Maurício Wrots - KBR Editora Digital

Transcrição

Maurício Wrots - KBR Editora Digital
Moishele e a roseira sem flor
Maurício Wrots
Moishele e a roseira sem flor
1ª Edição
POD
KBR
Petrópolis
2015
Coordenação editorial Noga Sklar
Editoração KBR
Capa KBR baseada em foto de Larence Shustak, 1960
(detalhe)
Copyright © 2014 Maurício Wrots
Todos os direitos reservados ao autor.
ISBN: 978-85-8180-347-0
KBR Editora Digital Ltda.
www.kbrdigital.com.br
www.facebook.com/kbrdigital
[email protected]
55|21|3942.4440
FIC027000 - Romance
Mauricio Wrots vive no Rio de Janeiro. Começou sua carreira
de jornalista no Pasquim, jornal de humor que se destacou criticando
o regime militar. Na TV Globo foi redator do programa “Satiricom”,
também de caráter humorístico. Na TV Educativa do Rio de Janeiro
criou e coordenou o programa “Tribunal da História”. É autor do livro
de contos e crônicas A relatividade da infidelidade. Com Moishele e a
roseira sem flor, seu primeiro romance publicado pela KBR, vai ao encontro de suas raízes judaicas.
Email do autor: [email protected]
Sumário
1. Salvo das águas • 9
2. Mendel e Faiga • 13
3. O artifício de Mendel • 25
4. Mendel e Moishele • 37
5. A viagem • 67
6. Polônia • 79
7. O dibuk • 89
8. O colégio de Moishele • 101
9. O confronto • 109
10. Vicentina e o delegado • 123
11. Um novo olhar • 127
12. Mendel apaixonado • 129
13. O dia “D” • 143
14. Viúvo • 165
15. Segundas núpcias • 173
16. Haolam abá • 185
Pequeno glossário iídiche • 189
|9|
1. Salvo das águas
Corria o ano de 1938, quinto da Era Hitler. Meados de maio.
A negra Vicentina, completamente alheia à longínqua erupção
nazista, que em breve iria indiretamente modificar sua vida, desabafava com o pai de santo.
Sempre fora empregada doméstica, mas depois que “pegou barriga” foi mandada embora, e encostou-se no barraco da
Zenilda até poder trabalhar novamente.
Foi ficando. Seu menino já ia completar um ano, e Tião,
companheiro da amiga, começou a pressionar: já tinham feito
caridade demais, era hora dela ir embora, tinha de se virar, arranjar logo outro emprego.
Uma criança no colo, porém, reduzia drasticamente suas
chances. Um dos horrores das patroas é filho de empregada, tanto os que chegam com a mãe como os que aparecem depois; choradeira, xixi e cocô roubam a atenção do serviço e perturbam o
sossego. Vicentina chegou a ter inveja da avó, que tinha casa e
comida na escravidão, há cinquenta anos. Mas não teve jeito.
Primeiro, procurou por perto. Nada. Nem mesmo numa
casa onde havia a placa “Precisa-se de Empregada”.
“Não! Com filho, não!”, era o que ouvia em todas as portas.
Sem um teto, com uma trouxa de roupas nas costas e o
| 11 |
Maurício Wrots
pequeno dependurado, o que poderia fazer? Não ia “jogar ele
fora”, como muita gente deu ideia; nem o deixaria num desses
asilos, que são quase a mesma coisa.
O pai de santo escutava. Mas escutava mesmo? Parecia
adormecido.
Finalmente, abriu os olhos avermelhados pela fumaça
do charuto e falou:
— Minha fia, ocê deve di procurá uma casa que tem uma
rozera sem frô no jardim; e leva o mininu... leva o mininu... ocê
tem vidença! — apenas isso.
Ela tentou arrancar mais alguma coisa. Não deu, ele já
tinha desfeito o contato com a entidade, só ficou aquela curta mensagem, “procurar uma casa que tivesse uma roseira sem
flor”. Mas onde? O que era uma roseira, Vicentina sabia, “aquela planta que dá flores bonitas e tem muito espinho”. Esquisito
é que ele mandou levar o menino comigo, falou isso duas vezes,
pensou. Ela estranhou, mas não ia duvidar do preto-velho que
falava pela boca do pai de santo.
Foi aconselhada a procurar na Tijuca ou no Grajaú, bairros de gente rica que morava em casa de dois andares, famílias
que estavam sempre precisando de cozinheira, faxineira, para
todo o serviço. Não sendo bem-sucedida na Tijuca, onde não
encontrou a roseira sem flor, no dia seguinte pegou o bonde
para o Grajaú, levando a marmita dela e a mamadeira do filho.
De quando em quando se sentava no meio-fio e lanchavam. Em seguida, saía perguntando de casa em casa: “Tá
precisando de empregada?” A resposta não variava, um olhar
enviesado de cima para baixo no colo dela, uma cara azeda e
um “não!”, às vezes sequer verbalizado. Tinha percorrido inutilmente tantas ruas naquele dia que não sabia se ia voltar lá.
Cansada, foi desanimando de procurar a tal “roseira sem flor”.
Até apareceu gente pedindo o menino. “Não dou! De repente nunca mais vou ver ele”. Dava para suportar um pouco
mais a carranca do Tião. Juntou forças e prosseguiu, teimosa, na
caminhada que deveria levá-la à roseira misteriosa.
Foi um grande e belo jardim que mais lhe chamou a aten| 12 |
Moishele e a roseira sem flor
ção, havia tantas roseiras... mas todas exuberantemente floridas.
Nessa casa nem devia perder tempo, mas as rosas eram tão bonitas... brancas, amarelas, vermelhas... Ficou fascinada. Quem
dera trabalhar ali, regar todo dia aquelas maravilhas. Pena... não
foi dessa casa que o preto-velho falou, tem que ter uma “rozera
sem frô”. Mas o que custava bater, só por bater? Tinha de se
apressar, começava a chover. E bateu, bateu muitas palmas, mas
a casa permaneceu muda.
Vicentina não se surpreendeu. Humilde, não se iludia,
estava querendo demais, trabalhar num lugar tão bonito, com
aquelas paredes brancas e as grandes janelas azuis... Não era
para ela. Conformou-se com a silenciosa rejeição, não sabia que
por uma fresta da janela alguém a observava, e fazia jogo de
paciência para que a importuna fosse logo embora.
Faiga, a moradora, fazia sempre assim, deixava as criaturas insistirem até cansar. Sabia que vinham atrás de emprego, reconhecia logo: eram sempre negras, pobres, maltrapilhas.
Aquela então, com criança no colo...
Caíam os primeiros pingos, cada vez mais fortes. Numa
rua residencial, sem marquise, sem abrigo, um ralo arvoredo,
não havia como se proteger. Se corresse não ia dar tempo, o
menino ia se molhar todo. Começou então a chamar, agora pedindo socorro:
— Moça! Moça!
A chuva apertava, ela gritou “pelo amor de Deus!”, percebeu que tinha gente na casa. Se não viesse ninguém, ia invadir, aquela ou outra qualquer, entrou em desespero, não podia
deixar o filho se encharcar, pegar uma doença brava.
Súbito, porém, os grossos pingos pararam de cair em sua
cabeça. Vicentina ergueu os olhos e viu que sobre ela pairava
protetoramente um grande guarda-chuva. Um senhor alto, magro, muito claro, com um gorrinho preto no cocuruto, a olhava
e sorria. Em seguida, abriu o portão de ferro e os fez entrar. Ela
fitou os olhos dele e sentiu que podia confiar naquele homem;
e pensou, sem imaginar a razão, que a casa podia ser aquela.
Mas... e a roseira sem flor? Ali estavam todas tão floridas! Pôs
| 13 |
Maurício Wrots
dúvida: Será que o pai de santo num se enganou? Foi mesmo uma
‘rozera sem frô’ que ele ouviu da entidade?
O homem de kipá1 era Mendel Rosenstrauch, judeu de
Ostow, minúscula cidade da Polônia.
O olhar apreensivo de Faiga os acompanhou impotente até o fim da escadaria. Mendel acomodou Vicentina num
sofá e pediu à esposa, que logo apareceu aparentando surpresa,
alguma coisa para eles comerem. Faiga conhecia esses surtos
de generosidade do marido, e estava certa de que, assim que a
chuva passasse, a infeliz iria embora. Trouxe uma lauta refeição,
amealhou tudo que tinha na geladeira: leite, bolo, suco de laranja, queijo, e até uma sobra do guefilte fish.2 Também começou a
preparar um embrulho com roupa e comida para a pobre levar.
Achou que assim ele daria por bem cumprida sua tsedaká, dever
de auxiliar os necessitados.
Mendel deixou Vicentina à vontade. Nada perguntava,
e, silenciosamente, ajudava com os pratinhos e talheres. Faiga
também, mas para que terminassem logo. A atenção do marido
com terceiros a incomodava, e ao vê-lo dando de comer ao filho
da negra entrou em pânico.
Tinha seus motivos.
1 Solidéu religioso judaico.
2 Bolinho de peixe moído.
| 14 |

Documentos relacionados