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opúsculo 24
— Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura — Luís Santiago Baptista
zaha hadid
na máquina
do espaço tempo
dafne editor a
opúsculo 24 * dafne editora, Por to, Julho 2010 *
* edição André Tavares * design M Granja *
d.l. 246357/06
i s s n 1 64 6 – 5 2 5 3
www.dafne.com.pt
zaha hadid na máquina do espaço tempo
Zaha Hadid é uma grande cineasta. Vê como uma câmara. Percebe a cidade em slow motion,
em pans, swoops e close-ups, em jump-cuts e narrative rhythms. E desenha o mundo à sua volta
extraindo os seus espaços inconscientes. Encontra o que está latente nas construções do nosso
mundo moderno e projecta-o em utopias. Audaciosamente explora, abranda e acelera os ritmos
do quotidiano e submete o meio ambiente à exposição cirúrgica da arquitectura como forma de
representação. Constrói a explosão do décimo de segundo.1
Em 1941, Sigfried Giedion publicava Space Time and Architecture, uma
compilação das suas palestras Charles Eliot Norton realizadas na
Universidade de Harvard entre 1938 e 1939, avançando com uma tese
fundamental sobre a emergência e desenvolvimento da arquitectura
moderna. Giedion não era uma personagem qualquer, era um historiador peculiar que não só analisava fenómenos muito recentes da
modernidade arquitectónica, suprimindo a distância temporal da avaliação histórica, como igualmente desempenhava uma função interventiva nessa mesma história, renunciando à neutralidade subjectiva
do juízo histórico. Analisando o tempo presente e assumindo um
papel activo nos factos, Giedion apresentava a tese do «crescimento de
uma nova tradição» de raiz moderna.
Tenho tentado estabelecer, tanto por argumentação como por evidência
objectiva, que apesar da aparente confusão existe efectivamente uma
unidade verdadeira, mesmo que oculta, uma síntese secreta na nossa
civilização actual. Perceber porque é que esta síntese não se tornou uma
realidade consciente e activa tem sido um dos meus principais objectivos.2
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opúsculo 24
Para Giedion, o projecto arquitectónico moderno apresentava um
novo programa estético que, unindo «métodos de pensar» e «métodos de sentir», «ciência» e «arte», respondia afirmativamente às alterações perceptivas e existenciais emergentes com a modernidade.3 Para
definir essa nova concepção moderna, convocou explicitamente as
pesquisas das vanguardas históricas, propondo uma síntese dos programas cubista e futurista que introduziam uma nova unidade espaciotemporal na linguagem da arte.4 Por um lado, a «investigação do espaço»
do cubismo rompia com a «perspectiva renascentista», através de uma
composição fragmentária dos «pontos de vista» sobre o objecto. Por
outro lado, a «investigação do movimento» do futurismo contrariava a
concepção «estática» da percepção da realidade, através da composição
sequencial dinâmica do objecto. Se, na primeira situação, temos uma
fragmentação do objecto como realidade material, na segunda temos
uma deformação do objecto como experiência dinâmica. Em ambas
as tendências, a investigação da percepção humana realizava-se através
da compreensão do mundo como fenómeno espacio-temporal, observável respectivamente na sobreposição dos pontos de vista num novo
complexo espacial temporalizado e na materialização do movimento
numa nova realidade temporal espacializada. Em suma, Giedion
entrevia um novo paradigma estético na confluência da espacialidade
multi-perspéctica cubista com a temporalidade dinâmica futurista,
encontrando, no campo da arquitectura, as suas primeiras manifestações convincentes nas obras de Walter Gropius, Le Corbusier, Mies
van der Rohe e Alvar Aalto.
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zaha hadid na máquina do espaço tempo
Uma «Nova Modernidade» de derivação suprematista
Zaha Hadid é uma arquitecta confiante nas esperanças abertas pela
modernidade arquitectónica. O seu fascínio pelo período heróico da
arquitectura moderna centra-se, acima de tudo, na vastidão dos objectivos e vontades presentes nessas pesquisas artísticas e arquitectónicas.
É, na verdade, o entusiasmo na capacidade transformadora que fundamenta o interesse de Hadid pelas vanguardas históricas:
…só existe uma via e essa está em seguir o caminho aberto pela experimentação dos primeiros Modernistas. Os seus esforços foram abortados
e os seus projectos não foram testados. A nossa tarefa não é recuperá-los
mas desenvolvê-los ainda mais. Esta tarefa de realização do verdadeiro
papel da arquitectura, não apenas esteticamente mas programaticamente, desvendará novos territórios.5
Mas Hadid não recupera indiscriminadamente esse legado moderno.
Pelo contrário, tenta perceber criticamente não só as suas falhas estratégicas mas, principalmente, as suas potencialidades inexploradas. De
facto, Hadid entende a modernidade arquitectónica como um fenómeno multifacetado, transcendendo a unificação institucionalizada pela
Bauhaus e pelos CIAM. As suas investigações sobre as vanguardas históricas permitem-lhe compreender as tensões internas e a pluralidade de
posições que estão na base da emergência e desenvolvimento do movimento moderno, para lá da pretendida unidade de pontos de vista e generalização de metodologias operativas. Se a arquitectura moderna tinha
caminhado no sentido da investigação de processos de racionalização,
tipificação e na ideia da reprodutibilidade dos modelos, então terá sido
esse o erro inerente ao seu fracasso prematuro. O que Hadid procura é
um vínculo diferenciado daquele que se encontra no desenvolvimento
da arquitectura moderna, retornando ao ponto de partida para constituir uma perspectiva alternativa, mais livre e aberta, purgada da sua
ingenuidade programática e unilateralidade estratégica. Neste sentido,
não se trata de uma recuperação nostálgica de um projecto falhado
mas da reactivação entusiasta de um programa incumprido.
No âmbito do projecto arquitectónico moderno, Zaha Hadid
investiga especificamente as vanguardas russas.6 A eleição dos movimentos artísticos e arquitectónicos russos do período revolucionário
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fundamenta essa vontade de reanimação desse magnetismo profético da modernidade arquitectónica, potenciado pela síntese entre a
necessidade ética de constituição de uma nova sociedade e a exigência estética de construção de um novo meio arquitectónico. Torna-se
significativo, neste contexto, o interesse de Hadid pelas investigações
plásticas do suprematismo de Kasimir Malevich, que se diferenciam das
dominantes abordagens conceptuais da abstracção europeia. Embora
os movimentos abstractos europeus tenham vivido na generalidade
dentro do mesmo âmbito programático, a realização sintética de uma
nova realidade plástica, o suprematismo orientava-se para uma relação
mediadora mais intuitiva entre sujeito e objecto, entre criador e obra.7
Distanciando-se da instrumentalidade da razão moderna, o artista
russo explorava o que denominava, na definição inaugural do suprematismo, de «razão intuitiva», procurando realizar uma síntese entre
racionalidade e sensibilidade. De certo modo, a universalidade da arte
suprematista encontra-se mais nas faculdades intuitivas do sujeito do
que nos processos de racionalização teórica sobre o objecto. Para Malevich, a razão como faculdade só o é em exercício, ou seja, é através da
experiência que a racionalidade se determina e o mundo se configura.
O programa estético delineado por Malevich parece assim encaixar
perfeitamente nas preocupações de Zaha Hadid na procura de uma
modernidade alternativa que, recusando o espartilho criativo da lógica
racionalizadora moderna, liberte o potencial criativo da subjectividade. O que Hadid encontra no suprematismo é a não neutralização do
papel da subjectividade na actividade criativa, ou seja, a possibilidade
de exploração de uma racionalidade atravessada pela intuição:
Creio que pertenço a uma tradição distinta, mais emocional, mais
intuitiva. E, por intuitiva não quero dizer instintiva. A intuição é um
somatório de racionalismo e experiência. Devemos ser capazes de operar
conjuntamente com a lógica e a intuição, simultaneamente.8
No limite, a arquitecta iraquiana habita esse espaço que medeia razão
e intuição, procurando evitar cair tanto num racionalismo instrumental como perder-se num empirismo subjectivizante. É, por isso, no
equilíbrio precário e instável entre racionalidade e sensibilidade, entre
vontade consciente e abertura ao inconsciente, entre a intersubjectividade desejada e a subjectividade irredutível, que Hadid se posiciona
disciplinarmente.
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zaha hadid na máquina do espaço tempo
O processo projectual como síntese dinâmica do espaço e do tempo
O trabalho da subjectividade na arquitectura de Zaha Hadid afirma-se
como uma intensificação da prática projectual, que se desenvolve através do investimento criativo na actividade corporal, gerando uma nova
relação com o horizonte da temporalidade. A experimentação de Hadid
explora um processo intuitivo de pensamento que conjuga a acção corporal e o labor manual com a temporalidade de aproximação progressiva ao projecto arquitectónico. O processo projectual não é puramente
conceptual mas fenomenologicamente perceptual. É neste sentido
que os seus projectos não procuram representar um objecto fechado
e finalizado, mas explorar um processo de investigação e emergência.
Torna-se determinante o facto de Hadid ter desenvolvido instrumentos
próprios de investigação projectual. As suas propostas exigiram meios
e técnicas personalizadas, visto que os instrumentos disciplinares tradicionais não conseguiam captar as suas intenções projectuais:
Desde o início que pensei a arquitectura de forma diferente. Sabia o que
queria fazer e o que tinha de desenhar, mas não podia fazê-lo de forma
convencional, porque com os métodos tradicionais não conseguia representá-lo. Os instrumentos tradicionais de representação da arquitectura
não me eram úteis. E foi assim que comecei a investigar e a procurar
uma nova forma de projectar, para tentar ver as coisas de um outro
ponto de vista.9
Toda a singularidade e complexidade da obra inicial da arquitecta tem
de ser procurada nesse espaço intersticial que liga um processo de
investigação projectual original a uma desafiante realidade espacial
construída.
As principais interpretações críticas da arquitectura de Zaha Hadid
têm investigado a relação entre os processos criativos e a obra construída. A ideia fundamental que ressalta dessas análises é o questionamento
da concepção convencional do projecto como mera representação
entre projecto e obra, através da assumpção do papel da experimentação das práticas projectuais: José Luis González Cobelo refere que
as representações da arquitecta não são uma mera mediação que translada a ideia para a construção mas um domínio de realidade próprio, uma
vez que a forma arquitectónica é inseparável da sua representação;10 Luis
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—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Pintura de implantação. © Zaha Hadid Architects—
Rojo de Castro salienta a temporalidade e reversibilidade entre projecto e obra através da convocação da experiência do tempo real que, não
podendo ser apreendida previamente, se afasta de um conhecimento sintético dos objectos;11 e Walter Nägeli realça a crítica das formas abstractas
e convencionais de representação clássica, das projecções ortogonais à
perspectiva, evidenciada na procura da arquitecta em incluir no processo projectual os processos de percepção, a sensação real, os pontos focais
do espaço ou o fluxo do tempo, tornando o espaço não homogéneo e distorcido.12 Em todas estas leituras existe uma consciência clara de que o
seu processo projectual não se dirige meramente a uma representação
prévia e abstracta de algo exterior, a obra construída, considera-se que
é, em si mesmo, uma forma de investigação que não reproduz de um
modo transparente uma potencial realidade material.13 Assim, o projecto pode configurar-se nesse espaço de confluência entre a percepção
de uma nova realidade e a própria experiência perceptiva. Mais do que
meios de representação, os seus elementos de projecto são verdadeiros
campos de experimentação.
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zaha hadid na máquina do espaço tempo
—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Pintura da fachada principal. © Zaha Hadid Architects—
Das práticas bidimensionais do desenho caligráfico e da pintura
cenográfica às práticas tridimensionais do baixo-relevo expressivo e
da maqueta conceptual, os instrumentos projectuais de Zaha Hadid
potenciam a contextualização radical do projecto num lugar específico
e expõem a qualidade espacial da experiência da obra futura. Por um
lado, as práticas projectuais de Hadid detêm funções abrangentes na
contextualização da intervenção arquitectónica, tanto realizando uma
leitura subjectiva do lugar como participando na configuração singular da nova proposta.14 Não se trata de uma exploração formalista do
objecto como entidade autónoma, mas do estabelecimento de uma
indissociabilidade entre o objecto emergente e a realidade existente. Em
algumas pinturas e maquetas da arquitecta pode captar-se esse estudo
paciente e minucioso das características morfológicas e topológicas do
local de intervenção, realizado através de um processo transformador
em que projecto e lugar se contaminam e hibridizam mutuamente.
Por outro lado, os seus processos criativos procuram capturar sensorialmente a atmosfera do projecto, numa aproximação sensível ao
espaço arquitectónico. Renunciando deliberadamente a uma concepção imitativa e ilustrativa do projecto, algumas pinturas, maquetas e
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baixos-relevos revelam uma forma intuitiva de exploração das características experienciais do objecto arquitectónico, compreendendo
a investigação expressiva da luz, da forma, do material e da textura.
Neste sentido, os seus elementos de projecto investigam as qualidades
do espaço arquitectónico que só posteriormente se constituirá em obra
arquitectónica concreta, com estruturas corpóreas e materiais tangíveis.15 Hadid liberta o projecto arquitectónico das convencionais restrições realistas, assumindo a abertura da actividade criativa que se realiza
através de um teste constante de possibilidades, que determina uma
aproximação mais livre e progressiva à materialidade da arquitectura.
Para conseguir realizar no projecto quer essa interpenetração entre
projecto e contexto, quer essa aproximação às qualidades sensoriais
do espaço arquitectónico, Zaha Hadid recorre significativamente aos
instrumentos metodológicos das vanguardas históricas, revitalizando
as pesquisas modernas sobre os mecanismos da percepção e as estratégias de temporalização do objecto. Observando essencialmente a
sua prática de pintura, pode-se vislumbrar essa vontade de exploração
simultânea dos referenciais do espaço e do tempo, patentes nas referidas pesquisas cubistas e futuristas. Por um lado, a influência cubista
pode ser encontrada no questionamento da visão monocular, através
da inclusão num mesmo painel de uma série de diferentes perspectivas,
muitas vezes sobrepostas, de um mesmo objecto com múltiplos referenciais geométricos. Neste caso, o desenvolvimento do processo criativo concretiza-se num plano de projecção de múltiplos pontos de vista
que constituem diferencialmente a unidade do projecto, apresentando
uma reconstituição fragmentária do objecto arquitectónico. Por outro
lado, a influência futurista está patente na tentativa de compreender o
objecto arquitectónico segundo uma perspectiva de continuidade dinâmica, marcada por uma sequência linear de pontos de vista sobre um
mesmo objecto. Nesta situação, a actividade projectual desenvolve-se
através da investigação do movimento como experiência contínua,
materializando uma reconstituição serial do objecto arquitectónico.
No limite, a arquitecta iraquiana materializa uma nova condição temporalizada do espaço arquitectónico, experimentando as estratégias de
dinamização da forma arquitectónica, que desestabilizam perceptivamente a sua tradicional autonomia, estabilidade e solidez.
10
—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Pintura da vista aérea. © Zaha Hadid Architects—
—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Detalhe da pintura da vista principal. © Zaha Hadid Architects—
zaha hadid na máquina do espaço tempo
A Estação de Bombeiros Vitra em Weil am Rhein (1991–93)
A obra inicial de Zaha Hadid explora intensamente o objecto arquitectónico, através da procura de uma síntese projectual dos horizontes
da espacialidade e temporalidade, reinterpretando as pesquisas espacio-temporais das vanguardas históricas. Foi na Estação de Bombeiros
Vitra que a arquitecta demonstrou, pela primeira vez, as potencialidades das suas investigações de dinamização contextual do objecto
arquitectónico, resultantes dos seus singulares métodos de projecto.
A grande liberdade dada pelo cliente, a abertura do programa funcional e o carácter de manifesto do edifício permitiram-lhe realizar uma
obra fundamental no panorama arquitectónico contemporâneo. Nesta
obra, Hadid associa de forma consistente as suas preocupações de activação contextual com as intenções de dinamização objectual, ou seja,
cria um conjunto estruturado de relações programáticas e contextuais
e de intenções estéticas e formais.
Desde logo, Zaha Hadid explora com intencionalidade a conexão
programática. O projecto responde à iminência da catástrofe inerente a
um quartel de bombeiros, materializando o dinamismo da expectativa
em forma arquitectónica, ou seja, todo o edifício é movimento congelado,
suspendendo a tensão do alerta, pronto a explodir em actividade a qualquer
momento.16 Neste âmbito, torna-se revelador que a arquitecta trabalhe
no edifício para a Vitra a conjugação das ideias interrelacionadas de
«projecção» e de «instante congelado». Em primeiro lugar desenvolve
a ideia de «projecção» que determina contextualmente a materialização de uma «paisagem artificial» dinamizada: existia a ideia de projecção. A projecção no desenho tornou-se muito importante, tornou-se a base de
todo o projecto. O projecto tornou-se espaço projectado.17 Em segundo lugar,
materializa formalmente a ideia estruturante de «projecção» através do
conceito objectual de «instante congelado»: estávamos atraídos pela ideia
de um espaço que fosse gerado através de projecções… O que é que se sente
num espaço em que parece que o movimento se congelou? Um espaço aparentemente dinâmico, concebido como uma projecção: um instante congelado.18 Por
um lado, os planos e volumes que compõem o edifício apresentam-se
como movimento contextual, através da captação objectual dos movimentos de «projecção» engendrados no local. Neste sentido, a estrutura
compositiva torna-se vectorial, resultado de um movimento fluído que
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atravessa o lugar de intervenção. Por outro lado, o movimento direccional da «projecção» concretiza-se formalmente através da impressão
momentânea do movimento no objecto arquitectónico. Esse «instante
congelado» não é mais do que a procura de captação do movimento na
forma arquitectónica através da ligeira deformação dos seus elementos
constituintes a partir da direccionalidade da «projecção» contextual.
Resumindo, se o edifício emerge da interpretação das tensões do
lugar, materializando a fluidez dos movimentos potenciais do território
envolvente, a sua formalização interioriza o movimento, expandindo
e contraindo o espaço, através da distorção do objecto e consequente
acentuação das propriedades dinâmicas da forma arquitectónica. Não
só as suas linhas compositivas atravessam o lugar, conectando o edifício
com a envolvente, também os seus planos e volumes se deformam dinamicamente, desestabilizando a imobilidade natural da arquitectura. Esta
distorção ténue da pureza cartesiana acentua perceptualmente a perspectiva, conferindo uma dinâmica aos volumes projectados através do
brusco congelamento do seu movimento. Longe de uma composição
baseada na arbitrariedade formal ou confusão perspéctica, o projecto
da Estação de Bombeiros é distintamente perceptível e legível, uma vez
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zaha hadid na máquina do espaço tempo
—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Baixo-relevo da vista posterior. © Zaha Hadid Architects—
que os processos de distorção dos elementos arquitectónicos não destroem ou inviabilizam a sua consistência estrutural. Por isso, os corpos
arquitectónicos podem expressar materialmente a sua condição contextualmente fundada e dinamicamente constituída. Hadid propõe uma
experiência da obra arquitectónica para além das orientações abstractas
da horizontalidade e verticalidade, conquistando, através da deformação perspéctica do objecto, uma dinâmica formal absolutamente singular. O que Hadid pretende não é a renúncia ao espaço perspéctico
ou aos modos de representação referenciais na apreensão do objecto,
mas a sua acentuação subtil que, distorcendo a visão monocular, revele
uma momentânea instabilidade formal, normalmente ocultada pelos
modos perceptivos tradicionais.19 Neste sentido, o trabalho formal da
arquitecta torna-se verdadeiramente fenomenológico, porque procura
desconstruir o funcionamento habitual dos nossos instrumentos perceptivos no próprio acto de percepção, ou seja, pretende captar a dinâmica formal que se manifesta através da desestabilização dos nossos
referenciais perceptivos habituais. É neste sentido que os poderosos
efeitos perceptivos destas estratégias projectuais se apresentam radicalmente como formas de temporalização do objecto arquitectónico.
15
—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Baixo-relevo da vista posterior. © Zaha Hadid Architects—
—Zaha Hadid, Estação de Bombeiros Vitra, Weil am Rhein, 1991–93:
Baixo-relevo da vista posterior. © Zaha Hadid Architects—
zaha hadid na máquina do espaço tempo
«Espaço, Tempo e Arquitectura»
É fundamental compreender que esta temporalização do objecto arquitectónico que Zaha Hadid procura, historicamente proposta pelos
cubistas e futuristas, revela essencialmente uma proximidade às bases fundadoras do programa estético suprematista de Malevich. Se a síntese do
espaço e do tempo exploradas pelos programas cubista e futurista são importantes para a investigação projectual da arquitecta, são as premissas do
projecto suprematista que mais se tornam determinantes para resolver a
especificidade do problema arquitectónico. Na verdade, o paradoxo da estabilização do movimento na forma arquitectónica, que a arquitecta pretende, já se apresentava como ideia central do suprematismo na tentativa
de síntese temporal entre dinamismo potencial e equilíbrio espacial. Por
isso, mais que a fragmentação do ponto de vista cubista e a configuração
da continuidade futurista, é a exploração intuitiva das potencialidades abstractamente dinâmicas da composição suprematista que interessa a Hadid
na sua formalização do evento arquitectónico. Tal como Fontana-Giusti
defende, na abordagem suprematista a forma e a formalização tornam-se centrais.20 E isto é algo que se revela com grande clareza na prática projectual
dos baixos-relevos. É nesse meio intersticial entre a bidimensionalidade
e a tridimensionalidade que acontece a emergência do objecto, no preciso momento em que as formas adquirem novas propriedades dinâmicas.
Esse momento é o ponto de charneira onde a fragmentação espacial e
sequencialidade temporal experimentadas no projecto convergem, transmutando-se na formalização unitária do objecto arquitectónico.
A abordagem de Hadid ao projecto arquitectónico é fundamentalmente de sensibilidade suprematista, procurando concretizar a manifestação contextual e formal do equilíbrio dinâmico entre os estáticos
elementos arquitectónicos. Se a forma arquitectónica permanece
naturalmente imóvel, o efeito perceptual na experiência é de um dinamismo impressionante, como se o contexto fosse uma realidade dinâmica, o objecto interiorizasse o movimento e o espaço se apresentasse
num suspenso equilíbrio momentâneo.
Assim se compreende que a arquitectura inicial de Zaha Hadid, com
o seu singular processo criativo, se pode apresentar na contemporaneidade como a mais surpreendente actualização do programa arquitectónico proposto por Sigfried Giedion.
17
notas
1 Aaron betsky, «Beyond 89 Degrees» in Zaha Hadid – The Complete Buildings and Projects,
London, Thames & Hudson, 1998, p. 13.
2 Sigfried giedion, «Foreword to the First Edition» in Space, Time and Architecture – The
Growth of a New Tradition, Cambridge-Massachusetts, Harvard University Press, 1997,
p. VI. [1.ª ed. 1940]
3 Giedion referiu, no prefácio à 4.ª edição de Space, Time and Architecture, a sua intenção
de unir «pensar» e «sentir», «ciência» e «arte»: Space, Time and Architecture estava preocupado com a separação humana contemporânea entre pensar e sentir—com a sua personalidade
dividida—e com o paralelismo inconsciente dos métodos utilizados na arte e na ciência. Sigfried giedion, «Foreword to the Thirteenth Printing (Fourth Edition)» in Space, Time
and Architecture..., op.cit., p. X. [1.ª ed. 1961]
4 Sigfried giedion, Space, Time and ..., op.cit., pp. 443–444.
5 Zaha hadid, «The Eighty-Nine Degrees» in Planetary Architecture Two, London, Architectural Association, 1983, s.p.
6 Hadid afirmou a abertura do programa das vanguardas russas: O mais apaixonante em
relação às vanguardas russas não está nos seus grafismos serem interessantes. Está no facto de
que as suas experiências nunca foram terminadas. Não houve conclusão. Foram na sua época os
mais aventureiros não apenas como pintores mas também como arquitectos. Nunca deixaram
de tentar ampliar os limites. Foram, na verdade, o meu ponto de partida. Cf. Zaha hadid,
«Alvin Boyarsky Interviews Zaha Hadid» in Planetary Architecture Two…op.cit., s.p.
7 As próprias palavras de Malevich em 1916 parecem fundamentar a possibilidade desse
outro projecto moderno: a arte não deve caminhar para a redução ou simplificação, mas
para a complexidade. Kasimir malevich, «From Cubism and Futurism to Suprematism»,
citado in Mark Rosenthal, Abstraction in the Twentieth Century – Total Risk, Freedom,
Discipline, New York, Guggenheim Museum, 1996, p. 34.
8 Zaha hadid, «Entrevista con Zaha Hadid» in El Croquis – Zaha Hadid, 1983/1991, n.º 52,
Madrid, 1992, p. 14.
9 Idem, p. 10.
10 Cf. Jose Luis gonzález cobelo, «El Angel en el Laberinto» in El Croquis – Zaha Hadid,
op.cit., p. 36.
11 Cf. Rojo Luis rojo de castro, «Formas de Indeterminación» in El Croquis – Zaha Hadid,
1992/1995, n.º 73, Madrid, 1995, p. 25.
12 Cf. Walter nägeli, «En Tiempos de Hastio – Observaciones sobre la Arquitectura de
Zaha Hadid» in El Croquis – Zaha Hadid, 1996/2001, nº 103, Madrid, 2001, p. 240.
13 Hadid afasta-se da concepção mimética dos elementos de desenvolvimento projectual:
Penso que num conjunto de desenhos podemos descobrir uma série de coisas que sem eles não
seria possível. Olhamos para o projecto de tantas formas diferentes que nos começa a revelar
outros aspectos. O desenho não trata simplesmente do produto final (…) Não se trata simplesmente de acabar com uma bela imagem, mas sobretudo através dessa actividade descobrirmos
como as coisas podem ser modificadas ou desenvolvidas. Cf. Hadid, «Alvin Boyarsky Interviews…», op.cit., s.p., tradução livre.
14 Schumacher defendeu que a «radical inovação» de Hadid se sustenta na autonomia da
exploração bi-dimensional do desenho e da pintura. Cf. Patrik schumacher, «Mechanisms of Radical Innovation» in Zaha Hadid – Architecture, Wien, MAK / Hatje Kantz
Verlag, 2003, p. 22.
15 Como Hadid refere em relação às práticas bidimensionais: Os meus desenhos não são o
edifício. São desenhos acerca do edifício. Não são ilustrações do produto final. Têm de ser entendidos como um texto. (…) o desenho é uma ferramenta para explorar ideias, não simplesmente
uma forma de ilustração. Zaha hadid, «Zaha M. Hadid» in Global Architecture – Zaha M.
Hadid, Document Extra, n.º 3, Tokyo, 1995, p. 17.
16 Zaha hadid, «Vitra Fire Station», in Zaha Hadid – The Complete..., op.cit., p. 64.
17 Hadid, «Zaha M. Hadid...», op.cit., p. 18.
18 Zaha hadid, «Conversación con Zaha Hadid» in El Croquis – Zaha Hadid, 1992/1995, nº
73, Madrid, 1995, pp. 8–9.
19 Hadid referiu explicitamente a base fenomenológica do seu trabalho: Mas para mim
trata-se do tipo de espaço que procuramos atingir através destas operações. Como nos posicionamos no espaço, como o percebemos e como nos influencia quando o percorremos ou como
te impulsiona através dele. A questão da leveza e do movimento acontecem simultaneamente,
conferindo uma energia particular ao edifício. Cf. Hadid, «Conversación...», op.cit., p. 8.
20 Fontana-Giusti referiu a centralidade da abordagem suprematista na obra de Hadid.
Cf. Gordana fontana-giusti, «A Forming Element» in Zaha Hadid: The Complete Works,
Volume Essays and References, London, Thames & Hudson, 2004, p. 29.
Este ensaio deriva das investigações no âmbito do meu doutoramento sobre desconstrução arquitectónica, tendo sido inicialmente pensado para uma conferência entretanto não realizada. Integra uma série informal de pequenos ensaios que tenho publicado em diversos âmbitos e suportes sobre arquitectos contemporâneos relacionados
com o tema (Rem Koolhaas, Peter Eisenman, Frank Gehry, Daniel Libeskind e agora
Zaha Hadid)
Luís Santiago Baptista (Lisboa, 1970), é arquitecto e crítico de arquitectura. Doutorando em História da Arte Contemporânea (fcsh-unl) e Mestre em Cultura Arquitectónica Contemporânea (fa-utl). Director da revista de arquitectura e arte arq/a.
Os seus interesses de investigação integram os campos do urbanismo, arquitectura,
design e arte, com especial incidência nas conexões entre a actividade criativa e as
condições culturais, intelectuais e produtivas contemporâneas.
i s s n 1 64 6 – 5 2 5 3
opúsculos
— Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura — José Capela
Pedro Gadanho
Godofredo Pereira
André Tavares 1 utilidade da arquitectura: 0+6 possibilidades
2 para que serve a arquitectura?
3 delírios de poder
4 as pernas não servem só para andar
Rui Ramos
5 elenco para uma arquitectura doméstica
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6 dupli —cidade e a flânerie contemporânea
Inês Moreira
7 petit cabanon
Susana Ventura
Guilherme Wisnik
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Pedro Fiori Arantes
João Soares
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Gonçalo M Tavares
Ana Vaz Milheiro
Bernardo Rodrigues
Miguel Marcelino
António Baptista Coelho
Pedro Bismarck
8 o ovo e a galinha
9 niemeyer: leveza não tectónica
10 a minha casa em montemor
11 o lugar da arquitectura num «planeta de favelas»
12 o suporte da moral difusa
13 739h/m2
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21 regresso ao passado
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até ao último quarto
23 tendenza, o som da confusão
Luís Santiago Baptista 24
zaha hadid na máquina do espaço tempo

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