Segredos da catálise enzimática
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Segredos da catálise enzimática
Ensino em Biotecnologia Segredos da catálise enzimática João Paulo Medeiros Ferreira¹ ¹ Escola Superior de Biotecnologia – Universidade Católica Portuguesa, Porto Rua Dr. António Bernardino de Almeida, 4200-072 Porto Tel: 225580027; Fax: 225090351; e-mail: [email protected] RESUMO As enzimas sempre despertaram acentuado interesse aos bioquímicos. A sua diversidade, estrutura e capacidade catalítica têm sido alvo de sucessivos estudos, com resultados frequentemente surpreendentes. Embora algumas das propriedades das enzimas sejam do conhecimento comum, a compreensão dos mecanismos físicoquímicos subjacentes à sua actuação é frequentemente superficial. Este texto pretende rever, dum modo simples e sistematizado, os factores que, presentemente, são tidos como responsáveis pela catálise enzimática. produtos. As abcissas representam a coordenada reaccional, uma variável que traduz o evoluir da reacção, e nas ordenadas figura a energia de Gibbs do sistema, G (esta é a grandeza termodinâmica adequada para temperatura e pressão fixas). Conforme explicado, a S‡ corresponde um máximo de energia. A velocidade de formação de produtos ( v = d [ P] dt ) é ditada pela velocidade da etapa lenta, ou seja, a segunda etapa em (1): v= d [ P] ′ ‡ dt = k S (2) ( ) ‡ Como S‡ = [S] K ‡ e K ‡ = exp −∆G RT , então a velocidade de formação de produtos é calculável por Introdução Vamos recordar algumas propriedades gerais dos catalisadores, e das enzimas em particular, recorrendo a uma teoria de cinética química muito difundida, a teoria dos estados de transição. Qualquer transformação química compreende uma determinada sequência reaccional, com quebra de ligações e formação de novas outras. No processo, formamse estruturas transientes de elevada energia, designadas estados de transição ou complexos activados. Estes não são observáveis experimentalmente e têm tempos de meia-vida estimados em volta de 10-13 s. Exemplifiquemos para a reacção A − B + C → A + B − C . O estado de transição deverá corresponder a uma espécie do género [ ABC ] , na qual a ligação entre A e B se está a quebrar, enquanto uma outra, entre B e C, se está a formar. Vamos simplificar a sua representação por S‡. Uma vez formado, o estado de transição pode decompor-se de novo nos reagentes ou, de um modo mais lento, originar os produtos. Aquela reacção é, então, descrita pelos passos K‡ k′ A − B + C ⇔ S‡ → A + B − C d [ P] dt = κ ( ‡ ′ [S] exp −∆G RT ) (3) em que ∆G‡ é a variação de energia de Gibbs padrão da formação do estado de transição, correntemente designada apenas por energia de activação. A equação anterior evidencia que a velocidade de reacção diminui acentuadamente com o aumento da energia de activação. Por exemplo, a 25 ºC, um aumento de apenas 5.71 kJ⋅mol-1 (1) Esta teoria supõe que existe um equilíbrio rápido entre os reagentes e o estado de transição, caracterizado pela constante de equilíbrio K‡. Em termos energéticos, a transformação pode ser representada por um diagrama como o da Fig. 1, conhecido por diagrama de estado de transição ou diagrama de coordenada reaccional, em que S são os reagentes e P os Boletim de Biotecnologia v= Fig. 1 - Diagrama de coordenada reaccional para uma transformação química elementar. Ensino em Biotecnologia em ∆G‡, provoca uma diminuição de 10 vezes em v. Catálise ácido-base As enzimas, enquanto catalisadores, providenciam percursos reaccionais alternativos, de menor energia de activação. Os novos percursos reaccionais incluem geralmente a formação de espécies intermédias de relativa estabilidade, distintas dos estados de transição. Entre essas espécies figuram os complexos enzima – substrato (ES) e enzima–produtos (EP). Assim, uma reacção enzimática inclui, no mínimo, os seguintes passos: Considere-se a reacção de hidrólise de ésteres. O processo não catalítico deverá ocorrer como representado na Fig. 3(a). O estado de transição apresenta uma carga negativa no oxigénio carbonílico e uma carga positiva na molécula de água, o que torna a sua formação bastante desfavorável. Mas a hidrólise de ésteres admite catálise não-enzimática por ácidos e por bases, como mostram as Fig. 3(b)-(e). Na presença de um ácido ou de uma base forte, a espécie catalítica é, respectivamente, H+ ou OH-, sendo estes géneros de catálise conhecidos por ácida específica e básica específica. Contudo, muitas outras espécies podem ceder ou aceitar protões, servindo também como catalisadores (Fig. 3(d)-(e)). Nestes casos, as catálises são designadas ácida geral e básica geral. Em qualquer dos casos, a função do catalisador é permitir que, por transferência de um protão, se origine um estado de transição mais estável, logo, de menor energia do que em (a). E + S ⇔ ES ⇔ EP ⇔ E + P (5) Ou seja, o percurso reaccional tem várias etapas elementares, cada uma com um estado de transição e energia de activação associados (ver Fig. 2). Do exposto, é compreensível que a velocidade do processo global seja ditada pela etapa mais lenta, ou seja, aquela com maior energia de activação. Frequentemente, tal etapa é a conversão de reagentes em produtos, mas há muitos casos em que uma outra etapa, como a de libertação dos produtos, é a mais lenta. Com base na Fig. 2, enfatize-se que: i) a variação de energia de Gibbs da reacção global, ∆G, é a mesma para as vias catalítica e não-catalítica; ii) os catalisadores providenciam uma mesma redução da energia de activação na reacção no sentido directo, S → P , e na reacção em sentido inverso, P → S . Como consequência, a constante de equilíbrio global permanece inalterada. Na prática, observa-se que as enzimas aceleram reacções por um factor da ordem de 106 a 1014. Um estudo estimou que a enzima ácido orótico descarboxilase aumenta a velocidade reaccional em 1017 vezes relativamente à reacção não catalítica, cujo tempo de meia-vida, para condições ambientais, foi avaliado em 78 milhões de anos (Radzicka e Wolfenden, 1995)! Eis um exemplo notável da importância dos biocatalisadores. Para além de espectaculares efeitos catalíticos, as enzimas mostram elevada especificidade, isto é, catalisam apenas uma só reacção ou, quando muito, um grupo muito similar de reacções. As enzimas possuem vários grupos que podem actuar como ácidos e bases gerais. Nomeadamente, os aminoácidos aspártico, glutâmico, histidina, cisteína, lisina, tirosina, serina e arginina têm grupos laterais protonizáveis. Assim, um ou mais destes aminoácidos podem figurar no centro activo das enzimas, intervindo no processo de catálise. Várias reacções enzimáticas de hidrólise de ésteres e de amidas, reacções de tautomerização, ou de transferência de grupos fosfato, entre outras, apresentam os mecanismos ácido e/ou base geral. Estes apresentam várias vantagens em relação a catálise por H+ ou OH-: i) nas condições fisiológicas de pH, as concentrações destas espécies são muito baixas, tornando-se pouco viável a sua participação directa na reacção; ii) grupos ácido ou base geral localizam-se estrategicamente no centro activo, enquanto que H+ e OH- apresentam elevada mobilidade. iii) grupos protonizáveis da enzima podem apresentar valores de pK muito afastados dos cor- O intuito primordial deste artigo é, agora, aprofundar os mecanismos moleculares que, supostamente, estão por detrás destas propriedades extraordinárias e misteriosas das enzimas. Expor com algum pormenor as bases experimentais que levaram às conclusões seguintes seria longo e complexo, pelo que tal não será feito. Diga-se, contudo, que muito do conhecimento adquirido sobre o funcionamento das enzimas advém de estudos cinéticos e de revelações de estruturas tridimensionais das moléculas por cristalografia de raios X e técnicas de RMN. Mais recentemente, a engenharia genética trouxe novas ferramentas como, por exemplo, as que permitem alterar um ou vários aminoácidos das sequências polipeptídicas para assim se avaliar a sua influência na catálise. Dos muitos estudos efectuados, depreendeu-se que nos processos enzimáticos intervêm factores de natureza química e outros de natureza mais física. Entre os primeiros listam-se a catálise covalente, a catálise ácido-base e a activação por metais; nos segundos, os efeitos de proximidade e orientação, desestabilização de substrato e/ou enzima e o efeito de estabilização do estado de transição. Refira-se que esta classificação não é universal, encontrando-se outras diferentes na literatura. Fig. 2 - Diagrama reaccional para uma reacção enzimática típica. Boletim de Biotecnologia 23 Ensino em Biotecnologia Catálise Covalente Mostrou-se que, no decurso de muitas reacções enzimáticas, um substrato ou um seu fragmento liga-se covalentemente a um grupo lateral da cadeia polipeptídica ou, por vezes, a um co-factor enzimático. Tais espécies intermédias podem apresentar alguma estabilidade, mas o processo deverá prosseguir para originar produtos e regenerar a enzima (ou co-factor) livre. Este mecanismo é encontrado, por exemplo, nas proteases de serina, como a tripsina, quimotripsina, ou elastase. Estas enzimas hidrolisam as ligações amida de cadeias polipeptídicas, de acordo com o mecanismo da Fig. 4. Após ligação do substrato ao centro activo, o grupo hidroxilo de uma serina da protease ataca o carbono carbonílico da ligação amida do substrato. Forma-se um complexo activado, de geometria tetraédrica em torno desse carbono. O complexo quebra, originando um primeiro produto com um novo grupo terminal amino, enquanto a restante parte do substrato permanece numa ligação éster com a serina. Neste processo, o hidrogénio da Ser foi transferido para o grupo imidazol de uma histidina. Este grupo aceita com facilidade o protão, porque a carga positiva que adquire é estabilizada pela proximidade do grupo carboxílico de um aspartato. O complexo covalente intermédio, embora com certa estabilidade (é possível “congelar” a reacção e isolá-lo), é todavia deslocado por um ataque nucleófilo de uma molécula de água, o que engloba passos semelhantes aos anteriores, mas por ordem inversa. No final, têm-se enzima regenerada e o segundo produto, com um novo terminus carboxílico. Pelo descrito, observe-se ainda que este processo reaccional apresenta, para além de catálise covalente, o mecanismo ácido-base geral. Fig. 3 - Mecanismos reaccionais para a hidrólise de ésteres: (a) reacção não-catalítica; (b) catálise por um ácido forte; (c) catálise por uma base forte; (d) catálise por um ácido geral; (e) catálise por uma base geral. respondentes pK´s de aminoácidos simples em solução, devido a diferentes microambientes. Deste modo, a função ácido ou base geral desses grupos é flexibilizada, podendo ajustar-se convenientemente a cada caso. Exemplos específicos de mecanismos ácido-base são apresentados mais adiante. Boletim de Biotecnologia Para além de Ser, outros aminoácidos formam, noutros casos, ligações covalentes com o substrato, como histidina (exemplo: em succinil-coA sintetase), cisteína (exemplo: em tiol-proteases), ou lisina (exemplo: em acetoacetato descarboxilase). Por vezes, a transferência de grupos do substrato é efectuada através de um co-factor, como tiamina-pirofosfato, biotina ou piridoxal-fosfato (PLP). Um conjunto de enzimas com este último co-factor são as transaminases, que catalisam a transferência do grupo amino entre aminoácidos e α-cetoácidos. Um Ensino em Biotecnologia Fig. 4 - Mecanismo reaccional de quimotripsina, uma protease de serina. dos pares envolvidos é, quase sempre, glutamato/α-cetoglutarato. No centro activo das transaminases, o grupo PLP forma uma base de Schiff com uma Lys da estrutura polipeptídica (Fig. 5(a)). Esta ligação é quebrada quando o primeiro aminoácido cede o grupo amino, formando-se piridoxamina-fosfato (PMP) e libertando-se o α-cetoácido correspondente. O mecanismo detalhado desta transformação é mostrado na Fig. 5(b). Reparar que a Lys actua como base geral e como ácido geral nos passos (2) e (3), respectivamente. regenerando a enzima-PLP. A segunda fase da reacção começa com a ligação à enzima do segundo α-cetoácido. Por um conjunto de passos inversos aos anteriores, não mostrados na Fig. 5(b), este substrato recebe o grupo amino de PMP, originando um novo α-aminoácido e Entre um quarto e um terço de todas as enzimas conhecidas exigem um ião metálico para a sua actividade. O tipo de ligação desses iões e as suas funções são bastante diversos. Nas enzimas activadas por metal, os iões ligam-se às estruturas Recorde-se que estes ou quaisquer outros exemplos de reacções enzimáticas representam percursos reaccionais de menor energia de activação do que os correspondentes processos não catalíticos (a serem possíveis), não obstante formarem-se novas espécies intermédias. Catálise com Iões Metálicos Boletim de Biotecnologia 25 Ensino em Biotecnologia Fig. 5 (a) - Reacções catalisadas por transaminases: esquema da transformação. durante o processo catalítico; ou são agentes electrofílicos, actuando dum modo algo semelhante, mas com maior intensidade, que H+ (sendo, por isso, designados superácidos). Conhecem-se mais de 300 enzimas com Zn2+ como co-factor, entre eles, a anidrase carbónica. Esta enzima catalisa a conversão de CO2 dissolvido a bicarbonato no interior dos eritrócitos polipeptídicas das enzimas e/ou aos substratos por interacções fracas a moderadas e reversíveis. Frequentemente, os iões K+, Mg2+ ou Ca2+ estão neste caso. Eles contribuem para a estabilidade da conformação activa da enzima, ou para uma efectiva ligação do substrato ao centro activo. Por exemplo, as cinases em que ATP é dador de grupos fosfato requerem Mg2+ para a sua actividade. Este ião complexa com os grupos fosfato do ATP, neutralizando parcialmente a sua elevada carga negativa. Noutros casos, os iões metálicos ligam-se fortemente ao centro activo das enzimas, então designados metaloenzimas. Frequentemente, os metais envolvidos são metais de transição, como zinco, cobre, cobalto ou ferro. Estes desempenham normalmente um de dois papéis: ou são mediadores de reacções de oxidaçãoredução, alterando o seu estado de oxidação Fig. 5 (b) - Reacções catalisadas por transaminases: mecanismo de meia reac- Boletim de Biotecnologia [ CO2 (d) + H2 O(l) ⇔ HCO−3 (aq ) + H+ (aq ) ]. Na enzima, Zn2+ está tetracoordenado a 3 histidinas da cadeia polipeptídica e a um grupo hidroxilo. Este último resulta de uma molé- Ensino em Biotecnologia Fig. 6 - Mecanismo de anidrase carbónica, uma metaloenzima. cula de água, facilmente dissociada pelo ião zinco (Fig. 6). O ião hidróxido é um forte nucleófilo, atacando e transferindo-se para o CO2. Uma nova molécula de água liga-se, então, a Zn2+. Refira-se que a simplicidade deste mecanismo faz com que a anidrase carbónica seja uma das enzimas conhecidas mais eficientes. Este parâmetro pode ser traduzido pelo quociente kcat K m , que representa a constante cinética da reacção de segunda ordem entre enzima e substrato. O seu valor é limitado superiormente pela velocidade com que enzima e substrato se podem encontrar, ou seja, a velocidade de difusão em solução dessas espécies, que é da ordem de 109 M-1⋅s-1 (Fersht, 1985). k Para a anidrase carbónica, cat K = 1.2×108 M-1⋅s-1! m Efeitos de proximidade e orientação Passemos agora a analisar factores de natureza essencialmente física que intervêm nos processos enzimáticos. Considere-se uma reacção bimolecular. Para que ocorra, os dois reagentes têm de se encontrar, sendo a velocidade proporcional ao produto das suas concentrações. Na mesma reacção catalisada por uma enzima, os substratos formam eventualmente um complexo com ela. Assim, os dois reagentes vão estar muito próximos um do outro, isto é, a sua “concentração efectiva” vai ser elevada. Para além disso, os seus grupos reactivos vão estar na orientação adequada para a reacção. Estes efeitos promovidos pelas enzimas designam-se efeitos de proximidade e de orientação. O aumento de velocidade reaccional derivado destes efeitos pode ser avaliado mesmo em reacções não-enzimáticas, comparando as constantes cinéticas de uma reacção bimolecular e de uma reacção unimolecular semelhante. A Tabela 1 apresenta as constantes de segunda ordem da reacção entre fenol e ácido acético ( k2 ) e de duas reacções unimoleculares k ( k1 ) equivalentes. A razão entre elas, 1 k , é 3.2x104 M em 2 (B) e 8.5x108 M em (C). Estes números traduzem a referida “concentração efectiva” de grupos reactivos para as reacções unimoleculares. Como explicar valores tão elevados? Nos reagentes singulares, os movimentos de translação e de rotação das moléculas não influem na reacção, ao contrário do que acontece em reacções multimoleculares. A estes factores pode ainda juntar-se o de movimentos de rotação interna. Dos substratos na Tabela 1, o da reacção (C) tem menor liberdade de rotação nas suas ligações que o da (B) devido aos substituintes adicionais no benzeno. Esta inibição de movimentos internos da molécula amplifica o efeito de orientação, o que deverá explicar a diferença de 104 entre as constantes cinéticas das duas reacções. Em processos enzimáticos, a ligação dos substratos à enzima promove estes mesmos efeitos, eliminando movimentos de translação, de rotação molecular e de rotação interna nos substratos. Em termos de interpretação termodinâmica, a formação do complexo enzima – substrato(s) representa uma grande diminuição de entropia em relação a enzima e substrato(s) livres em solução. Daí, os efeitos acima descritos serem conhecidos por efeitos anti-entrópicos. A uma diminuição de entropia corresponde um aumento na energia de Gibbs. Assim, estes efeitos elevam a energia do complexo ES, reduzindo deste modo a energia de activação. Como é óbvio, eles têm maior expressão em reacções envolvendo simultaneamente mais do que um substrato. Por último, refira-se que, para além do substrato ou enzima, os efeitos anti-entrópicos podem advir de outras moléculas, particularmente do solvente. Sabe-se que a reacção entre duas espécies em solução só ocorre após um rearranjo das moléculas de solvente à volta, isto é, após se originar um microambiente particular, etapa que pode mesmo ser a limitante do processo. No centro activo das enzimas, microambientes favoráveis são providenciados à partida, com a presença de moléculas de solvente estritamente necessárias e com orientações adequadas para catálise. Pode-se interrogar, pertinentemente, como é que E e S tendem espontaneamente para um estado de menor entropia. A resposta reside na parcela entálpica associada à formação do próprio complexo ES, isto é, na energia das interacções enzima-substrato, que é negativa. Têm-se, assim, dois efeitos opostos associados à formação de ES. O balanço de G respectivo poderá ser positivo ou negativo. Estabilização do estado de transição Uma enzima deve ligar o estado de transição com uma afinidade superior à sua ligação ao substrato, na forma do complexo ES, ou à sua ligação ao produto, na forma EP. Este facto é fundamentado por princípios lógicos e também por algumas observações experimentais. Se a ligação entre enzima e substrato for muito forte, a energia de Gibbs de ES será baixa, possivelmente até bastante inferior à das espécies E e S separadas. Ora, assim sendo, a etapa seguinte terá uma energia Boletim de Biotecnologia 27 Ensino em Biotecnologia de activação muito eleTabela 1: Cinética de Diferentes Reacções de Esterificação vada, perdendo-se a vantagem catalítica. Para que tal não aconteça, ES deverá ter uma energia razoavelmente Concentração efectiva alta. Simultaneamente, Reacção Reagentes Constante Cinética de grupos reactivos interessa, sim, baixar a energia de ES‡, o que (A) 10-10 s-1 M-1 acontecerá se a complementaridade entre enzima e estado de transição for elevada. Isto é, quando se passa (B) 3.2 x 10-6 s-1 3.2 x 104 M de ES a ES‡, devem formar-se interacções adicionais entre enzima e substrato, como (C) 8.5 x 10-2 s-1 8.5 x 108 M pontes de hidrogénio, ligações iónicas, forças de van der Waals ou efeitos hidrofóbicos favoráveis. Este factor é tido como um dos principais promotores do poder catalítico de grande parte das enzimas, sendo conhecido por estabilização Cristalografia de raios X de enzima livre e enzima - inibidor, do estado de transição. Ele é visível no mecanismo das entre outras técnicas, permitiu corroborar que a formação proteases de serina, por exemplo, onde o oxianião correspon- do complexo é frequentemente acompanhada de alterações dente ao estado de transição é estabilizado por duas pontes de conformacionais na enzima. Em alguns casos, estas são relativamente pequenas, mas noutros casos são consideráveis, hidrogénio formadas com a cadeia polipeptídica (Fig. 4). mudando a enzima duma forma inactiva para uma conforOs dois princípios acima descritos – elevação energética de mação activa. Estes rearranjos podem também originar uma ES e diminuição da de ES‡ – são representáveis no diagrama certa tensão em ES. do estado de transição (Fig. 7). Em relação ao primeiro princípio, deduz-se que um bom substrato é aquele que se liga Existem outras observações experimentais que suportam as frouxamente à enzima, ao contrário do que a intuição poderia teorias anteriores. Para muitas enzimas, o parâmetro cinético prever. Contudo, deverá existir sempre alguma afinidade, caso Km é uma boa estimativa da constante de dissociação de ES, ou contrário não ocorrerá formação de uma concentração signi- seja, traduz a afinidade da ligação com o substrato (Km elevado, ficativa de ES, limitando a velocidade reaccional. Há, portanto, baixa afinidade e vice-versa). Os valores de Km situam-se uma afinidade de compromisso óptima para a catálise. Em alguns casos, pode mesmo acontecer que a formação de ES seja acompanhada da introdução de alguma “tensão” em E e/ ou S. Esta tensão pode advir de alterações conformacionais em E ou S (distorção ou tensão estérica), de interacções desfavoráveis entre ambos (como proximidade de grupos com a mesma carga), etc. Quando evidente, este efeito é, por vezes, designado por desestabilização de ES. Um bom exemplo de distorção do substrato é visto em lisozima. Esta hidroliza ligações Oglicosídicas entre o carbono-1 de ácido N-acetilmurâmico (MurNAc) e o carbono-4 de N-acetilglucosamina (GlcNAc) nos peptidoglicanos de paredes bacterianas. Quando a cadeia de ósido se liga ao centro activo do lisozima, a conformação do MurNAc envolvido na hidrólise altera-se de cadeira para meia-cadeira. Esta é, também, a conformação do carbanião formado no decurso da reacção (Fig. 8(a)). Assim, a distorção inicial do substrato aproxima a energia de ES da de ES‡. Fig. 7 - Efeitos de desestabilização de ES, (a), e de estabilização de ES‡, (b), promovidos pela via enzimática. Boletim de Biotecnologia Ensino em Biotecnologia (c) (a) (d) (b) Fig. 8 - Estados de transição nas reacções catalisadas por lisozima (a) e por adenosina deaminase (b) e exemplos de compostos análogos a esses estados, (c) e (d), respectivamente. geralmente entre 10-1 e 10-7 M e, em muitos casos, em volta de 10-4 M. Estes são valores elevados, quando comparados com as constantes de dissociação de outros complexos, como ligando-receptor ou antigénio-anticorpo, onde existe boa complementaridade entre as duas espécies. Por outro lado, compostos análogos a supostos estados de transição ligamse às enzimas com elevadíssima afinidade (sendo, por isso, excelentes inibidores competitivos). Pode-se apresentar alguns exemplos. O composto derivado de (GlcNac)4 com um grupo lactona na última unidade (Fig. 8(c)) é um forte inibidor de lisozima. Esta propriedade é atribuída à conformação desta ose, que se aproxima da meia-cadeira. A conversão de adenosina a inosina é efectuada por adenosina deaminase (Fig. 8(b)), com um K m = 3×10−5 M . Um composto análogo ao suposto estado de transição da reacção, representado na Fig. 8(d), é um potente inibidor, com um K i = 3×10−13 M . Ou seja, esse composto deve ter uma afinidade pela enzima 108 vezes mais elevada que o substrato. Talvez a prova mais notável do efeito de estabilização do esta- do de transição venha do recurso a anticorpos monoclonais. As experiências baseam-se na seguinte suposição: se enzima e estado de transição são muito complementares, então anticorpos desenvolvidos contra supostos estados de transição poderão apresentar actividade catalítica. Desde 1986, diversos grupos têm conseguido produzir tais anticorpos catalíticos. Um destes trabalhos utilizou o fosfonamidato da Fig 9(a), composto análogo ao suposto estado de transição que ocorre na hidrólise da amida na Fig. 9(b). Efectivamente, anticorpos contra o primeiro composto actuaram no segundo, com demonstrada especificidade. Em termos energéticos, a estabilização do estado de transição é perfeitamente aceitável. Por exemplo, com base na teoria dos estados de transição, para uma aceleração da ordem de 106 entre reacção não-catalizada e catalizada, é necessária uma redução de 34.2 kJ⋅mol-1 (a 25 ºC) na energia de activação. Ora, este valor equivale aproximadamente à energia de apenas duas pontes de hidrogénio. Assim, em algumas enzimas, a estabilização do estado de transição poderá, só por si, explicar grande parte do efeito catalítico. Conclusão Têm sido elucidados diversos factores físicos e químicos subjacentes à catálise enzimática. Nem todos estão sempre presentes, e o factor com maior impacto varia de caso para caso. Só o conhecimento detalhado do processo reaccional permite inferir sobre estes aspectos, revelando o “segredo” catalítico da enzima. Referências e outra Bibliografia R. H. Garret, C. M. Grisham (1999) Biochemistry, 2ª edição, Saunders College Publishing L. A. Moran, K. G. Scrimgeour, H. R. Horton, R. S. Ochs, J. D. Rawn (1994) Biochemistry, 2ª edição, Prentice-Hall, Inc. J. Kraut (1988) How do enzymes work?, Science 242, 533-540 A. Fersht (1985) Enzyme Structure and Mechanism, 2ª edição, W. H. Freeman and Co. Fig. 9 - (a) Composto utilizado para desenvolver anticorpos catalíticos para a reacção de hidrólise da amida em (b). A. Radzicka, R. Wolfenden (1995) A Proficient Enzyme, Science 267, 90-93 S. J. Benkovic (1992) Catalytic Antibodies, Annu. Rev. Biochem. 61, 29-54 Boletim de Biotecnologia 29