5 décadas de decoração no Brasil Edição 641

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5 décadas de decoração no Brasil Edição 641
INTER-RELAÇÕES DE ARQUITETURA E INTERIORES
AMBORGES
TEXTO 04
5 décadas de decoração no Brasil
Edição 641 - Jun/08
Do designer que criava mobiliário em harmonia com o espírito da arquitetura moderna ao
apogeu da figura do decorador. Dos móveis com pés palito, de madeira nobre, às peças feitas
com madeira reaproveitada. Em seus 55 anos de existência, Casa e Jardim, como nenhuma
outra revista, retratou fases, estilos e pensamentos que contribuíram para formar uma cultura
de decoração no país. Recordar, nesse caso, é o mesmo que redescobrir
Invernal agora, primaveril amanhã. Hoje, a casa pode mudar de cara
conforme a estação do ano. Ninguém tem o direito de reclamar que
faltam dicas para trocar a decoração - elas chegam até pelo celular
(serviço esperto de Casa e Jardim). Na televisão, o casal viaja no fim de
semana e, na volta, encontra outro lar, totalmente transformado pela
produção do programa, exibido no canal por assinatura. Ou seja, tudo
acontece segundo o ritmo dos tempos: na base do fast - fast food, fast
house, fast decô.
Comparando com o mundo da moda - cuja influência na casa vai além
dos domínios do guarda-roupa -, entre o prêt-à-porter e a alta-costura,
a decoração hoje está mais para pronta entrega. E isso é bom? Isso é
ruim? Depende do olhar de quem vê e de quem viu a vida em outros
tempos.
Casa e Jardim, em festa pelos seus 55 anos completados este mês, é
uma das poucas, senão a única, capaz de exibir a trajetória da casa no
Brasil desde 1953 até hoje. A revista é provavelmente o único registro
disponível da história da decoração no país dos últimos 50 anos.
A capa de 1956 exibe
ícones da década:
cadeiras e mesas de pés
palito, sofás e mesas com
formas amebóides, parede
de pedras e tapete de
chenile
A publicação estreou nas bancas na época em que tecido era chamado
de fazenda, quando a casa tinha jardim de inverno e quarto da
governanta e as donas de casa liam conselhos na revista para
compreender a irritação do marido na volta do trabalho. A decoração? Era feita por elas mesmas ou
por meia dúzia de profissionais para meia dúzia de grã-finos, abastados de verdade e, na maioria
das vezes, cultos.
Aliás, é dessa época o mobiliário mais valorizado e desejado atualmente no exterior: móveis
brasileiros do mid century, anos 1950 e 1960. Tanto pela qualidade da madeira utilizada, caso do
jacarandá, quanto da manufatura, afirma o antiquário e jornalista João Pedrosa. O mestre Joaquim
Tenreiro, designer de móveis e artista plástico morto em 1992, e o arquiteto e designer de móveis
Sergio Rodrigues, pai da famosa poltrona Mole, eram estrelas do design naquele momento.
Essas duas décadas foram marcantes na história da arquitetura de interiores no Brasil. O design e a
linguagem moderna do mobiliário foram introduzidos por arquitetos, designers de móveis e de
interiores que permanecem modernos até hoje. Gregori Warchavchik, John Graz, Zanine Caldas,
Geraldo de Barros, Jorge Zalszupin e Lina Bo Bardi são alguns desses nomes. Eles faziam o
mobiliário dos seus projetos arquitetônicos ou dos colegas modernos, como Oscar Niemeyer, Rino
Levi e Jacob Ruchti.
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Esses artistas ligados ao modernismo, mais reconhecidos e
requisitados pela elite intelectual da época, conviviam com arquitetos
e decoradores de estilo clássico, responsáveis pelos ambientes
glamourosos das casas dos milionários de São Paulo e do Rio de
Janeiro, como Ugo di Pace, Jean-Claude Bailly, Germano Mariutti e
Terry Della Stuffa, a partir da década de 1960, e José Duarte Aguiar, a
partir de 1970.
A capa deste mês: as
pessoas na foto revelam a
preocupação com a vida na
casa, ao passo que os móveis
e os objetos contam histórias
'Os anos 60 foram o alicerce, a base da arquitetura de interiores.
Naquela época, os profissionais criavam, eram informados, tinham
caráter próprio, identidade. Os clientes faziam parte de uma elite bem
informada, viajada, e queriam casas diferenciadas. Hoje, os
profissionais falam uma besteira enorme, dizem ao cliente: 'Eu vou
traduzir em decoração o seu way of life'. É o contrário. Cada
profissional faz o que sabe fazer e o cliente é quem escolhe aquele
com o qual se identifica. Se alguém me procura e diz 'quero fazer uma
casa estilo marroquino', digo que não sei fazer, eu faço casa Ugo di
Pace', diz o próprio di Pace.
Nessa crítica, ele reivindica a ascendência do arquiteto - e não a
submissão ao mercado, como ocorre muitas vezes hoje. O discurso
tem origem no movimento art nouveau, do final do século 19, da idéia wagneriana da casa
enquanto novo lugar da obra de arte total, ou seja, uma obra que reúne todas as artes (escultura,
pintura...), afirma a jornalista e professora de história do design Ethel Leon. Assim, os artistas da
época faziam tudo o que existia na casa: do desenho dos móveis, lustres e maçanetas à pintura dos
quadros.
O arquiteto cuida de tudo
Os modernos herdaram esse conceito de conceber o projeto como um todo quando fazem um
mobiliário que 'fala' a linguagem da arquitetura, procurando uma unidade de linguagem, explica
Leon. Arthur Casas, um dos principais arquitetos contemporâneos, cujo trabalho é fortemente
influenciado por mestres paulistas como Vilanova Artigas, conta com certa indignação que alguns
clientes, para os quais faz a parte externa da casa, não o contratam para fazer a parte interna. 'Fico
tão revoltado com isso, são pouquíssimos, mas é tão absurdo. É uma continuidade do meu trabalho.
Qualquer arquiteto que se preze pensa assim, faz várias coisas', diz ele, que recentemente
desenhou uma linha de faqueiro inspirado na formas da cobra jararaca.
Amiga de Tenreiro e de Burle Marx, a arquiteta Janete Costa é outro nome respeitado e importante
na história da arquitetura de interiores. É conhecida aqui e no exterior como uma das maiores
pesquisadoras e divulgadoras da arte popular brasileira. Autora de projetos de hotéis, museus,
cinemas e residências em todo o Brasil, ela conta que sempre usou peças de arte popular brasileira
em seus ambientes 'para que houvesse um rastro de brasilidade, uma lembrança de sua identidade
e também para melhorar uma parte da sociedade que vive às margens da economia fazendo peças
que são muito importantes'. E Casa e Jardim participou muito da divulgação desse trabalho, diz a
arquiteta e curadora.
O que sempre foi um luxo restrito a poucos se populariza no final dos anos 1980, quando acontece o
boom do mercado de decoração. Em São Paulo, em 1987, surge a Casa Cor, a maior mostra de
decoração do país. Nas revistas, há uma espécie de 'furor descritivo da decoração', diz o decorador
Roberto Negrete, presidente da Associação Brasileira de Designers de Interiores (ABD), entidade
que contava na época com cerca de 700 associados e hoje tem, aproximadamente, 5 mil. 'Você lia
desde especificações técnicas para aplicar Vidrotil até por que um cacto colocado no canto esquerdo
da sala valorizava a decoração', conta ele.
O brasileiro gosta do assunto e tem uma permeabilidade especial aos serviços do decorador. 'Em
poucos lugares do mundo eu vi jovens que estão iniciando a vida de casal contratarem um
decorador', diz Negrete. Segundo ele, a classe média americana, que tem mais recursos, não
consome esse serviço como a brasileira.
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'A maioria faz cópia'
O mercado nacional de decoração cresceu, mas a qualidade não acompanhou o ritmo. 'Hoje, há
poucos criadores, a maioria faz cópia. A decoração está globalizada, é difundida na TV, nas revistas;
o novo-rico escolhe estande na Casa Cor. E essa é uma tendência mundial, a moda estraga qualquer
coisa', diz o arquiteto Ugo di Pace. Isso se reflete na monotonia das vitrines de grande parte das
lojas de decoração, onde imperam o branco e o creme, o estilo clean e ambientes pasteurizados.
'O que as pessoas querem hoje é uma suíte de hotel de luxo!', diz João Pedrosa, citando uma frase
da amiga Danuza Leão: 'Parece que todo mundo nasceu de proveta'. Ou seja, ninguém tem família,
foto antiga, objeto herdado, ninguém tem nada que não foi comprado ontem. Com isso, a casa
moderna de hoje daqui a cinco anos será datada.
'Lamento muito essa necessidade de alto consumo', diz Negrete, lembrando as funções educativas
do decorador, ao orientar o morador sobre formas de viver bem e de criar o repertório histórico da
família: 'O cenário dos sonhos que os filhos terão quando adultos. E, às vezes, dentro do belo há
equilíbrio e paz'.
Hoje, é preciso cuidado para não fazer da casa uma vítima da moda. Uma forma de driblar, sugere
Pedrosa, é misturar o clássico com o moderno na decoração, mas com objetos de qualidade. Afinal,
o bom sempre permanece.
Para cultuar a TV, móveis de pés palito
Era dos móveis de pés palito, das cadeiras e mesas de pernas longilíneas que tão fortemente
marcaram época. O tampo das mesas de centro, entre outros objetos, ganham a forma amebóide.
Estofados com tecido esticado, sem almofadas, estantes vazadas, plantas dispostas em jardineiras
dentro de casa e paredes de pedra estão na moda. A chegada da televisão mexe na disposição da
sala - um lugar de destaque é reservado ao cobiçado e caro aparelho, em torno do qual se reúnem
as famílias. É a fase em que se destacam os novos designers, cuja preocupação era produzir peças
compatíveis com a arquitetura moderna. Zanine Caldas, e sua famosa loja Móveis Z, o artista
Joaquim Tenreiro e o arquiteto Sergio Rodrigues, que desenhava para a sua loja Oca, são alguns
deles.
MODERNA e ousada, a revista estampa na capa a
casa projetada pelo arquiteto e artista plástico
Flávio de Carvalho; à reportagem, ele fala de
detalhes do projeto, inclusive da decoração: 'As
cortinas do salão foram estudadas em largura,
comprimento e peso específico para que possam
balançar ao vento para fora e para dentro, ao
ritmo eventual da música' (Capa de
janeiro/fevereiro de 1958)
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A REVISTA trazia com freqüência anúncios da
famosa fábrica de móveis Z, do mestre moveleiro e
arquiteto autodidata Zanine Caldas
A CASA PROJETADA por Oscar Niemeyer, estrela
dos primeiros capítulos da minissérie da Globo
Queridos amigos, foi mostrada em Casa e Jardim
em 1957, quando as plantas do paisagismo de
Burle Marx ainda estavam pequenas; ao lado,
detalhe da grama em forma de tabuleiro e estátua
de Alfredo Ceschiatti
O clássico faz tanto sucesso quanto o moderno
Os poucos decoradores trabalham para a elite culta e muito rica de
São Paulo e do Rio de Janeiro, cujas casas clássicas exibiam obras de
Picasso, Di Cavalcanti, Carybé, Manabu Mabe... Nas residências
modernas, mobiliário da loja Hobjeto, desenhado pelo artista plástico,
fotógrafo e empresário Geraldo de Barros, assim como peças de
design inovador de autoria de Zanine e Sergio Rodrigues. O morador
também assina a decoração da casa, ajudado muitas vezes pelo dono
da loja de móveis ou por um marchand. No final da década, surge uma
forma de resgate de culturas mais primitivas, e as modas do Marrocos,
da Índia, da África ou de tecidos estampados com desenhos da arte
indígena brasileira fazem sucesso, o que se estende aos anos
seguintes.
Capa de julho de 1962
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SALA DE MÚSICA de um dúplex na Lagoa,
Rio de Janeiro, decorada pelo arquiteto
Sergio Rodrigues; suas premiadas poltronas
Mole fazem par com uma poltrona desenhada
pelo arquiteto Lúcio Costa; a revista
comemorava os dez anos da loja OCA, de
Rodrigues, responsável por modernizar as
casas brasileiras
O CLÁSSICO era cultuado pela elite, como
mostra esta sala classuda de um apartamento
na avenida Atlântica, no Rio, com muito tapete,
pesados sofás, pratarias e obras de arte, como
quadros de Di Cavalcanti e Djanira
ARQUITETURA MODERNA: a casa do
importante designer e arquiteto Jorge
Zalszupin, que assinou também a
decoração, mais arejada e aconchegante
para a época
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Desenhos gráficos ao lado de materiais ousados
Os grafismos se apoderam das formas de móveis, luminárias e outros
acessórios e das estampas dos tecidos, dos azulejos de cozinha e
banheiro e de papéis de parede. É forte também a presença do
cromado, do acrílico e do plástico (na luminária ou no estofado) em
cores vibrantes, como berinjela, verde e laranja. O aveludado chenile
e o lustroso chintz são os tecidos do momento.
Capa de edição de
aniversário
UM CLÁSSICO inconfundível dos anos
1970: o estilo do trabalho de arquitetura
e de design de interiores de Ugo di Pace
EXTRAVAGÂNCIA: acima, o grafismo em tecidos que cobrem uma parede
inteira ou os assentos e encostos das cadeiras, cores fortes em abundância,
como a dupla verde-abacate com roxo, e os móveis modulares
denunciam o espírito libertário da década
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Inaugura-se, no Brasil, a era dos decoradores
Várias modas convivem entre si, como a contemporânea, o neoclássico
e os anos 1950, e também nascem duas tendências: o high-tech, com
seu apelo industrial, e o extravagante Memphis, tentativa de ridicularizar
os estilos, fazendo blagues com o mobiliário. É forte o consumo dos
simples e elegantes móveis Biedermeier, estilo da Europa Ocidental no
século 18. Surge também a onda minimalista, que usa poucos móveis
no ambiente, muitos de madeira rádica, de laca e também de rattan. Nos
pisos, madeira clara. O tecido da vez é o chintz, algodão encerado. No
Brasil, começa a era dos decoradores, quando o profissional assume
importância.
Capa de maio de 1987
REPORTAGEM sobre a primeira Casa Cor, em 1987,
com a participação de nomes importantes, como José
Duarte de Aguiar (na foto, detalhe do living ambientado
pelo arquiteto), Germano Mariutti
e Julio Pechman
HOME THEATER de época: a pesada
aparelhagem de áudio e vídeo faz a cena
high-tech da casa, acomodada, em meio
a plantas, em ampla
estante de cerejeira
O REGISTRO do trabalho da respeitada arquiteta Janete Costa, famosa por
pesquisar e introduzir na decoração peças de arte popular brasileira: na sala
de estar (dir.) potes antigos e busto esculpido em madeira;
no hall da casa (esq.), cestaria indígena
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Minimalismo faz tudo ficar mais claro
A década chega apostando no minimalismo. O design ganha valorização
e marca presença em quase tudo. Surge a estrela Philippe Starck. O
étnico e o tecnológico, assim como o antigo e o high-tech, convivem sem
qualquer oposição. Os ambientes ficam claros, graças ao uso intenso da
madeira marfim, que, com a rádica, faz a dobradinha da hora. A
decoração se populariza e começa a surgir uma preocupação com o
meio ambiente. Ainda que tímida, desponta a mistura de estilos, que
ganha força na década posterior.
Capa de agosto de 1998
SISAL NO PISO, pele sintética na mesa de
centro, palha italiana na cúpula da luminária:
os contrastes e o étnico marcam presença na
sala do arquiteto Julio Pechman
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O MIX DE ESTILOS começa a dar sinais: a
sala de jantar reúne lustre francês, tapete
Heriz, parede de tijolo aparente e cadeiras
Biedermeier. A rádica - madeira típica
da década - faz a mesa
O PODER é dado à madeira pau-marfim
e tudo fica claro: o mobiliário e também
o piso, feito de tábua clareada
e patinada
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ESPAÇOS amplos, prioridade total para a luz natural, o
design e a funcionalidade dos móveis e objetos, tudo
sobre piso único de madeira tauari; o projeto de
arquitetura e design de interiores é de Arthur Casas
O ARQUITETO Carlos Motta, mestre do design
em madeira certificada, explora tudo de bom que
a natureza oferece sem devastá-la: pedras da
região onde foi erguida a casa, no sul de Minas,
compõem a parede da lareira
CASA E JARDIM valoriza e divulga a casa
enquanto 'ninho', aconchego do morador,
onde os objetos com história, seja de
família ou de uma viagem, têm lugar
cativo. Este apartamento é da estilista
Andréa Kraemer, com projeto
de Gustavo Calazans
FONTE
http://editora.globo.com/especiais/2008/especial55anos

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