Capitulo 002.p65 - alberini.com.br

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Capitulo 002.p65 - alberini.com.br
Capítulo XXX
O cinco de setembro
O adiamento concedido pelo mandatário da casa Thomson & French, no
momento em que Morrel menos o esperava, pareceu ao pobre armador um destes
retornos da felicidade que anunciam a um homem que finalmente o destino deixou
de lhe ser infiel. Na mesma hora ele contou à sua mulher, sua filha e a Emannuel
o que lhe acontecera, e um pouco de esperança, para não dizer tranqüilidade,
entrou no seio da família. Contudo, infelizmente, o senhor Morrel não tinha
negócios apenas com a casa Thomson & French, que lhe fora tão amistosa. Como
se costuma dizer, no comércio não se tem amigos, apenas conhecidos. Enquanto
pensava sobre o assunto com maior profundidade, sequer compreendia esta conduta
generosa da firma Thomson & French em relação a ele. Refletiu: certamente esta
empresa concluiu que era melhor dar um prazo adicional a quem lhe devia mais
de quatrocentos mil francos, do que pedir a sua falência, e perder tudo, ao invés
de receber os seus juros, no final do tempo concedido.
Infelizmente, seja por raiva, seja por uma cegueira comercial, todos os outros
investidores nos negócios da casa Morrel não fizeram a mesma reflexão, e alguns,
ao contrário, fizeram a reflexão contrária. Os títulos assinados por Morrel foram,
portanto, apresentados na boca do cofre, com escrupuloso rigor em seus
vencimentos, e graças ao adiamento concedido pelo inglês, foram pagos por Coclès
integralmente. Assim, Coclès continuou a permanecer em sua tranqüilidade
fatídica. Somente o senhor Morrel viu, com terror, que se tivesse de pagar ambas
as dívidas, do senhor de Boville e as restantes, em seus vencimentos, não fora o
inglês o ajudar, ele seria um homem perdido.
E a opinião geral do comércio de Marselha era de que sob os sucessivos revezes
que o minavam, Morrel não poderia agüentar. E o espanto foi grande quando, no
fim do mês, ele cumpriu com suas obrigações comerciais com a exatidão costumeira.
No entanto, mesmo com os pagamentos feitos, a confiança não voltou ao espírito
cético dos comerciantes e investidores locais. Aguardava-se, com ansiedade, o
fim do próximo mês, para verificar o destino do infeliz armador.
Todo o mês se passou com os esforços inauditos da parte de Morrel para amealhar
o restante de seus recursos. Antigamente, seus títulos, com vencimento em qualquer
data, eram aceitos com confiança, e muito disputados. Morrel tentou negociar seus
títulos com prazo mais dilatado, e encontrou todas as portas dos bancos fechadas
diante de si. Felizmente Morrel ainda tinha alguns créditos na praça, com os quais
podia contar: estas entradas foram pagas, e o armador se viu, portanto, na condição
de encarar os títulos que se venciam, quando chegou o fim de julho.
De resto, ninguém revira em Marselha o mandatário da casa Thomson &
French; na manhã seguinte à sua visita ao senhor Morrel, o homem desaparecera;
ora, como em Marselha ele mantivera contato apenas com o prefeito, com o
inspetor das prisões e com Morrel, sua passagem pela cidade não deixara qualquer
lembrança senão a destes senhores. Quanto aos marinheiros do Pharaon, pareceu
a todos que encontraram trabalho em algum outro lugar, porque também
desapareceram.
O capitão Gaumard, refeito da indisposição que o retivera em Palma, voltou
à cidade. Ele hesitava em se apresentar na firma do senhor Morrel: mas este soube
de sua chegada, e foi ele mesmo ao seu encontro. O digno armador sabia, de
antemão, pela narrativa de Penelon, da corajosa conduta que o seu capitão tivera
durante todo o sinistro, e foi ele quem consolou o homem do mar. Levou para ele
o seu soldo, que o capitão Gaumard não queria nem tocar, mas que ficou sobre a
mesa de seu quarto.
Ao descer a escada, o senhor Morrel encontrou Penelon, que a subia. Penelon,
ao que parecia, tinha empregado muito bem o seu dinheiro, porque estava usando
roupas novas. Ao perceber o armador, o digno timoneiro pareceu muito
embaraçado; afastou-se para o lado, ficou rodando sua boina de uma mão para a
outra, e rolava os olhos para todos os lados, respondendo apenas com um leve e
tímido toque a mão que cordialmente lhe estendeu o armador. O senhor Morrel
atribuiu o embaraço de Penelon à elegância de sua vestimenta: era evidente que
o bravo marujo não teria conseguido comprar as roupas por sua conta; já devia
estar engajado em qualquer outro navio, sem dúvida, e certamente sua vergonha
vinha de que, já não mais existindo o Pharaon, o seu luto fora tão curto. Era
possível até que estivesse vindo contar ao capitão Gaumard a sua boa sorte, e
talvez até mesmo lhe oferecer um novo emprego junto ao novo patrão.
Brava gente, disse Morrel, distanciando-se, faço votos que o seu novo armador
goste tanto de vocês como eu gosto, e que sejam mais felizes do que eu!
Agosto decorreu em tentativas sem cessar renovadas por Morrel para retomar
o seu antigo crédito na praça. No dia 20 de agosto soube-se em Marselha que ele
pegou uma carruagem da mala postal, e o boato correu solto de que tinha fugido,
para não quitar os investimentos que venceriam no fim do mês. Certamente ele
fizera isto, delegando ao seu empregado Mannuel e ao caixa Coclès o vexame da
insolvência. Contudo, contra todas as previsões, quando chegou o dia 31 de agosto,
a caixa se abriu, como de costume. Coclès apareceu atrás do balcão, calmo como
o justo Horácio, examinou com a mesma atenção os títulos que lhe foram
apresentados, e, desde o primeiro, até o último, pagou-os, com a mesma exatidão
costumeira. Naquele dia ele chegou a pagar duas quantias consideráveis. Ninguém
compreendia mais nada, e aguardava-se, com a tenacidade particular aos profetas
das más notícias, a falência no fim de setembro.
No dia primeiro de setembro, o armador chegou: era aguardado por toda a sua
família, com grande ansiedade; desta viagem a Paris deveria surgir sua derradeira
via de salvação. Morrel pensara em Danglars, hoje em dia milionário, e que
antigamente fora ajudado por ele, pois a sua indicação é que propiciara a Danglars
entrar a serviço do banqueiro espanhol, onde começou a sua imensa fortuna. Hoje
em dia, falava-se a boca pequena, Danglars, possuidor de mais de oito milhões de
francos, tinha crédito ilimitado; Danglars, sem sacar um franco do bolso, poderia
salvar Morrel: bastaria ser fiador de um empréstimo, e Morrel conseguiria se salvar.
Há muito tempo que Morrel pensava em Danglars; todavia, em seu íntimo ele
mantinha uma repulsa instintiva, que não conseguia evitar, e retardara ao máximo
a possibilidade de recorrer a este meio supremo. E Morrel tinha razão, porque
voltara sob a humilhação de uma recusa.
Mesmo assim, em seu retorno, Morrel não se lamentou uma única vez, não
proferiu nenhuma recriminação; abraçou, chorando, a sua filha e sua mulher,
estendeu amigavelmente a mão para Emannuel, enfiou-se em seu escritório do
andar superior, e mandou chamar Coclès.
Desta vez, disseram as duas mulheres a Emannuel: estamos realmente perdidas!
Em seguida, após uma curta conversa, chegaram à conclusão que Julie deveria
escrever ao seu irmão, que estava numa guarnição em Nimes, para vir
imediatamente.
Instintivamente as duas mulheres sentiam que necessitavam de toda a ajuda,
para suportar o golpe que se prenunciava.
Além disso, Maximilien Morrel, embora com apenas vinte e quatro anos, já
tinha grande influência sobre seu pai.
Era um jovem firme e honesto. Na ocasião em que se pensou numa carreira
para ele, seu pai não quisera impor um futuro ao filho, e perguntou-lhe o que gostaria
de ser. O jovem homem declarou que pretendia seguir a carreira militar; assim, após
brilhantes estudos, entrou através de concurso na Escola Politécnica, e saiu dali
como segundo tenente, do 53º batalhão de linha. Depois de um ano neste posto,
recebeu a promessa de subir para tenente. No seu regimento, Maximilien Morrel
era citado como o rígido observador, não somente de todas as obrigações impostas a
um soldado, mas também de todos os deveres propostos ao homem, e era apelidado
de “estóico”. Nem é preciso dizer que o apelido foi dado por algum conhecedor de
filosofia, mas a maioria de seus colegas sequer sabiam do que se tratava.
Era este jovem homem que sua mãe e irmã chamavam em sua ajuda, para as
apoiar na grave circunstância que sentiam estar por estourar.
E elas não se enganaram sobre a gravidade do acontecimento, porque apenas
um momento após o senhor Morrel ter entrado em seu escritório com Coclès,
Julie viu sair este último pálido, trêmulo, com o rosto desfigurado pela emoção.
Oh! Senhorita! Senhorita! Que horrível infelicidade! E eu que jamais acreditei
que pudesse acontecer!
Um momento depois, Julie o viu subir, carregando dois ou três livros contábeis,
uma carteira e um saco de dinheiro. Morrel consultou os livros, abriu a carteira e
contou o dinheiro.
Todos os seus recursos atingiam seis ou oito mil francos, e seus créditos, até o
dia 5, chegavam a mais uns cinco mil, o que dava apenas treze ou quatorze mil
francos, para fazer frente a uma dívida de mais de quatrocentos mil francos. Ele
sequer teria coragem de oferecer este valor em compensação ao seu credor.
Contudo, ao descer para o jantar, o armador parecia calmo. Esta calma assustou
mais as duas mulheres do que se ele estivesse em profundo abatimento.
Após o jantar, Morrel tinha o costume de sair; sempre ia tomar seu café no
bar dos Phocéens, onde lia o jornal. Neste dia ele não saiu, e voltou para o escritório.
Quanto a Coclès, demonstrava completo aturdimento. Durante uma parte
do dia permanecera no jardim, sentado sobre uma pedra, a cabeça nua debaixo de
um sol de trinta graus.
Emannuel tentou tranqüilizar as mulheres, No entanto, era pouco
convincente. O jovem estava por demais ao corrente dos negócios da firma para
não perceber que uma grande catástrofe pesava sobre a família Morrel.
Chegou a noite: as duas mulheres permaneceram aguardando, com a esperança
de que, descendo do seu escritório, Morrel viria ao seu encontro; todavia, elas
ouviram seus passos apressados, certamente com receio de ser chamado.
Prestaram atenção, e ouviram quando entrou em seu quarto, fechando a porta
atrás de si.
A senhora Morrel mandou sua filha deitar; depois de cerca de meia hora,
quando Julie já saíra há tempo, ela levantou-se, tirou seus sapatos e deslizou pelo
corredor, para ver através do buraco da fechadura o que fazia o seu marido.
No corredor a mulher percebeu uma sombra, que se escondia: era Julie, que,
inquieta como ela, tinha precedido sua mãe.
A jovem foi até a mãe.
Ele escreve, disse Julie.
As duas mulheres tiveram o mesmo pensamento, sem se falarem.
A senhora Morrel inclinou-se junto ao buraco da fechadura. Com efeito,
Morrel escrevia; porém, o que não fora notado pela filha, a esposa percebeu: seu
marido escrevia num papel timbrado.
E a idéia, terrível, veio ao seu pensamento: ele está escrevendo o seu
testamento; ela estremeceu profundamente, contudo não teve forças para dizer
nada.
Na manhã seguinte, o senhor Morrel parecia muito calmo; foi para o escritório,
como de costume, e somente após o almoço pediu à sua filha que sentasse ao seu
lado, pegou com as mãos o seu rosto, e a manteve junto de si por um longo tempo.
À tarde, Julie disse para a mãe que, embora ele aparentemente estivesse calmo,
notara que seu coração batia violentamente.
Os outros dois dias escoaram-se mais ou menos iguais. No dia 4 de setembro,
à tarde, o senhor Morrel pediu para a filha que lhe entregasse a chave do escritório.
Julie estremeceu diante deste pedido, que lhe pareceu sinistro. Por que seu
pai pedia de volta a chave, que ela sempre mantivera consigo? Somente quando
criança, se pretendiam puni-la, tomavam a chave de volta.
A jovem olhou para o pai.
O que eu fiz de errado, meu pai, para que o senhor peça a chave de volta?
Nada, minha filha, respondeu o infeliz Morrel, a quem uma pergunta tão simples
fez com que os olhos se enchessem de lágrimas. Nada, simplesmente preciso dela.
Julie fingiu procurar a chave.
Creio que a deixei em meu quarto. Já volto.
Ela saiu; mas ao invés de ir ao seu quarto, desceu a escada e foi correndo
consultar Emannuel.
Não entregue a chave ao seu pai, disse ele, e amanhã, se for possível, não saia
de perto dele.
A jovem tentou questionar Emannuel, mas ele não sabia de nada, ou então
não queria dizer nada.
Durante toda a noite de 4 para cinco de setembro, a senhora Morrel
permaneceu com o ouvido colado à porta. Lá pelas três horas da madrugada, ouviu
o marido caminhando incessantemente pelo quarto.
E somente depois de algum tempo é que o ouviu se jogando sobre a cama.
As duas mulheres passaram a noite juntas. Desde o dia anterior aguardavam a
chegada de Maximilien.
Às oito da manhã, o senhor Morrel entrou na sala onde as duas se encontravam.
Parecia calmo, contudo, a agitação da noite anterior podia ser vista em seu rosto,
pálido e desfeito.
As mulheres não ousaram perguntar se tinha dormido bem.
Morrel foi mais carinhoso com sua mulher, e mais paternal com sua filha do
que jamais fora. Não parava de fitar e de abraçar a pobre criança.
Julie lembrou-se da recomendação de Emannuel, e pretendeu segui-lo, quando
quis sair; mas o armador a afastou, com doçura:
Fique com sua mãe, pediu.
Julie insistiu, e ouviu a recusa:
Quero ficar só, disse ele.
Era a primeira vez que Morrel dizia para a sua filha: eu quero; contudo, ele
dizia a palavra com tal doçura paternal, que Julie não ousou dar nem mais um
passo.
Ela ficou no mesmo lugar, de pé, muda e imóvel. Um momento depois, a
porta de entrada se abriu, ela sentiu dois braços que a apertavam, e uma boca que
se unia à sua fronte.
A jovem ergueu os olhos e soltou um grito de alegria.
Maximilien! Meu irmão!
Ouvindo o grito, a senhora Morrel veio correndo e se jogou nos braços do
filho.
Minha mãe, disse o jovem militar, olhando alternativamente a senhora Morrel
e Julie, o que está acontecendo? A sua carta me assustou, vim correndo como
louco!
Julie, disse a senhora Morrel, fazendo um sinal para o jovem, Julie, vá dizer ao
seu pai que Maximilien acaba de chegar.
A jovem saiu apressadamente do aposento, mas quando estava dando o
primeiro passo na escada, encontrou um homem, segurando uma carta na mão.
O seu nome é Julie Morrel? Disse o homem, com um sotaque fortemente
italiano.
Sim, senhor, balbuciou a moça, mas, o que o senhor quer? Eu não o conheço.
Leia esta carta, disse o homem, entregando-lhe o papel.
Julie hesitou.
Trata-se da saúde de seu pai, explicou o mensageiro.
A jovem arrancou a carta da mão do homem.
Abriu-a excitadamente, e leu:
“Vá imediatamente na alameda de Meilhan, entre na casa nº 15, peça à
zeladora a chave do apartamento do quinto andar, entre no quarto, pegue sobre a
lareira uma bolsa de seda vermelha, e traga esta bolsa para o seu pai.
É importante que isto seja feito antes das onze horas.
A senhorita prometeu-me obedecer cegamente, eu cobro a sua promessa.
Simbad, o marujo”
A jovem soltou um grito de alegria, ergueu os olhos, procurou o homem que
trouxera o bilhete, para o interrogar, mas ele desaparecera.
Então ela voltou-se para ler uma segunda vez o bilhete, e percebeu que havia
um “post scriptum”:
“É importante que a senhorita cumpra esta missão em pessoa, e sozinha; se
aparecer acompanhada, ou que outro qualquer vá ao local, a zeladora responderá
que não sabe do que está falando”
Este “post scriptum” foi um poderoso corretivo na alegria da jovem. Teria ela
alguma coisa a temer? Não seria alguma armadilha que estavam preparando? Sua
inocência a deixava na ignorância de quais eram os perigos que poderia correr
uma jovem donzela de tão tenra idade; todavia, não é necessário conhecer os
perigos da vida para os temer, pois são justamente os perigos desconhecidos que
inspiram maior terror.
Julie hesitou, e decidiu pedir conselho a alguém.
Contudo, por um estranho pressentimento, não foi nem à sua mãe e nem ao
seu irmão a quem ela recorreu, e sim a Emannuel.
Ela voltou e contou ao jovem homem o que tinha acontecido no dia em que
o mandatário viera até sua casa. Contou também o que se passara na escada,
repetiu a promessa feita, mostrando-lhe a carta.
É preciso ir lá, disse Emannuel.
Ir lá sozinha? Murmurou ela.
Sim, eu a acompanharei.
Mas você não viu que a carta manda que eu vá sem ninguém? Perguntou
Julie.
Você estará só, respondeu o jovem homem, mas ficarei na esquina da rua do
Museu; se você demorar muito, se eu sentir alguma preocupação no ar, então irei
procura-la, garanto-lhe que se alguém pretender lhe fazer algum mal terá que se
haver comigo!
Assim, Emannuel, retomou a hesitante jovem, o seu conselho é que eu vá
sozinha a este lugar?
Sim. O mensageiro não disse que se trata da saúde do seu pai?
Mas, enfim, Emannuel, que perigo corre o meu pai? Insistiu Julie.
Emannuel hesitou um instante, contudo o desejo de convencer a jovem de
uma vez por todas tomou conta dele.
Escute, disse ele, hoje é o dia 5 de setembro, não é mesmo?
Sim.
Hoje, às onze horas, o seu pai terá que pagar mais de quatrocentos mil francos.
Sim, sabemos muito bem.
E então, explicou Emannuel, ele tem somente quinze mil francos em caixa.
Mas o que vai acontecer?
Vai acontecer que se hoje, antes das onze horas o seu pai não encontre algum
meio de ajuda, ao meio dia o seu pai será obrigado a declarar bancarrota.
Oh! Venha! Venha! Exclamou Julie, arrastando o jovem homem pela mão.
Durante este tempo, a senhora Morrel tinha contado tudo para o filho.
O militar conhecia bem toda a série de infortúnios sucessivos que atingiram
seu pai, mas ignorava que as coisas tivessem chegado a tal ponto.
Ficou arrasado.
Em seguida, saiu do aposento, subiu rapidamente a escadaria, porque acreditava
que seu pai estivesse no escritório, mas bateu na porta em vão.
Como se encontrava diante da porta do escritório, ouviu a porta do
apartamento de seu pai se abrir; voltou-se e viu Morrel.
Ao invés de entrar no escritório, o senhor Morrel voltara para o seu quarto, e
somente naquele momento saia.
O armador soltou uma exclamação de surpresa ao perceber Maximilien;
ignorava a chegada de seu filho. Permaneceu imóvel no mesmo lugar, escondendo
com o braço esquerdo um objeto que guardara em seu paletó.
Maximilien desceu vivamente a escada e lançou-se ao pescoço de seu pai;
porém, de repente, recuou, deixando apenas a mão direita sobre o ombro do
armador.
Meu pai, perguntou ele, tornando-se pálido como a morte, por que o senhor
está com um par de pistolas guardada no paletó?
Oh! Eis o que eu temia, disse Morrel.
Meu pai, meu pai! Exclamou o jovem, porque estas armas?
Maximilien, respondeu o armador, olhando fixamente seu filho, você já é
homem feito, e um homem de honra; venha comigo, vou explicar tudo.
E Morrel subiu com passos firmes a escada, entrou no escritório, enquanto o
filho o seguia, tremendo de medo.
Morrel abriu a porta, fechou-a atrás do filho, atravessou a ante sala, aproximouse da escrivaninha, colocou as armas sobre ela, e mostrou ao filho um livro contábil
aberto.
Neste registro está consignada a situação exata.
Morrel teria que pagar, dentro de meia hora, quatrocentos mil francos.
Ele possuía apenas quinze mil francos.
Leia, disse Morrel.
O jovem militar leu, e parou, transtornado.
Morrel não disse uma palavra: o que poderia dizer para afastar todos estes
números infernais?
Mas o senhor fez de tudo, meu pai, para tentar evitar esta infelicidade?
Sim, respondeu Morrel.
O senhor não tem mais nenhum recurso, nenhuma entrada?
Nada!
O senhor esgotou todos os seus recursos?
Todos.
E em meia hora, indagou Maximilien, com voz lúgubre, o nosso nome ficará
desonrado?
O sangue lava a desonra, Disse Morrel.
O senhor tem razão, meu pai, eu o compreendo. Em seguida, estendendo as
mãos para as pistolas:
Aqui há uma para o senhor e uma para mim, obrigado!
Morrel segurou sua mão.
E sua mãe...e sua irmã...quem as sustentará?
Um tremor percorreu todo o corpo do jovem homem.
Meu pai, o senhor quer que eu viva?
Sim, eu quero, respondeu Morrel, porque é o seu dever, você tem o espírito
forte e calmo, Maximilien...Maximilien, você não é um homem comum; não
comando nada, não ordeno nada, somente lhe digo: examine a situação como se
fosse um estranho, e julgue-a por si mesmo.
O jovem homem refletiu um momento, depois, uma expressão de sublime
resignação passou pelos seus olhos; apenas retirou, com um movimento lento e
triste, os galões que ornavam seus ombros, insígnias de sua patente.
Tudo bem, disse ele, estendendo a mão para Morrel, morra em paz, meu pai!
Eu viverei!
Morrel fez um movimento para se lançar de joelhos diante de seu filho, mas
Maximilien o agarrou e o apertou contra o peito, e estes dois nobres corações
bateram um instante contra o outro.
Você sabe que nada foi por culpa minha? Indagou Morrel.
Maximilien sorriu.
Sei, meu pai, que o senhor é o homem mais honesto do mundo!
Está certo, tudo foi dito: e agora, volte para junto de sua mãe e de sua irmã.
Meu pai, disse o jovem homem, dobrando o joelho, abençoe-me!
Morrel pegou o rosto de seu filhos entre as duas mãos, aproximou-o de si, e
imprimindo nele diversas vezes os seus lábios:
Oh! Sim, sim, disse ele, eu o abençôo, em meu nome e em nome de três
gerações de homens irrepreensíveis; escute o que eles dizem, através de minha
voz: o edifício que o mal destruiu, a Providência pode reconstruir. Vendo-me
morto de uma tal morte, até os mais duros corações terão piedade de você; apenas
a você eles darão o tempo que me recusaram: assim, cuide para que a palavra
infame não seja pronunciada; coloque-se em ação, trabalhe, jovem, lute
ardentemente e com coragem; viva, você, sua mãe e sua irmã, apenas com o
necessário, afim de que, após algum tempo, vocês consigam pagar tudo, e o bem
frutifique. Sonhe que este será um belo dia, um dia solene, o dia da reabilitação, o
dia em que, neste mesmo escritório, você dirá: meu pai morreu porque não
conseguiu fazer o que faço hoje; mas ele morreu tranqüilo, calmo, porque sabia
que, ao morrer, eu o faria em seu lugar!
Oh! Meu pai! Meu pai! Exclamou o jovem, se no entanto o senhor pudesse
viver!
Se eu viver, tudo mudará; se eu vivo, o interesse mudará para a dúvida, a
piedade em impiedade; se eu vivo, não serei nada mais do que um homem que
faltou com sua palavra, que deixou de cumprir com suas obrigações, não serei
nada mais do que um falido. Ao contrário, se eu morrer, pense nisto, Maximilien,
meu cadáver será apenas o de um homem honesto, mas infeliz. Vivo, meus melhores
amigos me evitarão, evitarão minha firma; morto, Marselha inteira seguirá meu
enterro, chorando até minha última morada. Vivo, você terá vergonha de seu
sobrenome; morto, você poderá erguer a cabeça bem alto e dizer:
Sou o filho do homem que se matou, porque, pela primeira vez, ele foi obrigado
a faltar com sua palavra!
E agora, meu filho, deixe-me sozinho, disse Morrel, deixe-me sozinho, e trate
de afastar as mulheres da casa.
O senhor não quer ver sua filha uma última vez? Perguntou Maximilien.
Um última ultima e surda esperança estava escondida atrás desta pergunta,
pois a conversa com Julie podia dar resultado, eis porque ele a propunha.
O senhor Morrel sacudiu a cabeça negativamente.
Eu a vi esta manhã, disse ele, e dei-lhe adeus.
O senhor não tem qualquer recomendação particular a me fazer, meu pai?
Indagou Maximilien, com a voz alterada.
Sim, realmente, meu filho, uma recomendação sagrada.
Diga, meu pai.
A casa Thomson & French foi a única que, por humanidade, ou até mesmo
por egoísmo, talvez, mas quem sou eu para ler no coração dos homens, enfim, foi
a única que teve piedade de mim. Seu mandatário, a pessoa que, em dez minutos
se apresentará para receber a quantia que lhe devo, e nada receberá, deve ter
primazia. Que esta firma seja a primeira a ser reembolsada, meu filho, e que este
homem seja sagrado para você.
Sim, meu pai, concordou Maximilien.
E agora, mais uma vez, adeus, disse Morrel, vá, vá, tenho necessidade de ficar
só; você encontrará meu testamento na gaveta da minha mesa, em meu quarto.
O jovem homem permaneceu de pé, inerte, sem qualquer vontade de se mover
diante de situação tão terrível.
Escute, Maximilien, disse seu pai, vendo a hesitação, suponha que eu fosse um
soldado, como você, e que eu tivesse recebido ordem a cumprir numa batalha, mas
que soubesse que iria morrer cumprindo-a, você não me diria: vá, meu pai, porque
se o senhor não for, ficará desonrado, e melhor vale a morte do que a vergonha!
Sim, sim, exclamou o jovem soldado, sim. E apertando convulsivamente o
pai em seus braços, concluiu:
Vá, meu pai, vá!
E lançou-se para fora do escritório.
Quando seu filho saiu, Morrel permaneceu por um momento de pé, os olhos
fixos sobre a porta fechada; depois, estendeu a mão, encontrou o cordão da
campainha e puxou-o com força.
Após um instante, Coclès apareceu.
Não era mais o mesmo homem de três dias atrás, sua convicção estava
alquebrada. O pensamento: a casa Morrel vai deixar de quitar seus compromissos,
o curvava em direção à terra mais do que teriam feito vinte anos de trabalhos
forçados sobre a cabeça.
Meu bom Coclès, disse Morrel, com um tom de voz que seria impossível de
traduzir, você vai permanecer na ante sala. Quando este senhor, que veio aqui há
três meses, você sabe quem é, o funcionário da firma Thomson & French, aparecer,
você o anuncia para mim.
Coclès não respondeu; fez um sinal positivo com a cabeça, foi sentar-se na
ante sala, aguardando.
Morrel caiu pesadamente em sua cadeira; seus olhos não se moviam dos
ponteiros do relógio: ainda lhe restavam sete minutos, eis tudo; o ponteiro maior
caminhava com uma rapidez incrível; parecia que iria voar.
O que se passou então, neste momento supremo, no espírito deste homem,
que, jovem ainda, em seguida a um pensamento, falso talvez, mas ao menos
conseqüente, e que iria se separar de tudo o que amava no mundo, abandonar a
vida, que para ele tinha todas as doçuras da família, é impossível de exprimir;
seria necessário ver, para ter uma idéia, sua fronte coberta de suor, e no entanto
resignado, seus olhos marejados de lágrimas, e no entanto erguidos para o céu.
O ponteiro não parava de caminhar, as pistolas estavam carregadas; ele
estendeu a mão, pegou uma delas, e murmurou o nome de sua filha.
Em seguida, colocou de volta a arma mortal, pegou uma pluma e escreveu
algumas palavras no papel que tinha diante de si.
Parecia a ele que não dissera adeus o suficiente para sua criança querida.
Depois, voltou-se para o relógio; já não contava os minutos, apenas os
segundos.
Retomou a arma, a boca entreaberta, os olhos fixos no ponteiro maior;
estremeceu, apesar de si mesmo, quando ergueu o gatilho.
Neste momento, um suor mais frio apareceu em sua testa, uma angústia mais
mortal apertou seu coração.
Ele escutou a porta que dava para a ante sala se abrir, logo após, a do seu
escritório.
O pêndulo iria soar as onze horas.
Morrel não olhou para a porta, apenas esperava as palavras ditas por Coclès:
O mandatário da casa Thomson & French está aqui!.
Então aproximou a arma de sua boca.
De repente, ouviu um grito: era a voz de sua filha.
Ele se voltou e percebeu Julie; a arma escapou de sua mão.
Meu pai! Gritou Julie, quase sem fôlego, quase morrendo de alegria, salvo! O
senhor está salvo!
E ela se jogou nos braços do pai, erguendo na mão direita uma bolsa vermelha
desbotada, com fios de seda puídos.
Salvo, minha criança! O que quer dizer com isso?
Sim, salvo! Veja, veja, disse a filha.
Morrel pegou a bolsa, e estremeceu, porque uma vaga lembrança surgiu em
sua memória diante deste objeto, pois lhe pertencera.
Num canto havia um maço de títulos, na quantia que ele devia aos investidores.
Os títulos estavam quitados.
Num outro canto, havia um diamante do tamanho de uma noz, com três
palavras escritas num pequeno pergaminho:
“Dote de Julie”
Morrel passou a mão sobre a testa suada. Pensava estar sonhando.
Neste instante o pêndulo soou onze horas.
O timbre vibrou para ele como se cada golpe do martelo de aço batesse no seu
próprio coração.
Vejamos, minha filha, disse ele, explique-me. Onde você encontrou esta bolsa?
Numa casa da alameda de Meilhan, no número 15, sobre uma lareira, num
pequeno quarto, no quinto andar.
Mas, exclamou o senhor Morrel, está bolsa não é sua.
Julie estendeu ao seu pai a carta que tinha recebido naquela manhã.
E você foi sozinha a este lugar? Perguntou Morrel, depois de ler a carta.
Emannuel me acompanhou, meu pai. Ele devia me esperar na esquina da rua
do Museu, mas, coisa estranha, quando voltei, ele já não estava lá.
Senhor Morrel! Gritou uma voz na escada, senhor Morrel!
É a voz dele, disse Julie.
Ao mesmo tempo, Emannuel entrou, o rosto iluminado de alegria e emoção.
O Pharaon! Exclamou o jovem. O Pharaon!
E então, o que foi? O Pharaon? Você está louco, Emannuel? Você sabe muito
bem que o barco naufragou!
O Pharaon! Senhor Morrel, avistaram o Pharaon! O Pharaon está entrando
no porto!
Morrel caiu novamente sobre a cadeira; faltavam-lhe as forças; sua inteligência
recusava-se a classificar e julgar esta seqüência de acontecimentos incríveis,
inesperados, fabulosos.
Reforçando as palavras de Emannuel, seu filho entrou,gritando:
Meu pai, o senhor dizia que o Pharaon afundou? A vigia do porto o assinalou,
está entrando no porto.
Meus amigos, se isto estiver mesmo acontecendo, seria preciso acreditar num
milagre de Deus! Impossível! Impossível!
Porém, o que era real, e não menos inacreditável, era esta bolsa, que tinha
entre suas mãos, eram estes títulos quitados, era este magnífico diamante.
Ah, senhor, disse Coclès, por sua vez, o que estão falando, o Pharaon?
Vamos, meus meninos, pediu Morrel, levantando-se, vamos ver se Deus teve
piedade de nós, e se não é uma notícia falsa.
Eles desceram; no meio da escadaria encontraram a senhora Morrel; a pobre
mulher não tivera coragem de subir.
Num instante encontraram-se na Canabière.
Havia uma multidão no cais.
Toda esta multidão se abriu diante de Morrel.
O Pharaon, o Pharaon, diziam as vozes.
Com efeito, coisa maravilhosa, inaudita, perto da torre de Sain-Jean, um
cargueiro, trazendo em sua popa, escrita em letras brancas, a palavra O Pharaon,
Morrel & Filhos - Marselha, e com o mesmo feitio do outro Pharaon, carregado
como o outro de índigo e de especiarias, lançava âncora e dobrava suas velas.
Sobre a ponte, o capitão Gaumard dava suas ordens, e o mestre Penelon fazia
alegres sinais para o senhor Morrel.
Não havia mais dúvida alguma, o testemunho de seus sentidos estava lá, e dez
mil pessoas vinham em ajuda aos seus sentidos.
Como Morrel e seu filho se abraçavam sobre o cais, com os aplausos de
toda a cidade, testemunha deste prodígio, um homem, cujo rosto estava
encoberto pela metade por uma barba negra, e que, escondido atrás de uma
guarita da alfândega, contemplava esta cena com carinho, murmurou estas
palavras:
Seja feliz, nobre coração; seja bendito por todo o bem que fez na vida, e
que fará ainda, e que o meu reconhecimento permaneça na sombra, como a
sua bondade.
E com um sorriso onde a alegria e a felicidade se revelavam, ele deixou o
abrigo onde se escondia, e, sem que ninguém prestasse atenção nele, tanto todos
estavam preocupados com o acontecimento do dia, desceu uma das pequenas
escadas que ajudam no embarque, e gritou três vezes:
Jacopo! Jacopo! Jacopo!
Imediatamente uma chalupa aproximou-se, ele subiu para bordo, e foi
conduzido a um iate ricamente adornado; ali chegando, ele se lançou sobre a
ponte com a agilidade de um marujo; dali, olhou mais uma vez Morrel, que,
chorando de alegria, distribuía cordiais abraços e apertos de mão a toda esta
multidão, agradecendo, com um vago olhar, este benfeitor desconhecido, que ele
parecia procurar no céu.
E agora, disso o homem desconhecido, adeus, bondade, adeus humanidade,
reconhecimento, gratidão...Adeus a todos os sentimentos que fortalecem o
coração!...Eu me coloquei no lugar da Providência para recompensar os
bons...agora, que o Deus vingador me ceda o seu lugar, para punir os maus!
Com estas palavras, fez um sinal com a mão, e como se apenas este sinal fosse
necessário, o iate partiu para o mar aberto.

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