vista de conexão da obra com a criação sugestiva de
imagens e a consequente perpetuação de imaginários. Tais caminhos abordo aqui através de
três aspectos constitutivos de seu conjunto romanesco de contos: a) desde um prisma de
estilo, a abordagem do peculiar em sua narratividade; b) de ordem talvez mais estética, a
observação do principal recurso literário de imagem utilizado por essa narratividade, o qual
65
Cf. Massaud Moisés (1974, p. 174-56).
124
resultará em c) no teor identitário do conjunto de imagens criadas como parte da concepção de
um imaginário de oposições bem definidas no jogo de alteridades que sobressai das relações
fronteiriças evocadas pela trama do romance. Dito isto, passemos, pois, a esses caminhos.
3.1 Nas trampas de um narrador coiote, (des)caminhos para os imaginários
O coiote habita terras americanas desde tempos pré-cortesianos. Afirmar tal coisa
talvez por um lado surpreendesse um suposto interlocutor desavisado, não fosse, de fato,
verdadeira. Com efeito, a oração que abre este tópico encontra respaldo na origem aceita para
o espanholismo coyote (em português, coiote), palavra oriunda do nauatle coyotl (do
substantivo singular de caso absolutivo ˈkɔ.jɔtɬ). O anterior nomadismo migratório dos
nahuas, com suposta origem no hoje sudoeste estadunidense, passando pelo noroeste
mexicano até se estabelecerem no México central, desde onde exerceriam forte influência
sobre outras civilizações de seu tempo, dá conta da presença do animal ao qual se refere o
termo coyotl por vastos territórios americanos, especialmente os do Norte.
O coiote é um espécime canídeo cujo habitat se estende do Canadá até áreas que
variam da Costa Rica ao Panamá. A variedade do clima e da vegetação dos locais onde é
encontrada esta espécie de tamanho menor ao de um lobo aponta para uma forte característica
de adaptabilidade ao terreno sobre o qual habite ou se imiscua (tal é o caso de quando se
esgueira pelas cidades em busca de alimentos que vão desde restos de lixo revirado a
pequenos animais domésticos). Pode reunir-se em matilhas, mas seus hábitos costumam ser
em geral solitários. Outro dado relevante tem a ver com sua designação científica de canis
latrans, ou seja, cão ladrador. Ocorre que os uivos e latidos emitidos pelo coiote (mais
frequentes entre o fim da tarde e durante a noite) costumam ser enganosos, pois, dada a
relação entre som e distância, pode parecer que o animal está em determinado lugar quando,
na verdade, está em outro.
No tocante a minha pesquisa e, em especial, ao presente tópico, é interessante notar
como muitos dos aspectos dessa espécie canídea se veem emprestados, por aproximação, à
gama semântica do significante quando este se refere a certo coiote hominídeo: o atravessador
de fronteiras; ou, melhor seria, um atravessador de humanos nas fronteiras que separam
centro-americanos66 e mexicanos do chamado american dream, a ser de fato conhecido
66
Mesmo no México, mas, principalmente, na fronteira mexicana com a Guatemala, os coiotes são também
chamados de polleros. Curiosamente, pollero pode, além de servir de sinônimo para o termo nauatle, significar
125
apenas do lado estadunidense da extensa fronteira “compartilhada” com o México. A respeito
do homem coiote, são bastante esclarecedoras as palavras do jornalista mexicano Alejandro
Suverza Téllez (2010, p. 1 – grifo do autor), quem escreve que
La definición académica describe que un coyote es un tipo de lobo pequeño, que
sigiloso pesca a una oveja y se la traga. La palabra “coyotear” esconde a un pillo
que hace de intermediario en cualquier negocio que pueda sacar ventaja. Pero la
palabra coyote en México es sinónimo de abuso, de criminalidad, de un tipo que se
aprovecha de migrantes que tienen la ilusión de llegar a Estados Unidos.
Perceba-se que mesmo a remissão inicial de Téllez ao animal pode ser trazida, via
metáfora (e a metáfora é um dos temas-chave do presente capítulo), à figura inescrupulosa do
coiote homem, na maior parte das vezes um falso cão pastor de ovelhas, as quais, em
realidade, só quer tragar e enganar. Ainda acerca da aproximação entre a semântica dada ao
canídeo e ao exemplar humano do termo, é interessante a informação fornecida pelo
antropólogo mexicano Gonzalo Camacho Díaz, estudioso, entre outros assuntos, de culturas
musicais do México. No artigo “El baile del Señor del Monte”, o autor conta que, em suas
pesquisas, ao ser conduzido ao seio cultural de diferentes etnias, frequentemente percebia sua
presença como perturbadora “por ser un extraño, un forastero (...) o un simple coyotl (DÍAZ,
2011, p. 130 – grifo do autor)”. E ao verbete por ele grifado adere em nota o adendo de que
“Se trata de un término náhuatl cuyo significado literal es coyote y se emplea para denominar
al mestizo, por poseer las mismas características depredadoras de este mamífero” (Ibid. –
grifo do autor).
Já a mesma alusão ao mestiço, àquele que vem de fora, um estranho à pureza da etnia,
aparece também no volume três, dedicado ao teatro, da interessante reunião de textos Words
of true peoples/Palabras de los seres verdaderos: Anthology of contemporary mexican
indigenous-language writers (2004). Nela, em nota alusiva a um dos textos trabalhados, os
editores chamam atenção para a voz nauatle utilizada pelo dramaturgo Ildefonso Maya no
verbete maseual correspondente a índio, indígena ou camponês, com o sentido primordial de
“gente comum”, “gente do povo” ou “gente rústica”; um meio termo para este primeiro
conceito seria outra voz nauatle em tlacatl, que no geral designa a todo tipo de pessoa, não
necessariamente “rústica” ou “comum”. É, pois, a partir desse termo que, em contrapartida ao
conceito incluído no uso de maseual, o autor estudado lança mão de outro conceito, segundo
os editores, desta feita incluído na utilização do termo coyotlacatl, donde se extrai a
tanto “persona que tiene por oficio criar y vender pollos”, como “lugar en que se crían pollos” (Fonte:
Diccionario de la Real Academia em Línea).
126
composição “la persona (tlacatl) ladina (coyotl)”, “gente de razão” (MONTEMAYOR e
FRISCHMANN, 2004, p. 247 – grifo dos editores).
Será justamente esse aspecto ladino voltado para uma das acepções cabíveis ao termo
coiote, esse viés de astúcia e sagacidade que permitirá a percepção da narratividade adotada
em La frontera de cristal, romance também de atravessamento de fronteiras. Perceba-se que,
agregada a essa mesma linha de raciocínio do astuto e do sagaz, está não somente sua
capacidade de raciocínio, mas, quem sabe, principalmente, sua lábia, a capacidade de
envolver, de enganar pela fala. Será assim, dessa forma, que a quem buscar posicionamentos
plenamente evidentes o narrador utilizado por Carlos Fuentes muitas vezes parecerá estar em
determinado lugar do discurso quando, na verdade relativa das verdades, estará em outro.
A própria representação do coiote em La frontera é duvidosa. De um modo mais
específico, este bem pode ser Rolando Rozas, personagem com trâmites de um lado e do outro
da fronteira, amante de outra personagem, Marina Malintzin de las maquilas; dela e de muitas
outras, conforme vai apontando a narrativa. A muitas de suas amantes Rolando conquista
fingindo ser um homem de negócios, entrando em bancos, bares e restaurantes, simulando
falar todo o tempo em um celular que na verdade não tem baterias. Talvez seja este o
personagem figurado na edição brasileira de 1995, da editora Rocco, estampada pela foto de
um homem em cujas costas desnudas se vê tatuada a imagem da Virgem de Guadalupe,
padroeira mexicana. Reside a dúvida, entretanto, na idiotice dos atos com o falso celular por
parte de Rolando e a aparente dureza maior que transmite a imagem da capa citada 67.
A certeza mesma da descrição narrativa do coiote vem surgir em verdade já ao fim do
romance. É ali, quando o narrador conta a espera do patrulheiro fronteiriço estadunidense
Mario Islas por indocumentados que buscassem atravessar a fronteira, onde se lê algo do
modo de agir dos coiotes:
[L]a noche se llenaba de algo que él conocía de sobra, los trinos y silbidos de los
pájaros inexistentes, que era la manera como los coyotes, los pasadores de ilegales,
se comunicaban entre sí y se delataban aunque a veces todo era un engaño y los
pasadores silbaban como un cazador usa un pato de madera, para engañar mientras
el paso se efectuaba en otro lado, lejos de allí, sin silbido alguno (FUENTES, [1995]
2007, p. 255-6).
Está, pois, nesse mesmo ato e efeito de engano, de aparentar estar “aqui”, quando se
está “ali” um dos logros de mimetização coiote efetivados pela narrativa de La frontera. E o
fato de que, mais do que em um personagem específico, tal mimetização se veja, por exemplo,
em uma descrição de comportamento, como no trecho supracitado, sugere que para além da
67
Há, ainda, no último conto da obra, a inserção do personagem Gonzalo Romero, este, sim, um coiote que
acaba morto por radicais skin heads estadunidenses em uma das incursões de atravessamento ilegal na fronteira.
127
presença de um narrador coiote está a existência de toda uma “narratividade-mimese” de
engano, digna de desconfiança, sugestiva, por conseguinte, de um narrador culto, com
conhecimento amplo o bastante da língua e suas variantes, de linguagens e expressividade ao
ponto de burlá-las todas, inclusive pela capa do popular, visando seduzir e conquistar o leitor,
“conduzindo-o”, assim, pelos (des)caminhos da fronteira que ficcionaliza. Ao tratar dessa
forma a fronteira sobre a qual desfila seu fictício, La frontera de cristal se apresenta como um
exemplo de uso do que nessa obra podemos chamar de “narratividade coiote”. Sobre ela age e
interfere um narrador que, qual o atravessador de humanos, fingindo deixar de ser um coyote,
simula ser quase um cicerone, responsável por conduzir seu leitor “turista” ao lado do “sonho
americano” da fronteira. Ajudam e interferem, portanto, sobre a mente desse leitor viajero os
descaminhos pelo desconhecido que o narrador quer tornar, quer fazer parecer ser, sem que
em verdade seja, familiar. Interessa, então, de que maneira esse narrador e sua narratividade
coiote transmitem as imagens que almejam agir pelo convencimento de que ao real empírico
se coadunam, quando na verdade não passam da elevação a imaginários.
Conforme adiantei anteriormente, ao trafegar, com extrema facilidade, da erudição, de
um registro tido como mais comum à dita alta cultura para o registro popular da e na
linguagem literária que elege para desenvolver em seu romance, Fuentes demonstra assim em
La frontera de cristal amplo conhecimento e domínio dos códigos linguísticos de que lança
mão e faz uso em sua mostra literária acerca da fronteira México-Estados Unidos e das
conturbadas relações de alteridade que desse entorno sobressaem. Tamanho domínio de ações
discursivas, de explícitas relações para com sua própria ensaística 68, Carlos Fuentes parece
emprestar a seu narrador. Observemos, assim, de início, o conto-capítulo de abertura do
romance.
Em uma de suas últimas aparições em público, em conferência realizada na Academia
Brasileira de Letras (2012), Fuentes dedicou boa parte de sua fala a observações sobre a obra
do grande escritor brasileiro Machado de Assis. Um recorte especial sobre Machado voltado
para uma de suas mais aclamadas obras, o romance Dom Casmurro (1899), revela-nos a
relação, como em espécie de homenagem, entre o nome de uma de suas mais célebres
personagens, Capitu, a Capitolina dos “olhos de ressaca” (ASSIS, 1899, cap. XXXII) e todo o
esmero machadiano para com a concepção de seus capítulos, dos capítulos de suas obras.
68
Remeto o leitor uma vez mais para minha já citada dissertação de mestrado (UFF, 2010), onde demonstro de
modo mais específico a correlação de posicionamentos ideológicos entre o pensamento ensaístico de Fuentes e
as posições adotadas e defendidas por Samuel Ramos e Octavio Paz. Aqui, interessa-me mais a influência direta
e explícita dos ensaios do próprio Fuentes em El espejo enterrado (já como também uma leitura dos dois
intelectuais cujo discurso parece incidir de maneira mais enfática no de Fuentes) sobre a ficção de La frontera de
cristal, ação determinante para os modos de narrar em jogo na narratividade coiote do romance em epígrafe.
128
Ocorre em La frontera de cristal algo semelhante com a descrição da personagem Michelina
Laborde e Ycasa, logo no primeiro conto do romance.
A primeira descrição proposta para a personagem surge após a afirmação de uma guia
de que nada há para o visitante na desértica cidade nortenha de Campazas, observação esta a
qual
[A]rrancó una pequeña sonrisa a Michelina Laborde, quebrando fugazmente la
simetría perfecta de su belleza facial – su “mascarita mexicana”, le dijo un
admirador francés –, esos huesos perfectos de las beldades de México a las que el
tiempo parece no afectar. Rostros perfectos para la muerte, añadió el galán, y eso ya
no le gustó a Michelina (FUENTES, [1995] 2007, p. 9 – grifo do autor).
A destacar nessa primeira aparição descritiva de Michelina a aceitação franca do narrador de
que usa suas próprias palavras até o poético trecho “a simetria perfeita de sua beleza” para,
logo em seguida, sem qualquer vacilação, a partir da introdução do “disse-lhe um admirador
francês”, dar, ou fingir dar vez, à suposta reprodução da voz do galanteador estrangeiro, como
quem dissesse estar apenas repetindo a “voz”, as palavras dum outro.
No entanto, um pouco mais adiante e o narrador deixa uma das marcas a perpassar
todo o seu modo de narrar este romance em contos. A repetição de termos nas partes
descritivas aparece, pois, como uma marca estilística por meio da qual há a proposição de
melhor fixação das personagens na imaginação (e ainda não no imaginário, e mais bem me
explicarei nos tópicos seguintes) do leitor. Assim, tem-se que, como o seu próprio nome
sugere, e como através da repetição faz questão também de enfatizar o narrador, Michelina...
“Era una mujer joven de gustos sofisticados porque así la educaron, así la heredaron, así la
refinaron. Pertenecía a una ‘vieja familia’, pero cien años antes, su educación no habría sido
demasiado diferente” (FUENTES, [1995] 2007, p. 9 – grifo do autor). Pouco mais à frente e o
mesmo narrador reforça para o leitor a imagem de Michelina, acrescentando à descrição
anterior o feito de que ela “era una mujer que llenaba el espacio, dondequiera que estuviera.
Coincidía con sus lugares, los hacía más bellos. Un coro de chiflidos machos la recibía en los
lugares públicos” (FUENTES, [1995] 2007, p. 11).
Porém, as nuances poéticas desse descrever Michelina se tornam ainda mais agudas se
observamos este longo, entretanto, necessário fragmento o qual aguça ainda mais a visão
sobre a personagem:
Michelina Laborde e Ycasa: la capitalina. Ustedes la conocen de tanto aparecer en
las páginas a colores de los periódicos. Un rostro clásico de criolla, piel blanca pero
con sombra mediterránea, oliva y azúcar refinada, simetrías perfectas de los ojos
largos, negros, protegidos por párpados de nube y una ligerísima borrasca de las
ojeras; simetría de la nariz recta, inmóvil, y vibrante sólo en las aletas inquietas e
inquietantes, como si un vampiro tratase de escapar de la noche encerrada dentro de
ese cuerpo luminoso. (Ibid., p. 13-4)
129
E o narrador prossegue no desenho da imagem poeticamente metaforizada de
Michelina:
También los pómulos, en apariencia frágiles como una cáscara de codorniz detrás de
la piel, hacia la calavera perfecta. Y por último, la luenga cabellera negra de
Michelina, flotante, lustrosa, olorosa a jabón más que a laca, era, fatalmente, el
anuncio estremecedor de sus demás pilosidades ocultas. Todo lo dividía, cada vez, la
barba partida, la honda comilla del mentón, la separación de la piel… (FUENTES,
[1995] 2007, p. 13-4).
Aqui é enfim que Michelina Laborde se nos é revelada como a capitalina, epíteto
emprestado também ao título do capítulo que a estampa, “La capitalina”, o conto primeiro do
romance. É essa personagem membro de uma tradicional família da Cidade do México,
capital do país. Dessa forma, como a Capitolina de Machado tem seu nome remetido ao
esmero capitular de seu autor, a Capitalina de Fuentes (e a atenção descritiva dedicada aos
olhos, ao olhar da personagem demonstra ser outra interessante associação entre ambas) faz
clara e óbvia remissão ao local de onde vem, uma capital. Contudo, obliquamente faz
remissão também ao capital enquanto sinônimo de obtenção de poder, enquanto sinônimo de
posses e dinheiro. Sucede que sua família já não tem o mesmo prestígio e tampouco o mesmo
poder do passado. É desse modo que, em uma hábil relativização narrativa entre a capital e as
cidades mexicanas do norte incrustadas em meio a uma vasta região de deserto, Michelina
termina por ser prometida em casamento ao filho do rico, vivido, ex-deputado federal e, no
presente do enredo, um rico e influente empresário, don Leonardo Barroso, o don Leonardo
do fim da citação, o mais bem sucedido, mesmo que por vias de ética duvidosas, membro da
família através da qual gira boa parte do enredo da trama fronteiriça orquestrada por Fuentes.
O mais interessante, porém, é que, logo após a citação sobre a qual versa o parágrafo
anterior, logo em seguida a toda essa extensa e até certo ponto requintada descrição, onde o
apuro no uso dos adjetivos se confunde com a mesma habilidade já demonstrada
anteriormente, o mesmo narrador que se mostrou hábil com os artifícios de contar surpreende
(num caso próprio de literariedade) ao interpor, imediatamente abaixo das reticências com que
encerra o trecho acima citado, a informação de que “Todo esto lo pensó don Leonardo cuando
la vio ya crecidita y se dijo en seguida: – La quiero para mi hijo” (Ibid., p. 14). Ou seja, uma
vez mais o narrador se utiliza do artifício de dizer-se mero reprodutor do discurso alheio,
embora os pensamentos, as palavras que ele diz pertencerem e apenas repetir de outrem, de
outras vozes narrativas por ele convocadas (ou que ele finge convocar); embora tais palavras,
tal cuidado, apuro e desenvoltura no uso das escolhas lexicais que se faz desfilar se
130
confundam com a mesma qualidade demonstrada nas frases assumidamente dele, narrador,
usadas em descrições, ou em passagens das descrições anteriores.
Entra-se assim em uma terceira linha de correspondências, na qual coincidem o
narrador (incluindo-se aqui as vozes supostamente por ele recuperadas) e o autor, na mesma
fluência poética, de sedutora prosa poética que deixa transparecer a grande fluência verbal do
próprio escritor Carlos Fuentes. Não se trata aqui da mera e comum, por vezes até aceitável e
compreensível (outras nem tanto, porque ingênua), dificuldade de dissociação leitora e
investigativa entre autor e narrador. Não. Na verdade, o “x” dessa observação está no verbo
usado linhas acima: “transparecer”. A obra em destaque está longe de aproximar-se
(minimamente que seja) de uma autoficção ou autobiografia. Mas, analisado o percurso
literário do autor e as linhas desde as quais buscou dar vez a suas reflexões intelectuais, a
narratividade adotada em seu La frontera de cristal permite, sim, aproximar o narrador que
ele utiliza como fruto de uma espécie de “autobibliografia”, ou talvez melhor ficasse dizer,
como fruto de um exercício de “autobibliografia”, uma consulta, revisão e devido tratamento
literário da bibliografia (em especial a ensaística) que o próprio autor compôs durante anos,
através de suas publicações.
Desse modo, ao recorrer a essa autobibliografia, ao dar vazão a este exercício, Fuentes
deixa transparecer em seu narrador seu próprio verbo autoral. Nela, na figura de seu narrador,
deixa que se manifeste (e “manifestar-se” é também sinônimo para “transparecer”) sua
fluência sedutora, seu dom, sua sensibilidade pessoal para a palavra, para o trato da e com a
palavra, a língua, as línguas, suas variáveis, suas vertentes, seus diferentes registros e
variantes, através dos quais, dada sua capacidade de absorção e transformação de sua vasta
genealogia literária e investigativa, passeiam com técnica, habilidade e domínio de normas e
burlas ele e seu narrador. E é justamente tal sagacidade, tamanha astúcia que permitem
aproximar (sem que teoria seja) a técnica narrativa posta em prática em sua ficção sobre a
fronteira mexicano-estadunidense a uma narratividade coiote, porquanto nela se faça lembrar
e se veja mimetizada uma das ações principais do coiote: a busca do convencimento, pelo
fingimento, de que nele se pode ter toda confianza69 para atravessar a(s) fronteira(s) até o
sonho do eldorado na União Americana.
Serve ainda para atestar e ratificar os argumentos ora apresentados a voz enunciativa
adotada por Fuentes na condução de ambas as versões do seu El espejo enterrado. Na série
homônima feita para a televisão sobressai uma enunciativa de ordem mais narrativa, um
69
Expressão de uso bastante comum na zona fronteiriça entre El Paso e Ciudad Juárez.
131
caráter mais narrativo em que ganha importância, além, é claro, do valor das informações e
conclusões prestadas e passadas ao telespectador, toda uma “performática” fuentesiana de
gesticulações, de falar também com as mãos e com expressões faciais para atrapar, seduzir,
convencer e manter esse espectador junto a si. Enquanto isso, a versão para a série, publicada
em livro, recebe contornos mais argumentativos próprios do e para o ensaio escrito. Buscar,
pois, na lembrança e/ou na consulta este Fuentes narrador de seus argumentos em El espejo
enterrado é revê-lo transparecido, transluzido, manifestado no narrador que elege para a
ficção de seu La frontera de cristal.
Não é fortuito, portanto, que conste da sinopse de uma das primeiras edições da obra a
seguinte abertura:
En La frontera de cristal, Carlos Fuentes es el mismo narrador de sus mejores
libros: agresivo, vital, poderoso. Encuentra todos los ángulos posibles en una
historia, con una variante insospechada: la comicidad, que ahora lleva al lector a la
carcajada franca con algunas de sus páginas más memorables, no por ágiles menos
penetrantes y agudas (Alfaguarra, 1996).
Eis assim uma das chaves dessa exposição acerca da narrativa fuentesiana: Fuentes como
narrador de seus livros. Quer dizer, implica diretamente muitas vezes em suas narrativas
ficcionais toda a carga de conhecimento adquirido (em suas leituras, em suas vivências),
pensado, trabalhado, discutido, argumentado e difundido por suas obras de caráter mais
próximo do teórico-reflexivo. Por conseguinte, implica diretamente sobre determinados
narradores seus muito da linguagem adotada pelo próprio Fuentes em gêneros aos quais
normalmente se atribui uma pretensa maior objetividade (ainda que, nesse aspecto, o ensaio
seja um gênero por assim dizer mais “livre”, no que diz respeito ao tratamento de suas fontes
e à objetividade no produto-texto empregada; sendo, nesse sentido, menos fechado que um
artigo acadêmico, por exemplo).
Tornando o olhar para La frontera de cristal, vale ressaltar que a comicidade desse
Fuentes narrador, tocada na citação acima, já se vê de certa forma anunciada na primeira
descrição dedicada à personagem Michelina Laborde. Um retorno a essa citação e se pode
observar que, para o elogio a Michelina (“esos huesos perfectos de las beldades de México a
las que el tiempo parece no afectar”), com a sequência imediata em “Rostros perfectos para la
muerte, añadió el galán”; enfim, para o elogio contido em ambas as sentenças, o mesmo
narrador que atribui tais palavras a um galanteador francês logo tece um complemento digno
do que se convencionou chamar como típico de um humor inglês, comicidade repousada em
leve ironia. Assim, para “Rostros perfectos para la muerte, añadió el galán” esse narrador que
lembra o próprio Fuentes sentencia “y eso ya no le gustó a Michelina”. Esse humor
132
fuentesiano ganhará contornos mais ácidos e críticos em outros momentos da trama, podendo
mesmo conduzir o leitor ao riso aberto. Riso solto causado de igual maneira por um Fuentes
de humor mordaz e provocativo em muitas de suas conferências 70, em breves apartes
conclusivos que de fato levam seus espectadores à risada franca.
Convém, porém, aproximar-se um pouco mais da apresentação a uma das primeiras
edições do romance aqui em destaque, citada há pouco por mim. Dela extraio agora outros
predicados dedicados à observação de Fuentes como narrador de alguns de seus livros:
“agressivo, vital, poderoso”. Predicados também na adjetivação de suas páginas como
“penetrantes e agudas”. Ao tocar na possibilidade de leitura de Fuentes a partir da visão que
toca em sua ficção como fruto algumas vezes de uma espécie de exercício de autobibliografia,
de consulta ou remissão involuntária talvez (porque questionável) ou mesmo inconsciente (e
aqui, pelas vias abertas pela psicanálise, questionável é a intencionalidade do ato) a sua
própria bibliografia, à bibliografia que ele próprio produz; quer dizer, ao tocar nesse ponto,
tenho comparado objetos que fazem uso de linguagens distintas, ou, quando muito, objetos
cuja linguagem se apresenta em modalidades distintas. Tal seria o caso do livro e do vídeo,
onde a palavra se apresenta respectivamente, e diferentemente, em suas modalidades escrita e
oral, mais formalizada em uma e algo menos formal na outra, onde gestos, expressões e
provocações ganham vez, voz e retorno quase imediato de impressões, de resposta. No
tocante, entretanto, a esse narrar mais forte, agressivo, agudo e penetrante, certa passagem
dedicada de novo à personagem Michelina Laborde e Ycasa em La frontera de cristal vai
diretamente ao encontro de outra interessante abordagem levada a cabo na versão escrita de El
espejo enterrado; sendo, por isso, tais passagens, dignas de ocuparem lugar como fechamento
desse primeiro momento de aproximação que proponho entre Fuentes escritor e seu narrador
coiote em La frontera.
O Barroco foi um estilo artístico próprio da Europa, adjunto à Contrarreforma católica.
Enquanto o excessivo puritanismo proposto pela Reforma protestante parecia encontrar na
música, especialmente em Bach, uma espécie de compensação sensual, a rigidez da
Contrarreforma parece encontrar no Barroco e sua expressão na arquitetura e nas artes sua
concessão à sensualidade (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 239). O estilo barroco se
caracteriza pelo exagero e suntuoso no uso propositadamente excessivo de elementos
ornamentais. Segundo o próprio Carlos Fuentes, a arte do barroco representou “la excepción
expansiva y dinámica a un sistema religioso y político que quería verse a sí mismo unificado,
70
Remeto o leitor para o vídeo de sua conferência na Cátedra Alfonso Reyes, realizada em Monterrey, México,
no ano de 2001, cujo link está na bibliografia da presente tese.
133
inmóvil y eterno” (FUENTES, [1992] 2010, p. 239). Na América colonial, esse estilo ganha o
aporte de marca de registro e expressividade dos vencidos. Através dele artistas negros,
mulatos, pardos e indígenas inserem suas mostras de pertencimento, dando expressão a sua
voz e suas origens, talhados, mesclados à ordem política e religiosa do colonizador,
sincretizando sua dor e o sentimento de perda, sua submissão e o sofrimento, buscando um
novo sentido de orientação, sua dúvida no presente em que pensar sobre o futuro. O corpo e o
movimento aqui ganham vez e, mais até mesmo do que em Europa, entre a rigidez e a
resistência ao mesmo sistema que lhe permite existir, o sensual se debate, dilacerando corpo,
mente e alma de seus agentes, mergulhados em culpa, essa bandeira repressora própria dos
dogmas que consigo trouxe o catolicismo da Contrarreforma.
O barroco está presente no Fuentes de La frontera de cristal de modo bastante
particular no primeiro capítulo do romance, o conto “La capitalina”, sobre o qual venho
debruçando as principais atenções do presente tópico. Ali, em “La capitalina”, uma primeira
referência a esse estilo é feita com relação a uma correspondência de comportamento. É
quando igualmente começam aproximações a um grande nome da literatura barroca mexicana
Michelina volvió a pensar en la moda de ayer, en la crinolina que disimulaba el
cuerpo y el velo que escondía el rostro (…) Las luces antiguas eran bajas. La vela y
el velo… había demasiadas monjas en su familia y pocas cosas exaltaban la
imaginación de Michelina más que la vocación del encierro voluntario y, una vez
dentro, amparada, la liberación de los poderes de la imaginación; a quién querer, a
quién desear, a quién rezarle, de qué cosas confesarse… A los doce años, quería
encerrarse en algún viejo convento colonial, rezar mucho, azotarse, darse baños de
agua fría y rezar más (FUENTES, [1995] 2007, p. 15).
Um dos ensaios que compõem a edição escrita de El espejo enterrado, publicado a
primeira vez em 1992, portanto, anterior ao La frontera é intitulado de “El barroco del Nuevo
Mundo”. Ali, muito desse comportamento de gozo e de culpa que o narrador nos diz
“desejado”, sonhado por Michelina está também descrito nas linhas ensaísticas a este estilo
dedicado por Fuentes. E, mais ainda, tal linha de comportamento desejado pela capitalina do
romance acompanha o que o próprio Fuentes nos conta em “Mi alma está dividida”, segmento
incluído no ensaio acima citado, sobre parte da história de Sor Juana Inés de la Cruz, quem
para o autor foi “el más grande poeta de la América colonial” (FUENTES, [1992] 2010, p.
251). Para rememorar parte da influência já mencionada de outros dois grandes intelectuais
mexicanos no pensamento fuentesiano uma ida à obra Sor Juana Inés de la Cruz o las
trampas de la fe, de Octavio Paz (1982) serve para dar conta da ação de ensaio sobre ensaio
incidindo, eclodindo na figura “oculta” do narrador de Fuentes, ou do narrador Fuentes, em
La frontera de cristal.
134
Esta ambientação barroca, ou neobarroca, não se restringe, contudo, ao universo da
imaginação e do pensamento de Michelina levantados pelo narrador do romance. A oposição
entre a vida reclusa do rapaz com quem termina por ver-se obrigada a casar e a educação
viajada e capitalina da moça vai opor, ainda, todo um jogo entre sombra e luz, algo que
também remete a artifícios usados na arte barroca. No entanto, tal ambientação vai além: ela
segue também nas linhas arquitetônicas da poderosa mansão de don Leonardo Barroso, para
onde viaja a capitalina a fim de que conhecesse e desposasse o excêntrico filho do empresário,
Marianito Barroso. Ali, além do exagero das formas na descrição das mansões do lugar – um
verdadeiro “conjunto de mansiones amuralladas, mitad fortalezas, mitad mausoleos”
(FUENTES, [1995] 2007, p. 15-6) – chamam a atenção o descrever esse mesmo conjunto de
construções portentosas a partir do encerramento, de um abrir e fechar de grades que mais
lembra o claustro de um convento. Uma vez mais, observe-se a repetição como artifício
narrativo para a formação de uma ideia sobre o local, para a fixação da imagem que ultrapassa
seu sentido (no) presente: “Ni una teja, ni un adobe, sólo mármol, cemento, piedra, yeso y
más rejas, rejas detrás de las rejas, dentro de las rejas, hacia las rejas, un laberinto enrejado”
(Ibid., p. 16).
Porém, as correspondências entre o ensaio de Fuentes (e as consequentes leituras e
releituras que traz dos clássicos de sua genealogia literária) e a voz de seu narrador coiote se
tornam ainda mais evidentes se avançamos um pouco mais em um drama que dilacera a
capitalina de seu romance, sua Sor Michelina. Ocorre que a capitalina, ao ser prometida, se vê
dividida entre a obrigação de unir-se ao filho que será seu marido e a imediata paixão pelo
pai, que será seu amante. É quando, dilacerada, dividida, então, a alma dessa jovem, ela
adormece vestida de noiva, com uma roupa antiga que atravessou gerações na família, e tem
um sonho de ambientação barroca similar à do real objetivo contado por Fuentes no capítulo
“El barroco del Nuevo Mundo” do seu El espejo enterrado, no apartado “Mi alma está
dividida” (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 251-2-3), acerca de Sor Juana. Em La frontera, é
mesmo com tal ambientação que se assemelha o sonho de Michelina, que
Se soñó en un convento, paseándose entre patios y arcadas, capillas y corredores,
mientras las demás monjas, acorraladas, se asomaban como animales entre las
rejillas de sus celdas, le gritaban obscenidades porque se iba a casar, porque prefería
el amor de un hombre a los esponsales con Cristo, la injuriaban por faltar a su voto,
por salirse de su orden, de su clase. (FUENTES, [1995] 2007, p. 26-7)
Mas, o sonho da capitalina avança, estando justamente nesse avanço o encontro
maior entre um Fuentes ensaísta e seu narrador provocador, criador de trampas pelas quais
135
quer, como um coiote, atrair, enredar e convencer o leitor de que é confiável em La frontera
de cristal. Assim, tornando ao avanço do sonho da moça na Cidade do México:
Entonces Michelina trataba de huir de su sueño, cuyo espacio era idéntico al del
convento, pero todas las monjas, congregadas frente al altar, le impedían el paso; las
criadas negras les arrancaban los hábitos a las hermanas, las desnudaban hasta las
cinturas y las monjas pedían a gritos los azotes para suprimir el diablo de la carne y
darle el ejemplo a sor Michelina; otras menstruaban impúdicamente sobre las losas y
luego lamían su propia sangre y hacían cruces con ella sobre la piedra helada; otras
más se acostaban al lado de los Cristos yacentes, llagados, heridos, espinados
(FUENTES, [1995] 2007, p. 27).
Há que se ressaltar aqui que a sinonímia forçada, repetida na narração impressa ao
romance, é e não é um exercício de estilo. Há a marca de estilo de Fuentes, uma marca autoral
que talvez não devesse existir nesse exercício de contar. Mas tal artifício literário não é mero
estilo, pois tem sua intencionalidade, reitero, na busca de fixação de imagens que o autor
entende como importantes de serem passadas, transmitidas à mente do imaginante, do leitor.
Para tanto, reforça esse intento o uso das imagens fortes, provocadoras, na ordem mesma do
abjeto. Eis aí o emprego literário de estranhamento, de tirar o leitor de seu lugar comum, num
provocativo emprego de literariedades – estando outra delas nesse autor coiote que simula
estar num lugar, quando está em outro, trazendo para o presente ambientações de um passado
cujo conhecimento perpassa pela erudição talvez não dele, narrador; mas, antes, com efeito,
de seu autor, seu criador, aquele que foi buscar nas portas autorais deixadas abertas pelo
ensaio parte das situações que exprime, das palavras, frases, sentenças que usa e traslada para
sua ficção posterior. Penso corroborem meus argumentos a evidência de semelhança da
citação anterior para com as linhas a seguir, do apartado “La ciudad barroca”, ainda do
capítulo dedicado ao barroco no Novo Mundo em El espejo enterrado (1992):
En una época dominada por la triple tensión del sexo prohibido, el ideal de esposar a
Cristo y el ideal de la maternidad virginal, muchas monjas mexicanas, horrorizadas
ante sus propios cuerpos, se vendaron los ojos, comunicando así su deseo de ser
ciegas y sordas; lamieron el piso de sus celdas hasta formar una cruz con saliva;
fueron azotadas por sus propias criadas y se embarraron con la sangre de sus propias
menstruaciones. (FUENTES, [1992] 2010, p. 262)
Há, pois, que se ressaltar desde um aproveitamento da situação trazida à baila no
ensaio até mesmo o encontro de palavras e frases descritas também em ambas as citações do
romance que aqui antecederam a citação ensaística. Haveria por fim então que se indagar o
destino do tema maior incutido no título do romance: onde estará a fronteira em todo esse
exercício de remissão barroca, de translação do ensaio ao romance? A verdade é que a
fronteira faz-se, sim, presente nesse primeiro capítulo da obra. Apresentada já no início pelo
136
epíteto metafórico que dá título ao conjunto romanesco de contos, ela é cruzada primeiro por
Marianito e Michelina e, depois, mais ao fim do conto, após o casamento entre ambos, pela
jovem e o pai do rapaz, sempre com a ideia chave da metáfora do cristal, seu espelhismo e
fragilidade, algo sobre o que me debruçarei com maior detenção no próximo capítulo desta
tese.
No que toca ao sonho final de Michelina é interessante notar que ele se passa com a
jovem estando ainda na Cidade do México (centro) às vésperas do casamento que termina por
acontecer em Campazas (norte). Sucede ainda que em determinado momento o sonho da
capitalina vai unir-se ao do jovem solitário do deserto, estratégia representativa uma vez mais
da oposição e, inclusive, miscelânea entre luz e sombra, apontando distâncias denotativas da
existência de fronteiras culturais dentro do próprio território mexicano. Decorrem daí
equações a revelar o levantamento, em imaginário, de uma dicotomia fronteiriça (ainda no
âmbito cultural) entre o centro e o norte mexicanos, entre cidade e deserto. A ironia
questionadora no enredo está no fato de que, a tradição do centro (Michelina) vai buscar no
desértico norte o poder e a riqueza que já lhe faltam a ele, centro, no casamento da jovem
capitalina com o soturno e solitário Marianito, que não suporta as luzes da noite do lado
estadunidense dessa terceira fronteira do enredo. Luzes com as quais essa dama da noite se vê
afeita, principalmente no trânsito livre que lhe permitirá desfrutar seu amante, o empresário
nortenho de sucesso, o self made man mexicano Leonardo Barroso, pai de seu esposo.
De volta à questão do narrador, a narratividade coiote adotada por Carlos Fuentes em
seu La frontera de cristal traz de empréstimo, como demonstrei, nuances poéticas e mais
duras, presentes também na prosa ensaística do autor. As nuances aproximativas que se
vinculam ao tom de comicidade caro a Fuentes conforme o observado em palestras, ensaios e,
como defendo aqui, que recaem por empréstimo no narrador que elege para o romance em
epígrafe; tais nuanças retornam em caráter menos esquemático mais ao fim do presente
tópico. Antes, com vistas a reforçar a evidência das aproximações ora destacadas, trago outro
fragmento em que um tom mais duro, mais agudo de narrar em La frontera, encontra-se com
situações descritas em El espejo enterrado.
Em seu El espejo enterrado, das páginas que dedica ao tema que chama de terceira
hispanidade, sua atenção dada à marca de hispanidade dos e nos Estados Unidos, chama a
atenção o questionamento levantado por Fuentes a partir da informação que presta ao contar
um acontecimento de caráter linguístico e de choque de culturas bastante emblemático e
significativo. Essa passagem é trazida ao leitor da seguinte maneira:
137
¿Puede un chicano ser artista en Los Ángeles, por ejemplo, si no mantiene la
memoria de Martín Ramírez, nacido en 1885, quien fue un trabajador ferrocarrilero
inmigrante que llegó de México, y, en un hecho de inmensa fuerza simbólica, perdió
el habla y fue por ello condenado a vivir tres décadas en un manicomio de California
hasta su muerte en 1960? Pero Martín no estaba loco. Simplemente, no podía hablar.
De manera que en la cárcel se convirtió en un artista y durante treinta años pintó su
propio silencio. (FUENTES, [1992] 2010, p. 447)
Esse silêncio pintado: parece ser tamanha de fato sua força simbólica a agir sobre as
instâncias do próprio Carlos Fuentes, que tal aspecto de não ditos é por ele retomado,
merecendo desta feita uma representação ficcional também com um caráter, com uma força
bastante simbólica, em La frontera de cristal. De volta a esse romance, a narratividade coiote
imprimida por Fuentes, ao mesmo passo que vai e vem levando consigo o leitor aos dois lados
da fronteira ao longo do desenrolar da trama, no último capítulo da obra, atrai, fazendo da
representação da fronteira mexicano-estadunidense uma espécie de protagonista e ímã que,
em tom de chamamento, “convoca” leitor e personagens para mais próximo de suas linhas
divisórias. É assim que um texto-rio71, um texto em cursivas se entremete nas “sub-histórias”
que fragmentam em outras nove partes o último conto, chamado “Río Grande, río Bravo”, no
todo do enredo, ao invocar de novo personagens que perpassaram a trama aqui e ali,
parecendo, simulando estarem isolados em suas aparições anteriores.
Esse texto-rio vai, pois, a episódios da história do México, atendo-se, principalmente,
a momentos da definição de seu território, onde se aproxima novamente, ele, texto-rio
artifício literário outro de uma narratividade coiote, dos ensaios de Fuentes em El espejo
enterrado. Mas, como informei, retorna também a personagens chave para o imagético da
trama, tal sendo o caso de Marina, do quinto conto-capítulo “Malintzin de las maquilas”. Essa
personagem é clara remissão à figura histórica (e muitas vezes deturpada) da indígena
Malinche, também chamada Malintzin, que teria sido ofertada como escrava ao
“conquistador” Hernán Cortés. Fruto de uma visão intelectual questionável que a coloca entre
traidora indígena e criadora de fato do povo mexicano72, doña Marina, como passaram a
chamá-la os espanhóis da “Conquista”, era, segundo o próprio Fuentes ([1992] 2010, p. 133),
“ ‘mi lengua’, pues Cortés la hizo su intérprete y amante”.
Fato é que esse papel de intérprete destacado por Carlos Fuentes em El espejo
enterrado termina por incidir diretamente na personagem Marina de las maquilas, quem, na
71
Termo cunhado pela Professora Maria Luiza Scher Pereira, em seu artigo “Ficção e identidade em Carlos
Fuentes: La frontera de cristal” (1997, p. 105).
72
Ao ter com Cortés o filho que teria sido o primeiro nascido do choque entre o europeu que submete à força de
suas armas e o índio que ainda não as conhecia.
138
ficção de La frontera de cristal, vê-se encarregada por Dinorah73, trazida pelo texto-rio, de
cruzar a ponte fronteiriça que separa Ciudad Juárez, Chihuahua, de El Paso, Texas,
conduzindo
[u]na anciana muy pequeña (…) ilegible bajo el palimpsesto de las arrugas infinitas
que cruzan su cara como el mapa de un país para siempre perdido, se la encargó la
Dinorah, lleva a mi abuelita del otro lado del puente, Marina, entrégasela en el otro
lado a mi tío Ricardo, él no quiere entrar otra vez a México, ya no sabe hablar
español, le da pena, le da miedo también, que luego no lo dejen entrar de regreso,
lleva a mi abuelita al otro lado del río grande, río bravo, para que mi tío se la lleve
de vuelta a Chicago, ella sólo vino a consolarme por la muerte del niño, ella sola no
se sabe valer, y no sólo porque tiene casi cien años, sino porque lleva tanto tiempo
viviendo como mexicana en Chicago que desde hace tiempo se le olvidó el español
pero nunca aprendió el inglés, de modo que no puede comunicarse con nadie
(FUENTES, 2007, p. 278 – grifo do texto em itálico).
E, ato contínuo, completa a abordagem fuentesiana sobre a questão de trauma nos não
ditos, agora tripartida na projeção ficcional do caso relatado de Martín Ramírez (em El espejo
enterrado) para as figuras do tio e da avó da personagem Dinorah, o adendo de que essa
avozinha não tinha mais como comunicar-se com ninguém,
[s]alvo con el tiempo, salvo con la noche, salvo con el olvido, salvo con los perros
ixcuintles y las guacamayas, salvo con las papayas que toca en el mercado y los
coyotes que la visitan cada amanecer, salvo con los sueños que no puede platicarle
a nadie, salvo con la inmensa reserva de lo no dicho hoy para que pueda decirse
mañana (Ibid. – grifo do texto em itálico).
Rememorando a afirmação do texto de apresentação de uma das primeiras edições
do romance ora estudado, a qual diz que “em La Frontera de cristal Carlos Fuentes é o
mesmo narrador de seus melhores livros” (tradução minha), as comparações feitas até aqui
visaram demonstrar a constatação de que, ao fim e ao cabo, Fuentes termina por projetar no
narrador de sua ficção sobre a fronteira mexicano-estadunidense traços compositivos de seu
próprio discurso, principalmente os que nele se sobressaem (os quais procurei destacar no
desenvolvimento deste tópico) enquanto ensaísta, orador e palestrante 74. O ensaio é um
gênero literário mais marcadamente autoral, ou seja, mais aberto a marcas de autoria, sendo
por isso menos impessoal que outros gêneros de escrita científica e de maior rigor acadêmico.
Tal impessoalidade dele, Fuentes, no ensaio, vê-se manifestada, deixa-se transparecer na
figura do narrador que elege para contar a ficção de La frontera de cristal.
73
Amiga de Marina e mãe solteira que havia perdido um filho enforcado na própria corda em que a mãe lhe
deixava preso para ir trabalhar nas montadoras do lado juarense (México) da fronteira com El Paso (EUA).
74
Sua produção intelectual não se limita a esses gêneros, avançando ainda sobre o teatro, a composição de
roteiros para o cinema e de artigos acadêmicos e para jornais e revistas de expressiva notoriedade; além da
concessão de inúmeras entrevistas, em muitas das quais deixou transparecer a mesma sedutora fluência verbal, a
mesma habilidade para com o uso das palavras e desfile de seus argumentos que demonstra no material
escolhido como recorte comparativo para a composição do presente tópico.
139
Assim, pode-se dizer que Fuentes não é o narrador de La frontera por conhecimento
de causa. Ele é o narrador por conhecimento da causa (do tema que ficcionaliza e, ato
contínuo, da causa chicana), ancorado em e respaldado pela abordagem da temática de seu
romance já em uma mostra de ensaios anterior; precursora, portanto, do trato ficcional de sua
posterior reunião de contos acerca das relações de alteridade que fervilham do e no entorno
fronteiriço fraturado, compartido, e ainda “disputado” pelos Estados Unidos Mexicanos e
pelos Estados Unidos da América.
Com respeito à narratividade coiote, enfoque da argumentação por mim levantada
nesse tópico, não pretendo com o uso do termo que ele dê conta de ou mesmo venha a ser
considerado como um conceito ou mesmo uma teoria que abranja mostras literárias que
toquem no mesmo tema levantado por Fuentes em sua ficção. Salvo o caso de leituras
vindouras que porventura identifiquem a mesma possibilidade de interpretação em outras
obras com temática semelhante, a narratividade coiote se apresenta aqui como uma associação
bastante cabível para as interposições verificadas de um Fuentes ensaísta a um “Fuentes
narrador” e, por conseguinte, para as posições falsamente veladas, assumidas por esse mesmo
narrador em La frontera de cristal. A esse respeito, um retorno ao artigo “El baile del Señor
del Monte”, já citado por mim na presente tese, traz-nos de volta o que contou o antropólogo
mexicano Gonzalo Camacho Díaz, quem nas andanças de suas investigações era
frequentemente tido como um estranho, um forasteiro, sendo, por essa razão, visto como um
coiote, um simples coyotl (Cf. DÍAZ, 2011, p. 130 – grifo do autor, tradução minha).
Incidindo, pois, diretamente na figura do narrador do seu La frontera, Fuentes passa a
ser também a própria representação desse estranho, desse forasteiro, no melhor sentido
existente desde a definição sartriana para o intelectual (Cf. SARTRE, 1972, p. 9), esse
intrometido que se imiscui a tratar de assuntos que a princípio não lhe dizem respeito. Assim
é que Fuentes, dispondo de meios, dispositivos e artifícios literários que toda sua bagagem
intelectual lhe permite usar, insere seu narrador coiote à categoria do narrador não confiável,
nada confiável. Parece ilustrar bem tal situação, a irônica passagem que seu narrador atribui a
um pensamento da personagem Dionisio “Baco” Rangel, um chef de cozinha mexicano de
muito sucesso nos Estados Unidos, no conto “El despojo”, terceiro capítulo de La frontera. A
Dionisio o narrador atribui a seguinte “reflexão”:
Había millones de trabajadores mexicanos en los Estados Unidos y treinta millones
de personas, en los Estados Unidos, hablaban español. ¿Cuántos mexicanos, en
cambio, hablaban correctamente el inglés? Dionisio sólo conocía a dos, Jorge
Castañeda y Carlos Fuentes, y por eso estos dos sujetos le parecían sospechosos.
(FUENTES, [1995] 2007, p. 65)
140
Com esse fragmento, o qual um Fuentes, aqui, nada confiável carrega de ironia,
contemplo, por ora, os vieses pelos quais se estreita a narratividade coiote a respeito da qual
me propus falar como caminhos, ou descaminhos, que o narrador procura criar e deles se
utiliza rumo a dar vez à apresentação de imaginários. Foram estes vieses abordados: uma
escrita que se encaminha para o entendimento de que seja o uso de uma prosa mais poética;
uma linha narrativa mais dura, de escrita mais forte, às vezes beirando o abjeto, crua e
também até mesmo aparentemente de tom mais pessimista, desalentadora; e a comicidade
narradora, por enquanto, mais pelas vias da ironia.
Não me detenho tanto aqui no espaço do cômico porque muito das passagens de
humor questionador do livro está presente justo no capítulo “El despojo”, de onde obtive e
utilizei a última citação desse tópico. A razão do momentâneo não aprofundamento maior
desse viés cômico se deve ao fato de que o capítulo mencionado é, ademais, importante na
análise que virá à tona logo a seguir, em tópico dedicado a levantar o que chamo de metáfora
ampla. Estando dessa maneira de volta ao conto de Dionisio “Baco” Rangel, decerto
retornarão, embora não venham mais a ser o foco da abordagem seguinte, questões que
envolvam a comicidade que imprime a seu narrar esse narrador coiote de Carlos Fuentes no
romance La frontera de cristal.
3.2 Metáfora ampla, o recurso de imagem na obra
No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2004, versão eletrônica) a palavra
metáfora surge como sétima opção de sinônimo para o verbete imagem. Não é muito comum,
entretanto, que, em outros dicionários, fuja dessa espécie de “ranqueamento” dirigido a dar
conta de todo o amálgama que envolve o termo. Está, assim dessa forma, vinculada à
categoria de imagem verbal, embora, como defendo, nasça primeiro no pensamento para,
depois, ser verbalizada no campo do linguístico. E do literário.
Em La frontera de cristal, a metáfora, também um tropo linguístico, aparece como um
recurso de imagem literária, um efeito de estranhamento, de literariedade na obra, que pode,
pela mão de sua narratividade coiote já evidenciada, conduzir o leitor a tomar contato com
imaginários prévios, ou pelo romance levantados, a respeito das relações de alteridade ali
trabalhadas. Desvendar de que modo esse processo ocorre importa, sobremaneira, na
compreensão de como este romance em contos de Carlos Fuentes contribui para o imaginário
supracitado.
141
O principal princípio da metáfora em La frontera é o mesmo que comum e
corretamente se atribui a este tropo: o da transferência de sentidos. Sucede que no romance de
Fuentes essa transferência é sinuosa, os caminhos pelos quais ela se dá são oblíquos, sendo
tênues as linhas que costumam separar as variações binárias de sentidos ao redor das quais
orbitam as mais diferentes teorias que recaem sobre a metáfora, sua formação e seu emprego.
Assim, o que pareceria receber a carga de subjetividade, de abstrato, de figurado, recebe em
Fuentes o valor da relativização e da dúvida, confundindo-se propositadamente com o
objetivo, o concreto e o literal. Essa confluência de valores ocorre pela fixação de uma ideia
específica a partir da estratégia narrativa de repetição e desenvolvimento de uma metáfora
base. Tal repetição visa à fixação da imagem que quer ser transmitida, quer dar-se a perceber.
Desse modo, é tal ato que pode encaminhar o leitor/receptor para a aceitação de imaginários
que podem, por fim, lhe parecerem mais reais (empiricamente falando) do que
verdadeiramente são; dependendo o final desse processo das instâncias de recepção desse
mesmo leitor, do tipo de leitor que se aventure pelas imagens da ficção de fronteira realizada
por Fuentes.
O passo a passo de formação da metáfora ampla em La frontera de cristal começa em
seu título, ele próprio uma metáfora preposicionada. Sua equação básica sugere uma pronta
assimilação da seguinte fórmula: Fronteira = Cristal = Frágil. Será essa noção de fragilidade
que perpassará a obra inteira; mas, a ela subjaz, ainda, quase ao lado desse primeiro plano,
uma proposição de espelhismo, do reflexo que quase iguala partes separadas e, além dele,
uma terceira ideia, menos elaborada, de um cristal que enquanto pedra preciosa é revelador de
uma miríade, de um mosaico despedaçado de imagens que desvelam um ambiente de relações
pluriculturais e pluri-identitárias. Essas duas últimas possibilidades de leitura da metáfora
principal da obra de fato não sobressaem de imediato do título do romance, como é o caso da
inferência mais que provável e possível da noção atinente ao caráter do frágil. Porém, pouco a
pouco, com o andar do texto podem também as duas noções subjacentes à primeira e principal
serem observadas.
Já no primeiro capítulo da obra, o conto “La capitalina”, a metáfora base é “plantada”,
dando início a todo um amplo processo de metaforização. Observe-se, por exemplo, o
pensamento atribuído pelo narrador à personagem Michelina Laborde, quando é avisada por
uma aeromoça de que o avião particular de seu padrinho (e futuro amante), Leonardo Barroso,
estava por pousar no aeroporto da nortenha cidade mexicana de Campazas:
Ella trató de distinguir una ciudad en medio del desierto, las montañas calvas y el
polvo inquieto. No vio nada. Su mirada le fue secuestrada por un espejismo: el río
142
lejano y más allá las cúpulas de oro, las torres de vidrio, los cruces de las carreteras
como grandes alamares de piedra… Pero eso era del otro lado de la frontera de
cristal. Acá abajo, la guía de turismo tenía razón: no había nada. (FUENTES, [1995]
2007, p. 10)
O trecho nos aproxima de constatações que vão se concretizando durante o seguimento
do texto. Aqui a noção primeira é a do espelhismo, que aproxima ao mesmo tempo do real e
da imaginação, trazendo uma terceira equivalência, a da relativização da distância entre
ambos, real e imagético, tal como pode ser visto também na introdução do próprio El espejo
enterrado (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 7-13), desde o qual o autor parece coletar parte das
ideias e informações que desenvolve na ficção de La frontera. Tal espelhismo
(simbolicamente também representado pelo “río lejano” que une e separa dois mundos) segue,
ainda, nas “torres de vidrio” do outro lado (o lado estadunidense), expressão denotativa, ela e
a sequência descritiva da qual faz parte, da predileção pela imagem através da linguagem
literária metafórica a ser adotada para narrar a obra, razão por que as descrições altamente
metaforizadas se repetirão.
A aproximação do cristal ao vidro, a representação que o aproxima de sua variedade
de quartzo vítreo, aqui, ainda no fragmento citado, apenas uma pista, será também outra
constante da metaforização posta em prática, eclodindo na representação máxima do sétimo
conto do romance, aquele que empresta seu título à obra75. Além disso, a primeira inclusão da
expressão fronteira de cristal traz consigo o artifício, o uso de claras oposições binárias (“allá”
x “acá”, tudo x nada, acima/desenvolvido x “abajo”/subdesenvolvido) as quais, ainda sem o
importante auxílio de outra figura de imagem, a metonímia, dão conta das primeiras
aproximações da obra à totalidade, à visão de um todo, mesmo que seja de uma determinada
situação, que sugerem os imaginários.
Pouco adiante, ainda no primeiro capítulo, e a alusão à fronteira por metáforas,
especialmente ao lado estadunidense, “o outro lado”, segue. Quando, ao fugirem de uma festa
só para mulheres dada por doña Lucila, esposa de don Leonardo, em sua mansão, Michelina e
seu poderoso padrinho tomam a estrada, ele, interessado em garantir que a afilhada se casasse
com seu filho, promete que “para ella sería todo el dinero, todo el poder, ahora sólo veía el
desierto encuerado, pero su vida podía ser como esa ciudad encantada del otro lado de la
frontera, torres de oro, palacios de cristal...” (FUENTES, [1995] 2007, p. 24).
Uma vez mais a oposição metafórica do lado mexicano – “el desierto encuerado” –
para com o lado estadunidense da fronteira, “esa ciudad encantada”, e suas “torres de oro,
75
Ainda que não traga em si uma síntese, um resumo do enredo, o conto “La frontera de cristal” reunirá a
resultante da fixação reptícia da fronteira de cristal enquanto ideia alusiva de fragilidade e espelhismo.
143
palacios de cristal”. A repetição de valores de gradação determinada para cada lado da
fronteira começa, assim, a implantar imaginários opositivos, tanto pelas vias da metaforização
na linguagem literária adotada quanto a partir da metáfora ampla que pouco a pouco começa a
se desenvolver, com o reforço, inclusive, da repetição do verbete “cristal”. É claro que há aqui
a possibilidade de leitura da imagem, ou das imagens passadas, sob outro contexto, o que
configuraria a ação e criação de uma alegoria. Nesse caso, a interpretação nos levaria a um
interessante jogo de remissão cronotópica, de troca cronotópica 76, onde a história toca por
remissão e contraposição alegórica o ouro e o epíteto de eldorado que um dia esteve do lado
mexicano da fronteira, sonho dourado que povoou tanto a mente do invasor espanhol quanto a
do wetback estadunidense que ilegalmente atravessou a fronteira para um Texas ainda
mexicano antes da independência que deflagraria a guerra de 1846 a 1848 com a União
Americana. Tal alegoria pode, inclusive, ser encontrada no texto-rio que atravessa todo o
conto final de La frontera, em novo encontro com a história da hispanidade norte-americana
sobre a qual também se debruça Fuentes em El espejo enterrado (Cf.: p. 444-5-6).
No entanto, há que se reparar a elaboração do pensamento, de argumentos, de
raciocínio para que se chegue à alegoria, há que se notar a necessidade de transposição a
novos contextos para que seja compreendida, apreendida, afora as perdas, a ruína e o luto que
de fato sugere toda essa interpretação dada ao pequeno trecho que deu vazão a todo este
aparte. A metáfora, entretanto, é mais direta e, mesmo no avanço inicial do enredo, começa a
se configurar e ganhar vez sobre a alegoria, pela insistência na repetição das imagens que
sugere. Não nego que ambas possam coexistir na leitura de um dado recorte literário, na
interpretação de um mesmo fragmento, o que pode até ser o caso desse trecho ora em
destaque. Porém, o imaginário se calca justo na repetição contínua das imagens e no imediato,
na transferência imediata de sentidos que é dada pelo uso da metáfora. Para que imaginário
seja não resistiria à elaboração da alegoria, razão pela qual necessita do simplismo imediato
da transferência de sentidos proposto pela metáfora como até aqui se apresenta nessa mostra
literária. É desse modo que ele, imaginário, pela imagem quase imediata da metáfora,
especialmente no tangente às especifidades literárias destacadas no romance em tela, forma-se
e se torna apreensível e passível de captável como imaginário ser pela mente imaginante.
76
Remeto o leitor à obra Questões de tempo e estética – a teoria do romance (BAKHTIN, 1998), que publica
um esquadrinhamento do autor russo a respeito de sua teorização sobre a categoria de cronotopo no romance.
Apesar do valor inestimável da obra de Bakhtin, suas observações não se veem aqui desenvolvidas em função do
recorte através do qual propus atenção voltada mais para a identificação da noção de literariedade tal como
empregada nos romances em epígrafe e em sua consequente relação para com o tratamento literário de imagem e
imaginários nas referidas obras.
144
A alegoria, pelo contrário, demanda uma elaboração que não colabora com a noção,
com a característica de todo compactado, de um todo fingido – todo, porém, com ares de real
–, que sugere o imaginário, um imaginário, na falsa impressão de todo que um imaginário
sugere. Enquanto o imaginário prefere o todo (ou o que ele finge ser um todo), daí sua relação
estrita com a metáfora e a metonímia, não só literária bem como discursiva de um modo mais
amplo; tornando ao anterior: enquanto o imaginário elege, prefere o todo – sendo, na verdade,
uma apreensão desse mesmo todo sobre o qual se insere –, a alegoria esmiúça a parte,
dificultando sua apreensão por imaginários.
Dados os argumentos anteriores, cabe, então, o retorno à metáfora da fronteira de
cristal, que, plantada, insistida, pouco a pouco desenvolvida, vai configurando-se em uma
ampla metáfora, fruto de um amplo processo, por ora ainda iniciando-se, de metaforização.
Ainda em “La capitalina”, esse processo tem prosseguimento quando da cerimônia do
casamento de Michelina Laborde com Marianito Barroso. Ali, nosso narrador coiote traz
pensamentos de doña Lucila para o evento, pensando menos em seu filho e entusiasmando-se
mais com a festa e com o poder que representava seu marido, quem estendia seu influxo e
autoridade por:
Tierras, aduanas, fraccionamientos, la riqueza y el poder que dan control de una
frontera ilusoria, de cristal, porosa, por donde circulan cada año millones de
personas, ideas, mercancías, todo (en voz baja, contrabando, estupefacientes, billetes
falsos…) ¿Quién no tenía que ver con, o dependía de, o aspiraba a servir a don
Leonardo Barroso, zar de la frontera norte? (FUENTES, [1995] 2007, p. 30)
Na citação acima, há o retorno, o reforço da metáfora do cristal para a fronteira, dessa
feita apoiado na sugestão de imagem, de sensação de porosidade, algo que escapa pelos dedos
feito a areia do deserto que separa ambos os lados da linha fronteiriça. No entanto, sobressai,
com o adendo de que se se refere à fronteira norte, o lado mexicano, a carga sobre uma
situação de pobreza de muitos, e de servidão e dependência de poucos a exploradores como
don Barroso. Ou seja, ao lado da metáfora chave há toda uma descrição de teor hiponímico,
quando a associação entre nomes própria da metonímia vai da substituição da parte pelo todo.
E é esse uso proximal entre metáfora e metonímia pela narrativa que aproxima essa mesma
narrativa da concepção ou coadunação de pré-conceitos, neste caso, bastante depreciativos, e
agora já em sequência na narrativa, próprios do corpo de um imaginário. Tal relação entre
ambos esses tropos do discurso, os quais às vezes também se confundem, dificultando a
diferenciação entre eles, será alvo inda maior de minha abordagem com respeito à correlação
dos recursos de imagem utilizados em La frontera e a formação e perpetuação de imaginários.
145
Entretanto, por agora, sigo chamando a atenção para essa primeira, e talvez principal,
metáfora do enredo.
Por certo a repetição da expressão “fronteira de cristal” também corresponde a um ato
de justificar, de explicar por esse meio o porquê ou os porquês do título dado ao romance.
Porém, é a meu ver mais que isso, como venho demonstrando, e quando se percebe na leitura
que tal insistência avança, metáfora ampla adentro do texto. E, no que se refere à metáfora
principal do enredo, ela prosseguirá em “La capitalina”, até o final desse primeiro conto.
Nessa passagem final, contudo, uma alusão à outra metáfora se destaca, revelando o uso de
uma imagem sobre outra imagem, compondo, ainda, com a imagem maior da metáfora chave,
agora já amplamente repetida, porquanto enfim metáfora ampla, a metáfora principal dentro
de todo o processo de metaforização impresso pela escrita literária no conto, a fim de dar
passagem ao imagético em que se ancora o narrado.
Quando o sonho barroco de “Sor” Michelina (desde o qual teci comentários no
segmento anterior sobre a narratividade coiote na obra), na Cidade do México, encontra pelas
palavras desse mesmo narrador coiote os sonhos de um agônico Marianito, em Campazas, a
narrativa nos leva a um segundo sonho onde o rapaz, em sua timidez, é feito metáfora de uma
lebre, “un cuadrúpedo salvaje de orejas largas y cola corta” (FUENTES, [1995] 2007, p. 28).
Desse animal, diz-se também na narrativa que
Sus patas son más largas que las del conejo. Corre muy rápido porque es muy
tímido.
No hurga como otros de su especie: anida, busca un espacio estable, tibio, respetado,
donde lo dejen estar.
Es mamífero. Nace de la leche, la desea de vuelta, quiere mamar en la oscuridad, ser
mamado, en un nido, sin sobresaltos, sin nadie que le observe gozar… (FUENTES,
[1995] 2007, p. 28)
A metaforização se dá, completa-se, então – segundo a narrativa que busca aqui, mais
que simples transferência, uma coincidência de sentidos –, na personalidade descrita de
Marianito, para quem
No había una sola mujer en el mundo que soportara su deseo. Mariano sólo quería
vivir (…), físicamente, donde siempre vivió en la voluntad y vivió siempre en el
espíritu. En una ranchería. (…) Solo, porque no había una sola mujer en el mundo
que eclipsara todo el espacio, salvo la recámara donde el espacio y la presencia
coincidían (FUENTES, [1995] 2007, p. 28)
Essa metaforização que traz como eixo a figura do quadrúpede lebre é um sonho que,
como visto, antecede o casamento do jovem com Michelina. E ele ainda pensa nela,
indagando-se se ela seria essa mulher a respeitar enfim sua solidão. Haja vista o desfecho do
capítulo, ela, sim, respeita seu desejo, quando, em passagem que marca o retorno da metáfora
principal do enredo, aqui já uma metáfora ampla, na tarde seguinte à manhã da cerimônia, a
146
capitalina parte (em um intento de surpresa, de provocação de estranhamento no enredo) com
o pai de Mariano, Leonardo Barroso, em um Lincoln conversível que
[e]sta vez encapotado, cruzó rápidamente el desierto vespertino, frío y silencioso,
llenándolo de rumor de llantas y motor, espantando a las liebres que salían saltando
lejos de la carretera recta, la línea ininterrumpida hasta la frontera, a romper el
ilusorio cristal de la separación, la membrana de vidrio entre México y Estados
Unidos y seguir corriendo por las supercarreteras del norte hasta la ciudad
encantada, la tentación del desierto, iluminada, brillante, llena de Neiman-Marcus y
Saks y Cartier y Marriots donde los esperaba a los novios la suite de lujo, con
champaña y canastas de frutas, salón, espacios closets, recámara con cama king size,
muchos espejos donde admirar a Michelina, un baño de mármoles color de rosa
donde bañarse con ella, enjabonarla, acariciarla, ruborizarla (FUENTES, [1995]
2007, p. 31-2).
Mais do que a surpresa prometida e posta em prática com a consequente revelação de
que um desses noivos (e aqui Fuentes joga de forma bastante perspicaz com a dubiedade da
palavra “noivos” em espanhol) é don Leonardo e não seu filho; quer dizer, para além dessa
tentativa de que se causara um estranhamento pela narrativa, está, primeiro, a alusão das
lebres afastadas pelo carro, a imagem sobre a imagem na metáfora anteriormente exposta,
como já expliquei. Porém, é ainda mais importante a busca de permanência, de fixação, do
enfim estabelecimento da metáfora principal em forma de metáfora ampla. Antes parte de
todo o processo de metaforização desde o qual se constrói o enredo nesse ainda principio do
romance, a metáfora do cristal para a fronteira ressurge, encerrando o primeiro capítulo,
reforçando a ideia de sentido de vidro para o cristal e, ainda, outra ideia, a da separação
(incutida em “el ilusorio cristal de la separación, la membrana de vidrio entre México y
Estados Unidos”), que será mais bem trabalhada no sétimo capítulo da obra, no conto que
empresta seu título a esse amarrado romanesco de Fuentes.
Antes de avançar, porém, para a sequência da metáfora do cristal para designar a
fronteira no sétimo conto da obra, cabe uma última observação sobre o desenrolar dessa
mesma metáfora, ainda no primeiro capítulo. Sucede que em “La capitalina” a metaforização
levada a cabo se apoia no desenvolvimento de uma escrita, ou melhor, de uma espécie de
ambientação barroca, deixando transparecer o barroco como alma desse conto, recuperada do
capítulo dedicado ao barroco do Novo Mundo em El espejo enterrado, recuperada pela linha
de comunicação que Fuentes deixa aberta ao estabelecer contato entre os gêneros ensaio,
conto e romance na sua ficção sobre a fronteira mexicano-estadunidense.
Parte desse modo de ambientar, de recuperar no presente um estilo artístico que muitas
vezes se pensa, e creio que, erroneamente, estar preso ao passado, parte do recuperar o
espírito do estilo pela ambientação barroca dada ao narrado, como visto em linhas anteriores,
volta-se inclusive para Campazas, para quando a narrativa descreve essa representação
147
reduzida a imaginário espacial que congregaria todas as características do norte mexicano.
Mesmo nesse caso, em que a representação do norte é carregada de tons depreciativos na
imagem que a descrição narrativa vai repetidamente reforçando, mesmo ali se nota a presença
e importância do barroco para as situações levantadas pelo conto. Serve para corroborar tal
argumentação o exemplo abaixo, onde chama mais atenção certo posicionamento do narrador
para o norte que craveja em Campazas do que propriamente a posição quase neutra que esse
mesmo narrador consegue destinar a Michelina, quando de sua chegada à cidade:
Viajada, guapa, sofisticada, la capitalina miró sin asombro los rasgos de la ciudad de
Campazas. Su plaza central polvorienta y una iglesia humilde pero orgullosa, de
paredes deshechas y portada erguida, labrada, proclamante: hasta aquí llegó el
barroco, hasta el límite del desierto. Hasta aquí nada más. Mendigos y perros
sueltos. Mercados mágicamente nutridos y bellos (FUENTES, [1995] 2007, p. 14 –
grifo meu).
Há também no capítulo, como se pôde verificar até aqui, uma exposição bastante
barroca de dicotomia entre o sensual e o sagrado, entre a entrega da alma e o proibido ao
corpo, entre busca de paz de espírito e a agonia de não sempre a encontrar; ao invés disso,
quando muito, é a culpa que se encontra. Através de ousadias narrativas, o narrador coiote
fuentesiano opõe e ao mesmo passo alia em uma mesma linha Deus e o Demônio, ambos em
maiúsculas (Ibid. Cf., p. 25). Assim, há então a busca por inserção de um sentimento barroco,
uma busca de incutir à narrativa o espírito do barroco, causando um efeito de sensações
próprias da expressividade do estilo artístico barroco.
Mas, tal efeito não é fortuito ou mera demonstração de conhecimento e de domínio de
uso de artifícios literários. Responde, antes, a uma estratégia narrativo-literária, cooperando
para a intenção dominante: o realce da imagem, que se dá pelas possibilidades de expressão
narrativa advindas da exploração do tropo metáfora, ela mesma um sinônimo para o
significante imagem. Por isso mesmo, a linguagem literária utilizada beira o barroco no
exagero necessário das repetições. A linguagem barroca nessas repetições visa a dar “carne”,
“alma” para os personagens, numa tentativa de dar forma e fixar suas imagens à mente do
leitor imaginante. Serve de ilustração, a meu ver, bastante aproximativa do anterior exposto, o
exemplo a seguir, que opõe pela primeira vez Michelina e Mariano, antes que os dois saíssem,
também por primeira vez, para dançar à noite do lado estadunidense da fronteira. Na
apresentação da capitalina ao herdeiro dos Barroso, o jovem, com o auxílio de um hábil uso
do discurso indireto livre, suscitando a voz de seu pai, é assim descrito:
Marianito, el heredero, que nunca viajaba, que salía muy poco, que ella no conocía,
que ya era tiempo de que lo conociera, un muchacho muy retirado, muy serio, muy
148
formal, muy lector, muy dado a refugiarse en el rancho a leer día y noche, ya era
tiempo de que saliera un poco, ya había cumplido los veintiún años, esa misma
noche la capitalina y el provinciano, la ahijada y el hijo, podrían irse a bailar del otro
lado de la frontera, en los Estados Unidos, a media hora de aquí, bailar, conocerse,
congeniar, cómo no, no faltaba más… (FUENTES, [1995] 2007, p. 16)
Contudo, se serve para de fato dar-lhe mais carne ao personagem, melhor constituirlhe, como no caso de Mariano, cuja personalidade triste é bem explorada e bastante trabalhada
pela narrativa, as repetições destinadas a Michelina terminam por constituir um tipo, um
personagem tipificado, quase transformado em figura, algo bem evidente na constituição do
apelido que lhe dá o narrador, “la capitalina”, epíteto que traz em si características que seriam
(pela enganosa impressão de todo que dão) próprias para moças ricas, ou viajadas e vividas,
da capital, para todas as moças da ou de uma sociedade capitalina, dando margem, assim, à
transformação da personagem em um tipo representativo, ou que sugere a representação, com
tendência a ser pejorativa, de uma totalidade.
Isto posto, explorada levemente essa caracterização (à qual darei mais ênfase no
próximo tópico) que aproxima o tratamento das imagens levantadas, sugeridas pela obra à
constituição de imaginários, e podemos, enfim, avançar para algo que tem a ver com as
dimensões da metáfora ampla. A primeira característica para que se entenda a metáfora
ampla, principalmente no tangente a sua existência a partir da leitura de La frontera de cristal,
é a de que ela faz parte de e entremetida está em um amplo processo literário imagético no
qual metaforizações várias são a preferência de transmissão desse mesmo teor, desse mesmo
caráter imagético da obra. Apesar disso, pode e deve haver uma metáfora chave, uma
metáfora âncora, metáfora principal que terá mais destaque, maior importância do que as
demais trabalhadas, sendo essa a escolhida para ser a mais bem desenvolvida, de fato, a
metáfora ampla do enredo, tornando-se, em uma obra que se apoie no imagético, a imagem
principal, o principal recurso de imagem da obra artística que a enverga, nela investindo.
Em La frontera de cristal, como os contos que dão forma ao romance não são
capitulitos, não entrando, pois, no rol classificatório, por exemplo, dos minicontos, a ampla
metaforização ali dada e a metáfora principal em seu seio desenvolvida ao longo de capítuloscontos que variam de dezenove a até quarenta e nove páginas na obra, dão margem a que se
possa falar, a partir mesmo dessa questão atrelada entre forma e quantidade, da existência de
metáforas amplas como resultado de todo o desenvolvimento das metáforas-chave plantadas.
Sim, outras metáforas amplas ganham vez na obra, estando, porém, “restritas”, por
assim dizer, aos contos determinados em que cada uma delas ocorre. Outros exemplos da
metáfora ampla ocorrendo em outros contos do romance ora trabalhado serão abordados,
149
porém, no desenvolver do próximo capítulo, onde interessará abordar, no que toca ao recorte
proposto, sua ligação estrita para com outro tropo de imagem, a metonímia. No tangente,
porém, à metáfora que transfere significados próprios do significante cristal para o
significante fronteira México-EUA, é preciso informar que as características dadas pelo
enredo como caras dessa mesma fronteira ganham contornos e dimensões imagéticas as mais
distintas em outros contos da obra. No entanto, é de plena compreensão que a metáfora
principal explícita no título do romance merecesse da parte de Fuentes um capítulo especial a
lhe proporcionar uma consequente e necessária, portanto, ampliação, amplificação ainda
maior. Ao sétimo conto, então! Ao “La frontera de cristal” e o fechamento da ampla metáfora
contida em seu título, plantada como pista já no primeiro capítulo da obra, tal qual demonstrei
até aqui no presente tópico.
É em “La frontera de cristal” que a imagem plantada no primeiro capítulo – a
associação do cristal contido na ideia da fronteira como membrana ilusória de vidro a separar
México e Estados Unidos (Cf. FUENTES, [1995] 2007, p. 31-2) – ganha força e status de
imagem principal do enredo, acoplada, ainda, à ideia, ao sentido principal de
FRAGILIDADE, conectada, por sua vez, ao frágil do que é ilusório e ao frágil que sugere o
pensar em uma membrana. Trabalha também com a força e o translúcido que pode revelar-se
de um cristal, como um espelho, mas é em sua fragilidade, na fragilidade de suas relações, na
fragilidade possível dos sujeitos expostos a relações fronteiriças que está mais bem (re)velada
a ideia que emerge da e se justapõe à imagem da metáfora no termo.
No conto, um encontro pouco provável é primeiramente suscitado, para logo depois
pouco a pouco ser preparado até, enfim, ser mostrado a partir da importação de trabalho
braçal mexicano para limpar as vitrines, as vidraças, para deixarem limpo, translúcido,
revelador o cristal das janelas de um arranha-céu estadunidense. É justamente neste trabalho
que se encontram, separados por uma fronteira de cristal, Lisandro Chávez, um bracero
mexicano, e uma executiva publicitária norte-americana. Esse encontro não se dá, entretanto,
sem que antes a narrativa explore as variantes metafóricas e mesmo literais dos sentidos dados
à fronteira.
O serviço de limpeza do qual se fala foi exportado, vendido pelo poderoso empresário
mexicano Leonardo Barroso para seus sócios estadunidenses. Todavia, antes Barroso teve de
costurar acordos para que seus argumentos se transformassem em negócios. Assim,
atravessando-a a leve ironia de seu narrador coiote, conta a narrativa que
En Washington y en México, el dinámico promotor y hombre de negocios explicó
que la principal exportación de México no eran productos agrícolas o industriales, ni
150
maquilas, ni siquiera capital para pagar la deuda externa (la deuda eterna), sino
trabajo. Exportábamos trabajo más que cemento o jitomates. Él tenía un plan para
evitar que el trabajo se convirtiera en un conflicto. Muy sencillo: evitar el paso por
la frontera. Evitar la ilegalidad. (FUENTES, [1995] 2007, p. 180)
Tocada aqui a questão da fronteira, ela é discutida entre o influente empresário
mexicano e o personagem Robert Reich, na narrativa, Secretário de Trabalho dos Estados
Unidos, que adverte ser a fronteira de fato e também um problema político, chamando a
atenção para a exploração republicana de um crescente ânimo que se voltava contra os
imigrantes. Mantendo, então, uma linha narrativa que aborda ficcionalmente o problema
empírico da fronteira México-EUA, o narrador de Fuentes traz uma sentença de don Leonardo
Barroso, que trabalha uma interessante adjetivação entre o literal e o abstrato para essa mesma
fronteira: “No se puede militarizar la frontera (...). Es demasiado larga, desértica, porosa. No
pueden ustedes ser laxos cuando necesitan a los trabajadores y duros cuando no los necesitan”
(Ibid.).
É interessante notar como nas predicações dadas à fronteira há uma gradação onde, na
verdade, o literal perde força, emprestando-a para o aparentemente abstrato da insistência na
porosidade, inclusive de relações, da linha fronteiriça mexicano-estadunidense. Esse efeito,
lógico, serve à imagem ampliada, esticada por reforço, do cristal para significação associativa
também para a fronteira, dada pela amplificação da ideia de fragilidade proposta pela e
incutida na metáfora principal do enredo. Diante desse logro, mesmo um aparente
posicionamento de Fuentes, levado à fala de seu personagem, perde importância, sendo mais
relevante sua proposição da metáfora em destaque como praticamente um termo que por
analogia, e dependendo do grau de recepção e divulgação de sua obra poderia até mesmo vir a
tornar-se, tomado ser como um conceito, mais além da figura de imagem que é.
No romance, entretanto, a amplificação ainda maior da metáfora chave que segue seu
desenvolvimento na sua insistência de repetição passa, de volta ao conto “La frontera de
cristal”, pela resposta do secretário Reich a Leonardo Barroso. À posição do mexicano, o
secretário estadunidense responde com uma abertura ao final: “Yo estoy a favor de todo lo
que añada valor a la economía norteamericana (...). Sólo así vamos a añadir valor a la
economía del mundo – o viceversa – ¿Qué propone usted?” ((FUENTES, [1995] 2007, p.
180 – grifo meu).
A resposta do personagem Reich com uma sugestiva pergunta ao fim é, na verdade,
uma abertura que Fuentes concede não só ao seu don Leonardo Barroso, figura representativa
151
de uma espécie de self-made man mexicano77, mas, principalmente, a ele próprio, para que o
narrador coiote de seu romance possa seguir dando margem de desenvolvimento à metáfora
da separação na frágil fronteira de cristal, uma “simples” e translúcida membrana de vidro que
mesmo em toda a sua fragilidade separa México e Estados Unidos, mexicanos e
estadunidenses.
Será, pois, a partir da abertura concedida pelo secretário do Trabalho do Governo dos
Estados Unidos que o enredo de Fuentes em “La frontera de cristal” encontrará meios de
inserir os dois personagens responsáveis por encarnar a imagem principal do conto e da obra,
sua metáfora principal, sua metáfora ampla. O primeiro deles é Lisandro Chávez, filho de uma
classe média trabalhadora e falida em um México cujas sucessivas crises econômicas levaram
à bancarrota a pequena fábrica de refrigerantes de seu pai, indefesa ante os monopólios que
tomaram conta do setor em vinte anos de sufoco financeiro para os fabricantes independentes.
Pois é esse Lisandro que experimentara durante a adolescência as benesses de poder ir a
clubes, festas, frequentar escolas particulares, ler bons livros que, agora falido como seus pais,
busca aos vinte e seis anos “un trabajo honesto, un trabajo que me salve del desprecio hacia
mis padres, del rencor hacia mi país, de la vergüenza de mí mismo pero también de la burla de
mis amigos” (FUENTES, [1995] 2007, p. 185). É assim que, mesmo sentindo-se deslocado
entre outros noventa e três compatriotas mexicanos em um avião que os leva legalmente aos
Estados Unidos, Lisandro busca “ahora nueva oportunidade, ir a Nueva York como trabajador
de servicios” (Ibid.).
Lisandro Chávez é um dos trabalhadores mexicanos contratados legalmente como
servicios pelo self-made man mexicano Leonardo Barroso, a fim de que em um final de
semana custassem menos aos bolsos dos sócios gringos de don Barroso do que eventuais
trabalhadores estadunidenses, porque, como conta a narrativa, para estes mexicanos
[L]as cosas andaban tan mal en México, en sus casas, que no les quedaba más
remedio que rendirse ante tres mil pesos mensuales por dos días de trabajo en Nueva
York, una ciudad ajena, totalmente extraña, donde no era necesario intimar, correr el
77
Parte do mito de americanidade sempre vitoriosa estadunidense, o mito do sonho americano passa também
pela constituição de outro mito próprio de sua cultura: o do self-made man, o homem que se faz a si próprio, que
vence, ou melhor, que enriquece por si mesmo, por seu próprio esforço. Com uma ambição que nem sempre
conhece limites, a própria marcha do homem anglo-americano rumo ao oeste, avanço que se solidificou na
história e na cultura do país como “a conquista do oeste” termina por servir como fator primordial para o falso
sentido de homogeneidade, de unidade e mesmo de univocidade historiográfica dados à formação de uma
identidade nacional estadunidense ancorada em mitos evocados como o do self-made man. Ao compor e fazer
assim de don Leonardo Barroso um homem vitorioso no México, desafeito a filantropias, especialmente no que
se refere à família, homem cuja ambição também não conhece limites, Fuentes encarna ironicamente na figura
do poderoso empresário que cria em sua ficção características próprias do mito estadunidense do self-made man,
com Barroso avançando, em uma espécie de revés revanchista, as fronteiras para o outro lado, o lado de lá
“anglo-americano”.
152
riesgo de la confesión, la burla, la incomprensión en el trato con los paisanos de uno.
(FUENTES, [1995] 2007, p. 189)
Embora aqui igualado, ou forçado a sentir-se igualado porque, conforme diz nosso
narrador coiote, agora em tom bastante popular, “Todos estaban amolados y la joda iguala”;
embora esse intento, o curioso é como a narrativa distingue Lisandro Chávez dos demais
braceros, também mexicanos como ele. Em um primeiro momento, o narrador mesmo trata
de destacá-lo, sem remeter à construção romantizada que se inicia ao pensamento ou à fala de
qualquer outro personagem: “Sólo Lisandro viajaba sin sombrero y se pasaba la mano por la
cabellera negra, suave, rizada, se acariciaba el bigote espeso y recortado, se restregaba de vez
en cuando los párpados gruesos, aceitosos” (Ibid., p. 181).
Mas, logo, pouco a pouco, a distinção proposital entre Lisandro e seus paisanos vai se
consolidando como um interessante artifício narrativo, uma interessante estratégia literária,
mesmo quando o narrador se volta, retorna à transmissão de sentimentos de don Leonardo,
contando, por exemplo, que ele “admitió que le molestaba ver el paso por la primera clase de
tanto prieto con sombrero de paja laqueada” (FUENTES, [1995] 2007, p. 182), quando do
embarque de seus servicios rumo a Manhattan. E o trabalho de distinção da personagem ante
seus patrícios se torna de percepção ainda mais evidente na recuperação que faz o narrador de
um diálogo comandado por don Barroso e a sentença final que destaca os contornos da
diferenciação dedicada a Lisandro Chávez:
– ¿Por qué todos tan prietos, tan de a tiro nacos?
– Son la mayoría, don Leonardo. El país no da para más.
– Pues a ver si me buscan uno por lo menos con más cara de gente
decente,
más criollito, pues, me lleva. Es el primer viaje a Nueva York. ¿Qué clase de
impresión vamos a hacer compañero?
Y ahora cuando Lisandro pasó por la primera clase, don Leonardo lo miró y no se
imaginó que era uno de los trabajadores contratados y deseó que todos fueran como
este muchacho obrero pero con cara de gente decente, con facciones finas pero un
mostachón como de mariachi bien dotado y, caray, menos moreno que el propio
Leonardo Barroso. Distinto, se fijó el millonario, un muchacho distinto (Ibid., p.
185 – grifo meu).
Esse olhar que don Leonardo lança para Lisandro à página 185 é uma recuperação do
mesmo olhar direcionado para o trabalhador, olhar para o qual a narrativa já havia chamado
atenção à página 182, antes de digressões informativas sobre a vida do filho de uma classe
média falida. Naquele momento, mais à frente, como visto, recuperado, o narrador coiote da
trama romanesca de Fuentes contava que, antes de deixar de olhar, como vimos, “tanto prieto
con sombrero de paja laqueada” (Ibid., p. 182), don Barroso “Levantó la mirada porque vio o
sintió a alguien distinto” (Ibid., p. 182 – grifo meu); algo que “le obligó a mirar y fue el paso
de Lisandro Chávez, que no llevaba sombrero, que parecía de otra clase, que tenía un perfil
153
diferente y que venía preparado para el frío de diciembre en Nueva York” (FUENTES,
[1995] 2007, p. 182 – grifo meu).
Há aqui uma forte correlação entre a distinção que se insiste em dar ao personagem e o
olhar, a observação atenta, a mirada, embora também a de um mexicano, alheia, em se
tratando de don Leonardo. Algo mais adiante e o olhar que lança a narrativa nas próprias
remissões ao olhar de Leonardo Barroso começa a tecer pouco a pouco algumas
diferenciações também ao corpo dos outros noventa e três trabalhadores braçais que se vão
legalmente a prestar seus serviços nos Estados Unidos pelas mãos de seu contratante
mexicano, não obstante o fato de que a atenção descritiva maior é dada àqueles os quais,
assim como Lisandro, devido a um passado menos inglório, indagam-se dos porquês de
estarem ali em situação para eles tão degradante, razão pela qual se sentem igualmente
deslocados. Ainda assim, ao fim e ao cabo é a Lisandro Chávez que será dedicada maior
distinção.
Tal diferenciação responde, entretanto, a algo que se assemelha a um chamado, uma
convocação do leitor/receptor para que este lance o mesmo olhar de Leonardo Barroso para
Lisandro Chávez, acompanhando-o na e prestando atenção à distinção que lhe é dada.
Distinguindo-o, apartando-o também o leitor dos demais braceros, para que esteja atento à
construção que é dedicada a Lisandro, personagem pinçado do avião que os carrega a todos
rumo, em verdade, à metáfora do cristal para a fronteira, na cena chave da qual tomará parte
com outra personagem merecedora de digressões situacionais descritivas.
A cena começa a ser preparada em nova e necessária (para novo reforço) aproximação,
remissão ao cristal que agora emprestará à narrativa a linha tênue que separa o literal e o
figurado, o concreto e o abstrato, o objetivo e o subjetivo, numa gama que alude, na verdade,
ao amálgama dos significados às vezes todos tão palpáveis no real empírico dos tantos
significados dados a esse significante pela linguagem. No momento em que se preparam os
mexicanos para iniciar os trabalhos de limpeza para o qual foram contratados, o narrador
adota o ângulo de Lisandro a fim de, sobre o prédio onde se daria aquele ofício, falar que
[P]odía verse un edificio todo de cristal, sin un solo material que no fuese
transparente: una inmensa caja de música hecha de espejos, unida por su proprio
vidrio cromado, niquelado; un palacio de barajas de cristal, un juguete de laberintos
azogados. (FUENTES, [1995] 2007, p. 191)
Com uma linguagem rica em metáforas, condizente, obediente a todo o caráter
imagético de que lança mão, traços, elementos componentes da metáfora ampla, que se
desenvolve dentro de um amplo processo de metaforizações, são destacáveis, dada sua
154
relevância nas repetições para a imagem que se quer transmitir. Aproximam-se, portanto:
transparência e espelhismo, e o vidro e o cristal. Sobre este último, verbete mais importante
para a composição imagética que se orquestra, o narrador coiote, ora popular e agora
revelador de grande erudição, informa que, no prédio a ser limpo...
Hasta los dos elevadores eran de cristal. Cuarenta por seis, doscientos cuarenta
rostros interiores del edificio de oficinas que vivía su vida a la vez secreta y
transparente alrededor de un atrio civil, un cubo excavado en el corazón del palacio
de juguete, el sueño de un niño en la playa construyendo un castillo, sólo que en vez
de arena, le dieron cristales… (FUENTES, [1995] 2007, p. 192)
O autor usa aqui seu narrador para, através da imagem do menino na praia, colocar em
posições dicotômicas a areia, não só a que está próxima ao mar bem como a do deserto, e o
cristal agora usado como um símbolo para o desenvolvimento, opondo por alusão um lado de
cá, o México, e o lado de lá, OS ESTADOS UNIDOS. Tal carga opositiva não se ameniza
nem mesmo quando o narrador tece comparação que justaposta ao anterior descrito serve
apenas como um eufemismo, no contar esse narrador que ao iniciar da subida dos
trabalhadores em andaimes móveis eles estariam “Como en un Teotihuacan de vidrio” (Ibid.).
A visão de estranheza, de um tão diferente do meu, de um menor dentro de algo muito maior
do que aquilo a que ele jamais teria ou teve acesso em sua terra segue com a metaforizada,
como não poderia deixar de ser, descrição da subida agora de Lisandro para limpar os vidros
do arranha-céu nova-iorquino: “Lisandro ascendía al cielo de cristal, pero se sentía
sumergido, descendiendo a un extraño mar de vidrio en un mundo desconocido, patas
arriba...” (Ibid., p. 191)
A linguagem metaforizada utilizada entra, então, com efeito, mais como um atenuante
da carga de inflexões de inferioridade que as oposições postas em jogo deixam por fim
perpassar na situação descrita. Tal jogo de inferioridades quase se ameniza, enfim, quando
novas digressões, posteriores ao retorno narrativo à metáfora chave do conto e do enredo
como um todo, antecedem finalmente o “encontro” de Lisandro com uma estadunidense do
outro lado da fronteira de vidro.
Audrey é uma executiva estadunidense do ramo de publicidade. Ao contrário de
Lisandro, é uma trabalhadora de sucesso em sua carreira. As digressões descritivo-narrativas
que a ela se dedicam dão conta da retomada, redescoberta de uma força interior que uma briga
no casamento lhe havia despertado. A sexta à noite e o sábado matutino em que caminhava
sob e sobre a neve que cobria as ruas de Nova York lhe serviram para a redescoberta desse
poder interno que se desvelava do fracasso no amor e sorte no trabalho, nos negócios dessa
quase self-made woman, em posição financeira completamente oposta à de Lisandro.
155
Quando já se regozijava no pensamento de que estaria sozinha em seu escritório em
pleno sábado pela manhã, a executiva termina por descobrir que seu escritório, seu trabalho,
su oficina, na verdade
Estaba llena de trabajadores. Se olvidó. Se rió de sí misma. Había escogido para
estar sola el día en que iban a limpiar los cristales interiores del edificio. Lo habían
anunciado a tiempo. Se olvidó. Ascendió sonriendo al último piso, sin mirar a nadie,
como un pájaro que confunde su jaula con libertad. (FUENTES, [1995] 2007, p.
195)
A partir dali sucedem novas remissões ao cristal, aos cristais do edifício, ora
metaforizadas, ora não, mas, sempre, no intento de que na preparação ainda da cena principal
o elemento primordial da metáfora sobre a qual se debruça todo o enredo não fosse esquecido.
É quando, em um dado momento, o narrador nos concede, enfim, a informação:
Ella lo vio primero y no se fijó en él. Lo vio sin verlo. Lo vio con la misma actitud
con que se ve o deja de ver a los pasajeros que la suerte nos deparó al tomar un
elevador, abordar un autobús u ocupar una butaca en un cine. Ella sonrió. (Ibid., p.
196)
Tal descrição situacional marca o início da cena chave do conto. O cristal do vidro que
os separa passa então a ser objeto que pouco a pouco também os aproxima, cada qual em seu
trabalho. Ela vê nele cortesia e se surpreende; ele, tão diferente da vulgaridade que encontrara
ela em outros e do desrespeito a sua vontade de solidão, vê nela um objeto de desejo, distante
como uma deusa, desejando “intensamente tenerla, aunque fuese a través del cristal”
(FUENTES, [1995] 2007, p. 200). Porém, Audrey se levanta e sai do escritório, o que causa a
Lisandro inúmeras indagações. É quando o autor usa de seu narrador para reintroduzir a
imagem por trás da imagem que traz sua metáfora ampla:
Ella regresó con el lápiz labial en la mano.
Lo detuvo destapado, erguido, mirando fijamente a Lisandro.
Pasaron varios minutos mirándose así, en silencio, separados por la frontera de
cristal (Ibid., 201)
A separação que o frágil do cristal opera no trecho anterior não finda, entretanto, o
capítulo, pois Fuentes dá ainda mais expressividade à cena, quando da descrição do que os
dois distanciados por uma frágil membrana de vidro resolvem fazer:
Ella escribió su nombre en el cristal con su lápiz de labios. Lo escribió al revés,
como en un espejo: yerdua. Parecía un nombre exótico, de diosa india.
Él dudó en escribir el suyo, tan largo, tan poco usual en inglés. Ciegamente, sin
reflexionar, estúpidamente quizás, acomplejadamente, no lo sabe hasta el día de hoy,
escribió solamente su nacionalidad, nacixem. (Ibid., 201-2)
No fragmento supracitado, Fuentes usa toda sua habilidade narrativa para jogar com a
noção de espelhismo, trabalhando-a em dubiedades, possibilidades. Ao dizer que Audrey
156
escreve seu nome como em um espelho, seu narrador não diz propriamente se o seu nome se
revela a Lisandro de fato ao contrário, ou se não há o espelhismo desejado por ela no vidro
que ele limpa, sendo ele Lisandro que, com efeito, lê o nome da estadunidense como de fato
ela o escreveu, sem que ela o orientasse, por não saber da ausência do espelhismo, da direção
correta para a leitura. Realmente há uma espécie de pista de desconhecimento por parte de
ambos de que o espelhismo no vidro que os separa não exista mesmo, por conta da escritura
de “nacixem”, porque a narrativa leva a crer que esta aproximação a “nacido en” também é
feita ao contrário de modo proposital. Ao cabo de tudo sobram mais dúvidas do espelhismo,
sem que a separação inevitável, a união impossível que o enredo quer transmitir na fragilidade
do cristal de sua metáfora chave, metáfora ampla deixe de se sobrepor em relevância. Assim
será que, acossado, apressado por seus companheiros de trabalho que desconhecem o que está
acontecendo, Lisandro tem de ir-se. Não sem que antes, atendendo de forma duvidosa a uma
pergunta por algo mais da parte da personagem Audrey, Fuentes encerre a cena componente
final de sua ampla metáfora com um fim talvez tocante, digno das melhores comédias
românticas, das melhores histórias românticas do cinema, dada a força de seu teor imagético:
Él acercó los labios al cristal. Ella no dudó en hacer lo mismo. Los labios se unieron
a través del vidrio. Los dos cerraron los ojos. Ella no los volvió a abrir durante
varios minutos. Cuando recuperó la mirada, él ya no estaba allí. (FUENTES, [1995]
2007, p. 202)
Quis com o presente tópico abordar a metáfora ampla como parte de um artifício, de
uma estratégia narrativa de mostras ficcionais que se apoiam sobre o forte teor imagético da
maneira como decidem montar e contar e desenvolver seus enredos. Demonstrei que a
construção das imagens até aqui analisadas obedece a um interesse do autor de agir, pelas
imagens que transmite, de modo mais direto na mente de seu leitor imaginante.
No que toca ao tamanho, o simples desenvolvimento de uma metáfora específica por
todo a extensão de um conto que se agigante como um capítulo já dá vez a que a
identifiquemos como metáfora ampla, recurso de imagem que prepondera em uma narrativa
que se calque bastante no imagético. Em La frontera de cristal, entretanto, há uma óbvia e de
plena compreensão necessidade de que se “plante” essa metáfora no princípio do romance
para que, depois, ela se estenda ainda mais no conto-capítulo que empresta seu título ao todo
da obra. Em relação ao enfoque das correspondências abordadas, é importante ressaltar que
para compor um imaginário uma determinada imagem precisará de repetição, um caráter de
permanência no “todo” do qual fará parte. Em relação à metáfora do cristal para a fronteira,
desde o título da obra ela se amplifica primeiro como imagem verbal, imagem que do verbo se
157
translada à mente do imaginante em concepção gestáltica para, depois, ganhar ainda mais
força de expressão em sua tomada como metáfora ampla. Mas, de modo bastante propício ela
também foi transladada para o campo das imagens visuais tanto em uma mostra
cinematográfica (OLMOS PRODS., 2008) quanto, e talvez com um caráter ainda mais
remissivo à sua origem como imagem verbal, na capa da edição de 2007 que a Editora
Alfaguara dedicou a esta obra de Carlos Fuentes (a reprodução dessa capa de La frontera de
cristal constará dos anexos da presente tese).
Das observações dedicadas aos contos-capítulos trabalhados até o momento, há ainda
que destacar certas relações de escolhas descritivas na composição dos personagens
abordados. Essas relações serão mais bem levantadas no próximo tópico, pois têm a ver com a
noção de intersecções identitárias, construções para as quais chamo atenção sob o nome de
“mex-(anglo)-chicanidades”; atuando, também, para a formação e identificação de que
sobressaem da narrativa tais intersecções a correlação que o narrado opera entre as figuras de
imagem metáfora e metonímia, decisivas para que se possa falar em imaginários a partir da
leitura da obra em epígrafe.
3.3 “Mex-(anglo)-chicanidades” como resultado da equação “metáfora ampla = imagem
→ metonímia = imaginários”
Uma obra literária, por trabalhar com a palavra escrita, terá, mormente, nesse registro
da linguagem a função de por ele, através dele e dos enunciados que de sua união surgem
fazer “ver”, pelo viés da imaginação provocada, vislumbrar, por sua ação no pensamento do
leitor-receptor-imaginante, as imagens que quer aproximar desse leitor, buscando atraí-lo para
seu enredo, para o enredo que quer conquistar o receptor, aquele que necessita da faculdade
da imaginação aproximativa para agir com a e junto à história sobre a qual debruça, dedica
sua atenção.
Sobre o assunto, é interessante o posicionamento da, já citada anteriormente na
presente tese, antropóloga brasileira Sylvia Caiuby Novaes, para quem (2008, p. 459)
“Palavras (...) significam imagens mentais impressas na mente em função da nossa
experiência com objetos.” A autora, contudo, não se atém apenas a esse ponto,
complementando que “Uma palavra é uma imagem de uma ideia e uma ideia é a imagem de
uma coisa, como numa cadeia de representações” (Ibid.).
Quando toca na questão de nossa experiência com objetos, o argumento levantado por
Novaes vem ao encontro da relação que defendo e já apresentei entre imagem e a psicologia
158
gestáltica do fechamento de formas. E, embora as posições na cadeia de que fala Novaes
sejam de aceitação variável78, contribui para o desenvolvimento do raciocínio ao qual dou
ênfase no presente trabalho a colocação de palavra e imagem junto ao campo das
representações. É nesse aspecto que, em La frontera de cristal, ganha importância o papel da
metáfora e da descrição, ambas categorias do discurso próprias do terreno das imagens
verbais, ambas produto e produtoras de imagens verbais.
No que toca a uma mostra literária de ficção, a intenção autoral na aproximação do
leitor ao imagético pode se evidenciar em menor ou maior grau, sendo o segundo o caso de
Carlos Fuentes em La frontera de cristal. Nesse romance, conforme procurei demonstrar até
aqui, a metáfora é o caminho preferido pela palavra para transmitir imagens intencionadas,
imagens intencionais que, pela fixação da repetição constante na descrição narrativa operada,
potencializa-se, intensifica-se, amplifica-se na criação da metáfora ampla, sua imagem maior,
também cumpridora de determinada função. Em princípio, tal função talvez seja dar o
máximo de “materialidade” ao leitor, nas situações evocadas, nos personagens criados. Mas,
talvez, possa ser que essa “materialidade” requerida responda, apenas, a uma terceira
intenção. Vejamos.
“El verdadero artista no refleja la realidad: añade algo nuevo a la realidad”, escreve o
próprio Fuentes ([1992] 2010, p. 125) em seu El espejo enterrado. Uma questão, quiçá
perturbadora, entretanto, surge quando esse dito “algo novo”, certas vezes à revelia do autor,
termina por refletir-se na realidade. Nesse aspecto, cabe ressaltar o papel da metáfora ampla
de Fuentes em La frontera, cumprindo, como apontei, função de ideia, de imagem que quer se
tornar conceito, o que lhe garantiria certa perenidade, caráter de permanência e ares, efeito de
realidade, atributos próprios também da constituição de um imaginário.
E é com esse efeito de realidade que o imaginário termina por agir com o real, sobre o
real, quando não raro, nele interferindo, ou seja, na ideia, no conceito que se tem de
determinados aspectos de um real empírico o mais das vezes desconhecido pela consciência,
pelo(s) sujeito(s) imaginante(s), sendo essa possibilidade de pluralizar seu alcance talvez o
maior problema na ação dos imaginários.
Tomar, pois, o imaginário como real é, em parte, resultante do desejo humano de
apropriar-se, de tomar conhecimento do que lhe é estranho, desconhecido. Nesse tocante, na
ação da literatura sobre o receptor há que se levar em conta o fato de que um leitor pode ser
78
Remeto o leitor ao segundo tópico do primeiro capítulo desta tese, onde abordo ao longo do texto a
variabilidade possível nas vias de ação e relação entre palavra (especialmente quando age na linguagem a
metáfora) e mente, linguagem e imagem.
159
estrangeiro mesmo que, em verdade, estrangeiro não seja, estranho sendo a determinado(s)
assunto(s) ao qual se inflexiona tomando a literatura como transmissora de um real que
desconhece, sem levar em conta, em muitas ocasiões, por escolha, por deliberação própria, a
criação, a inventividade própria da ficção.
No caso de La frontera de cristal, a capa de conceito que envolve o desenrolar da
metáfora ampla pode atuar dando margem à impressão, ao efeito de que, por exemplo, todas
as interações, no frágil, poroso, quebradiço da fronteira mexicano-estadunidense, dão-se
assim: instavelmente, fragilmente, tornando impossível, apesar da proximidade, um encontro,
um melhor entendimento entre os sujeitos diretamente envolvidos nas relações de alteridade
pela obra suscitadas. Mas, se todo o efeito de real possível de ser extraído da leitura,
apreensão e interpretação do romance ficasse apenas a cargo da metáfora ampla, talvez isso
pouco contribuísse para que o leitor imaginante se visse envolvido, apanhado, quase sempre
sem que note, por um imaginário. Para tanto, para que se observe tal ação, em La frontera há
o apoio necessário da narrativa na metonímia, outro tropo de imagem, de parentesco bem
próximo à metáfora. Será a metonímia, portanto, responsável por fazer com que a consciência
imaginante se translade, transferida seja do campo da imaginação para o porto (in)seguro do
imaginário.
Já em “La capitalina”, dois momentos desse primeiro capítulo nos acercam ao uso da
metonímia adotado pela narrativa. Nas últimas linhas do conto, enquanto descreve o encontro
amoroso da recém-casada capitalina com o seu sogro na suíte de um motel do lado
estadunidense da fronteira, o narrador procura levar o leitor à observação, com efeito, à
imaginação do corpo da personagem pela contemplação que se atribui ao olhar de don
Leonardo. Assim, é-nos descrito que naquela suíte de luxo havia “Muchos espejos donde
admirar a Michelina, un baño de mármoles color de rosa donde (...) enjabonarla, acariciarla,
ruborizarla – tenía las nalgas más grandes de lo que parecía, las piernas más flacas, la
condición del tordo (FUENTES, [1995] 2007, p. 32)”. Nesse fragmento da descrição, embora
o leitor possa até, de modo bastante aceitável, desconhecer que o tordo é uma ave da família
dos melros, com “pernas” finas e calda extensa, a remissão metafórica ao corpo de Michelina
parece fazer parte de uma ação que se restringe ao campo da imaginação leitora, da imagem
em ação, que se forma, que o leitor desenha em sua mente auxiliado que é pela descrição
literária. Contudo, a imagem sugerida pelo trecho ficaria restrita apenas à faculdade da
imaginação acaso ela tivesse ocorrido aqui pela primeira vez, como mero recurso de apoio
imaginativo à descrição. Sucede, porém, que nesse caso Michelina serve na verdade de
160
modelo para uma imagem hiperonímica aqui recuperada, inserida desde o segundo parágrafo
do conto.
Ali, ao tocar no apego da avó de Michelina às tradições do passado, o narrador coiote
criado por Fuentes traz o pensamento da anciã relativo também às dissimulações próprias e
bem propícias do vestuário feminino, quando de sua juventude. Em favor, por exemplo, dos
saiões antigos, doña Zarina Ycasa de Laborde, aponta que com eles “Era más fácil disimular
los defectos físicos que la moda moderna revelaba” (FUENTES, [1995] 2007, p. 9). É então
que, dando vez à continuidade de fala da velha senhora, a narratividade coiote de La frontera
dá vez, por conseguinte, a que se entre com uma expressão imagética de maior proximidade a
imaginários: “Unos blue jeans acentúan las nalgas gruesas o las piernas flacas. “Nuestras
mujeres tienen la condición del tordo”, le oyó todavía decir a su abuelo (qepd): “Pata flaca,
culo gordo” (Ibid. – aspas do texto).
A relação ora ressaltada dá conta de que Michelina é usada na narrativa como parte,
como modelo hiponímico correspondente a um todo maior hiperonímico, uma imagem préfixada que apenas supõe esse todo ao qual pertence; mas, é justo em tal suposição que a
aparência da imagem ganha ares de profundidade, pelas vias, limitadas ou não, de recepção do
imaginante. A prefixação de imagem estabelecida pode, assim, dar margem à criação ou
absorção de um pré-conceito, imagem com falsa, porém, nem sempre notória, aparência de
totalidade, aparência de que emite, de que contém em si, na sentença que encerra, a visão de
um todo.
Essa relação utilizada pela narrativa em “La capitalina”, de Michelina como modelo
hiponímico para uma ideia de teor hiperonímico, é operada, antecipada mesmo antes do
fragmento sobre o qual discorro no momento. Já no primeiro parágrafo da obra, ao referir-se à
simetria perfeita do rosto de Michelina, o narrador traz outra voz para completar o “elogio”,
voz a qual diz que esse rosto perfeito da capitalina seria algo como “su ‘mascarita mexicana’,
le dijo un admirador francés, esos huesos perfectos de las beldades de México a las que el
tiempo parece no afectar” (FUENTES, [1995] 2007, p. 9 – grifo do autor). Aqui, no entanto, a
relação hiponímica de Michelina como parte alusiva de um todo constituído, suposto,
sugerido em “todas las beldades de México”, talvez se abrandasse pela atribuição de
condução à imagem a um personagem estrangeiro, o admirador francês; havendo-se que
forçosamente pensar, contudo, se o leitor de certa forma já não é mais conduzido a um
imaginário, ou à aproximação a um imaginário de beleza, do que propriamente a imaginar e
compor sua própria imagem, fixando-se apenas em Michelina.
161
Mas, a dúvida a meu ver se dissipa se tornamos à metáfora da condição do tordo. Ali
veremos que ela pouco produziria de efeito chamativo no final do conto caso não se
correlacionasse (antecipada que foi) à totalidade metonímica iniciada no segundo parágrafo
do capítulo. Apenas pela correlação propiciada de modo proposital pela operação estilística de
remissão de uma passagem ulterior a uma anterior é que se pode chegar à conclusão de
tomada da personagem Michelina (“tenía las nalgas más grandes de lo que parecía, las piernas
más flacas”, p. 32) como modelo hiponímico para a condição hiperonímica do tordo, operada
em “Nuestras mujeres tienen la condición del tordo”, p. 9 – grifo meu em negrito). Assim, o
que se poderia restringir ao campo da imaginação leitora em Michelina, eleva-se à
possibilidade de imaginário em “Nuestras mujeres”, sentença metonímica hiperonímica na
qual o pronome possessivo adjetivo “nossas” responde pela aparência totalizadora, cuja
responsabilidade depende também das instâncias de absorção e apreensão do leitor/receptor,
do imaginário de beleza sobre o qual termina por inserir-se. Tal imaginário pode trazer em si
um pré-conceito de beleza fatal, excludente talvez de outros rostos, de outras tantas faces da
multi-etnia mexicana79.
Finalmente, cabe destacar o fato de que a metáfora da condição do tordo é não mais
que uma demonstração da linguagem literária metaforizada a que se dá vez na narratividade
coiote de La frontera de cristal. Essa metáfora se insere, portanto, ao amplo processo de
metaforização realizado no conto “La capitalina”, do qual participa de modo relevante a
metáfora ampla do cristal para a fronteira mexicano-estadunidense e as relações de alteridade
levantadas pela obra, ampla metáfora iniciada nesse primeiro capítulo, retomada ora e vez nos
demais e cujo ápice de desenvolvimento se dá no conto sete, o capítulo que empresta seu
nome ao romance. Desse modo, apesar de certa menor relevância numa presumível
comparação hierárquica com a metáfora principal do enredo, a metáfora do tordo deixa sua
marca ao agregar-se ao processo de metonimização do qual toma parte, constituindo-se em
um exemplo de totalidade metonímica 80 cuja aproximação à aparência de um todo homogêneo
79
Lançar mão do uso de um ou da aproximação a um imaginário não sempre é fruto de um ato intencional do
escritor (ou, apenas do escritor). Com frequência, porém, é comum, sobre o que nos é alheio, termos contato nas
interações cotidianas do real empírico com sentenças que deixam vazar em seu discurso muito mais a apreensão
de determinados imaginários do que propriamente uma abordagem mais detida sobre o que se está falando.
Nesse tocante, a ficção, apesar de limitar-se ao campo do ficcional, é, ainda hoje, pelos mais variados motivos
(dentre os quais, às vezes pela relação que o autor estabelece com o real objetivo, às vezes pela separação que o
receptor não consegue operar entre o real empírico e o real da obra), fruto de confusão, ao ser tomada como
pertencente ou mesmo reprodutora, também, de totalidades que fazem parte da amplitude, de interpretação não
raro porosa ou duvidosa, do factual.
80
Termo utilizado para a possibilidade de se construir textos com metonímias, usado pelo linguista brasileiro da
Universidade de São Paulo (USP), José Luiz Fiorin (2010, p. 2). A partir de seu uso em Fiorin, utilizo aqui o
162
a torna passível de apreensão por imaginários. Configura-se, pois, tal demonstração apenas
como uma das exemplificações possíveis para a equação que trago de minha observação
teórica dedicada à obra, aquela em que sobressai a interação dos componentes do processo de
construção narrativa “metáfora ampla = imagem → metonímia = imaginários”. Há, entretanto,
ainda outros exemplos cabíveis. Vamos a eles.
No conto “Las amigas”, sexto capítulo do romance, a ligação metáfora
ampla/metonímia é também merecedora de destaque. A história conta a difícil convivência
entre uma empregada mexicana e sua patroa estadunidense. A metáfora ampla ali tocada uma
vez mais permite que, inclusive, o conto possa ser abordado a partir de seu final. O fim desse
episódio, assim como o faz Fuentes em “La frontera de cristal” e alguns outros contos
componentes da obra, busca ser comovente, busca conquistar o leitor pelas vias do tocante
que a imagem final a encerrar o capítulo espera provocar no receptor.
É dessa maneira que, nos momentos finais de “Las amigas”, após uma extensa classe
dos mais variados insultos, provocações e humilhações sofridos, a criada mexicana Josefina
parece dar uma lição de amor em Miss Amy, sua velha, amarga e preconceituosa patroa. E é
assim que, nos diálogos que antecedem o desfecho do capítulo, Josefina faz desfilar uma série
de argumentos em que explica seu amor pelo marido preso injustamente em solo
estadunidense, apesar de todos os problemas com os quais sempre tiveram de conviver. Tudo
isso é dito a uma senhora cujo orgulho e atitude de afastar-se de todos terminaram por
impossibilitar que vivesse ao lado do grande amor de sua vida, o pai do sobrinho advogado
que a ajuda em obrigações mais burocráticas de sua vida, havendo sido por ele revelada a ela
a longa espera de seu pai por uma abertura pela qual Miss Amy demonstrasse que era com ele
que desejava casar e, não com o tio do sobrinho, o que de fato acabou por acontecer.
É então que, após as revelações que lhe assomam, uma Miss Amy mais afeita a dar e
receber carinho surpreende Josefina, quem, em sua rotina noturna na casa da patroa:
Le acomodó las almohadas y estaba a punto de retirarse y desearle buenas noches
cuando las dos manos tensas y antiguas de Miss Amelia (…) tomaron las manos
fuertes y carnosas de Josefina. Miss Amy se llevó las manos de la criada a los labios,
las besó y Josefina abrazó el cuerpo casi transparente de Miss Amy, un abrazo que
aunque nunca se repitiese, duraría una eternidad. (FUENTES, [1995] 2007, p. 176)
Tenho insistido no presente trabalho que a repetição de uma imagem é o caminho, o
artifício necessário para que essa possa tornar-se parte, possa ser absorvida, captada por um
imaginário. No trecho acima, perpassam uma vez mais os sentidos em que se baseia a
transferência semântica operada na metáfora ampla, na imagem principal do enredo. Inseridos
termo devido a sua capacidade, verificada na leitura do corpus em destaque, de amarrar-se ao texto, costurando
nele uma determinada ideia totalizadora.
163
e repetidos no primeiro capítulo, retomados e logo encaminhados a seu ápice no sétimo
capítulo da obra, os sentidos envolvidos no caminho sinuoso da transferência de sentidos
operada na e pela metáfora principal do enredo se apresentam nesse sexto conto, assim como
em alguns outros, em forma de alusão, uma imagem da imagem. Dessa maneira, veem-se
repetidos a um só tempo no fragmento acima mencionado: a transparência do cristal,
representada no abraço ao corpo quase transparente de Miss Amy; e, em sentido interligado a
essa transparência corpórea, a fragilidade, no frágil das relações de alteridade levantadas,
eclodindo na representação do encontro impossível em “un abrazo que aunque nunca se
repitiese” teria que durar uma eternidade, dada a impossibilidade de que pudesse voltar a
acontecer.
Até mesmo a noção de espelhismo na metáfora do cristal para a fronteira é retomada
páginas antes do desfecho do conto, na utilização provocativa de um “ornamentado espejo de
mano que súbitamente Miss Amy volteó para dejar de reflejarse ella y obligar a Josefina a
mirarse en él” (FUENTES, [1995] 2007, p. 166). A súbita ação de Miss Amy dá início a um
interessante diálogo em que se toca na cor da pele tanto das multi-etnias que compõem o povo
mexicano quanto também das multi-etnias que conformam as gentes estadunidenses, em bela
proposta narrativa para relativizar questões que envolvem preconceitos de cor:
– ¿Te gustaría ser blanca, no es cierto? – dijo abruptamente Miss Amy.
– En México hay muchos güeritos – dijo impasible Josefina, sin bajar la
mirada.
– ¿Muchos qué?
– Gente rubia, señorita. Igual que aquí hay muchos negritos. Todos somos hijos de
Dios (…).
– ¿Sabes por qué estoy convencida de que Jesús me ama? (…).
– Porque es usted muy buena, señorita.
– No, estúpida, porque me hizo blanca, ésa es la prueba de que Dios me quiere.
– Como usted mande, señorita. (FUENTES, [1995] 2007)
É interessante notar que, mesmo na transmissão das imagens reveladas dos tropos que
utiliza, o enredo demonstra preocupação em apresentar uma coesão que amarre de modo
romanesco o imagético do narrado. Dessa forma, as noções de sentido que abraçam o frágil, o
encontro impossível, a transparência e o espelhismo terminam por se juntarem a modos outros
de metaforização da fronteira já utilizados pela própria narrativa. Isso pode ser observado,
inclusive, em mais uma passagem que traz a estratégia de uso literário do que tenho chamado
de “imagem da imagem”, uma imagem alusiva que remete a uma imagem anterior.
Esse é o caso, por exemplo, da citação que trago a seguir. Nela, ao debruçar-se sobre a
imagem em seu sentido de resultado de uma reprodução fotográfica, a narrativa se remete a
uma caracterização anterior de explícito e proposital teor imagético da fronteira como raya
fronteriza, como uma cicatriz histórica que separa e une forçosamente México e Estados
164
Unidos desde a assinatura do Tratado de Guadalupe-Hidalgo, com o fim da guerra de
fronteiras entre ambas as nações, a qual durou de 1846 a 1848.
A remissão se faz, não de forma direta, mas apenas por imagem alusiva, ao quarto
conto da obra, o capítulo “La raya del olvido”, onde a fronteira ganha a explícita
caracterização imagética de linha fronteiriça, de marca em forma de cicatriz. E parte, no
posterior “Las amigas”, a partir das observações sobre uma foto:
– ¿Qué te parece mi marido? – le dijo a Josefina, sacando el retrato del cajón para
colocarlo en la mesita.
– Muy guapo, señorita, muy distinguido.
– Mientes, hipócrita. Míralo bien. Estuvo en Normandía. Mírale la cicatriz que le
atraviesa la cara como un rayo parte en dos un cielo tormentoso.
– ¿No tiene usted fotos de antes de que lo hirieran, señorita?
– ¿Tú tienes estampas de Cristo en la cruz sin heridas, sin sangre, clavado, muerto,
coronado de espinas?
– Sí, cómo no, tengo estampas del Sagrado Corazón y del Niño Jesús, muy chulas.
¿Quiere verlas?
– Tráemelas un día – sonrió burlona Miss Amy.
– Sólo si usted me promete mostrarme a su marido cuando era joven y guapo –
sonrió muy cariñosa Josefina.
– Impertinente – alcanzó a murmurar Miss Amy cuando la criada salió con la
charola de té. (FUENTES, [1995] 2007, p. 167-8 – grifo meu)
O caráter remissivo do trecho acaba por demonstrar ter confluências para com algumas
questões já abordados na análise anterior de ...y no se lo tragó la tierra, tangentes à imagem
fotográfica e as linhas tênues da representação nas aproximações e meandros possíveis entre
foto, retrato, pintura, escultura e seus referentes. Não obstante, tais correspondências
merecerão destaque mais aprofundado no próximo e último capítulo desta tese, quando de
modo mais específico darei vez à análise aproximativa e comparativa de ambas as obras. Por
ora, cabe chamar a atenção para o fato de que a citação supracitada é mais um exemplo dos
caminhos sinuosos existentes na transferência de sentidos da metáfora ampla, a metáfora
principal que se espalha pelo texto buscando tornar familiar o que pareceria tão somente
abstrações imagéticas. Tamanho processo de repetição da metáfora ampla e dos sentidos que
se quer com ela fixar faz com que tais imagens nela e por ela repetidas entrem na órbita do
campo de atração do imaginário, com a forte possibilidade de que sejam captadas e passem a
habitar constelações semânticas81 de determinados imaginários.
Mas, para que de fato possam fazer parte do universo de um imaginário, para que
possam propiciar uma leitura interpretativa desde o prisma de atração, de coligação a um
imaginário, as imagens literárias levantadas da(s) metáfora(s) ampla(s) em La frontera de
81
O termo aparece já na introdução de Zilá Bernd (Cf., 2007, p. 16) à obra que ela mesma organiza, o
Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas, por extensão à expressão “bacias semânticas”,
desenvolvida por Gilbert Durand no seu Campos do Imaginário (Cf., 1996, p. 165).
165
cristal necessitam, como já informei, do apoio interativo, da relação que estabelecem com o
aspecto totalizador da figura de imagem metonímia, especialmente nos casos de
hiperonimização. Algo que não é diferente em “Las amigas”, conto pelo qual transcorre e
perpassa a metáfora ampla e, também, a metonimização mais aproximativa à leitura da obra
via imaginários.
Conforme adiantei, em “Las amigas”, a personagem mexicana Josefina sofre todo tipo
de estereotipia, insultos e humilhações advindos do comportamento preconceituoso de Miss
Amy. A esse respeito é também interessante como o narrador coiote de Fuentes traz para o
leitor a imagem da mexicana aos olhos de sua patroa, quando da primeira vez em que a viu:
“La vio la primera vez y confirmó todas sus sospechas. Era una india. No entendía por qué
esta gente que en nada se diferenciaba de los iroquois insistía en llamarse ‘latina’ o ‘hispana’”
(FUENTES, [1995] 2007, p. 161 – grifo do texto). Do mesmo modo que faz com o olhar de
don Leonardo Barroso em “La frontera de cristal”, em um primeiro momento igualando em
um todo determinada classe em relação de subalternidade para, só depois, individualizar,
ainda de modo preconceituoso, os sujeitos que compõem o grupo sobre o qual lança
observação; desse mesmo modo também atuará o próprio Fuentes em “Las amigas”, fazendo
com que, com o passar do tempo, Miss Amy busque e pense ou pareça encontrar traços mais
distintivos no aspecto físico de Josefina. Essa amenização em princípio relativizadora de
questões sobre o preconceito nas relações de alteridade não parece, entretanto, escapar de
certo problema de Fuentes em trabalhar literariamente alguns estereótipos em sua obra ora em
relevo.
O estereótipo chega mesmo a ser trasladado ao “outro”, qual em “La frontera de
cristal”, quando da narração do início de individualização que Leonardo Barroso passa, enfim,
a dedicar aos contratados que descem do avião que os levou para limpar as vidraças de cristal
de um arranha-céu nova-iorquino: “Había de todo (...), otros también en los que el empresario
no se había fijado porque el estereotipo del espalda mojada, campesino con sombrero
laqueado y bigote ralo se lo devoraba todo” (FUENTES, [1995] 2007, p. 187 – grifo meu).
Semelhante transladação relativizada do estereótipo é também verificada antes, na primeira
conversa que têm, a respeito de Josefina, Miss Amy e seu sobrinho Archibald, quem assim a
informa da contratação:
– Hemos contratado una señora mexicana dispuesta a trabajar con usted.
– Tienen fama de holgazanes.
– No es cierto. Es un estereotipo.
– Te prohíbo que toques mis clichés, sobrino. Son el escudo de mis prejuicios. Y los
prejuicios, como la palabra lo indica, son necesarios para tener juicios. Buen juicio,
166
Archibald, buen juicio. Mis convicciones son definidas, arraigadas e inconmovibles.
Nadie me las va a cambiar a estas alturas.
Se permitió un respiro hondo y un poco lúgubre.
– Los mexicanos son holgazanes.
– Haga una prueba. Es gente servicial, acostumbrada a obedecer.
– Tú también tienes tus prejuicios, ya ves – rió [sic] un poquito Miss Amy
(FUENTES, [1995] 2007, p. 159 – grifo meu).
O fragmento apresenta no desenrolar do diálogo uma mostra de sentenças de
metonimização, ora amenizadas ou por um “Tienen fama de” (em que ainda não se afirma,
não se taxa ou se evidencia a opinião de que de fato são) ou pela contestação seguinte “Es un
estereotipo”; ora relativizadas no jogo discursivo que se faz operar entre a afirmação daquela
que antes modalizava seu discurso, passando de um “Tienen fama de” para a asseveração em
“Los mexicanos son holgazanes”, e o preconceito explícito em “Es gente servicial” daquele
que antes contestava a estereotipia. E é justo no jogo dialógico proposto (“eu disse isso, mas
você também”) que parece perder-se, nesse primeiro momento, uma tendência mais carregada
a encaminhar o leitor para a proximidade equalitiva entre os termos da seguinte equação:
estereótipo (preconceito) → metonímia (hiperonímia) → imaginário (imaginários).
É esse êxito, porém, que a meu ver começa, ou amaina ora e vez (se se atém a
observações já feitas desde a abordagem analítica de “La capitalina”), a se mostrar menos
consistente quando, por exemplo, adianta-se à retomada das questões sobre estereótipos de
volta à baila no momento em que Miss Amy volta a questionar seu sobrinho, curiosa, dessa
vez, em saber da ornamentação do quarto de sua empregada Josefina:
– ¿Qué tiene en la recámara? (…) ¿Cómo la adorna?
– Como todas las mexicanas, tía. Estampas de los santos, imágenes de Cristo y la
Virgen, un viejo exvoto dando gracias, qué sé yo.
– La idolatría. El papismo sacrílego.
– Así es y nada lo va a cambiar – dijo Archibald, tratando de contagiarle un poco
de resignación a Miss Amy (FUENTES, [1995] 2007, p. 167 – grifo meu).
No diálogo acima, o que antes era mostra aproximativa suavizada nas trocas de
posicionamento no discurso passa, então, a evidenciar-se de forma mais clara como sentença
metonímica em que a parte Josefina serve de modelo, ao igual ao que fora feito com
Michelina, hiperonimizado de um todo presumível e suposto: o imaginário de que, em que
todas as mexicanas são religiosamente idólatras, algo que recai sobre o imaginário maior
acerca da religiosidade dos mexicanos: o México, todo o México é católico, e idólatra. Dessa
maneira, tomada a parte como um todo, a totalidade hiperonímica da ideia levantada encontra
seu complemento, seu fechamento taxativo no feito de que, na voz de Archibald, “nada lo va a
cambiar”.
167
Entrementes, logo a seguir, a narratividade coiote de La frontera tenta retomar ou
demonstrar a uma só vez controle e afastamento objetivo da situação evocada, buscando nova
relativização de posicionamentos. Desse modo, Miss Amy segue seu diálogo com o sobrinho
externando sua opinião sobre a idolatria da mexicana:
– ¿No te parece repugnante?
– A ellas les parecen repugnantes nuestras iglesias vacías, sin decorado, puritanas –
dijo Archibald relamiéndose por dentro de la excitación que le causaba acostarse en
Pilsen con una muchacha mexicana que cubría con un pañuelo la imagen de la
Virgen para que no los viera coger. Pero dejaba prendidas las veladoras, el cuerpo
canela de la chica reverberaba precioso… Era inútil pedirle tolerancia a Miss Amy.
(FUENTES, [1995] 2007, p. 167)
O estereótipo aqui retorna contrapondo-se à figura inserida da Virgem como marca,
uma vez mais, da religiosidade, dessa feita, adjunta a certa fetichização do corpo feminino, do
corpo da mulher mexicana. Não fosse a mesma ambientação e caracterização descritiva
dedicada também ao corpo de outra personagem, a também mexicana Michelina, e tal ato
talvez passasse por isolado, apenas quem sabe como mais uma das vacilações de Archibald,
entre a compreensão, a tolerância e os seus próprios preconceitos, apenas como mais uma das
construções ou perpetuações imagéticas que lhe são atribuídas pela narrativa.
Um fato minimamente curioso chama atenção, porém, no idioma majoritário de “Las
amigas”, conto que traz uma estadunidense austera que, teoricamente, não se rebaixaria ao
trato em espanhol com uma mexicana que somente se sujeita a esse trabalho porque também
fala inglês; além de que também por certo não precisaria Miss Amy dialogar com seu
sobrinho também estadunidense, ainda que esse conhecesse sim a língua hispânica por suas
andanças no bairro mexicano de Chicago, em espanhol, como de fato se transcreve. É claro
que o uso do espanhol como língua em momentos em que deveria aparecer como inglês 82
responde a uma lógica de mercado, já que por razões óbvias a obra é produzida muito mais
para um público hispano-falante do que para o público de língua inglesa nos Estados Unidos,
para quem o romance termina por contar com uma tradução ao inglês.
Está justamente na ação do traduzir, contudo, a questão a que me busco referir ao
abordar a língua utilizada em “Las amigas”. Embora decerto esse seja apenas um
questionamento de fundo mais hipotético, essa aparente preocupação menor levanta outra
questão que sugere pensarmos o narrador coiote fuentesiano agindo no conto em epígrafe
como também um tradutor, bom conhecedor, além de todas as habilidades e domínio de
82
Língua que de fato aparecerá mais como marca de anglicismos, anglo-americanismos, ou como forma de dar
vez a chicanismos, ao spanglish chicano, principalmente na subparte dedicada a um personagem chicano de
nome José Francisco, no último conto do romance, o capítulo “Río Grande, río Bravo”.
168
artimanhas que já demonstrou possuir, da língua inglesa o suficiente para poder traduzi-la ao
receptor das histórias que conta. Tamanho exercício de ficção pode, por conseguinte,
reconduzir-nos a uma ironia lançada, e já citada no primeiro tópico dessa seção, pelo
personagem Dionisio, em “El despojo”, terceiro conto da obra. Ali, ufanando-se do avanço da
língua espanhola nos Estados Unidos, o chef mexicano indaga também: “¿Cuántos
mexicanos, en cambio, hablaban correctamente el inglés? Dionisio sólo conocía a dos, Jorge
Castañeda y Carlos Fuentes, y por eso estos dos sujetos le parecían sospechosos” (FUENTES,
[1995] 2007, p. 65).
É, pois, essa mesma suspeita irônica que recai sobre os posicionamentos atribuídos aos
personagens de “Las amigas”. Não seriam certas imagens que podem compor com
imaginários através do enredo de La frontera um transparecer de posicionamentos intelectuais
do próprio Carlos Fuentes sobre as relações de alteridade suscitadas no romance? Tais
posicionamentos parecem responder pela utilização, pela transposição e interposição literária
de intersecções identitárias, às quais denomino, dada a observação de seu uso em La frontera
de cristal, de “mex-(anglo)-chicanidades”.
No romance de Carlos Fuentes ora trabalhado sobressaem certas ações na escolha de
personagens que terminam por encarnar tipos ou tipificados são. Dentre tais ações vinculados
estão, como tenho demonstrado até aqui, o desenvolvimento de situações narrativas por meio
do tropo amplificado ao qual chamo de metáfora ampla e sua consequente interligação com a
caracterização de personagens específicos através de metonimizações o mais das vezes
hiperonímicas, verdadeiras sentenças e totalidades metonímicas que, por intermédio de outras
ações de escolha narrativa, (re)desenham moldes identitários. São essas ações que interagem
junto e com a metonímia em La frontera as que seguem: a descrição (recurso suscitador de
imagem também fundamental no desenrolar e estabelecimento da metáfora ampla); o pinçar
personagens para destaque; e a devida distinção que se opera na definição literária de seus
traços, tanto físicos quanto comportamentais.
Tudo indica, entretanto, que a busca por trabalhar literariamente a distinção de traços
característicos, apesar da ficção em que se insere no romance aqui em evidência, obedece a
uma continuidade, no texto ficcional, de todo um projeto intelectual de buscar respostas para
entender, explicar a formação e ação da psique e da identidade do sujeito mexicano. Ocorre
que esse fruto de um projeto de toda uma geração de intelectuais se dá, principalmente, via
ensaio, esse gênero em que a habilidade de convencimento, de apanhamento nas redes de
argumentos que cria e desenvolve o bom escritor se evidencia, deixando escapar, em
contrapartida, a objetividade, o afastamento de seu objeto de estudo requerido para
169
observações de metodologia mais científica, de maior rigor científico e, portanto, menos
subjetiva ou em que a subjetivação do autor, do pesquisador, veja-se minimamente marcada.
Como já pude expor em pesquisa anterior, interferem, agem de modo mais incisivo
sobre a ficção de La frontera de cristal as ideias, observações e posicionamentos ideológicos
da ensaística dos intelectuais mexicanos Samuel Ramos [1934] (1963, 1984) e Octavio Paz
[1950] (1959)83. Os ensaios do próprio Carlos Fuentes em seu El espejo enterrado [1992]
(2010) completam a tríade que acaba por incidir na caracterização de imagens que na ficção
de La frontera representam literariamente pretensos traços distintivos, já sejam do mexicano,
do chicano ou do estadunidense. A tal incidência corresponde a criação de traços
comportamentais e identitários potencializados na linguagem literária do romance, compondo
verdadeiros conjuntos identitários que se entrechocam e se atravessam em intersecções de
identidades.
Esses delineamentos de distinção, ecos também dos posicionamentos ideológicos em
que se baseiam, destacam-se no romance de Fuentes como conjuntos de marcas de identidade,
podendo ser entendidos como mexicanidades e chicanidades que giram em torno do elemento
anglo, e talvez o que possamos chamar de anglo-americanidades, como alteridade inimiga, em
“guerra” aguçada nas relações fronteiriças que ultrapassam o entorno da região de fronteira
que “co(m)partem” México e Estados Unidos, chegando a um nível de entendimento em que
se tem a fronteira também, ou mais bem, como um problema cultural.
Com o termo hifenizado “mex-(anglo)-chicanidades” quero, por fim, demonstrar que,
na obra de Carlos Fuentes sobre a que debruço este estudo, tais conjuntos identitários são
intersecções porque não se completam, não chegam a se completar porque entre um e outro
está o elemento anglo, o evocado inimigo ianque, na voz que invoca um passado, também
revolucionário 84, de exacerbada aversão ao estrangeiro. Mas, cabe pensar como eclodem,
como tratadas são essas intersecções, essas “mex-(anglo)-chicanidades” e de que maneira
criam, interferem ou se coadunam a imaginários prévios através e na literatura da obra em
tela?
Alguns pares contrastivos se apresentam como importantes pontos de observação para
elucidação da maneira em que ocorrem, a disposição em que se dão as intersecções
83
Remeto o leitor ao segundo capítulo de minha Dissertação de Mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do
sujeito mexicano em La frontera de cristal (Universidade Federal Fluminense – UFF, 2010), onde discorro de
modo mais abrangente sobre as correspondências que aqui não serão desenvolvidas em razão de que, na presente
tese, a ênfase do recorte escolhido é voltada diretamente para o trato literário das correlações já verificadas e sua
conseguinte influência e interferência sobre a formação e perpetuação de imaginários.
84
Remeto o leitor ao ensaio “De la independencia a la revolución”, de Octavio Paz, do seu El laberinto de la
soledad (1950) [1959].
170
abordadas. Tomemos por base dois interessantes personagens femininos da obra. São elas: a
mexicana Michelina Laborde e Ycaza (depois, Michelina Laborde de Barroso) e a
estadunidense Audrey.
Em princípio, Michelina tem, ganha, merece maior destaque por parte da narrativa: só
perde em protagonismo para a metáfora ampla que se desenha no conto que lhe concede o
epíteto de “La capitalina”; e reaparece mais adiante no oitavo capítulo “La apuesta” 85 em
descrição que encaminha o leitor para o olhar de um motorista recém-contratado por
Leonardo Barroso, assim narrada em discurso indireto livre: “Esa mujer se imponía al señor
Barroso, lueguito se notaba. Lo traía enculado, que ni qué” (FUENTES, (1995) [2007], p.
216).
Porém, no último capítulo da obra, o conto “Río Grande, río Bravo”, pouco antes da
morte de seu sogro-amante, em uma cena cuja imagem remete ao dramático episódio da morte
de John F. Kennedy, a própria Michelina é já um sopro do esplendor que a narrativa tentou
insistentemente conferir-lhe, estando agora, mesmo ao lado de don Barroso, “como si un ave
largamente acariciada y consolada hubiese terminado por asfixiarse, muerta de tanta caricia,
hastiada de tanta atención...” (Ibid., p. 276); mas é justo em “La frontera de cristal” – capítulo
imediatamente anterior a “La apuesta”, onde ela aparece ainda com certo fulgor, e, repare-se,
à visão de outro personagem – que Michelina é mostrada ainda mais apagada, mera
acompanhante de luxo de seu poderoso amante, ela, agora, mero troféu em forma de gente.
E no capítulo no qual sua luz se mostra menos acesa, a narrativa coiote de Fuentes
parece ali opor-lhe um par contrastivo que, sem atravessar outros contos da trama romanesca
como o faz Michelina, ganha em destaque e, talvez, um maior cuidado na representação. A
personagem responde pelo nome de Audrey, a estadunidense executiva publicitária que
fechará a metáfora ampla do cristal para a fronteira com Lisandro Chávez (outro ao qual
tornarei). Em um primeiro momento, o topos físico de Audrey – quem vive em um
“apartamento pequeno pero bien arreglado, hasta lujoso en muchos detalles” (FUENTES,
(1995) [2007], p. 193) – é mostrado ao leitor como mais limitado do que o mundo que dá a
conhecer a Michelina seu sogro e amante Leonardo Barroso. Porém, o universo interior da
estadunidense se mostra mais firme e amplo para o leitor do que toda a agonia interna da
alegorização barroca dos sonhos de Michelina. Assim, se em Michelina temos uma mulher
casada por conveniência, debatendo-se, primeiro, entre a agonia e o desejo para, depois,
85
Outro conto da obra que fixa em uma imagem (o choque violentíssimo entre dois automóveis em um túnel na
Espanha) o sentido do encontro impossível marcado em sua metáfora ampla, dessa vez a título de um encontrazo
triádico (México, Espanha e Estados Unidos) traduzido na figura dos anseios de viagem e na nacionalidade dos
personagens que morrem no acidente (Cf. FUENTES, (1995) [2007], p. 227).
171
apresentada ser como resignada, apagada, ensimesmada; em Audrey, tem-se uma mulher
segura de si, uma mulher que toma posse de si após o fim de seu casamento: “Una mujer que
se sentía libre (...). Había resistido al mundo externo. A su marido, ahora exterior a ella,
expulsado de la interioridad, física y emocional, de ella” (FUENTES, (1995) [2007], 194).
Enquanto isso, mesmo ao seguir sua participação, já no último capítulo da trama, a
capitalina é não mais do que caricatura da imagem fetichizante com a qual foi composta. Ali,
mortos a tiros o chofer e o seu amante, no mesmo carro está
Michelina milagrosamente viva, gritando histéricamente, llevándose las uñas a la
garganta, como si quisiera ahogar sus gritos, recordando sus lágrimas enseguida,
quitándoselas con el codo, manchando de rimmel la manga del modelo de Moschino
(Ibid., p. 277).
Mas, não é com o trecho acima que a narrativa encerra a participação de Michelina. O
narrador coiote, ao convocar (ele e a fronteira evocada) a falarem os personagens principais
do romance no texto-rio que findará o texto, em um contraste interessante com a liberdade
sentida pela convicta estadunidense Audrey ao separar-se do marido, dá conta à mexicana
Michelina de algo talvez punitivo que lhe acontecera, convocando-lhe e aconselhando-a da
seguinte maneira: “habla Michelina Laborde, deja de gritar, piensa en tu marido el
muchacho abandonado, el heredero de don Leonardo Barroso” (FUENTES, (1995) [2007],
p. 279 – grifo do texto).
A citação acima termina por trazer de volta outro personagem que encarna algumas
das mexicanidades atribuídas ao mexicano na busca de definições identitárias, inclusive,
incitadas a serem superadas pelo pensamento intelectual ao qual se integra a linha ensaística
de Fuentes. Se retornamos ao primeiro capítulo pela força indutora que produz a remissão a
Michelina, podemos recordar que Mariano Barroso, ainda futuro marido da capitalina, era um
jovem solitário, triste, afeito às sombras e que, conforme aponta em certo momento a
narrativa,
[S]in más compañía que esos indios naturales e indiferentes a las perversiones de la
naturaleza, que algunos llamaban pacuaches y otros “indios borrados”, como él,
indios invisibles, seres miméticos de ese gran lienzo de imitaciones y metamorfosis
que es el desierto (Ibid., p. 27)
Parece claro haver um jogo de relativização levado a cabo no trecho anterior entre
mimese, representação literária e real empírico como base para a burla descrita em forma de
ficção. Porém, a meu ver, sobressaem as impressões dedicadas a descrever o indígena
mexicano e sua aproximação para com o comportamento de identidade mexicana. Essa
mesma proximidade é proposta também com a empregada mexicana Josefina de “Las
amigas”. Nesse conto já aqui abordado, a estadunidense senhorita Amy tem em telão de fundo
172
a seus mais diversos preconceitos toda uma austeridade a qual em prática a narrativa dá mais
a compreender como atitudes dignas e mesmo próprias (e porque não dizer até mesmo
compreensíveis) de uma mulher de sua classe, sua idade, suas ideias, e de sua nacionalidade;
sobrepondo-se a seu vasto repertório de estereótipos o que, ao fim, cai-lhe como carga: sua
solidão forçada. Em contrapartida, destaca-se, ainda, a oposição da aparente “vitória” altiva
da mexicana diante da amargura de sua patroa. Há que se reparar, contudo, que tal
“superioridade mexicana” se dá pela subserviência, pela doçura, pelo calar e resignar-se,
falando pouco, embora às vezes de modo desconcertante (nunca ofensivo), somente na hora
certa, em uma mimese de comportamento que nos remete, também se estendemos tal
observação ao fragmento anteriormente citado, ao mito do bom selvagem (Cf. ROUSSEAU,
1963), com o adendo curioso da visão, do olhar estrangeiro ao outro, o selvagem, que a
orquestração desse mito nos transmite.
Há que se reparar, inclusive, que sucede, ao mesmo trecho onde a narratividade usada
em “Las amigas” aponta que a primeira vez que Miss Amy a observa a vê e a descreve como
uma índia, outro em que a estadunidense, conforme descreve a narrativa, teria pensado que
Josefina tinha algo a se destacar: “Tenía una virtud. Era silenciosa. Entraba y salía de la
recámara de la señora como un fantasma, como si no tuviera pies” (FUENTES, (1995) [2007],
p. 161).
No já referido penúltimo conto, o oitavo capítulo “La apuesta”, Fuentes deixa entrar
em seu narrado uma crítica que relativiza algo dos caracteres que aproxima de modo mais
depreciativo do que propriamente sem juízo de valor traços do elemento indígena à
constituição da identidade nacional mexicana. Ali, a personagem Encarnación, uma turista
espanhola de férias no México, indaga ao personagem Leandro, um taxista mexicano, se os
espanhóis haviam de fato sido assim tão maus quanto demonstrava a observação em um
museu que visitavam de alguns murais de Diego Rivera. A resposta dá princípio a um
interessante diálogo, cujo fragmento exponho abaixo:
– Eran muy valientes – dijo Leandro –. Tenían una gran civilización y los españoles
la destruyeron.
– Pues entonces si tanto los quieren, a tratarlos bien hoy mismo – dijo con su tono
duro y realista Encarna –, que yo los veo más maltratados que nunca (Ibid., p. 211).
Relativizados, sim. Em tom de crítica, sim. Ocorre que os posicionamentos do
intelectual Fuentes ora se apresentam, surgem, insurgem-se em sua ficção em tom de debate,
nela debatendo-se. Ainda assim, a visão da necessidade de superação de traços do indígena
em características tidas como constituintes e definidoras de marcas do sujeito mexicano é algo
173
que se lê de modo explícito em nomes como Samuel Ramos e Octavio Paz e, talvez, de forma
mais matizada em Carlos Fuentes, espécie de herdeiro das posições ideológicas desses que
bem podem ser entendidos como seus antecessores. E não é apenas isso.
Mesmo as características que dedicadas são a personagens femininas como aquelas
aqui destacadas, fetichização do corpo, exagerada idolatria, servidão, apego a crendices se
inserem no lugar comum de um imaginário sobre as mexicanas que as relega, desde a figura
de Malinche86 à Virgem de Guadalupe, à mera dicotomia dos extremos binários: Virgem ou
vadia, Santa ou prostituta (Cf. TROINA, 2005, p. 93).
Ainda outros atributos fossilizados, cristalizados como próprios de uma pretensa
identidade mexicana, difundidos e discutidos também por toda uma geração de intelectuais da
qual Fuentes faz parte, acabam por encontrar eco nas representações de La frontera. É dessa
maneira que, ao longo do romance, personagens encarnam comportamentos, ações,
sentimentos e estados de ânimo durante um largo tempo (e mesmo ainda hoje) atribuídos
como marca do mexicano, já sejam eles: cortesia, mescla de alegria (o gosto exagerado pela
festa) e tristeza (herança de sua formação no passado e de sua condição e condução histórica
sob a mão de maus governos), circunspecção, isolamento, complexo de inferioridade, fuga,
sombra, solidão.
Muitos desses aspectos já puderam ser observados a partir do contato com um bom
número dos personagens trazidos à luz em várias das citações aqui trabalhadas. Porém,
mesmo nas relações de escolha em que a ação narrativa proposta é a de distinção do sujeito
mexicano, ela se dá em tom de separação desse sujeito que se quer apresentar diferenciado de
uma suposta totalidade mexicana representada em linhas comumente depreciativas e, quando
muito, em tom de equiparação a um outro estrangeiro.
De volta ao conto “La frontera de cristal”, lá encontramos um Lisandro Chávez cuja
única marca de um aparente aspecto físico “tipicamente” mexicano seria seu “bigote espeso y
recortado” (FUENTES, [1995] 2007, p. 181 – grifo meu), oposto ao estereótipo que a
narrativa informa que a don Barroso o devorava todo por dentro: “campesino con sombrero
laqueado y bigote ralo” (Ibid., p. 186 – grifo meu). É por isso que em mais um momento de
destaque transferido pela narrativa a Lisandro através dos olhos de seu empregador, informa86
Vale, porém, ressaltar que a figura da Malinche em La frontera de cristal, traz na figura da personagem
Marina, do quinto conto “Malintzin de las maquilas”, um misto de tristeza, de sonhadora ingênua, ao mesmo
passo, preservando o caráter de mediadora atrelado ao sentido de intérprete da Malinche histórica. Fuentes chega
mesmo a subverter certa visão tradicional a respeito de La Malinche. Assim é que, no quinto capítulo de seu
romance, Marina é a traída, em vez de ocupar o papel de traidora que comumente é transferido àquela que foi
intérprete de Cortés. Ocorre, porém, que, ainda assim, esse caráter de traição, conforme o observado, termina por
ser transposto a outros personagens femininos da obra.
174
se que don Leonardo em mais uma de suas máximas “deseó que todos fueran como este
muchacho obrero pero con cara de gente decente, con facciones finas pero un mostachón
como de mariachi bien dotado y, caray, menos moreno que el propio Leonardo Barroso”
(FUENTES, [1995] 2007, p. 185 – grifo meu).
Será este mexicano cuidadosamente pinçado, distinguido que a narrativa levará para
diante da executiva estadunidense Audrey. Será Lisandro e, não, nenhum dos outros
mexicanos contratados pelo senhor Barroso, esses “todos tan prietos, tan de a tiro nacos”
(Ibíd.); afinal, era aquele “el primer viaje a Nueva York. ¿Qué clase de impresión vamos a
hacer, compañero?” (Ibid., p. 181). E é exatamente essa classe de boa imagem que a narrativa
coiote parece delegar a Lisandro, enxergando ser somente ele capaz de causar tamanha boa
impressão aos olhos do estrangeiro hiponimizado em Audrey, cujo olhar refletido na narrativa
nos transmite que
El trabajador era guapo (…), tenía esa actitud de caballerosidad insólita y casi
insultante, fuera de lugar, como si abusara de su inferioridad, pero también tenía
ojos brillantes en los que los momentos de tristeza y alegría se proyectaban con igual
intensidad, tenía una piel mate, oliva, sensual, una nariz corta y afilada, con aletas
temblorosas, pelo negro, rizado, joven, un bigote espeso. (FUENTES, [1995] 2007,
p. 199)
Mas, acima, enfim, enquanto a distinção física da descrição o destaca, características
outras voltam a cair no lugar comum relegado a imaginários sobre a identidade mexicana:
primeiro, o sentimento de inferioridade que se manifesta perpetuado ou se lhe atribui, repetido
ainda no final do conto, quando, em resposta ao nome de Audrey escrito ao contrário, o
narrador informa que Lisandro, em vez de ter feito o mesmo, teria escrito sua nacionalidade
“Ciegamente, sin reflexionar, estupidamente quizás, acomplejadamente, no lo sabe hasta el
día de hoy” (Ibid., p. 202 – grifo meu); depois, tristeza e alegria mescladas com igual
intensidade, a mesma mescla que já se mostrara “enxergada” pela própria Audrey momentos
antes da descrição narrativa de sua observação anterior, quando ela ainda buscava “una
palabra que describiera la actitud, el rostro, del trabajador que limpiaba las ventanas de la
oficina” (Ibid., 198). Encontrando ela esta palavra
[C]on un relampagazo mental. Cortesía. Lo que había en este hombre, en su
actitud, en su distancia, en su manera de inclinar la cabeza, en la extraña mezcla
de tristeza y alegría de su mirada, era cortesía, una ausencia increíble de
vulgaridad (Ibid., p. 198 – grifo meu)
A incrível ausência de vulgaridade descrita traz à lembrança nova remissão à uma
espécie de novo olhar estrangeiro que desde, através do mito eufemístico do bom selvagem,
tenta mudar, suavizar, tornar mais terna, compreensível sua visão acerca dos sujeitos
175
colonizados, dominados, subjugados. Porém, o lugar-comum da subserviência, da cabeça
baixa e da cortesia que eufemisticamente faz parte de um imaginário social que recai sobre o
México ainda se faz presente, imagem que se repete, na qual se insiste na narrativa, inclusive,
quando a estadunidense (seguindo a trilha de traduções do inglês ao espanhol deixada pelo
narrador coiote e tradutor fuentesiano) compara Lisandro com o marido de quem acabara de
separar-se: “Dios mío, ¿con quién he estado casada?, ¿cómo es posible?, ¿con quién he estado
viviendo?, y luego lo encontró a él y le atribuyó todo lo contrario de lo que odiaba en su
marido, la cortesía, la melancolía” (FUENTES, [1995] 2007, p. 201 – grifo meu).
E incluída no trecho acima a melancolia é importante chamar a atenção para o fato de
que, no tocante aos traços que costumam ser outorgados como caros a, indissociáveis da
personalidade ampla e geral do mexicano, cabem ou nela, melancolia, explicam-se
características outras, quais seriam a mescla entre tristeza e alegria, a própria cortesia, a
resignação e o gosto pela solidão. Antes, porém, que me detenha algo mais sobre o apelo
desse caráter melancólico conferido pelo olhar intelectual (e volto a citar aqui a conexão que
se opera entre partes da linha de estudo adotada por Ramos, Paz e Fuentes) dedicado a buscar
desvendar, dissecar uma espécie de “ethos” mexicano; antes disso, parece-me valer a pena
observar como a narrativa distingue, separa esse mesmo sentido de melancolia do
estadunidense, como quando da descrição de um pensamento de Lisandro sobre o olhar de
Audrey:
No esperaba encontrar melancolía en los ojos de una gringa. Le decían que todas
eran muy fuertes, muy seguras de sí mismas, muy profesionales, muy puntuales, no
que todas las mexicanas fueran débiles, inseguras, improvisadas y tardonas, no, para
nada. Lo que pasaba era que una mujer que venía a trabajar los sábados tenía que
serlo todo menos melancólica, quizás tierna, amorosa. Eso lo vio claramente
Lisandro en la mirada de la mujer. Tenía una pena, tenía un anhelo. Anhelaba. Eso le
decía la mirada: – Quiero algo que me falta. (Ibid., p. 198)
A falta com a qual se encerra o pensamento de Lisandro é transferível para a
metonimização que se dá no início do discurso que lhe confere a narrativa. Note-se que ao
colocar-se na parte Audrey atributos de um todo em “Le decían que todas eran muy fuertes,
muy seguras de sí, etc.”, o narrado afasta de modo metonímico, pela figura de Lisandro, a
melancolia não apenas de Audrey, mas, por conseguinte, de um todo feminino estadunidense
teoricamente homogêneo em não ser melancólico, o qual se opõe ao mesmo processo
metonímico que se volta para as mexicanas; nesse caso, mesmo a frouxa tentativa de
amenização inserida em “no que todas las mexicanas fueran débiles, inseguras, improvisadas
y tardonas” não dá conta de tirar o peso que recai minimamente sobre uma amplidão da qual é
fácil inferir que, se não todas, várias assim o são, num encaminhamento a um imaginário
176
reforçado pelo peso negativo dos substantivos da parte mexicana do período gramatical
supostamente dedicado a dizer que “no que todas (...) para nada”. Eis, assim, mais um
exemplo, na obra de Fuentes em destaque, da relação de troca entre hiponímia e hiperonímia
como características de especificidades literárias de ênfase e potencialização de elementos
colhidos e re(a)presentados a partir do real vivido, os quais podem coparticipar e contribuir
com a constituição de imaginários.
Toca também em parte dessa contribuição literária e intelectual para a formação de
imaginários sociais o sociólogo e antropólogo social mexicano Roger Bartra. É assim que
começa a compor sua análise sobre o que chama de mito da identidade do mexicano com a
publicação de sua obra La jaula de la melancolía (1987), cujo sugestivo título se apresenta
desde já como um contraponto que sugere, ainda assim, uma ponte de diálogo e
questionamentos levantados para a visão, entendida por muitos estudiosos contemporâneos
como fatalista em certos pontos, esquadrinhada por Octavio Paz em seu El laberinto de la
soledad, de Octavio Paz (1950, 1959). Mas, é em um interessante e posterior artigo seu, “El
método en la jaula: ¿cómo escapar del círculo hermenéutico?” (2000) que Roger Bartra
direciona a possibilidade de compreensão de mitos, aos quais se une também o da identidade
do mexicano, a buscar entendê-los desde “los cambios que sufre este conglomerado de
figuras, ideas, metáforas, fábulas y leyendas a lo largo de la historia occidental” (BARTRA,
2000, p. 74). Ainda sobre o mito da identidade do mexicano, Bartra informa que da espécie de
mapa (de formas não totalmente definidas em La jaula de la melancolía) da evolução que ele
traçou de tal mito, pode-se concluir que
[L]as peculiaridades de este mapa no proceden de un código estructural impreso en
la mente de los mexicanos; los hitos, los meandros, los caminos, las fronteras y las
conexiones se han ido formando gracias a una especie de selección cultural; no en
un proceso determinado por instrucciones preestablecidas en un sistema simbólico
de mensajes. No hay una sustancia fundamental de la identidad. (BARTRA, 2000, p.
76)
Ao mesmo passo que volta a tocar na vinculação entre figuras da intelectualidade
mexicana como Samuel Ramos e Octavio Paz e em sua ação de incidência sobre a
reverberação e propagação do mito da identidade do mexicano (Cf. BARTRA, 2000, p. 75),
no artigo para o qual chamo a atenção Bartra abre também através de seus argumentos vias
para uma melhor compreensão do processo cultural do qual tomaram parte autores como os
citados. É dessa maneira que o autor recomenda interessante caminho ao dizer que “podemos
optar por escaparnos del círculo hermenéutico, para intentar comprender las identidades como
parte de um sistema inconsciente que actúa en los escritores mexicanos sin que ellos se hayan
177
percatado” (BARTRA, 2000, p. 77). Tal argumentação dá margem para algumas observações
que encerrarão o presente tópico. Contudo, dão margem, ainda, para que a partir da
ambivalência irônica desse “sem dar-se conta”, eu possa, enfim, voltar meus argumentos para
as intersecções identitárias tratadas nesse segmento, razão pela qual, expostos os
apontamentos da ficção de Fuentes em confluência com a re(a)presentação de mexicanidades,
volto agora o olhar para o extremo da hifenização de identidades que proponho poderem ser
resgatadas desde a leitura de seu romance. Toco agora desse modo nos traços de chicanidade
ficcionalizados em La frontera de cristal.
Os caracteres que em La frontera apontam para uma aproximação ficcional às linhas
definidoras de uma pretensa identidade chicana respondem pelo nome de José Francisco, um
personagem chicano, apresentado na sétima das subseções narrativas em que está dividido o
último conto “Río Grande, río Bravo”. É interessante, no entanto, como em José Francisco a
tinta principal que lhe é concedida se mostra mais pelo viés do que parece ser, da parte de
Fuentes, mais um domínio maior de (re)conhecimento do valor e força de uma identidade
cultural chicana do que propriamente um amplo conhecimento de identidades chicanas, do
sujeito chicano. Assim, explico que é pela cultura e pela pesquisa e conhecimento literário de
que dispõe Fuentes que ele compõe seu personagem, encarnador de uma, em realidade,
homenagem ao universo chicano.
Já em El espejo enterrado, quando se debruça a tratar do que chama de terceira
hispanidade, Carlos Fuentes afirma que ela é, sobretudo, um fato cultural. E enfoca ainda o
fato de que toda uma civilização foi criada nos EUA com um pulso hispânico (Cf. FUENTES,
[1992] 2010, p. 445-6). O autor, então, complementa seu conhecimento cultural tocando, da
seguinte maneira, na literatura que emerge dessa mescla: “Aquí ha nacido una literatura que
subraya los elementos autobiográficos, la narrativa personal, la memoria de la infancia, el
álbum de fotos familiares” (FUENTES, [1992] 2010, p. 446). De fato, o José Francisco de La
frontera condensa em si uma cisão com a tentativa de encaixe da diferença chicana de um
lado ou outro das pontas mexicana ou estadunidense de nacionalidade. Forçando destacar a
diferença que o personagem representa, o narrador sugere que a presença desse chicano
costumava causar incômodo porque “Traía algo que no podía darse sólo en uno u outro lado
de la frontera, sino en ambos lados” (FUENTES, [1995] 2007, p. 264). E da cisão com o
pensamento de que teria que identificar-se com um aqui ou um lá é que José Francisco chega
a uma certeza bem representativa das convicções ideológicas de toda uma classe intelectual
chicana: “Yo no soy mexicano. Yo no soy gringo. Yo soy chicano. No soy gringo en USA y
178
mexicano en México. Soy chicano en todas partes. No tengo que asimilarme a nada. Tengo mi
propia historia” (FUENTES, [1995] 2007, p. 264).
Mas, estabelecidos os traços identitários de aparente representação da postura de um
todo na parte José Francisco, ele ganha, na descrição narrativa de seus caracteres e seus atos,
ares que se voltam uma vez mais para a homenagem à cultura; em especial, para a literatura
chicana, pois esse personagem chicano do último capítulo é no romance de Fuentes um
escritor que, montado em uma moto Harley-Davidson, levava aos dois lados da fronteira,
além de seus próprios manuscritos, “literatura de los dos lados, para que todos se conocieran
mejor (...), para que todos se quisieran un poquito más, para que hubiera “un nosotros” de los
dos lados de la frontera...” (FUENTES, [1995] 2007, p. 266-7 – grifo do texto). Assim é que
em uma dessas suas jornadas, diante de uma manifestação ativista do lado mexicano da
fronteira, José Francisco se vê interpelado por agentes fronteiriços de ambos os lados. É
quando, procurando por algo que incriminasse ou ligasse o chicano à manifestação, os
policiais vasculham suas mochilas e atiram ao ar todos os seus papéis, os quais
[S]e iban volando nomás del puente al cielo gringo, del puente al cielo mexicano, el
poema de Ríos, el cuento de Cisneros, el ensayo de Nericio, las páginas de Siller, el
manuscrito de Cortazar, las notas de Garay, el diario de Aguilar Melantzón, los
desiertos de Gardea, las mariposas de Alurista, los zorzales de Denise Chávez, los
gorriones de Carlos Nicolás Flores, las abejas de Rogelio Gómez, los milenios de
Cornejo (Ibid., p. 267 – grifo meu).
Dessa extensa e interessante lista que salta dos papéis dispersados do personagem de
Fuentes, o nome que destaquei se refere ao professor universitário, promotor cultural e
escritor chicano Ricardo Aguilar Melantzón (1947-2004). Aparentemente apenas mais um dos
nomes citados das literaturas de ambos os lados, a figura de Melantzón é, na verdade,
homenageada e retomada para dar vez à representação do chicano na ficção de La frontera.
Ou seja, José Francisco representa a busca fuentesiana por compor um personagem que
encarnasse o espírito de atitude chicana pelo autor encontrado na relevante figura de Ricardo
Aguilar.
Tal observação encontra respaldo em importantes nomes da cena literária da região de
fronteira México-EUA. O premiado escritor e fomentador de oficinas literárias Joaquín Bestar
Vásquez (2001, p. 92) afirma inclusive que “El cuento ‘Puente negro’, incluido en Aurelia,
inspiró a Fuentes para escribir parte de La frontera de cristal”, opinião compartilhada também
pelo Doutor chihuahense José Manuel García-García (Cf.: 2004, p. 10)87, Professor Associado
87
Aurelia (1990) é um livro de Ricardo Aguilar no qual oito contos estão interligados para narrar histórias de
angústia, morte e paixões desiludidas desenroladas ao redor da fronteira e dos bosques e desertos de Chihuahua
(México) (Cf. GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 10). “Puente Negro” é um dos contos da obra e nele o narrador
179
da Universidade do Estado do Novo México (EUA), quem, em ensaio dedicado à memória de
Ricardo Aguilar, aclara ainda que
Ricardo vivía en Ciudad Juárez, y tenía que cruzar todos los días a El Paso (…). Por
13 años cumplió su rutinario viaje, su vuelo en moto, mitificado por Carlos Fuentes
en la novela La frontera de cristal, donde Ricardo es un personaje que cruza el
puente y va dispersando libros, folletos e posters por la ciudad, anunciando eventos
culturales y propuestas de acercamiento entre los escritores chicanos y los escritores
del lado mexicano (GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 4).
As propostas de aproximação tocadas por García-García abrangem um momento de
seu discurso no qual o autor toca em Ricardo Aguilar já mitificado, conforme seus termos, no
personagem fuentesiano José Francisco. Mas, o reflexo anterior se deixa transparecer mais
ainda quando o mesmo autor agradece os feitos da pessoa cujas ações de fato parecem ter
incidido sobre o romance de Fuentes:
Por Ricardo, los aquellos chavos de la Generación de Nod juarense, conocimos a
Elena Poniatowska, Carlos Monsiváis, Carlos Fuentes, Los Taibo, José Agustín y
otros más. Los chicanos fueron a juaritos a leer sus poemas, y los juarenses fueron a
El Paso o Albuquerque a leer los suyos, apoyados siempre por RAM 88 promotor
cultural. (GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 6 – grifo meu)
O fato de que conste o nome de Carlos Fuentes à lista das literaturas que eram
conduzidas aos dois lados da fronteira por Ricardo Aguilar é indicador de uma reciprocidade
de gratidão que em Fuentes se vê transfigurada na representação ficcional da pessoa
Melantzón na personagem José Francisco. É assim que José Francisco, mais do que trazer em
sua representação uma aproximação a chicanidades, ao multifacetado prisma de identidades
chicanas ao longo das muitas fronteiras que separam e unem México e EUA, condensa em
verdade algo que mais se aproxima de representar uma identidade literária chicana, ou
aspectos das linhas de pensamento (e comportamento) que ainda hoje a conformam, sempre
com novas adequações, contribuições e discussões.
O personagem José Francisco em La frontera de cristal condensa, assim, mais uma
ideologia intelectual do que um sentimento popular homogêneo. As posições dele para com as
ações de empurre “indireto” do lado mexicano e de contenção entre franca, aberta, mas
também dissimulada, do lado estadunidense, podem ser enxergadas de modo mais agudo
quando, diante da manifestação por trabalho que assistia e ante ao voo de seus escritos
provocado por agentes de ambos os lados que o posicionam como um sujeito entre-lugares, a
recorda sua juventude em Ciudad Juárez (México) enquanto espera seu turno na ponte que se usa para cruzar-se
a El Paso (EUA) (Cf. GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 11). A julgar pela recuperação e ambientação ficcional em
La frontera de cristal tanto da figura do motoqueiro-escritor Ricardo Aguilar quanto da ponte que separa México
e EUA entre Juárez e El Paso, ambos os autores parecem ter razão em buscar e encontrar raízes de inspiração de
parte de La frontera na obra e na pessoa de Melantzón.
88
Ricardo Aguilar Melantzón.
180
narrativa conta que “José Francisco lanzó un grito de victoria que rompió para siempre el
cristal de la frontera...” (FUENTES, [1995] 2007, p. 268).
Nesse ato de escrita simbólica retorna o cristal, dessa vez como metáfora
representativa de algo demasiado frágil a separar as relações de alteridade tripartidas pela
fronteira, deixando-se subjazer a representação de um ideário chicano de união contraposto à
política de separação de ambos Estados-nação, os Estados Unidos Mexicanos e os Estados
Unidos da América do Norte. A mesma “linha de pensamento” ficcionalizada pela linguagem
literária de Fuentes se vê refletida na leitura anterior de Ricardo Aguilar Melantzón em seu
primeiro livro de contos Madreselvas em flor (1987), onde se extrai a opinião de seu autor
quando sobre a fronteira Mex-USA ele se posiciona da seguinte maneira: “la realidad de esta
frontera no es la separación artificial sino la unión a pesar de los gobiernos” (AGUILAR
MELANTZÓN, 1987, s/p.).
No entanto, se a chicanidade da ponta de intersecções identitárias de La frontera de
cristal está mais próxima de sua manifestação como pensamento e atitude de uma
intelectualidade literária chicana aflorada na recuperação mimética do personagem José
Franciso de “Río Grande, río Bravo”, o mesmo não se dá de forma tão patente em “El
despojo”, terceiro capítulo da obra. É ali que “mexicanidades” e “chicanidades” se diluem,
atravessam-se e interpõem-se diante do que seriam caracteres representativos de angloamericanidades, sendo, com efeito, ao redor do prefixo “anglo” que girarão, no conto, os
conjuntos de pretensa identificação hispano-americana, em tom recuperado de rivalidade
histórica.
O verbete “anglo” empresta suas definições ao e aos que provêm da Inglaterra, ao
natural ou habitante da Inglaterra, por remeter-se à parte da origem de suas gentes junto aos
povos anglo-germânicos. Por conseguinte, tendo sido os Estados Unidos colonizados por essa
mesma Inglaterra, cujas origens étnicas remontam a povos que difundiam e defendiam um
pretenso purismo essencialista branco de suas ascendências e procedência, é comum que
ainda hoje se refira ao estadunidense norte-americano branco como anglo, anglo-americano
ou anglo-saxão. Bastante generalizador, entretanto, o termo é comumente utilizado no
discurso para referir-se a uma suposta totalidade branca, mesmo àqueles que passam longe de
reclamar para si qualquer purismo racial branco (inclusive descendentes de outras migrações
europeias que não a colonizadora inglesa), em oposição ao questionável título de minorias
para grupos étnicos outros cuja nacionalidade estadunidense recai o mais das vezes sob os
epítetos normalmente hifenizados, e não menos generalizadores, de afro-americanos, hispano-
181
americanos (também: latinos, hispanos, hispânicos, nuyoricans, chicanos etc.)89, asiáticoamericanos (asian americans) etc.
Em La frontera de cristal, o elemento composicional “anglo” quando não assim
referido aparecerá sob os sinônimos “ianque”, “gringo” ou mesmo “anglo-saxão”; mas, à
guisa de toda uma rivalidade que remontará aos tempos da grande perda de territórios
mexicanos para os EUA em meados do século XIX, evocando em sua ficção uma visão
recuperada do exacerbado nacionalismo mexicano pós-Revolução de 1910 que engloba esse
“anglo” como uma totalidade inimiga em solo invadido, roubado e tomado à força. E é em “El
despojo” que essa aversão fundada em ranço e num passado de disputas territoriais e
consequentes choques culturais se vê problematizada, produzindo uma grande imagem para o
conto a partir do uso de mais uma metáfora ampla e aproximando-se a imaginários através da
metonímia.
Em princípio, com humor o narrador coiote de Fuentes toca na rivalidade histórica
retomada pelo divagar de Dionisio “Baco” Rangel, um chef de cozinha mexicano de bastante
sucesso nos Estados Unidos, êxito, porém, que o remordia porque, conforme nos apresenta a
narrativa:
Dionisio alegaba que él no era anti-yanqui (…), por más que no hubiese niño nacido
en México que no supiera que los gringos, en el siglo XIX, nos despojaron de la
mitad de nuestro territorio, California, Utah, Nevada, Colorado, Arizona, Nuevo
México y Texas. La generosidad de México, acostumbraba decir Dionisio, es que no
guardaba rencor por este terrible despojo, aunque sí memoria. En cambio, los
gringos ni se acordaban de esa guerra, ni sabían que era injusta. Dionisio los llamaba
"los Estados Unidos de Amnesia". Con humor, pensaba a veces en la ironía histórica
en virtud de la cual México perdió todos esos territorios en 1848 por culpa del
abandono, el desinterés y la poca población. Ahora (sonreía pícaramente el elegante,
bien vestido, distinguido y plateado crítico) estábamos en el trance de recuperar la
patria perdida gracias a lo que podría llamarse el imperialismo cromosomático de
México. (FUENTES, [1995] 2007, p. 64-5)
Entretanto, a ironia narrada de Dionisio começa a ganhar tons mais dramáticos quando
o chef mexicano leva seu divagar à contemplação, iniciando a narrativa a plantar sua metáfora
ampla ao metonimizar a ideia base dessa metáfora em um trecho no qual se refere ao modo de
vida estadunidense da seguinte maneira:
Abundancia. Sociedad de la abundancia. Dionisio Rangel quiere ser muy franco y
admitir ante ustedes que él no es un asceta ni un moralista. (…) Pero su pendiente
culinaria, tan exquisita, tiene otra ladera grosera, posesiva, de la cual el pobre crítico
de la gastronomía no se siente culpable, pues es apena – les ruega que lo
comprendan – víctima pasiva de la sociedad de consumo norteamericana. (Ibid.,
p. 69 – grifo meu)
89
Para um maior aprofundamento da questão, remeto o leitor para a obra de referência Nosotros in USA, da
Professora Doutora Sonia Torres (2001).
182
O fragmento acima, no entanto, não seria por si só, apesar de conter sentenças
hiperonímicas que supõem partes representadas como se um todo fossem, suficiente para se
aproximar de imaginários caso a verdadeira parte, a imagem à qual se destina a metonímia
nele contida não fosse, após variadas digressões, enfim revelada em teor representativo de
metáfora. Dessa maneira, o narrador conta que curiosidades próprias do tédio (embora todas
as atividades que o trabalho lhe proporcionava) vivido por ele como homem de meia-idade
[C]ondujeron a Dionisio “Baco” Rangel a su más reciente manera de
entretenimiento en California. Pasó semanas sentado frente a esos lugares que
ponían a prueba su paciencia y su buen gusto – los MacDonalds, Kentucky Fried
Chicken, Pizza Hut y, abominación de abominaciones, Taco Bell – con el propósito
de contar a los gordos (y a las gordas) que entraban y salían de esas catedrales del
mal comer. Llegó armado de estadísticas. Hay cuarenta millones de personas obesas
en los EEUU, más que en cualquier otro país del mundo. Gordos, pero en serio:
masas de color de rosa, almas perdidas detrás de rollos y más rollos de carne, hasta
hacer perdedizas, también, características como los ojos, la nariz, la boca, el sexo
mismo. Dionisio veía pasar a una gorda de trescientos cincuenta libras de peso y se
preguntaba dónde quedaría la veta de su placer, cómo se llegaría, entre las múltiples
lonjas de sus muslos y sus nalgas, al santoyo de su libido. (FUENTES, [1995] 2007,
p. 74)
Se antes, a metonimização proposta por Fuentes necessitava de uma parte mais
específica, ela encontra na figura representativa dos gordos e gordas que entravam e saíam das
catedrais do mal comer a completude, da imagem proposta, em uma metáfora que, de igual
maneira, só se completa ligando sua parte destacada à generalização anterior contida em
“Sociedade da abundância”. Contudo, a mexicanidade suposta na aversão, no ranço e em um
rancor histórico e a hipotética chicanidade de haver-se integrado e assimilado em “solo
gringo” são problematizadas de maneira bastante peculiar e inteligente na continuidade de
desenvolvimento da metáfora ampla que atravessa e toma conta do capítulo, quando o
narrador conta que, após tanta observação:
[S]in embargo, perversa, inexplicablemente, Dionisio "Baco" Rangel, al ver el paso
multitudinario de las gordas, empezó a sentir una comezón sexual comparable a la
de la primera excitación, dulce, imprevisible, alarmante, inexplicable, de los trece
años. No, no la primera masturbación, hecho ya volitivo y racional, sino el florecer
primero del sexo, asombroso, impensable antes de que sucediera... El primer semen
derramado por el joven que en ese momento era siempre el primer hombre, Adán,
nada, nadando en semen.
Esta intuición perturbó profundamente al solitario e itinerante gourmet. (Ibid., p. 75)
Esse incômodo que lhe causa o súbito desejo, a súbita atração pelo que antes lhe era
alvo de escárnio e rechaço faz com que se revelem em Dionisio outras supostas
mexicanidades, outras supostas características distintivas da identidade do mexicano: o medo,
e a fuga. Para não se entregar e integrar à sociedade da abundância, Dionisio troca seu
inesperado desejo sexual pelo alheio pelo desejo de comer em um bom restaurante, e ali
183
sucede a representação de situações imaginárias que eclodem na imaginação furtiva da figura
de um gênio que lhe concederia o desejo de uma mulher para cada prato pedido pelo chef
mexicano. Ocorre que as mulheres imaginárias que surgem servem para colocar uma série de
convicções, entre elas algumas identitárias, e pré-conceitos de “Baco” Rangel em xeque,
sendo a última delas, outra mulher descrita como imensamente gorda (a imagem repetida,
ainda que aparentemente contestada pela ironia da situação criada pela ficção), a qual provoca
nova fuga do chef, que decide ir embora do restaurante.
É essa fuga a qual outra sucederá, quando, desesperado, Dionisio vê seu México
estereotipado em supostas roupas típicas colocadas em um mexicano dentro da vitrine de uma
loja da American Express. A visão então desencadeia uma série de eventos que culminam
com a condução à força do “mexicano típico” até a fronteira de volta ao México, onde
Dionisio le dijo a su compañero, todo, despójate de todo, despójate de tu ropa, como
lo hago yo, ve regándole todo por el desierto, vamos de regreso a México, no nos
llevamos ni una sola cosa gringa, ni una sola, mi hermano, mi semejante, vamos
encuerados de vuelta a la patria, ya se divisa la frontera, abre bien los ojos, ¿ves,
sientes, hueles, saboreas?
Desde la frontera entraba un fuerte olor de comida mexicana, imparable.
(FUENTES, [1995] 2007, p. 95 – grifo meu)
Dessa forma, veem-se tratadas, ficcionalizadas e problematizadas no conto
comportamentos, atitudes que buscam recuperar pela ficção supostas mexicanidades e
hipotéticas ações denotativas, demonstrativas de, para além do prisma de identidade literária
representada no José Francisco de “Río grande, río Bravo”, chicanidades, potencializadas na
repetição da metáfora para a grandiosidade sedutora dos EUA na figura metonímica das
personagens descritas como gordas imensas e que seriam típicas personificações da sociedade
de abundância estadunidense. O típico retorna também na figura do mexicano que, junto com
Dionisio, precisa ser orientado de volta ao seu México pela fronteira, despojando-se ambos de
tudo o que lhes fora gringo, incluindo aí seus desejos.
Às “mex-(anglo)-chicanidades” assim as expressei porque em La frontera
mexicanidades e chicanidades são definidas na representação da obra, mas não se diluem
totalmente, nem por isso se completando, haja vista que no romance de Carlos Fuentes
orbitam em forma de imagens literárias ao redor de imagens literárias outras de angloamericanidades, num imaginário que supõe o elemento anglo generalizado, sobretudo em “El
despojo”, como alteridade inimiga gringa, ianque.
184
4 APROXIMAÇÕES FRONTEIRIÇAS: SIMILARIDADES E DIFERENÇAS
O presente capítulo tem por objetivo dar passo à análise crítica em conjunto dos
romances trabalhados em separado nos dois capítulos que o antecederam. Tomo por
aproximação o entendimento de que duas obras podem avizinhar-se, por assim dizer, no
processo de comparação que se decida fazer entre elas, podendo resultar desse procedimento
do comparatista a evidência tanto de similaridades quanto de diferenças.
Por haver sido o primeiro capítulo da presente tese um segmento todo voltado para
apresentar as linhas gerais teóricas que viriam a ser desenvolvidas no corpo do trabalho, pude,
naquele momento, relacionar o raciocínio teórico em que me pauto com ambos os romances
em tela. Depois, dadas às particularidades de cada obra, cada qual mereceu um determinado
encadeamento teórico específico, algo que, contudo, não afasta a possibilidade de que o
direcionamento justaposto no capítulo inicial retorne aqui de forma mais direta e compactada.
Ao contrário do que sucedeu no primeiro capítulo, entretanto, a comparação retomada se verá
ilustrada por exemplificações as quais, também em justaposição, visam tornar mais evidentes
as aproximações até aqui apenas vislumbradas.
4.1 Da literariedade em ambas
Literaturnost (em português, literaturidade ou literariedade) é um termo cunhado pelo
formalista russo Roman Jakobson para contemplar em sua explicação “aquilo que torna
determinada obra uma obra literária” (JAKOBSON, [1919] 1921, p.11), dentro da concepção
formalista de estabelecer a tese a partir da qual no campo dos estudos literários deveria ser
dada maior atenção ao estudo dos traços distintivos da obra de literatura (Cf.
EIKHENBAUM, [1920] 1973, p.15).
Não obstante, a literariedade não é um aspecto isolado na abordagem desses então
jovens estudiosos russos sobre a importância de um olhar mais atento para as especificidades
do texto literário. A noção de literariedade se adere a uma série de outras noções às quais se
vê de algum modo atrelada. Dentre elas, está a noção de forma, que terminaria por emprestar
parte de sua terminologia para a maneira como o movimento “formalismo russo” passaria a
ser denominado, muitas das vezes de modo depreciativo90.
Literariedade e forma podem já se ver interligadas desde as primeiras concepções
formalistas, donde sobressai toda uma busca por enfatizar um olhar não necessariamente mais
90
Remeto o leitor para o tópico 1.1 da presente tese, onde procurei dar maior ênfase à história de formação do
grupo.
185
voltado para os elementos constituintes da obra de literatura, mas, principalmente, para a
utilização particular que deles se faz (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13), sendo essa de
fato a ação específica da literaturnost, ou, ainda melhor, o ato que possibilitará que se perceba
a literaturidade da obra. Nesse aspecto, torna-se bastante interessante a noção de forma que
sobressai dos pressupostos formalistas, os quais chamam a atenção para que seja ela, a forma,
vista não mais como mero invólucro para seu conteúdo; mas, antes, como uma noção que traz
em si uma integridade dinâmica. Dessa maneira, tem-se que dito caráter dinâmico não
permitiria o “engessamento” da forma, permitindo, sim, o seu próprio desenvolvimento, o
qual se dá pela ligação de seus elementos constituintes através de um movimento dinâmico de
correlação e integração internas (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13). Essa possibilidade
de dinamismo interior concede à forma um caráter de literariedade, porquanto uma das
características próprias da literatura.
Tal é o caso das obras em destaque no presente trabalho, nas quais o elemento
constitutivo conto mantém a correlação e a integração características do gênero que
representa, ao mesmo passo que, pela percepção de elos narrativos introduzidos e pouco a
pouco repetidos, empresta, assim, sutilmente, a mesma correlação e integração que o
segmento romanesco capítulo concede à trama e ao drama preservados e próprios da forma,
do gênero romance. Ocorrida assim de maneira tão peculiar a relação forma/fundo (conteúdo,
elementos constituintes) nos romances aqui em evidência, a ação compositiva se verifica
como um caráter de literariedade que, em verdade, só se completa em seu resultado: a ação
provocada de estranhamento, um efeito de estranheza.
A noção de estranhamento deriva do neologismo ostranenie, introduzido à língua
russa por Viktor Chklovski com vistas a dar conta da característica de desautomatização, de
singularização a qual, segundo o formalista, é própria do objeto literário e da linguagem
literária que implementa, provocando no leitor um efeito receptivo de estranheza, saindo do
lugar comumente dedicado à percepção usual dos objetos para uma esfera de percepção
inabitual, diferente, surpreendente. Nesse sentido, o estranhamento levado ao nível de caráter
estético “é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo” (CHKLOVSKI,
[1917] 1973, p. 54).
O estranhamento assim intimamente ligado à noção de literariedade revela poder
operar ao nível do estético. Desse modo, podemos dizer que em ambas as obras ora em
verificação sua literariedade é percebida na ação de seus estranhamentos, de seu efeito de
estranheza por sobre o leitor, surtindo desse efeito a condução possível do receptor (sem que
talvez disso ele se dê conta) ao contato com imaginários. É mister, pois, tocar no exame
186
desses estranhamentos em ação em cada um dos romances colhidos para corpus do presente
trabalho de doutoramento.
O primeiro efeito de estranheza verificado se relaciona com o já realçado dinamismo
que ambas as obras empreendem à forma romance ao interligarem contos que podem ser
mesmo lidos e compreendidos de maneira independente, mas que, por caminhos semelhantes
em cada um dos romances, veem-se unidos como capítulos de uma trama cujo elo dramático
encontra sua explicação em algum ou alguns momentos da narrativa, concedendo-lhes um
todo romanesco.
Em ...y no se lo tragó la tierra (1971) o elo romanesco concedido à obra não surge de
uma intenção clara e imediata de seu autor Tomás Rivera, ou ao menos não é algo do qual ele
se aperceba tão facilmente. De fato, em carta enviada a um dos editores do Prêmio Quinto
Sol, do qual se sagraria vencedor com a subsequente publicação de sua obra pela editorial de
mesmo nome, Tomás Rivera assim escreve: “Estimado Sr. Romano: Adjunto encuentre mi
manuscrito de cuentos, Debajo de la casa y otros cuentos” (RIVERA, [1970] 2012, p. 250 –
tradução de Gustavo Buenrostro). Um pouco mais adiante e, na mesma correspondência,
Rivera acrescenta:
Hay un total de 13 historias. Entre cada una hay un diálogo o situación que debería
aparecer en cursivas. Estos son cuadros que incluí entre las historias para darle a la
totalidad del trabajo una cohesión que consideré necesaria. Sin embargo, pudiese
excluirlas. (Ibid.)
As treze histórias referidas terminariam tornando-se catorze até a publicação da obra,
mas, perceba-se que mesmo evidenciando ter enviado ao concurso de Quinto Sol
primeiramente um amarrado de contos, Rivera demonstra ter também certa noção de que
havia elos narrativos entre suas histórias, com a presença de pequenas estampas de abertura
que, conforme o autor já percebia, apontavam para a existência de uma espécie de todo
coesivo em seus escritos enviados.
Ao contrário do que sugere Tomás Rivera, seus quadros coesivos não são excluídos
pela editora, perdendo suas estampas apenas a grafia em itálico, emprestada para uma espécie
de texto-rio que se destaca, mescla-se e avança sobre a narrativa de “Debajo de la casa”,
aquele que passaria a ser o último conto do romance, revelando-se tal trecho como mais um
elemento coesivo o qual aponta ser o seu narrador a mesma presença narrativa que
protagoniza e convoca outras vozes narrativas a falar no drama de rememoração excêntrica
que recupera doze meses de um ano de migração familiar pelas terras do agronegócio em solo
estadunidense, durante parte da infância do protagonista.
187
Nesse trecho rio que avança o último conto adentro retornam à narrativa, como partes
componentes de uma trama principal, personagens, nomes e situações colocadas nos contos e
estampas anteriores de uma maneira que se fazia vê-los como elementos composicionais
apenas das tramas menores em que estavam inseridos nos pequenos contos onde cada um se
fez presente. Assim, em ...y no se lo tragó la tierra, apesar da conexão de temas que de algum
modo interligam alguns contos por espécies de eixes temáticos, é somente com a recuperação
narrativa (levada a cabo na última história) de situações e personagens dispostos
anteriormente na obra que contos deixam de ser apenas contos para serem também capítulos
de um romance que obedece a uma trama, a um drama fronteiriço maior, porquanto identitário
e cultural, representativo da força e da luta do povo chicano in USA refletido no drama excêntrico de seu protagonista.
Em El espejo enterrado ([1992] 2010), de Carlos Fuentes, o nome do chicano Tomás
Rivera e de seu romance ...y no se lo tragó la tierra são tocados em meio a uma série de
outros autores citados como parte representante de toda uma literatura de origem hispanoamericana nascida nos Estados Unidos da América do Norte (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p.
446). Esse feito, junto com o projeto pessoal fuentesiano de abordagem intelectual a respeito
do que ele chama de três hispanidades (dentre as quais a terceira seria a norte-americana),
chama a atenção para o interesse de Fuentes também na literatura chicana e, por conseguinte,
na leitura de seus autores e estudiosos mais destacados (muitos conhecidos em conferências
ali mesmo nos EUA). Esse conhecimento e reconhecimento em forma de citação pressupõe
uma leitura que, no caso de Tomás Rivera e seu ...y no se lo tragó la tierra, parece agir sobre
o dinamismo que, desta feita, Carlos Fuentes imprime à forma romance em seu La frontera de
cristal (1995), obra romanesca composta em nove contos.
Se em ...y no se lo tragó la tierra o termo cuentos, por decisão conjunta de autor e
editores, desaparece da versão final que chega ao público em 1971, em La frontera de cristal
o estranhamento que pode causar o atrelamento conto/romance, quiçá também por outra
decisão conjunta, parece querer saltar aos olhos do receptor através do sugestivo e chamativo
subtítulo que acompanhou as primeiras edições da obra: una novela en nueve cuentos.
Imiscuindo-se sobre uma temática fronteiriça semelhante, a das relações de alteridade
que se levantam no entorno fronteiriço que compartem México e EUA, a integridade
dinâmica que Fuentes concede à forma romance em sua obra, porém, ocorre de maneira um
pouco distinta à orquestrada por Tomás Rivera. De fato, os contos de La frontera de cristal
também podem ser lidos e apreendidos em uma primeira totalidade própria de aparente total
independência, podendo mesmo serem compreendidos de modo independente. Porém, se em
188
...y no se lo tragó a coesão romanesca com efeito se dá na recuperação de situações e
personagens principais no último conto da obra, em La frontera, mesmo na suposta
autonomia que finge dar aos contos, o romance vai pouco a pouco, aqui e ali, trazendo de
volta situações, espacializações e personagens que importarão sobremaneira ao drama
principal que percorre a vida de diferentes componentes de uma família mexicana, os Barroso.
As histórias dos componentes dessa família apresentam sempre alguma interligação com seu
membro em maior evidência, don Leonardo Barroso, um poderoso empresário mexicano com
influentes relações também nos EUA.
Ao redor de Leonardo Barroso também terminam por estarem coligadas as histórias de
alguns outros personagens, entrelaçadas pela narrativa ao longo de diferentes contos do
romance, em uma interligação cujo ápice se dá no último capítulo da trama, o conto “Río
Grande, río Bravo”. Ali, o ponto culminante é o fim trágico destinado à figura de Leonardo
Barroso. Merece destaque, ainda, o atravessamento promovido nesse último capítulo de um
texto-rio também escrito em cursivas, qual no romance de Tomás Rivera de 1971. Entretanto,
enquanto em Rivera o texto-rio cruza o último conto interligando-o estritamente aos
personagens e situações da trama engendrada no romance, em Fuentes o texto-rio, como parte
da atmosfera de ranço histórico que perpassa o enredo, traz primeiro uma espécie de ensaio
histórico que recupera para o leitor nomes, lugares e momentos integrantes da história do
México, antes, durante e depois de seu encontrazo com Espanha e Estados Unidos. Apenas
depois, esse trecho rio fuentesiano trará de volta os personagens que já haviam merecido
realce pela narrativa, reunindo-os em novas situações as quais, tendo o final dramático do
senhor Leonardo Barroso como eixo giratório, encaminham a trama para seu fim.
Verificado esse primeiro ponto de estranhamento (quase) em comum entre as obras, há
a observação de que tal dinamismo incide, por consequência, em outro aspecto que empresta
seu caráter à literariedade desses romances: o princípio de construção. Destacado pelo
formalista Yuri Tynianov (1894-1943), o princípio de construção, coincidindo com o
dinamismo para a forma, também chamado por ele de princípio de formação, traz como uma
de suas características marcantes o processo de deformação através do qual certos fatores
formadores da obra literária são promovidos em detrimento de outros. Desse modo, faria parte
da interação dinâmica da forma a evolução (desconsiderando o tempo) e consequente
renovação dos liames entre um fator subordinante de construção e os fatores a ele
subordinados. Tal evolução da relação de subordinação não ocorre sem o conflito próprio que
responde pela interação dinâmica da forma, sendo preponderante para a sobrevivência do fato
artístico, para que o receptor possa experimentar a arte que, pela renovação do conflito entre
189
suas partes integrantes, desautomatiza a percepção acostumada ao real vivido (Cf.
TYNIANOV, [1923] 1973, p. 101-2-3).
Isto posto, tem-se que em ...y no se lo tragó la tierra e em La frontera de cristal o
elemento subordinante é a forma romance, a qual estabelece, na dúvida de relação de
dependência dos contos que a compõem, conflituosa interação com os elementos a ela
subordinados, seus capítulos. Passa a existir a promoção de um fator no elemento
subordinante, sendo tal fator a concepção de romances entrecortados, fragmentados, os quais
deformam o elemento subordinado mais evidente, o fator construtivo tido como principal em
um romance: o capítulo. Assim, os contos que dão forma às duas obras em relevo,
deformados na desestabilização da certeza de diferença entre o gênero conto e o segmento
romanesco capítulo, surgem como pontos integrantes de uma interação que, da maneira como
é disposta, concede ao leitor/receptor, pelo estranhamento que causa, pela surpresa de uma
maneira não habitual de se contar um romance, uma experimentação distinta para a arte
literária, sendo esta mais uma das características que aproxima a literariedade nos e dos
romances ora abordados.
Um terceiro estranhamento a evidenciar a literariedade em ambas as obras tem a ver
com a linguagem literária que implementam. Sobre a linguagem na literatura, Viktor
Chklovski, em seu artigo de 1917 “A arte como procedimento”, retorna a Aristóteles ao
relembrar que, segundo o filósofo grego, a língua literária deve trazer em si um caráter de
estranho, algo que venha a surpreender seu leitor. E completa seu argumento dizendo que essa
língua91 “na prática, é frequentemente uma língua estrangeira” (CHKLOVSKI, [1917] 1973,
p. 54). Para continuar sua argumentação, Chklovski cita exemplos que vão desde a inclusão
surpreendente de linguagem popular no estilo literário de Pushkin até a influência da língua
búlgara antigo sobre a língua literária russa de seu tempo, com a subsequente e interessante
ação dessa de volta à linguagem popular, reintroduzindo a esta muito dos dialetos recuperados
anteriormente pela própria ação da literatura russa.
91
Língua e linguagem poética aqui e em Aristóteles englobam também a prosa. Um pouco mais adiante, porém,
mais próximo ao fim de seu artigo, Chklovski busca diferenciá-las algo mais, especialmente no que diz respeito
ao caráter de surpreendente. Nesse momento, o formalista, ao tocar na linguagem prosaica das conversações,
aborda seu ritmo como fator “automatizante”. O ritmo poético, entretanto, compreenderia um ritmo estético no
qual o ritmo prosaico é constantemente violado. No entanto, ao referir-se a esse ritmo prosaico “automatizante”,
Chklovski está fazendo menção à prosa conversacional quotidiana, suscitando separá-la da arte, onde englobada
estaria a linguagem literária tanto escrita em prosa quanto em poesia. Há que se tocar, ainda, no adendo para o
qual chama atenção o autor quando ele observa que se a violação a que se refere vir a tornar-se regra constante
ela perderá força como procedimento artístico (Cf. CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 56), algo que, no tocante ao
tema de minha tese, remete-nos a pensar na perda de ação e influência de obras (que nesse círculo de tornaremse regra venham a cair) sobre a participação em (e na formação de) imaginários.
190
Aquilo que indica correspondência com o acima exposto é o fato de que em ...y no se
lo tragó e La frontera a linguagem popular que seus autores levam a suas obras literárias é
essa língua “estrangeira” e surpreendente a conceder caráter de estranho, a causar
estranhamento e emprestar seu tom de literariedade aos romances doa quais aqui se trata. E se
temos em Boris Eikhenbaum ([1925] 1973, p. 13 – grifo do texto) a atenção voltada para o
feito de que muito dos preceitos formalistas levantavam em seus estudos que “os fatos
artísticos testemunhavam que a differentia specifica da arte não se exprimia através dos
elementos que constituem a obra, mas através da utilização particular que se faz deles”,
destaco que em Tomás Rivera e Carlos Fuentes o surpreendente não está no simples uso de
linguagem popular em seus romances; mas, antes sim, na maneira como o fazem; ou seja, no
uso literário, na potencialização literária que a essa captação concedem.
O trato que em Fuentes se dá ao elemento constituinte linguagem popular tem a ver
com a narratividade imposta em seu romance. Em La frontera de cristal, o narrador eleito por
Fuentes empreende uma espécie de narratividade coiote, com destaque para a busca de
convencimento, de apanhamento do leitor; demonstrando para tanto, inclusive, fluência nos
mais variados registros linguísticos, dentre os quais está o popular. O que surpreende, pois, é
que a verbosidade desse narrador fuentesiano não é repetitiva ou mesmo enfadonha,
concretizando-se em um hábil uso de justaposição de registros sem que se perca fluidez
narrativa.
Assim é que mesmo toda uma linguagem de rebuscado teor poético e de evocação
barroca usada, por exemplo, no primeiro capítulo da obra, o conto “La capitalina”, não serve
de impeditivo para que se possa fazer uso de termos e frases de caráter tão popular como:
“decir ni mú”, para expressar silêncio; “nomás”, para apenas; “vieja”, para parceira; “de a tiro
nacas”, para expressar aparência de provincianismo nas maneiras das mulheres nortenhas do
México; “chorcha de las cuatitas”, para amigas de uma mesma origem reunidas em conversa;
“ni caso”, para atenção não dada; “chueco”, para defeito; “cabrón”, para safado. Justapõe-se,
ainda, a outros tons da narração, a inserção de mexicanismos linguísticos como: “chilango(a),
para os originários da capital Cidade do México; “nacos”, para designar o estereótipo do
mexicano que, por seu comportamento e modos de vestir se aproxima da visão depreciativa
do indígena enquanto sujeito iletrado e ignorante92; “ni que la chingada”, para enfatizar
contrariedade; “pinche”, para pessoa que não agrada; “güeritos”, para crianças loiras;
“güevón”, para buscar imitar na grafia uma pronúncia para “huevón”; etc. Há também a
92
Deriva de alusão pejorativa ao povo indígena totonaco, que viveu nos arredores da Cidade do México no início
do século XIX.
191
necessária inclusão de “mechicanismos” representados pelo “espanglês” próprio das relações
de alteridade fronteiriças mexicano-estadunidenses, presente em interposições oracionais
como “en el high school”, “Te irá mejor, boy” ou mesmo “You’re one tough hombre”. O fato
é que esse aspecto mais popular da linguagem se vê potencializado pela estratégia narrativoliterária de justaposição desses registros a outros de aparência mais padrão, emprestando ao
todo narrativo toda uma fluidez que tende a atrair o leitor pelo desautomatismo do ritmo
orquestrado por meio de verdadeiros fraseos envolvedores.
Já em Tomás Rivera, o uso de linguagem popular demanda de um projeto ainda maior
desse autor ligado às demandas dos movimentos político-ideológicos dos quais fizeram parte
também os chicanos dentro da luta pelos direitos civis que arrebatou os EUA entre o final dos
anos de 1960 e o início dos de 1970. A adesão a esse projeto maior por parte do autor é,
inclusive, tocada por Gustavo Buenrostro em sua introdução para os anexos da edição
argentina de ...y no se lo tragó la tierra. Segundo Buenrostro (2012, p. 192 – grifo do texto),
“Para el mismo Rivera, el éxito del movimiento chicano sería medido de acuerdo al nivel de
emancipación cultural logrado”. Buenrostro completa seu raciocínio, citando o próprio
Rivera, que como alcance possível para sua obra propunha através de ...y no se lo tragó la
tierra “destruir los estereotipos que nos habían adjudicado; también había otro propósito:
crear por medio del bilingüismo y pachuquismos, nuestro propio caló; ir hacia nuestra propia
gente y documentarnos aquí” (RIVERA [1979, s/p] apud BUENROSTRO, 2012, p. 192).
A “documentação” a que se propõe Rivera adentra seu romance como uma linguagem
literária elaborada a partir da noção de pertencimento que lhe produzia a língua que mais lhe
era familiar. Isso pode mesmo ser evidenciado de maneira franca, como em carta de 1976, na
qual responde ao amigo Dr. Jesús Chavarría, então professor do Departamento de História da
University of California. Nessa correspondência, Tomás Rivera explica ao amigo porque
havia escrito ...y no se lo tragó la tierra em espanhol:
Realmente me hubiera sido imposible escribir Tierra en inglés. Lo que escribo en
esa obra se manifiesta, se evoluciona y lo invento totalmente dentro del idioma
español. Esto fue/es así porque el ambiente, las personas, todo se basan en lo que
ocurre dentro del mundo chicano – idioma español normalmente del trabajador
migrante chicano. (RIVERA, [1976] 2012, p. 263 – grifo do autor)
O trabalho literário, pois, do registro popular dessa língua que lhe era tão próxima
entra na atitude política-ideológica de afirmação do caló de sua gente, não tão bem visto
dentro do sistema universitário de ambos os lados do entorno fronteiriço mexicanoestadunidense. Tendo tomado contato com as regras desse sistema educacional do lado
chicano da fronteira, por assim dizer, é emblemática e contundente a elaboração da língua
192
literária de ...y no se lo tragó a partir do espanhol com o qual convivia o autor em sua
comunidade texana (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 19). Mas, adjunto ao valor
ideológico de seus feitos literários está também o valor estético e de estilo da linguagem
literária que desenvolve, correspondendo a tal qualidade outra questão da literariedade em sua
obra: o modo como elabora e leva à ficção o registro dos bilinguismos e pachuquismo caros
ao caló chicano.
Em ensaio no qual comenta sobre os procedimentos levados a cabo em sua obra,
Rivera ([1975] 1992, p. 360) faz referência ao método de narrar que usava sua gente:
“recuerdo lo que ellos recordaban y la manera en que narraban. Siempre existía una manera
de comprimir y exaltar una sensibilidad con mínimas palabras”. É, pois, essa mesma maneira
de exaltar uma sensibilidade com mínimas palavras o efeito de literariedade que Tomás
Rivera alcança em seu romance através da apropriada utilização da elipse, do corte abrupto do
que se conta, do dizer muito com pouco, do menos que é mais pelo rumor deixado por
situações extremas descritas de modo sucinto, porém certeiro em tirar o leitor de seu lugar de
conforto enquanto mero receptor. Nesse sentido, parece-me um bom exemplo o trecho final
do primeiro conto do conjunto de doze do corpo de desenvolvimento do romance. Ali, uma
das conversações anônimas que o narrador insere em suas recordações traz um breve diálogo
sobre a situação de um velho empregador rural que havia matado sem querer a um menino
que para ele trabalhava e em quem o senhor queria dar apenas um susto com sua arma, para
que a criança não mais buscasse escapar em horário de serviço da sede que o forte calor lhe
impunha:
– Dicen que el viejo casi se volvió loco.
– ¿Usted cree?
– Sí, ya perdió el rancho. Le entró muy duro a la bebida. Y luego cuando lo juzgaron
y que salió libre dicen que se dejó caer de un árbol porque quería matarse.
– Pero no se mató, ¿verdad?
– Pos no.
– Ahí está.
– No crea compadre, a mí se me hace que sí se volvió loco. Usted lo ha visto como
anda ahora. Parece limosnero.
– Sí, pero es que ya no tiene dinero.
– Pos sí. (RIVERA, [1971] 2012, p. 80)
4.2 Rivera: do implícito ao imagético. Fuentes e sua imagética explícita
Neste tópico que se inicia, a primeira aproximação à imagem na obra de ambos os
autores terá talvez menos a ver com a imagem verbal que trazem à luz os dois por intermédio
da linguagem literária empreendida em seus romances, do que com certa imagem que eles
193
deixam transparecer na configuração de seus narradores. Desse modo, destaco interessar-me
nesse primeiro momento no quanto incide, quanto se deixa transluzir e em que medida se
manifesta na figura dos narradores criados a presença de seus criadores.
A imagem da criação de Adão, concebida por Michelangelo em um dos quadros
componentes da magistral série de pinturas que o artista florentino concebeu em afresco para
o teto da Capela Sistina no Vaticano, no início do século XVI, serve de breve ilustração para o
que aqui se busca demonstrar. A distância que separa o toque de Deus do toque de Adão, obra
do acaso de uma restauração ou não, pode, dependendo da distância que se a observe, sequer
ser notada. Entretanto, o olhar mais atento dedicado à obra, tanto por especialistas como pelo
observador leigo, há muito cobra atenção para esse espaço entre ínfimo e imenso ao mesmo
tempo, entre pequeno afastamento e relevante separação, dada a gama de interpretações que
tão sugestiva proximidade provoca. Tal não seria o caso correspondente da incidência das
figuras dos autores aqui estudados sobre a figura dos elementos escolhidos para narrar seus
romances? Comecemos por Tomás Rivera.
A obra ...y no se lo tragó la tierra, em sua trajetória que conta já com quarenta e
quatro anos de leituras desde seu lançamento em 1971, tornou-se em pouco tempo um
clássico dentro do cânon literário chicano, obtendo aos poucos determinado alcance fora do
papel de subsistema que lhe é relegado ao universo da literatura chicana, forçosamente
imprensado entre dois sistemas literários de reconhecimento plenamente estabelecido: o
mexicano e o estadunidense. Na longa estrada do romance, que tem permitido, inclusive, uma
maior abrangência de recepção por outros sistemas que não o seu próprio, um ponto de
abordagem nos estudos que se voltam a estudar a obra parece ser pacífico: a vinculação entre
autor e o narrador que ele compôs para seu livro, a comparação de sua história de vida para
com a ficção que ele apresenta ao leitor.
O estilo narrativo que privilegia a elipse como método de contar usado por Rivera no
desenvolvimento de sua obra poderia até mesmo sugerir uma tentativa de ocultamento de seu
eu escritor e dos fatos e passagens que por certo lhe inspiraram a escrever seu romance. No
entanto, se há algo a marcar o percurso de sua escrita, esse “detalhe” a se destacar é o caráter
de invenção concedido ao corpo de sua narrativa literária. Assim, na relação prospectiva que
se estabelece com os ensaios e artigos do autor, percebe-se sempre o destaque para o aspecto
inventivo de seu Tierra, como o próprio Rivera manifesta seja na correspondência enviada ao
amigo Jesús Chavarría, como pôde ser visto pouco acima, seja ao recordar o modo de narrar
dos seus, conforme o verificado em trecho citado há pouco. É, ainda, interessante notar que
esse mesmo fragmento que volto a mencionar é extraído de um ensaio crítico riverano, cujo
194
título é, creio, não por acaso, “Recuerdo, Descubrimiento y Voluntad en el Proceso
Imaginativo Literario”, de 1975. Ali, ainda quando se remete à influência da recordação da
maneira de narrar de sua gente na concepção de seu romance, Rivera ([1975] 1992, p. 360)
complementa que, sobre as histórias contadas “También existía constantemente el inventarle
nuevas ocurrencias”.
Esse inventar novas ocorrências ao que se conta parece mesmo inspirar Rivera na
construção de um narrador que traz de suas recordações de menino outras vozes que o ajudam
a rememorar algo que talvez esteja dando-se em um momento crítico, dramático e excêntrico
que provoca a reminiscência muito provavelmente em um “sujeito recordante” já maduro. Tal
complicação de estabelecerem-se limites na fase do tempo de vida em que se encontra o eu
narrador se configura, a meu ver, como efeito proposital e provocativo a que se propõe a
ficção criada pelo autor Rivera. É, em meu modo ver, um convite provocativo à imaginação
também do leitor, fator percebido e intensificado nas escolhas editoriais para o romance. A
esse respeito, parece ser precisamente editorial a decisão de exclusão de contos como “El Pete
Fonseca” do corpo final da obra, que formava parte de um intento em Rivera de, conforme
nos mostram Ramos e Buenrostro (2012, p. 192), “elaborar personajes deliberadamente
‘amorales’ para oferecer uma representación amplia de las vidas chicanas”.
Ramos e Buenrostro (2012, p. 193) escrevem, ademais, que os editores de Quinto Sol,
ainda sobre o caso de exclusão de “El Pete Fonseca”, “acaso no comprendieron bien la
distancia entre el autor y su personaje”. Mas, creio que em verdade há que se pensar se valia a
pena de fato em termos editoriais a inclusão e/ou manutenção de um conto em que se percebe
“la marcada distancia del narrador ante los eventos que narra” (RAMOS e BUENROSTRO,
2012, p. 191), em meio a tantas histórias nas quais o método narrativo adotado sugere ao
menos um suposto conhecimento prévio, quiçá vivido, do que ali se conta. Nesse caso, a meu
parecer, o implícito no método adotado para narrar a obra termina por servir também à visão
editorial de que poderia esse implícito auxiliar, além das pretensões ideológicas palpáveis em
seu feito, como fomentador de uma curiosidade a ser discutida e passada adiante (em números
de vendas) por e para um público leitor chicano já à época em boa fase de consolidação,
inclusive nas universidades a que pouco a pouco passavam a ter mais acesso e alcance.
Contudo, ao fim e ao cabo, parece-me prevalecer outro valor, quem sabe mais estético,
do trabalho do implícito por intermédio do uso da elipse narrativa em Rivera: o da
intensificação da linguagem literária que elabora, com a consequente potencialização do
poder de fixação dos quadros vívidos que oferece ao leitor; realçando, desse modo, a
imagética resgatada, (re)inventada e inventiva de sua obra, seu jogo de mimeses
195
memorialísticas das muitas faces e limites possíveis entre o que é e pode ser ou ter sido fruto
de apreensão, recuperação e re(a)presentação de um real vivido.
Enquanto em T. Rivera alguma coisa do caminho que leva o leitor do implícito ao
imagético em sua obra se vê em parte explicada na relação prospectiva que o autor estabelece
com seus ensaios, em C. Fuentes, ao contrário, parte da imagética explícita de seu La frontera
de cristal se explica de maneira retrospectiva em mostras de sua ensaística. De modo bastante
especial ligado ao seu “antecessor” ensaístico El espejo enterrado (1992), o romance La
frontera de cristal (1995) se correlaciona ao ensaio de seu mesmo autor ainda e
principalmente nos traços distintivos da linguagem adotada em ambos como principal
responsável pela construção de imagens que as obras querem transmitir ao leitor: o tropo de
imagem verbal, a figura de imagem verbal metáfora.
Nesse sentido, todo o trabalho por mim desenvolvido ao longo do capítulo
especificamente dedicado à abordagem de La frontera creio traga em seu cerne
exemplificações o suficiente para demonstrar a importância que tem a metáfora na construção
narrativa do romance. Mas, um exemplo encontrado em El espejo enterrado traz uma figura
histórica para o México, retomada no capítulo cinco do conjunto romanesco de contos
fuentesianos sobre a fronteira México-EUA enquanto frágil cristal delimitador para as
relações de alteridade ali existentes. Assim, se no romance de 1995, a personagem Marina
Malintzin de las maquilas é figura alusiva a seu correspondente histórico, em seu ensaio de
1992 é através também da imagem em forma de metáfora que Fuentes encerra uma passagem
sobre a Malinche, informando que ela, após sua oferta como escrava ao invasor espanhol
Hernán Cortés:
Se convirtió en “mi lengua”, pues Cortés la hizo su intérprete y amante, la lengua
que habría de guiarle a lo largo y alto del Imperio azteca, demostrando que algo
estaba podrido en el reino de Moctezuma, que en efecto existía gran descontento y
que el Imperio tenía pies de barro. (FUENTES, [1992] 2010, p. 133 – grifo do
autor entre aspas – grifo meu em negrito)
Além da intertextualidade shakespeariana em “algo estaba podrido en el reino de
Moctezuma”, o final do fragmento repete uma eleição de linguagem metaforizada que
atravessa não apenas o texto ensaístico de Fuentes, mas que também demonstra ser uma
predileção de estilo passível de ser observada mesmo em antecessores da linha ideológica
trabalhada por ele em El espejo enterrado, reunião de ensaios que acaba por funcionar, em
uma linha retrospectiva de raciocínio, como uma espécie de laboratório para a ficção posterior
de La frontera. De autores como Samuel Ramos e Octavio Paz, Carlos Fuentes parece herdar
(além do apoiar-se bastante na construção verbal de imagens seja pela metáfora ou pela
196
comparação) muito do pensamento de ambos no que se refere à existência ou formação de
uma identidade mexicana e os contrapontos encontrados em seus posicionamentos revelados
sobre a questão do indígena em seu país, em sua abordagem sobre o gênero feminino e, ainda,
acerca das relações de atrito e de rivalidade para com os EUA, a quem Samuel Ramos ([1934]
1963, p. 148) chama de “raza del hombre rapaz”.
Os argumentos acima servem, assim, de retorno para a questão de proximidade com a
qual abri o presente tópico. Em Rivera, a proximidade do autor com os eventos que conta seu
narrador acaba por confundir a função do implícito em seu romance, que é potencializar o
valor das imagens levantadas pela linguagem literária que elabora. Em contrapartida, em
Fuentes a eleição da metáfora parece demonstrar um conhecimento maior sobre parte dos
assuntos sobre os quais se apropria ou se propõe a abordar. Essa ausência de maior
propriedade sobre alguns dos temas eleitos permite que deixe transparecer em certos
momentos mais uma determinada opinião do que propriamente um mais aprofundado
conhecimento de causa. Desse modo, a metáfora deixa transluzir em seu uso apenas o
conhecimento da causa, baseado em sua manifestação na expressão em forma de ensaio que
nas ideias e posicionamentos ideológicos expostos em outros ensaios se baseia. Ela, a
metáfora, não é literal, mas quer fazer-se literal, razão pela qual dessa maneira revela o fundo
de intenção (ainda que inconsciente) de seu autor.
Sendo possível, desse modo, retornar ao tema da imagem e semelhança que faz parte
do afresco “A criação de Adão”, o espaço entre os dedos de criador e criatura, a partir do qual
pautei essa primeira seção do presente tópico, leva-nos, no tangente a Rivera e Fuentes, à
perspectiva de que a imagem do autor em ...y no se lo tragó la tierra é “apenas” semelhança.
Entrementes, pode-se dizer que a imagem do autor em La frontera de cristal não é mera
coincidência, ou, mera semelhança.
Outra imagem que se destaca em ambos os romances, como não poderia deixar de ser,
é a da extensa fronteira que se estende pelos mais de 3.000 km que separam México e EUA.
Essa fronteira em ...y no se lo tragó, conforme atestam Ramos e Buenrostro (2012, p. 11 –
grifo dos autores), “una novela escrita al norte del Río Grande”, não se limita a estar apenas
no entorno fronteiriço entre as bordas do norte mexicano e do sudoeste estadunidense. Não,
ela avança por sobre o que os mesmos Ramos e Buenrostro (2012, p. 30-1 – grifo dos autores
entre aspas e em itálico) chamam de “la amplia región ‘transamericana’ que la crítica
197
reciente93 ha denominado, tal vez con un nuevo gesto reterritorializador, el Gran México”.
Essa classificação, embora questionada por ambos os autores, dá conta de que, ainda que se
volte para o entorno fronteiriço ao qual chamei atenção, em seu romance Tomás Rivera
transcende limites geográficos para expor uma fronteira também como problema cultural e
identitário, ele
[E]xplora los recorridos todavía más extensos, profundamente dislocados, de los
trabajadores migrantes entre las fincas industriales donde sirven como peones. Los
sujetos que pueblan la ficción de Rivera se desplazan hasta lugares tan remotos
como Iowa y Minnesota. Sus recurridos exceden así cualquier mapa o demarcación
geopolítica territorializante. (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 31)
De modo quase complementar, em La frontera de cristal, tal como aponta o título do
romance, a fronteira é um espaço imagético privilegiado, o qual ganha contornos de
protagonismo, em um sentido de ato de atração para o qual convergem demais personagens e
o teor de dramaticidade da trama. Um tanto mais agudo do que no romance de Rivera,
todavia, é o fato de que na obra de Fuentes a fronteira é palco aberto para conflitos,
desencontros e encontros quase possíveis. Pontos distintos da extensa zona de fronteira
mexicano-estadunidense são tocados através da contraposição de topônimos tão próprios da
língua espanhola que podem mesmo suscitar a pesquisa àqueles que não saibam com exatidão
de que lado se fala. É o caso do atravessamento que buscam ao fim do romance o chefe de
cozinha Dionisio Rangel e o mexicano que ele arrasta pelo braço, havendo lhe despojado de
roupas típicas colocadas no homem em uma loja norte-americana. Ambos nus, os dois
procuram atravessar uma das pontes para o lado mexicano alegando que não os deixaram
“salir por San Diego y entrar por Tijuana, ni salir por Caléxico y entrar por Mexicali, ni
salir por Nogales Arizona y entrar por Nogales Sonora” (FUENTES, [1995] 2007, p. 278).
Mas, a fronteira em Fuentes é também imagética, ao mesmo tempo em que contorna
caminhos reais e divisórios, algo que sugere obedecer a estrutura de ficção adotada, como o
atesta a intelectual brasileira Maria Scher Pereira, quem observa que:
A estrutura do romance em contos expressa de modo adequado os muitos
acontecimentos que têm como cenário pontos variados da região da fronteira,
lugares reais ou metafóricos, como as cidades vizinhas El Paso, no Texas, e Juárez,
no México, em "Malintzin de las maquilas", ou como a colorida raia fosforescente
que separa norte e sul em "La raya del olvido". (PEREIRA, 2009, p. 4 – grifo da
autora)
Há um terceiro ponto do tratamento literário que ambos os autores outorgam para a
questão da imagem, concedendo-lhe relevância. No capítulo dois desta tese de doutoramento,
93
Os autores evocam aqui as vozes de trabalhos recentes dos críticos Héctor Calderón, Ramón Saldívar e José
David Saldívar e a retomada da discussão da categoria Greater México, inspirada na obra do grande intelectual e
escritor chicano Américo Paredes (1915-1999) (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 31).
198
busquei dar relevo para o que Gilbert Durand chama de imaginária, não como um adjetivo,
mas, sim, como um substantivo poderoso para verdadeiras coleções de imagens que podem
fazer parte da historicidade de grandes dogmas religiosos que se apoiam em cultos a ídolos,
como é o caso da igreja católica, a quem Durand destina o termo de imaginária sacra cristã. A
mostra escolhida por mim para abordar tal assunto em ...y no se lo tragó la tierra foi o conto
“El retrato”, um apurado questionamento literário dos limites da mimese e da representação,
em uma inteligente imbricação de dúvidas de liame entre foto, retrato, pintura, escultura e a
repetição, em um ambiente até certo ponto hostil, de valores e costumes herdados.
Em La frontera de cristal, tal jogo contrastivo México-Estados Unidos ocorre de
maneira talvez menos contundente e questionadora. Ali, no conto “Las amigas”, sexto
capítulo do romance, propostas semelhantes são apresentadas, porém de um modo algo
diferente. Um retrato faz parte dos eventos que percorrem a história do capítulo. Nesse caso,
entretanto, o retrato pertence a uma senhora estadunidense, sendo a reprodução fotográfica do
rosto de seu falecido marido, cuja cicatriz na face gera um interessante diálogo que visa fazer
da marca no rosto do homem na foto uma metáfora para a linha que separatória que atravessa
passado e presente de México e EUA, conforme abordei no trecho a esse fragmento dedicado
por mim no terceiro capítulo do presente estudo.
À guisa de continuidade das questões levantadas há ainda um jogo de espelhismo
proposto pela narrativa no conto, fator que também ressaltei na abordagem à qual me referi
acima. No entanto, um terceiro momento da atenção dada a aspectos da representação
corresponde à fixação do imaginário preponderante no capítulo: o da adoração idolátrica
como traço distintivo supostamente de todas as mexicanas. No terceiro capítulo da presente
tese, apresentei como esse feito aproximativo de apreensão por imaginários se dá pela
orquestração de uso literário da proximidade entre metáfora e metonímia. O trecho abaixo
encerra o tópico atual com outra mostra da aproximação de uma ideia a um imaginário. Nele,
porém, ganha também relevo a chamada para as estampas católicas e certa relativização (mais
ao estilo coiote de convencimento uma vez mais poético do narrador fuentesiano) da
representação, embora ainda se destaque a adoração como valor de desejos improváveis,
como busca “impossível” de realização
Para Josefina, había una relación muy misteriosa pero creíble entre la vida de las
imágenes y la vida de las flores. (…) Pues las imágenes de Nuestro Señor en la
Cruz, del Sagrado Corazón, de la Virgen de Guadalupe, eran como las flores,
aunque no hablasen, vivían, respiraban, y a diferencia de las flores, no se
marchitaban. La vida de las flores, la vida de las imágenes. Para Josefina eran dos
cosas inseparables y en nombre de su fe le daba a las flores la vida táctil, perfumada,
sensual, que le hubiese gustado darle, también, a las estampas. (FUENTES, [1995]
2007, p. 163-4)
199
4.3 Os imaginários de dois romances em contos
A relação de ...y no se lo tragó la tierra com imaginários se dá quase todo o tempo em
posição de questionamento, de posta em xeque de imaginários estabelecidos. Nesse aspecto,
conforme pude detalhar algo mais no capítulo voltado para a análise crítica desse romance, o
autor, através das situações criadas e das ações narradas relativiza a validade de imaginários
de costumes, imaginários sociais e imaginários nacionais. A maneira como ocorrem e a
posição que ocupam tais questionamentos diante desses referidos imaginários, de acordo com
o que expliquei, pode ser vista de mais detalhado no segundo capítulo da presente tese.
No entanto, cabe aqui breve retorno a um imaginário com o qual o romance de Tomás
Rivera se correlaciona de modo mais direto. Ele se inicia a partir do contato da obra riverana
em epígrafe com um imaginário precedente, aquele que busca, em parte, nas raízes de um
nacionalismo mexicano pós-revolucionário, as bases para definição, em caráter de resistência,
de traços distintivos chicanos, os quais podem se vir agregados a imaginários proto-nacionais
chicanos, por assim dizer a partir do momento em que nos permitamos pensar em
chicanidades assumidas como marca de uma proto-nação sem estado ou território (oficial)
definido pela classe, povo, estado ou cultura aos quais se opõe como alteridade ou sujeitada
está.
Sendo assim, ainda em tom de relativização, há na ficção de ...y no se lo tragó ecos de
toda uma construção de sentidos própria daqueles que assumiram a bandeira de uma
identidade chicana de resistência. Um dos marcos dessa construção de sentidos se atém ao
âmbito de instauração de afirmação linguística, de afirmação de identidades também pela
língua e pela linguagem. Conforme já pude descrever, a potencialização literária do caló de
sua gente pode, de acordo com fatores variáveis de alcance, sucesso editorial da obra e nas
relações estabelecidas com as instâncias de conhecimento que traz ou não consigo o
leitor/receptor, agregar-se ao imaginário que se assoma sobre uma marca supostamente
“nacional”: a de que todo chicano, fala pelo viés de bilinguismos do espanglês e do registro
popular presente nos pachuquismos adotados na linguagem literária elaborada por Rivera; ou,
minimamente, a ideia de que todo (me)chicano fala assim.
A orquestração da palavra levada às páginas da literatura cumpre assim em Rivera um
duplo papel. Por um lado, esse registro popular surge como estranhamento, desautomatização
não tanto pela sua simples inserção na narrativa, mas, principalmente, por sua aplicação
singular junto ao uso da categoria gramatical elipse. Por outro, há o feito de que, ao unir o
trabalho de elaboração literária de um registro linguístico também seu por ser-lhe tão próximo
a traços universais do humano, Rivera termina criando uma espécie de simbiose
200
familiarizadora que traz o receptor de sua obra para o nível de aproximação de que fala
Wofgang Iser, por exemplo, em sua argumentação sobre a importância do como se para as
relações que se estabelecem entre o texto ficcional e o leitor. E é por fim tal processo de
familiarização que leva, atrai a consciência (do) imaginante rumo à apreensão por parte de
imaginários.
Ali onde o popular da e na linguagem é estranhamento em Rivera também o é em
Carlos Fuentes. Porém, se naquele a elipse é a principal responsável por esse efeito de
estranheza, neste tal efeito se nota por seu entremeamento nos registros vários de toda a
fluência e verbosidade demonstrada pelo narrador coiote fuentesiano. Por conseguinte, a
familiarização em Fuentes se dá não por proximidade propriamente dita, mas, sim, por
domínio; não por uma proximidade propriamente dita do autor para com todos os registros de
que lança mão e, antes sim, pela capacidade de envolvimento demonstrada pela narratividade
coiote empreendida em seu romance, a qual familiariza pelos muitos vieses possíveis de
sedução na fala, da arte de convencimento pelo falar, em seu falar.
Para além desse imaginário ligado a um caráter de registro oral mais popular, a um
caráter de oralidade(s), em meu entendimento há em La frontera de cristal um
questionamento menos contundente se comparado ao voltado para alguns dos imaginários
cuja validade é posta em xeque no ...y no se lo tragó la tierra de Tomás Rivera. No romance
de Fuentes, contrariamente, em conformidade com o que procurei apontar no terceiro capítulo
deste estudo, as estratégias literário-discursivas adotadas tendem a criar maior fixação de
ideias quanto a costumes, religiosidade, gêneros/sexos, complexos, etnias (em especial no que
toca à marca indígena), tipos e estereótipos (ainda quando se veem como um intento de
crítica) e, portanto, a outros afins próprios da busca de esquadrinhamento de uma pretensa
identidade cultural (e nacional) mexicana.
Dos posicionamentos postos em prática ante os imaginários com os quais de alguma
maneira se correlaciona o romance ...y no se lo tragó la tierra parecem resultar intersecções
identitárias às quais poderíamos denominar como me(x)chicanidades. A colocação do x
mexicano entre parênteses advém do fato de que, mais que uma abrupta hifenização, a
manobra de cunho léxico propõe um lugar entre na relativização de convivência, permanência
e validade dos valores que podem vir a representar a ação de mexicanidades ou de
chicanidades. Fato interessante é que um movimento inverso – no qual os posicionamentos
ideológicos perceptíveis na leitura extraídos a partir da leitura da obra resultassem de
me(x)chicanidades já existentes, ao invés de que tivéssemos essas me(x)chicanidades como
resultantes de tais posicionamentos adotados – agregaria ainda um valor cíclico em que a
201
narrativa contribuiria com imaginários sobre essas intersecções a contar da devolução do
trabalho literário de relações de alteridade apreendidos desde o real empírico.
Não obstante, em La frontera de cristal a observação de existência das intersecções
identitárias mex-(anglo)-chicanidades visa a dar conta da maneira como o enredo opõe
alteridades em um encontro quase sempre impossível, na recuperação ficcional de uma
rivalidade histórica que transfere uma imagem de inimigo ianque à ideia de um todo anglo,
um todo de anglicanidades supostamente heterogêneo em suas raízes e suas ações de rechaço
ao ex-ótico mexicano e chicano. É interessante notar como, entretanto, ao contrário do
imaginário de mexicanidades abraçado pela narrativa, as intersecções supracitadas surgem na
forma de um questionamento mais aberto. Assim, enquanto em ...y no se lo tragó la tierra os
conflitos advindos das me(x)chicanidades soltas pela e na mnemônica do protagonista
redundam na recuperação ex-cêntrica da consciência desse mesmo narrador que ao fim
termina por externar “Quisiera ver a toda esa gente junta. Y luego si tuviera unos brazos bien
grandes los podría abrazar a todos. Quisiera poder platicar con todos otra vez, pero que todos
estuvieran juntos” (RIVERA, [1971] 2012, p. 160); enquanto isso, temos no personagem
chicano José Francisco de La frontera de cristal o desejo voltado “para que todos se concieran
mejor (…), para que todos si quiseran un poquito más, para que hubiera ‘un nosostros’ de los
dos lados de la frontera…” (FUENTES, [1995] 2007, p. 266-7 – grifo do autor).
A aproximação acima não representa uma igualdade total de pensamento, de e nas
soluções transpostas ao final dos romances de e por ambos os autores. Contudo, aponta para
uma a meu ver interessante observação a ser feita sobre alguns paradigmas levantados durante
o presente trabalho acadêmico, principalmente alguns que mais têm a ver com o olhar crítico
dedicado à análise literária do romance de Carlos Fuentes. Em conferência proferida em
University of Texas at El Paso, por ocasião do XVIII Congreso de Literatura Mexicana
Contemporánea (2013), dedicado a Carlos Fuentes, o renomado professor e crítico literário
peruano Julio Ortega afirma que em um dado momento da história intelectual que
compartilharam teria havido uma ruptura de linhas de pensamento entre Fuentes e Octavio
Paz. Tal afirmação me obriga a retomar uma constatação à qual me vi tomado durante os
estudos bibliográficos para a materialização desta pesquisa de doutoramento.
Conforme pude verificar, bem como até mesmo expor para o fim do terceiro capítulo,
no qual me debruçava especificamente a trabalhar a obra de Fuentes em tela, há outra
correspondência narrativa que parece incidir por sobre o romance fuentesiano. Os elos
comparativos encontrados entre as duas obras aqui trabalhadas são fortes. Contando inclusive
com a citação do nome de Tomás Rivera na mostra ensaística El espejo enterrado, de Fuentes,
202
o que por si só não é demarcativo nem denotador da apreensão de pronta influência. Como
pude demonstrar há, entretanto, certa aproximação de eixos temáticos e um forte vínculo
estético que inclui até a derradeira confluência de repetição de um texto-rio, um texto em
cursivas que, vinte e quatro anos após a primeira edição de ...y no se lo tragó, atravessa
também o capítulo final de La frontera. Porém, forma parte dos dados evidenciados desta
pesquisa a reconhecida homenagem prestada a outro autor chicano de grande valor, posterior
a Tomás Rivera: Ricardo Aguilar Melantzón, reconhecidamente transportado à figura do
personagem chicano José Francisco do romance de Carlos Fuentes.
Há, entretanto, outro dado interessante a ser extraído da investigação bibliográfica que
mostra a igual leitura de Aguilar Melantzón por Fuentes. Sobre a obra Madreselvas en flor
(1987), o intelectual mexicano José Lozano Franco (1990, p. 215) escreveu em artigo que:
[a] pesar de estar dividida en cuentos, se puede considerar una novela en episodios,
la ambivalencia de la frontera se multiplica y aparece en todos los aspectos
importantes de la vida del narrador, demasiado parecido a Ricardo Aguilar
Melantzón, su autor.
Observam-se desse modo correspondências estéticas que parecem responder
literariamente à apreensão de fragmentação dos sujeitos envoltos nas relações de alteridade do
entorno fronteiriço que há muito divide (e une) México e Estados Unidos. Dado o fato de que
a historicidade dessas relações revela uma história de contato e conflito já praticamente
bicentenária, há como verificar a incidência nas obras e suas influências, reletida no modo de
narrar/contar suas histórias, de um eixo comum, o movimento migratório no entorno
fronteiriço sobre o qual debruçam suas ficções, o qual aproxima as abordagens narratológicas
à re(a)presentação, e discussão, de um evento histórico de longa duração, aos moldes das
teorizações do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985) sobre os tempos históricos de
curta, média e longa duração 94.
A ambivalência fronteiriça para a qual cobra atenção Lozano Franco, essa bi valência
nas histórias e nos sujeitos fronteiriços que trazem a suas ficções escritores chicanos como
Tomás Rivera e Ricardo Aguilar recebe hoje um olhar crítico ainda mais atento, como é o
94
Nome fundador da escola historiográfica que seria conhecida como Nova História, o francês Fernand Braudel
(1902-1985), em seu Meditarranee, LA: L' espace et L' histoire (1949, 1958), teoriza sobre a dialética das
durações do tempo histórico, dividindo-as em: tempo curto, médio e de longa duração. O autor identifica o
tempo curto com o tempo individual dos acontecimentos e dos personagens históricos. Já o tempo de duração
média estaria ligado ao campo da economia, cujas durações influenciariam os caminhos da história social. Por
fim, o tempo de longa duração estaria vinculado a estruturas mais duradouras, a movimentos seculares (ou mais
que isso; e, neste caso, pode-se equivaler o tempo à noção de estrutura) de longa duração. Tal durabilidade dos
tempos históricos importa para a análise do caráter de permanência dos imaginários trazidos à tona em ambas as
narrativas ora em destaque.
203
caso da crítica bi-borderlands que amplia os horizontes da anterior crítica borderlands
procurando aquela girar, como afirma a intelectual chicana Dra. Graciela Silva Rodríguez
(2012, p. 19), “en torno a la visión sociocultural, literaria y lingüística de la frontera entre
México y Estados Unidos, así como sus extensiones geográficas a unas 600 millas al norte y
al sur”. Tal crítica responde por uma perspectiva que vá algo mais além da noção de linha
fronteiriça para o entorno entre o norte mexicano e o sudoeste estadunidense, contemplando,
dessa maneira, um verdadeiro caleidoscópio de imagens, personalidades e identidades na
ampla extensão pela qual se dão as relações sociais, de alteridade e a produção cultural e
literária de sujeitos de ambos os lados dessa fronteira, em verdade, bem maior do que supõe a
visão de seus já longos limites geopolíticos. Rivera e Melantzón e suas construções literárias
de eventos e sujeitos fragmentados entram na captação de uma análise crítica de bifronteiridade cultural e literária. Carlos Fuentes não é um sujeito desse extenso entorno, mas
seu interesse de leitura e apreensão do que ali se passa deixa com que capture ao menos parte
desse espírito, dessa mystique bi-fronteiriça na fragmentação extrema de seu La frontera de
cristal, aproximando-se por interesse à temática, embora deixando transparecer suas heranças
mais arraigadas.
A aproximação verificada leva Fuentes a um contexto maior de apreensões e
observações em seus estudos e abordagens sobre o que chama de as três hispanidades. Há,
portanto, a representação não de um ponto de cisão, mas, acredito, de uma linha continuadora
e mais avançada em relação aos interesses de sua corrente intelectual sobre o que se escreve e
se pensa a respeito e a despeito das gentes de seu país. A intenção maior de um intelectual é
ao fim e ao cabo a de contribuir de alguma maneira com as áreas do conhecimento sobre as
quais se imiscui e se propõe a dialogar e, muitas das vezes, confrontar. Parece-me inegável,
contudo, que, por ainda reverberar ecos de pensamento ideológico de uma mesma linha de
parte da intelectualidade mexicana, em La frontera de cristal Carlos Fuentes termina por
contribuir para a composição de imaginários a partir de uma visão até certo ponto pessimista
do sujeito mexicano, numa linha de pensamento muito próxima à de toda uma geração de
intelectuais de países em posição de minoritariedade com relação ao “mundo desenvolvido”.
É importante notar também que, no que se refere a posicionamentos intelectuais e
ideológicos materializados em obras escritas, há que se levar em consideração que tudo
demanda de questões de escolha, de seleção, de situação e contexto social e político em que se
está envolvido, ou seja, o contexto de sua época, da época em que compuseram seus
argumentos os pensadores aqui elencados e sua formação intelectual. Há que se ressaltar, por
fim, que a agregação, a transformação de pré-conceitos estabelecidos a preconceitos se dá por
204
conta também do receptor. Fuentes, Ramos e Paz trabalham com conceitos que
desenvolveram durante anos, apontando a visão de parte da intelectualidade do seu tempo,
interferindo sobre ela suas instâncias de formação rumo à leitura de um tempo, diferente
daquela que outros dedicariam em tempos de um mundo já em outros contornos, com um
contexto de época, de tendências e teorias distintas. Fuentes e seus antecessores trabalham
com o que tinham à época à mão, com os meios de estudo, com a forma e metodologia de
estudar de que dispunham, e com as ideias e teorizações cabíveis, talvez, ao seu tempo.
A ação mais direta da literatura sobre e com imaginários nacionais já foi mais evidente
na formação de identidades nacionais, na ação de tentar instituir e chamar importância para o
destaque da chamada cor local. Tal intencionalidade é atualmente, a meu ver, mais discutível,
ainda que, conforme procurei demonstrar, possa equivaler-se ao demarcamento de
pensamentos de resistência, ideologias de teor libertário caras ao intelectual que quase sempre
se propõe, como parte de uma coletividade, também um porta-voz dessa mesma coletividade.
No que toca às influências intelectuais de e em Fuentes, acerca de Octavio Paz é
importante observar que o impacto de seus argumentos não recai apenas sobre seus
conterrâneos mexicanos. Por isso, procurei destacar também a busca inicial de uma
intelectualidade chicana por encontrar suas raízes no México e na leitura de seus intelectuais
como uma espécie de pedra fundante desde a qual dariam vez ao poder dinâmico e de
resistência chicana in USA. A leitura de, e admiração intelectual chicana por autores clássicos
como Paz pode ser mesmo observada, por exemplo, no texto de uma carta de Tomás Rivera
endereçada ao intelectual mexicano, pouco tempo após a publicação de seu ...y no se lo tragó.
Nela, Rivera comunica que envia adjunta sua obra que vai “como testimonio de admiración y
también como testimonio de uma consciencia despertada desde aquel momento en que leí El
laberinto de la soledad.” (RIVERA, [1972] 2012, p. 262 – grifo de datilografia do autor).
A admiração a que se refere Tomás Rivera pode ainda ser atestada se trazemos, a duas
pontas de medida, o ensaio paziano “El pachuco y otros extremos”, componente de El
laberinto, e o conto riverano “El Pete Fonseca”. O conto de Rivera, excluído da composição
final de seu único romance por razões mais bem temáticas que estruturais, tem por
protagonista um sujeito “chicano” burlesco e enganador que se aproveita de uma mãe solteira
e seus filhos, desaparecendo ao fim da história com o carro e todo o dinheiro da família. Podese, assim, questionar se o pachuco criado por Rivera não acaba por re(a)presentar talvez os
mesmos extremos de que fala Paz em seu ensaio. A resposta talvez esteja no fato de que em
um primeiro momento, na tentativa de afirmação de uma identidade chicana, a figura do
pachuco abordada por Paz foi explorada por um emergente discurso chicano politizado entre
205
os anos de 1960 e 70 como marca de diferença, até, enfim, ser tomado como estereótipo (Cf.
RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 16).
Nesse aspecto, são tão passíveis de relatividade e suscetíveis a discussões as situações
evocadas, que um conselho mordaz de Roger Bartra (2000, p. 77) pode também servir de
interessante aviso ao leitor/receptor:
[E]s necesario un proceso de decodificación-recodificación en el que los signos de
identidad cultural descifrados deben ser enmascarados de nuevo con nuestros
propios signos (el proceso que va del desenmascaramiento de inferioridades,
hipocresías y soledades mexicanas a la reconstrucción del canon del axolote).
Tal aconselhamento, segundo minha visão, pode esbarrar ainda, como venho buscando
atrair a atenção, nas instâncias receptivas do leitor/receptor e em sua responsabilidade para
com as muitas tramas das quais se aproveitam as teias de um imaginário. A literatura, a ficção
é responsável por sua realidade interna; mas, nunca é demais atentar-se para a identificação
possível com o mundo irrealizado, o qual pode, porém, ser tomado como real por um receptor
enredado pela ficção do como se.
De minha parte, posso dizer que aquele que se aventure a estar presente, por exemplo,
entre os dois (e mesmos) lados bi-fronteiriços que são El Paso (EUA) e Juárez (México)
poderá receber um abraço que o traga junto à frase “En el México dominado toma acá un
abrazo mexicano”; e ouvir em congressos afirmações intelectuais de assumida identidade
chicana por rechaço, mesmo linguístico, ao discurso hegemônico de ambos os lados; ou ainda
ouvir sentenças como “Acá no les gusta eso de ser chicano, gente que reniega sus propias
raíces”; ou mesmo ver um ativista chicano, de marcado sotaque inglês estadunidense em seu
espanhol, chamando a gringos “eses anglo-americanos”, esses “pinche gringos”, qual talvez
diria, embarcada quem sabe em uma ficção de cidadania, uma professora mexicana US citzen
radicada em uma universidade de Pittsburgh, Pensilvânia (EUA). Todos aqui anônimos,
entretanto, como as vozes corais que adentram as narrativas de Rivera em ...y no se lo tragó la
tierra.
Reitero, por fim, que a configuração e a existência, resistência e caráter de
permanência de um imaginário só se dá em comparação com o real vivido. Caberia ao leitor,
então, à guisa de uma proposta platônica ir de hipótese em hipótese até chegar ao ponto que
não admite hipóteses. Mas, não raro, o receptor o que faz é ir de imagens em imagens até que
tome como princípio de tudo o imaginário. Nesse tocante, o valor de envolvimento de uma
obra literária toma o leitor como fosse um atalho para esse tão difícil princípio de tudo,
deixando-o, no espaço ao mesmo tempo ínfimo e infinito do toque do Deus e do Adão de
Michelângelo, nos liames (im)possíveis da complicada fronteira entre o real e o imagético.
206
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente trabalho de doutoramento, abordei a relação literariedade, imagem e
imaginários como tema. Através de uma leitura atenta do corpus ...y no se lo tragó la tierra
de Tomás Rivera e La frontera de cristal de Carlos Fuentes pude comprovar da vinculação
em destaque o encadeamento possível entre literatura e fomentação de imaginários.
Ao longo da presente tese, o objetivo foi traçar uma linha que, desde a análise crítica
dos romances em tela, atestasse o valor da literariedade em ambos, o forte teor imagético das
narrativas, ou seja, de produção de imagens pela linguagem literária e, por conseguinte, sua
capacidade para se atrelarem a imaginários.
A razão da escolha de ambas as obras vai ao encontro da identificação de pontos
comuns entre as temáticas em que se ancoram as ficções orquestradas, mas, também, pelo
encontro de aproximações em sua estética e construção narrativa fragmentada. Os dois
romances ficcionalizam sobre a fronteira México-Estados Unidos e as consequentes
conturbadas relações de alteridade que ali se dão. A estruturação das narrativas em forma de
fragmentação corresponde a uma mimetização estética particular da igual fragmentação dos
sujeitos envolvidos em tais relações de identidade. Mas, essa estruturação fragmentária no
romance de Carlos Fuentes indica ser fruto de leitura e apreensão de um estilo caro a certos
autores chicanos de abordagem bi-fronteiriça.
No primeiro capítulo do presente trabalho de doutoramento dei margem a apresentar
os traços teóricos definidores do estudo. Ali pude explicar os porquês da eleição de visão
literária desde a noção de literariedade, evidenciando que as duas obras em tela trazem dentro
de seu estilo características marcantes de singularização, de efeito de desautomatização e
estranheza, compondo, dessa maneira, ainda com o dinamismo que empreendem à forma
romance, um conjunto de noções vinculadas à noção que o formalismo russo cunhou como
literariedade. É, aliás, ao formalismo russo que se atêm as principais correspondências
teóricas verificadas como viáveis a partir da leitura crítica extraída dos dois romances.
Ainda no primeiro capítulo, voltei atenções para a filosofia clássica de Platão no que
tange aos momentos em que o filósofo grego dedica sua dialética para deslindar sua
conceituação sobre a questão da imagem em comparação ao conceito de ideia. A seguir, dei
passo à retomada da argumentação platônica para a imagem pelo filósofo francês do
imaginário Gilbert Durand. A aproximação do conceito de imagem aos de imitação e
semelhança e a categoria de imaginária para o que se pode entender como colecionário de
imagens por parte de religiões (especialmente a católica, que é aquela a partir da qual Durand
207
mais se detém) que tenham por parte de seus dogmas a adoração e o culto a ídolos foram os
pontos a se destacar do material pesquisado.
Fechou o primeiro capítulo meu olhar mais detido para uma teorização que não visse
ou apresentasse o imaginário como, menos que um conceito, uma palavra dada, quase um
senso comum. Nesse aspecto, destaco a contribuição dos estudos do crítico literário alemão
Wofgang Iser ao desenvolver suas incisivas opiniões sobre a ficção do como se. A única
ressalva, porém, adere-se ao fato de que o teórico alemão termina por não dar tanta atenção ao
entendimento do imaginário como faculdade mental, fator que busquei pautar ao longo de
minhas explanações.
No segundo capítulo, as teorias dispostas em separado no segmento anterior passam a
encabeçar a análise crítica do corpus da presente tese, com destaque, nesse segundo apartado,
para o romance de Tomás Rivera. Passei, então, a ressaltar a narratividade da obra, a
imaginária que atravessa suas linhas em tom de questionamento de sua validade em solo
estadunidense e a relação da obra para com imaginários, observando que tal correspondência
se dá a maior parte do tempo num teor de posta em xeque, havendo, ainda assim, uma ligação
mais estreita com imaginários sobre a “oratura” chicana. Nesse capítulo, aos teóricos já
mencionados agreguei o trabalho com a preciosa contribuição dos professores da
Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA) Julio Ramos e Gustavo Buenrostro e uma
comparação com a visão de Aristóteles para a imagem, a partir de preceitos desenvolvidos
pela antropóloga brasileira Sylvia Caiuby Novaes sobre as linhas de contato entre a imagem
verbal própria de um texto escrito e a imagem visual filmográfica e fotográfica, argumentação
de suma importância para a análise de imaginária e relativização de limites entre mimese,
quadro, foto, retrato e escultura que Tomás Rivera leva a cabo no conto/capítulo “El retrato”,
de seu ...y no se lo tragó.
No terceiro capítulo, direcionei argumentos para tratar da análise crítica de La frontera
de cristal, de Carlos Fuentes. Nesse segmento também dei passo ao trato da narratividade a
partir do que em Fuentes percebi como fruto de uma narratividade coiote de um narrador que,
com grande fluência, pelos mais diversos registros linguísticos tenta por sua lábia atrair e
convencer o leitor a acompanhar sua inserção sobre a fronteira. Nesse sentido, aspectos
culturais e informativos relativos à semantização que envolve o verbete coyote (de canídeo
selvagem que engana sua localização pelo uivo ao estranho que se mete em terra e assuntos
alheios) foram importantes para abrir esse primeiro tópico capitular que, assim como os dois
tópicos seguintes, contaria com a abordagem comparativa à fluência sedutora do próprio
Fuentes em El espejo enterrado.
208
No segundo tópico do capítulo 3 busquei destacar o trabalho literário de Carlos
Fuentes com a figura de imagem verbal metáfora. Em referência a sua importância para a
composição com imaginários, pereceu-me fundamental ressaltar a metáfora em Fuentes em
ação de distanciamento para com a alegoria (existente, sim, na obra; mas, fora da
possibilidade de agregação por imaginários) e de proximidade para com a metonímia. E é
desse trabalho orquestrado em conjunto e da presença do que chamo de metáfora ampla
(extensas metaforizações que atravessam contos e até mesmo a metáfora principal do enredo,
a de cristal para a fronteira e as relações frágeis e porosas que ali se dão) que resulta a
aproximação maior da obra ao contato com imaginários.
O quarto capítulo é o responsável nesta tese de doutoramento por dar vez à realização
da análise comparativa conjunta das obras que compõem este estudo. Tal capítulo funcionou
mais como uma recuperação em conjunto dos termos apresentados anteriormente de forma
separada, razão pela qual realizei nele a consecução final de uma seção menor em número de
páginas que as anteriores.
Recuperada em um primeiro momento a questão da literariedade em ambos, evidenciei
que em Rivera ela se dá principalmente pela potencialização que o uso literário da elipse
proporciona à ficção de seu romance. Enquanto isso, em Fuentes a literariedade está,
principalmente, em justapor e mesclar registros linguísticos que revelam conhecimentos de
áreas as mais distintas por parte do narrador, sem perda da fluência de fraseos do e no que se
conta.
Em seguida, o passo comparativo é do que há de implícito na linguagem literária de
Tomás Rivera ao que há de explícito na de Carlos Fuentes. Contribui abordar o papel inverso
da imagem transluzida dos autores em seus narradores. Assim, ao contrário do que levaria a
crer, a ligação que uma pesquisa mais atenta aponta para o forte vínculo entre a vida de
Rivera e os eventos que conta em seu romance não se deixa transparecer tanto na figura do
narrador criado por ele, quem traz os seus implícitos para o campo da invenção, da ficção,
revelados de modo prospectivo nas “respostas” dadas pelo mesmo Rivera em ensaios seus
posteriores. Na outra ponta da linha comparativa que estabeleço, temos um Fuentes cuja
linguagem literária de explícita construção de imagens verbais acaba por revelar facilmente
uma incrível proximidade da verbosidade e conseguintes “posicionamentos” de seu narrador
para com seu criador fuentesiano. Tal correlação se mostra em Carlos Fuentes de maneira
retrospectiva, em análise voltada com seus argumentos expressados no anterior (em relação à
ficção de La frontera) conjunto de ensaios El espejo enterrado.
209
Ainda nesse segundo tópico do último capítulo, trato sobre a imagem da fronteira
alargando-se em ambos: um problema cultural na ficção de Rivera, para além da conceituação
geopolítica; e, em Fuentes, para além de problema cultural também evidenciado em sua obra,
a fronteira metaforizada, protagonista e espaço-ímã para onde a narrativa converge os demais
personagens da obra. Logo após, retornei ao termo “imaginária” para contrapor seu uso
literário nos dois romances. Analisados em conjunto, trechos de “El retrato” em ...y no se lo
tragó la tierra e de “Las amigas” em La frontera de cristal apontaram para a conclusão de
que a imaginária em Rivera se vê sempre em posição de questionamento da validade de
costumes em uma cultura hostil a tais aspectos; enquanto que, em Fuentes, a abordagem
literária de apego mexicano à imaginária tende a ser o mais das vezes fomentadora de préconceitos totalizadores.
No terceiro tópico desse último capítulo, encerro minha abordagem voltada para
imaginários, em consonância com sua possibilidade de composição com a literatura, minha
atenção principal no presente estudo. Nesse sentido, volto para a subversão narradora em
relação a determinados imaginários no romance de Tomás Rivera, não deixando, entretanto,
de reiterar a posição adotada de potencialização, de realce de uma espécie de caló chicano,
advindo da oralidade e do registro de chicanismos na escrita. Nesse ínterim, Fuentes está em
lugar entre a herança de uma visão intelectual mais pessimista para o sujeito mexicano e uma
visão algo mais atenta para a miríade de imagens advindas dos encontrazos de alteridades
fronteiriças entre mexicanos, estadunidenses e chicanos. Assim, realço que Fuentes se
aproxima de uma linha de temas bi-fronteiriços, trabalhando sua ficção de maneira
semelhante à qual trabalharam autores chicanos como Tomás Rivera e Ricardo Aguilar
Melantzón. As instâncias de formação intelectual de Fuentes, entretanto, parecem não deixar
que seus posicionamentos se afastem tanto, ao fim e ao cabo, de autores a ele precedentes
como Samuel Ramos e Octavio Paz.
Na relatividade de posicionamentos tomados, chama atenção que Tomás Rivera e toda
uma intelectualidade chicana também tenham, em dado momento, demonstrado grande
admiração por Paz e muito de suas argumentações, com destaque para a tomada de
pachuquismos como marca assumida de diferença. Penso que, com um processo de formação
de uma identidade chicana ainda em andamento à época do lançamento do romance riverano,
é natural pensar em sua posta em xeque a imaginários precedentes sobre me(x)chicanidades
como parte da postura compreensível de um autor com conhecimento de causa, o qual, assim
como Aguilar Melantzón, fala desde a fronteira; enquanto as mex-(anglo)-chicanidades
extraídas da leitura de La frontera de cristal mostram um intelectual interessado em
210
contribuir, por meio de seu ensaio e também de sua ficção, para que se pense a causa chicana,
demonstrando conhecimento da causa, falando, entretanto, sobre a fronteira.
Com a materialização do longo estudo que ora se encerra, espero estar contribuindo
para a característica que ainda detém a literatura de compor com imaginários. Nas obras em
relevo, destacam-se a literariedade e a construção de imagens e o forte teor imagético dos
romances estudados como seu caminho de aproximação, de leitura aproximativa a
imaginários. É sabido que em um passado nada remoto a literatura já buscou compor com a
formação de identidades nacionais. A questão da intencionalidade aqui subjaz a uma questão
a meu ver maior: a de releituras feitas (inclusive as de um autor clássico em um sistema
estabelecido, destinado a ler autores clássicos de um subsistema ainda imprensado entre dois
outros de grandes proporções). Tais releituras pressupõem um anseio de contribuição com
questões do real empírico levadas às raias da ficção. É nesse lugar entre que jogam papel
sumamente importante as instâncias de recepção do leitor para que não “caia” em imaginários
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211
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ANEXOS
Capas de ...y no se lo tragó la tierra
Anexo 1: Fotocópia de capa da edição de 1990, da Arte Público Press. Imagem alusiva à árvore em que sobe o
narrador, na última “cena” do romance.
Anexo 2: Escaneamento das capas das edições de 2011 (à esquerda), da Piñata Books, e da preciosa edição
argentina (de fato, a primeira edição latino-americana da obra) de 2012 (à direita). Na capa de Piñata Books, a
imagem é alusiva tanto ao conto que dá título ao livro quanto ao conto “La noche estaba plateada”, quando há
um desafio à figura do diabo.
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Capas de La frontera de cristal
Anexo 3: Capa de edição brasileira de 1999, publicada pela Editora Rocco. Imagem com destaque para a figura
da Virgem de Guadalupe, santa “indígeno-católica”, padroeira do México, tatuada, em foto alusiva,
provavelmente, à figura de um coiote.
Anexo 4: Capa de edição de 1997, publicada por Alfaguarra. Imagem alusiva ao conto “La raya del olvido” e,
por conseguinte, à figura do cadeirante de sugestivo nome Emiliano Barroso, irmão pobre do poderoso Leonardo
Barroso. O personagem Emiliano, velho e doente é levado por seus delírios a uma imaginária linha fronteiriça
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mexicano-estadunidense fosforescente. Ali, após esquecer-se de quem é, termina por recobrar consciência sobre
seu passado.
Anexo 5: Capa de edição de 2007, publicada por Alfaguarra. Imagem alusiva à cena final do conto que empresta
seu título ao romance. Esta edição transfere o subtítulo una novela en nueve cuentos para o interior do livro.
Anexo 6: foto de um bar do lado mexicano da fronteira Juárez (México)-El Paso (EUA).
Anexo 7: Outdoor do lado estadunidense da fronteira El Paso (Texas)-Ciudad Juárez (Chihuahua).
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Anexo 8: capa de revista mexicana antes de partida decisiva entre as seleções de México e Estados Unidos,
durante as eliminatórias para a Copa do Mundo de Futebol 2014.
Anexo 9: Fotografia das bandeiras dos Estados Unidos Mexicanos e dos Estados Unidos da América do Norte,
lado a lado na ponte que separa El Paso (Texas) de Juárez (México).