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Transcrição

RSTJ 221.indd - Superior Tribunal de Justiça
Quinta Turma
HABEAS CORPUS N. 107.285-RJ (2008/0114769-1)
Relatora: Ministra Laurita Vaz
Impetrante: Leonardo Rosa Melo da Cunha - Defensor Público
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Paciente: Maria da Penha do Nascimento
EMENTA
Habeas corpus. Processual Penal. Delito de falsidade ideológica.
Pedido de trancamento da ação penal. “Privilégio constitucional
contra a auto-incriminação: garantia básica que assiste à generalidade
das pessoas. A pessoa sob investigação (parlamentar, policial ou
judicial) não se despoja dos direitos e garantias assegurados” (STF,
HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 25.03.2008).
Princípio nemo tenetur se detegere. Positivação no rol petrificado dos
direitos e garantias individuais (art. 5º, inciso LXIII, da Constituição
da República): opção do Constituinte Originário brasileiro de
consagrar, na Carta da República de 1988, “diretriz fundamental
proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda [à Constituição dos
Estados Unidos da América], que compõe o bill of rights” norteamericano (STF, HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello,
DJ de 25.03.2008). Precedentes citados da Suprema Corte dos
Estados Unidos: Escobedo v. Illinois (378 U.S. 478, 1964); Miranda
v. Arizona (384 U.S. 436, 1966), Dickerson v. United States (530
U.S. 428, 2000). Caso Miranda v. Arizona: fixação das diretrizes
conhecidas por “Miranda Warnings”, “Miranda Rules” ou “Miranda
Rights”. Direito de qualquer investigado ou acusado a ser advertido de
que não é obrigado a produzir quaisquer provas contra si mesmo, e de
que pode permanecer em silêncio perante a autoridade administrativa,
policial ou judiciária. Investigada não comunicada, na hipótese, de tais
garantias fundamentais. Fornecimento de material grafotécnico pela
paciente, sem o conhecimento de que tal fato poderia, eventualmente,
vir a ser usado para fundamentar futura condenação. Laudo pericial
que embasou a denúncia. Prova ilícita. Teoria dos frutos da árvore
envenenada (fruits of the poisonous tree). Ordem concedida.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. O direito do investigado ou do acusado de ser advertido de que
não pode ser obrigado a produzir prova contra si foi positivado pela
Constituição da República no rol petrificado dos direitos e garantias
individuais (art. 5º, inciso LXIII). É essa a norma que garante status
constitucional ao princípio do Nemo tenetur se detegere (STF, HC n.
80.949-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 14.12.2001),
segundo o qual ninguém é obrigado a produzir quaisquer provas
contra si.
2. A propósito, o Constituinte Originário, ao editar tal regra, “nada
mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo
instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental
proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda [à Constituição dos
Estados Unidos da América], que compõe o Bill of Rights norteamericano” (STF, HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello,
DJ de 25.03.2008).
3. “Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou
parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado
– ainda que convocada como testemunha (RTJ 163/626 - RTJ
176/805-806) –, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são
constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio
e de não produzir provas contra si própria” (RTJ 141/512, Rel. Min.
Celso de Mello).
4. Nos termos do art. 5º, inciso LXIII, da Carta Magna “o preso
será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado,
sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Tal regra,
conforme jurisprudência dos Tribunais pátrios, deve ser interpretada
de forma extensiva, e engloba cláusulas a serem expressamente
comunicadas a quaisquer investigados ou acusados, quais sejam: o
direito ao silêncio, o direito de não confessar, o direito de não produzir
provas materiais ou de ceder seu corpo para produção de prova etc.
5. Na espécie, a autoridade policial, ao ouvir a Paciente durante
a fase inquisitorial, já a tinha por suspeita do cometimento do delito
de falsidade ideológica, tanto é que, de todas as testemunhas ouvidas,
foi a única a quem foi requerido o fornecimento de padrões gráficos
para realização de perícia, prova material que ensejou o oferecimento
de denúncia em seu desfavor.
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Jurisprudência da QUINTA TURMA
6. Evidenciado nos autos que a Paciente já ostentava a condição
de investigada e que, em nenhum momento, foi advertida sobre seus
direitos constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de
ficar em silêncio e de não produzir provas contra si mesma, resta
evidenciada a ilicitude da única prova que embasou a condenação.
Contaminação do processo, derivada da produção do laudo ilícito.
Teoria dos frutos da árvore envenenada.
7. Apenas advirta-se que a observância de direitos fundamentais
não se confunde com fomento à impunidade. É mister essencial
do Judiciário garantir que o jus puniendi estatal não seja levado a
efeito com máculas ao devido processo legal, para que a observância
das garantias individuais tenha eficácia irradiante no seio de toda
a sociedade, seja nas relações entre o Estado e cidadãos ou entre
particulares (STF, RE n. 201.819-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen
Gracie, Rel. p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006).
8. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação
penal, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia com base em
outras provas.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto
da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge
Mussi, Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJAP) e Gilson Dipp votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 09 de novembro de 2010 (data do julgamento).
Ministra Laurita Vaz, Relatora
DJe 07.02.2011
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Laurita Vaz: Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar,
impetrado em favor de Maria da Penha do Nascimento, contra acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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Alega o Impetrante, em suma, a falta de justa causa para a ação penal
instaurada contra a Paciente por infração ao art. 299 do Código Penal, na
medida em que “a perícia (exame grafotécnico) realizada no bojo da inquisa
constitui prova ilícita, portanto processualmente inadmissível” (fl. 03). Salienta
que “a imprestabilidade jurídica do exame grafotécnico levado a cabo pela
Autoridade Policial para embasar a acusação criminal lançada contra o ora
Paciente prescinde de análise do valor daquela prova” (fls. 03-04).
Requer, assim, a concessão de liminar “para sustar o trâmite do Processo
n. 2007.001.121607-7, ora em curso perante o juízo da 35ª Vara Criminal
da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, até o julgamento final do presente
habeas” (fl. 29) e, no mérito, “a extinção do processo originário sem julgamento
do mérito [...] desentranhando-se, ainda, a prova ilícita, qual seja, o Laudo de
Exame de Documentos n. 1546894” (fl. 29).
O pedido liminar foi indeferido nos termos da decisão de fls. 98-99.
Foram prestadas as informações da Autoridade Impetrada à fl. 104, com a
juntada de peças processuais pertinentes à instrução do feito.
A douta Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se às fls. 297300, opinando pela concessão da ordem – o que se vê da seguinte ementa:
Habeas corpus. Falsidade ideológica - art. 299 CP. Trancamento de ação penal.
Justa causa. Denúncia baseada em prova ilícita. Alegado cerceamento ao direito
de não produzir prova contra si mesma que se verifica. Ordem concedida. (fl. 297)
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): A tese defensiva deve ser acolhida.
É sabido que o trancamento da ação penal por ausência de justa causa é
uma medida excepcional, somente cabível em situações, nas quais, de plano, seja
perceptível o constrangimento ilegal, o que ocorre na espécie.
A denúncia encontra-se assim fundamentada, ad lítteram:
[...] A acusada, Maria da Penha do Nascimento, era copeira na Empresa Comissária
Rio, prestando serviços, há dois anos, no Instituto Municipal Fernando Magalhães,
tendo promanado do seu punho os grafismos que preencheram os receituários
médicos acima apontados, em um total de 07 (sete).
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Jurisprudência da QUINTA TURMA
Consoante o laudo acostado às fls. 54-55: “...os receituários descritos... foram
produzidos pelo punho gráfico de Maria da Penha do Nascimento, face as
correspondências morfogenéticas constatadas entre tais grafismos e os padrões
gráficos da referida pessoa...”.
Assim agindo, a denunciada, consciente e voluntariamente, fez inserir declaração
falsa em documento público, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente
relevante, razão pela qual está incursa nas sanções do art. 299, caput, 07 (sete) vezes,
na forma do artigo 69, ambos do Código Penal. (fl. 60)
Com efeito, verifica-se, na hipótese, que a Paciente, que trabalhava
como copeira do Instituto de Saúde Fernando Magalhães-RJ, foi denunciada
com base, apenas, no laudo pericial que atestou que a escrita constante nos
receituários são do punho da Paciente.
No despacho da autoridade policial que determinou sua oitiva na fase
inquisitorial, de 26.12.2005, já havia sido prevista a colheita de material
probatório da Paciente, para exame grafotécnico (fl. 220). Portanto, a despeito
de, no dia 13.01.2006, a Paciente ter sido ouvida na condição de “envolvida” (fl.
231), já ostentava, claramente, a qualidade de investigada.
Da leitura do termo de declaração da Paciente (repita-se, onde não consta a
Paciente na qualidade de indiciada), às fls. 231-232, não há nenhuma menção ao
fato de que qualquer manuscrito seu seria comparado com as receitas falsificadas
em nome do Dr. Flávio Monteiro. Porem, a documentação de fls. 234-237,
assinada pela Paciente, foi utilizada para fins periciais. Acrescente-se, ainda, que
a Paciente, não foi acompanhada de defensor ou de advogado, nem ninguém que
pudesse lhe esclarecer sobre o fato de que era desobrigada a produzir quaisquer
provas que pudessem ser utilizadas contra si.
[...] Nome: Maria da Penha do Nascimento (Envolvido)
[...] Constumes:
Contradita: (Sem)
Compromisso Legal:
Inquirido, disse:
Que trabalha como copeira na Empresa Comissaria Rio, prestando serviços há
dois anos no Instituto Fernando Magalhães, sempre no horário noturno, de 19h
às 17h da manhã do dia seguinte, em regime de plantão 12 h por 36 h; [...]; Que
a declarante afirma não conhecer o verdadeiro Dr. Flávio que foi vítima de furto
de seu carimbo; Que se coloca à disposição para qualquer esclarecimento; E mais
não disse. (fl. 231-232).
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Como bem observado pelo Ministério Público Federal em seu parecer,
a autoridade policial, ao inquirir a Paciente, nos autos do inquérito policial, já a
tinha por suspeita do cometimento do delito, tanto é que, de todas as testemunhas
ouvidas, a Paciente foi a única a quem foi requerido o fornecimento de padrões
gráficos para fins de realização de perícia (fls. 220), como de fato ocorreu e
ensejou, como já assinalado, o oferecimento de denúncia em seu desfavor.
Nesse contexto, uma vez evidenciado nos autos que a Paciente já ostentava
a condição de investigada e que, em nenhum momento, foi advertida sobre seus
direitos constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de ficar em silêncio e
de não produzir provas contra si mesma, resta evidenciada a ilicitude da prova, a
teor do disposto no art. 5º, incisos LVI e LXIII, da Constituição da República,
in verbis:
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícito;
[...] LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado
Em suma, a Paciente não foi informada de que não era obrigada e fornecer
qualquer material gráfico, desde a sua assinatura, que pudesse incriminá-la. Nem
havia, durante o ato, defensor que pudesse esclarecê-la que qualquer manuscrito
seu, até mesmo sua assinatura, seria usada para fins periciais, o que de fato
ocorreu.
Cumpre reproduzir, quanto ao direito do investigado de ser advertido de
que não pode ser obrigado a produzir prova contra si, trecho de emblemática
decisão proferida pelo eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal
Federal:
Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares,
ostentando, ou não, a condição formal de indiciado – ainda que convocada
como testemunha (RTJ 163/626 – RTJ 176/805-806) -, possui, dentre as várias
prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de
permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si própria, consoante
reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 141/512, Rel. Min.
Celso de Mello).
Esse direito, na realidade, é plenamente oponível ao Estado, a qualquer de
seus Poderes e aos seus respectivos agentes e órgãos. Atua, nesse sentido,
como poderoso fator de limitação das próprias atividades de investigação e
de persecução desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério
Público, Juízes, Tribunais e Comissões Parlamentares de Inquérito, p. ex.).
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Jurisprudência da QUINTA TURMA
Cabe registrar que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio, ao explicitar,
agora em sede constitucional, o postulado segundo o qual “Nemo tenetur se
detegere”, nada mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema
normativo instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental
proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda que compõe o “Bill of Rights” norteamericano.
Na realidade, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um
ilícito penal (HC n. 80.530-MC-PA, Rel. Min. Celso de Mello). Trata-se de prerrogativa,
que, no autorizado magistério de ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Direito
à Prova no Processo Penal”, p. 111, item n. 7, 1997, RT), “constitui uma decorrência
natural do próprio modelo processual paritário, no qual seria inconcebível que
uma das partes pudesse compelir o adversário a apresentar provas decisivas em
seu próprio prejuízo (...)”.
O direito de o indiciado/acusado (ou testemunha) permanecer em silêncio
- consoante proclamou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em
Escobedo v. Illinois (1964) e, de maneira mais incisiva, em Miranda v. Arizona
(1966) - insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido
processo legal.
A importância de tal entendimento firmado em Miranda v. Arizona (1966)
assumiu tamanha significação na prática das liberdades constitucionais nos
Estados Unidos da América, que a Suprema Corte desse país, em julgamento mais
recente (2000), voltou a reafirmar essa “landmark decision”, assinalando que as
diretrizes nela fixadas (“Miranda warnings”) – dentre as quais se encontra a prévia
cientificação de que ninguém é obrigado a confessar ou a responder a qualquer
interrogatório – exprimem interpretação do próprio “corpus” constitucional,
como advertiu o então “Chief Justice” William H. Rehnquist, autor de tal decisão,
proferida, por 07 (sete) votos a 02 (dois), no caso Dickerson v. United States (530
U.S. 428, 2000), daí resultando, como necessária conseqüência, a intangibilidade
desse precedente, insuscetível de ser derrogado por legislação meramente
ordinária emanada do Congresso americano (“... Congress may not legislatively
supersede our decisions interpreting and applying the Constitution ...”).
Cumpre rememorar, bem por isso, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao
julgar o HC n. 68.742-DF, Rel. p/ o acórdão Min. Ilmar Galvão (DJU de 02.04.1993),
também reconheceu que o réu não pode, em virtude do princípio constitucional
que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer,
em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu “status
poenalis”.
Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que expressivamente
delimitam o círculo de atuação das instituições estatais, enfatizou que
qualquer indivíduo submetido a procedimentos investigatórios ou a processos
judiciais de natureza penal “tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são
constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. ‘Nemo tenetur
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se detegere’. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito
penal” (RTJ 141/512, Rel. Min. Celso de Mello).
Em suma: o direito ao silêncio - e de não produzir provas contra si próprio constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer
dos Poderes da República. (STF, HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ
de 25.03.2008).
É o que também se extrai do seguinte precedente de relatoria do eminente
Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, ad litteram:
Habeas corpus: cabimento: prova ilícita.
1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção
de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento:
sempre que, da imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade:
precedentes do Supremo Tribunal.
II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI):
considerações gerais.
2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto
do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida
sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo:
conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade - à
luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira - para
sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações
sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação.
III. Gravação clandestina de “conversa informal” do indiciado com policiais.
3. Ilicitude decorrente - quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião,
ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação
ambiental - de constituir, dita “conversa informal”, modalidade de “interrogatório”
sub- reptício, o qual - além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório
no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido
do seu direito ao silêncio. 4. O privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur
se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição - além da
inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. - importou
compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do
seu direito ao silêncio: a falta da advertência - e da sua documentação formal - faz
ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório
formal e, com mais razão, em “conversa informal” gravada, clandestinamente ou
não.
IV. Escuta gravada da comunicação telefônica com terceiro, que conteria
evidência de quadrilha que integrariam: ilicitude, nas circunstâncias, com relação
a ambos os interlocutores.
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Jurisprudência da QUINTA TURMA
5. A hipótese não configura a gravação da conversa telefônica própria por
um dos interlocutores - cujo uso como prova o STF, em dadas circunstâncias,
tem julgado lícito - mas, sim, escuta e gravação por terceiro de comunicação
telefônica alheia, ainda que com a ciência ou mesmo a cooperação de um dos
interlocutores: essa última, dada a intervenção de terceiro, se compreende no
âmbito da garantia constitucional do sigilo das comunicações telefônicas e o
seu registro só se admitirá como prova, se realizada mediante prévia e regular
autorização judicial.
6. A prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa
telefônica alheia é patentemente ilícita em relação ao interlocutor insciente da
intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado.
7. A ilicitude da escuta e gravação não autorizadas de conversa alheia não
aproveita, em princípio, ao interlocutor que, ciente, haja aquiescido na operação;
aproveita-lhe, no entanto, se, ilegalmente preso na ocasião, o seu aparente
assentimento na empreitada policial, ainda que existente, não seria válido. 8.
A extensão ao interlocutor ciente da exclusão processual do registro da escuta
telefônica clandestina - ainda quando livre o seu assentimento nela - em princípio,
parece inevitável, se a participação de ambos os interlocutores no fato probando
for incindível ou mesmo necessária à composição do tipo criminal cogitado, qual,
na espécie, o de quadrilha.
V. Prova ilícita e contaminação de provas derivadas (fruits of the poisonous tree).
9. A imprecisão do pedido genérico de exclusão de provas derivadas daquelas
cuja ilicitude se declara e o estágio do procedimento (ainda em curso o inquérito
policial) levam, no ponto, ao indeferimento do pedido. (STF, HC n. 80.949-RJ, Rel.
Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 14.12.2001).
A propósito, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça:
Habeas corpus. Direito Penal. Crime de desobediência cometido por diretor
administrativo da Assembléia Legislativa do Espírito Santo. Recalcitrância ao
chamamento de autoridade policial. Inocorrência. Atipicidade. Indiciado
acobertado pelo princípio constitucional da ampla defesa. Prerrogativa de não
produzir prova contra si. Trancamento da ação penal.
1. Consoante entendimento sufragado na jurisprudência desta Corte Federal
Superior, o trancamento da ação penal na via angusta do habeas corpus, medida
excepcional que é, somente cabe nas hipóteses em que se demonstrar, na luz da
evidência, primus ictus oculi, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou
a extinção da punibilidade.
2. Para a configuração do delito de desobediência, imprescindível se faz a
cumulação de três requisitos, quais sejam, desatendimento de uma ordem, que
essa ordem seja legal, e que emane de funcionário público.
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3. Em inexistindo recalcitrância do acusado ao cumprimento de ordem legal,
não há falar em crime de desobediência.
4. Inerente ao princípio constitucional da ampla defesa está a prerrogativa
de o acusado não produzir prova contra si, que compreende, induvidosamente,
o direito de permanecer em silêncio, seja na fase inquisitorial, seja na judicial.
5. Ordem concedida para trancar a ação penal. (HC n. 17.121-ES, Rel. Ministro
Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, julgado em 04.09.2001, DJ 04.02.2002, p. 566.)
Conclui-se que o direito a não se auto-incriminar contém cláusulas que devem
ser expressamente comunicadas a quaisquer investigados ou acusados, quais sejam,
o direito ao silêncio, o direito de não confessar, o direito de não produzir provas
materiais ou de ceder seu corpo para produção de prova etc.
Advirto, ainda, que a observância aos direitos fundamentais não se confunde
com fomento à impunidade. É mister essencial do Judiciário garantir que o jus
puniendi estatal não seja levado a efeito com máculas ao devido processo legal,
para que a observância das garantias individuais tenha eficácia irradiante no
seio de toda a sociedade, seja nas relações entre o Estado e cidadãos ou entre
particulares (STF, RE n. 201.819-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/
Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006).
Foi por tal razão, inclusive, que a Suprema Corte dos Estados Unidos,
no julgamento do caso Miranda v. Arizona (384 U.S. 436), já no ano de 1966,
definiu que qualquer suspeito de cometimento de delito deve ser advertido,
antes de ser ouvido acerca dos fatos pela autoridade estatal, sobre seu direito de
permanecer em silêncio; de que poderá se consultar com advogado e, caso não
possa expender de recursos para a contratação, um defensor ser-lhe-á nomeado,
sem custos; e que eventual confissão ou fornecimento de outra prova poderá
eventualmente ser considerada em juízo contra si.
Na hipótese, repita-se, resta evidenciado nos autos que a Paciente era
suspeita do cometimento dos fatos e inclusive já ostentava a condição de
investigada, ainda que não tenha sido formalizado nos autos do inquérito
policial. Porém, em nenhum momento, foi advertida sobre seus direitos
constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de ficar em silêncio e de
não produzir provas contra si mesma.
Assim, resta evidenciada a ilicitude da única prova que embasou o
oferecimento da denúncia. Consequentemente, é de se aplicar, no caso, a teoria
dos frutos da árvore envenenada, pois verifica-se a ocorrência de contaminação
do processo, derivada da produção do laudo ilícito.
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Jurisprudência da QUINTA TURMA
Ante o exposto, concedo a ordem, determinando o trancamento da ação
penal proposta em face da Paciente, sem prejuízo do oferecimento de nova
denúncia, com base em outras provas.
É como voto.
HABEAS CORPUS N. 130.981-RS (2009/0044054-1)
Relator: Ministro Jorge Mussi
Impetrante: Rodrigo Bittencourt Mudrovitsch e outro
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Paciente: Luís Felipe Cunha
EMENTA
Habeas corpus. Termo circunstanciado instaurado para apurar a
suposta prática de crime de desobediência. Pedido de trancamento.
Requerimento do Ministério Público para que fossem fornecidos
dados cadastrais de usuário de telefonia fixa que expressamente
solicitou a não divulgação de tais informações. Existência de dúvida
sobre a legalidade do pedido ministerial. Ausência de dolo. Atipicidade
manifesta. Constrangimento evidenciado.
1. O trancamento de inquérito policial ou de ação penal é medida
excepcional, só admitida quando restar provada, de forma indubitável,
a ocorrência de circunstância extintiva da punibilidade, de ausência de
indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito e, ainda, da
atipicidade da conduta.
2. Para a configuração do crime de desobediência, exige-se
que a ordem, revestida de legalidade formal e material, seja dirigida
expressamente a quem tem o dever de obedecê-la, e que o agente
voluntária e conscientemente a ela se oponha.
3. No caso dos autos, percebe-se a patente atipicidade da conduta
atribuída ao paciente, uma vez que pairam dúvidas sobre a legalidade
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da ordem emanada, inexistindo, ainda, o elemento subjetivo necessário
à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo.
4. Quanto à legalidade do requerimento formulado pelo
Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Rio
Grande do Sul, o certo é que embora à época dos fatos existissem
decisões judiciais proferidas nas instâncias ordinárias que afirmavam
a legitimidade do Parquet para requisitar informações cadastrais de
clientes do serviço de telefonia fixa independentemente de autorização
judicial, a eficácia de tais provimentos jurisdicionais encontrava-se
suspensa por força de medidas cautelares concedidas pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª Região e pelo Supremo Tribunal Federal.
5. Assim, havendo dúvidas acerca da própria legalidade da
requisição feita pelo Ministério Público para que fossem enviados
dados cadastrais de usuário de telefonia fixa que expressamente
solicitou a não divulgação dessas informações, não há que se falar
em prática do delito de desobediência por funcionário da empresa de
telefonia que se julga impedido de fornecê-las.
6. Ademais, no que se refere ao elemento subjetivo necessário
à configuração do delito previsto no artigo 330 do Código Penal,
na hipótese vertente não se pode considerar que o paciente tenha
deliberadamente se recusado a cumprir a determinação do Parquet,
tampouco que tenha agido com inequívoca vontade de desobedecer,
porquanto explicitou as razões jurídicas pelas quais entendia impossível
cumprir a solicitação formulada.
7. Ordem concedida para trancar o Termo Circunstanciado
n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial
Criminal do Foro Central de Porto Alegre-RS.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro
(Desembargador convocado do TJ-AP), Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia
Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.
706
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.
Brasília (DF), 25 de novembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Jorge Mussi, Relator
DJe 14.02.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Jorge Mussi: Trata-se de habeas corpus substitutivo de
recurso ordinário com pedido liminar, impetrado contra acórdão proferido pelo
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (HC n. 70023016918).
Noticiam os autos que o paciente, na qualidade de gerente jurídico da
empresa Brasil Telecom S/A, teria se recusado a atender a requisição formulada
pelo Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul,
consistente no fornecimento de dados cadastrais de usuário de serviço de
telefonia fixa, para fins de instrução de procedimento administrativo, já que
desprovida da necessária autorização judicial.
Tal negativa teria como fundamento o direito à intimidade dos usuários
que solicitaram a não divulgação de seus dados cadastrais, hipótese verificada
nos autos, em respeito ao disposto no artigo 5º, inciso X, da Constituição
Federal, bem como aos artigos 3º, incisos V, VI, IX e XII, e 72, ambos da Lei
Geral de Telecomunicações. Anunciam os impetrantes, também, a existência de
decisão judicial, proferida nos autos da Medida Cautelar n. 2007.04.00.0207750, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que “desautoriza o Ministério
Público (em qualquer de suas esferas) a requisitar dados cadastrais de assinantes
de serviços de telefonia diretamente às concessionárias, ausente decisão judicial
específica” (fl. 4).
Diante da negativa de fornecimento de tais dados, o Subcorregedor-Geral
do Ministério Público do Rio Grande do Sul determinou a remessa de cópia
do respectivo expediente para distribuição perante uma das varas criminais da
Comarca de Porto Alegre-RS, a fim de se apurar eventual responsabilidade penal
do paciente na prática do crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal).
O feito foi distribuído ao 2º Juizado Especial Criminal da Comarca de Porto
Alegre-RS, sendo designada audiência preliminar do termo circunstanciado
para 08.04.2009.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
707
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sustentam os impetrantes que a conduta atribuída ao paciente seria atípica,
pois teria atuado em conformidade tanto com o ordenamento jurídico pátrio,
que veda a divulgação, sem autorização judicial, das informações cadastrais dos
usuários do serviço de telefonia fixa, como com a jurisprudência dos Tribunais
Superiores, que alberga tal sigilo, sob pena de violação aos direitos à intimidade
e à privacidade.
Defendem, ainda, a existência de decisões judiciais que impedem o
Ministério Público de requisitar, sem autorização judicial, informações sobre
cadastros de usuários de serviços de telefonia, citando as decisões proferidas por
ocasião do julgamento da Medida Cautelar Inominada n. 2007.04.00.0207750, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, bem como da Ação Cautelar n.
1.928, do Supremo Tribunal Federal.
Alegam, também, que o Ministério Público não teria atribuição para
requisitar informações cadastrais acobertadas pelo sigilo da intimidade, aduzindo
que as disposições do artigo 129, inciso VI, da Constituição Federal, e artigo 26,
inciso II, da Lei n. 8.625/1993, devem ser interpretadas de acordo com os demais
dispositivos que integram o ordenamento jurídico, “especialmente no que se
refere aos núcleos de proteção das garantias constitucionais fundamentais” (fl.
17).
Com estas considerações, asseveram que a ordem emanada do
Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul seria ilegal,
razão pela qual a conduta do paciente, consistente na negativa de prestação das
informações protegidas pelo sigilo, não configuraria o ilícito previsto no artigo
330 do Código Penal, sendo, portanto, atípica.
Por esta razão, seria dever do representante do Ministério Público atuante
perante o juízo de primeira instância apresentar pedido de arquivamento do
termo circunstanciado, sob pena de violação ao disposto no artigo 28 do Código
de Processo Penal, já que sequer seria viável a proposta de transação penal,
conforme o disposto no artigo 76 da Lei n. 9.099/1995.
Por fim, asserem que, na hipótese de se ter por legal a requisição formulada
pelo Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul, o
paciente teria atuado em erro de proibição, pois baseou-se em precedentes
jurisprudenciais de diversos tribunais pátrios, razão pela qual estaria afastada a
sua culpabilidade.
Pretendem, alfim, o trancamento do Termo Circunstanciado n.
001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial Criminal do
Foro Central de Porto Alegre-RS.
708
Jurisprudência da QUINTA TURMA
A liminar foi deferida, nos termos da decisão de fls. 257-259.
Prestadas as informações (fls. 269-289 e 291-299), o Ministério Público
Federal, em parecer de fls. 301-307, manifestou-se pela concessão da ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Jorge Mussi (Relator): Conforme relatado, com este
habeas corpus pretende-se, em síntese, o trancamento de termo circunstanciado
instaurado para apurar a suposta prática do delito de desobediência pelo
paciente.
Segundo consta dos autos, o Subcorregedor-Geral do Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul solicitou à Gerência Jurídica da Brasil
Telecom o fornecimento dos dados de titular de linha telefônica fixa (fl. 81),
pleito que não foi prontamente atendido pela citada empresa de telefonia sob o
fundamento de que seria necessária autorização judicial para a disponibilização
das informações requeridas (fl. 82).
O órgão ministerial reiterou a solicitação formulada, esclarecendo
a “dispensabilidade da providência reclamada”, tendo em vista que não se
trataria “de quebra de sigilo telefônico ou escuta judicialmente deferida”, mas
apenas de “identificação de titular de linha telefônica, para fins de instrução de
procedimento de natureza administrativo-disciplinar” (fl. 83).
Em resposta, a Brasil Telecom insistiu na impossibilidade jurídica de
fornecimento das informações requeridas, sob o fundamento de que os usuários
que solicitaram a não divulgação de seus dados cadastrais teriam direito à
intimidade, informando, ainda, que existiria decisão judicial, proferida nos autos
da Medida Cautelar n. 2007.04.00.020775-0, do Tribunal Regional Federal da
4ª Região, a respaldar a negativa de cumprimento da requisição formulada (fls.
84-88).
O Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul
determinou, então, a remessa de cópia do respectivo expediente para distribuição
perante uma das varas criminais da Comarca de Porto Alegre-RS, a fim de se
apurar eventual responsabilidade penal do paciente na prática do crime de
desobediência (artigo 330 do Código Penal), tendo sido o feito distribuído ao 2º
Juizado Especial Criminal da Comarca de Porto Alegre-RS, determinando-se a
designação de audiência preliminar (fl. 110).
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
709
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Impetrado habeas corpus na origem, a Turma Recursal Criminal dos
Juizados Especiais do Estado do Rio Grande do Sul denegou a ordem, em
acórdão que recebeu a seguinte ementa:
Habeas corpus. Alegação de constrangimento ilegal. Solicitação de informações
cadastrais pelo Ministério Público. Recusa no fornecimento. Designação de
audiência para oferta de transação. Pretensão de suspensão ou trancamento de
procedimento penal.
O Ministério Público não solicitou que a empresa procedesse à quebra de
sigilo telefônico, buscando tão somente informação cadastral visando instruir
processo, no interesse da justiça.
Ausente pretensão de quebra de sigilo telefônico ou de comunicação
telefônica ou, ainda, violação da intimidade do cliente da empresa de telefonia.
A designação de audiência para oferta de transação penal à paciente não se
constitui em ato ilegal ou configurador de abuso que admita Habeas Corpus. (fl.
136).
Irresignada, a defesa aforou novo mandamus, o qual inicialmente não foi
conhecido (fl. 207), mas teve o seu mérito apreciado após a concessão da ordem
por esta colenda Quinta Turma, em aresto que restou assim resumido:
Habeas Corpus. Alegação de Ausência de justa causa. Trancamento da ação
penal.
O trancamento da ação penal só se justifica quando, de plano, constatarse a atipicidade do fato ou, que o acusado não é o autor ou, a existência de
causa excludente de ilicitude. A via estreita do habeas corpus é imprópria para
apreciação analítica da prova. Ordem denegada. (fl. 246).
Pois bem. De tudo quanto foi exposto, tem-se que assiste razão aos
impetrantes.
Inicialmente é preciso destacar que é cediço que o trancamento de
inquérito policial ou de ação penal é medida excepcional, só admitida quando
restar provada, de forma indubitável, a ocorrência de circunstância extintiva da
punibilidade, de ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do
delito e, ainda, da atipicidade da conduta.
Contudo, no caso dos autos percebe-se a patente atipicidade da conduta
atribuída ao paciente, uma vez que pairam dúvidas sobre a legalidade da ordem
emanada pelo órgão ministerial, inexistindo, ainda, o elemento subjetivo
necessário à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo.
710
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Quanto à legalidade do requerimento formulado pelo Subcorregedor-Geral
do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o certo é que embora à
época dos fatos existissem decisões judiciais proferidas nas instâncias ordinárias
que afirmavam a legitimidade do Parquet para requisitar informações cadastrais
de clientes do serviço de telefonia fixa independentemente de autorização
judicial (liminar deferida na Ação Civil Pública n. 2006.71.00.0332957, da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, e Agravo de Instrumento n.
2006.04.00.034026-3, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região), a
eficácia de tais provimentos jurisdicionais encontrava-se suspensa por força
da medida cautelar concedida nos autos da Medida Cautelar Inominada n.
2007.04.00.020775-0, daquele mesmo Sodalício, que atribuiu efeito suspensivo
ao recurso especial interposto pela Brasil Telecom S/A contra o acórdão do
aludido agravo de instrumento, efeito também atribuído ao respectivo recurso
extraordinário, em medida cautelar deferida pelo Supremo Tribunal Federal
(Ação Cautelar n. 1.928).
Denota-se, portanto, que a matéria debatida nos autos ainda não possui
solução pacífica na jurisprudência dos Tribunais pátrios o que, por si só, revela
a impossibilidade de se imputar ao paciente o delito de desobediência, que
pressupõe a emissão de ordem legal por funcionário público.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci leciona que “é indispensável
que o comando (determinação para fazer algo, e não simplesmente pedido ou
solicitação) seja legal, isto é, previsto em lei, formal (ex: emitido por autoridade
competente) e substancialmente (ex.: estar de acordo com a lei).” (Código Penal
Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1.084-1.085).
Assim, havendo dúvidas acerca da própria legalidade de requisição pelo
Ministério Público, independentemente de ordem judicial, de dados cadastrais
de usuário de telefonia fixa que expressamente solicitou a não divulgação dessas
informações, não há que se falar em prática do delito de desobediência por
funcionário da empresa de telefonia que se julga impedido de fornecê-las.
Ademais, no que se refere ao elemento subjetivo subjetivo necessário à
configuração do delito previsto no artigo 330 do Código Penal, tem-se que o
agente deve voluntária e conscientemente se opor à ordem legal emanada de
funcionário público.
Como visto, na hipótese vertente não se pode considerar que o paciente
tenha deliberadamente se recusado a cumprir a determinação do Ministério
Público, tampouco que tenha agido com inequívoca vontade de desobedecer,
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
711
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
porquanto explicitou as razões jurídicas pelas quais entendia impossível cumprir
a solicitação formulada.
Desse modo, não sendo certa a legalidade do requerimento ministerial
dirigido à Brasil Telecom, bem como não havendo dolo do paciente em
descumpri-lo, inviável o prosseguimento da investigação instaurada na origem.
Ante o exposto, concede-se a ordem para trancar o Termo Circunstanciado
n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial Criminal do
Foro Central de Porto Alegre-RS.
É o voto.
HABEAS CORPUS N. 139.998-RS (2009/0121507-4)
Relator: Ministro Jorge Mussi
Impetrante: Augusto Fauvel de Moraes e outro
Impetrado: Tribunal Regional Federal da 4ª Região
Paciente: Carlos Henrique de Almeida
Paciente: Carla Márcia Michelin de Almeida
EMENTA
Habeas corpus. Descaminho (artigo 334 do Código Penal).
Investigação criminal iniciada antes da conclusão do procedimento
administrativo fiscal. Impossibilidade. Constrangimento ilegal
evidenciado. Concessão da ordem.
1. Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da
persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento da
via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário.
Doutrina. Precedentes.
2. Embora o delito de descaminho esteja descrito na parte
destinada aos crimes contra a Administração Pública no Código
Penal, motivo pelo qual alguns doutrinadores afirmam que o bem
712
Jurisprudência da QUINTA TURMA
jurídico primário por ele tutelado seria, como em todos os demais
ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a Administração
Pública, predomina o entendimento de que com a sua tipificação
busca-se tutelar, em primeiro plano, o erário, diretamente atingido
pela ilusão do pagamento de direito ou imposto devido pela entrada,
pela saída ou pelo consumo de mercadoria.
3. O delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334
do Código Penal configura crime material, que se consuma com a
liberação da mercadoria pela alfândega, logrando o agente ludibriar as
autoridades e ingressar no território nacional em posse das mercadorias
sem o pagamento dos tributos devidos, não havendo, por conseguinte,
qualquer razão jurídica para não se lhe aplicar o mesmo entendimento
já pacificado no que se refere aos crimes materiais contra a ordem
tributária, cuja caracterização só ocorre após o lançamento definitivo
do crédito fiscal.
4. A confirmar a compreensão de que a persecução penal no
crime de descaminho pressupõe a constituição definitiva do crédito
tributário, tem-se, ainda, que a própria legislação sobre o tema reclama
a existência de decisão final na esfera administrativa para que se possa
investigar criminalmente a ilusão total ou parcial do pagamento de
direito ou imposto devidos (artigo 83 da Lei n. 9.430/1996, artigo 1º,
inciso II, do Decreto n. 2.730/1998 e artigos 1º e 3º, § 7º, da Portaria
SRF n. 326/2005).
5. Na hipótese vertente, ainda não houve a conclusão do
processo administrativo por meio do qual se apura a suposta ilusão do
pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por
parte dos pacientes, pelo que não se pode falar, ainda, em investigação
criminal para examinar a ocorrência do crime de descaminho.
6. Ordem concedida para trancar o inquérito policial instaurado
contra os pacientes.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
713
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro
(Desembargador convocado do TJ-AP), Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia
Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.
Brasília (DF), 25 de novembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Jorge Mussi, Relator
DJe 14.02.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Jorge Mussi: Trata-se de habeas corpus com pedido liminar
impetrado em favor de Carlos Henrique de Almeida e Carla Márcia Michelin de
Almeida, apontando como autoridade coatora o Tribunal Regional Federal da 4ª
Região (HC n. 2009.04.00.012006-9-RS).
Noticiam os autos que os pacientes estão sendo investigados pela suposta
prática do crime de descaminho, pois, na qualidade de responsáveis legais da
empresa Max Nutrition Comercial, Importadora, Exportadora e Distribuidora
Ltda., teriam utilizado “faturas falsas ou adulteradas para subfaturar importações
realizadas por esta empresa como artifício para iludir o fisco” (fl. 64).
Sustenta o impetrante que o inquérito policial teria sido instaurado antes
do lançamento definitivo do débito fiscal, tendo em vista a existência de recurso
pendente na esfera administrativa, faltando, por isso, justa causa à deflagração
do procedimento criminal, ao argumento de que o crime de descaminho deveria
receber o mesmo tratamento do crime de sonegação fiscal, já que o tipo penal
em tutelaria o interesse arrecadador do Estado, tratando-se de crime material.
Requer a concessão da ordem para que seja trancado o inquérito policial
em apreço.
A liminar foi indeferida, nos termos da decisão de fls. 150-151.
Prestadas as informações (fls. 156-181), o Ministério Público Federal, em
parecer de fls. 183-189, manifestou-se pela concessão da ordem.
É o relatório.
714
Jurisprudência da QUINTA TURMA
VOTO
O Sr. Ministro Jorge Mussi (Relator): Conforme relatado, com este habeas
corpus pretende-se, em síntese, o trancamento de inquérito policial instaurado
contra os pacientes para apurar a suposta prática do delito de descaminho, ao
argumento de que ainda não teria sido concluído o procedimento administrativo
fiscal.
Segundo consta dos autos, o Ministério Público Federal requereu a
abertura de inquérito policial em face dos pacientes, diante da possível prática
do delito previsto no artigo 334 do Código Penal:
Remeto a Vossa Senhoria o anexo procedimento administrativo MPF/PR/
RS 1.29.000.000259/2008-42 e requisito a instauração de inquérito policial para
apurar a possível ocorrência de crime de descaminho, delito tipificado no artigo
334 do Código Penal, conduta atribuída aos gestores da empresa Max Nutrition
Comercial, Importadora, Exportadora e Distribuidora Ltda., que teriam iludido o
pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação, por meio
da apresentação de documentos inidôneos e de declarações falsas perante as
autoridades alfandegárias, com o registro de preços subfaturados. (fl. 66).
Por meio de portaria, o Departamento de Polícia Federal iniciou
procedimento para investigar eventual responsabilidade penal dos pacientes:
Considerando o teor do ofício OF/COOCRIM/PR/RS n. 2.195/2008, oriundo
do Ministério Público Federal em Porto alegre, o qual apresenta o mandado
de segurança n. 2007.71.00.047419-7, protocolizada nesta SR/DPF/RS sob o n.
08430.010240/2008-10;
Resolve:
Instaurar Inquérito Policial para apurar a responsabilidade penal pela possível
existência do crime de descaminho, previsto no artigo 334 do Código Penal, por
Carlos Henrique de Almeida e Carla Marcia Michelin de Almeida, responsáveis legais
da empresa Max Nutrition Comercial, Importadora, Exportadora e Distribuidora
Ltda. - CNPJ n. 00.749.105/0001-48, sem prejuízo de outros que possam surgir
no decorrer das investigações, haja vista que, em 31.07.2007, a Receita Federal
instaurou Procedimento Especial de Controle Aduaneiro face a denúncias de
utilização de faturas falsas ou adulteradas para subfaturar importações realizadas
por esta empresa como artifício para iludir o fisco. (fl. 64).
Foi impetrado, então, habeas corpus perante a 7ª Turma do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, que denegou a ordem pleiteada, mantendo o
inquérito policial instaurado contra os pacientes, em acórdão que recebeu a
seguinte ementa:
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
715
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Penal. Habeas corpus. Trancamento de inquérito policial. Delito de descaminho.
Alegação de inexistência de lançamento definitivo do crédito tributário.
Incabimento.
O argumento de que o delito de descaminho exige constituição definitiva do
crédito tributário não tem sido acolhido neste TRF 4ªR, na medida em que o bem
jurídico tutelado pelo delito previsto no art. 334 do Código Penal não se restringe
ao mero interesse fiscal, razão pela qual não pode ser equiparado às típicas
infrações penais contra a ordem tributária, de que é exemplo o art. 1º da Lei n.
8.137/1990, razão pela qual resta inviável falar-se em trancamento de inquérito
policial (Precedentes). (fl. 139).
Pois bem. Compulsando os elementos constantes dos autos, tem-se que
assiste razão aos impetrantes.
Inicialmente, é preciso destacar que existe controvérsia, tanto na doutrina
quanto na jurisprudência, sobre a possibilidade de se condicionar a persecução
penal no delito de descaminho ao esgotamento da esfera administrativa.
Para uma primeira corrente, a inexigibilidade do exaurimento da via
administrativa no ilícito disposto no artigo 334, caput, segunda parte do Código
Penal decorreria, essencialmente, da diferença existente entre os crimes contra
a ordem tributária e o delito de descaminho, notadamente no que se refere aos
bens jurídicos por eles tutelados.
Contudo, tal objeção não prospera, devendo prevalecer a tese pela qual é
indispensável a conclusão do procedimento administrativo fiscal para que possa
ter início a apuração penal do crime de descaminho.
Topograficamente, o delito de descaminho encontra-se na parte destinada
aos crimes contra a Administração Pública no Código Penal, motivo pelo qual
há os que afirmam que o bem jurídico primário por ele tutelado seria, como
em todos os demais ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a
Administração Pública.
Por essa razão, aduz-se que não seria possível condicionar a persecução
penal ao esgotamento das instâncias administrativas, uma vez que a tutela da
moralidade pública, da regularidade nas importações e exportações, prescindiria
da constituição definitiva do crédito tributário.
Todavia, embora o delito de descaminho seja, de fato, pluriofensivo, é certo
que predomina o entendimento de que com a sua tipificação busca-se tutelar,
em primeiro plano, o erário, diretamente atingido pela ilusão do pagamento
de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de
mercadoria.
716
Jurisprudência da QUINTA TURMA
A propósito, é essa a lição de Cezar Roberto Bitencourt:
Bem jurídico tutelado, como em todas as infrações penais constantes do
Título XI do Código Penal, Parte Especial, é a Administração Pública, no plano
genérico. O bem jurídico tutelado específico, no entanto - a despeito de todos
os fundamentos que se têm procurado atribuir à criminalização do contrabando
ou descaminho -, é, acima de tudo, a salvaguarda dos interesses do erário
público, diretamente atingido pela evasão de renda resultante dessas operações
clandestinas ou fraudulentas. Num plano secundário, não se pode negar, visase também proteger a moralidade pública com a repressão de importação e
exportação de mercadoria proibida, que podem, inclusive, produzir lesão à
saúde pública, à higiene, etc. e não deixa de proteger igualmente a indústria
e a economia nacionais como um todo, com o fortalecimento de barreiras
alfandegárias. (Código Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1.103).
Desse modo, percebe-se que assim como nos crimes contra a ordem
tributária previstos na Lei n. 8.137/1990, no descaminho a integridade do erário
é o bem jurídico fundamentalmente protegido, o que, por si só, e num primeiro
momento, já justifica o condicionamento da persecução penal à conclusão do
procedimento administrativo de apuração do débito fiscal.
Isso porque o descaminho, na forma de iludir, no todo ou em parte, o
pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo
consumo de mercadoria, configura crime material, que se consuma com a
liberação do produto pela alfândega, logrando o agente ludibriar as autoridades
e ingressar no território nacional em posse dos bens sem o pagamento dos
tributos devidos.
Ora, como no delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334 do
Código Penal vislumbra-se a ocorrência de resultado naturalístico, consistente
na falta de arrecadação dos tributos pertinentes, não há qualquer razão jurídica
para não se lhe aplicar o mesmo entendimento já pacificado no que se refere aos
crimes materiais contra a ordem tributária, cuja caracterização só ocorre após o
lançamento definitivo do crédito fiscal.
Mas não é só. Apesar de haver quem entenda que o descaminho não pode
ser equiparado aos crimes contra a ordem tributária, principalmente porque
não configuraria técnica estatal de arrecadação, tendo por finalidade única a
repressão penal da conduta, sem qualquer preocupação com a satisfação do
débito fiscal, o certo é que a infração penal prevista no artigo 334, caput, segunda
parte, do Código Penal caracteriza, sim, um ilícito tributário, que em tudo se
assemelha aos disciplinados na Lei n. 8.137/1990, constando do Código Penal
somente por uma questão de opção legislativa.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
717
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nessa esteira, Cezar Roberto Bitencourt, ao tratar da distinção entre o
descaminho e os demais crimes contra a ordem tributária, assinala que:
Com efeito, com o crime de descaminho deixa-se de recolher todos os tributos
que lhe são inerentes, tais como o imposto de importação e exportação (II e
IE); o imposto de produtos industrializados (IPI) - substituto do antigo imposto
de consumo -, pois, via de regra, o objeto material do descaminho é produto
industrializado; e o imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS).
Constata-se que o descaminho, a despeito de implicar, direta e simultaneamente,
“sonegação” automática de inúmeros impostos, é tipificado e classificado como
crime contra a Administração Pública, por opção político-criminal do legislador,
e não como crime contra a ordem tributária, que, tecnicamente, não constituiria
nenhum disparate se houvesse opção legislativa em atribuir-lhe essa natureza. (Op.
cit., p. 1.108).
Aliás, conveniente registrar que foi justamente a similitude existente
entre o descaminho e os crimes contra a ordem tributária que fez com que a
colenda Sexta Turma desta Corte Superior estendesse ao delito do artigo 334
do Código Penal a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do
tributo, estabelecida no artigo 34 da Lei n. 9.249/1995, a qual, expressamente,
só abrangeria os ilícitos tributários definidos na Lei n. 8.137/1990 e na Lei n.
4.729/1965.
O acórdão recebeu a seguinte ementa:
Processo Penal. Habeas corpus. Descaminho. Extinção da punibilidade.
Pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia. Aplicação do art. 34
da Lei n. 9.249/1995. Ubi eadem ratio ibi idem ius.
1. Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira
distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral.
2. Diante do pagamento do tributo, antes do recebimento da denúncia, de
rigor o reconhecimento da extinção da punibilidade.
3. Ordem concedida.
(HC n. 48.805-SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma,
julgado em 26.06.2007, DJ 19.11.2007, p. 294)
A confirmar a compreensão de que a persecução penal no crime de
descaminho pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, tem-se,
ainda, que a própria legislação sobre o tema reclama a existência de decisão final
na esfera administrativa para que se possa investigar criminalmente a ilusão
total ou parcial do pagamento de direito ou imposto. Senão vejamos.
718
Jurisprudência da QUINTA TURMA
O caput do artigo 83 da Lei n. 9.430/1996, estabelece que a representação
fiscal para fins penais nos crimes contra a ordem tributária e nos delitos
de apropriação indébita e de sonegação de contribuição previdenciária só
deve ser encaminhada ao Ministério Público após o esgotamento da esfera
administrativa, verbis:
Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a
ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de
1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do
Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, será encaminhada
ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa,
sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
Por sua vez, o Decreto n. 2.730/1998, que dispõe sobre o encaminhamento
ao Ministério Público Federal da representação fiscal para fins penais de que
trata o artigo 83 da Lei n. 9.430/1996, prevê, expressamente, no inciso II do
artigo 1º, a figura típica do descaminho:
Art. 1º O Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional formalizará representação fiscal,
para os fins do art. 83 da Lei n. 9.430, de 27 de dezembro de 1996, em autos
separados e protocolizada na mesma data da lavratura do auto de infração,
sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração
de exigência de crédito de tributos e contribuições administrados pela Secretaria
da Receita Federal do Ministério da Fazenda ou decorrente de apreensão de bens
sujeitos à pena de perdimento, constatar fato que configure, em tese;
(...)
II - crime de contrabando ou descaminho.
Finalmente, a Portaria SRF n. 326/2005, ao discriminar o procedimento
que deve ser observado pelo auditor-fiscal quando se deparar com a suposta
prática do delito previsto no artigo 334 do Código Penal determina que seja
formalizada representação fiscal para fins penais (artigo 1º), bem como que a
ela sejam anexadas as peças da decisão final do processo administrativo fiscal
no qual não tenha havido o pagamento do tributo, para o encaminhamento ao
Ministério Público Federal, nos termos do artigo 3º, § 7º, que se encontra assim
redigido:
§ 7º Transitada em julgado a decisão sem que o crédito tenha sido extinto
pelo pagamento, ressalvadas as hipóteses de que tratam o art. 15, caput e §
2º, II, da Lei n. 9.964, de 2000, e o art. 9º da Lei n. 10.684, de 2003, as peças da
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719
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
decisão final, que confirmam a existência do ilícito tributário caracterizador de
crime, serão juntadas, por cópia, à representação fiscal para fins penais, que será
remetida, no prazo máximo de dez dias, pelo Delegado ou Inspetor da Receita
Federal, responsável pelo controle do processo administrativo-fiscal, ao órgão do
Ministério Público Federal que for competente para promover a ação penal.
Da leitura conjugada de todos os dispositivos legais acima mencionados,
conclui-se que a deflagração da persecução penal no delito de descaminho
pressupõe o trânsito em julgado da decisão na esfera administrativa, somente
após o que se poderá falar em ilícito tributário.
Sobre o tema, cumpre trazer à baila a posição de Celso Delmanto, Roberto
Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, para
quem “a natureza tributária do delito de descaminho (art. 334, caput, segunda
parte)”, enseja o mesmo tratamento dado aos crimes contra a ordem tributária
e contra a Previdência Social, para os quais “é pacífico o entendimento de que
o inquérito policial ou o processo criminal só poderão ser instaurados após o
término do processo administrativo-fiscal” (Código Penal Comentado. 8ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 960).
Guilherme de Souza Nucci adota idêntica orientação, consignando que se
houver o pagamento do imposto devido, falta justa causa para a ação penal pela
ausência de dolo do agente:
Atualmente, pode-se vincular o ajuizamento da ação penal ao término de
procedimento administrativo instaurado para apurar a sonegação fiscal
decorrente da importação ou exportação de mercadoria. É preciso considerar
que, havendo plena quitação do imposto devido à Receita Federal, não se
mantém a justa causa para a ação penal. O descaminho, por ausência de dolo, não
subsiste, devendo, pois, ser trancada a ação penal ou o inquérito policial. (Código
Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1.103).
Em arremate, vale ressaltar que esta também tem sido a orientação deste
Sodalício que, por meio da egrégia Sexta Turma, tem condicionado a persecução
criminal pelo crime de descaminho ao exaurimento da via administrativa:
Descaminho (caso). Habeas corpus (cabimento). Matéria de prova (distinção).
Esfera administrativa (Lei n. 9.430/1996). Processo administrativo-fiscal
(pendência). Ação penal (extinção).
1. Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se conceda
habeas corpus sempre que alguém esteja sofrendo ou se ache ameaçado de
sofrer violência ou coação; trata-se de dar proteção à liberdade de ir, ficar e vir,
720
Jurisprudência da QUINTA TURMA
liberdade induvidosamente possível em todo o seu alcance. Assim, não procedem
censuras a que nele se faça exame de provas. Precedentes do STJ.
2. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei n.
9.430/1996, há de se entender que a condição ali existente é condição objetiva de
punibilidade, e tal entendimento também se aplica ao crime de descaminho (Cód.
Penal, art. 334).
3. Em hipótese que tal, o descaminho se identifica com o crime contra a ordem
tributária. Precedentes do STJ: HCs n. 48.805, de 2007, e 109.205, de 2008.
4. Na pendência de processo administrativo no qual se discute a exigibilidade
do débito fiscal, não há falar em procedimento penal.
5. Recurso ordinário provido para se extinguir, relativamente ao crime de
descaminho, a ação penal.
(RHC n. 25.228-RS, Rel. Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, julgado em
27.10.2009, DJe 08.02.2010)
Penal. Habeas corpus. Descaminho. Trancamento da ação penal. Ausência
de prévia constituição do crédito tributário na esfera administrativa. Natureza
tributária do delito. Ordem concedida.
1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal
Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária
depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido
pela autoridade administrativa.
2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que
tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma
orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito
em reduzir ou suprimir (iludir).
Precedente.
3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no
que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo
prescricional.
(HC n. 109.205-PR, Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do
TJ-MG), Sexta Turma, julgado em 02.10.2008, DJe 09.12.2008, RT vol. 882, p. 569)
Na hipótese vertente, ainda não houve a conclusão do Processo
Administrativo n. 1094.000012/2008-49, por meio do qual se apura a suposta
ilusão do pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por
parte dos pacientes, mediante a apresentação de documentos inidôneos e de
declarações falsas perante as autoridades alfandegárias, conforme o documento
acostado à fl. 60, cuja veracidade e atualidade das informações foi atestada
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
721
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
por meio de acesso à pagina do Ministério da Fazenda localizada na internet,
pelo que não se pode falar, ainda, em investigação criminal para examinar a
ocorrência de crime de descaminho.
Ante o exposto, concede-se a ordem para trancar o Inquérito Policial n.
1774/08-SR/DPF-RS instaurado contra os pacientes.
É o voto.
HABEAS CORPUS N. 146.790-SP (2009/0175157-7)
Relator: Ministro Gilson Dipp
Impetrante: Francisco Emerson Mouzinho de Lima
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Paciente: Teresinha Monteiro dos Santos
EMENTA
Criminal. Habeas corpus. Estelionato. Pena-base fixada acima
do mínimo legal. Maus antecedentes. Reincidência. Prazo de cinco
anos entre a extinção da pena e a data do novo delito não decorrido.
Ausência de bis in idem. Existência de duas condenações penais
transitadas em julgado. Regime aberto e conversão de pena corporal
em restritiva de direitos. Acusada reincidente. Impossibilidade de
concessão dos benefícios. Ordem denegada.
I. A teor do art. 63 do CP, o qual preleciona que apenas não deverá
ser reconhecida a reincidência quando decorrido o lapso temporal de
cinco anos entre a data do cumprimento da pena anterior ou de sua
extinção e o cometimento do novo delito, infere-se a incidência da
referida circunstância agravante.
II. A existência de duas condenações transitadas em julgado em
desfavor da agente permite a fixação da pena-base acima do mínimo
legal e o reconhecimento da agravante da reincidência, sem que se
vislumbre a ocorrência de bis in idem.
722
Jurisprudência da QUINTA TURMA
III. Não obstante o quantum da pena imposta, o fato de se tratar
de acusada reincidente e o reconhecimento de circunstâncias judiciais
desfavoráveis não permitem o desconto da reprimenda em regime
aberto (Precedentes).
IV. A conversão da pena corporal em restritiva de direitos
encontra óbice no inciso II do art. 44 do Estatuto Repressor, que veda
a concessão do benefício ao réu reincidente em crime doloso.
IV. Ordem denegada, nos termos do voto do Relator.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. “A
Turma, por unanimidade, denegou a ordem. “Os Srs. Ministros Laurita Vaz,
Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 16 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Gilson Dipp, Relator
DJe 1º.02.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Gilson Dipp: Trata-se de habeas corpus, com pedido de
liminar, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que
deu provimento parcial ao apelo interposto em favor de Teresinha Emerson
Mouzinho de Lima.
A paciente foi condenada à pena de 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de
reclusão, em regime inicialmente semiaberto, pela prática, por duas vezes, do
delito previsto art. 171, caput, c.c. art. 29 e art. 69, caput, todos do Código Penal.
Irresignada, a defesa interpôs apelo perante o Colegiado estadual, que
restou parcialmente provido, tão somente para reduzir o quantum da pena ao
patamar de 01 (um) ano, 04 (quatro) meses e 10 (dez) dias de reclusão, por cada
um dos crimes, totalizando 02 (dois) anos, 08 (oito) meses e 20 (vinte) dias, a ser
descontada em regime intermediário.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
723
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Daí a presente irresignação, na qual o impetrante alega que a sentença
condenatória merece reparo, uma vez que teria sido considerada a reincidência
da paciente, devendo ser aplicado o regime aberto para desconto da pena, assim
como convertida a reprimenda corporal em restritiva de direitos.
Ademais, assevera que a apenada não ostenta maus antecedentes, sendo
que a condenação nos autos da Ação Penal n. 2003/03 retroagiu em prejuízo da
ora paciente, já que, na data dos fatos descritos nos autos, era a acusada primária.
Pugna-se, assim, pelo estabelecimento do regime aberto, bem como pela
conversão da pena corporal por restritiva de direitos.
Liminar indeferida à fl. 100.
Informações prestadas às fls. 105-137 e 154-182.
A Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pela denegação da
ordem (fls. 141-146).
É o relatório.
Em mesa para julgamento.
VOTO
O Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator): Trata-se de habeas corpus, com
pedido de liminar, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, que deu provimento parcial ao apelo interposto em favor de Teresinha
Emerson Mouzinho de Lima.
A paciente foi condenada à pena de 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de
reclusão, em regime inicialmente semiaberto, pela prática, por duas vezes, do
delito previsto art. 171, caput, c.c. art. 29 e art. 69, caput, todos do Código Penal.
Irresignada, a defesa interpôs apelo perante o Colegiado estadual, que
restou parcialmente provido, tão somente para reduzir o quantum da pena ao
patamar de 01 (um) ano, 04 (quatro) meses e 10 (dez) dias de reclusão, por cada
um dos crimes, totalizando 02 (dois) anos, 08 (oito) meses e 20 (vinte) dias, a ser
descontada em regime intermediário.
Daí a presente irresignação, na qual o impetrante alega que a sentença
condenatória merece reparo, uma vez que teria sido considerada a reincidência
da paciente, devendo ser aplicado o regime aberto para desconto da pena, assim
como convertida a reprimenda corporal em restritiva de direitos.
724
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Ademais, assevera que a apenada não ostenta maus antecedentes, sendo
que a condenação nos autos da Ação Penal n. 2003/03 retroagiu em prejuízo da
ora paciente, já que, na data dos fatos descritos nos autos, era a acusada primária.
Pugna-se, assim, pelo estabelecimento do regime aberto, bem como pela
conversão da pena corporal por restritiva de direitos.
Passo à análise da irresignação.
O Juízo de Direito da Comarca de Itatiba, no bojo da sentença
condenatória, asseverou:
Em primeira lugar, considerando as circunstâncias judiciais previstas no artigo
59 do Código Penal, especialmente a existência de antecedentes criminais e o
prejuízo suportado pelas vítimas, demonstrando conduta totalmente reprovável,
fixo a pena-base acima do mínimo legal, ou seja, em 02 (dois) anos de reclusão e
50 (cinquenta) dias-multa, para cada um dos crimes.
Tendo em vista que a ré é reincidente, conforme certidão de fls. 198, deve ser
reconhecida a agravante prevista no artigo 61 do Código Penal, em portanto,
ocorrer um aumento da pena-base de 1/3 (um terço), o que refaz um total de 02
(dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão e 66 (sessenta e seis dias-multa).
Não há causas de aumento ou diminuição a serem consideradas.
O regime inicial de cumprimento da pena é o regime semiaberto, tendo em
vista o exposto quando da fixação da pena-base, principalmente a existência de
antecedentes e a reincidência da ré (fls. 22-23).
O Colegiado de origem, por seu turno, ao reformar o julgado de primeiro
grau, consignou:
A dosimetria da pena merece reparo.
Na primeira fase, as penas foram fixadas acima do mínimo legal, em dois anos
de reclusão e pagamento de cinquenta dias-multa, para cada um dos crimes de
estelionato, em razão dos maus antecedentes e pelo prejuízo suportado pelas
vítimas.
A reprimenda da acusada Teresinha ainda foi majorada, na fração de um terço,
pela reincidência.
O prejuízo patrimonial causado pelas condutas não autoriza o reconhecimento
da circunstância judicial relacionada com as consequências do crime, porquanto
ausentes maiores informações sobre a situação econômico-financeira das
ofendidas, o que impede avaliar a extensão do desfalque aos patrimônios.
(...) No concernente a apelante Teresinha, apenas a certidão de fls. 186 pode ser
considerada como maus antecedentes, em atenção ao princípio constitucional da
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
725
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
presunção de inocência, de modo que é suficiente para o aumento em um sexto,
perfazendo um ano e dois meses de reclusão, mais o pagamento onze dias-multa.
Pela reincidência certificada a fls. 198, majoro a sanção em um sexto, percentual
que entendo mais adequado para reprovação do crime, totalizando um ano,
quatro meses e 12 dias-multa, para casa um dos delitos.
(...) A reincidência da ré Teresinha desautoriza a substituição (art. 44, inciso II,
do CP).
O regime prisional semiaberto foi corretamente fixado para a apelante
Teresinha, considerando-se seus maus antecedentes e a reincidência, uma vez
que o mais brando seria insuficiente para reprovação e prevenção do crime (fls.
11-14).
Com efeito, nos termos do consignado na certidão acostada aos autos às
fls. 86, a paciente foi condenada à pena de 01 (um) ano e 03 (três) anos autos
do Processo n. 417/97, pela prática do delito previsto no art. 171, caput, c.c. art.
29, ambos do Código Penal. Ademais, os fatos apurados nos autos da ação penal
retrocitada foram praticados em 06.08.1997, tendo a sentença condenatória
transitado em julgado em 24.06.1998.
De outro lado, os delitos relacionados à presente impetração teriam sido
levados a efeito em 24 de outubro de 2002 e 14 de janeiro de 2003.
Nesse contexto, a teor do art. 63 do CP, o qual preleciona que apenas não
deverá ser reconhecida a reincidência quando decorrido o lapso temporal de
cinco anos entre a data do cumprimento da pena anterior ou de sua extinção
e o cometimento do novo delito, deve-se reconhecer a incidência da referida
circunstância agravante.
Deveras, não obstante a ausência de informação acerca do término do
cumprimento da pena corporal imposta à paciente nos autos do Processo n.
417/97, tendo sido a sentença proferida em 10.12.1997, com a expedição
de mandado de prisão em 11.12.2007, não de infere o transcurso do prazo
de 05 (cinco) anos entre a data da condenação emanada dos autos alhures
mencionados e a data dos fatos apurados no Processo n. 463/03, o qual ensejou
a presente impetração.
De outra banda, no tocante aos maus antecedentes, verifica-se a existência
de outra condenação, nos autos do Processo n. 332/94, no qual foi condenada
à pela de 01 (um) ano de reclusão, pela prática do delito de estelionato, o que
possibilita a majoração da pena-base, nos termos do art. 59 CP.
Diante disso, a existência de duas condenações transitadas em julgado em
desfavor da agente, nos termos do consignado nas instâncias ordinárias, permite
726
Jurisprudência da QUINTA TURMA
a fixação da pena-base acima do mínimo legal e o reconhecimento da agravante
da reincidência, sem que se vislumbre a ocorrência de bis in idem.
Nesse sentido, trago à colação o seguinte julgado deste Colegiado:
Habeas corpus. Penal. Tráfico de drogas. Fixação da pena-base. Quantidade
de droga. Justificativa válida. Reincidência e maus antecedentes. bis in idem.
Inocorrência.
1. O art. 42 da Lei n. 11.343/2006 impõe ao julgador considerar, com
preponderância sobre o previsto no art. 59, do Código Penal, a natureza e a
quantidade da droga, tanto na fixação da pena-base, quanto na determinação do
grau de redução da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 do
mesmo diploma legal.
2. A fixação da pena-base acima do mínimo legal também restou
suficientemente justificada pelos antecedentes do Paciente - detentor de
três condenações transitadas em julgado, respectivamente, em 28.10.2003,
09.01.2005 e 15.05.2006. Como se vê, na hipótese de o magistrado singular ter
valorado negativamente os antecedentes do Paciente, para majorar a penabase, em razão de uma condenação anterior transitada em julgado, e, na 2ª
etapa, ter considerado outra condenação definitiva para agravar a pena pela
reincidência, impossível falar-se em bis in idem.
3. Não obstante a constatação de algumas impropriedades, verifica-se
que o quantum de aumento na fixação da pena-base se revela proporcional e
fundamentado, pois as instâncias ordinárias consideraram, concretamente, os
elementos acidentais que extrapolam consideravelmente o tipo penal básico
imputado ao Paciente. Como é cediço, excetuados os casos de patente ilegalidade
ou abuso de poder, é vedado em sede de habeas corpus o amplo reexame das
circunstâncias judiciais consideradas para a individualização da sanção penal,
porquanto requerem a análise de matéria fático-probatória.
4. Desse modo, diante das circunstâncias judicias desfavoráveis, que, de
fato, emprestaram à conduta do Paciente especial reprovabilidade e que não se
afiguram inerentes ao próprio tipo penal em comento, não há como, diante da
ausência de manifesta ilegalidade, redimensionar a pena aplicada pelo julgador,
porquanto dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade.
5. Ordem denegada.
(HC n. 134.433-MG, Relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe de
18.10.2010).
De outro lado, o artigo 33 do Código Penal, em seu § 2º, alínea c,
preleciona:
O condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro)
anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
727
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na hipótese, não obstante o quantum da pena imposta, o fato de se tratar de
acusado reincidente e o reconhecimento de circunstâncias judiciais desfavoráveis
não permitem o desconto da reprimenda em regime aberto.
Nesse sentido, trago à colação o seguinte precedente deste Tribunal:
Habeas corpus. Furto qualificado. Dosimetria da pena. Pena-base fixada acima
do mínimo legal. Duas qualificadoras. Utilização de uma como circunstância
judicial desfavorável. Possibilidade. Reincidência invocada na primeira e na
segunda fase. Bis in idem. Regime semiaberto. Ilegalidade. Não ocorrência.
1. Na fixação da pena, adotou o legislador o sistema trifásico, devendo o
magistrado, na primeira fase, estabelecer a pena-base entre os limites mínimo e
máximo indicado na lei, observadas as circunstâncias judiciais do artigo 59 do
Código Penal, sendo certo que a sua estipulação acima do mínimo legal exige
devida fundamentação, a teor do disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição
Federal.
2. Existindo duas qualificadoras, uma pode servir para qualificar o delito e a
outra como circunstância judicial desfavorável. Precedentes.
3. A valoração da reincidência tanto na primeira fase, para aumentar a penabase, quanto como agravante genérica, implica verdadeiro bis in idem.
4. Embora a pena privativa de liberdade não ultrapasse 4 anos de reclusão,
havendo o reconhecimento de circunstância judicial desfavorável e sendo o
paciente reincidente, não há como fixar o regime aberto.
5. Habeas corpus parcialmente concedido tão-só para reduzir a pena do
paciente para 3 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, e 70 dias-multa, mantido o
regime semiaberto estipulado na sentença.
(HC n. 140.442-MS, Relator Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado
do TJ-SP), Sexta Turma, DJe de 21.06.2010).
De igual modo, a conversão da pena corporal em restritiva de direitos
encontra óbice no inciso II do art. 44 do Estatuto Repressor, que veda a
concessão do benefício ao réu reincidente em crime doloso.
A propósito, trago à baila o seguinte precedente desta Turma:
Processual Penal. Habeas corpus. Art. 180, § 1º, do Código Penal. Nulidade.
Não apreciação de pedido de vista dos autos fora de cartório. Inocorrência.
Comparecimento do advogado constituído no dia do julgamento. Ausência de
prejuízo. Substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Reincidência. Impossibilidade.
I - Ao contrário do que alega o impetrante, não houve cerceamento de defesa
no julgamento do recurso de apelação, pois a respectiva sessão foi adiada em
728
Jurisprudência da QUINTA TURMA
duas oportunidades em atendimento a requerimento da defesa para melhor
exame da quaestio. Ademais, o patrono do paciente compareceu à sessão de
julgamento no dia aprazado sem manifestar interesse em realizar sustentação
oral.
II - Constatado ser o paciente reincidente e, ainda, ressaindo do v. acórdão
atacado que as circunstâncias do crime não lhe favorecem, escorreita se revela
a decisão que não autorizou a substituição da pena (Precedente desta Corte).
Ordem denegada.
(HC n. 96.770-SP, Relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe de
04.10.2010).
Ante o exposto, denego a ordem.
É como voto.
HABEAS CORPUS N. 160.590-SP (2010/0014825-7)
Relator: Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do
TJ-RJ)
Impetrante: Renata Simões Stabile Bucceroni - Defensora Pública
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Paciente: J A da S (preso)
EMENTA
Habeas corpus. Processual Penal. Órgão colegiado composto
majoritariamente por juízes convocados, por norma constitucional
ou legal. Nulidade. Inexistência. Ofensa ao princípio do juiz natural.
Inocorrência. Precedentes.
1. Através do julgamento do RE n. 597.133-RS (17.11.2010),
em regime de repercussão geral, o STF fixou a orientação de que
não há nenhuma violação ao princípio do juiz natural quando a
Turma julgadora é composta, na sua maioria, por juízes convocados
de primeiro grau. Entendimento, esse, que homenageia a duração
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
729
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
razoável do processo, “materializando o ideal de uma prestação
jurisdicional célere e efetiva”.
2. Sendo tal entendimento adotado pela Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça, aferindo estarem dentro da legalidade
os julgamentos proferidos pelos órgãos fracionários com quantitativo
majoritário de juízes convocados. Desta forma, resta superada a
jurisprudência em sentido contrário emanada anteriormente por esta
Corte.
3. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de
Justiça, por unanimidade, denegar a ordem.
Os Srs. Ministros Gilson Dipp e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Laurita Vaz e Napoleão
Nunes Maia Filho.
Brasília (DF), 08 de fevereiro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ),
Relator
DJe 21.02.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do
TJ-RJ): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso especial impetrado, ao
argumento de que o ora paciente sofre constrangimento ilegal, em virtude de o
recurso de Apelação ter sido julgado por Colegiado composto, em sua maioria,
por Juízes convocados, em afronta ao princípio constitucional do juiz natural.
Noticia que o apelo foi provido, em parte, para ser mantida a sentença
que o condenara pela prática do delito previsto nos artigos 213 e 214, c.c. o
artigo 223, na forma do artigo 69, todos do Código Penal, reduzindo-se a pena
730
Jurisprudência da QUINTA TURMA
anteriormente aplicada em 1/6 (um sexto), fixando-a, definitivamente, em 24
(vinte e quatro) anos de reclusão, em regime inicial fechado.
Postulara o provimento do mandamus, a fim de se anular o acórdão
vergastado, em obediência ao princípio do juiz natural.
Exmo. Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima indeferiu o pedido liminar (fls.
36).
Informações prestadas (fls. 40-48).
No seu parecer, o douto Ministério Público Federal opinou pela denegação
da ordem (fls. 151-153).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do
TJ-RJ) (Relator): O pleito do impetrante, em síntese, é anular o acórdão do
Tribunal a quo sob a assertiva de violação aos princípios do juiz natural e do
duplo grau de jurisdição em face do colegiado não ter sido composto por
desembargadores em sua maioria.
Ao paciente não assiste razão, pois o inconformismo com o fato do
julgamento em segundo grau da ação ou recurso ter sido efetivado mediante a
participação em sua maioria por juízes convocados, que gozam de competência
e imparcialidade, não provoca constrangimento ilegal.
Ressalto, outrossim, que o órgão fracionário composto pelos referidos
magistrados, previamente indicados, com base na Constituição ou norma
legal, situa-se dentro da estrita observância dos princípios constitucionais do
juiz natural, da publicidade, duplo grau de jurisdição, da duração razoável do
processo e celeridade processual.
É certo que a Terceira Seção desta Corte, anteriormente havia firmado o
entendimento de que o julgamento realizado por órgão fracionário, composto
única ou em maioria por juízes convocados, padecia de vício de nulidade
absoluta. Isso porque, fundamentava-se que tal fato violava o princípio do juiz
natural, bem como os artigos 93, III, 94, e 98, I, da Constituição Federal.
No entanto, este entendimento está superado quando, sob o regime de
repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal em sessão plenária, realizada em
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
731
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
17 de novembro de 2010, pacificou a tese de que o julgamento de apelação por
órgão composto majoritariamente por juízes convocados, conforme os preceitos
contidos em lei específica, não viola os princípios constitucionais do juiz natural,
duplo grau de jurisdição, do devido processo legal e seus consectários lógicos
da ampla defesa e do contraditório. (RE n. 597.133-RS, relator Min. Ricardo
Lewandowski)
Dentre outros precedentes do pretório Excelso, com a mesma
fundamentação, cito o seguinte julgado:
Habeas corpus. Princípio do juiz natural. Câmara composta majoritariamente
por juízes de 1º grau convocados. Precedentes. Ordem denegada.
1. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que
não viola o princípio do juiz natural a convocação de juízes de primeiro grau
para compor órgão julgador do respectivo tribunal. Precedente: HC n. 86.889, da
relatoria do ministro Menezes Direito.
2. No julgamento do HC n. 96.821 (Sessão de 08.04.2010 - acórdão pendente
de publicação), o Plenário desta nossa Corte fixou a orientação de que não há
nenhuma violação ao princípio do juiz natural quando a Turma julgadora é
composta, na sua maioria, por juízes convocados de primeiro grau. Entendimento,
esse, que homenageia a duração razoável do processo, “materializando o ideal de
uma prestação jurisdicional célere e efetiva”.
3. Ordem denegada (STF - HC n. 96.821, Rel. Ministro Ricardo Lewandowisk,
Tribunal Pleno, DJe de 25.06.2010).
Diante da cristalização da orientação emanada pela Excelsa Corte, a
nova vertente vem sendo seguida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de
Justiça, aferindo estarem dentro da legalidade os julgamentos proferidos pelos
órgãos fracionários com quantitativo majoritário de juízes convocados, pois tal
ocorrência, por si só, não viola os princípios constitucionais do devido processo
legal e do juiz natural.
Extraio o seguinte julgado:
Habeas corpus. Processual Penal. Julgamento de recursos. Órgão colegiado
composto majoritariamente por juízes convocados. Ausência de violação ao
princípio do juiz natural. Convocação que atende à Constituição Federal e à lei
federal. Ausência de intimação do defensor. Nulidade. Anulação do julgamento.
Concessão da ordem.
1. Não ofende o princípio constitucional do juiz natural a convocação de
juízes de primeiro grau para, nos casos de afastamento eventual ou férias de
732
Jurisprudência da QUINTA TURMA
desembargador titular, compor o órgão julgador do respectivo Tribunal, desde
que observadas as diretrizes legais.
2. A composição majoritária do órgão julgador de Tribunal por juízes de
primeiro grau, desde que observada a lei de regência, como se deu no caso, não
viola o princípio constitucional do juiz natural.
Precedentes do STF e do STJ.
3. Esta Corte Superior de Justiça tem entendimento no sentido de que a
ausência de intimação pessoal do defensor público da sessão de julgamento do
recurso de apelação torna nulo o acórdão nela proferido, por cerceamento de
defesa. Precedentes.
4. Ordem concedida em parte para determinar que outro julgamento seja
proferido, desta vez com a devida intimação da Defensoria Pública.
(HC n. 167.512-SP, Rel. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro
(Desembargador convocado do TJ-AP), Quinta Turma, julgado em 09.11.2010, DJe
29.11.2010)
Com esses fundamentos, na esteira dos recentes julgados desta Egrégia
Corte e do Supremo Tribunal Federal, e por não haver qualquer nulidade na
composição da turma julgadora, em face dos motivos articulados, não merece
acolhida a pretensão postulada.
Diante do exposto, conheço do habeas corpus e denego a ordem.
É como voto.
HABEAS CORPUS N. 166.778-BA (2010/0053073-0)
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Impetrante: Janjório Vasconcelos Simões Pinho e outros
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Paciente: Itamar da Silva Rios
EMENTA
Habeas corpus preventivo. Crime de responsabilidade de
prefeito. Art. 1º, II do DEL n. 201/1967 (empréstimo de carro
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
733
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
da prefeitura para fins particulares de terceiros). Recebimento da
denúncia pelo Tribunal estadual, sem afastamento do prefeito do
cargo. Inadmissibilidade da pretensão de trancamento da ação penal.
Acusação aceita pelo Tribunal de forma motivada. Fato, em princípio,
típico. Recepção do DEL n. 201/1967 pela atual Constituição.
Violação ao princípio da indisponibilidade/indivisibilidade da
ação penal. Crime de responsabilidade que é próprio de prefeito.
Incompetência da 1ª Câmara Criminal para o julgamento do paciente.
Questão não enfrentada pelo Tribunal a quo. Ausência de documentos
comprobatórios da alegação. Parecer do MPF pela denegação da
ordem. Ordem denegada.
1. O trancamento da Ação Penal por meio de Habeas Corpus
é medida excepcional, somente admissível quando transparecer dos
autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da
conduta ou a extinção da punibilidade, circunstâncias não evidenciadas
na hipótese em exame.
2. A impetração envereda por argumentação relativa ao mérito
da acusação, sustentando a ausência de dolo do acusado; todavia, a tese
defensiva não é daquelas que se apresentam induvidosa e somente por
meio da análise da prova a ser judicializada será possível concluir pela
existência ou não do dolo específico na conduta do paciente.
3. Quanto à violação ao princípio da indisponibilidade/
indivisibilidade da Ação Penal, poque não denunciado o Vereador
condutor do veículo sinistrado, a tese não comporta acolhida, pois o
crime de responsabilidade em apuração é próprio de Prefeito.
4. A alegação de que, nos termos da Lei de Organização Judiciária
do Estado da Bahia, o julgamento de Prefeito compete ao Pleno do
Tribunal de Justiça, e não à Câmara Criminal, carece de adequada
comprovação, pois não juntados cópias das referidas normas estaduais,
fato que obstaculiza a análise da questão.
5. O DEL n. 201/1967 tem sido constantemente aplicado
tanto por esta Corte como pelo STF sem se cogitar de qualquer
inconstitucionalidade.
6. Ordem denegada.
734
Jurisprudência da QUINTA TURMA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem. Os Srs. Ministros
Jorge Mussi, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 02 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator
DJe 13.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Trata-se de Habeas Corpus
com pedido de liminar impetrado em favor de Itamar da Silva Rios, Prefeito
do Município de Capim Grosso-BA, contra acórdão proferido pelo TJBA, que
recebeu a denúncia ofertada em desfavor do paciente pela suposta prática do
crime previsto no art. 1º, II do DEL n. 201/1967, nos termos do acórdão assim
ementado, por seu caput:
Ação penal originária. Prefeito municipal denunciado como incurso nas
penas do art. 1º, inciso II do Decreto-Lei n. 201/1967. Alcaide que cedeu veículo
oficial para vereador, tendo este procedido o traslado de amigos e familiares
para festa junina, e antes de chegar ao seu destino envolveu-se em acidente
automobilístico. Peça acusatória descrevendo regularmente os fatos e imputando
a prática de crime em tese pelo acusado, alicerçada em elementos suficientes
de materialidade e indícios de autoria. Desnecessidade de decretação da prisão
preventiva e do afastamento doa alcaide. Denúncia recebida. (fls. 196).
2. Aduz a impetração, em síntese: (a) a ausência de crime eis que o fato
constitui um indiferente penal; (b) ausência de dolo específico, pois o veículo
foi utilizado de forma adequada e necessária para servir ao paciente enquanto
prefeito, que não autorizou o transporte de outras pessoas; (c) a não receptação
do DEL n. 201/1967 pela atual constituição; (d) violação ao princípio da
indisponibilidade/indivisibilidade da Ação Penal, porquanto não denunciado
o Vereador condutor do veículo sinistrado; (e) incompetência da 1ª Câmara
Criminal para o julgamento do paciente.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
735
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3. Indeferido o pedido de liminar (fls. 214), foram solicitadas informações,
as quais, contudo, não foram prestadas.
4. O MPF, em parecer subscrito pelo ilustre Subprocurador-Geral da
República Francisco Dias Teixeira, manifestou-se pela denegação da ordem (fls.
247-252).
5. É o que havia de relevante para relatar.
VOTO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. No que interessa,
o Tribunal Baiano aduziu o seguinte:
Consta da denúncia oferecida pelo Ministério Público do Estado da Bahia que
(...) o Alcaide, inquinando os princípios da legalidade, moralidade e
impessoabilidade, utilizou indevidamente veículo público pertencente à
Comuna que dirige, para satisfazer fins particulares.
Com efeito, desde que assumiu a Prefeitura de Capim Grosso, o Alcaide,
por diversas vezes, emprestou veículos oficiais ao Vereador Ednon Oliveira
Queiroz, seu correligionário político, permitindo a este que usufruísse em
suas atividades privadas.
Nessa toada, em 24 de junho de 2006, o Vereador Ednon utilizava o
veículo municipal de marca Ford Ranger, com placa policial JQS 1422,
para dirigir-se a uma festa junina, na cidade de Senhor do Bonfim, levando
consigo dois filhos, uma nora, um sobrinho e um outro EDIL.
Ocorre que, na data supra, próximo ao Município do Senhor do Bonfim,
por volta das 15:30 horas, o Vereador Ednon perdeu a direção do carro e
capotou, conforme Boletim de Acidente de Trânsito 560799 às fls. 10-14.
O veículo público sofreu diversas avarias, sendo o seu reparo arcado
pelos cofres municipais, cujo valor total correspondeu a R$ 15.840,82
(quinze mil, oitocentos e quarenta reais e oitenta e dois centavos). Assim,
além da conduta criminosa de utilizar de forma proposital e indevida o
referenciado bem público em benefício de seu apadrinhado político, o
Alcaide assumiu o risco e acabou concorrendo para o prejuízo suportado
pelo erário.
(...).
Como se sabe, o recebimento da exordial acusatória, mero juízo de
admissibilidade, envolve sempre a análise da peça vestibular, a qual deve
736
Jurisprudência da QUINTA TURMA
preencher os requisitos insculpidos no art. 41 do Código de Processo Penal
Brasileiro.
Na atual fase do processo, este colegiado reúne-se unicamente para deliberar
sobre o recebimento ou rejeição da denúncia ou queixa, sendo, posteriormente,
no caso de prosseguimento do feito, analisada a ação propriamente dita, depois
de todos os demais trâmites processuais, onde, inclusive, existe o exercício do
amplo direito de defesa.
(...).
A peça acusatória ora analisada contém a descrição precisa do fato considerado
criminoso, com todas as suas circunstâncias, atribuindo ao acusado a prática de
crime de responsabilidade, haja vista ter o réu cedido ao seu amigo e vereador
Ednon Oliveira de Queiroz, nos termos das suas declarações prestadas no
procedimento preparatório de Inquérito Civil (fls. 24-25), o carro oficial, tendo este
procurado efetuar o traslado de amigos e familiares para o município de Senhor
do Bonfim, em época de festividades juninas (24 de junho de 2006), fato, ademais,
que gerou grande prejuízo ao erário em virtude do acidente com o mencionado
veículo ocorrido quando se aproximava da supracitada municipalidade (fls. 1114), automóvel que precisou de reparos no valor total de R$ 15.840,82 (quinze
mil, oitocentos e quarenta reais e oitenta e dois centavos) (fls. 81-82), fato que
se coaduna, portanto, com o tipo descrito no art. 1º, inciso II do Decreto-Lei n.
201/1967, a saber:
Art. 1º - São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais,
sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do
pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
II - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens,
rendas ou serviços públicos;
Destarte, sendo o veículo um bem da Administração e configurada a utilização
indevida, ou seja, imprópria, fora do âmbito da finalidade a que é destinado, está
caracterizado, em tese, o tipo penal, razão pela qual, mesmo que não houvesse o
acidente automobilístico, a exordial acusatória deveria ser recebida.
(...).
Além disso, não é demais ressaltar que a denúncia ou queixa não precisa ser
demasiadamente extensa, devendo restringir-se ao indispensável à configuração
da figura delitual penal e às demais circunstâncias que envolvem o fato e que
possam influir na sua caracterização (Fernando da Costa Tourinho Filho, in Código
de Processo Penal Comentado, 8ª edição, p. 148).
Portanto, o fato descrito na peça de acusação adequa-se ao apontado tipo
penal, até porque as questões envolvendo a atipicidade da conduta somente
levam à rejeição da denúncia quando for evidente, mediante os elementos já
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
737
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
constantes dos autos, que o fato não constitui crime. Se houve a necessidade
da produção de provas não é possível refutar-se a peça acusatória. Para o
recebimento da denúncia basta que a conduta descrita, em tese, configure-se
como crime.
(...).
Ademais, a análise acerca da possibilidade de acolhimento das alegações
relativas à desclassificação da conduta para a infração político-administrativa
descrita no art. 4º, inciso VIII do Decreto-Lei n. 201/1967, bem como ao dolo,
requerem exame de provas a serem colhidas na instrução criminal. (fls. 198-203).
2. Tenho reiteradamente afirmado, seguindo a maciça jurisprudência das
Cortes Superiores do País, que o trancamento da Ação Penal por meio de
Habeas Corpus é medida excepcional, somente admissível quando transparecer
dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta
ou a extinção da punibilidade. Na hipótese, tais circunstâncias não estão
evidenciadas.
3. Com efeito, a impetração envereda por argumentação relativa ao
mérito da acusação. Sustenta a ausência de dolo do acusado, que estaria em festa
patrocinada por outro Município a serviço, tendo pedido ao colega Vereador que o
buscasse na referida localidade com o carro da prefeitura. Afirma, ainda, que não teria
consentido com o transporte de terceiras pessoas.
4. Ora, a tese defensiva não é daquelas que se apresentam induvidosa.
Somente por meio da análise da prova a ser judicializada será possível concluir
pela existência ou não do dolo específico na conduta do paciente. Nesse sentido:
Ementa: Recurso ordinário em habeas corpus. Penal. Processual Penal. Crime
de responsabilidade de prefeito. Alegação de falta de justa causa. Trancamento
de inquérito. Habeas corpus denegado no Superior Tribunal de Justiça. Decisão
em perfeita consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Análise de matéria fático-probatória: impossibilidade. Recurso ao qual se nega
provimento. 1. O trancamento de inquérito, em habeas corpus, apresenta-se como
medida excepcional, que só deve ser aplicada quando evidente a ausência de
justa causa, o que não ocorre quando a lei supostamente violada pelo Paciente
não foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça e a denúncia descreve
conduta que configura crime em tese. 2. Decisão do Superior Tribunal de Justiça
devidamente fundamentada e em consonância com o entendimento deste
Supremo Tribunal sobre a matéria. 3. Na tímida via do habeas corpus, não se
permite a análise do conjunto fático-probatório, em evidente substituição ao
processo de conhecimento. Precedentes. 4. Recurso ao qual se nega provimento.
(RHC n. 100.961-SC, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 20.05.2010).
738
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Processo Penal. Habeas corpus. Crime de responsabilidade de prefeito.
Decreto-Lei n. 201/1967, art. 1º, XIII. Contratação temporária, sem concurso, fora
das hipóteses legais. Remissão a lei municipal de 1990. Existência de lei federal
relativamente mais restritiva em 1993. Fatos ocorridos em 2003. Contratação tida
por ilegal em duas instâncias judiciais. Atipicidade não manifesta. Trancamento.
Impossibilidade.
1. O trancamento da ação penal, por falta de justa causa, na angusta via do
habeas corpus, pressupõe manifesta atipicidade ou o claro afastamento do jus
puniendi. In casu, a alegação de atipicidade se embasa no fato de o paciente
determinar a realização de contratação temporária, sem concurso, lastreandose em lei municipal. Ocorre que: a) quando da deliberação, vigia lei federal
relativamente mais restritiva (especificamente em relação ao caso em testilha,
visto que não preveria a hipótese de contratação de guardas municipais), não
sendo evidente, portanto, a alegação de legalidade do comportamento; b) o
Poder Judiciário, já em duas instâncias, considerou a contratação ilegal. Daí ser
mais apropriado destinar o debate acerca da vexata quaestio às vias ordinárias.
2. Ordem denegada, cassada a liminar. (HC n. 78.218-SP, Rel. Min. Maria Thereza
de Assis Moura, DJe 17.05.2010)
Habeas corpus. Prefeito municipal. Crime de responsabilidade e formação
de quadrilha. Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia inexistente.
Contas julgadas irregulares pelo TCE-TO. Prazo de 15 dias para o oferecimento da
denúncia. Obediência ao prazo impróprio, cuja inobservância não causa nulidade.
Rito da lei especial (Lei n. 8.038/1990) observado. Prévia notificação do paciente
para o oferecimento de defesa antes do recebimento da denúncia. Acusação
aceita pelo Tribunal de forma motivada. Afastamento do paciente do cargo de
prefeito devidamente fundamentado na garantia da ordem pública, do erário
municipal e da instrução criminal. Parecer do MPF pela denegação do writ. Ordem
denegada, cassando a liminar inicialmente deferida.
1. Inviável o pleito de trancamento da Ação Penal por inépcia da denúncia,
porquanto a inicial acusatória descreve minimamente os fatos e suas
circunstâncias, possibilitando o amplo exercício do direito de defesa.
(...).
4. O egrégio Tribunal a quo, ao aceitar a acusação, o fez de forma motivada,
manifestando-se, inclusive, sobre os pontos levantados pelo ora paciente quando
da apresentação da defesa preliminar.
(...).
6. Ordem denegada, cassando-se a liminar inicialmente deferida, em
conformidade com o parecer ministerial. (HC n. 102.818-TO, Rel. Min. Napoleão
Nunes Maia Filho, DJe 27.04.2009)
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
739
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
5. Quanto à violação ao princípio da indisponibilidade/indivisibilidade
da Ação Penal, porquanto não denunciado o Vereador condutor do veículo
sinistrado, a tese não comporta acolhida, pois o crime de responsabilidade
em apuração é próprio de Prefeito. Eventual conduta criminosa ou infração
administrativa cometida pelo Vereador deve ser apurada em outra sede.
6. No tocante à alegação de que, nos termos da Lei de Organização
Judiciária do Estado da Bahia, o julgamento de Prefeito compete ao Pleno do
Tribunal de Justiça, e não à Câmara Criminal, conforme previsto no Regimento
Interno daquela Corte de Justiça, como bem assinalou o douto representante
do Parquet Federal, carece de mínima comprovação, pois não foram juntados
cópias das referidas normas estaduais, fato que obstaculiza a análise do pedido,
no ponto.
7. Por fim, ressalte-se que o DEL n. 201/1967 tem sido constantemente
aplicado tanto por esta Corte como pelo STF sem se cogitar de qualquer
inconstitucionalidade.
8. Ante o exposto, denega-se a ordem, em consonância com o parecer
ministerial.
HABEAS CORPUS N. 181.848-MS (2010/0147020-9)
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Impetrante: Henoch Cabrita de Santana - Defensor Público
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
Paciente: Luís Antônio de Souza
Advogado: Fabiano Caetano Prestes - Defensor Público da União
EMENTA
Habeas corpus. Violação de direito autoral (art. 180, § 2º do
CPB). Pena: 2 anos de reclusão e 180 dias-multa. Regime inicial
fechado. Sanção substituída por duas restritivas de direitos. Exposição
à venda, de 2.000 dvd’s e cd’s piratas. Inadmissibilidade da tese de
740
Jurisprudência da QUINTA TURMA
atipicidade da conduta, por força do princípio da adequação social.
Incidência da norma penal incriminadora. Parecer pela denegação da
ordem. Ordem denegada.
1. A pretensão em reconhecer-se causa excludente de ilicitude,
consubstanciada no estado de necessidade, ante a alegada crise
financeira pela qual o paciente passava, requisita, à evidência,
aprofundada dilação probatória, o que se mostra inexeqüível na estreita
via cognitiva do writ.
2. O paciente foi surpreendido por policiais comercializando, com
violação de direito autoral, 2.000 dvd’s e cd’s conhecidos vulgarmente
como piratas; ficou constatado, conforme laudo pericial, que os dvd’s e
cd’s são cópias não autorizadas para comercialização.
3. Mostra-se inadmissível a tese de que a conduta do paciente é
socialmente adequada, pois o fato de que parte da população adquire
tais produtos não tem o condão de impedir a incidência, diante da
conduta praticada, do tipo previsto no art. 184, § 2º do CPB.
4. Ordem denegada, conforme parecer ministerial.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem. Os Srs. Ministros
Jorge Mussi, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 02 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator
DJe 13.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Cuida-se de Habeas
Corpus, sem pedido liminar, impetrado em favor de Luís Antônio de Souza, em
adversidade ao acórdão proferido pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado
Mato Grosso do Sul, que negou provimento ao Apelo defensivo. O aresto
objurgado restou assim ementado:
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
741
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação criminal. Penal e Constitucional. Violação de direitos autorais. Venda
de CD e DVD falsificados. Suposta ausência de exame das teses defensivas.
Improcedência. Pleito absolutório. Aplicação do princípio da insignificância.
Não incidência. Arguição incidental de inconstitucionalidade do art. 184, § 2º,
do Código Penal. Situação diversa da prevista no art. 12, da Lei n. 9.609/1998.
Proteção de bens jurídicos diferentes. Conflito aparente de normas. Critério da
especialidade. Inconstitucionalidade não reconhecida. Pedido de aplicação do
art. 21 do Código Penal. Impossibilidade. Não provimento.
Não se cogita a nulidade da sentença, por suposta falta de análise de teses
defensivas argüidas por ocasião das alegações finais, quando o magistrado a quo,
além de tê-las examinado, ainda que sucintamente, expendeu argumentação
que, por sua própria coerência e lógica, afastam as argumentações contrárias ao
raciocínio exposto.
A alegação de se encontrar em dificuldades financeiras, e até mesmo a de que
a conduta perpetrada vem sendo aceita socialmente não afastam a incidência do
tipo penal, quando há clara ofensividade ao bem jurídico tutelado pela norma
penal. Assim, aquele que é flagrado com enorme quantidade de CD e DVD
falsificados não pode alegar que sua conduta seja insignificante, tampouco que o
fato seja um irrelevante penal e muito menos seja possível a incidência da regra
inserta no art. 21, do Código Penal.
O crime previsto no art. 184, § 2º, do Código Penal, refere-se à proteção de
direitos autorais envolvidos com as obras fonográficas – objetos de falsificações
em larga escala – e por esta razão recebeu proteção maior do legislador, sendo
diversa é a situação albergada pela norma do art. 12, da Lei n. 9.609/1998, que
se refere especificamente à violação de direitos de autores de programas de
computador.
O estabelecimento de pena maior a uma espécie de delito, em detrimento das
reprimendas previstas para tipos penais que protegem bens jurídicos diversos,
não ofende o princípio da proporcionalidade, haja vista que ao legislador não
é vedado criar punição maior às condutas ilícitas que causam maior prejuízo à
sociedade.
Não há inconstitucionalidade na criação de tipo penal mais gravoso previsto
no art. 184, § 2º, do Código Penal, mas apenas conflito aparente entre essa regra
jurídica e aquela prevista no art. 12, da Lei n. 9.609/1998, que se resolve pelo
critério da especialidade.
Apelação Criminal defensiva a que se nega provimento, dado o acerto do
apreço singular (fls. 337).
2. Depreende-se do autos que o paciente foi condenados a 2 anos de
reclusão e 180 dias-multa, em regime inicial aberto, por infração ao art. 184, §
2º do CPB, sendo a pena privativa de liberdade substituída por duas restritivas
742
Jurisprudência da QUINTA TURMA
de direitos consistentes na prestação de serviço à comunidade e limitação de fim
de semana.
3. Sustenta a impetração, em síntese, a aplicação, na espécie, do princípio
da adequação social da ação praticada, requerendo, consequentemente, o
reconhecimento da atipicidade da conduta.
4. Indeferida a liminar (fls. 364), o MPF, em parecer subscrito pelo ilustre
Subprocurador-Geral da República Pedro Henrique Távora Niess, manifestou-se
pela denegação da ordem, porquanto a norma penal incriminadora aplicada à
espécie é taxativa (fls. 207-211).
5. Era o que havia para relatar.
VOTO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Cinge a questão
sobre viabilidade da aplicação, na espécie, do princípio da adequação social da
ação praticada, com o consequente reconhecimento da atipicidade da conduta.
2. Inicialmente, referente à pretensão em reconhecer-se causa excludente
de ilicitude, consubstanciada no estado de necessidade, ante a alegada crise
financeira pela qual o paciente passava, a tese, à evidência, requisita aprofundada
dilação probatória, o que se mostra inexequível na estreita via cognitiva do writ.
3. No tocante à aplicação do princípio da adequação social, consignou o
acórdão objurgado, in ipsis verbis:
De fato, este e. Tribunal, por diversas vezes já entendeu pela aplicação do
princípio da insignificância e, por conseguinte, a atipicidade da conduta quando,
em tese, infringiram direitos autorais por pequenas quantias de produtos de
reprodução fonográfica.
In casu, tratam-se de 985 CD’s e 1.016 DVD’s, conforme relação circunstanciada
às f. 10-25.
Embora seja de conhecimento de todos que os preços praticados, em
geral, não ultrapassam os valores de R$ 3,00 e R$ 5,00 a unidade, a quantidade
apreendida em uma única ocasião torna expressiva a lesividade da conduta,
mormente considerada a sua distribuição no pequeno município de Vicentina.
Alegar as mazelas sociais e até mesmo adequação social de condutas, não
afasta a incidência do tipo penal quando há verdadeira ofensividade ao bem
jurídico-penal, não se encontrando insignificância na conduta ou resultado e,
tampouco, a irrelevância penal do fato (fls. 272-273).
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
743
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. Nessa esteira, conforme fundamentado pela decisão do Tribunal a quo,
mostra-se improsperável a tese de que a conduta do paciente é socialmente
adequada, pois o fato de que parte da população adquire tais produtos não tem
o condão de impedir a incidência, diante da conduta praticada, do tipo previsto
no art. 184, § 2º do CPB.
5. Ante o exposto, em consonância com o parecer ministerial, denega-se a
ordem.
6. É o voto.
HABEAS CORPUS N. 189.541-MT (2010/0203400-0)
Relator: Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do
TJ-RJ)
Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso
Advogado: Marcio Frederico de Oliveira Dorileo - Defensor Público
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso
Paciente: César Augusto Andrade Pereira (preso)
Advogado: Antonio Ezequiel Inácio Barbosa - Defensor Público da União
EMENTA
Habeas corpus. Tráfico de drogas. Pedido de liberdade provisória.
Impossibilidade. Art. 44, caput, da Lei n. 11.343/2006. Vedação legal.
Não revogação pela nova redação do art. 2º da Lei n. 8.072/1990,
conferida pela Lei n. 11.464/2007. Alegação de condições pessoais
favoráveis como fundamento para concessão de liberdade provisória.
Insuficiente. Ordem denegada.
1. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça vem decidindo
no sentido de que ao acusado por tráfico de drogas, cumprindo prisão
cautelar, é vedada a concessão de liberdade provisória. Tal proibição
legal contida no art. 44 da Lei n. 11.343/2006, não foi revogada com
a alteração do art. 2º, II, da Lei 8.072/1990 pela Lei n. 11.464/2007.
744
Jurisprudência da QUINTA TURMA
2. O reconhecimento da repercussão geral pelo Supremo
Tribunal Federal no RE n. 601.384-RS, sob a relatoria do Min. Marco
Aurélio, com referência ao mérito deste writ, em regra, não sobresta os
processos pendentes de julgamento nesta Corte.
3. As Turmas componentes da Terceira Seção do Superior
Tribunal de Justiça já cristalizaram o entendimento de inexistir
constrangimento ilegal quando a manutenção da custódia cautelar
suficientemente fundamentada, retratar a necessidade da medida para
a garantia da ordem pública e aplicação da lei penal.
4. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de
Justiça, por unanimidade, denegar a ordem.
Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho
e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 03 de fevereiro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ),
Relator
DJe 21.02.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do
TJ-RJ): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário impetrado
em favor de César Augusto Andrade Pereira, ao argumento de que o ora paciente
sofre constrangimento ilegal, porque o Tribunal a quo denegou a ordem onde se
pleiteava o relaxamento da prisão cautelar em face da ausência dos requisitos da
preventiva.
Noticia que o paciente foi preso em flagrante pela prática, em tese, do
crime de tráfico de substância entorpecente previsto no art. 33, caput, da Lei n.
11.343/2006.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
745
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Aduz o impetrante que a segregação do paciente deve ser desconstituída
em face do constrangimento ilegal perpetrado, pois a decisão que determinara
sua prisão cautelar é desprovida dos requisitos autorizadores preconizados no
art. 312 do Código de Processo Penal.
Postulara o provimento do mandamus, a fim de se conceder a ordem
liberatória, em face dos seu induvidoso direito em responder ao processo
criminal em liberdade, em obediência ao princípio da presunção de inocência.
Exmo. Sr. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador
convocado do TJ-AP) indeferiu o pedido liminar (fls. 116-117).
Informações prestadas (fls. 129-147).
No seu parecer, o douto Ministério Público Federal opinou pela denegação
da ordem (fls. 151-153).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do
TJ-RJ) (Relator): O pedido inicial, em síntese, expõe a tese da possibilidade da
concessão de liberdade provisória ao acusado por crime de tráfico de drogas, a
despeito do previsto no art. 44 da Lei n. 11.343/2006.
Ao paciente não assiste razão pelos fundamentos a seguir.
É notório que o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária realizada em
11.09.2009, reconhecera a Repercussão Geral no julgamento do RE 601.384RS, sob a relatoria do Exmo. Sr. Min. Marco Aurélio cujo mérito refere-se à
impossibilidade de concessão de liberdade provisória aos acusados por crime de
tráfico de drogas, preconizado pelo art. 44 da Lei n. 11.343/2006. No entanto,
enquanto o mérito do referido Recurso Extraordinário não for julgado pela
Excelsa Corte, persiste o entendimento cristalizado deste Colegiado.
No mesmo sentido:
Agravo regimental. Processual Civil. Embargos de divergência em recurso
especial. Sobrestamento. Repercussão geral reconhecida pelo STF. Descabimento.
Acórdão embargado que examina o mérito do recurso especial. Paradigmas que
não conhecem do apelo. Não cabimento dos embargos de divergência. Acórdão
embargado em consonância com a jurisprudência atual da Terceira Seção. Súmula
n. 168-STJ.
746
Jurisprudência da QUINTA TURMA
1. É descabido o pedido de sobrestamento do julgamento do presente recurso,
em decorrência do reconhecimento da repercussão geral da matéria objeto
nele veiculada pelo Supremo Tribunal Federal. De acordo com o prescrito no art.
543-B do Código de Processo Civil, tal providência apenas deverá ser cogitada
por ocasião do exame de eventual recurso extraordinário a ser interposto contra
decisão desta Corte.
2. Não são cabíveis embargos de divergência quando o aresto paradigma
adentra no mérito do recurso e o embargado sequer o conhece, especificamente
quando o acórdão embargado adentra no mérito do recurso especial e os
acórdãos paradigmas sequer conhecem do apelo por reconhecer a natureza
constitucional da matéria.
3. Estando o acórdão embargado em sintonia com o atual entendimento
consolidado deste Superior Tribunal, deve incidir a Súmula n. 168-STJ, que
preconiza que “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência
do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado.” 4. Agravo
regimental desprovido.
(AgRg nos EREsp n. 863.702-RN, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção,
julgado em 13.05.2009, DJe 27.05.2009)
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça em remansosos
julgados expõe o entendimento de que a vedação expressa do art. 44, da Lei n.
11.343/2006, norma especial e anterior, não conflita com a não proibição do
inciso II, do art. 2°, da Lei n. 8.072/1990, com redação dada pelo art. 1º, da Lei
n. 11.464/2007, norma geral e posterior ou com a norma geral do parágrafo
único do art. 310 do Código de Processo Penal.
Com efeito, a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei do Tráfico de
Entorpecentes de 2006 demonstram relação de especialidade com o Código
de Processo Penal, por disciplinarem através de critérios distintos a liberdade
provisória. Todavia, é de sobrelevar-se que a primeira, ao elencar todos os tipos
penais considerados hediondos faz-se genérica para com a segunda, já que se
refere a um deles, qual seja o tráfico ilícito de entorpecentes.
Diante do exposto, a expressa proibição legal à concessão do benefício do
réu responder a ação penal em liberdade, enquanto cumpre prisão cautelar, é
razão idônea e suficiente para a denegação do pleito deste writ.
Confira-se o seguinte precedente:
Criminal. Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Pleito de absolvição. Provas
insuficientes à condenação. Análise inviável na via estreita do writ. Necessidade
de revolvimento do conjunto fático-probatório. Liberdade provisória. Réu preso
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
747
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
em flagrante e que respondeu ao processo sob custódia. Vedação à liberdade
provisória mantida. Apelação julgada. Execução da pena. Sentença transitada em
julgado. Ordem parcialmente conhecida e denegada.
I. A análise das alegações concernentes ao pleito de absolvição do réu
demandaria análise do conjunto fático-probatório, inviável em sede de habeas
corpus.
II. É sabido que a via estreita do writ é incompatível com a investigação
probatória, nos termos da previsão constitucional que o institucionalizou como
meio próprio à preservação do direito de locomoção, quando demonstrada
ofensa ou ameaça decorrente de ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, inciso
LXVIII), sendo que nenhuma dessas hipóteses restou prontamente evidenciada,
razão pela qual a impetração não merece ser conhecida no particular.
III. Hipótese em que o juízo de primeiro grau negou ao réu o direito ao apelo
em liberdade, considerando o fato desse ter sido preso em flagrante delito, tendo
permanecido sob custódia durante o curso do processo, bem como a existência
de vedação expressa à concessão de liberdade provisória os apenados pela
prática do delito de tráfico de entorpecentes, conforme disposto no art. 44 da Lei
n. 11.343/2006.
IV. No tocante à alegada inconstitucionalidade da vedação ao direito de
liberdade provisória aos acusados pela prática do delito de tráfico de drogas,
em que pese o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário
n. 601.384-RS, ter se manifestado pela existência de repercussão geral, a questão
constitucional ainda não foi dirimida, devendo prevalecer o entendimento
consolidado no âmbito desta Turma até o julgamento final da matéria pelo
Pretório Excelso, no sentido da existência de vedação expressa à concessão do
benefício aos acusados pela prática do delito de tráfico de entorpecentes.
V. Considerando-se a validade da proibição prevista no art. 44 da Lei n.
11.343/2006, no que se refere à concessão de liberdade provisória, conclui-se
também pela vedação ao apelo em liberdade a réu que não pode ser beneficiado
com o direito à liberdade provisória (Precedentes).
VI. Apelação defensiva que já foi julgada, tendo a sentença condenatória
transitado em julgado, sem a interposição de recursos extraordinário e especial
em favor do impetrante.
VII. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, denegada.
(HC n. 139.475-RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em
21.10.2010, DJe 08.11.2010)
Outrossim, a tese da ausência de fundamentação capaz de justificar a
manutenção da prisão cautelar não prevalece. Ressalto que o entendimento
supramencionado se demonstra suficiente para denegar a irresignação do
impetrante.
748
Jurisprudência da QUINTA TURMA
O Tribunal a quo ao denegar a ordem fundamentou que o paciente não
afastara, de forma inequívoca, as razões da ordem judicial que determinara
sua segregação, diante da necessária garantia da exiquibilidade da efetivação
da reprimenda ou, ainda, comprovara através dos elementos colacionados ser
possuidor das condições pessoais favoráveis.
Desta forma, verifico que o acórdão hostilizado se firmou no mesmo sentido
da orientação do Superior Tribunal de Justiça que perfilha o entendimento de ser
legal a manutenção da custódia cautelar quando suficientemente fundamentada,
em face das características delineadas, retratam, in concreto, a necessidade da
medida para a garantia da ordem pública e aplicação da lei penal.
Em conformidade, o precedente:
Processual Penal. Habeas corpus. Duplo homicídio qualificado e estelionato.
Prisão preventiva. Apontada ausência de fundamentação. Segregação cautelar
fundamentada na garantia da aplicação da lei penal. Peculiaridades do caso.
Réu que, após ser beneficiado com o relaxamento de sua custódia, ausentou-se
reiteradamente do distrito da culpa, sem informar ao juízo processante seu novo
endereço.
I - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional
(HC n. 90.753-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 22.11.2007),
sendo exceção à regra (HC n. 90.398-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, DJU de 17.05.2007).
Assim, é inadmissível que a finalidade da custódia cautelar, qualquer que
seja a modalidade (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva,
prisão decorrente de decisão de pronúncia ou prisão em razão de sentença
penal condenatória recorrível) seja deturpada a ponto de configurar uma
antecipação do cumprimento de pena (HC n. 90.464-RS, Primeira Turma, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 04.05.2007). O princípio constitucional da
não-culpabilidade se por um lado não resta malferido diante da previsão no
nosso ordenamento jurídico das prisões cautelares, por outro não permite que o
Estado trate como culpado aquele que não sofreu condenação penal transitada
em julgado (HC n. 89.501-GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU
de 16.03.2007). Desse modo, a constrição cautelar desse direito fundamental
(art. 5º, inciso XV, da Carta Magna) deve ter base empírica e concreta (HC n.
91.729-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 11.10.2007). Assim,
a prisão preventiva se justifica desde que demonstrada a sua real necessidade
(HC n. 90.862-SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJU de 27.04.2007) com
a satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do Código de Processo
Penal, não bastando, frise-se, a mera explicitação textual de tais requisitos (HC
n. 92.069-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 09.11.2007). Não
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
749
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
se exige, contudo fundamentação exaustiva, sendo suficiente que o decreto
constritivo, ainda que de forma sucinta, concisa, analise a presença, no caso, dos
requisitos legais ensejadores da prisão preventiva (RHC n. 89.972-GO, Primeira
Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 29.06.2007).
II - Na hipótese, a segregação cautelar encontra-se devidamente
fundamentada em dados concretos extraídos dos autos que denotam que o
paciente, beneficiado com o relaxamento de anterior prisão cautelar, ausentouse, reiteradamente, do distrito da culpa sem comunicar ao Juízo processante o
seu novo endereço, vindo a ser localizado, através de reportagem televisiva, em
localidade próxima à fronteira com outro país.
III - Condições pessoais favoráveis não têm o condão de, por si só, garantirem
a revogação da prisão preventiva, se há nos autos, elementos hábeis a
recomendarem a manutenção da custódia cautelar (Precedentes).
Ordem denegada.
(HC n. 127.036-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Rel. p/ Acórdão Ministro
Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 19.08.2009, DJe 08.03.2010)
Diante do exposto, conheço do habeas corpus e denego a ordem.
É como voto.
RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 29.027-SP (2010/0176974-6)
Relator: Ministro Gilson Dipp
Recorrente: Dante Prati Fávaro
Advogado: Tales Castelo Branco
Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo
EMENTA
Criminal. Recurso ordinário em habeas corpus. Crimes praticados
em procedimento licitatório. Emendatio libeli. Extinção da punibilidade.
Subsunção não verificada de imediato. Recurso desprovido.
I. O reconhecimento da falta de justa causa para a ação penal,
na via estreita do habeas corpus, somente é possível se constatado, de
750
Jurisprudência da QUINTA TURMA
pronto, sem a necessidade de exame valorativo dos elementos dos
autos, a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a
acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, o que não se verificou
no caso.
II. Recurso ordinário desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. “A
Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso.” Os Srs. Ministros
Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Sustentou oralmente: Dr. Frederico Crissiúma de Figueiredo (p/ recte)
Brasília (DF), 14 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Gilson Dipp, Relator
DJe 17.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Gilson Dipp: Trata-se de recurso ordinário em habeas
corpus, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que
denegou a ordem no writ impetrado em favor de Dante Prati Fávaro. O
julgamento restou assim ementado:
Habeas corpus. Crime. Classificação. Denuncia. Falsificação de documento público.
Falsidade ideológica. Peculato. - Pretendida mutação da classificação do delito
para os crimes previsto nos artigo 92 e 93, ambos da Lei n. 8.666, de 21.06.1993,
com a conseqüente extinção da punibilidade - Impossibilidade - Questão tine
exige discussão aprofundada da prova inadmissível em sede de habeas corpus.
Denúncia que descreve deforma correta as condutas imputadas em consonância
com os tipos penais indicados pela Justiça Pública. Hipótese em que a classificação
aventada pelo impetrante não se amolda prima facie ao caso vertente. - Matéria
fática que deve ser apreciada oportunamente porque diz respeito ao mérito da
causa e extrapola os limites do writ - Constrangimento ilegal - Inexistência - Ação
penal que não se mostra manifestamente ilegal nem contempla constrangimento
ou abuso - Ordem de habeas corpus denegada. (fl. 93).
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
751
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Infere-se dos autos ter sido o recorrente denunciado como incurso nas
penas dos arts. 297, caput (Falsificação de documento público), 299, caput
(Falsidade Ideológica) e 312, caput (Peculato), todos do Código Penal, por fatos
ocorridos no âmbito do Departamento de Limpeza Urbana do Município de
São Paulo-SP.
Notificado para apresentar resposta preliminar, a defesa buscou demonstrar
que a imputação subsumia-se a um único contexto fático, devendo os delitos
serem classificados juridicamente para o disposto nos arts. 92 e 93, ambos
da Lei n. 8.666/1993, pugnando pela incidência da prescrição da pretensão
punitiva, ante o máximo da pena in abstrato prevista para aqueles delitos.
A pretensão defensiva não logrou êxito.
Em seguida, foi impetrado habeas corpus na Corte local, apontando como
autoridade coatora o Juízo de Direito da 18ª Vara Criminal da Comarca de
São Paulo, no qual o impetrante pretendia o reconhecimento da extinção da
punibilidade do paciente.
A Corte a quo, à unanimidade de votos, denegou a ordem, por entender
que as condutas descritas na denúncia, em tese, amoldam-se a tipos penais
descritos na norma incriminadora, sendo inadequada a via eleita para o exame
de provas e do mérito da causa, cuja análise melhor seria enfrentada no curso da
instrução processual, sob o crivo do contraditório e do devido processo legal (fls.
95-97).
Daí a presente irresignação, na qual são repisados os argumentos aventados
na ordem originária, no sentido de que “os artigos 89 a 98 da Lei de Licitações
dispõem, especificamente, sobre os crimes passíveis de serem praticados durante
o processo licitatório (...) inquestionavelmente trata-se de lei especial, que
prevalece à regra geral, por aplicação do princípio da especialidade, contido no
artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil.” (fls. 110-111).
Ademais, aponta constrangimento no prosseguimento da ação penal
quando a pretensão punitiva estatal já teria sido alcançada pela prescrição.
Pugna-se pela reforma do acórdão recorrido, com a incidência do instituto
da emendatio libeli e o reconhecimento da extinção da punibilidade do recorrente.
A Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pelo desprovimento
do recurso (fls. 140-153).
Em petição juntada aos autos, a defesa informa que a ação penal em análise
foi suspensa no juízo de primeira instância, aguardando-se o deslinde deste
recurso.
752
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Em sede de memoriais, reitera os argumentos contidos na impetração.
É o relatório.
Em mesa para julgamento.
VOTO
O Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator): Trata-se de recurso ordinário em
habeas corpus contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que
denegou a ordem no writ impetrado em favor de Dante Prati Fávaro.
Infere-se dos autos ter sido o recorrente denunciado como incurso nas
penas dos arts. 297, caput (Falsificação de documento público), 299, caput
(Falsidade Ideológica) e 312, caput (Peculato), todos do Código Penal, por fatos
ocorridos no âmbito do Departamento de Limpeza Urbana do Município de
São Paulo-SP.
Notificado para apresentar resposta preliminar, a defesa buscou demonstrar
que a imputação subsumia-se a um único contexto fático, devendo os delitos
serem classificados juridicamente para o disposto nos arts. 92 e 93, ambos
da Lei n. 8.666/1993, pugnando pela incidência da prescrição da pretensão
punitiva, ante o máximo da pena in abstrato prevista para aqueles delitos.
A pretensão defensiva não logrou êxito.
Em seguida, foi impetrado habeas corpus na Corte local, apontando como
autoridade coatora o Juízo de Direito da 18ª Vara Criminal da Comarca de
São Paulo, no qual o impetrante pretendia o reconhecimento da extinção da
punibilidade do paciente. Sem êxito.
Daí a presente irresignação, na qual são repisados os argumentos aventados
na ordem originária, no sentido de que “os artigos 89 a 98 da Lei de Licitações
dispõem, especificamente, sobre os crimes passíveis de serem praticados durante
o processo licitatório (...) inquestionavelmente trata-se de lei especial, que
prevalece à regra geral, por aplicação do princípio da especialidade, contido no
artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil.” (fls. 110-111).
Aponta constrangimento no prosseguimento da ação penal quando a
pretensão punitiva estatal já teria sido alcançada pela prescrição.
Pugna-se pela reforma do acórdão recorrido, a incidência do instituto da
emendatio libeli e o reconhecimento da extinção da punibilidade do recorrente.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
753
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Passo à análise da irresignação.
A controvérsia posta em debate neste recurso cinge-se a dirimir a dúvida
sobre o conflito aparente de normas entre os arts. 297, caput (Falsificação de
documento público), 299, caput (Falsidade Ideológica) e 312, caput (Peculato),
todos do Código Penal e os dispositivos inseridos nos arts. 92 e 93 da Lei n.
8.666/1993.
A prevalecer a norma especial de licitações, que prevê penas menores, em
tese, estaria prescrita a pretensão punitiva estatal, favorecendo os interesses da
defesa e do recorrente, pois os fatos em análise datam de outubro do ano 2000.
Consultando os autos, verifica-se que a exordial acusatória narra fatos
que se amoldam in abstrato a delitos previstos no Código Penal. Neste aspecto,
transcreve-se trechos da denúncia, relevante para o julgamento. Vê-se:
Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, no dia 30 de outubro de
2000, nas dependências do Departamento de Limpeza Urbana do Município
de São Paulo, nesta cidade e Comarca, o primeiro valendo-se do cargo
público que exercia, agindo em concurso e previamente combinados entre
si, Antonio Fernando Gimenez e Dante Prati Favaro qualificados às fls. 150 e
156 respectivamente, falsificaram e alteraram, em parte, documento público
verdadeiro (...) os denunciados fizeram inserir, em documento público, declaração
falsa, com o fim de prejudicar direito e criar obrigação para a Municipalidade.
(...) agindo em concurso e previamente combinados entre si e com outros
indivíduos ainda não identificados, Antonio Fernando Gimenez (funcionário
público em função de direção) e Dante Prati Favaro substituíram folhas do
contrato elaborado pela municipalidade, alterando o conteúdo da cláusula 7ª,
referente à duração do negócio jurídico.
(...)
Desta forma, falsificou, em parte, documento público verdadeiro.
(...)
No ensejo, para supostamente validar os delitos cometidos, Maria do Espírito
Santo Gama de Souza e Adílson Sirabello inseriram, no mencionado documento
público, informação falsa, após ser-lhes entregue o documento por Antonio
Fernando Gimenez, o qual levou os primeiros a crer, em evidente erro, na
regularidade do ato realizado.
Estes imaginavam que o contrato gozava de licitude, desconhecendo, portanto,
o elemento subjetivo do injusto presente no artigo 299, caput, do Código Penal.
Estas elementares, por sua vez, os indiciados muito bem conheciam.
(...)
754
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Inequívoco que o desvio dos valores relativos a estes negócios jurídicos foram
causados pelo denunciado Antonio Ferraz Gimenez, uma vez que, ao dar feição
de licitude ao contrato - inclusive à cláusula 7ª, que permitia a prorrogação
contrária ao edital - induziu Marco Antonio Fialho e Alfredo Luiz Buso, bem como
os representantes da Empresa que sucederam o Codenunciado, a acreditarem
lícitas tais prorrogações.
Todavia, estes não sabiam que a continuidade do negócio era ilícita
verdadeiramente e, assim, ao darem destinação dos dinheiros a esta operação,
incidiram na conduta capitulada no artigo 312, caput, do Código Penal.
As infrações penais previstas na lei de licitações, cuja subsunção a defesa
pretende incidir no caso em análise têm o seguinte regramento:
Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem,
inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução
dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato
convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou,
ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade,
observado o disposto no art. 121 desta Lei: (Redação dada pela Lei n. 8.883, de
1994)
Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei n.
8.883, de 1994)
Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo
comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém
vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou
prorrogações contratuais.
Art. 93. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de
procedimento licitatório:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Com efeito a jurisprudência desta Corte firmou entendimento no sentido
de que o reconhecimento da falta de justa causa para a ação penal, na via estreita
do habeas corpus, somente é possível se constatado, de pronto, sem a necessidade
de exame valorativo dos elementos dos autos, a atipicidade do fato, a ausência
de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade.
Contudo, na singularidade do caso em análise, vê-se que as condutas
imputadas na denúncia não se distanciam dos tipos penais indicados pela
acusação nem tampouco se amoldam perfeitamente aos dispositivos da lei
especial, a ensejar o imediato reconhecimento da alegada prescrição da pretensão
punitiva deduzida pela defesa.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
755
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nesta linha de raciocínio, inviável em sede de mandamus alterar a
classificação jurídica indicada na exordial do Parquet e reconhecer a extinção da
punibilidade do recorrente sem que sejam suprimidas as instâncias ordinárias
na cognição aprofundada das demais circunstâncias elementares e do acervo
probatório a serem colhidos ao longo da instrução, sob o crivo da dialeticidade
que inspira o devido processo legal.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.142.630-PR (2009/0102844-1)
Relatora: Ministra Laurita Vaz
Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Procurador: Fabiano Haselof Valcanover e outro(s)
Recorrido: Ministério Público Federal
Recorrido: Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil
Advogado: Marcelo Augusto Angioletti e outro(s)
EMENTA
Processual Civil e Previdenciário. Recurso especial. Ação civil
pública destinada à tutela de direitos de natureza previdenciária (no
caso, revisão de benefícios). Existência de relevante interesse social.
Legitimidade ativa ad causam do Ministério Público. Reconhecimento.
1. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, os interesses individuais
homogêneos classificam-se como subespécies dos interesses coletivos,
previstos no art. 129, inciso III, da Constituição Federal. Precedentes
do Supremo Tribunal Federal. Por sua vez, a Lei Complementar n.
75/1993 (art. 6º, VII, a) e a Lei n. 8.625/1993 (art. 25, IV, a) legitimam
o Ministério Público à propositura de ação civil pública para a defesa
de interesses individuais homogêneos, sociais e coletivos. Não subsiste,
portanto, a alegação de falta de legitimidade do Parquet para a ação
756
Jurisprudência da QUINTA TURMA
civil pública pertinente à tutela de direitos individuais homogêneos,
ao argumento de que nem a Lei Maior, no aludido preceito, nem a
Lei Complementar n. 75/1993, teriam cogitado dessa categoria de
direitos.
2. A ação civil pública presta-se à tutela não apenas de direitos
individuais homogêneos concernentes às relações consumeristas,
podendo o seu objeto abranger quaisquer outras espécies de interesses
transindividuais (REsp n. 706.791-PE, 6ª Turma, Rel.ª Min.ª Maria
Thereza de Assis Moura, DJe de 02.03.2009).
3. Restando caracterizado o relevante interesse social, os direitos
individuais homogêneos podem ser objeto de tutela pelo Ministério
Público mediante a ação civil pública. Precedentes do Pretório Excelso
e da Corte Especial deste Tribunal.
4. No âmbito do direito previdenciário (um dos seguimentos da
seguridade social), elevado pela Constituição Federal à categoria de
direito fundamental do homem, é indiscutível a presença do relevante
interesse social, viabilizando a legitimidade do Órgão Ministerial para
figurar no polo ativo da ação civil pública, ainda que se trate de direito
disponível (STF, AgRg no RE AgRg/RE n. 472.489-RS, 2ª Turma,
Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 29.08.2008).
5. Trata-se, como se vê, de entendimento firmado no âmbito do
Supremo Tribunal Federal, a quem a Constituição Federal confiou
a última palavra em termos de interpretação de seus dispositivos,
entendimento esse aplicado no âmbito daquela Excelsa Corte também
às relações jurídicas estabelecidas entre os segurados da previdência e
o INSS, resultando na declaração de legitimidade do Parquet para
ajuizar ação civil pública em matéria previdenciária (STF, AgRg
no AI n. 516.419-PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de
30.11.2010).
6. O reconhecimento da legitimidade do Ministério Público
para a ação civil pública em matéria previdenciária mostra-se patente
tanto em face do inquestionável interesse social envolvido no assunto,
como, também, em razão da inegável economia processual, evitandose a proliferação de demandas individuais idênticas com resultados
divergentes, com o consequente acúmulo de feitos nas instâncias
do Judiciário, o que, certamente, não contribui para uma prestação
jurisdicional eficiente, célere e uniforme.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
757
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
7. Após nova reflexão sobre o tema em debate, deve ser
restabelecida a jurisprudência desta Corte, no sentido de se reconhecer
a legitimidade do Ministério Público para figurar no polo ativo de ação
civil pública destinada à defesa de direitos de natureza previdenciária.
8. Recurso especial desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer do recurso, mas lhe negar
provimento. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi
votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.
Brasília (DF), 07 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministra Laurita Vaz, Relatora
DJe 1º.02.2011
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Laurita Vaz: Trata-se de recurso especial interposto pelo
Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, com fundamento nas alíneas a e c do
permissivo constitucional, em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da
4ª Região, ementado, essencialmente, nos seguintes termos, in verbis:
Ministério Público Federal. Ação civil pública. Beneficiários da Previdência
Social. Legitimidade ativa.
O Ministério Público Federal tem legitimidade para propor ação civil pública
em defesa de direitos individuais homogêneos dos beneficiários da Previdência
Social. Precedentes desta Corte e do STF.
Sendo o Ministério Público Federal autor da ação civil pública, desnecessária
sua atuação como custos legis, conforme decidiu esta 5ª Turma por ocasião do
julgamento da Apelação Cível n. 2002.72.05.001195-1-SC, Rel. Juiz Federal Luiz
Antonio Bonat, D.E. de 13.05.2008.
Previdenciário. Revisão de benefício. Renda mensal inicial. IRSM de fevereiro de
1994 (39,67%).
758
Jurisprudência da QUINTA TURMA
“O cálculo da renda mensal inicial de benefício previdenciário concedido
a partir de março de 1994 inclui a variação integral do IRSM de fevereiro de
1994 (39,67%)”, nos termos da Súmula n. 77 deste TRF4ª Região.
[...]. (fl. 175)
Nas razões do recurso especial, além de dissídio pretoriano, aponta o INSS
violação aos arts. 1º, 2º e 6º, todos da Lei Complementar n. 75/1993, bem como
ao art. 21 da Lei n. 7.347/1985 c.c. os arts. 81, 82 e 92, da Lei n. 8.078/1990.
Pugna pela extinção do feito sem julgamento do mérito, alegando a
ilegitimidade do Ministério Público Federal para promover ação civil pública
pertinente a reajustes e revisões de benefícios previdenciários.
Aduz, inicialmente, que os direitos relativos a benefícios previdenciários
são disponíveis, e que a Constituição Federal, em seu art. 127, atribui ao
Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Assim, entende que, ausente o caráter da indisponibilidade, não estaria o Órgão
Ministerial legitimado para a propositura da ação civil pública (fls. 196-197).
Sustenta a ilegitimidade do Ministério Público para a defesa de qualquer
direito individual homogêneo, asseverando que, uma interpretação sistemática,
sob o prisma da Constituição Federal (arts. 127 e 129, III), levando em conta
a ordem cronológica em que foram editados os principais diplomas que tratam
das funções do Ministério Público, conduz à conclusão de que não é função
do Parquet a proteção de direitos individuais, ainda que homogêneos, e que o
Ministério Público “somente possui legitimidade para a ACP destinada à defesa
de interesses ou direitos difusos ou coletivos – ou seja – não a tem quanto aos
interesses ou direitos individuais homogêneos, pois destes não cogita a CF/1988
(art. 129, III), nem a LC n. 75/1993 (art. 83, III)” (fls. 198-199).
Alega, ainda, a ilegitimidade ad causam do Ministério Público para defesa
de direitos individuais homogêneos sem relação de consumo, bem como a inadequação
da ação civil pública para tal fim. Para tanto, aduz que a ação civil pública, embora
sirva para a defesa do consumidor, não serve para a defesa de direitos individuais
homogêneos de outras espécies de interesses, como, no caso, os interesses dos
segurados da Previdência Social, por falta de previsão legal (fl. 202), e, ainda,
que “a relação jurídica entre os benefíciários e o INSS nada tem de relação de
consumo, uma vez que não se trata de fornecimento de bens ou serviços” (fl.
206).
Oferecidas as contrarrazões (fls. 229-235), e admitido o recurso na origem,
ascenderam os autos à apreciação desta Corte.
É o relatório.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
759
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): A controvérsia posta em análise
no presente recurso consiste em verificar se o Ministério Público Federal tem
legitimidade para figurar no polo ativo de ação civil pública relativa à matéria de
natureza previdenciária.
A questão de fundo, não atacada no apelo nobre, diz respeito à revisão de
benefícios previdenciários concedidos a partir de março de 1994, com inclusão
da variação integral do IRSM de fevereiro de 1994 (39,67%) nos salários-decontribuição integrantes do período básico de cálculo, antes da conversão em
URV. A Corte de origem entendeu ser cabível a revisão, e, tal como a magistrada
de primeiro grau, restringiu os efeitos do julgado à Subseção Judiciária de
Curitiba-PR, na forma do art. 16 da Lei n. 7.347/1985.
A preliminar em discussão já foi objeto de vários julgados proferidos
no âmbito da Terceira Seção deste Tribunal, cuja jurisprudência oscilou,
inicialmente, ora a favor, ora contrariamente à legitimidade do parquet para o
ajuizamento de ação civil pública no trato de questões previdenciárias.
Posteriormente, veio esta Corte a sedimentar a atual orientação,
desfavorável à tese da legitimidade, com base nas seguintes premissas: (a) o
benefício previdenciário traduz direito disponível, não abrangido pelo art.
127 da Constituição Federal, que assegura ao Ministério Público a defesa dos
interesses individuais indisponíveis e (b) as relações jurídicas entre o INSS e
os beneficiários do regime de Previdência Social não são relações de consumo,
afastando, assim, a aplicação do art. 81, III, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, que trata dos direitos individuais homogêneos.
E com base nesse entendimento, este Tribunal tem recusado a legitimidade
ad causam do Ministério Público em ações civis públicas que objetivam discutir
questões ligadas à seguridade social, como, por exemplo, direitos relativos à
concessão de benefício assistencial a idosos e portadores de deficiência, revisão
de benefícios previdenciários, equiparação de menores sob guarda judicial a
filhos de segurados, para fins previdenciários.
Em que pese o atual e respeitável posicionamento, acima explanado,
entendo que deve haver nova reflexão sobre o tema ora em debate, em face
das razões adiante expostas, calcadas, sobretudo, no relevante interesse social
envolvido no ajuizamento da ação civil pública de natureza previdenciária.
Pois bem.
760
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Registre-se, desde logo, que não prospera a genérica alegação autárquica
de ilegitimidade ad causam do Ministério Público para defesa de “qualquer
direito individual homogêneo”, ou, ainda, de direitos individuais homogêneos
sem relação de consumo, bem como não subsiste a alegação de inadequação da
ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos sem relação
de consumo.
Tais insurgências encontram obstáculo, de início, na Lei Complementar
n. 75/1993, cujo art. 6º, quanto ao ponto, estabelece textualmente que, in verbis:
Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:
[...]
VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:
[...]
d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e
coletivos;
[...]
XII - propor ação civil coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos
(grifei)
É o que também se observa da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional
do Ministério Público) que, em seu art. 25, autoriza o Ministério Público a
figurar como titular da ação civil pública para a proteção de outros interesses
difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos. Confira-se, por
oportuno, o texto da aludida norma, litteris:
Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei
Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:
[...]
IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:
a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio
ambiente [...], e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e
homogêneos; (grifei)
Vale ainda registrar que, após a alteração promovida pela Lei n. 8.078/1990
(Código de Proteção e Defesa do Consumidor), incluindo o art. 21 na Lei n.
7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), o alcance desse instrumento processual
restou ampliado, de modo a abranger a defesa de interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos fora das relações de consumo.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
761
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nesse sentido já se manifestou esta Corte Superior de Justiça, conforme se
verifica do seguinte julgado, in verbis:
Recurso especial. Processo Civil. Ação civil pública. Defesa de direitos
individuais homogêneos de servidores públicos federais. Cabimento.
Legitimidade do sindicato. Precedentes.
1. De acordo com a jurisprudência consolidada deste Superior Tribunal de
Justiça, o artigo 21 da Lei n. 7.347/1985, com redação dada pela Lei n. 8.078/1990,
ampliou o alcance da ação civil pública também para a defesa de interesses e direitos
individuais homogêneos não relacionados a consumidores.
2. Recurso especial improvido. (REsp n. 706.791-PE, 6ª Turma, Rel.ª Min.ª Maria
Thereza de Assis Moura, DJe de 02.03.2009 - grifei)
Acerca do tema, conclusiva é a lição doutrinária de HUGO NIGRO
MAZZILI, ao afirmar que, litteris:
E a defesa de ‘interesses individuais homogêneos? Só os interesses individuais
homogêneos de consumidores podem ser protegidos no processo coletivo, ou
qualquer interesse individual homogêneo pode ser objeto de ação civil pública da Lei
n. 7.347/1985, sejam eles de consumidor ou não?
Como em momento algum a LACP se refere expressamente aos interesses
individuais homogêneos, uma análise mais apressada poderia fazer crer que
essa espécie de interesses transindividuais estaria fora da cobertura da ação
civil pública, exceto, apenas, quanto aos interesses individuais homogêneos
relativos aos consumidores, que poderiam ser defendidos por meio de ação
coletiva prevista no CDC. Nesse teor, aliás, alguns acórdãos chegam a afirmar que
“os interesses e direitos individuais homogêneos, de que trata o art. 21 da Lei n.
7.347/1985, somente poderão ser tutelados, pela via da ação coletiva, quando os
seus titulares sofrerem danos na condição de consumidores”.
Esse entendimento restritivo não se sustenta, porém, em face do sistema
conjugado da LACP e do CDC, que se integram reciprocamente. Com efeito,
estão também alcançados pela tutela coletiva os interesses individuais homogêneos,
de qualquer natureza, relacionados ou não com a condição de consumidores
dos lesados. Por isso, e em tese, cabe também a defesa de “qualquer interesse
individual homogêneo” por meio da ação civil pública ou coletiva, até porque
seria inconstitucional impedir o acesso coletivo à jurisdição.
Inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses transindividuais.
Por isso, além das hipóteses já expressamente previstas em diversas leis (defesa
de meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes,
pessoas portadoras de deficiência, investidores lesados no mercado de valores
mobiliários, ordem econômica, economia popular, ordem urbanísticas) –
762
Jurisprudência da QUINTA TURMA
quaisquer outros interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos podem
em tese ser defendidos em juízo por meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério
Público como pelos demais co-legitimados do art. 5º da LACP e art. 82 do CDC.
(in “A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
público e outros interesses” - 21ª ed. rev., ampl. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2008,
pp. 718-719 - grifei).
Melhor sorte não assiste ao INSS quando, pugnando por uma interpretação
sistemática sob o prisma de dispositivos da Constituição Federal, alega que (a) o
inciso III do aludido art. 129 da Lei Maior viabiliza a legitimidade do Ministério
Público apenas para a defesa de interesses ou direitos difusos ou coletivos, mas
não para a defesa de direito individual homogêneo e que (b) sendo disponíveis os
direitos relativos a benefícios previdenciários, o Ministério Público não teria
legitimidade para a ação civil pública, uma vez que estaria ausente o caráter de
indisponibilidade a que alude o art. 127 da Carta Magna.
Ressalte-se, nesse ponto, que a legitimidade do Ministério Público para a
ação civil pública, embora disciplinada em lei complementar e em leis ordinárias,
como visto, é tema de envergadura constitucional, tratado diretamente pela
Carta Magna nesses artigos.
E, sendo certo que a Constituição Federal confiou ao Supremo Tribunal
Federal a última palavra em termos de interpretação de seus dispositivos, a
solução do tema em apreço, mormente das questões em torno dos mencionados
preceitos constitucionais, reclama necessária incursão, também, na jurisprudência
daquela Augusta Corte.
A começar pelo art. 129, inciso III, da Constituição Federal, registrese que o Pretório Excelso, apreciando o RE n. 163.231-SP, firmou diretriz
jurisprudencial no sentido de que, no gênero “interesses coletivos”, ao qual se
refere tal inciso, compreendem-se os “interesses individuais homogêneos”, como
subespécie, cuja tutela pode ser requerida pelo Ministério Público mediante
ação civil pública.
A propósito, confira-se a ementa do referido julgado, in verbis:
Recurso extraordinário. Constitucional. Legitimidade do Ministério Público
para promover ação civil pública em defesa dos interesses difusos, coletivos e
homogêneos. Mensalidades escolares: Capacidade postulatória do Parquet para
discuti-las em juízo.
1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
763
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (CF, art. 127).
2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só
para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também
de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III).
[...]
4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art.
81, III, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie
de direitos coletivos.
4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos,
stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos,
explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de
pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam
como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública,
porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou
classe de pessoas.
[...]
Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada
ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma
coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para
prosseguir no julgamento da ação. (Tribunal Pleno, DJ de 29.06.2001, Rel. Min.
Maurício Corrêa - grifei)
Em outra oportunidade, ao apreciar o RE n. 195.056-PR, embora
recusando a legitimação do Órgão Ministerial no feito, o Supremo Tribunal
Federal assentou que “Certos direitos individuais homogêneos podem ser
classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com
interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública
presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa.
CF, art. 127, caput, e art. 129, III” (Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ
de 30.05.2003).
E em julgado mais recente:
Recurso extraordinário. Agravo regimental. Ação civil pública. Legitimidade
ativa. Ministério Público. Defesa de direitos individuais homogêneos. Súmula STF
n. 286: inaplicabilidade.
[...]
2. O Ministério Público detém legitimidade para propor ação civil pública
na defesa de interesses individuais homogêneos (CF/1988, arts. 127, § 1º, e
764
Jurisprudência da QUINTA TURMA
129, II e III). Precedente do Plenário: RE n. 163.231-SP, rel. Min. Carlos Velloso, DJ
29.06.2001.
3. Agravo regimental improvido. (AgRg no RE n. 514.023-RJ, 2ª Turma, Rel.ª
Min.ª Ellen Gracie, DJ de 05.02.2010)
Desse modo, cai por terra a tese recursal de que o Ministério Público
não tem legitimidade para a ação civil pública quanto aos direitos individuais
homogêneos, ao argumento de que nem a Constituição Federal, em seu art. 129,
III, e nem a Lei Complementar n. 75/1993, em seu art. 83, III, teriam cogitado
de tais direitos (fl. 199).
E não se perca de vista que o art. 6º, VII, a, da Lei Complementar
n. 75/1993, bem como o art. 25, IV, a, da Lei n. 8.625/1993, dispositivos
anteriormente citados, estabelecem ser competência do Ministério Público
promover a ação civil pública não apenas para a defesa de direitos individuais
homogêneos, como, também, para a proteção de interesses sociais e coletivos.
Ainda nesse particular, registrem-se os seguintes julgados, destacados
dentre outros, em que a Corte Especial deste Tribunal firmou orientação
no sentido de que, havendo relevante interesse social, é cabível o manejo da
ação civil pública pelo Órgão Ministerial para defesa de direitos individuais
homogêneos:
Processual Civil. Embargos de divergência. Ação civil pública. Legitimidade.
Ministério Público. Contratos de financiamento. SFH. Súmula n. 168-STJ.
1. O Ministério Público possui legitimidade ad causam para propor ação civil
pública objetivando defender interesses individuais homogêneos nos casos como
o presente, em que restou demonstrado interesse social relevante. Precedentes.
[...]
3. Embargos de divergência não conhecidos. (EREsp n. 644.821-PR, Corte
Especial, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 04.08.2008)
Agravo regimental. Embargos de divergência. Processo Civil. Julgamento
monocrático. Jurisprudência pacífica acerca da matéria. Ação civil pública.
Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Ministério Público. Legitimidade ativa.
Precedentes.
[...]
II - O Ministério Público possui legitimidade para ajuizar ação civil pública
na defesa de mutuários do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), uma vez
que os contratos para a aquisição da casa própria são firmados por pessoas
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
765
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
hipossuficientes, restando caracterizado, assim o relevante interesse social.
Precedentes da “e. Corte Especial”.
Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EREsp n. 274.508-SP, Corte Especial,
Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 10.04.2006)
Também não há como prevalecer a alegação autárquica, fundada no art. 127
da Constituição Federal, de que, em se tratando, in casu, de direitos disponíveis,
o Órgão Ministerial não teria legitimidade ad causam.
O fato de o direito perseguido por determinada classe ou grupo de pessoas
ser disponível não constitui fundamento suficiente para afastar a sua tutela pelo
Parquet, mediante a ação civil pública, pois, conforme já proclamado, há muito,
nesta Quinta Turma, “Há certos direitos e interesses individuais homogêneos
que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal,
passam a representar mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, mas
verdadeiros interesses sociais, sendo cabível sua proteção pela ação civil pública”
(REsp n. 95.347-SE, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 1º.02.1999).
Não é outro o posicionamento de ADA PELEGRINI GRINOVER:
Muito embora a Constituição atribua ao MP apenas a defesa de interesses
individuais indisponíveis (art. 127), além dos difusos e coletivos (art. 129), III),
a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais
homogêneos levou o legislador ordinário a conferir ao MP a legitimação para agir
nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos
disponíveis. Em conformidade, aliás, com a própria Constituição, que permite a
atribuição de outras funções ao MP, desde que compatíveis com sua finalidade
(art. 129, IX).
A dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja seu
objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art. 127
da CF. (in “A Ação Civil Pública e a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos,
Revista de Direito do Consumidor - São Paulo: RT, n. 5, jan/mar. 1993, p. 213).
Assim, para fins de legitimidade do Ministério Público para a ação
civil pública, quando se tratar de direitos individuais homogêneos, ainda que
disponíveis, o que deve ser observado é a presença do relevante interesse social
de que se reveste o direito a ser tutelado.
E isso ocorre com os direitos sociais insertos na Constituição Federal,
conforme resta claro do seguinte julgado, recentemente prolatado por esta
Corte, tendo em mira a incumbência constitucional atribuída ao Ministério
Público no art. 127, caput, da Lei Maior, litteris:
766
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Processual Civil. Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Relevante
interesse social. Ministério Público. Legitimidade. Registro profissional no
Conselho de Medicina Veterinária. Exame.
[...]
2. O Superior Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade ad causam do
Ministério Público, seja para a tutela de direitos e interesses difusos e coletivos
seja para a proteção dos chamados direitos individuais homogêneos, sempre que
caracterizado relevante interesse social.
[...]
5. O Ministério Público é legítimo para defender, por meio de ação civil pública,
os interesses relacionados aos direitos sociais constitucionalmente garantidos.
Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp n. 938.951-DF, 2ª Turma, Rel. Min.
Humberto Martins, DJe de 10.03.2010 - grifei)
Desse entendimento não destoa a jurisprudência da Suprema Corte, que
tem reconhecido a legitimidade do Ministério Público para a ação civil pública
destinada à proteção de direitos sociais, tais como a moradia e a educação.
Nesse sentido, vale observar o pronunciamento monocrático da lavra
do Min. Carlos Velloso, no qual restou assente que “Se se tem presente, por
exemplo, a relevância que a Constituição empresta à moradia, consagrada
como direito social, assim direito fundamental, CF, art. 6º [...] a interpretação
abrangente, ora preconizada, tal como preconizamos relativamente à educação,
no acórdão do RE n. 195.056-PR, linhas atrás indicado, para o fim de tornar
o órgão do Ministério Público legitimado para a defesa do direito ou interesse
aqui discutido, decorrente de um direito fundamental, ajusta-se ao espírito da
Carta, porque confere maior eficácia aos princípios por ela consagrados” (RE n.
247.134-MS, DJ de 09.12.2005 - grifei).
Por oportuno, anote-se o entendimento adotado no já citado RE n.
163.231-SP, quando a Corte Constitucional assinalou que, “Cuidando-se de
tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado
e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da
capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que
se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de
extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o
abrigo estatal.” (grifei).
E tal como o fez quanto à moradia e à educação – que, na linha do
entendimento do Pretório Excelso, podem ser objeto de tutela pelo Ministério
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
767
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Público –, a Constituição Federal, em seu art. 6º, elevou a previdência social à
categoria de garantia fundamental do homem, inserindo-a no rol dos direitos
sociais.
Veja-se que os direitos sociais, nas palavras de ALEXANDRE DE
MORAES, “são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como
verdadeiras liberdades positivas de observância obrigatória em um Estado Social
de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes,
visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos
do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal” (in “Direito
Constitucional” - 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 177 - grifei).
A relação existente entre o art. 1º, da Constituição Federal, acima citado,
e as funções institucionais do Ministério Público foi demonstrada com precisão
quando do julgamento do RE n. 228.177-MG, relatado pelo Min. Gilmar
Mendes, conforme se percebe do seguinte trecho extraído desse julgado:
[...] a Constituição, ao tratar do Ministério Público como instituição permanente
e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbiu-lhe do indisponível
dever de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os “interesses
sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput). E não há dúvida de que o
dispositivo constitucional do art. 127, caput, remete para os valores fundamentais
protegidos pela Constituição, especialmente os expressos em direitos e interesses
decorrentes da dignidade da pessoa humana, a soberania, a cidadania, dos
valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político, como
fundamentos da República, tal como definido no art. 1º. (RE n. 228.177-MG, 2ª
Turma, DJe de 05.03.2010)
Desse modo, há de se constatar, no âmbito do direito previdenciário,
um dos seguimentos da seguridade social, expressamente elencado no rol dos
direitos sociais, a indiscutível presença do relevante interesse social, que viabiliza
a legitimidade do Órgão Ministerial para figurar no polo ativo da ação civil
pública.
Ainda do magistério doutrinário de HUGO NIGRO MAZZILLI, extraise a seguinte lição:
Em vista de sua destinção, o Ministério Público está legitimado à defesa
de quaisquer interesses “difusos”, graças a seu elevado grau de dispersão e
abrangência, o que lhes confere conotação social. E quanto aos interesses
“coletivos” (em sentido estrito) e “individuais homogêneos”, estaria o Ministério
Público sempre autorizado à sua defesa?
768
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Há três linhas principais de respostas que costumam ser dadas a essa
indagação.
[...]
Assim, passemos à terceira linha de resposta à indagação acima, e que é aquela
por nós preconizada. Para esta posição, deve-se levar em conta, em concreto, a
efetiva conveniência social da atuação do Ministério Público em defesa de interesses
transindividuais. Essa conveniência social em que sobrevenha atuação do Ministério
Público deve ser aferida em concreto a partir de critérios como estes: a) conforme
a natureza do dano (p. ex., saúde, segurança e educação públicas); b) conforme
a dispersão dos lesados (a abrangência social do dano, sob o aspecto dos
sujeitos atingidos); c) conforme o interesse social no funcionamento de um sistema
econômico, social ou jurídico (previdência social, captação de poupança popular,
questões tributárias etc.)
[...]
Enfim, se em concreto a defesa coletiva de interesses transindividuais assumir
relevância social, o Ministério Público estará legitimado a propor a ação civil pública
correspondente. Convindo à coletividade como um todo a defesa de um interesse
difuso, coletivo ou individual homogêneo, aí sim é que não se há de recusar ao
Ministério Público assuma sua tutela. Corretamente destacou Consuelo Yoshida
que a legitimidade ad causam ativa e o interesse processual do Ministério Público
na tutela jurisdicional coletiva dos direitos individuais homogêneos decorrem da
relevância social dos interesses materiais envolvidos.
Assim, é incorreto dizer, “simpliciter”, que o Ministério Público não pode
defender interesses individuais homogêneos disponíveis. Se a defesa de tais
interesses envolver larga abrangência ou acentuado interesse social, deverá
ser empreendida pela instituição. (ob. cit., pp. 106-108 e 110 - grifei)
Convém destacar a lição do Min. Sepúlveda Pertence em judicioso votovogal proferido no julgamento do RE n. 195.056-PR, anteriormente citado.
Na ocasião, Sua Excelência, chamava a atenção para a análise do art. 127
da Constituição Federal sob a ótica da expressão “interesses sociais” contida
nesse dispositivo, no que denominou de interesse social segundo a constituição,
expressão essa que, como se pode perceber, tem perfeita aplicação à seguridade
social. Veja-se:
[...] para orientar a demarcação, a partir do art. 129, III, da área de interesses
individuais homogêneos em que admitida a iniciativa do MP, o que reputo de
maior relevo, no contexto do art. 127, não é o incumbir à instituição a defesa dos
interesses individuais indisponíveis mas, sim, a dos interesses sociais.
[...]
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
769
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
[...] a eventual disponibilidade pelo titular de seu direito individual, malgrado
sua homogeneidade com o de outros sujeitos, não subtrai o interesse social acaso
existente na sua defesa coletiva.
Ao contrário, são de direitos disponíveis as hipóteses mais notórias de indiscutida
legitimação do MP para a ação civil pública de defesa de interesses homogêneos,
a começar daqueles dos consumidores e dos outros casos de anterior previsão
legal, já referidos.
O problema é saber quando a defesa da pretensão de direitos individuais
homogêneos, posto que disponíveis, se identifica com o interesse social ou se integra
no que o próprio art. 129, III, da Constituição denomina patrimônio social. Não é fácil,
no ponto, a determinação do critério da legitimação do Ministério Público.
[...]
Penso, como visto, que a adstrição da legitimidade do MP aos casos de previsão
legal expressa, embora razoavelmente objetiva, seria um critério insuficiente
para a identificação do interessa social na defesa de direitos coletivos: dado que
deriva da Constituição a legitimação do MP para a hipótese, não se pode reputar
exaustivo o critério que delega ao legislador o poder de demarcar a função de um
órgão constitucional essencial à jurisdição.
Creio, assim, que - afora o caso de previsão legal expressa - a afirmação do
interesse social para o fim cogitado há de partir da identificação do seu assentamento
nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à
persecução dos objetivos fundamentais da República, nela consagrados.
[...]
Esse critério – que se poderia denominar de interesse social segundo a
Constituição – ainda que nem sempre explicitado em tese, parece estar subjacente
a diversas decisões judiciais, algumas já citadas, que tem reconhecido a legitimação
do MP para a defesa de direitos individuais homogêneos, seja ou não a hipótese
simultaneamente enquadrável no âmbito da tutela dos consumidores: recorde-se, por
exemplo, as questões relativas ao custo da educação privada [...], à seguridade social,
à saúde – desde o caso dos usuários de planos de assistência ao do conjunto de
trabalhadores carentes, vítimas de doença profissional oriunda das condições de
trabalho de determinada empresa (STJ, REsp n. 58.682, 08.10.1996, Direito, RDA
207/283). (grifei)
É oportuno o exemplo da seguridade social citado no trecho acima
transcrito, pois, conforme preconiza a Lei Complementar n. 75/1993, em
seu art. 5º, II, d, é função institucional do Ministério Público da União zelar
pela observância dos princípios constitucionais relativos à seguridade social.
Ressalte-se, ainda, que, conforme estabelece esse mesmo art. 5º, em seu inciso
I, é função institucional do Ministério Público a defesa da ordem jurídica e dos
interesses sociais.
770
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Também por ser pertinente à análise do tema deduzido no presente apelo,
traz-se à colação recente julgado do Supremo Tribunal Federal, prolatado no
AgRg/RE n. 472.489-RS, interposto pelo INSS, no qual era discutido o direito
dos segurados da previdência social à obtenção de certidão parcial de tempo de
serviço.
Nesse julgado, restou rechaçada a alegação do INSS de violação aos arts.
127 e 129, inciso III, da Constituição Federal, sendo reconhecida a legitimidade
do Ministério Público para a defesa daqueles direitos individuais homogêneos,
tendo em vista a existência do relevante interesse social discutido na ação.
Merecem transcrição as doutas razões veiculadas nesse julgado, litteris:
Esse entendimento - que reconhece legitimidade ativa ao Ministério Público
para a defesa, em juízo, dos direitos e interesses individuais homogêneos, quando
impregnados de relevante natureza social - reflete-se na jurisprudência firmada
por esta Suprema Corte [...].
[...]
Tenho para mim que se revela inquestionável a qualidade do Ministério
Público para ajuizar ação civil pública objetivando, em sede de processo coletivo
- hipótese em que estará presente “o interesse social, que legitima a intervenção
e a ação em juízo do Ministério Público (CF 127 caput e CF 129 IX)” (NELSON
NERY JUNIOR, “O Ministério Público e as Ações Coletivas”, in “Ação Civil Pública”, p.
366, coord. por Édis Milaré, 1995, RT - grifei) -, a defesa de direitos individuais
homogêneos, porque revestidos de inegável relevância social, como sucede com
o direito de petição e o de obtenção de certidão em repartições públicas (CF,
art. 5º, XXXIV), que traduzem prerrogativas jurídicas de índole eminentemente
constitucional, ainda mais se analisadas na perspectiva dos direitos fundamentais à
previdência social (CF, art. 6º) e à assistência social (CF, art. 203).
Na realidade, o que o Ministério Público postulou nesta sede processual nada
mais foi senão o reconhecimento - e conseqüente efetivação - do direito dos
segurados da Previdência Social à obtenção da certidão parcial de tempo de
serviço.
Nesse contexto, põe-se em destaque uma das mais significativas funções
institucionais do Ministério Público, consistente no reconhecimento de que
lhe assiste a posição eminente de verdadeiro “defensor do povo” (HUGO NIGRO
MAZZILLI, “Regime Jurídico do Ministério Público”, p. 224-227, item n. 24, “b”, 3ª
ed., 1996, Saraiva, v.g.), incumbido de impor, aos poderes públicos, o respeito
efetivo aos direitos que a Constituição da República assegura aos cidadãos em
geral (CF, art. 129, II), podendo, para tanto, promover as medidas necessárias ao
adimplemento de tais garantias, o que lhe permite a utilização das ações coletivas,
como a ação civil pública, que representa poderoso instrumento processual
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
771
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
concretizador das prerrogativas fundamentais atribuídas, a qualquer pessoa,
pela Carta Política, “(...) sendo irrelevante o fato de tais direitos, individualmente
considerados, serem disponíveis, pois o que lhes confere relevância é a repercussão
social de sua violação, ainda mais quando têm por titulares pessoas às quais a
Constituição cuidou de dar especial proteção” [...].
[...]
A existência, na espécie, de interesse social relevante, amparável mediante ação
civil pública, ainda mais se põe em evidência, quando se tem presente - considerado o
contexto em causa - que os direitos individuais homogêneos ora em exame revestemse, por efeito de sua natureza mesma, de índole eminentemente constitucional, a
legitimar, desse modo, a instauração, por iniciativa do Ministério Público, de processo
coletivo destinado a viabilizar a tutela jurisdicional de tais direitos. (Rel. Min. Celso
de Mello, 2ª Turma, DJe de 29.08.2008 - grifei)
Tal julgado restou assim ementado:
Direitos individuais homogêneos. Segurados da Previdência Social. Certidão
parcial de tempo de serviço. Recusa da autarquia previdenciária. Direito de petição
e direito de obtenção de certidão em repartições públicas. Prerrogativas jurídicas
de índole eminentemente constitucional. Existência de relevante interesse social.
Ação civil pública. Legitimação ativa do Ministério Público. A função institucional do
Ministério Público como “defensor do povo” (CF, art. 129, II). Doutrina. Precedentes.
Recurso de agravo improvido.
- O direito à certidão traduz prerrogativa jurídica, de extração constitucional,
destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade
(como a dos segurados do sistema de previdência social), a defesa (individual ou
coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações.
- A injusta recusa estatal em fornecer certidões, não obstante presentes os
pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizará a utilização de
instrumentos processuais adequados, como o mandado de segurança ou a própria
ação civil pública.
- O Ministério Público tem legitimidade ativa para a defesa, em juízo, dos direitos
e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante natureza
social, como sucede com o direito de petição e o direito de obtenção de certidão
em repartições públicas. Doutrina. Precedentes. (grifos no original)
Registre-se que o entendimento em prol da legitimidade do Parquet para a
ação civil pública tanto em matéria relativa à previdência social quanto à matéria
relativa à assistência social vem sendo reiteradamente adotado no âmbito
do Supremo Tribunal Federal, resultando, inclusive, em reforma de acórdãos
prolatados pelas Quinta e Sexta Turmas deste Superior Tribunal de Justiça.
772
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Com efeito, ao apreciar, por decisão monocrática, o AG n. 516.419PR (DJe de 12.02.2010), o relator do feito, Min. Cezar Peluso, acolheu o
agravo e proveu o Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público,
reconhecendo ao Parquet a legitimidade para ação civil pública, cujo objeto era a
revisão de benefícios previdenciários.
É o que se verifica dos seguintes trechos dessa decisão:
1. Trata-se agravo de instrumento contra decisão que indeferiu processamento
de recurso extraordinário interposto de acórdão do Superior Tribunal de Justiça e
assim ementado:
Processual Civil e Previdenciário. Ação civil pública. Revisão de
benefício previdenciário. Direitos individuais disponíveis. Ausência de
relação de consumo entre o INSS e o segurado. Ministério Público Federal.
Ilegitimidade ativa ad causam.
I - Trata-se de Ação Civil Pública objetivando a condenação da autarquia
à revisão da renda mensal inicial de benefícios previdenciários concedidos
anteriormente à vigência da Lei Maior, com a correção dos 24 primeiros
salários de contribuição integrantes do PBC pelos índices das ORTNs/OTNs/
BTNs.
II - A quaestio trazida à baila diz respeito a direito que, conquanto
pleiteado por um grupo de pessoas, não atinge a coletividade como um
todo, não obstante apresentar aspecto de interesse social. Sendo assim, por
se tratar de direito individual disponível, evidencia-se a inexeqüibilidade
da defesa de tais direitos por intermédio da ação civil pública. Destarte, as
relações jurídicas existentes entre a autarquia previdenciária e os segurados
do regime de Previdência Social não caracterizam relações de consumo,
sendo inaplicável, in casu, o disposto no art. 81, III, do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor. Precedentes.
Recurso conhecido e provido. (fl. 07).
Sustenta o recorrente, com base no art. 102, III, a, ofensa ao disposto nos arts.
127 e 129, II e III, da Constituição da República. Aduz que
Por sua vez, a indisponibilidade do direito não está relacionada com
o direito patrimonial. No caso, tendo sido atingido direito fundamental
do homem, como é a previdência social, tem-se por violado interesse
indisponível, ainda que desse mesmo interesse decorra parcela patrimonial.
(fl. 30).
2. Consistente o recurso.
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
773
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A tese adotada está em desconformidade com a jurisprudência desta Corte,
que reconhece a legitimação ad causam do Ministério Público, assim para a
tutela de interesses e direitos difusos e coletivos – os transindividuais de natureza
indivisível –, como para a proteção de direitos individuais homogêneos, sempre
que estes, tomados em conjunto, ostentem dimensão de grande relevo social,
ligada a valores e preceitos que, hospedados na Constituição da República
Federal, sejam pertinentes a toda a coletividade. Nesses casos, a atuação do
Ministério Público afeiçoa-se a seu perfil institucional, voltado ao resguardo do
interesse social e dos direitos coletivos, considerados em sentido amplo (CF, art.
127 e 129, incs. III e IX). [...].
[...]
3. Do exposto, acolho o agravo e, desde logo, conheço do recurso extraordinário
e dou-lhe provimento, para declarar a legitimidade do Ministério Público. (grifos no
original)
Registre-se que, contra tal decisão, o INSS interpôs agravo regimental,
aduzindo que, em se tratando de direitos individuais disponíveis, de interesse de
grupo ou de classe de pessoas, o Parquet não possuiria legitimidade para discutir
a concessão/revisão de benefícios previdenciários por meio de ação civil pública.
O regimental foi relatado pelo Min. Gilmar Mendes, tendo a Segunda
Turma do Pretório Excelso, à unanimidade, negado provimento ao recurso
autárquico, em acórdão assim ementado, in verbis:
Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Ação civil pública. Interesse
individual homogêneo. 3. Relevância social. Ministério Público. Legitimidade. 4.
Jurisprudência dominante. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg
no AI n. 516.419-PR, DJe de 30.11.2010)
O mesmo posicionamento foi adotado no RE n. 613.044-SC (DJe
de 25.06.2010), da relatoria da Min.ª Carmen Lúcia, restando declarada a
legitimidade do Parquet para a propositura de ação civil pública que objetivava
discutir critérios de concessão de benefício assistencial a idosos e portadores de
deficiência física (art. 203, V, da Constituição Federal):
[...]
1. Recurso extraordinário interposto com base no art. 102, inc. III, alínea a,
da Constituição da República contra o seguinte julgado do Superior Tribunal de
Justiça:
Previdenciário. Ação civil pública. Benefício assistencial de prestação
continuada. Lei n. 8.742/1993. Modificação dos critérios legais textualmente
774
Jurisprudência da QUINTA TURMA
previstos para a concessão. Ilegitimidade ativa do Ministério Público.
Direitos patrimoniais disponíveis. Relação de consumo descaracterizada.
Precedentes do STJ. Recurso do INSS provido.
1. O Ministério Público não detém legitimidade ad causam para a
propositura de ação civil pública que verse sobre benefícios previdenciários,
uma vez que se trata de direitos patrimoniais disponíveis e inexistente
relação de consumo. Precedentes.
2. Prejudicado o exame do recurso especial da União.
3. Recurso especial da autarquia provido para declarar a ilegitimidade
ativa do Ministério Público (fl. 514).
[...]
2. O Recorrente alega que o Tribunal a quo teria contrariado os arts. 93, inc. IX,
127 e 129, inc. III, da Constituição da República.
[...]
4. Razão jurídica assiste ao Recorrente.
5. A controvérsia em debate cinge-se à legitimidade do Ministério Público para
a interposição de ação civil pública na qual se discutem os critérios adotados pela
autarquia previdenciária para a concessão do benefício assistencial, previsto no
art. 203, inc. V, da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de ser legítima
a atuação do Ministério Público na defesa de direitos que, embora individuais,
possuam relevante interesse social, pois os chamados direitos individuais
homogêneos estariam incluídos na categoria de direitos coletivos abrangidos
pelo art. 129, inc. III, da Constituição da República (RE n. 163.231, Rel. Min. Maurício
Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 29.06.2001).
Ressalte-se, nesse sentido, o voto proferido pelo Relator do Agravo de
Instrumento no Recurso Extraordinário n. 472.489, Ministro Celso de Mello, no
qual se reconheceu o direito de segurados da Previdência Social à obtenção de
certidão parcial de tempo de serviço e a legitimidade do Ministério Público para
propor ação com esse objetivo [...]
[...]
6. Na espécie vertente, pretende o Recorrente ver declarada sua legitimidade
para a propositura de ação civil pública na qual se discutirão os critérios adotados
pela autarquia previdenciária para a concessão do benefício assistencial, previsto
no art. 203, inc. V, da Constituição da República.
Não há como deixar-se de reconhecer o relevante interesse social que a
questão apresenta, ainda que não trate de relação de consumo, como afirmado
a título de óbice pelo Tribunal de origem. Além disso, é de se considerar que
RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011
775
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a Constituição da República dispensa atenção especial aos portadores de
deficiência e aos idosos (art. 203, inc. V).
O acórdão recorrido, portanto, diverge da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal.
7. Pelo exposto, dou provimento ao recurso extraordinário (art. 557, § 1ª-A,
do Código de Processo Civil e art. 21, § 2º, do Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal) para declarar a legitimidade do Ministério Público Federal para
propor ação civil pública nos termos postos e determino o retorno dos autos ao
Superior Tribunal de Justiça para que prossiga no julgamento do recurso especial.
(Grifos no original)
Também foi reconhecida naquela Augusta Corte a legitimidade do
Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública nos seguintes
julgados monocráticos:
(a) RE n. 549.419-DF, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 06.08.2010, objeto da
ação civil pública: revisão de benefício previdenciário;
(b) RE n. 607.200-SC, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 06.08.2010, objeto da
ação civil pública: revisão de benefícios previdenciários;
(c) RE n. 491.762-SE, Rel.ª Min.ª Carmen Lúcia, DJe de 26.02.2010,
objeto da ação civil pública: equiparação de menores sob guarda judicial a filhos
de segurados, para fins previdenciários;
(d) RE n. 444.357-PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 11.11.2009,
objeto da ação civil pública: critério de concessão do benefício assistencial a
portadores de deficiência e idosos (art. 203, V, da Constituição Federal).
Impende ainda ressaltar que o reconhecimento da legitimidade do
Ministério Público para a ação civil pública em matéria previdenciária implicaria
inegável economia processual, evitando a proliferação de demandas individuais
idênticas com o consequente acúmulo de feitos nas instâncias do Judiciário.
A propósito:
Recurso especial. Previdenciário. Ação civil pública. Ministério Público Federal.
O Ministério Público está legitimado a defender direitos individuais
homogêneos, quando tais direitos têm repercussão no interesse público.
O exercício das ações coletivas pelo Ministério Público deve ser admitido
com largueza. Em verdade a ação coletiva, ao tempo em que propicia solução
uniforme para todos os envolvidos no problema, livra o Poder Judiciário da maior
praga que o aflige, a repetição de processos idênticos.
776
Jurisprudência da QUINTA TURMA
Recurso conhecido, mas desprovido. (REsp n. 413.986-PR, 5ª Turma, Rel. Min.
José Arnaldo da Fonseca, DJ de 11.11.2002)
Acrescente-se, ainda, a lição de RODOLFO CAMARCO MANCUSO,
para quem “... especialmente nos casos em que há expressiva dispersão dos
lesados (por exemplo, aplicadores em caderneta de poupança de certo Banco,
prejudicados pelo incorreto índice remuneratório), haverá extrema conveniência
em que o trato jurisdicional da matéria se faça em modo molecular, assim evitando
a atomização do fenômeno coletivo em múltiplas demandas individuais, ao risco de
decisões discrepantes, em processos mais demorados e onerosos” (in “Interesses Difusos,
conceito e legitimação para agir” - 6ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 49 - grifei).
Na hipótese sob exame, a ação civil pública titularizada pelo Parquet tem
por objeto a revisão dos benefícios previdenciários de inúmeros aposentados,
tendo a Corte de origem assinalado, com proficiência, que, in verbis:
No caso dos autos, o interesse social sobressai, pois evidenciado pelo avultado
número de beneficiários da Previdência Social que tiveram calculada de forma
errônea e prejudicial a renda mensal inicial de seus benefícios previdenciários,
com significativa redução de seus proventos ao longo dos anos, a projetar
reflexos não apenas nas suas próprias vidas e nas de suas famílias, mas em toda
a sociedade, com um empobrecimento injustificado a levá-los a um processo de
exclusão social expressamente repelido pela Constituição Federal e à oneração
dos serviços públicos de saúde, educação e assistência social.
A Ação Civil Pública, portanto, é o instrumento adequado, face à economia
e praticidade da medida, a obviar o inconveniente do ajuizamento de centenas
de ações individuais e a injustiça de não se reparar o prejuízo daqueles que, por
ignorância ou dificuldade de meios, não vão à Justiça vindicar seus direitos. (fl. 165)
Assevere-se que, embora esta Corte tenha firmado jurisprudência
desfavorável à tese de legitimidade do Ministério Público em matéria
previdenciária, alguns posicionamentos demonstram ainda existir polêmica em
torno da questão.
É o que se deu, por exemplo, quando do julgamento do REsp n. 396.081RS (DJe de 03.11.2008), em que se discutia a legitimidade do Parquet para
ajuizar ação civil pública cujo objeto era garantir o direito de crianças e
adolescentes, sob guarda judicial, à inscrição no RGPS como dependentes, para
fins previdenciários.
Na ocasião, embora decidindo conforme a atual jurisprudência, a relatora
do feito, Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, com sua habitual competência,
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ressalvou o seu ponto de vista exatamente em razão do relevante interesse social
presente na lide, manifestando-se nos seguintes termos, litteris:
Consoante previsão do parágrafo único do artigo 1º da Lei n. 7.347/1985,
introduzido pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, “não será cabível ação
civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições
previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros
fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente
determinados.”
Conquanto referido dispositivo legal não tenha aplicação para os feitos que
versam sobre benefícios previdenciários, mas apenas para os casos que cuidam
de contribuições previdenciárias, predomina na Terceira Seção desta Corte
Superior de Justiça a tese de que não é cabível a propositura de ação civil pública
que verse sobre a concessão de benefícios previdenciários, por cuidarem de
direitos individuais disponíveis.
[...]
Com a devida vênia da tese que prepondera na Terceira Seção deste egrégio
Tribunal, entendo que, em casos como o presente, ainda que os direitos
defendidos sejam divisíveis, há legitimidade do Ministério Público diante da
existência de relevante interesse social na causa, que versa sobre interesses
individuais homogêneos consubstanciados em interesses de crianças e
adolescentes sob guarda judicial de serem inscritas como dependentes no
Regime Geral da Previdência Social.
[...]
No entanto, em respeito à jurisprudência firmada pela Terceira Seção, com a
ressalva do meu entendimento acerca do tema, adoto a tese segundo a qual o
Ministério Público não tem legitimidade ativa ad causam para propor ação civil
pública em defesa de direito à percepção de benefício previdenciário.
Diga-se o mesmo do douto voto-vogal vencido proferido pelo Min.
Napoleão Nunes Maia Filho, prolatado julgamento do REsp n. 661.701-SC (DJe
de 18.05.2009) – cujo acórdão foi posteriormente reformado pelo Supremo
Tribunal Federal, no já citado RE n. 613.044-SC –, in verbis:
1. Senhores Ministros, gostaria de mencionar, não propriamente lembrando,
mas apenas frisando, à douta Turma que a categoria da legitimidade processual
é muito cara ao processo civil e que surgiu em cena ainda no Século XIX, com a
questão do interesse de agir e da possibilidade jurídica quando o processo civil
foi estruturado nos seus começos para regular ações e litígios simplesmente
binários, ou seja, um indivíduo contra outro. Essa categoria - disse isso em um
julgamento da Seção em que fiquei vencido - não dá conta do processo civil
778
Jurisprudência da QUINTA TURMA
contemporâneo em que os direitos coletivos e multitudinários surgiram com
a força decorrente dos direitos fundamentais e com tal força avassaladora que
quebrou essa categoria tradicional do processo civil, que é da legitimidade. No
caso, é evidente que o direito subjetivo ou material está patente e presente e
que o Ministério Público, ao propor essa ação, na verdade, resguarda e tutela um
direito multitudinário de pessoas sabidamente hipossuficientes e que, deixadas
ao relento da proteção do Ministério Público, com certeza não demandarão esses
direitos ou haverá até retardo admirável na demanda, com prejuízo evidente
para a subsistência das pessoas hipossuficientes ou pobres. A Defensoria Pública
poderia também propor a ação, mas nem todas as comarcas nem todos os
Estados possuem Defensoria Pública tão capilarizada e tão presente, tão dinâmica
até diria e tão empenhada quanto o Ministério Público.
2. Daí por que, Ministro Arnaldo Esteves Lima, reconhecendo a grande
ponderabilidade de suas palavras, penso que não há prejuízo para ninguém em
se admitir que o Ministério Público promova esse tipo de ação e haverá uma
vantagem evidente para as pessoas que são credoras desses benefícios. Quando,
na verdade, esses benefícios deveriam ser pagos na via administrativa, sem
necessidade de demanda alguma.
3. Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima, com o devido respeito a V. Exa. e ao
seu voto, penso que esse rigor na apuração da legitimidade subjetiva ativa
do Ministério Público, vem em desfavor das pessoas que estão carecendo de
proteção, daí por que quem quer que promova a ação no sentido de amparar os
carentes deve merecer acolhida a iniciativa.
4. Assim, mais uma vez, reconhecendo a grande lucidez do voto de V. Exa.,
peço vênia, respeitosamente, para reconhecer que o Ministério Público tem
legitimidade ativa para propor ações em benefício de hipossuficientes que têm
direito a perceber benefícios previdenciários. A questão posta no recurso especial
é exclusivamente da legitimidade.
5. Peço vênia a V. Exa. para negar provimento ao recurso do INSS pelas razões
que acabei de alinhavar. E julgo prejudicado o recurso especial da União.
Tenho, por fim, que as razões veiculadas tanto na doutrina quanto na
jurisprudência anteriormente apreciadas embasam, a meu ver, a mudança
de posicionamento desta Corte, no sentido de que, diante da presença do
relevante interesse social envolvido no assunto, seja reconhecida a legitimidade
do Ministério Público para figurar no polo ativo de ação civil pública na
defesa de direitos de natureza previdenciária, cujas normas, constitucionais e
infraconstitucionais, têm por destinatários, em grande parte, pessoas desvalidas
social e economicamente.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assim, entendo que deve ser restabelecida a antiga jurisprudência desta
Corte, que, com sabedoria e justiça, já reconheceu a legitimidade do Parquet
sobre a questão, conforme inicialmente afirmado e exemplificado no precedente
a seguir citado, in verbis:
Agravo interno. Processual Civil. Ação civil pública. Direitos individuais
homogêneos. Ministério Público Federal. Legitimidade. Precedentes do STJ.
I - Conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “O Ministério
Público possui legitimidade para propor ação coletiva visando proteger o
interesse, de todos os segurados que recebiam benefício de prestação continuada
do INSS, pertinente ao pagamento dos benefícios sem a devida atualização, o que
estaria causando prejuízo grave a todos os beneficiários. Sobre as atribuições dos
integrantes do Ministério Público, cumpre asseverar que a norma legal abrange
toda a amplitude de seus conceitos e interpretá-la com restrições seria contrariar
os princípios institucionais que regem esse órgão.” (REsp n. 211.019-SP, Relator
Min. Felix Fischer).
II - Agravo interno desprovido. (AgRg no AgRg no AG n. 422.659-RS, 5ª Turma,
Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 05.08.2002)
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
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