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PE. JOÃO PAULO DE M. DANTAS série Deus Uno e Trino Uma introdução à DEUS UNO E TRINO teologia trinitária UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA TRINITÁRIA Prefácio de José Luiz Gomes de Vasconcelos Bispo Auxiliar de Fortaleza-CE Pe. João PaUlo de m. dantas Deus uno e Trino Uma introdUção à teologia trinitária Coordenação Geral Filipe Cabral Coordenação Editorial Carolina Fernandes Diagramação e Capa Kelly Cristina Revisão Eunice dos Santos Sousa Silvestre Imagem Capa Ícone da Santíssima Trindade – A. Rublev Imprimatur D. José Antonio Aparecido Tosi Marques Fortaleza, 2013 E d i çõ e s Sh alo m Estrada de Aquiraz – Lagoa do Junco CEP: 61.700-000 – Aquiraz/CE | Tel.: (85) 3308.7405 www.edicoesshalom.com.br | [email protected] E m co e d i ção co m Eccl e s i ae Rua Ângelo Vicentim, 70 CEP: 13084-060 - Campinas/SP | Telefone: 19-3249-0580 [email protected] Dantas, João Paulo de M. Deus Uno e Trino: Uma Introdução à Teologia Trinitária / João Paulo de M. Dantas – 1.ed. – Aquiraz, CE : Edições Shalom, 2013. ISBN: 978-85-7784-040-3 1. Trindade 2. Cristianismo 3. Catolicismo. I. Padre João Paulo De M. Dantas II.Título. CDD – 231 – 282 Índices para catálogo sistemático: 1. Trindade - 231 2. Criacionismo - 230 3. Catolicismo - 282 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Índice Prefácio.....................................................................................9 Introdução.............................................................................. 13 Capítulo 1 Introdução Geral ao Tratado da Trindade............................................15 1.1– A relação entre a Fé, o conhecimento e a experiência no itinerário de Santo Agostinho (De Trinitate).................................................. 19 1.2 – A Importância do Tratado da Trindade..................................... 21 1.3– Estrutura do Tratado....................................................................... 25 1.4– A Dei Verbum e a Revelação em Cristo....................................... 27 1.5– Trindade Imanente e Trindade Econômica................................ 29 1.6– Método do Tratado da Trindade.................................................. 33 Capítulo 2 Fundamentos Bíblicos do Tratado da Trindade.................................. 35 2.1– Antigo Testamento........................................................................... 38 2.1.1– A unicidade de Deus..................................................................... 38 2.1.2– A Revelação do Nome de Deus.................................................. 41 2.1.3– Sinais da Revelação Trinitária no AT?...................................... 49 3– A Sabedoria de Deus (“hokma” em hebraico, “sofía” em grego)............53 2.2– Novo Testamento ............................................................................ 60 2.2.1– Sinóticos.......................................................................................... 61 2.2.2– Escritos joaninos........................................................................... 69 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária 2.2.3– Escritos paulinos........................................................................... 78 2.2.4– Atos dos Apóstolos....................................................................... 86 2.2.5– A Carta aos Hebreus.................................................................... 93 Adendo 1– O Pai como origem de Jesus e como princípio da salvação................................................................................................... 96 Adendo 2 – O Espírito Santo no AT................................................... 101 Capítulo 3 Evolução Histórica da Doutrina Trinitária........................................ 105 3.1– Antes de Niceia................................................................................ 110 3.2– As primeiras heresias antitrinitárias........................................... 118 3.2.1– O monarquianismo..................................................................... 118 3.2.2– O dualismo gnóstico.................................................................. 125 3.3– O subordinacionismo ontológico de Ário e a resposta do Concilio de Niceia..............................................................................129 3.4– A resposta do Concílio de Constantinopla (381) aos Pneumatômacos....................................................................................... 135 3.4.1– A divindade do Espírito nos padres Capadócios...................136 3.4.2– A resposta do magistério............................................................138 3.5– O ensinamento de Agostinho (De Trinitate) ..........................143 3.5.1– O conceito de missão.................................................................. 145 3.5.2– A doutrina sobre as relações......................................................146 3.5.3– Os nomes próprios das três pessoas......................................... 150 3.5.4– A “doutrina psicológica” da Trindade......................................151 3.5.5– Breve avaliação da doutrina de Agostinho em relação à teologia grega e à escolástica ........................................................................... 153 3.6– Oriente e Ocidente: a questão teológica do “Filioque”........... 156 3.7– Idade Média..................................................................................... 171 3.8– Santo Tomás de Aquino................................................................ 174 Índice 3.8.1– Processões do Filho e do Espírito............................................. 176 3.8.2– A conexão entre “pessoa” e “relação subsistente”.................. 176 3.8.3– As missões trinitárias e o empenho soteriológico................. 179 3.8.4– Noções ou propriedades............................................................ 181 3.8.5– Apropriações................................................................................ 182 3.9– Indicações do Magistério sobre o mistério de Deus, do Concílio de Lyon (1274) até a trilogia trinitária de João Paulo II e o Catecismo da Igreja Católica................................................................. 186 Capítulo 4 A Trindade na Teologia Contemporânea........................................... 215 4.1– Paul Tilich ....................................................................................... 217 4.2– K. Barth............................................................................................ 219 4.3– Jürgen Moltmann...........................................................................220 4.4– V. Lossky..........................................................................................222 4.5– S. Bulgakov......................................................................................228 4.6– Karl Rahner..................................................................................... 231 4.7– Hans Urs von Balthasar.................................................................236 4.8– J. Ratzinger......................................................................................239 Breve Conclusão...................................................................245 Bibliografia ..........................................................................249 Prefácio S em renunciar jamais sua fé monoteísta, sem renunciar em nada a herança da fé do Povo de Israel, o shemá: “Ouve, ó Israel, Yahweh é o nosso Deus, Yahweh é único” (Dt 6,4), o cristianismo se distingue desde o início dos judeus e de outros crentes monoteístas, por admitirem seus fiéis batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Os primeiros cristãos sentiram-se questionados em primeiro lugar pelo judaísmo que os acusavam de trideístas e de romper a ortodoxia com o grande dogma do Monoteísmo. O cristianismo nascente confrontou-se logo de imediato com a fascinante e persuasiva filosofia helênica que, embora mergulhada numa sociedade politeísta, tendia para um monoteísmo transcendente (em alguns momentos, panteísta) e que questionava uma visão considerada antropomórfica do Deus pregado pelos cristãos e judeus. Os cristãos, desde cedo, sentiram-se impulsionados a desenvolver uma reflexão teológica trinitária. Essa reflexão foi alvo de estudo dos primeiros teólogos do cristianismo, os Padres da Igreja, que, fiéis à Revelação neotestamentária, com sabedoria traduziram para a linguagem de sua época mistério tão profundo, culminando com as declarações dogmáticas dos quatro primeiros Concílios Ecumênicos da história da Igreja, a saber, Niceia em 325, Constantinopla I em 381, Éfeso em 431, e Calcedônia em 451, que são as bases de toda a teologia trinitária católica e ortodoxa para todos os tempos. Agostinho de Hipona (+430), Anselmo de Cantuária (+1109), Tomás de Aquino (+1274) se firmam entre os maiores expoentes da Antiguidade Cristã e da Idade Média a se debruçarem sobre o fascinante e inesgotável mistério trinitário. 9 Também o Magistério da Igreja, uma vez constituído, a partir de Papas e Concílios produz rico conteúdo que não pode ser ignorado na história da teologia. Nos tempos hodiernos a teologia trinitária atrai também grandes teólogos não católicos como Paul Tilich (+1965), o luterano Jürgen Moltmann (nascido em 1926), entre os mais importantes. Também teólogos ortodoxos como S. Bulgakov (+1944) e finalmente grandes vultos da teologia católica contemporânea como Karl Rahner e J. Ratzinger. Tudo isto, com didática e maestria, nos é apresentado neste Manual de Teologia Trinitária escrito pelo Pe. João Paulo de Mendonça Dantas. É fruto de sua dedicação como professor de teologia trinitária no Curso de Teologia da Faculdade Católica de Fortaleza, Ceará, e é sem dúvida fruto de sua contemplação e oração perante o Deus vivo. A preocupação do Pe. João Paulo é oferecer em língua portuguesa uma síntese da doutrina bíblica, teológica e magisterial da teologia trinitária aos seus alunos e leitores. Ao citar logo na sua Introdução o decreto conciliar Optatam Totius o autor revela sua preocupação com uma formação sólida dos futuros sacerdotes que são chamados nos tempos de hoje a transmitir com fidelidade a riqueza do depositum fidei. Isto nos alegra muitíssimo. Como é bom encontrarmos padres interessados com a formação dos futuros sacerdotes! Estamos vivenciando em comunhão com toda a Igreja o Ano da Fé e como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica “O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã”1. Como nos exorta o Santo Padre Bento XVI no Porta Fidei, “o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus”2 . 1 C.I.C. n. 234. 2 Porta Fidei 10 10 Tratar do tema sobre o Deus Uno e Trino nos tempos hodiernos não é tarefa ociosa, pelo contrário é oportuno e necessário. Recentemente temos sentido ferrenhas e inovadoras críticas ao monoteísmo. Há quem veja no monoteísmo uma “base ideológica para o autoritarismo e a centralização, aniquilador do pluralismo e da diversidade”.3 Em recente discurso para a Comissão Teológica Internacional o Santo Padre o Papa Bento XVI nos exortava que “em fecundo diálogo com a filosofia, a teologia pode ajudar os fiéis a tomar consciência e a testemunhar que o monoteísmo trinitário nos mostra a verdadeira Face de Deus, e este monoteísmo não é fonte de violência, mas força de paz pessoal e universal” e que “no mistério trinitário ilumina-se inclusive a fraternidade entre os homens”4. Cremos que o mistério trinitário é o verdadeiro futuro do ser humano, só o Deus Uno e Trino pode assegurar ao homem um plano de vida sem limites, porque capaz de superar até a morte. Diz com sabedoria Santo Agostinho: “Deus é tão inexaurível que quando encontrado ainda falta tudo para encontra-Lo!” Quanto mais profundo for o mergulho na imensidão das águas do mar, maior será a descoberta e o encantamento. Assim também deve ser em relação à Trindade, da mesma forma, quanto mais profundo for nosso mergulho nas delícias imensuráveis do Mistério da Trindade Santa, maior será nosso encantamento diante deste amor que nos envolve e dá sentido à nossa vida. + José Luiz Gomes de Vasconcelos Bispo Auxiliar de Fortaleza-CE 3 Cf. Escritos de Felix Wilfred é professor na Universidade de Madras, em Chenai, na Índia. Escreve frequentemente artigos para revistas de âmbito nacional e internacional, entre os quais citamos Pro Mundi Vita (da Bélgica), Pro Dialogo (da Itália), Selecciones de Teología (da Espanha), Communio. Também contribui com seus artigos para a New Catholic Encyclopedia, para Lexikon fuer Theologie und Kirche e para o Cambridge Dictionary of Theology. Ele é presidente do Comitê Internacional da revista Concilium. 4 Discurso do papa Bento XVI á Pontifícia Comissão Teológica Internacional naSexta-feira, 2 de Dezembro de 2011 11 Introdução S anto Agostinho escreve que “por certo nenhuma outra questão existe que ofereça mais risco de erros, mais trabalho na investigação e mais fruto na descoberta”5 do que a doutrina da Trindade, que é Pai, Filho e Espírito Santo. Iluminado por estas palavras do Doutor da Graça, e animados pela necessidade real de oferecer em língua portuguesa uma síntese da doutrina bíblica, teológica e magisterial da teologia trinitária, decidimos empreender uma pesquisa que nos levou à apresentação deste pequeno manual. Como em nossas obras precedentes, as palavras do decreto conciliar Optatam Totius (Documento sobre a formação sacerdotal) n. 16 nos ofereceram o caminho seguro para a nossa pesquisa e a disposição do conteúdo de nosso livro. “A teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se proponham em primeiro lugar. Exponha-se aos alunos o contributo dos Padres da Igreja oriental e ocidental para a Interpretação e transmissão fiel de cada uma das verdades da Revelação, bem como a história posterior do Dogma, tendo em conta a sua relação com a história geral da Igreja. Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação de forma perfeita, aprendam a penetrá-los mais profundamente pela especulação, tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre eles. Aprendam a vê-los presentes e operantes nas acções litúrgicas e em toda a vida da Igreja. Saibam buscar, à luz da Revelação, a solução dos 5 De Trinitate I, 3, 5. 13 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável das coisas humanas e anunciá-las de modo conveniente aos homens seus contemporâneos”. Concluo esta breve introdução citando e fazendo minhas as palavras de Santo Agostinho em sua obra magistral De Trinitate: “A lei de Cristo, com delicadíssima autoridade, isto é, a caridade, admoesta-me e ordena-me que, quando os homens julgam que em meus livros defendi algum erro que não defendi, se o suposto erro agradar a esse e desagradar àquele, que eu prefira ser repreendido pelo censor da suposta falsidade a ser louvado por um adulador. Pois, embora seja criticado pelo primeiro sem razão, o erro é censurado; no entanto, nem eu serei louvado com razão pelo adulador – pois me atribui uma afirmação contrária à verdade -, nem a própria afirmação será elogiada com razão, pois ofende à verdade.6 Em nome do Senhor, pois, demos início à obra que nos propusemos empreender” . Acolheremos de coração aberto eventuais correções e sugestões. Que este livro e seus frutos sirvam ad maiorem Dei gloriam inque hominum salutem. 6 De Trinitate I, 3, 6. 14 Capítulo 1 introdUção geral ao tratado da trindade O mistério da Santíssima Trindade é “a substância do Novo Testamento”, recordava o Papa Leão XIII, na sua encíclica Divinum illud Munus, sobre o Espírito Santo, em 1897. Segundo G. Emery, a Trindade não é apenas um tema de meditação entre outros, mas ela constitui o coração da fé cristã: “afirmar que a Trindade é ‘a substância do Novo Testamento’, significa reconhecer que a Trindade encontra-se no centro do Evangelho, que ela é essencial, que ela constitui o próprio objeto da fé, da esperança e da caridade7. O Catecismo da Igreja Católica explica a importância do mistério trinitário, usando as seguintes palavras: “O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. É o mistério de Deus em si mesmo. E, portanto, a fonte de todos os outros mistérios da fé e a luz que os ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na ‘hierarquia das verdades da fé’. ‘Toda a história da salvação não é senão a história do caminho e dos meios pelos quais o Deus verdadeiro e único, Pai, Filho e Espírito Santo, Se revela, reconcilia consigo e Se une aos homens que se afastam do pecado’”.8 No âmbito do “ordo” da Teologia sistemática, cada um dos tratados de teologia não deve ser entendido como um percurso teológico 7 Cf. G. EMERY, La Trinité. Introduction théologique à la doctrine catholique sur Dieu Trinité, Paris 2009, p. 9. 8 Catecismo da Igreja Católica n. 234. 17 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária paralelo aos demais, como se fosse independente dos outros tratados. Provenientes do único mistério de Cristo, cada tratado enfoca e faz emergir um aspecto desse mistério. Eles não são autônomos: ao contrário, são reciprocamente correlacionados. Um leva ao outro, ao msmo tempo que um é ajudado e sustentado pelos outros. Cada tratado pode ser comparado com um pedaço de um grande e maravilhoso mosaico, que nós podemos chamar de Mistério revelado9. O prof. I. Biffi propõe a seguinte estruturação dos Tratados da Teologia sistemática10: 1– O primeiro tratado sistemático seria o da Teologia Fundamental, que reflete sobre a condição de possibilidade e de inteligibilidade do mistério cristão; 2– O tratado sobre a Trindade é revelado por Jesus Cristo, mas ao mesmo tempo está na origem do Mistério de Cristo; 3– O tratado sobre Jesus Cristo e seus mistérios é fonte da Revelação do mistério trinitário, mas ao mesmo tempo não pode ser compreendido sem a luz do próprio mistério trinitário. 4– Na Cristologia, encontra-se já, de um modo implícito, o tratado de antropologia teológica: “Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação”11. 5– Da Cristologia também “jorra” o tratado sobre os Sacramentos, que são os sinais sensíveis e eficazes do primado de Cristo na história. 6– Do mesmo modo, a Eclesiologia também provém diretamente da Cristologia. A Igreja é o corpo de Cristo, que reúne, animada pelo Espírito Santo, a porção da humanidade que já foi glorificada (Igreja triunfante) e a porção que caminha para a glorificação (Igreja padecente e Igreja peregrina). 7– Resta o tratado escatológico, que estuda o cumprimento definitivo da vida cristã. Na verdade, este Tratado já se realiza em Cristo 9 Cf. I. BIFFI, La Sapienza che viene dall’alto, Milano 2007, p. 71. 10 Cf. BIFFI, La Sapienza che viene dall’alto,pp. 72-74. 11 Gaudium et Spes n. 22. 18 Introdução Geral ao Tratado da Trindade ressuscitado, em Maria assunta ao céu, nos anjos e nos santos, e em nós que, de modo incoativo, somos “salvos pela esperança”. Juntos, os tratados colocam em evidência a “multiforme sabedoria de Deus, segundo o projeto eterno que [Deus] realizou em Jesus Cristo, nosso Senhor” (Ef 3,10-11). 1.1– A relação entre a Fé, o conhecimento e a experiência no itinerário de Santo Agostinho (De Trinitate) “Desejei ver com o intelecto aquilo que cri” (desideravi intellectu videre quod credidi, De Trinitate XV, 28,51). O método de Agostinho na sua obra De Trinitate pode nos ajudar a compreender o itinerário que deve ser seguido no estudo do Tratado da Trindade. Durante quase vinte anos (tempo necessário para que ele escrevesse o seu tratado sobre a Trindade), Agostinho percorre um itinerário marcado por três momentos que se interpenetram, e que deixam entrever uma continuidade lógica entre eles12 . a) Regula fidei: parte-se do seguro, da verdade na qual a Igreja Católica crê, a verdade que ela recebeu pela revelação, verdade articulada e condensada no Símbolo de Fé (Por exemplo: Credo Niceno-Constantinopolitano), verdade que ela vive e celebra, verdade que ela anuncia ao mundo. Essa verdade pode ser resumida do seguinte modo: Deus é Uno e Trino: Pai, Filho e Espírito Santo. b) Intelligentia fidei: na medida do possível, a inteligência iluminada pela fé (Lumen fidei), busca compreender melhor a verdade crida. Recordemos o episódio narrado pela tradição hagiográfica, no qual Agostinho encontrava-se à beira do mar, refletia sobre a Trindade, quando um menino apareceu e depois de ter cavado um pequeno buraco na areia da praia, corria para o mar e voltava 12 Cf. P. CODA, Dalla Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, Roma 2011, p. 11. 19 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária para o buraco, trazendo sempre um pouco de água. O garoto desejava trazer para o pequeno buraco toda a água do oceano. Santo Agostinho compreendeu, então, que só o Espírito Santo poderia nos ajudar na impossível tarefa de acolher em nós o mistério infinito do Deus Uno e Trino. c) Experientia fidei: para Agostinho, não basta “ver”: é preciso “tocar”, experimentar (vemos isso, especialmente a partir do livro VIII do tratado). Deus é Amor (1 Jo 4,16); sendo assim, o caminho para experimentar Deus é o caminho do “ágape”13. “Se Deus é Amor, por que caminhar e correr às alturas dos céus ou às profundezas da terra à procura daquele que está junto de nós, se quisermos estar junto dele?”14. Amar a Deus com inteligência, bem como amar o próximo, só é possível pela ação do Espírito Santo; só Ele pode nos fazer reconhecer Jesus como Senhor (1 Cor 12,3) e o Pai, como o “nosso Pai” ou nosso “Papai” (Gal 4,6). A experiência com o Espírito me capacita a amar Jesus Cristo e o Pai mas, ao mesmo tempo, devemos recordar que o Espírito foi efuso (derramado) pelo Pai e pelo Filho. Agostinho recorda que a via caritatis passa obrigatoriamente pelo amor fraterno, vivido na sua radicalidade evangélica15. Uma frase de Santo Irineu pode nos iluminar a compreender melhor o ensinamento de Agostinho: “Sem o Espírito não é possível ver o Verbo de Deus; sem o Filho, não se pode ter acesso ao Pai: pois o conhecimento do Pai e do Filho acontece através do Espírito Santo, doado pelo Filho, a quem e como o Pai deseja”16. Para concluirmos este ponto de nossa pesquisa, vejamos o que nos dizem dois teólogos contemporâneos renomados no âmbito da 13 BENTO XVI, Encíclica Deus Caritas est, São Paulo 2005, p. 5: “‘Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele’(1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: ‘Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem’”. 14 De Trinitate VIII, 7,11. 15 Cf. De Trinitate VIII, 7, 10. 16 Irineu de Lyon, Epideixis 7. 20 Introdução Geral ao Tratado da Trindade teologia trinitária: a) P. Coda: “O conhecimento de Deus Trindade é, então, na sua essência, um evento trinitário, isto é, uma participação real à vida da Trindade”17; b) G. Emery: “A teologia trinitária propõe um exercício de sabedoria contemplativa e um trabalho de purificação da inteligência, para que esta possa se aproximar do mistério de Deus. Esta purificação da inteligência se baseia sobre o acolhimento da revelação de Deus pela Fé (é a “fé que busca a inteligência”). Ela é inseparável da purificação do coração, que acontece pela oração comunitária e pessoal”18. 1.2 – A importância do Tratado da Trindade Ao estudarmos o Tratado do Deus Uno e Trino, estudamos o coração da originalidade da fé cristã. O cristianismo se caracteriza por ser um monoteísmo trinitário. O elemento trinitário distingue o cristianismo das outras duas grandes religiões monoteístas: o judaísmo e o islamismo. Catecismo da Igreja Católica n. 261: “O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. Só Deus no-lo pode dar a conhecer, revelando-se como Pai, Filho e Espírito Santo”19. No monoteísmo trinitário cristão existem duas afirmações que são inseparáveis: 1– Deus é único e uno (Esta verdade veterotestamentária se encontra de modo exemplar no Shemá Israel, Dt 6). Esta afirmação teológica é aceita pelo judaísmo e pelos islamismo; 2– O Deus único é Pai, Filho e Espírito Santo (3 pessoas em um só Deus). Esta afirmação é uma exclusividade do cristianismo. O conceito de unicidade aponta para o fato de que Deus é um só (único), não existem outros deuses, enquanto a noção de unidade 17 Coda, Dalla Trinità, p. 15. 18 Emery, La Trinité. Introduction théologique à la doctrine catholique sur Dieu Trinité, p. 11. 19 Catecismo da Igreja Católica N. 261. 21 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária (Deus é uno) descreve uma característica essencial da natureza divina: em Deus não há divisões, Deus possui uma essência simples, indivisa. Para aprofundar20: Não se pode falar de um autêntico monoteísmo que preceda o judaísmo (monoteísmo revelado). A história das religiões propõe um esquema de evolução histórica, no qual o monoteísmo é visto como uma evolução histórica e “natural” do politeísmo e do animismo (início da história humana: animismo → politeísmo → monoteísmo), mas o fato é que não se pode explicar a realidade do monoteísmo atual (existe um só Deus, pessoal, criador de todas as coisas e que quis se revelar ao homem) sem a noção de revelação. Cita-se muito o monoteísmo instituído pelo Faraó Akhenaton (Amenophis IV, 1364-1347 a. C.), que defende a existência de um só Deus, o Aton (Disco solar), mas esta proposta religiosa não obteve grande popularidade e morreu com o seu fundador. Cita-se também o Zoroastrismo (pregado por Zaratustra, no Irã, entre o VII e o VI séculos a. C.) como modelo de monoteísmo, mas, nesta religião, ao lado do Deus soberano, o Senhor Sábio (Ahura Mazdah), apresentado como origem do universo, existe uma outra divindade, um espírito maligno chamado Angra Mainhu ou Ahriman. Por esta razão, os estudiosos se dividem entre uma interpretação monoteísta e uma interpretação dualista do zoroastrismo. No que tange à filosofia, esta nasce criticando a religião grega (politeísta) e suas expressões mitológicas; este fato abre espaço para a afirmação da existência de um só Deus, como lemos, por exemplo, na obra de Parmênides (520 a 440 a. C). Mas este Deus superior não exclui a existência de outras divindades. Com Platão (427-348 a. C) e Aristóteles (384322 a.C) firma-se a ideia de um único princípio do cosmos, chamado Deus. Platão o chama de “Bem” ou “Uno”; Aristó20 Resumimos Coda, Dalla Trinità, pp. 27-35. 22 Introdução Geral ao Tratado da Trindade teles de “Motor Imóvel”. Mas, em nenhum dos dois pode-se falar de monoteísmo propriamente dito: Aristóteles, por exemplo, admite a existência de 47 ou 55 divindades (correspondentes às esferas celestes). Não podemos falar de monoteísmo na filosofia grega por 3 razões: 1– não existe unicidade de Deus; 2– não existe uma clara alteridade pessoal entre Deus e o cosmos (e o homem); 3– não existe uma clara afirmação do princípio da criação. O batismo cristão, porta de entrada para a comunidade cristã e Janua sacramentorum (porta para os outros sacramentos), é administrado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. Mt 28,19). As antigas profissões de fé têm uma estrutura trinitária21. Na liturgia, a Trindade está no lugar central, por exemplo, a oração eucarística dirige-se sempre ao Pai, e termina com uma doxologia que menciona as três pessoas: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós Deus Pai todo poderoso, na unidade do Espírito Santo...”. Pode-se afirmar que a anáfora eucarística é tripartida: o prefácio é o louvor ao Pai pelos benefícios de sua obra de criação e de suas “disposições” na história da salvação. O segundo momento tem como coração o memorial da obra de salvação realizada por Jesus Cristo (perícope da instituição e anamnese). Podemos ainda falar do momento da “epíclese”22 , no qual invoca-se o Espírito Santo sobre as oblatas e, em seguida, sobre a comunidade reunida. As orações cristãs, normalmente, se dirigem ao Pai por Jesus Cristo na unidade do Espírito Santo. A Igreja mesma é entendida como um “povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”23. O que está no centro da fé cristã, também deve ter um lugar central na consciência cristã e, consequentemente, no centro da teologia. 21 Cf. B. Sesboué (org.), História dos dogmas. Tomo 1. O Deus da Salvação, São Paulo 2002, pp. 75-84. 22 “Está um pouco ocultado nas anáforas da tradição latina, que comportam duas epicleses: uma sobre os dons antes do relato da instituição e outra sobre a comunidade após a consagração”, Sesboué (org.), História dos dogmas. Tomo 1. O Deus da Salvação, p. 94. 23 Lumen Gentium n. 15. 23 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária Como sabemos, a Teologia Sistemática organizou a reflexão teológica em tratados24, os quais nos ajudam a compreender os nexos lógicos do Mistério revelado. Os tratados não são percursos paralelos, mas se entrelaçam25. Os tratados estão intimamente interligados. Provindos do único mistério de Cristo, os tratados partem desse mistério e acentuam certos aspectos deste grande mistério, no qual está contida toda a Revelação. Um tratado se apoia sobre os outros e, ao mesmo tempo, os sustenta e conduz aos outros. No estudo de cada tratado, não se deve perder o olhar do todo, ou seja, da totalidade do mistério. Entre os tratados, podemos dizer que o primeiro (do ponto de vista lógico) é aquele da Teologia fundamental, que reflete sobre as condições de possibilidade e de inteligibilidade do mistério cristão, o qual ilustra a razão e as fundações da Revelação cristã. Logo depois, devemos mencionar o tratado da Trindade, que precede ontologicamente o mistério de Cristo, mas que se revela no evento Jesus Cristo. Juntamente com o tratado sobre a Trindade, é necessário destacar o tratado cristológico, que revela a Trindade e a torna acessível aos homens. Na Cristologia encontramos a antropologia em graça ou antropologia sobrenatural: Cristo revela a verdadeira imagem do homem, assim como Deus a concebeu e predestinou26. Da Cristologia “brota” o tratado sobre os sacramentos, que são os sinais sensíveis e eficazes do primado de Cristo na história. Através dos sacramentos, mediante o dom do Seu Espírito, o Senhor torna crística a história27. 24 Cf. M. Schulz, Dogmatica, Lugano 2002, pp. 32-33. 25 Cf. Biffi, La Sapienza che viene dall’alto, p. 71. 26 Cf. Biffi, La Sapienza che viene dall’alto, p. 72 27 Cf. Biffi, La Sapienza che viene dall’alto, p. 73 24 Introdução Geral ao Tratado da Trindade O Tratado sobre a Igreja também nasce da Cristologia. A Igreja é feita “pelos sacramentos”, principalmente pela Eucaristia. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a Igreja “faz” os sacramentos28. A Igreja está a caminho da eternidade, do definitivo. Essa ideia nos conduz ao tratado de Escatologia, que reflete sobre o pleno cumprimento e a definitividade da vida cristã e da recriação operada por Jesus Cristo. A Teologia Sistemática exige que cada tratado seja estudado na sua singularidade, mas sem perder de vista o todo do mistério revelado. Cada tratado e o conjunto dos tratados revelam “a multiforme sabedoria de Deus (...) segundo o projeto eterno que [Deus] estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Ef 3,10-11). No início ou no fim? Deus é o princípio e o fim de tudo, o Alfa e o Ômega. Esses dois aspectos de uma só verdade nos ajudam a compreender por que atualmente há quem prefira ver o Tratado da Trindade no início da teologia sistemática e há quem prefere colocar este tratado como coroa ou final de toda a teologia sistemática. Prevalece a tendência a colocar o Tratado no início da dogmática29. Do ponto de vista sistemático existem mais razões a favor da sua posição no início do estudo da Dogmática. W. Kasper ensina que neste Tratado estuda-se o tema que depois, em múltiplas variações, tornará a sair à luz (este Tratado seria a “gramática” da dogmática)30. W. Pannemberg recorda que muitos temas deste tratado serão mais tarde aprofundados em outros Tratados31. 28 Cf. Biffi, La Sapienza che viene dall’alto, p. 73. 29 Cf. Ladaria, O Deus vivo e verdadeiro, p. 35 (Nota 46). 30 Cf. Ladaria, O Deus vivo e verdadeiro, p. 35-36. 31 Cf. W. Pannemberg, Teologia Sistematica I, Madrid 1992, p. 362 apud Ladaria, O Deus vivo e verdadeiro, p. 36 (Nota 53). 25 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária 1.3– Estrutura do Tratado São Tomás de Aquino organiza toda a sua reflexão teológica em torno do mistério de Deus. Este mistério inclui a ser divino enquanto tal, e o ser divino enquanto fonte e fim último de todo o criado. Assim pode ser descrito o conteúdo e a missão da teologia32 . O Aquinate dividiu a primeira parte da sua Suma (Suma I) do seguinte modo: a) q. 2 a q. 26: O que diz respeito à essência divina; b) q. 27 a q. 43: O que diz respeito à distinção das Pessoas (divinas); c) q. 44 a q. 119 : Sobre como as criaturas procedem de Deus. As duas primeiras partes da Suma I concernem a Deus ad intra (Trindade imanente), enquanto a terceira, Deus ad extra (Trindade econômica). Tomás não opõe o De Deo Uno ao De Deo Trino, mas deseja apenas explicar primeiro o que entende pela palavra “Deus”, para depois falar da Trindade. Depois de Santo Tomás, por séculos (especialmente entre o século XVI e o final do século XIX), os manuais de teologia dividiram o Tratado sobre a Trindade em duas partes (eles baseavam-se em Tomás e numa certa interpretação do De Trinitate de Agostinho): De Deo uno (existência e essência de Deus, com um método prevalentemente filosófico33) e De Deo trino (pessoas, processões e missões, com um método teológico). Esta divisão pode dar a impressão de que a primeira parte do tratado aborda as verdades alcançadas pela razão natural (via filosófica do conhecimento de Deus: essência divina, atributos divinos, cognoscibilidade de Deus, etc.), enquanto a segunda parte trataria daquilo que só pode ser conhecido pela revelação divina34. Alguns autores modernos buscaram recuperar a dimensão teológica da primeira parte do tratado, insistindo sobre a revelação de Deus no AT, enquanto a segunda parte do tratado trataria da revelação de Deus no NT. Atualmente a teologia tende a integrar o De Deo Uno com o De 32 Cf. S. Theol. I, q. 1, a. 7. Cf. também G. Emery, La théologie trinitaire de saint Thomas d’Aquin, Paris 2004, p. 52. 33 Cf. A. Staglianò, II mistero del Dio vivente, Bologna 1996, 320. 34 Cf. Coda, Dalla Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, pp. 78-84. 26 Introdução Geral ao Tratado da Trindade Deo Trino35 . Michael Schmaus, profundo conhecedor de Santo Agostinho, por exemplo, escreve em 1938 uma Dogmática Católica36, na qual propõe o seguinte esquema para o Tratado: 1– Deus uno e trino se revela quanto à sua essência (existência); 2– Deus uno e trino se revela quanto às suas pessoas; 3– Deus uno e trino se revela quanto à plenitude da sua vida. Podemos perceber no esquema acima que Schmaus entrelaça a tratação da unidade da natureza divina com a Trindade das pessoas divinas, superando a divisão habitual do Tratado em questão. 1.4– A Dei Verbum e a Revelação em Cristo A Constituição Dei Verbum descreve em termos cristocêntricos e trinitários o evento e o objeto próprio da Revelação, definindo Jesus como “mediator simul et plenitudo totius revelationis”. Dei Verbum n. 2: “Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta ‘economia’ da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação”. 35 Cf. L. F. Ladaria, O Deus vivo e verdadeiro. O mistério da Trindade, São Paulo 2005, p. 34. 36 Cf. M. Schmaus, Dogmatica Cattolica I. Introduzione – Dio – Creazione, Torino 1963. 27 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária No seu n. 4, a Constituição conciliar ensina que Jesus Cristo, especialmente pela sua morte e Ressurreição, é a consumação e a plenitude da Revelação: Dei Verbum n. 4: “Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho (Heb. 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cfr. Jo. 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado ‘como homem para os homens’, ‘fala, portanto, as palavras de Deus’ (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cfr. Jo. 5,36; 17,4). Por isso, Ele, vê-lo a Ele é ver o Pai (cfr. Jo. 14,9), com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna. Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. 1 Tim. 6,14; Tit. 2,13)”. Finalmente o n. 5 apresenta a Fé como um ato livre e consciente de correspondência à Revelação, através da Fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus37. A Comissão Teológica Internacional (CTI) em seu documento Teologia – Cristologia – Antropologia (1982), responde a pergunta sobre a relação existente entre Jesus Cristo e a Revelação de Deus [Trin37 Cf. Dei Verbum n. 5. 28 Introdução Geral ao Tratado da Trindade dade], afirmando que, para evitar qualquer tipo de confusão ou de separação, é necessário manter sempre uma relação de complementaridade entre a via que “desce” de Deus a Jesus Cristo e a via que “sobe” de Jesus a Deus38. P. Coda recorda que a teologia contemporânea percebeu com clareza que tinha insistido demasiadamente, especialmente na sua tradição latina, no “ver” (contemplar) Jesus a partir de Deus (Trindade), esquecendo-se do caminho contrário, ou seja, do “ver” (contemplar) Deus (Trindade) a partir de Jesus. Este segundo movimento voltou ao centro da reflexão teológica contemporânea graças à chamada Theologia Crucis de inspiração luterana. Esta tendência teológica tendeu a cair no erro contrário: esquecer (ou até mesmo negar) que se possa percorrer a via que “desce” de Deus a Jesus39. Revela-se necessário recuperar o equilíbrio entre os dois movimentos; para isso é essencial fundamentar o discurso sobre Deus na revelação cristológica do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim fazendo, colhe-se não apenas a verdade da Trindade das pessoas, mas também a verdade do seu Uno divino. Como podemos ver, é importante superar a tratativa manualística que distingue excessivamente o De Deo Uno do De Deo Trino, para tratar a questão do Deus Uno e Trino de um modo que se conjugue harmoniosamente o perfil histórico-salvífico da Revelação com a sua tematização teológica40. 1.5– Trindade Imanente e Trindade Econômica A breve introdução que fizemos nos ajuda a compreender que não temos acesso ao Deus uno e trino se não por, com e em Cristo. É pela economia da salvação que chegamos à verdade do Deus Uno e Trino. A Economia se revela então o caminho de acesso para a Teologia Trinitária. 38 Cf. Comissão Teológica Internacional, Teologia – Cristologia – Antropologia, in: Enchiridion Vaticanum n. 8, Bologna 1983, n. 407. 39 Cf. Coda, Dalla Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p. 88. 40 Cf. Coda, Dalla Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p. 88-89. 29 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária K. Rahner também tentou superar a divisão do Tratado da Trindade em De Deo Uno e De Deo Trino41, para tal fim, ele introduz uma terminologia muito usada atualmente no que tange ao estudo da Teologia Trinitária. Este autor fala da Trindade econômica e da Trindade imanente. Em outras palavras, ele distingue o Deus que se revela na economia (ad extra) do Deus em si mesmo (ad intra). Esta distinção não significa uma diferença entre estas duas abordagens teológicas: “a Trindade econômica é a Trindade imanente, e vice-versa”42 . O Deus Uno e Trino revela-se na “economia” da história da salvação, tal como Ele é na sua vida imanente. Esta distinção rahneriana não é uma novidade na teologia. Vejamos o que diz o Catecismo da Igreja: Catecismo da Igreja Católica n. 236: “Os padres da Igreja distinguem entre a ‘Theologia’ e a ‘Oikonomia’, designando com o primeiro termo o mistério da vida íntima do Deus-Trindade e com o segundo todas as obras de Deus por meio das quais Ele se revela e comunica a sua vida. É mediante a ‘Oikonomia’ que nos é revelada a ‘Theologia’ que ilumina toda a ‘Oikonomia’. As obras de Deus revelam quem Ele é em si mesmo e, inversamente, o mistério de seu Ser íntimo ilumina a compreensão de todas as suas obras”. A frase de Rahner que identifica a Trindade econômica com a Trindade imanente pode ser perigosa do ponto de vista teológico; teólogos como Congar, Balthasar, Kasper, Pannemberg, Moltmann debateram abertamente o tema; em particular, muitas críticas foram feitas ao “vice-versa” da formulação rahneriana43. Vejamos como é formulada a crítica de H. U. von Balthasar ao axioma rahneriano: “ A Trindade econômica aparece de fato como a interpretação da Trindade imanente; esta última, não obstante, o seu 41 Cf. B. Mondin, La Trinità mistero d’amore. Trattato di teologia trinitaria, Bologna 1993, p. 30. 42 K. Rahner, La Trinità, Brescia 1998, 30. 43 Cf. Coda, Dalla Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p. 96. 30 Introdução Geral ao Tratado da Trindade ser princípio fundante da primeira, não pode ser simplesmente identificada com essa. Porque, em tal caso, a Trindade imanente corre o risco de reduzir-se à trindade econômica: mais claramente, Deus corre o risco de ser absorvido no processo do mundo e não poder chegar a si mesmo a não ser através deste dito processo”44. A Comissão Teológica Internacional, no já citado documento Teologia – Cristologia – Antropologia, reafirmou a importância do axioma fundamental de Rahner (também chamado Grundaxion), mas o reformulou do seguinte modo: o axioma fundamental da teologia hodierna se exprime e pode ser corretamente expresso do seguinte modo: “a Trindade que se manifesta na economia da salvação é a Trindade imanente; é a Trindade imanente que se comunica livremente e gratuitamente na economia da salvação”45. A mesma Comissão recorda que a relação entre a Trindade econômica e a Trindade imanente deve ser entendida segundo a tríplice via da afirmação, da negação e da eminência46. Em outras palavras, recorda-se que a Trindade imanente e a Trindade econômica são a mesma Trindade em duas “situações” distintas: em si mesma e na Revelação na história. A relação de analogia expressa uma relação de identidade, mas ao mesmo tempo de distinção. A identidade significa que se trata do mesmo único e verdadeiro Deus, o Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo. Ao lado da identidade, é necessário salvaguardar a distinção entre o “Deus em si mesmo”, e o “Deus para nós”47. No que concerne a relação entre a Trindade imanente e a Trindade econômica, podemos fazer seis afirmações: 1– a Trindade econômica é a única porta de acesso à Trindade imanente (não podemos chegar ao Deus absconditus se não através do Deus revelatus); 2– a Trindade econômica é a Trindade imanente, no sentido de que a Trindade que nos ama e que se revela a nós é a Trindade que celebra desde sempre e 44 H. U. Von Balthasar, Teodramática III. El hombre en Cristo, Madrid 1993, 466. 45 Comissão Teológica Internacional, Teologia – Cristologia – Antropologia, n. 424. 46 Cf. Comissão Teológica Internacional, Teologia – Cristologia – Antropologia, n. 427. 47 Cf. Coda, Dalla Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p. 97. 31 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária para sempre o seu ser amor na comunhão da três pessoas divinas; 3– a Trindade imanente não pode ser reduzida à Trindade econômica ( o que Deus doa e revela de si é como uma gota do imenso oceano do seu ser ).48 A trindade imanente transcende a sua própria autorrevelação (Trindade econômica). Mesmo revelando-se, a Trindade imanente permanece “rodeada” de certa esfera de “mistério”; 4– as operações das pessoas divinas na Trindade econômica correspondem às operações das mesmas pessoas na Trindade imanente: Se o Pai é o princípio primeiro, origem de todas as coisas, na Trindade econômica, também o é na Trindade imanente. Se o Filho é gerado na Trindade econômica, também o é na Trindade imanente. Se o Espírito é vínculo de amor recíproco entre o Pai e o Filho na Trindade econômica, também o é na Trindade imanente. 5– A Trindade imanente “decidiu eternamente” auto-comunicar-se (revelar-se), ou seja, manifestar-se ad extra na Trindade econômica (Hegel afirmava certa necessidade que a Trindade teria de manifestar-se; esta necessidade limita a liberdade e a gratuidade da revelação). 6– a Trindade imanente irradia uma luz que ilumina a compreensão da Trindade econômica, ou seja, o mistério do Ser Trinitário ilumina a inteligência das suas obras49. Piero Coda50 afirma que o mal-estar teológico com a afirmação rahneriana deriva do fato de que, pela fé, percebemos que podemos dizer que a Trindade econômica é a Trindade imanente (Deus revela-se aos homens, por seu Flho e pelo Espírito), mas a Trindade imanente transcende a revelação de si mesma na Trindade econômica, por esta razão o “vice-versa” do axioma rahneriano não deveria ser utilizado sem ulteriores explicações que expliquem o seu real significado. A Comissão Teológica Internacional alerta ainda para um duplo perigo no que tange à relação entre a Trindade econômica e a Trindade imanente: a) o da separação, seja por parte de uma certa tendência neoescolastica (isola-se a Trindade do resto do mistério cristão; não se leva 48 Cf. Mondin, La Trinità mistero d’amore, p. 287. 49 Cf. Catecismo da Igreja Católica n. 236. Cf. também Mondin, La Trinità mistero d’amore, p. 294 50 Cf. Coda, La Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p. 97. 32 Introdução Geral ao Tratado da Trindade em conta a importância do evento da Revelação para a compreensão do mistério de Deus), seja por parte de uma forma moderna de agnosticismo, que afirma não podermos chegar à Trindade imanente, partindo da economia da salvação; b) o da confusão, quando se afirma que a economia é constitutiva do ser imanente de Deus, quase como se Deus tivesse necessidade de se revelar na história, para se tornar um ser trinitário51. Embora a economia divina e a Trindade imanente se distingam, não podem separar-se entre elas: as missões divinas manifestam no tempo as processões eternas, porque a revelação da Trindade aos homens manifesta o ser íntimo de Deus. Compreendemos agora a importância de não separarmos demasiadamente a Cristologia do Tratado da Trindade e vice-versa. 1.6– Método do Tratado da Trindade Tudo o que foi visto até agora, nos ajuda a compreender que o método (etimologicamente: caminho a seguir) da teologia trinitária é histórico e ao mesmo tempo ontológico (especulativo). O método da teologia trinitária é histórico porque Deus se revela na história do homem. Sendo a história um lugar da ação de Deus com e em favor da humanidade, podemos, convenientemente, chamá-la história da salvação. Mas o método também é ontológico, na medida em que colhe e expressa na história a verdade de Deus que, em Jesus Cristo, se revelou, interpelando e realizando (pelo Espírito de Deus) a nossa liberdade. “História e ontologia não devem ser entendidas como duas dimensões ou dois momentos separados da inteligência da fé: pois Jesus Cristo é o evento de Deus, que se revela e se doa realmente, mediante o Espírito, à liberdade do homem, historicamente e comunitariamente situada, como promessa e antecipação real do dom completo e definitivo de si mesmo no Reino dos Céus. Evento ocorrido na história de Jesus de Naza51 Cf. Coda, La Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p. 98. 33 Deus Uno e Trino: uma introdução à teologia trinitária ré crucificado e ressuscitado, uma vez para sempre, que se tornou contemporâneo a cada tempo e a cada homem, por obra do Espírito Santo, em virtude da sua morte-ressurreição”52. 52 Coda, La Trinità. L’avvento di Dio tra storia e profezia, p.112. 34