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Por Núcleo Prisma UFSM 02 Por Núcleo Prisma www.nucleoprisma
Por Núcleo Prisma
Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 2, nº 2 | jul/dez. 2011
ISSN 2178-1842
www.nucleoprisma.com.br
UFSM
pesquisas em relações internacionais de santa maria
Por Núcleo Prisma
02
Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 2, nº 2 | jul/dez. 2011
ISSN 2178-1842
UNIVERSIDADE
REITOR
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Doutorado em História das Relações
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Universitaire de Hautes Études Internationales - Suíça)
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Doutorado em Relações Internacionais
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Interação/Universidade Federal de Santa
Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas.
Departamento de Ciências Econômicas - Vol.
2, n. 2 (jul/dez. 2011) - Santa Maria, 2011
Semestral.
ISSN: 2178-1842
Vol. 2, n. 2 (jul/dez. 2011)
CDU 327
Ficha catalográfica elaborada por
Maristela Eckhardt - CRB-10/737
Biblioteca Central da UFSM
SUMÁRIO
Os editores
APRESENTAÇÃO
07
APRESENTAÇÃO
Melina Mörschbächer
OS PARTIDOS POLÍTICOS E A FORMAÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL MEDIANTE A SOCIABILIDADE POLÍTICA
09
Valéria Ribas do Nascimento
O NOVO DIREITO INTERNACIONAL: APORTES
RELACIONADOS AO CONSTITUCIONALISMO MULTINÍVEL
DE FERRAJOLI
27
Adriana Hartemink Cantini
OS PARADIGMAS EDUCATIVOS DA FORMAÇÃO PARA O
EMPREGO E APRENDIZAGEM PERMANENTE NA UNIÃO
EUROPÉIA: O DIREITO DO TRABALHO EM CONSTRUÇÃO
55
Edson José Neves Júnior
RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ÍNDIA: RESGATE HISTÓRICO
E POTENCIALIDADES ESTRATÉGICAS ATUAIS
Athos Munhoz
Bruno Gomes Guimarães
Bruno Magno
Raoni Fonseca Duarte
Rômulo Barizon Pitt
CAMINHANDO ENTRE GIGANTES: A INSERÇÃO
INTERNACIONAL DOS TIGRES ASIÁTICOS E DOS PAÍSES
DA ASEAN
Bruno Gomes Guimarães
Igor Amazarray
O EXERCÍCIO DO SOFT POWER: FUTEBOL E O CASO
BRASILEIRO
97
ARTIGOS
123
141
Dimitri Silva Nunes de Oliveira
Rômulo Barizon Pitt
O RECONHECIMENTO DA REPÚBLICA POPULAR DA
CHINA E O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL FATORES
DOMÉSTICOS E EXTERNOS
159
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APRESENTAÇÃO
Até há pouco tempo, as relações internacionais permane-
ceram na condição de assunto quase exclusivo da competência dos
diplomatas e dos policy makers. O Itamaraty herdou do Império a tradição da diplomacia portuguesa, com posição inigualável na América Latina.
Hoje, sem dúvida, a Universidade brasileira tem dado
importante salto qualitativo. Multiplicaram-se iniciativas de ensino,
pesquisa, extensão e publicações diante da agenda internacional.
A revista InterAção é fruto dessa preocupação com o interna-
cional, revelando o impacto, os paradoxos, as razões, as insuficiências,
a esperança e a frustração com tudo que nele brota e viceja.
A InterAção nasceu em uma reunião acadêmica, ocasião em
que o docente e os discentes desejavam ampliar a oferta de oportu-
nidades de participação de alunos em projetos de ensino, pesquisa e
extensão, ansiavam por incentivos à formação de grupos de trabalho
que integrem alunos e professores da graduação e da pós-graduação,
onde a a disseminação da produção de conhecimento fosse estimulada, como meio de expandir a inserção do curso e das relações inter-
nacionais em âmbito local e regional. Simplesmente, nasceu em um
momento em que todos desejavam crescer.
O primeiro e o segundo passo dessa longa caminhada foram
dados. Vemos que a qualidade de uma revista concretiza-se pelos esforços e pelos trabalhos bem direcionados. O conteúdo dos textos
demonstra a exigência e o rigor intelectual de um periódico que veio
para ficar.
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Neste segundo número, apresentamos os artigos previamente
analisados por um corpo de pareceiristas independentes, que julgaram
os textos de modo imparcial – procedimento já adotado no primeiro
número e que será seguido na restante trajetória.
Agradecemos aos autores que submeteram seus artigos. E,
desde já, colocamos a revista InterAção à disposição da comunidade
acadêmica das Relações Internacionais, seja a brasileira, seja a mundial.
Os Editores
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ARTIGOS
10 | InterAção
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OS PARTIDOS POLÍTICOS E A FORMAÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL MEDIANTE A SOCIABILIDADE POLÍTICA
Melina Mörschbächer1
Resumo
O presente artigo visa resgatar elementos teóricos que lo-
calizam as instituições partidárias como centrais na constituição de
um modelo democrático de Estado. A partir desse entendimento, são
destacados estudos no campo da cultura política com ênfase no conceito de capital social. A proposta que emerge do resgate conceitual
e teórico exposto é a de apresentar de que modo os partidos políticos
podem vir a legitimar e justificar a sua existência por meio da promoção de valores e de atitudes que se configuram no âmbito da confiança, da cooperação e da ampliação da participação política. Posto
que o nível de capital social de uma sociedade reflete na qualidade de
sua democracia, há uma reflexão acerca da carência de determinadas
práticas no modo de fazer política dos partidos brasileiros para que
uma nova cultura política instaure-se.
Palavras-chave: Partidos políticos; cultura política; capital social;
sociabilidade política.
1 Acadêmica do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) da Universidade Federal de
Pelotas (UFPEL).
E-mail: [email protected]
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Abstract
The present article claims for theoretical elements which have
the political institutions as central for the constitution of a democra-
tic State. With this kind of knowledge studies in the field of Political
Science are underlined with highlight in the concept of social capital.
The purpose that emerges from the conceptual and theoretical rescue
exposed here is presenting the way in which the political parties can
legitimate and justify their existence through the promotion of values
and attitudes concerning of trust, cooperation and widen of the po-
litical participation. Given that the level of social capital of a society
reflects in the quality of its democracy, there is a reflection about the
lack of certain practices in the way of doing politics by the Brazilian
parties for the establishment of a new political culture.
Keywords: Political parties; political culture; social culture; political
sociability.
INTRODUÇÃO
É decorrente nos atuais debates do campo da Ciência Política
um questionamento acerca da funcionalidade e, mesmo, da essencialidade dos partidos políticos. Nesse sentido, é válido enfatizar que não
existe um consenso no que diz respeito à definição dessas instituições.
A presente análise tem como objetivo central abordar um posicio-
namento cuja referência principal encontra-se na área de estudos da
cultura política e, especificamente, no conceito de capital social.
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O debate que se refere a novos espaços de participação - fo-
mentados pós-Constituição de 1988 no Brasil -, ao estabelecer uma
nova relação no âmbito de negociação política entre Estado e sociedade civil, é um novo impulso para que se pense em formas alter-
nativas de a sociedade sentir-se representada e incluída no processo
político, não apenas eleitoral, mas também de gestão pública. A ta-
refa de mediação dos partidos políticos, apesar de problematizada e
questionada, costuma ser apresentada como insubstituível de maneira
quase que consensual na academia - ao optar-se por escrever a favor
de um sistema democrático de governo.
A despeito, então, de estudos que indicam novos caminhos
para a organização democrática, no presente estudo, buscou-se reconstituir os porquês da existência de partidos em um projeto político
que visa a uma ampla participação popular, bem como o seu papel
político num sentido de qualificar tal pretensão pela descentralização
do poder de gestão do que se entende como público.
Inicialmente, a tarefa foi apresentar modelos interpretativos a
respeito de partidos políticos. Após a formulação desse panorama, delimita-se a investigação em uma perspectiva político-cultural, o que demanda análises de posições e de comportamentos do plano partidário.
Resultante das premissas e interpretações, das quais se optou
por utilizar, emergem conclusões e questionamentos no que tange a
um entendimento específico de sociabilidade política – a qual en-
volve um interesse por parte dos cidadãos comuns (aqui entendidos
como eleitores) e, também, por parte dos agentes políticos (entendidos como indivíduos partidários).
O caso brasileiro é um exemplo revelador, quando o intuito é
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abordar os mais diversos aspectos do relacionamento entre representantes políticos e seus representados. O país, caracterizado comumente como detentor de uma política clientelista e autoritária2, goza de
uma defasagem significativa no que se refere à confiança nas instituições e naqueles que as representam (BAQUERO, 2000).
Comprovadamente, esse é um déficit que tem sido observado
de modo generalizado em nossa realidade, porém, as razões particula-
res que se apresentam como determinantes em realidades específicas
não devem ser ignoradas. Em outras palavras, as condutas culturais
justificam decisões políticas do mesmo modo que o contrário também ocorre. Sendo assim, é preciso averiguar de que modo as estruturas partidárias são organizadas no sentido de incentivar um com-
portamento político participativo, através da agregação de interesses,
disponibilização de informações e de promoção da educação política.
1 Mediação no mundo político: os partidos políticos na construção de um
modelo de Estado democrático
Atualmente, cria-se um espaço para o questionamento do
desempenho e, inclusive, da necessidade de existência dos partidos
políticos no contexto global – a exemplo dos estudos realizados por
autores como Crotty (1994) e Broder (1972) (BAQUERO, 2000).
2 Terminologias utilizadas de modo decorrente na academia com o intuito de caracterizar um perfil histórico brasileiro - que foi superado ou ainda se mantém –
comumente não são suficientemente conceituadas (o que retrata uma carência de
precisão e de delimitação do que se pretende abordar em determinados estudos).
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Não é de competência do presente estudo refutar a importância dos
partidos políticos e, muito menos, apresentar opções de sistemas ins-
titucionais com a suposta inexistência de tais organizações. Todavia,
a problemática da funcionalidade e do real papel que têm ocupado os
partidos políticos – tanto institucionalmente quanto no imaginário
coletivo – tem muito a contribuir, quando o objetivo é elucidar as
relações existentes entre partidos políticos e eleitores.
Para isso, é imprescindível realizar um resgate teórico para que
a realidade abordada seja localiza dentro de um plano conceitual e, assim, possa ser analisada de modo mais consistente e legítimo. A obra “A
vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise da democracia na Amé-
rica Latina”, escrita no ano de 2000 pelo cientista político Marcello
Baquero, é bastante útil a esse tipo de análise por apresentar debates
teóricos sobre a eficiência na tarefa de mediação no mundo político, via
partidos. O estudo, que se concentra nos resultados da crise partidária
na América Latina através de uma abordagem histórico-comparativa,
trata da conceitualização de partido político, das funções atribuídas a
esse, seu papel histórico, sua estruturação e suas ideologias.
Segundo Baquero (2000), a noção a respeito de partidos po-
líticos na história mundial é apresentada sob três óticas que, certamente, trazem aspectos centrais para o entendimento de partido: a
teoria institucional (representada por Duverger, tendo como base a
expansão do eleitorado e a permanência de um grupo determinado no
poder); a de situação histórica (representada por Joseph La Palombra
e Myron Weiner, em que se buscam respostas em momentos históricos determinados); e a do desenvolvimento (aquela que relaciona a
modernização ao surgimento de partidos políticos – os quais seriam
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os responsáveis por organizar novos interesses frente ao Estado).
Apesar da importância e da necessária referência às teoriza-
ções apresentadas, o autor argumenta que há uma carência de ques-
tões fundamentais no que concerne à relação entre o político e o econômico, assim como o reconhecimento da dinâmica e dos processos
internos dos partidos políticos.
No campo da Ciência Política, ainda que não exista um con-
senso a respeito da conceitualização de partidos políticos, há um
posicionamento bastante decorrente que relaciona o surgimento da
disciplina com a reflexão a respeito dessas instituições, reiterando a
essencialidade delas para a manutenção da democracia.
Entretanto, é deveras comum na recente bibliografia da dis-
ciplina apresentar posicionamentos críticos - assim como estatísticas
-, retratando a desconfiança dos cidadãos nas organizações partidárias
(BAQUERO E BORBA, 2008; MOISÉS, 2005). Desse modo, surgem estudos a respeito da cultura política com ênfase em conceitos que
têm a pretensão de revelar a importância de uma relação de confiança
entre os agentes, bem como desses em relação as suas instituições políticas – a exemplo do conceito de capital social (PUTNAM, 2007).
A constatação de uma crise dos partidos políticos e, tam-
bém, da instabilidade de sistemas políticos institucionalizados é uma
pauta atual no debate acadêmico. É importante ressaltar que existem
controvérsias a respeito da crise das instituições políticas. No entan-
to, tratando-se do caso brasileiro – ao qual este estudo refere-se -, é
possível apontar autores que afirmam relativa estabilidade do sistema
político nacional (LIMA, 1997; NICOLAU, 1996).
Assim, o estudo opta por reiterar a ainda existente centralida-
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de dos partidos políticos.
“Do ponto de vista teórico, a multiplicidade das
funções atribuídas aos partidos políticos no processo de construção e manutenção de sociedades
politicamente estáveis tem gerado um consenso
de que seria impensável uma democracia sem eles”
(SHATTSNEIDER apud BAQUERO, 2000).
Os partidos políticos são analisados no sentido de questionar
e de verificar a realização de algumas de suas atribuições originais bem
como a percepção de atores sociais a esse respeito. A relação entre representantes e representados merece atenção no momento em que não
se percebe a representação como legítima. A esse respeito pode ser considerado o caso específico brasileiro e mesmo o seu legado histórico
marcado por características como o personalismo e o clientelismo.
A perspectiva de crise dos partidos políticos e a incapacidade
funcional desses ganha relevância quando se constata que:
“No se trata de una crisis simplemente en la institucionalidad formal de los partidos políticos, sino
que se há abierto, asimismo, una profunda brecha
entre la superficie, aparentemente estable, de las
estructuras partidárias y la manera en que estas
estructuras articulan, convocam y reflejam a los
actores y las dinâmicas de la sociedad en el momento presente” (CAVAROZZI e MEDINA, p.
10, 2003).
2 Os partidos políticos e o incentivo à participação: a formação de capital
social
Aceitando os partidos políticos como atores centrais na dinâ-
18 | InterAção
mica da política democrática, é preciso optar por um entendimento
de democracia. Deve-se, fundamentalmente, traçar as variáveis que
compõem o comportamento político dos cidadãos. Sendo assim, estudos que enfatizam a existência de uma cultura política (DALTON
2000; INGLEHART, 2002; NORRIS, 2002; PUTNAM, 2007) que
determina ou, ao menos, influencia fortemente os rumos da democra-
cia - um sistema que visa à ampla participação popular - têm muito a
somar em uma análise pretensa de orientações para o comportamento
dos atores sociais que compõem sistemas de caráter democrático.
Em contrapartida a uma perspectiva de determinismo econô-
mico, pode-se observar um conjunto de estudos (BAQUERO, 2003;
PUTNAM, 2007) que ressaltam as diferenças na vida cívica de uma
comunidade como fator fundamental para explicar o êxito ou o fracasso
no processo de desenvolvimento e de democratização. Em outros ter-
mos, trata-se de considerar: a participação cívica; o nível de igualdade
política; a solidariedade, a confiança e a tolerância entre os indivíduos; e
a natureza das associações existentes (estruturas sociais de cooperação).
Sob uma ótica de caráter dos cidadãos, essa perspectiva já se
apresenta nas obras de Maquiavel, que ressalta as obrigações dos ci-
dadãos (assim como Montesquieu). Essa “escola republicana” de hu-
manistas cívicos é contrastada pela perspectiva liberal de Hobbes e
de Locke, que não parte do princípio de que os cidadãos detenham
um comportamento virtuoso, enfatizando, assim, o individualismo
e os direitos individuais (PUTNAM, 2007). A comunidade cívica
sustenta-se através do ideal de vantagens partilhadas. Como ressaltou
Tocqueville, os cidadãos buscam o “interesse próprio corretamente
entendido” (PUTNAM, 2007).
InterAção | 19
Utilizando essa perspectiva – que considera o comportamen-
to dos agentes –, toma-se como base o estudo de Robert Putnam a
respeito de Capital Social. O conceito de “Capital Social” em Putnam é construído e consagrado através de sua obra “Comunidade e
democracia: a experiência da Itália moderna”. A obra é centrada na
compreensão do desenvolvimento e do desempenho das instituições
democráticas. De início, Putnam se concentra em examinar a nova
organização política da Itália, na primeira metade dos anos 1970, que
determinou a criação de governos regionais – os quais passaram a ter
autoridade sobre uma grande parcela dos assuntos públicos.
Após uma análise inicial, que inclui um estudo comparativo
dessa nova dinâmica no norte e no sul do país – refletindo, assim, realidades muito distintas de desenvolvimento –, propõe-se um significado
mais amplo das constatações feitas. São abordados aspectos fundamentais da democracia, do desenvolvimento econômico e da vida cívica.
Ao considerar fatores de cultura política, há um resgate de
teorias e de autores que enfatizam o ideal de comunidade e de par-
ticipação cívica. O autor, através de várias técnicas de pesquisa, visa
localizar a importância da cultura e da participação políticas (a natureza dessa) no processo de desenvolvimento. O êxito de um governo
democrático não poderia, pois, resumir-se ao crescimento econômico
ou ao incremento tecnológico.
Dentro dessa discussão sobre desenvolvimento e modernida-
de, regiões cívicas e não-cívicas, emerge o conceito de Capital Social
– que se refere a “características da ação social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM, 2007).
20 | InterAção
Putnam considera a incapacidade dos indivíduos de organi-
zação e de cooperação para o mútuo proveito, mas apresenta, também, alternativas e práticas que facilitam a confiança coletiva. Consi-
derando que os indivíduos reagem racionalmente ao contexto em que
vivem – reforçam determinadas práticas -, existiriam ciclos viciosos e
virtuosos no que tange ao Capital Social.
O Capital Social, como já apresentado, pode ser expresso de
diversas formas e através de organizações (e orientações) distintas.
É importante identificar o modo como se processam tais comportamentos, através de quais associações os interesses de uma sociedade
podem ser mobilizados e, por fim, transformados em um sistema de
confiança mútua e de ganho conjunto.
Putnam em sua teorização afirma que membros de associações
estão mais aptos a desenvolver consciência política e confiança social.
“Diz-se que as associações civis contribuem para a
eficácia e a estabilidade do governo democrático,
não só por causa de seus efeitos ‘internos’ sobre o
individuo, mas também por causa de seus efeitos
‘externos’ sobre a sociedade. No âmbito interno, as
associações incutem em seus membros hábitos de
cooperação, solidariedade e espírito público. (...).
No âmbito externo, a ‘articulação de interesses’ e
a ‘agregação de interesses’, como chamam os cientistas políticos deste século, são intensificadas por
uma densa rede de associações secundárias” (pp.
103-104, 2007).
O autor também distingue quais as atividades mais propensas
a gerar a eficácia de um governo democrático. Ademais, Putnam consi-
dera as intituições às quais os italianos dão maior grau de importância
InterAção | 21
- ao decorrer do período abordado em seu trabalho -, que são: igrejas,
sindicatos e partidos políticos, apregoando que a primeira não colabora
para a formação de capital social, a segunda o faz, enquanto a terceira,
as organizações partidárias, pode ou não gerar esse benefício social.
Deixando de lado, nesse momento, outros âmbitos participa-
tivos que o autor expõe e analisa – a exemplo de clubes desportivos,
atividades culturais e recreativas – e também atitudes que fomentam
tal interesse pela vida em sociedade – número de leitores de jornal,
comparecimento às urnas, votação em referendos, entre outros –, en-
fatiza-se a possibilidade das organizações partidárias apresentarem-se
como elementos constitutivos de uma sociedade mais democrática.
Considerando que o sucesso da democracia está diretamente associa-
do aos níveis de capital social de determinada realidade (PUTNAM,
2007), Baquero e Borba argumentam:
“Atualmente, a ciência política continua, preponderantemente, a enfatizar as instituições políticas,
principalmente os partidos, como essenciais para
o fortalecimento democrático. Se, por um lado,
este posicionamento é quase unânime, por outro
lado, não há um consenso sobre as qualidades e a
influência que os partidos têm tido na promoção
de uma cultura política mais democrática ou mais
participativa” (2008).
3 Sociabilidade política: a dívida dos partidos políticos para com a sociedade brasileira
Pode-se dizer que a participação dos cidadãos em assuntos
políticos é o que legitima a existência de um sistema democrático.
22 | InterAção
Estudos recentes no campo das ciências sociais apresentam, porém,
um panorama do comportamento brasileiro, caracterizado por uma
rejeição à política e, princialmente, aos partidos políticos (BAQUERO, 2000; BAQUERO E BORBA, 2008).
Existem perspectivas distintas para entender a problemática
da democracia brasileira - e, também, a nível mundial. Atribui-se,
frequentemente, a responsabilidade por um sistema
despolitizado a questões de engenharia política - apregoando
revisão e mudança das regras eleitorais e, até mesmo, do sistema eleitoral como um todo. Esse ideal de “aprendizagem institucional” é defendido por autores como Rustow (1970), Miller e Seligson (1994) e
Karl e Schmitter (1993) (INGLEHART e WELZEL, 2009). Outra
variável destacada é a que encara o legado histórico como constitutivo
de uma mentalidade de subordinação e não disposta ao enfrentamento político reivindicatório.
Todavia, a análise com base na cultura política e, mais especi-
ficamente, no conceito de capital social possibilita aqui adentrar em
um aspecto mais direcionado, mas que se apresenta como elemen-
to estruturante central da democracia – como foi apresentado neste
artigo, até então. Trata-se da forma como os partidos políticos têm
retribuído a seus representados aquilo que se constitui como maior
sentido da democracia, o espaço para a participação política. Sendo
o partido político uma instituição central dentre aquelas que confor-
mam a dinâmica do Estado democrático, espera-se desse a criação do
elo entre o Estado e a sociedade civil.
O historiador Agulhon (1968) entende sociabilidade como
uma associação que independe de sua existência perene ou efêmera e
InterAção | 23
de seu nível de institucionalização. O indivíduo participa de grupos
onde se insere em relações amplas e, concomitantemente, restritas.
Envolve-se, então, em relações sociais gerais estruturadas pela orga-
nização e em relações mais específicas, que dizem respeito ao modo
como se dá a convivência com os demais participantes do grupo.
Posto que a sociabilidade é a dinâmica organizatória da vida,
a tese aqui apresentada infere que a forma como se organizam os
partidos políticos determina se esses se constituem, ou não, enquanto
propagadores de características como a confiança, a cooperação e a
participação na vida comunitária.
Atualmente, fenômenos como os partidos denominados ca-
tch-all têm demonstrado a postura negativa que os partidos políticos
têm assumido – a qual tem base estritamente no interesse eleitoral.
O teórico Otto Kirchheimer afirma que essa nova configuração partidária implica em menor ênfase na ideologia política, forte apoio
a lideranças, menor participação de militantes, inexistência de uma
orientação específica (a exemplo da defesa de uma classe ou de uma
religião) e busca para conquistar um grupo volumoso e heterogêneo
de possível apoio eleitoral (LAPALOMBARA e WEINER, 1966).
A proposta, então, a partir das constatações apresentadas no
presente trabalho, é de que a organização partidária receba maior ên-
fase nos estudos da Ciência Política. Deve-se averiguar de que modo
os partidos brasileiros tem retribuído aos seus eleitores os votos que
lhes garantem legitimidade como representantes de uma gama de interesses e de demandas da sociedade
brasileira. Para tal fim, devem ser analisadas, tanto de modo
quantitativo quanto qualitativo, as atitudes dos partidos políticos no
24 | InterAção
sentido de incentivar a participação política, de disponibilizar a in-
formação necessária para que os cidadãos tenham condições de iden-
tificar seus interesses comuns e compartilhados, tendo como objetivo
final entender a dinâmica política – essa com o dever de fazer jus ao
princípio de participação democrática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, é possível constatar uma defasagem sig-
nificativa no que diz respeito à confiança e à participação em institui-
ções partidárias, quando se considera o Estado brasileiro. O desinteresse crescente nessa forma tradicional de associação – em ambientes
de caráter democrático – comumente é associado a características
de uma nova realidade que tende a configurar-se em escala global, à
modernização, que apresenta valores que transcendem questões ma-
teriais da existência humana (INGLEHART e WELZEL, 2009).
Nesse sentido, afirma-se que as associações partidárias possuem uma
estrutura hierárquica que não condiz com os novos interesses dos cidadãos democráticos.
Todavia, estudos recentes como o de Baquero e Borba (2008)
esclarecem que na realidade brasileira o déficit de participação não se
encontra restrito às organizações partidárias. O estudo realizado no
município de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, indica
que os indivíduos tampouco têm procurado por outros âmbitos parti-
cipativos. Tal tendência reflete, de fato, uma crescente apatia política.
Assim, a ideia que se pretendeu referendar neste estudo sobre
cultura e participação políticas foi que as alternativas devem emergir
InterAção | 25
dos próprios partidos políticos, como meio de resolver uma crise de
legitimidade, assim como uma crise democrática mais ampla – a qual
implica na busca de maiores condições de sociabilidade política, de
igualdade de direitos e de tolerância cultural.
É necessária uma busca no sentido de identificar quais as pos-
sibilidades de partidos políticos conformarem-se, enquanto organi-
zações mais horizontais e receptivas em relação a demandas sociais
e a interesses coletivos. Mas também espera-se que tal instituição
tenha uma iniciativa no sentido de fomentar uma nova cultura política. O estudo de Robert Putnam (2007) faz algumas assertativas no
que concerne a práticas individuais que podem sinalizar mudanças,
em um sentido positivo, nos níveis de capital social, destacando – a
sua época e contexto específicos – o acesso à informação (leitura de
jornais) e o comparecimento a votações alternativas às eleições representativas (a exemplo de referendos).
É importante compreender as características da sociedade
brasileira para, então, tipificar quais as atitudes que levam os indiví-
duos a tornarem-se mais interessados em assumir uma estratégia de
ganho conjunto, cooperando uns com os outros. O resgate de orien-
tações específicas é essencial, quando se compreende que a cultura
política “(...) é produto tanto da história coletiva do sistema político
como da história de vida dos membros desse sistema. Sendo assim,
está enraizada nos acontecimentos públicos e nas orientações privadas” (BAQUERO e PRÁ, 2007).
Constatada uma série de atitudes que podem levar a mudan-
ça de postura política em uma sociedade, a consequência lógica é a
de identificar quão disseminado tal comportamento encontra-se no
26 | InterAção
meio partidário e quais as reais possibilidades dessas emergirem em
configurações atuais da política brasileira. O capital social deve ser,
portanto, percebido como um meio de alcançar o desevolvimento,
que não se restringe a mero desenvolvimento econômico, refletindo,
assim, fortemente nas configurações políticas, sociais e culturais de
dada sociedade.
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28 | InterAção
InterAção | 29
O NOVO DIREITO INTERNACIONAL: APORTES
RELACIONADOS AO CONSTITUCIONALISMO
MULTINÍVEL DE FERRAJOLI
Valéria Ribas do Nascimento1
O problema fundamental em relação aos direitos do homem,
não é tanto o de justificá-lo, mas o de protegê-lo. (Norberto Bobbio)
Resumo
O estudo do Direito na contemporaneidade é marcado prin-
cipalmente por características evidenciadas no período Pós-Segunda
Guerra Mundial, sendo cabível a firmar que está surgindo o que
se pode denominar de novo Direito Internacional para a pessoa humana ou para a humanidade como um todo. O “jus gentium” bus-
ca a superação do positivismo jurídico desacreditado, reconhecendo
que acima da vontade dos Estados está a consciência humana. Nesse mesmo sentido, Luigi Ferrajoli afirma que o constitucionalismo
tradicional, voltado apenas à perspectiva interna comporta uma ausência de eficácia nos diversos níveis de poderes estatais levando ao
1 Doutora em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS),
com período de pesquisa na Universidade de Sevilha; Mestre em Direito Público pela
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Graduada em Direito pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM); Professora Adjunta de Direito Constitucional e Direito
Comunitário e da Integração da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Integra
o Grupo de Pesquisa Núcleo de Direito Informacional (NUDI-UFSM), inscrito no CNPq.
Endereço para correspondência: [email protected].
30 | InterAção
risco de fazer das Leis Fundamentais simples fachadas, com meras
funções de “mistificación ideológica del conjunto”. Justamente com
o intuito de responder a esses problemas, Ferrajoli elaborou a teoria
que leva o nome de “garantismo”, nascida no direito penal como uma
constatação ao desrespeito dos direitos humanos e fundamentais.
Posteriomente, apresenta o constitucionalismo multinível, como uma
prosposta voltada a necessária conexão entre o direito constitucional
e o internacional. Destaca-se que não se pretende esgotar o assunto,
mas sim apresentar um outro horizonte que deve ser trabalhado na
perspectiva cosmopolita.
Palavras-chave: Novo Direito Internacional, consticionalismo, humanidade, direitos humanos e fundamentais.
Abstract
Contemporary law studies are mainly marked by characte-
ristics of post-Second World War period, and it is possible to state
that a new International Law has been emerging for people or for
humanity as a whole. The jus gentium seeks to overcome the discredi-
ted legal positivism, and it recognizes that above the will of the States
there is the human conscience. In this sense, Luigi Ferrajoli states
that the traditional constitualism, that is only directed to the internal
perspective, comprises an absence of efficacy in the several levels of
state powers, raising the risk of taking Fundamental Laws as a mere
facade with the simple role of “mistificación ideológica del conjunto”.
In order to reflect on this point, Ferrajoli has created a theory called
InterAção | 31
garantism from criminal law as evidence of disrespect to human and
fundamental rights. Later, he presents the multilevel constitutiona-
lism as a proposal aimed at linking constitutional and international
law. We do not intend to exhaust the subject, but to present another
view to be considered in the cosmopolitan perspective.
Keywords: New International Law, constitucionalism, humanity, human and fundamental rights.
INTRODUÇÃO
Inicialmente vale salientar que para Ferrajoli, a teoria garantista
pode ser percebida através de diferentes concepções, baseando-se na redefinição do modelo normativo de direito, da crítica do direito e da po-
lítica (FERRAJOLI, 2000, p. 851-2). Todas essas abordagens buscam
fugir do legalismo e avançar em termos democráticos. Ademais, para
fugir do que ele chama de “anarquia planetária”(FERRAJOLI, 2007, p.
554), propõe uma ordem internacional baseada em um modelo federado, com determinadas alterações no conjunto atual da Organização das
Nações Unidas. Busca a defesa de uma esfera pública global heterônoma, baseando-se em um aumento da descentralização de poder.
A formação de uma nova esfera pública seria pleiteada por
uma democracia global, almejada pelo lado oposto àquele que foi seguido na construção da democracia constitucional dos ordenamentos nacionais. Ele defende uma refundação do direito internacional
através de vínculos entre legislações que estabelecem repartições em
diferentes níveis – multiníveis – de competência. Dentre os empe-
32 | InterAção
cilhos ao constitucionalismo multinível, Ferrajoli coloca a indispo-
nibilidade das grandes potências e dos impérios multinacionais em
submeterem-se a limitações de qualquer tipo.
A dúvida que persiste ao ler a obra do autor italiano é sobre o
progressivo “constitucionalismo muttilivello senza Stato” (FERRAJOLI, 2007, p. 558). Não existe empecilho sobre a correta exposição
do autor no tocante à construção de uma esfera pública global e ao
reconhecimento do pluralismo dos ordenamentos. Entretanto, mos-
tra-se complicado concordar com a teoria de um constitucionalismo
sem Estado. O papel do Estado é importante ao constitucionalismo,
mesmo que seja em níveis diferenciados, como quer Ferrajoli. Quiçá,
o desafio seja identificar qual o nível e o comprometimento de cada
Estado neste processo.
1 O garantismo e o constitucionalismo
A teoria garantista apresenta três acepções diversas, mas re-
lacionadas entre si: “modelo normativo de direito; teoria do direito e
crítica do direito; filosofia do direito e crítica da política”. Segundo
a primeira, o garantismo designa um modelo normativo do direito,
precisamente porque ligado ao direito penal, no que toca a estrita
legalidade, princípio basilar do Estado de Direito que, no plano epis-
temológico, se caracteriza como um sistema cognoscitivo ou de poder
mínimo; no plano político, como uma técnica de tutela capaz de mi-
nimizar a violência e maximizar a liberdade; no plano jurídico como
um sistema de vínculos impostos à vontade punitiva do Estado em
garantia dos direitos dos cidadãos. “En consecuencia, es garantista
InterAção | 33
todo sistema penal que se ajusta normativamente a tal modelo y lo
satisface de manera efectiva” (FERRAJOLI, 2007, p. 851-2).
Mas, essa acepção, apontada por Ferrajoli, deve ser observada
a partir de graus, ou seja, segundo ele “al tratarse de um modelo límite,
será preciso hablar, más que de sistemas de garantistas o antigarantis-
tas tout court, de grados de garantismo (...)”(FERRAJOLI, 2007, p.
851-2). Isso quer dizer que, se os princípios constitucionais são efetivamente implementados, existe um grau alto de garantismo, enquanto
que, se não são respeitados, ocorre um baixíssimo grau de garantismo.
Alem disso, pode-se medir a bondade de um sistema constitucional
mediante os mecanismos de invalidação e reparação idôneos para assegurar a normatividade dos mencionados direitos. Daí que é mencionada uma máxima: “una Constitución puede ser avanzadísima por
los principios y los derechos que sanciona y, sin embargo, no pasar de
ser un pedazo de papel se carece de técnicas coercitivas (…)”(FERRAJOLI, 2007, p. 852). Isso significa a necessidade de garantias que
permitam o controle e a neutralidade das funções estatais em busca
de um direito legítimo. Em outro sentido, o grau de garantismo é
medido pelo grau de efetividade das normas constitucionais.
A segunda acepção que trata da teoria e crítica do direito de-
signa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias
distintas não somente entre si, mas também com relação à existência
ou vigência das normas. Nessa linha de orientação, a palavra garantis-
mo expressa uma aproximação teórica que mantém separados o ser e
o dever ser no direito, incluindo uma questão teórica central, baseada
na divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos
normativos e práticas operativas (FERRAJOLI, 2000, p. 851).
34 | InterAção
Sergio Cademartori refere que, nesta segunda abordagem,
garantismo direciona-se às teorias da validade, da efetividade e da vigência normativa, compreendidas como diferentes entre si. Isto é que
permite a percepção da diferença entre “ser e dever-ser” no direito,
verificando-se a dissonância existente entre os modelos normativos
(tendencialmente garantistas) e as práticas efetivas (tendencialmente
antigarantistas) como seu problema central. Quanto aos primeiros,
pode-se dizer que são válidos, mas ineficazes e, quanto às práticas, são
inválidas, porém eficazes. Assim, Ferrajoli apresenta redefinições dos
conceitos tradicionais de vigência, validade, legitimidade e eficácia
(CADEMARTORI, 2006, p. 97-8).
É sabido que existem diferentes conceitos para vigência, vali-
dade e eficácia, mas, para muitos dos mais reputados autores, a noção
de validade corresponde à noção simplista de existência jurídica, ou
seja, é fruto de um procedimento previsto em norma superior (KELSEN, 1998; HART, 2007; BOBBIO, 2003). Porém, esse critério não
leva em consideração o fato de que o Estado Constitucional incor-
pora princípios étíco-políticos que exigem uma redefinição com base
em critérios de legitimidade internos. Assim, o garantismo estabelece
uma importante distinção entre quatro predicados que podem se imputar às normas: justiça, vigência, validade e eficácia (efetividade):
a) uma norma é justa quando responde positivamente a determinado critério de valoração
ético-político (logo, extrajurídico);
b) uma norma é vigente quando é despida de
vícios formais; ou seja, foi emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de
acordo com o procedimento prescrito;
InterAção | 35
c) uma norma é válida quando está imunizada contra vícios materiais; ou seja, não está
em contradição com nenhuma norma hierarquicamente superior;
d) uma norma é eficaz quando é de fato observada pelos seus destinatários (e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação) (CADEMARTORI, 2006, p. 101-2).
Segundo Cademartori, a relevância dessa distinção está no
fato de que as qualidades apresentadas são totalmente dissociadas en-
tre si, sendo a finalidade da distinção justamente salientar a diferença
entre vigência e validade. “Por exemplo, uma norma pode ser justa e
no entanto não observada (não eficaz) e vice-versa, uma norma pode
ser observada embora injusta”. Para Ferrajoli, ainda pode acontecer
que “uma norma seja vigente e eficaz mesmo sendo inválida, como
pode acontecer que uma norma seja válida mas nem por isso eficaz”
(CADEMARTORI, 2006, p. 102).
Já a terceira acepção se liga à filosofia do direito e da política.
Logo, o garantismo designa uma filosofia política que desperta no di-
reito uma carga de justificação externa conforme os bens e interesses
cuja tutela e garantia constitui precisamente a finalidade de ambos.
Com efeito, neste último sentido o garantismo pressupõe a doutrina
laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre
um ponto de vista interno e outro externo, quer dizer, entre ser e dever
ser (FERRAJOLI, 2000, p. 853).
Pelo que foi exposto, é possível verificar que Ferrajoli não
nega um certo viés positivista, denominado-se como positivista crítico. Essa posição é diversa daquela concebida por Gustavo Zagrebelsky, que nega a contribuição iluminista ao movimento que hoje se
36 | InterAção
denomina neoconstitucionalismo (ZAGREBELSKY, 2007)2.
Ao contrário, o garantismo de Ferrojoli caracteriza-se por ser
uma crítica do direito positivo vigente, não meramente no panorama
externo, mas também no interno, posto que ataca aspectos relacionados à efetividade e à validade. Como afirma o próprio autor:
Este planteamiento, que bien podemos llamar positivismo crítico, se refleja en el modo de concebir
el trabajo del juez e del jurista, y pone en cuestión
dos dogmas del positivismo dogmático: la fidelidad
del juez a la ley y la función meramente descriptiva
y avalorativa del jurista en relación con el derecho
positivo vigente (FERRAJOLI, 2000, p. 872).
A partir das reflexões apontadas, a estrutura garantista con-
siste em incluir valores como limites ou deveres em níveis mais altos
do ordenamento constitucional, com a finalidade de limitar os demais
poderes do Estado. Mas, uma vez incorporados aos níveis mais altos,
2 Miguel Carbonell acredita que existem três distintos níveis a serem analisados ao
tratar de neoconstitucionalismo. Dentre eles está a época histórica, pois este novo
movimento constitucional pretende explicar um conjunto de textos constitucionais
que surgem depois da Segunda Guerra Mundial, mais particularmente a partir dos
anos setenta do século XX. Em segundo lugar, estão as práticas jurisprudenciais, que
exigem dos juízes novos parâmetros interpretativos. Aqui, entram em jogo técnicas
hermenêuticas apoiadas em princípios constitucionais e em diferentes teorias, como
a da ponderação, a da proporcionalidade, a da razoabilidade, a da maximização dos
efeitos normativos dos direitos fundamentais, dentre outras. O terceiro e último nível
está ligado a novos desenvolvimentos teóricos, que partem do sentido material de
textos constitucionais para tentar explicar os fenômenos jurídicos. Podem-se citar
várias doutrinas, como por exemplo, a de Ronand Dworkin, Robert Alexy, Gustavo
Zagrebelky, Luigi Ferrajoli, Carlos Nino e Luis Prieto Sanchís (CARBONELL, 2007).
InterAção | 37
os valores são confiados aos órgãos judiciais para apreciação.
De fato, o poder de disposição através de valorações livres,
que no Estado Absoluto era admitido desde baixo pelos fatos, no
Estado de Direito encontra-se excluído desde baixo, mas deve ser
admitido a partir de cima. “En todos casos, con los valores no caben
exorcismos: si se expulsan por la puerta, entran de nuevo por la ven-
tana. Y en el fondo está bien que así sea”( FERRAJOLI, 2000, p. 872).
Ferrajoli quer dizer que estas aporias do garantismo não têm nada de
supreendentes; apenas exigem que se criem distâncias entre as promessas normativas e as práticas efetivas do ordenamento.
Essa reinterpretação do contratualismo clássico, funciona
como um esquema de justificação do Estado, enquanto instrumento
de tutela dos direitos fundamentais. Nesse sentido, para Ferrajoli, as
diversas crises pelas quais passa o Estado, como por exemplo a crise
do princípio da legalidade, da estrutura do Estado de Bem-Estar So-
cial e do próprio Estado Nacional, não podem dar margem a nenhum
tipo de descodificação, deslegislação ou de desregulamentação, mas,
ao contrário, deve ocorrer uma aproximação do direito ao concreto
funcionamento das instituições jurídicas. Por isso, o direito relaciona-se com uma realidade – não natural, mas artificial - construída através dos homens, os quais têm responsabilidade com a humanidade. A
alteração em diversos planos do modelo positivista clássico, proposta
por Ferrajoli, além de abarcar a teoria do direito, em que propõe uma
revisão aos planos da existência, validade e eficácia, como foi ora de-
monstrado, alcança também o plano da teoria política, em que há
uma revisão da concepção puramente procedimental da democracia e
o reconhecimento da dimensão substancial.
38 | InterAção
Para Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori e Sergio
Cademartori quando se trata da relação entre Estado de Direito e
Democracia deve-se ter sempre presente a associação realizada por
Norberto Bobbio e Luigi Ferrajoli, sendo que a natureza de tal vínculo diz respeito ao alcance do conceito de democracia. Bobbio con-
sidera que é preciso não confundir Estado de Direito e democracia.
Em que pese um juízo a respeito da segunda, dever sempre considerar
a existência ou não da primeira. Para Ferrajoli, que trabalha a partir
das noções de Bobbio, ocorre a ampliação do conceito de Estado de
Direito cruzando todos os poderes à tutela substancial de direitos: “o
Estado de direito não surge só historicamente antes do democrático
(...), mais do que isto, este Estado é axiologicamente anterior ao Es-
tado democrático” (CADEMARTORI; CADEMARTORI, 2006,
p. 145). Na verdade, os juristas brasileiros estão chamando a atenção
para o aspecto substancial da democracia, defendido por Ferrajoli.
Se comprende (...) que una tal dimensión substancial del Estado de derecho se traduce en dimensión sustancial de la propria democracia. En efecto,
los derechos fundamentales constituyen la base
da la moderna igualdad, que es precisamente una
igualdad en droits, en cuanto hacen visibles dos
características estructurales que los diferencian
de todos los demás derechos, a empezar por el de
propiedad: sobre todo su universalidad, es decir, el
hecho de que corresponden a todos y en la mesma
medida, al contrario de lo que sucede con los derechos patrimoniales, que son derechos excludendi
alios, de los que un sujeto puede ser o no titular y
de los que cada uno es titular con exclusión de los
demás; en segundo lugar, su naturaleza de indisponibles e inalienables, tanto activa como pasiva,
que los sustrae al mercado y a la decisión política,
InterAção | 39
limitando la esfera de lo decidible de uno y otra y
vinculándola a su tutela y satisfacción (FERRAJOLI, 2006, p. 23).
Dessa forma, a constitucionalização dos direitos fundamen-
tais serve para injetar uma dimensão não apenas formal, mas subs-
tancial no próprio direito - como ciência social - e na democracia.
Ferrajoli traz algumas redefinições para soberania popular: “una ridefinizione della sovranità popolare: a) come garanzia negativa; b) come
somma dei diritti fondamentali” (FERRAJOLI, 2007, p. 9). É patente
a superação da democracia apenas em sua perspectiva representativa
pelo voto nas urnas; assim, mesmo referindo o primeiro significado
como representativo da democracia política, surge o segundo significado compatível com o paradigma democrático constitucional que
está associado ao direitos fundamentais. Para Ferrajoli:
(...) La formula la sovranità appartiene al popolo
vuele quinde dire, cioè di tutte le persone di cui il
popolo si compone: appartiene, in brevi, a tutti e a
ciascun cittadino, in quanto equivale alla somma di
quei poteri e contro-poteri di tutti – i diritti politici,
i diritti civili, i idiritti de libertà e i diritti sociali –
che sono i diritti fondamentali constitucionalmente
stabiliti (…) (FERRAJOLI, 2007, p. 9).
Esses direitos fundamentais não estão total disposição dos
cidadãos, mas justamente devem ser analisados no caso concreto. E,
precisamente, porque estão previstos na Constituição, podem ser usados também pelo mercado e pela política, formando “la ‘esfera de lo
indecidible que’ y de lo ‘indecidible que no”; atuando como fatores
não somente de legitimação, mas também e, sobretudo, como fato-
40 | InterAção
res de deslegitimação das decisões e das não decisões (FERRAJOLI,
2006, p. 24). Aqui entra, novamente, a discussão em torno do papel
dos juízes e da sua legitimação democrática.
Para Ferrajoli, atualmente, a sujeição do juiz à lei já não é
como no Estado Legislativo, baseado no velho paradigma positivista. Ao contrário, a jurisdição constitucional deve ser pautada pela lei
válida ou coerente com a Constituição. Ademais, esta legitimação do
Poder Judiciário não tem nada a ver com a democracia política, ligada
à representação. “No deriva da la voluntad de la mayoría, de la que
asimismo la ley es expresión”. O fundamento é unicamente a intangi-
bilidade dos direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2006, p. 27). Essa
pertinente colocação quer dizer que a legitimação democrática dos
juízes deriva da própria função de garantidor dos direitos fundamentais, em que se baseia a ideia de democracia substancial.
Nessa linha de orientação, os princípios da igualdade e
da legalidade se unem - “como la otra faz de la misma medalla –
con el segundo fundamento político de la independencia del juez: su
función de averiguación de la verdad procesal, según las garantías del
justo proceso.”(FERRAJOLI, 2006, p. 27).
Há que se concordar com o autor quando se refere ao im-
portante papel dos juízes nas democracias constitucionais contem-
porâneas, principalmente nos países “em via de desenvolvimento”,
em que o processo político eleitoral é muitas vezes dominado por
fatores econômicos e pela mídia, nem sempre neutra e imparcial.
Observa-se que Ferrajoli, mesmo estando inserido em um contexto
cultural diferenciado, em um continente já em franco processo de
integração, critica as doutrinas procedimentalistas e consensualistas.
InterAção | 41
Veja-se longa transcrição da obra:
Aquí, de nuevo, no juega el principio de mayoría.
Es más, no sólo resulta extraño, sino que está en
contradicción con el fundamento específico de la
legitimación del poder judicial. Ninguna mayoría
puede hacer verdadero lo que es falso, o falso lo
que es verdadero, ni por tanto, legitimar con su
consenso una condena infundada por haber sido
decidida sin pruebas. Por eso me parecen inaceptables y peligrosas para las garantías del justo proceso y, sobre todo, del proceso penal las doctrinas
consensualistas y discursivas de la verdad que – nacidas en el contexto de disciplinas muy diferentes,
como la filosofía de las ciencias naturales (Kuhn),
o la filosofía moral o política (Habermas) – algunos penalistas y procesalitas querrían importar
ahora en el proceso penal, quizá para justificación
de esas instituciones aberrantes que son las negociaciones sobre la pena. En efecto, ningún consenso – ni el de la mayoría, ni el del imputado – puede valer como criterio de formación de la prueba.
Las garantías de los derechos no son derogables
ni disponibles. Aquí, en el proceso penal, no valen
otros criterios que los ofrecidos por la lógica de
la inducción: la pluralidad o no de las pruebas o
confirmaciones, la ausencia o presencia de contrapruebas, la refutación o no de las hipótesis a la de
la acusación (FERRAJOLI, 2006, p. 27-28).
É necessário deixar claro que as divergências entre as posturas
substancialistas (que abrangem as questões de Estado voltadas aos
conteúdos materiais da Constituição, atentando à mudança no “status
quo” da sociedade, defendendo o papel da justiça constitucional na
efetivação dos direitos fundamentais) e procedimentalistas (que aco-
plam a noção de democracia procedimental, baseada em Habermas
e no ideal do consenso) não devem ser entendidas como oposições
42 | InterAção
radicais, a ponto de se pensar que o substancialismo não é pluralista
ou que o procedimentalismo é baseado em formalismos. “Também
não se pode pensar que uma é democrática, e a outra não, ou que os
procedimentalistas não estão preocupados com a concretização dos
direitos fundamentais e com a preservação da Constituição”. Na verdade, como Streck argumenta, os caminhos é que são diferentes, por-
que calcados em paradigmas filosóficos distintos (STRECK, 2009, p.
35-36).
Partindo dessa postura substancialista, Ferrajoli, igualmen-
te, refere que o modelo garantista está sendo continuamente atacado;
primeiro, pela própria incoerência e falta de plenitude gerada pelas
constantes violações a direitos fundamentais; segundo porque o Estado Democrático de Direito, não consegue dar conta das demandas
por direitos sociais, difusos e coletivos; e por último, pela alteração no
sistema de fontes do direito, já que existe o ingresso de legislações in-
ternacionais nos ordenamentos internos (FERRAJOLI, 2006, p. 30).
Pelo exposto, percebe-se que estão ocorrendo importantes alterações na
estrutura do constitucionalismo que está na base da função mesma do
direito, como sistema de garantias (FERRAJOLI, 2002, p. 53). Por isso,
é urgente que a cultura jurídica avance, para um processo de integração
internacional, mas com a devida atenção aos pilares constitucionais.
2 Por um Constitucionalismo de direito internacional ou por um direito
internacional voltado ao constitucionalismo?
É sabido que o paradigma constitucional nasceu e perma-
neceu, até o momento, atrelado à forma do Estado Moderno. No
InterAção | 43
entanto, segundo Ferrajoli, esta ligação entre Estados, Constituição
e garantia de proteção aos direitos fundamentais é totalmente con-
tingente e não reflete nenhuma necessidade teórica (FERRAJOLI,
2002, p. 53).
Naturalmente, como já foi mencionado neste trabalho, a glo-
balização acarretou a urgência de se pensar novos padrões para enfrentar as diferentes crises pelas quais passa o Estado e o constitucionalismo. Nessa perspectiva, Ventura expressa que, atualmente, existe
uma “caixa de ressonância de eventos no plano global”. Sabe-se que
os governos condicionam-se mutuamente pelas organizações inter-
nacionais e, além disso, pela atuação das corporações transnacionais.
Da mesma forma, os indivíduos reagem a fatos e gestos, devido à
facilitação da comunicação pelos meios tecnológicos, principalmente
à internet. Os movimentos sociais participam em redes cada vez mais
amplas. Assim, o papel do direito internacional atua justamente na
busca por uma passagem da “opinião pública” para a “esfera públi-
ca”, ou seja, na produção de uma tecnologia jurídica capaz de dotar
de maior legitimidade o processo de tomada de decisões na esfera
mundial (VENTURA, 2009, p. 18; VENTURA, 2003; VENTURA,
2008,. p. 223-240.
Da mesma forma, Ferrajoli expõe certos motivos para se de-
senvolver um constitucionalismo de direito internacional, já que, para
ele, as crises do Estado podem ser superadas em sentido progressivo,
com uma despotencialização e deslocamento para o plano internacional das bases do constitucionalismo: “não apenas as sedes da enuncia-
ção dos princípios, como já aconteceu com a Carta da ONU e com as
Declarações e Convenções sobre direitos humanos, mas também de
44 | InterAção
suas garantias concretas.” (FERRAJOLI, 2002, p. 53).
Para corroborar suas afirmações, Ferrajoli coloca alguns ar-
gumentos de Francisco de Vitoria, como a hipótese do “totus orbis”
(mundo inteiro) – a humanidade, no lugar dos Estados, como referencial unificador do direito. Para o jusfilósofo contemporâneo esta
possibilidade hoje pode ser realizada por meio da elaboração de um
constitucionalismo mundial, apto a oferecer a tutela das várias Car-
tas de direitos fundamentais. Estes documentos devem ser levados a
sério como cultura jurídica e política, cuja garantia deve ser feita pela
ONU e pelos Estados que dela fazem parte (FERRAJOLI, 2002, p.
54). É interessante pontuar que Ferrajoli destaca a necessidade de
despotencialização dos Estados para que o direito internacional se
fortifique. A questão que se apresenta é se não seria vantagem, em
curto prazo, a fortificação dos Estados e o desenvolvimento do di-
reito internacional sob o viés neoconstitucional, ou seja, atentando
pela primazia dos direitos e das garantias substanciais inseridas nas
próprias Constituições estatais.
Ferrajoli reitera que não se está pensando de forma alguma
num improvável governo mundial. Mas, simplesmente, imagina-se a
perspectiva indicada há mais de cinquenta anos por Kelsen, em seu
livro “La paz por medio del derecho”, no qual se desenvolveu uma li-
mitação efetiva da soberania dos Estados através dos instrumentos de
garantias jurisdicionais contra violações à paz e aos direitos humanos
ou fundamentais (FERRAJOLI, 2002, p. 53).
Segundo as bases kantianas, Ferrajoli defende a antinomia
entre o direito e a guerra, chegando a dizer que há uma contradição
de bases terminológicas:
InterAção | 45
(...) La guerra può essere giustificata com ragioni extra-giuriche, di tipo economico, o politico o
perfino morale. Ma non può mai essere qualificata
legale, per la contraddizione che non lo consente
tra diritto e guerra. Il diritto, infatti, è regolazione dell’uso della forza, laddove la guerra – al pari
della criminalità omicida e di ogni altra form di
violenza selaggia – è violenza sregolata. Per questo,
poiché la sola foza qui potulata come permessa dal
diritto è quella sottoposta a regole, la guerra, in
quanto uso sregolato della forza, è, all`interno di
qualsiasi ordinamento giuridico, vietata (FERRAJOLI, 2007, p. 499).
Assim, o direito é um instrumento de busca pela paz, isto é,
deve ser uma técnica para solução pacífica das controvérsias. Porém,
obviamente que ainda existe um longo caminho pela frente para que
essa paz se efetive.
Vale observar a seguinte citação de Vitoria: “sendo uma repú-
blica parte do mundo inteiro..., acredito que, se a guerra for útil a uma
só província ou república, mas danosa para o mundo ou para a cristandade, por isso mesmo tal guerra é injusta” (FERRAJOLI, 2002, p. 56).
Ferrajoli sublinha quatro sugestões pontuais, começando por
uma reforma da Corte Internacional de Justiça de Haia, atualmente,
com uma atuação de pouquíssima relevância. Dentre as propostas estão: a) aumento de competência que gira apenas em torno das con-
trovérsias entre Estados, sendo que a extensão deve abarcar também
os julgamentos de responsabilidade em matéria de guerras, ameaças à
paz e violações dos direitos fundamentais; b) obrigatoriedade da sua
jurisdição, hoje ainda subordinada à aceitação preventiva dos Estados;
c) reconhecimento, também, aos cidadãos da capacidade postulatória
perante a Corte; d) introdução da possibilidade de responsabilização
46 | InterAção
pessoal dos governantes por crimes de direito internacional (FERRAJOLI, 2002, p. 56).
Cita, ainda, a necessidade de um paulatino desarmamento dos
Estados e a proibição de armas como bens lícitos. Indica outra afirmação de Vitoria sobre os direitos dos povos, que no passado foram
enunciados em benefício dos conquistadores e que deveriam hoje ser
reconhecidos como forma de ressarcimento dos povoados aborígines
depredados no passado. Registra-se a citação do doutrinador italiano:
o ius migrandi para nossos países ricos e de
neles adquirir cidadania por força do simples
título, proclamado por Vitoria, de todos nós
sermos homens, e ergo videtur quod amicitia
inter homines sit de iure naturali, et contra naturam est vitare consortium hominum innoxiorum (é, portanto, evidente que a amizade dos
homens faz parte do direito natual, e que é
contra a natureza evitar o consórcio dos homens probos) (FERRAJOLI, 2002, p. 57).
É possível verificar uma fina ironia no texto de Ferrajoli, ao
relatar que os direitos naturais, em que foram baseados os direitos humanos das primeiras declarações dos Estados Modernos, eram reco-
nhecidos a todos os seres humanos (com exceção dos direitos políticos).
Naquele tempo, em que foram prometidos a todos, não se imagina-
va que os homens e mulheres do Terceiro Mundo pudessem chegar
à Europa e pedir para serem levados a sério em nome da reciprocida-
de (FERRAJOLI, 2002, p. 57). Hoje, depois de terem se aproveitado
dos benefícios, é difícil aos Estados revisitarem seus conceitos para, a
partir deles, exercer a tolerância e a aceitação do outro e do diferente,
InterAção | 47
simplesmente por pertencer à espécie humana. Está completamente
correto Ferrajoli quando afirma a urgência de reconhecer o caráter supra-estatal dos direitos humanos e garanti-los não apenas dentro, mas
também fora e contra os Estados, mas isso não retira a importância do
constitucionalismo interno desenvolvido por cada país.
Nesse sentido, merece destaque a dimensão normativa da ci-
ência jurídica. Ferrajoli diz-se positivista crítico, porque, mesmo re-
provando o racionalismo iluminista não desconsidera os benefícios
da razão. Até, por esse motivo, ressalta que, graças à manutenção
da racionalidade nas formas de direito internacional positivo, já se
tem, em outras palavras, “uma Constituição embrionária no mundo”
(FERRAJOLI, 2002, p. 60-1). O que isso quer dizer? Significa simplesmente que os valores cosmopolitas como proibição à guerra, direitos dos homens e dos povos, que inicialmente surgiram ligados aos
valores burgueses, formais, do Estado Moderno, depois da Segunda
Guerra Mundial adquirem nova conotação, impondo-se como horizonte axiológico e deontológico nas Constituições contemporâneas.
É mais fácil a procura pelo relacionamento harmônico entre o
direito internacional e o direito constitucional com vistas à efetividade
e ao fortalecimento dos instrumentos internos de proteção aos direitos
fundamentais, do que a busca por um novo Leviatã internacional.
3 Apontamentos sobre o constitucionalismo multinível correlato ao
cosmpolitismo policêntrico e considerações finais
Contra a ideia de um globalismo jurídico unicêntrico, Fer-
rajoli propõe um cosmopolitismo jurídico policêntrico e pluralístico,
48 | InterAção
baseado principalmente nas distinções entre as funções governo e a
legitimidade de representação política, asseguradas sobretudo através
das instituições estatais, infraestatais e supraestatais. Ele afirma que
esse é um modelo bem distante da atual estrutura da ONU, que corresponde, na verdade, a um frágil modelo confederado (FERRAJOLI, 2007, p. 553). Percebe-se que a proposta apresentada não é apenas
uma referência utópica, já que a correspondência com a realidade está
exposta em seu texto:
(...) Oggi, di fato, le funzioni di governo mondiale sono detenute ed exercitate soprattutto da un
governo locale, quello della superpatenza statunitense; laddove le funzione di garantizia – ove
riguardino aggressioni globali a diritti e beni fondamentali come la pace, la sicurezza, la sussistenza
e la salvaguardia del l’ambiente – sono di fatto impossibili a livello locale e sono d’altro canto prive,
a livello internazionale, delle corrispondenti instituzioni di garanzia (FERRAJOLI, 2007, p. 553).
Com isso, é factível a aplicação de sua teoria. Vive-se um pe-
ríodo em que algumas superpotências, como os Estados Unidos, exercem um poder muito grande sobre o restante dos países, o que leva a
agressões globais de diferentes dimensões, sem a correspondente pro-
teção internacional. Até mesmo a ONU apresenta, em determinados
momentos, posições parciais, tendo em vista os interesses, mesmo que
de forma indireta, dos Estados que formam o Conselho de Segurança.
Assim, ocorre que os Estados e a própria sociedade deparam-
-se com um tipo de “anarquia planetária”. Mas como enfrentar o di-
lemas que envolvem o embate entre diferentes espécies de Leviatãs?
InterAção | 49
Ferrajoli apresenta uma alternativa a essa regressão da ordem inter-
nacional à guerra global infinita, que seria a transformação gradual
do modelo confederado ao modelo federado (FERRAJOLI, 2007, p.
553). Tratar-se-ia de uma necessidade jurídica de fechar as lacunas
que existem quanto à proteção dos direitos e garantias fundamentais:
(...) Si tratta di um obbligo non solo universale
(omniu) in capo a tutti gli Stati e alle Nazioni Unite, ma anche assoluto (erga omnes), dato che vincola gli Stati non solo nei confronti dei loro popoli
e dei loro cittadini, ma di tutti popoli e di tutti gli
esseri umani del mondo: di un principio, quindi, di
solidarietà insieme attiva e passiva, consistente nei
doveri assoluti de garanzia cui sono tenuti i primi,
correlativamente ai diritti universali di cui sono
titulari i secondi (...) (FERRAJOLI, 2007, p. 553).
Na defesa do universalismo dos direitos humanos ou funda-
mentais e na busca pela paz, devem atuar tanto os constitucionalistas
como os internacionalistas. Por isso, a sugestão é que se reconstrua
uma “esfera pública global”, onde o sentido do público seja diverso
do atual, para efetivação desses direitos, já que isso dificilmente ini-
ciará pela esfera privada, onde opera mais fortemente a economia.
Para Ferrajoli: “la esfera pubbica è infatti una esfera eteronoma, e può
essere prodotta solo dalla politica e dalla sua capacità di regolare e
governare l’economia invertendo l’attuale suditanza della prima alla
seconda” (FERRAJOLI, 2007, p. 555).
Hoje, a esfera pública edificada sobre os tradicionais Estados
e depois sobre as instituições internacionais e supranacionais consiste
numa rede intrincada e confusa, que edifica um “labirinto” formado
50 | InterAção
por sucessivas acumulações e estratificações. Essa desagregação é per-
cebida, igualmente, na falência da estrutura hierárquica e piramidal
em que se baseavam os Estados. A antiga estrutura é substituída por
um desenho fragmentado, desorganizado e heterogêneo de organizações públicas e parapúblicas, supra, inter ou transnacionais, caracterizadas de forma puntiforme e reticular e, obviamente, incapazes
de dar conta de um sistema econômico e social desterritorializado,
composto, ainda, por muitas empresas multinacionais (FERRAJOLI,
2007, p. 553).
Há que se concordar com o autor quando afirma que a atual
globalização configura-se pela regressão às formas pré-modernas:
Il pluralismo degli ordinamenti, la loro concorrenza, la confusione e l’anarchia delle fonti che caratteizzano l’attuale assetto dei rapperti tra Stati, istituzioni sovranazionali e insituzioni internazionali
ricordano gli analoghi fenomeni che caratterizzarono i sistiemi giuridici premoderni, parimenti
contrassegnati dalla convivenza in un medesimo territorio e dalla soggezione delle medesime
persone a più ordinamenti: la Chiesa, l’Impero, i
principati, le municipalità, le corporazioni e simili
(FERRAJOLI, 2007, p. 556).
Como foi possível verificar, existe um infindável número de
forças concorrentes, o que leva à descentralização de poder como
acontecia na Idade Média. A diferença é que, hoje, a ordem interna-
cional dispõe do que Ferrajoli denomina de Constituições embrionárias – a Carta da ONU e as diversas Cartas de direitos –, que evidenciam normativamente o paradigma de um constitucionalismo global
(FERRAJOLI, 2007, p. 556). A formação de uma nova esfera pública
InterAção | 51
e de uma democracia global deve ser buscada pelo lado oposto àquele
que foi seguido na construção da democracia constitucional dos ordenamentos nacionais. Não se deve observar o Estado Constitucional
sob o prisma Estado Legislativo de Direito, mas sim pleitear a refundação do direito internacional através de vínculos entre legislações
que estabelecem repartições em diferentes níveis – multinível – de
fontes de competência. Ademais, deve-se buscar a separação entre
instituições de governo e instituições de garantia; bem como a neces-
sária reabilitação do princípio da legalidade como limite e vínculo a
todos os poderes, sejam públicos ou privados (FERRAJOLI, 2007, p.
556). Obviamente, que esse projeto universalístico apresenta enormes
dificuldades jurídicas, políticas, sociais e culturais.
Dentre os obstáculos ao constitucionalismo multinível, Fer-
rajoli cita a indisponibilidade das grandes potências e dos grandes
impérios multinacionais em submeterem-se a limitações de qualquer
tipo. Por outro lado, sobre o plano teórico, refere que o principal problema é o da correspondência entre a natureza dos dilemas e os níveis de competência para solucioná-los em seus diversos planos de
atuação. É claro que os assuntos ligados à paz, ao desarmamento e à
proteção do equilíbrio ecológico do planeta, bem como à implementação dos direitos sociais, são questões de nível global, o que leva à
exigência de instrumentos de proteção globais, mas também locais
(FERRAJOLI, 2007, p. 556-7). Pelo que foi exposto até o momento, é verificável que Ferrajoli mantém as atribuições do Estado como
sendo de fundamental importância para o desenvolvimento do constitucionalismo multinível.
Nesse sentido, conforme redação literal da obra do referido autor:
52 | InterAção
La costruzione di uma sfera pubblica globale secondo el paradigma federale costringe percià a
ripensare sia lo Stato che l’ordine internazionale.
Essa non implica affatto uma riduzione del ruolo garantista degli Estati, ma al contrario la sua
integrazione ai livelli sovrastatali, ove quel ruolo
sia negato o violato o impedito o indebolito dagli
odieni processi di globalizzazione (FERRAJOLI,
2007, p. 557).
Ferrajoli não está flexibilizando a teoria garantista, já que
mantém a importância dos Estados como agentes fundamentais na
implementação dos direitos fundamentais, apenas refere que, se não o
fizeram, poderão ocorrer intervenções supranacionais.
Em suma, o declínio da antiga soberania estatal é “un cololla-
rio di qualunque ordinamento internazionale, tanto più se modellato
nelle forme garantiste della democrazia constituzionale”. Isto signi-
fica que é preciso a refundação interna das democracias ocidentais,
assim como a fundação de uma democracia da ordem internacional.
Aqui está a chave da ideia de Ferrajoli, ou seja, é importante uma
refundação que comporte um aumento da esfera pública, através de
múltiplas combinações – “di sussidiarietà, di divisione, di separazione”
– e através de diversos níveis de instituições, buscando o alargamento
do direito internacional ao paradigma da democracia constitucional
(FERRAJOLI, 2007, p. 557)3. Não existe dúvida sobre a correta ex-
3 Sob a mesma perspectiva, ou seja, da busca por uma aproximação do Direito
constitucional ao Direito Internacional, caminha a teoria da interconstitucionalida desenvolvida por Joaquim José Gomes Canotilho. (CANOTILHO, 2006).
InterAção | 53
posição do autor de que a construção de uma esfera pública global
supõe o reconhecimento do pluralismo dos ordenamentos. Por isso, é
difícil concordar com a teoria de um constitucionalismo sem Estado,
o papel do Estado sempre existirá no constitucionalismo, mesmo que
seja em diferentes níveis, como quer Ferrrajoli.
Mesmo não concordando com a terminologia “constituciona-
lismo sem Estado”, expõem-se os cinco elementos, apresentados pelo
doutrinador italiano, para estruturação desta proposta: o primeiro é
que deve existir um espaço autônomo, reservado à Constituição; o
segundo, derivado do primeiro, se refere aos direitos fundamentais,
de caráter individual ou social, bem como o princípio em defesa da
paz, que deve possuir caráter universal; o terceiro é a manutenção
dos princípios da legalidade e de submissão ao direito; o quarto elemento conexo com os outros três, relaciona-se ao funcionamento de
governo, atentando, para importância da efetivação das garantias; já o
quinto elemento liga-se ao modelo federado.
Essa articulação busca a perspectiva multinível da esfera pú-
blica e dos poderes, a qual vai acrescentar à tradicional separação ho-
rizontal entre funções de governo e funções de garantia a divisão e/
ou a separação vertical entre níveis federais e estatais (FERRAJOLI,
2007, p. 560). Com a multiplicação dos centros de poder, Ferrajoli
pretende lançar um antídoto para a involução monocrática da democracia em nível nacional e internacional.
Ainda, vale mencionar outras duas condições inseridas na refe-
rida obra “Principia iuris”, que são necessárias para o desenvolvimento
do paradigma federalista transferido para as relações internacionais.
A primeira é que não se deve imaginar a mesma estrutura estadista
54 | InterAção
própria do Estado federal, já que este é apenas uma variante do velho
Estado nacional soberano. O novo modelo se caracteriza por uma rede
de relações entre ordenamentos federados, o qual possui um grau de
divisão e separação de poder em diferentes níveis. A segunda condição
está na base social da federação (FERRAJOLI, 2007, p. 561-2).
Pelo que foi exposto, constata-se que o complicado modelo
proposto por Ferrajoli está, realmente, inserido na complexa socie-
dade atual, em que o tempo já não é mais o mesmo da Antiguidade,
da Idade Média e da Modernidade, para usar a terminologia histórica comumente utilizada. Certamente, é uma proposta profícua e que
renderá muitos desdobramentos. A crítica que se faz é sobre a posição
do ente estatal neste contexto, já que Ferrajoli não quer flexibilizar o
garantismo, mas, ao mesmo tempo, menciona a possibilidade de um
constitucionalismo sem Estado. Particularmente, quiçá em curto pra-
zo o mais plausível seja a recuperação do Estado como pressuposto
para o próprio desenvolvimento de um constitucionalismo sob o viés
cosmopolita.
REFERÊNCIAS
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Aulélio Nogueira. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade – Uma
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CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk de;
CADEMARTORI, Sergio. A relação entre Estado de direito e
InterAção | 55
democracia no pensamento de Bobbio e Ferrajoli. In: Seqüência. N. 53 –
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CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e Interconstitucionalidade.
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do Estado Nacional. Tradução de Carlo Coccioli; Márcio Lauria Filho.
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_________.Derechos y garantías. La ley del más débil. Traducción de
Perfecto Andrés Ibáñez. 5. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2006.
_________. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. Traducción
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Mohino, Juan Terradillos Basoco, Rocio Cantarero Bandrés. 4. ed.
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In: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis [et
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_______.Uma caixa de ressonância de eventos no plano global. In:
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ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia.
Traducción de Marina Gascón. 7. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2007.
InterAção | 57
OS PARADIGMAS EDUCATIVOS DA FORMAÇÃO PARA O
EMPREGO E APRENDIZAGEM PERMANENTE NA UNIÃO
EUROPÉIA: O DIREITO DO TRABALHO EM CONSTRUÇÃO
Adriana Hartemink Cantini1
Resumo
Este trabalho apresenta um estudo interdisciplinar que enfoca
a perspectiva dos Direitos Humanos e Fundamentais dos trabalhadores, a formação para o emprego e a aprendizagem permanente e por
toda a vida na sociedade do Conhecimento e da Globalização. Demonstra a relação existente entre Direito do Trabalho e Educação, na
perspectiva do direito à formação para o emprego como um direito
social exigível. Para tanto, utiliza as teorias educacionais revolucionárias
de Jacques DELORS, em os quatro pilares para a educação do futuro,
de Edgar MORIN em os sete saberes necessários para a educação do
futuro e de Paulo FREIRE, que defende a idéia de que a formação
profissional deve ser parte integrante do processo educativo e é uma
questão política. Buscando compreender essas temáticas e com foco na
aprendizagem permanente e por toda a vida para o trabalho, retoma as
normas internacionais dos principais Organismos intergovernamentais
1 Bacharela em Direito, Advogada, Especialista em Metodologia do Ensino Superior
e Formação de Professores em disciplinas especializadas de Direito e Legislação,
Mestra em Educação (PUC/RS) e Doutora em Direitos Humanos (USAL/ES). Professora nas áreas de Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direitos Humanos e
Fundamentais
58 | InterAção
sobre a formação para o emprego e a aprendizagem permanente e ao
longo da vida, destacando alguns conceitos importantes que irão per-
correr toda a discussão: aprendizagem permanente, empregabilidade,
competência e qualificação profissional. Buscando aliar conhecimentos
educacionais e jurídicos, já que se trata de um estudo interdisciplinar,
olha para a União Européia no intento de compreender o processo de
construção do Instituto da Aprendizagem e da formação profissional.
Nesse sentido, traz à tona os principais documentos emitidos pela UE
para orientar os Estados membros a unificarem os seus Sistemas de formação facilitando o exercício do direito à mobilidade laboral dos seus
trabalhadores. Trabalha a perspectiva da sociedade do Conhecimento
que leva a UE a buscar políticas públicas capazes de tornar o bloco a
economia mais dinâmica e avançada do mundo e alcançar o pleno emprego. Todo esse empenho é revelado com base no Memorando Sobre
a Aprendizagem ao Longo da Vida, que está fundamentado nas teorias
educacionais expressas anteriormente e que serão o pano de fundo da
elaboração das normas jurídicas que orientam esse novo Sistema. Na
Espanha, trabalha a formação para o emprego como um direito indivi-
dual do trabalhador buscando afirmar essa posição doutrinária através
da busca da legislação pertinente e das doutrinas publicadas a respeito.
Verifica como o processo de construção das normas relativas à forma-
ção profissional é encaminhado e quais são os atores envolvidos nessa
tarefa. Ao final, apresenta conclusões significativas em relação à temática abordada reafirmando a idéia inicial da interdisciplinaridade entre
o Direito do Trabalho e a Educação, mais especificamente, a formação
para o emprego, retomando as teorias educacionais expressas no início
do trabalho.
InterAção | 59
Palavras chave: Aprendizagem Permanente; Direitos Sociais; Políticas Públicas; Qualificação; Competência Profissional
Resumen
Este trabajo presenta un estudio interdisciplinario que se
centra en la perspectiva de los Derechos Humanos y fundamentales
de los trabajadores, la formación para el empleo y la formación permanente y a lo largo de la vida en la sociedad del Conocimiento y de
la Globalización. Muestra la relación entre el Derecho del Trabajo
y Educación, teniendo en cuenta el derecho a la formación para el
empleo como un derecho social exigible. Para eso, utiliza las teorías
revolucionarias de educación de Jacques DELORS en los cuatro pilares para la educación del futuro, Edgar MORIN en los siete sabe-
res necesarios para la educación del futuro y Paulo FREIRE, lo qual
aboga por la idea de que la formación profesional debe ser parte del
proceso educativo y es un asunto político. Tratando de entender estas
cuestiones y centrada en el aprendizaje permanente y a lo largo de la
vida para el trabajo, incorpora los estándares internacionales de las
principales Organizaciones intergubernamentales en materia de formación para el empleo y aprendizaje permanente, poniendo de relieve
algunos conceptos importantes que van a salir en debate: el aprendizaje permanente, la empleabilidad, las competencias y las cualificacio-
nes profesionales. Al combinar el conocimiento jurídico y educativo,
ya que es un estudio interdisciplinario, mira a la Unión Europea con
un intento de comprender el proceso de creación del Instituto del
Aprendizaje. En este sentido, trae a colación los Documentos per-
60 | InterAção
tinentes expedidos por la UE para orientar los Estados miembros a
unificar sus sistemas de formación lo que permite el ejercicio del de-
recho a la movilidad laboral de sus trabajadores. Trabaja la perspectiva
de la sociedade del Conocimiento que lleva a la UE a adoptar políti-
cas públicas para hacer que el bloque sea la economía más dinámica
y avanzada del mundo y logre el pleno empleo. Todo este esfuerzo se
revela basado en el Memorándum sobre el Aprendizaje Permanente,
que se basa en las teorías educativas expresadas anteriormente y que
será el telón de fondo para la elaboración de normas jurídicas que
rigen este nuevo Sistema. En España trabaja la formación para el
empleo como un derecho individual de los trabajadores, afirmando
la posición doctrinal mediante la localización de la legislación y de
las doctrinas publicadas al respecto. Muestra que ese es un proceso
en construcción y revela quienes son los actores involucrados en esta
tarea. Al final, presenta conclusiones importantes sobre el tema dis-
cutido, reafirmando la idea inicial de la interdisciplinariedad entre el
Derecho del Trabajo y Educación, más concretamente, la formación
para el empleo, volviendo a las teorías educativas expresadas en el
comienzo de la tesis.
Palabras claves: Aprendizaje Permanente, Derechos Sociales, Políticas Públicas; Calificación; Competencia Profesional.
INTRODUÇÃO
Nestes tempos de globalização, novos paradigmas do pensa-
mento científico trazem profundas implicações em todas as ciências,
InterAção | 61
especialmente às sociais e humanas. As relações trabalhistas são repensadas e as bases jurídicas que as fundamentam revistas, exigindo-se um
reposicionamento do trabalho e a conseqüente reorganização das normas que tutelam suas relações. Os Estados passam por crescente aglu-
tinação para enfrentar os desafios desse novo mercado, criando normas
que permitem a livre circulação de pessoas e de capitais. Diante da
crise de paradigmas em relação ao trabalho, onde a empregabilidade
traz consigo a necessidade dos trabalhadores se adaptarem às novas
exigências, aprendizagens renovadas ganham importância e a formação
para o emprego é repensada. A tendência internacional é a valorização
das competências profissionais através dos processos de aprendizagem
permanente e ao longo da vida. Para BOBBIO2 esses novos tempos
vividos, causam certa insegurança jurídica porque sentimo-nos, por ve-
zes, à beira do abismo e da catástrofe impende, por causa da rapidez dos
processos técnicos ou pela sensação de encurtamento do tempo.
Na Europa, novas Diretrizes são impostas com a renovação
da Estratégia de Lisboa para o Crescimento Econômico e o Emprego (2008-2010), levando os Estados membros a elaborarem Políticas
Públicas voltadas para a formação e qualificação dos seus trabalhadores. Essas ações demonstram claramente o papel dos Estados no contexto da nova Era que para MORIN3 leva ao pensar global conside-
rando o contexto de unificação regional como única forma possível de
2 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e apresentação de Celso Lafer. 5º reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, (p.231).
3 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 8ª edição. São
Paulo: Cortez: Brasília DF: UNESCO, 2003, (p.77).
62 | InterAção
resolver os problemas comuns podendo ser a solução para enfrentar
esses novos tempos. A Era da pós-modernidade definida pelo autor
e a crise de paradigmas, gera um caos necessário à criação humana,
possibilitando a busca de soluções conjuntas capazes de superar os
problemas comuns. No campo jurídico laboral as soluções parecem
ser a de investimentos em capital humano para garantir a inclusão
social dos trabalhadores onde o papel do Estado ganha especial relevância e PEREZ LUÑO4 defende que o modelo ideal de Estado seja
o do Estado social de Direito, onde os Poderes Públicos assumem a
responsabilidade de proporcionar aos cidadãos, as prestações e servi-
ços adequados para que eles mesmos possam suprir suas necessidades
vitais, logo, implementar Políticas de fomento à formação profissional
para o emprego passa a ser também tarefa do Estado,
Identificar os paradigmas da formação para o emprego e da
aprendizagem permanente, considerando a mens legislatoris dos instrumentos jurídicos relativos a formação para o emprego e as quali-
ficações profissionais na União Européia e na Espanha é a proposta
desse trabalho5. A contribuição para o debate se dá na medida em que
olharmos a temática numa perspectiva humanista, onde o Direito é
4
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, 2004,(p. 125).
5
O presente trabalho é uma síntese da tese intitulada “A Formação para o
Emprego e a Aprendizagem Permanente na União Européia: um estudo sobre a construção do ordenamento jurídico espanhol”, realizada dentro do Programa de Doutorado Pasado y Presente de los Derechos Humanos e apresentada no Departamento
de Direito do Trabalho e Trabalho Social da Faculdade de Direito da Universidade de
Salamanca (USAL) em 2010. A tese foi orientada pelos Professores Doutores Enrique
Cabero Morán e Eduardo Martín Puebla.
InterAção | 63
percebido como um processo em construção coletiva e permanente,
ético e democrático, com a finalidade de preservar os direitos míni-
mos, universais e fundamentais da pessoa humana e garantir a sua
dignidade e sobrevivência num mundo novo e cada vez mais exigente
em relação ao trabalho.
A fundamentação teórica que embasa nossa reflexão perpas-
sa pela compreensão dos Marcos orientativos sugeridos pela União
Européia no processo de educação e de formação para o trabalho e
o emprego. Esses paradigmas que geraram a elaboração de normas
jurídicas específicas foram os sugeridos pela UNESCO, através das
obras coordenadas por Jacques DELORS - Educação um Tesouro
a descobrir e Edgar MORIN - Os sete Pilares da Educação do Fu-
turo -, além dos trabalhos já desenvolvidos por juristas na Espanha,
como Eduardo Martín PUEBLA, e no Brasil como o educador Paulo
FREIRE, tendo como foco a aprendizagem permanente e ao longo da
vida para o trabalho. Tratamos de demonstrar assim, a estreita relação
da educação e da formação profissional com o mundo do trabalho e
do Direito, enfatizando a multidisciplinaridade que a temática exige.
1 Os Processos Educativos Contemporâneos e a Aprendizagem Permanente: Paradigmas Educativos
No seu significado semântico, os processos constituem-se, num
constante avançar, podendo ser entendidos como um conjunto de ações
que objetivam uma meta. A idéia de processos educativos no contexto
da sociedade do Conhecimento, tem como foco a concepção de pessoa
como ser incompleto e inacabado que tem a necessidade de aprender
64 | InterAção
por toda a vida. Nesse constante caminhar de uma educação direcionada ao homem e a mulher que trabalham, pode-se dizer que a esco-
larização e todos os seus aspectos teóricos e práticos - como o processo
de aprendizagem a que são submetidos durante a vida, os métodos de
ensino dessa aprendizagem, as avaliações realizadas e o sistema edu-
cacional como um todo -, fazem parte do proceso educativo. Este, é
determinado por fatores sociais, políticos, econômicos e pedagógicos
sendo definido de acordo com o contexto histórico-social, partindo dos
esquemas educativos primários, nas relações que o aprendiz estabelece
antes de iniciar sua aprendizagem e perpassando pela aprendizagem
propriamente dita. Assim, os procesos educativos contemporâneos en-
volvem a atualização e reciclagem de saberes, que por último, podem
ser direcionados a um fim específico, nesse caso em estudo a emprega-
bilidade. Três doutrinadores que defendem idéias convergentes, embora
utilizem terminologias diversas para expressá-las: Paulo FREIRE (re-aprender), Edgar MORIN (saberes) e Jacques DELORS (pilares) de-
sembocam para um mesmo conceito: o da aprendizagem permanente
e por toda a vida que aqui direcionam-se a aprendizagem permanente
para o emprego, tidos como os paradigmas educativos dessa nova Era.
1.1 Paulo FREIRE e a Re-aprendizagem
O educador Paulo FREIRE6 defende a idéia de que a formação
profissional, como parte integrante do processo educativo, pode aconte6 FREIRE, Paulo. Política e Educação. Coleção questões da nossa época, nº 23, 5ª
edição. São Paulo: Cortez, 1997, (p.01).
InterAção | 65
cer em vários locais e não apenas na escola tradicional que conhecemos.
Para ele a educação liberta e, se focada no homem e na mulher enquan-
to seres inacabados e em constante busca, é capaz de humanizá-los.
Assim, quando defendemos a idéia da criação de locais extra-escolares
onde seja possível formar o trabalhador, entendemos que os processos
educacionais devem cumprir um papel social que não busque apenas
a inserção no mercado de trabalho, mas, criem situações que possibilitem um olhar crítico aos acontecimentos do cotidiano. O constante
questionamento sobre que tipo de cidadão/trabalhador se quer formar
e quais as necessidades do mercado de trabalho, deve percorrer todas
as práticas educativas direcionadas à formação e o emprego. Ao trazer
à tona a discussão a respeito dos processos educativos contemporâneos
e defendê-los como meio de socialização e inserção no trabalho, percebemos que essa ação será viável, quando se partir da práxis da aprendi-
zagem não como mera transmissão de conhecimentos, onde, na teoria
Freiriana o sujeito que aprende assume o papel de alguém que se auto-
-educa e, consequentemente, irá intervir no meio em que está inserido.
Ele não é um mero objeto da aprendizagem, mas, um sujeito capaz de
escrever sua própria história em um processo de aprendizagem dialético e dialógico. FREIRE critica àqueles que defendem a educação
operária como mera transmissão de saberes, alegando que a educação
e a formação devem ser capazes de permitir a independência de quem
apreende e a compreensão de que ele é capaz de intervir no curso da
história do mundo7.
7 Op. Cit. Nota Anterior (p.102).
66 | InterAção
1.2 Jacques DELORS e os Quatro Pilares da Educação do Futuro
Em 1993 a Organização das Nações Unidas para a Edu-
cação, Ciência e Cultura (UNESCO) convocou uma comissão de
quatorze especialistas de diversas áreas do conhecimento e diferen-
tes contextos culturais para refletir sobre a educação para o século
XXI e Jacques DELORS foi nomeado presidente dessa Comissão.
Geraram um documento mundialmente conhecido como Relató-
rio Delors8, prevendo que a educação deve organizar-se em torno
de quatro aprendizagens fundamentais que, ao logo da vida, serão
de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento:
aprender a conhecer, isto é adquirir os instrumentos da compre-
ensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente;
aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; e, finalmente, aprender a ser,
via essencial que integra os três pilares precedentes. Estas quatro
vias do saber constituem apenas uma - a da aprendizagem permanente e por toda a vida -, dado que existem entre elas múltiplos
pontos de contato, relacionamento e permuta9.
O pilar aprender a conhecer, segundo o Relatório, visa o do-
mínio dos instrumentos que dão acesso aos conhecimentos, porque
8 No Brasil o Relatório Delors foi compilado em um livro publicado pela editora Cortez
(São Paulo) em 1999 com o título de “Educação: um tesouro a descobrir” e apresentou uma síntese do pensamento pedagógico oficial da humanidade.
9 DELORS, Jacques (Org.). Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 10ª ed. São Paulo:
Cortez Editora, 2006; (pp. 89/90).
InterAção | 67
atualmente, com a facilidade na comunicação e no acesso à informação, saber conhecer e organizar essas idéias que são colocadas no
mundo virtual e natural, requer o domínio de habilidades que levem
ao aprender e ao conhecer. Significa descobrir ferramentas próprias
para enfrentar as mudanças velozes do mundo globalizado desenvolvendo a capacidade de adaptação e aprendendo a aprender.
O aprender a fazer, tido como o segundo pilar necessário
para a educação do futuro, está mais ligado à formação profissional
e a empregabilidade. Entram nesse contexto, os desafios da inserção
laboral e profissional mediante a aprendizagem permanente e a reciclagem de saberes. Nesse último quesito, é possível identificar a teoria
Freiriana com a idéia da re-aprendizagem10.
O aprender a viver juntos, constitui um dos grandes desafios
da modernidade, pois, requer o exercício da tolerância e da compreen-
são das diferenças e do outro, do sentimento de pertença à humanidade
e da responsabilidade social. No mundo do trabalho demonstra o sentimento de partilha de responsabilidades, manifestada pelos processos
10 Para FREIRE a re-aprendizagem requer, entre outras coisas, a rigorosidade metódica capaz de levar ao que ele denomina de conhecimento certo, que é aquele onde o
sujeito que aprende é capaz de tornar-se independente e intervir no curso da história
do mundo. Trazendo essa compreensão para a formação para o emprego, se diz que
“O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania, que não se
constrói apenas com sua eficácia técnica mas, também, com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais
humana. Naturalmente, reinsisto, o empresário moderno aceita, estimula e patrocina
o treino ‘técnico’ de seu operário. O que ele necessariamente recusa é a sua formação que, envolvendo o saber técnico e científico indispensável, fala da sua presença
no mundo. Presença humana, presença ética, aviltada toda vez que transformada em
pura sombra.”(FREIRE, Paulo. Política e Educação... Op. Cit. Nota 05. (p.102).
68 | InterAção
coletivos de negociação sindical e de construção do diálogo social.
O aprender a ser tem por objeto a realização da pessoa en-
quanto membro da sociedade, cidadão, trabalhador, indivíduo e in-
ventor da sua própria história. Refere-se a um processo dialético de
construção permanente e por toda a vida, onde a consciência da necessidade da aprendizagem contínua deve se tornar efetiva.
A aprendizagem sugerida por DELORS através da UNES-
CO de aprender a fazer apresenta-se como prioritária em relação
ao emprego e constitui-se na maior novidade do Relatório, pois,
pela primeira vez na história, essa temática recebeu um tratamento
oficial. Para muitos estudiosos do tema, o Relatório apresenta-se de
forma bastante generalista, mas, acreditamos que ele foge ao padrão
cartesiano, estrutural ou positivista, sugerindo um movimento dia-
lético na aprendizagem a partir da modificação de comportamentos
dos aprendentes, considerados como sujeitos desse processo. Basta
observar que a palavra aprender está presente em todos os quatro
pilares: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a conviver e
aprender a ser. Assim, retomamos a teoria Freiriana onde se afirma
que ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a
si mesmo: os homens se educam em comunhão mediatizados pelo
mundo11. Para ele o processo educacional é substancialmente auto-educação onde o aprender é o centro, e não o ensinar, convergindo
o pensamento Freiriano com a proposta de DELORS e da UNESCO para a educação do futuro.
11 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978,
(p.79).
InterAção | 69
1.3 Edgar Morin e os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro
As idéias revolucionárias de Edgar MORIN12 tornaram-se
mais conhecidas no meio acadêmico quando, em 1999, foi também
convidado pela UNESCO, para repensar a educação para o século
XXI, elaborando uma obra onde sistematizou um conjunto de reflexões para servir como ponto de partida dessa tarefa. Nela, abordou os
temas que considerou fundamentais para uma educação contemporânea e que, muitas vezes, são ignorados ou deixados à margem dos
debates sobre Política Educacional. Ele sugere que se revisem as prá-
ticas pedagógicas da atualidade e abram espaço para novos processos
educativos, considerando a necessidade de situar a importância da
educação na totalidade dos desafios e incertezas dos tempos atuais,
em especial, no que se relaciona à formação para o trabalho. Enunciou sete saberes indispensáveis à aprendizagem e a formação: 1º)
as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; 2º) os princípios do
conhecimento pertinente; 3º) ensinar a condição humana; 4º) ensinar
a identidade terrena; 5º) enfrentar as incertezas; 6º) ensinar a compreensão e 7º) ensinar a ética do gênero humano.
O primeiro saber importa aceitar que o conhecimento com-
porta erro e ilusões e que a mente humana está sujeita a falhas e enga-
nos. É necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das
características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos huma-
nos, dos seus processos e modalidades, das disposições tanto psíquicas
12 MORIN, Edgar. Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 3ª. ed. São
Paulo: Cortez. Brasília, DF: UNESCO, 2001.
70 | InterAção
quanto culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão, para ensinar a
mente a combater os erros e buscar a lucidez vital. O processo de
formação deve fazer compreender que não há conhecimento que não
esteja ameaçado de erro ou ilusões, que não existem verdades absolutas e todas as percepções que temos do mundo e das coisas, derivam
de traduções e reconstruções que fazemos, com base nos estímulos
e incentivos que nossos sentidos captaram. O conhecimento científico pode ser um poderoso meio para deter os erros e lutar contra as
ilusões, entretanto, os paradigmas que controlam as ciências, podem
ser sujeitos às ilusões e nenhuma teoria científica está imune eternamente contra o erro e as verdades que se promulgam o são, até que
novas verdades as contradigam. Quando o inesperado se manifesta é
preciso ser capaz de rever as teorias e as idéias, em vez de deixar o fato
novo entrar à força num ambiente (ou instância, ou teoria) incapaz
de recebê-lo. Trazer essa primeira idéia de MORIN para o mundo da
formação para o emprego consiste em afirmar que a educação profissional deve orientar o trabalhador a compreender que o domínio das
habilidades específicas adquiridas em determinado curso de forma-
ção, pode, a qualquer tempo, ser modificada e ele deve estar preparado
para essa situação, adaptando-se ao novo e recebendo a nova teoria.
O segundo saber refere-se ao conhecimento pertinente que
ele considera uma necessidade do mundo atual, intelectual e vital.
Revela que esse é um dos problemas universais de todo o cidadão e
do trabalhador do novo milênio: Como ter acesso as informações e organizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (relação todo/
partes) o Multidimensional, o Complexo? Antes de sugerir a forma de
resolver essa questão, explica que o Contexto envolve o conjunto de
InterAção | 71
informações ou dados e que não se pode conhecê-los de forma iso-
lada, é preciso situá-los. Em relação ao Global, diz que seria mais do
que o contexto, o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo
inter-retroativo ou organizacional. Assim, uma sociedade é mais que
um contexto, é o todo organizador do qual fazemos parte. Sobre o
Multidimensional, explica que as sociedades humanas e os seres hu-
manos são unidades complexas. O ser humano é ao mesmo tempo,
biológico, psíquico, afetivo, social e racional e a sociedade, por sua vez,
comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica e religiosa.
Dessa maneira, o conhecimento pertinente deve ser capaz de reconhecer esse caráter multidimensional. O Complexo, para MORIN, é
quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo e
há um tecido independente, interativo e inter-retroativo entre o ob-
jeto de conhecimento e seu contexto, partes e todo, todo e partes em
si, onde, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade.
Trazendo suas idéias para nosso estudo, convém afirmar, que a for-
mação para o emprego, deve abordar esse entendimento, para que o
trabalhador não fique alheio ao mundo que o cerca e as necessidades
do mercado onde está ou irá se inserir. Porém, acrescentamos as idéias
de FREIRE, de que se deve considerar esse trabalhador como um ser
humano incompleto que irá agir na multiplicidade do meio de forma
política, intervindo no curso da história onde está inserido. MORIN
afirma que o desenvolvimento de aptidões gerais da mente, permite
melhorar o desenvolvimento das competências particulares ou espe-
cializadas. Logo, os cursos de formação para o emprego devem prever
o estudo de conhecimentos genéricos para facilitar o desenvolvimento das habilidades específicas para o trabalho.
72 | InterAção
O terceiro saber consiste em ensinar a condição humana,
compreendendo o ser humano como um ser complexo que é a um só
tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico. Restau-
rar a identidade humana para que se tome consciência da identidade
complexa e da identidade comum a todos os seres humanos, reforçan-
do a idéia de que todo o conhecimento deve ser contextualizado para
que seu objeto seja pertinente (retoma ao segundo saber), alegando
que quem somos é inseparável de onde estamos, de onde viemos e para
onde vamos. Ao interrogar essa condição humana, questionamos nossa
posição no mundo e a nossa missão, ou, como diria FREIRE, nossa
vocação e humanização. MORIN traz os três circuitos que considera
fundamentais para a vida do homem e da mulher enquanto pessoas: o
circuito cérebro/mente/cultura; o circuito razão/afeto/pulsão e o cir-
cuito indivíduo/sociedade e espécie. Nesse último, retoma a impor-
tância do respeito a autonomia individual, a participação na sociedade
que, para FREIRE, é a participação política e também o sentimento
de pertencer à espécie humana. Acrescenta ainda que, há uma unidade humana e uma diversidade. A unidade está nos traços biológicos
da espécie e a diversidade na individualidade do ser. Entendemos,
nesse contexto que a formação para o trabalho deve abordar essa temática e proporcionar a discussão sobre quem somos nós – pessoas
humanas que trabalham, que produzem e tem habilidades e vocação
distintas, apesar de serem integrantes da mesma espécie.
O quarto saber consiste em ensinar a identidade terrena por-
que considera que o conhecimento sobre o desenvolvimento da era
planetária deve ser indispensável e converter-se em um dos objetos
da educação. Compreender que a comunicação entre os continentes
InterAção | 73
inicia-se no século XVI e demonstrar a solidariedade do mundo a
partir de então, sem ocultar as opressões e as dominações que ainda
permanecem, torna-se necessário para perceber que os problemas são
comuns a toda humanidade, já que se partilha de um destino comum
e os problemas de vida e de morte são os mesmos. Conhecer ainda as denominadas contra-correntes que podem mudar o curso dos
acontecimentos, é fundamental para desenvolver esse saber. O autor
destaca como contra correntes a ecológica em oposição as catástrofes
técnicas e industriais; a qualitativa em oposição ao quantitativo e a
uniformização generalizada; a resistência a vida prosaica e puramente
utilitária em defesa da vida poética, do amor e da paixão; a resistência
a primazia do consumo padronizado em oposição ao consumismo
desenfreado e ao minimalismo. A isso, ele acrescenta mais duas con-
tra correntes que ainda considera tímidas, que são a de emancipação
em relação à tirania ainda presente do dinheiro e a reação ao desencadeamento da violência. Essa compreensão permite entender onde
estamos e está intensamente ligada ao saber anterior.
O quinto saber consiste em enfrentar as incertezas e sinto-
niza-se com o primeiro saber, onde trabalhamos a idéia das cegueiras
do conhecimento, pois, o conhecimento não deve ser entendido como
absoluto ou dogmático, é preciso compreendê-lo como algo em constante construção. Ensinar essas incertezas, os princípios e as estratégias que permitem enfrentar os imprevistos e o inesperado e apresen-
tar novas formas para resolver problemas antigos, significa ensinar a
desenvolver novos meios de executar antigas tarefas, quando o inesperado acontece. Essas temáticas estão diretamente relacionadas com
a necessidade de o trabalhador estar preparado para o novo, que pode
74 | InterAção
se manifestar em situações de desemprego iminente, de subemprego
e até mesmo da necessidade do trabalho autônomo. O ensino das
incertezas também está relacionado às características de empregabilidade13 que se quer, atualmente do trabalhador.
O sexto saber consiste em ensinar a compreensão. A pala-
vra compreender, do latim, compreendere, significa colocar junto todos
os elementos de explicação, ou seja, não ter somente um elemento de
explicação, mas diversos. A compreensão humana que refere vai além
disso porque, na realidade ela comporta uma parte de empatia e iden-
tificação. MORIN divide em dois o problema da compreensão: um
pólo planetário que compreende a compreensão entre humanos, os
encontros e relações que se multiplicam entre as pessoas, as culturas e
os povos de diferentes origens; e um pólo individual que compreen-
de as relações particulares entre próximos e que estão cada vez mais
ameaçadas pela incompreensão. Para ele, o axioma - “quanto mais pró-
ximos estamos, melhor compreendemos”- é apenas uma verdade relativa
13 A palavra empregabilidade está relacionada à adequação profissional às novas necessidades dinâmicas do mercado de trabalho. Ela surge no contexto da globalização
porque, com o advento das novas tecnologias, da abertura das economias, da internacionalização do capital e das constantes mudanças, o ambiente das organizações
exige empresários e profissionais capazes de responder às novas necessidades. Em
gestão de pessoas, o termo criado remete à capacidade profissional de estar empregado, além da capacidade de proteger sua carreira frente aos riscos inerentes ao mercado de trabalho absolutamente imprevisível. MINARELLI estabelece os seis pilares da
empregabilidade que, segundo ele, podem garantir a segurança profissional da pessoa,
denominando-as também de competências: adequação da profissão à vocação, competências, idoneidade, saúde física e mental, reserva financeira e fontes alternativas
de aquisição de renda e relacionamentos. MINARELLI, José Augusto. Empregabilidade:
como ter trabalho e remuneração sempre. 19ª Ed. São Paulo: Gente, 2009.
InterAção | 75
que pode ter a oposição de um axioma contrário - “quanto mais estamos próximos, menos compreendemos -,” já que a proximidade pode
alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividades, mesmo nos meios
aparentemente mais evoluídos intelectualmente. A grande inimiga da
compreensão é a falta de preocupação em ensiná-la. Na realidade,
isto está se agravando, já que o individualismo ganha um espaço cada
vez maior nessa nova Era. Estamos vivendo numa sociedade indivi-
dualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que
desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e, consequentemente, alimenta
a autojustificação e a rejeição ao próximo. A redução do outro, a visão
unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os
grandes empecilhos da compreensão, além da indiferença.
O sétimo e ultimo saber refere-se a ensinar a ética do gênero
humano. Fala em antropo-ética que nada mais é, do que retomar o
imperativo categórico de Kant que prevê como ação ética a de agir
de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre e ao
mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. Traduzido
também, mais tarde, por AREND14, ao preconizar que o fato de que
o homem é capaz de agir, significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. Não
desejar para os outros aquilo que não quer para si, traduzindo-se para
a teoria de MORIN, significa dizer que, devemos levar em consideração três elementos: o indivídulo, a sociedade e a espécie. É nessa
discussão que ele defende a interligação urgente destes elementos,
14 AREND, Hannah. A Condição Humana. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, (p. 190).
76 | InterAção
para que se busque o paradigma perdido que é a natureza humana. Para
tanto, é preciso desenvolver o conjunto das autonomias individuais,
das participações comunitárias e do sentimento de pertença à espécie
humana. trabalhar para a humanização da humanidade; efetuar a dupla condição do planeta – obedecer à vida, guiar a vida; realizar a unidade planetária na diversidade; respeitar, ao mesmo tempo, no próximo, a diferença e a identidade consigo próprio; desenvolver a ética
da solidariedade; da compreensão; ensinar a ética do género humano.
Esses paradigmas do pensamento pedagógico atual estão pre-
sentes nas Políticas Públicas implementadas pela União Européia e
Espanha que levam a construção de um ordenamento jurídico laboral
destinado a formação para o emprego. Por detrás das normas jurídicas destinadas formação profissional, encontram-se as intenções do
legislador corroboadas com o novo pensamento pedagógico oficial da
humanidade.
2 As Políticas Comunitárias de Formação para o Emprego e Aprendizagem
Permanente na União Européia
A Comissão Europeia publicou, em 1995, o Livro Branco15
sobre a educação e a formação, onde expressou a importância da for-
mação e da aprendizagem permanente e ao longo da vida, para que
15 Livro
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Branco sobre a Educação e a Formação - Ensinar e aprender - Rumo à
sociedade cognitiva. COM(95) 590, Novembro de 1995. Disponível para consulta em
<http://europa.eu/documents/comm/white_papers/pdf/com95_590_fr.pdf> (Livre
blanc sur l’éducation et la formation)>.
InterAção | 77
se mantivesse a competitividade e a luta contra a exclusão social. As
idéias expressas foram, mais tarde, compliladas no Memorando sobre
a Aprendizagem ao Longo da Vida16, um Documento de trabalho da
Comissão Européia que convocou para um importante debate sobre
a temática, tanto a nível individual como institucional. No final do
Memorando, estão expressas as idéias chave para serem consideradas
nessa estratégia de ação: garantir o acesso universal a aprendizagem
contínua para a obtenção e renovação das competências dos cidadãos;
aumentar o investimento em recursos humanos; criar métodos eficazes para a aprendizagem ao longo da vida valorizando a aprendizagem
não formal e informal; aconselhar e informar sobre as oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida e oferecer essas oportunidades a
todos os cidadãos. Entretanto, foi o Tratado de Amsterdã17 que se dedicou de forma mais detalhada a questão social e laboral, salientando
o problema do desemprego e dos direitos do cidadãos, trazendo a
necessidade de se criar Políticas comunitárias para a geração de em-
pregos e inciando o debate em torno das ações capazes de preparar a
União Européia para se tornar a economia globalizada mais moderna
e competitiva do mundo.
O Memorando afirma que existem três categorais básicas de
atividades de aprendizagem: a aprendizagem formal decorrente dos
sistemas formais de ensino e que conduz a obtenção dos diplomas e
qualificações reconhecidas; a aprendizagem não-formal, que ocorre
16 COMISSÃO EUROPÉIA (2000). Memorando sobre a Aprendizagem ao Longo da
Vida. Bruxelas, 30.10.2000, SEC (2000), 1832.
17 Tratado de Amsterdã. Jornal Oficial nº C 340 de 10 de novembro de 2007.
78 | InterAção
paralelamente aos sistemas de ensino e formação e não conduz, necessariamente a aquisição de certificados e diplomas e a aprendiza-
gem informal, que é um acompanhamento natural da vida quotidiana. Embora o primeiro tipo de aprendizagem seja a que é reconhecida
pela sociedade e pelo mercado de trabalho, o Memorando alerta que a
dimensão da aprendizagem ao longo da vida deve destacar também as
outras aprendizagens adquiridas além do ambiente de ensino formal,
que são as duas últimas.
O Processo de Copenhague18 iniciado em novembro de 2002
teve a finalidade de acordar numa Declaração sobre a melhoria da co-
operação Européia no domínio da educação e formação profissional
(EFP). Essa Declaração foi considerada a resposta ao apelo do Conselho Europeu de Barcelona de março 2002, para que se tomassem
medidas práticas no domínio da educação e formação profissional,
consideradas as discussões e Resoluções anteriores sobre a temática.
O Processo é integrante da Estratégia de Lisboa e foi criado para que
a formação profissional se desenvolvesse contribuindo para o avanço
das ações e políticas de aprendizagem ao longo da vida e para a oferta
de mão de obra altamente qualificada, observada a meta de tornar
a Europa uma das economias mais competitivas do mundo basea-
da no Conhecimento. O principal objetivo é melhorar a qualidade e
atratividade do ensino e da formação profissional, desenvolvendo um
verdadeiro mercado de trabalho Europeu, como um complemento
18 Processo de Copenhague: Novas Prioridades e Estratégias para a Educação e Formação. Informações disponíveis em <http://ec.europa.eu/education/policies/2010/
vocational_en.html>. Acesso em 12.12.2008 às 15hs.
InterAção | 79
essencial para o mercado único de bens e serviços e da moeda única.
Assenta-se em grande parte numa mão de obra qualificada, adaptável
e móvel, capaz de usar as suas qualificações e competências como
moeda comum em todo o espaço Europeu. Na prática, o processo de
Copenhague funciona em quatro níveis: No nível Político visa influenciar as pessoas que tem poder de decisão política a destacar a importância do EFP, facilitando o acordo relativo aos objetivos e metas
comuns para a União Européia, sendo palco privilegiado de discussão
das iniciativas e modelos nacionais e da partilha dos bons exemplos e
práticas a nível Europeu. Em cada Estado o processo contribui para
reforçar o enfoque no ensino e na formação profissional, inspirando
reformas nacionais. Em relação aos instrumentos comuns, busca de-
senvolver princípios comuns orientados para a transparência e quali-
dade das competências e qualificações e facilitando a mobilidade dos
aprendentes e trabalhadores. O processo traça o caminho em direção
a um mercado de trabalho e a um espaço Europeus de EFP comple-
mentar ao Espaço Europeu do Ensino Superior. A aprendizagem
mútua se refere a apoiar as ações de cooperação Européia estimulando a aprendizagem mútua, permitindo aos países participantes refle-
tirem as suas políticas à luz das experiências dos outros países e proporcionando o enquadramento para o trabalho conjunto, a partilha
de idéias, experiências e resultados. O nível relativo ao envolvimento
de todos os atores/agentes, reforça a necessidade da participação de
diferentes sujeitos no processo para contribuir a elaboração e persecução de objetivos comuns.
Até o presente momento, a opinião geral é de que o processo
de Copenhague, muitas vezes discutido e revisado, está tendo êxito e
80 | InterAção
vem resultando na elaboração de importantes instrumentos de apoio
à sua implementação. Entre os resultados mais visíveis atingidos desde 2002, consideram-se as iniciativas de elaboração do Marco Euro-
peu de Qualificações Profissionais (EQF), do Sistema de Créditos e
de Formação Profissional (ECVET) e do Quadro de Referência Europeu para a Garantia da Qualidade (QREGQ) como fundamentais
para que a mudança se opere.
2.1 Os Instrumentos Jurídicos Orientativos
2.1.1 O Marco Europeu de Qualificações para a Aprendizagem Permanente (EQF)
O Marco Europeu de Qualificações19 (EQF) conhecido pela
sua sigla em inglês European Qualifications Framework é uma iniciativa que permite estabelecer uma linguagem comum em toda a Europa
para descrever as qualificações profissionais, permitindo comparar,
tanto a educação geral, a formação profissional como a universitária,
adquiridas em países distintos e proporcionadas pelos variados sitemas de educação e formação. A intenção é permitir as organizações
setoriais internacionais estabelecer correspondências entre seus sistemas de qualificações sendo um ponto de referência Europeu co-
19 CONSEJO EUROPEU. Recomendación do Parlamento Europeo y Consejo sobre el
establecimiento de um Marco de Referencia Europea de Garantia de la Calidad en la
Educación y Formación Profesionales, de 18 de junio de 2009. Publicado no Diário
Oficial da UE 2009/C 155/01.
InterAção | 81
mum, demonstrando assim, a relação entre as qualificações setoriais
e os sistemas nacionais de qualificação, melhorando a mobilidade e
a integração social dos trabalhadores e das pessoas em processo de
aprendizagem.
Em anexo ao Documento que criou o EQF há uma série de
definições sobre algumas expressões chave que contém, esclarecendo
que qualificação é o resultado formal de um processo de avaliação e
validação que se obtém, quando um organismo competente estabelece que a aprendizagem de um indvíduo superou um determinado
nível de conhecimento previsto. Como o enfoque do EQF está nos
resultados da aprendizagem, revela que essa expressão significa o
que uma pessoa sabe, compreende e é capaz de fazer ao concluir um
determinado processo de aprendizagem, se definindo em termos de
conhecimentos, destrezas e competências. Acerca das competências,
prevê que é a capacidade demonstrada para utilizar os conhecimentos, as destrezas e as habilidades pessoais, sociais e metodológicas em
situações de trabalho, estudo e no desenvolvimento profissional e pessoal, com base no EQF, descrevendo como manifestações de responsabilidade e de autonomia do sujeito que apreende. Os conhecimentos, por sua vez, são os resultados das informações compreendidas
graças a aprendizagem e revelam o acervo daquilo que a pessoa sabe,
dos princípios, das teorias e das práticas em um determinado campo
de trabalho ou estudo em concreto, descritos no EQF como conhe-
cimentos teóricos ou práticos. A destreza consiste na habilidade para
aplicar os conhecimentos e utilizar as técnicas a fim de completar
tarefas e resolver problemas. No Marco, a destreza aparece como cognitiva (fundada no uso do pensamento lógico, intuitivo e criativo) e
82 | InterAção
prática (fundada na destreza manual e no uso de métodos, materiais,
ferramentas e instrumentos).
O enfoque dado na Recomendação remete-nos para as teorias
de Jacques DELORS, onde os pilares do conhecimento centram-se no
ser e no fazer. A teoria de FREIRE emerge quando o Documento considera a aprendizagem como uma manifestação no indivíduo do ponto
de vista lógico e prático, destacando o denominado homem aprendente.
As idéias de MORIN são expressas quando o trabalhador tem reconhecidas as suas qualificações através de um processo de validação consistente em saberes necessários para uma prática útil e válida. A Reco-
mendação classifica as qualificações profissionais em oito níveis que são
utilizados para comparar e vincular as qualificações dos distintos países e
setores formativos. Em cada nível, descreve o que se conhece (saber para
DELORS), o que compreende e é capaz de fazer uma pessoa (saber
fazer para DELORS), sem importar onde, como e quando esses conhe-
cimentos foram adquiridos. Trabalha ainda, o enfoque nos resultados
da aprendizagem, considerando a pessoa como agente do seu próprio
conhecimento e habilidade (FREIRE). Esses oito níveis de qualificação
estão hierarquizados e abarcam todas as qualificações possíveis que se
podem conquistar durante a vida, através de diferentes meios, sejam eles
o ensino escolar formal e obrigatório, o ensino superior, a aprendizagem
informal, não formal ou a prática laboral. Em cada nível estão descritas
os conhecimentos (saberes), as habilidades (saber fazer) e as competências profissionais e pessoais (ser). Nessa última, busca-se identificar o
grau de autonomia, responsabilidade e a capacidade de aprendizagem,
as habilidades comunicativas e sociais (aprender a viver juntos) e o nível
de competência para o exercício da atividade profissional.
InterAção | 83
2.1.2 O Sistema Europeu de Créditos do Ensino e da Formação Profissional (ECVET)
O ECVET foi criado porque as autoridades competentes, as or-
ganizações e os atores implicados no processo de aproximação dos sistemas de ensino e formação profissional na Europa são numerosos e diver-
sos, dificultando a harmonização das qualificações. Facilitar a mobilidade
laboral dos trabalhadores no âmbito Europeu, estabelecendo princípios
comuns relativos à identificação e a validação dos resultados das aprendizagens não formais e informais20 é o principal objetivo do ECVET. O
ECVET (European Credit Sistem for Vocational Education and Training) é
um sistema que estabelece um marco metodológico comum para facilitar
a transferência de créditos de aprendizagem realizados de um sistema de
qualificação para outro, dentro dos países que compõem a UE. Forma
parte de um conjunto de iniciativas Européias como o Europass21 e o Eu-
res22 e cumpre as previsões
p
contidas na Carta Européia para a Mobilida-
20 Conclusões do CONSELHO sobre a garantia da qualidade a educação e na formação profissional, 9599/04, EDUC 117 SOC 252, 18 de Maio de 2004. Disponível em
<http//ec.europa.eu/education/policies/2010/doc/vetquality_en.pdf>.­
21 Denominado también Europass Training, es un proyecto iniciado por el Consejo
de Europa. Se trata de un documento que certifica los periodos de experiencia de
trabajo fuera del país, así como los periodos de formación. O Europass fué establecido pela Decisión n.º 2241/2004/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de
Dezembro de 2004, que institui um quadro comunitário único para a transparência
das qualificações e competências.
22 A rede EURES (Serviços Europeus de Emprego) visa facilitar a livre circulação
de trabalhadores nos países do Espaço Económico Europeu e integra os serviços
públicos de emprego, os sindicatos e as organizações de empregadores. A parceria é
coordenada pela Comissão Européia e suas principais funções: a) informar, orientar e
84 | InterAção
de23. A Recomendação de criação do ECVET descreve as qualificações
profissionais considerando os resultados das aprendizagens e associan-
do a elas pontos de crédito, trazendo ainda definições que esclarecem o
significado de: qualificação, unidade dos resultados da aprendizagem e
pontos de crédito, o que facilita a sua aplicação24.
2.1.3 O Quadro de Referência Europeu de Garantia da Qualidade (QREGQ)
A finalidade do QREGQ é realizar uma avaliação sistemática
e contínua do sistema para gerar a confiança mútua entre os variados
sistemas de EFP Europeus, envolvendo a realização de avaliações in-
ternas e externas a serem definidas pelos Estados membros, permitindo
o feedback necessários sobre os progressos e retrocessos25. O Quadro
prestar aconselhamento aos trabalhadores potencialmente móveis sobre as oportunidades de emprego, bem como sobre as condições de vida e de trabalho no Espaço
Econômico Europeu; b) prestar apoio às entidades empregadoras que pretendam recrutar trabalhadores de outros países e c) prestar o devido aconselhamento e orientação aos trabalhadores e às entidades empregadoras nas regiões transfronteiriças. A
página oficial do Eures pode ser acessada no endereço eletrônico <http://ec.europa.
eu/eures/>.
23 RECOMENDACIÓN (CE) nº 2006/961/CE del Parlamento Europeo y del Consejo, de
18 de diciembre de 2006, relativa a La movilidad transnacional en la Comunidad a
efectos de educación y formación: Carta Europea de Calidad para la Movilidad [Diario
Oficial L 394 de 30.12.2006].
24 RECOMENDACIÓN del Parlamento Europeo y del Consejo realtiva a la creación del
Sistema Europeo de Créditos para la Educación y la Formación Profesionales (ECVET).
Bruselas, 09.04.2008 [SEC (2008) 442 SEC(2008) 443]. Disponível en <http://eurolex.europa.eu>.
25 RECOMENDACIÓN del Parlamento y del Consejo sobre El estabelecimiento de um
Marco de Referencia Europeo de Garantia de la Calidad en la Educaión y Formación
InterAção | 85
traz, em seu conteúdo, um ciclo de qualidade que deverá ser implementado em quatro fases: fase de estabelecimento dos objetivos da política e
dos objetivos do planejamento; fase de execução; fase de avaliação propriamente dita e fase de revisão. Estas duas últimas servirão para retroalimentar o sistema e organizar as mudanças e adaptações necessárias.
O paradigma chave presente no Documento é a aprendizagem
permanente e ao longo da vida considerada um meio para inserção e
reinserção no mercado laboral com qualidade. O ciclo de avaliação que
se quer implementar vai garantir, além da qualidade e eficácia de ditos
sistemas, a possibilidade de modificar para a melhora, de acordo com os
dados colhidos no decorrer do processo e com as necessidades identificadas. A idéia é efetuar um controle de qualidade através do diálogo cons-
tante com os envolvidos no processo: formandos, formados, empregados,
empregadores, professores, formadores, enfim, as pessoas que integram o
mercado laboral. Não se trata de um processo fechado ou imposto, mas
surgido de ampla discussão e debate na Comunidade, com o objetivo de
afrontar as mudanças emergidas pela sociedade do Conhecimento.
3 A Formação para o Emprego e a Aprendizagem Permanente na Espanha
3.1 Um Direito Individual do Trabalhador
A Constituição Espanhola declara a Espanha como um Estado
social, onde a promoção do homem ocorre através do trabalho e, no seu
Profesionalis, de 18 de junio de 2009. Publicado no Diario Oficial de la Unión Européa
2009/C 155/01.
86 | InterAção
artigo 4026, coloca sob a responsabilidade dos Poderes Públicos a criação
de uma política de formação e readaptação profissional. A FP se enqua-
dra dentro dos princípios reitores da política social e econômica que, por
um lado está condicionada a fatores externos que determinam disposi-
ções para seu o desenvolvimento, e, por outro, introduz uma garantia de
defesa diante das outras políticas e de interesses que possam entrar em
conflito com ela. Estão incluídas aqui, a formação regrada (dirigidas
aos jovens), a formação ocupacional (dirigida aos desempregados) e a
formação contínua (dirigida aos trabalhadores em atividade). Os desti-
natários dessa proteção são aquelas pessoas que se preparam para o exercício de uma atividade profissional e as que, estando em plena atividade
laboral queiram trocar de profissão ou adequar seus conhecimentos a
nova realidade tecnológica do mercado de trabalho. O cumprimento das
obrigações relativas à aprendizagem profissional, seja ela de readaptação
ou de reciclagem, traz consigo também, um âmbito de responsabilidade para que o trabalhador mantenha-se atualizado do ponto de vista
educativo-laboral e outro, para que o empresário facilite, promova ou
permita esse processo de aprendizagem27.
26 CE Artigo 40 - 1. Los poderes públicos promoverán las condiciones favorables
para el progreso social y económico y para una distribución de la renta regional y
personal más equitativa, en el marco de una política de estabilidad económica. De
manera especial realizarán una política orientada al pleno empleo.2. Asimismo, los
poderes públicos fomentarán una política que garantice la formación y readaptación profesionales; velarán por la seguridad e higiene en el trabajo y garantizarán
el descanso necesario, mediante la limitación de la jornada laboral, las vacaciones
periódicas retribuidas y la promoción de centros adecuados
27 PRADOS DE REYES, Francisco Javier. Contrato de Trabajo y Formación Profesional:
consecuencias laborales y sociales de la integración de España en la Comunidad
Europea. V Jornadas Universitárias Andaluzas de Derecho dei Trabajo y Relaciones
InterAção | 87
O direito ao trabalho está contemplado na necessária vincula-
ção do artigo 35.1 com o artigo 40 da CE, dentro do Capítulo III do
Título I De los Princípios Rectores de La Política Social y Econômi-
ca. A vinculação das figuras do pleno emprego ao direito ao trabalho
já aparece em diversos Documentos internacionais, especialmente em
Convênios da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na
Carta Social Européia. As referências da CE em matéria de política
de emprego podem ser sintetizadas quando se recomenda aos Poderes
Públicos a garantia da formação e da readaptação profissional (art.
40.2), porque parece que se está incluindo junto à política estrita-
mente econômica, também uma política educativa: se trataria assim,
de atuar não só sobre a oferta de emprego, mas também sobre a pró-
pria demanda, igualmente. O limite que implica o reconhecimento
do direito a livre eleição da profissão e do ofício (art. 35.1) deve ser
considerado, observando, conforme sugere SASTRE IBARRECHE,
as seguintes condições: a) obriga a que as medidas em que se traduza
dita política educativa, tenham um caráter incentivador ou de estímulo e não coercitivo; b) mesmo que o texto Constitucional não ex-
presse as modalidades de ação econômica para a consecução do pleno
emprego, a menção repetida (arts. 40.1 e 131.1) ao desenvolvimento
regional, conduz a articular programaticamente ambos objetivos, tendo em conta o princípio da solidariedade inter regional consagrado
nos artigos 02 e 138; c) a específica atenção prestada aos grupos sociais com superiores dificuldades de colocação no mercado de trabaLaborales, celebradas en Sevilla, 15 y 16 de diciembre de 1986. Ministerio de Trabajo
y Seguridad Social, s/d, (pp 112-113).
88 | InterAção
lho. Assim, o artigo 48 obriga os poderes públicos a promover “las
condiciones para la participación libre y eficaz de la juventude en el
desarrollo político, social, económico y cultural”, enquanto que o artigo 49 postula a respeito aos deficientes (portadores de necessidades
especiais) físicos, sensoriais e psíquicos, a realização de uma política
de prevenção, tratamento, reabilitação e integração, amparando-lhes,
especialmente para o desfrute dos direitos a que esse Título outorga
a todos os cidadãos28.
Neste sentido e em sintonia com as Diretrizes da UE a Es-
panha passou a desenvolver e implementar uma série de políticas di-
rigidas à formação para o emprego e a aprendizagem permanente,
considerando os paradigmas educativos de um direito do trabalho em
construção.
3.2 O Subsistema de Formação para o Emprego
O Real Decreto 395/2007, de 23 de março, publicado no BOE
nº 87 de 11 de abril do mesmo ano, regula as distintas iniciativas de
formação que se configuram na criação do Subsistema de Formação Profissional para o Emprego (SFPE). A Norma prevê o regime
de funcionamento do SFPE, as formas de financiamento, a estrutura
organizativa e a participação institucional. São cinco os grandes objetivos previstos: a) favorecer a formação durante a vida produtiva dos
trabalhadores ocupados e dos que se encontram desempregados, para
28 SASTRE IBARRECHE, Rafael. El Derecho al Trabajo. Madrid: Trotta, 1996, (p.84).
InterAção | 89
melhorar sua capacitação profissional e seu desenvolvimento pessoal; b) proporcionar aos trabalhadores os conhecimentos e as práticas
adequadas às competências profissionais requeridas no mercado de
trabalho e as necessidades das empresas; c) contribuir para a melhoria
da competitividade e da produtividade das empresas; d) melhorar a
empregabilidade dos trabalhadores, especialmente daqueles que tem
maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e de manter-se nos postos de trabalho e emprego oferecidos e e) promover as
competências profissionais adquiridas pelos trabalhadores, através de
processos formativos (formais e informais), valorizando a experiência
laboral, para que seja objeto de reconhecimento pelo Estado e pelas
empresas. Especialmente esse último objetivo, reflete o paradigma da
aprendizagem permanente e por toda a vida sugerido pela UE, o que
nos leva a entender a formação para o emprego como um processo
de construção permanente e coletivo, onde a norma jurídica vai se
adaptando às necessidades da formação profissional.
O texto do Decreto reconhece a importância da participação
dos Atores Sociais no processo e também reforça o respeito à autonomia das Comunidades Autônomas, reconhecendo sua competência
na participação e coordenação das ações formativas. Busca satisfazer
os objetivos traçados na Estratégia Européia para o Emprego (EEE)29,
29 Após a�������������������������������������������������������������������������
inclusão do título “Emprego” no Tratado da União Europeia (UE) em 1997,
os Chefes de Estado e de Governo lançaram, a Estratégia Europeia de Emprego com
o objectivo de coordenar as políticas nacionais em matéria de emprego. A EEE institui uma supervisão multilateral que incita os Estados-Membros a fomentar políticas
mais eficazes neste domínio, melhorando a empregabilidade, o espírito empresarial,
90 | InterAção
sintonizar seu ordenamento jurídico às Diretrizes Européias e aos
paradigmas propostos. Destacam-se as iniciativas capazes de materializarem a formação profissional para o emprego em iniciativas de
formação da demanda, formação da oferta, formação em alternância
com o emprego e as ações de apoio e acompanhamento à formação.
Cada uma delas com objetivos próprios e destinatários específicos.
Todo esse sistema envolve um conjunto de normas e instru-
mentos que dão base para as ações políticas e o desenvolvimento e
integração das ofertas de formação profissional, através do Catálogo
Nacional das Qualificações Profissionais (CNCP)30 e de um Catálogo
Modular de Formação Profissional. Faz parte também desse conjun-
to, os procedimentos para o reconhecimento, avaliação e certificação
das competências profissionais; as iniciativas de avaliação que buscam
a melhora e o aperfeiçoamento do sistema e a orientação e informa-
ção a respeito da formação profissional. Com o objetivo de favorecer
e facilitar o desenvolvimento profissional aproximando-o das necessidades do mercado de trabalho, o sistema visa articular diferentes
qualificações e modos de reconhecimento de saberes.
a adaptabilidade e a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho Europeu.
Informações retiradas do endereço eletrônico <http://europa.eu/legislation_summaries/employment_and_social_policy/community_employment_policies/c11318_
pt.htm> em 20.10.2009 .
30
El Catálogo Nacional de Cualificaciones Profesionales (CNCP) es el instrumento del Sistema Nacional de las Cualificaciones y Formación Profesional que ordena las cualificaciones profesionales, susceptibles de reconocimiento y acreditación,
identificadas en el sistema productivo, en función de las competencias apropiadas
para el ejercicio profesional. Disponível para consulta em <http://www.educacion.es/
educa/incual/ice_catalogoWeb.html>
InterAção | 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os esforços internacionais no sentido de levar os Estados Eu-
ropeus a legislarem o direito de aprender para o emprego, não são
recentes. Há muito, os Organismos internacionais como a ONU (Organização das Nações Unidas), através da UNESCO (Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), entre outras, tem legislado
e discutido a respeito.
As teorias trabalhadas por FREIRE (re-aprendizagem), por
DELORS (pilares) e MORIN (saberes), convergem para a necessi-
dade da aprendizagem permanente que traz consigo o conceito de
educação e formação continuada. Essas definições não são novas, mas,
vem ganhando relevância na medida em que se aceleram as transformações no mundo do trabalho e na sociedade como um todo. A edu-
cação que se realiza por toda a vida e de forma contínua é inerente a
pessoa humana e está ligada a idéia de construção e reconstrução do
ser. De um lado, envolve a aquisição de conhecimentos, aptidões e ha-
bilidades específicas e, de outro, valores, atitudes e comportamentos.
Essa forma de educação e de aprendizagem permanente ocorre em
todos os momentos da vida humana, por isso, que se fala em educação
formal, não-formal e informal.
Há cerca de meio século a educação era considerada atribui-
ção da família, da igreja e da escola, não sendo questionada. Porém,
na medida em que as sociedades contemporâneas apresentaram novas
formas de organização da produção, de política e de participação das
pessoas, a educação passou a ser uma preocupação de todos, porque
92 | InterAção
se percebeu que ela não estava atendendo às demandas da sociedade.
O paradigma da sociedade contemporânea é a mudança constante
nas formas de relação social e nas formas de produção e este cenário
acabou exigindo a flexibilidade dos processos educativos, a ampliação
dos locais de ensino e aprendizagem e a necessidade de informação e
formação contínua passou a ser preocupação não só das crianças, mas
também dos jovens, adultos e velhos.
Além da atualização constante dos conhecimentos, imposta
pelo próprio mercado de trabalho, a expectativa de vida aumentou
significativamente, fazendo com que houvesse mais tempo disponível
para exercer outras atividades, como as relacionadas à aprendizagem.
Passou-se a valorizar outros ambientes de aprendizagem, além da escola e percebeu-se que as empresas poderiam assumir as tarefas de
qualificação profissional e reciclagem de saberes. Os universos educativos se ampliaram, mas não substituíram o ensino formal, complementaram-no. A preocupação com a auto-aprendizagem tornou-se
também a preocupação dos novos processos educativos que aposta-
ram na função do ensino formal em garantir que o trabalhador adquirisse a aptidão para aprender e re-aprender por toda a vida. Os locais
extra-escolares de aprendizagem se tornam mais visíveis quando o
tema é aprendizagem profissional, mas, é possível verificar também
um crescimento das zonas de aprendizagem cultural, comunitária e
ocupacional.
Outro campo importante onde a prática de ações em educa-
ção continuada e aprendizagem permanente se tornou presente está
relacionado a um amplo movimento que une a valorização e o respeito aos direitos da pessoa humana. Foram incorporados ao pensamen-
InterAção | 93
to de vários países, por forte influência da sociedade civil, pela ONU
e outros Organismos internacionais, o discurso de que o acesso à for-
mação e a aprendizagem permanente para o trabalho é um direito de
todos. Essa inspiração internacional acabou ampliando o campo de
atuação destas Organizações, incorporando também, ações paralelas
de proteção e defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e am-
bientais. Acreditam que se houver oportunidades sociais adequadas,
as pessoas poderão efetivamente elaborar seu projeto de vida e auxiliar
uns aos outros. As ações educativas nessa visão são meios que servem
para aumentar a capacidade participativa nos processos de ampliação
das liberdades e também o motor do desenvolvimento.
Nesta discussão, é preciso dizer que o campo teórico recente
da análise da implementação dos Direitos Humanos, apresenta duas
características que são especiais: a primeira delas refere-se ao fato de
que o ser humano tem uma capacidade nata para aprender e para ensinar e isso ocorre na medida em que ele evolui, porque, como parte
de sua capacidade evolutiva. Nesse aspecto reforçamos a teoria de
FREIRE que afirma ser o homem incompleto e inacabado e que,
nessa conscientização, busca a aprendizagem de forma permanente,
se educa e se auto-educa. A segunda característica está na condição de
agente do ser humano, considerada condição importante para que os
Direitos Humanos se efetivem. O próprio homem avalia os processos e as políticas de implementação desses direitos, através do que se
denomina de cidadania ativa, impulsionando e servindo de referência
para a análise do poder público das ações que ele implementa.
Alguns teóricos costumavam diferenciar a educação/aprendi-
zagem permanente da educação/aprendizagem continuada, dizendo
94 | InterAção
que, a primeira envolveria a preparação para o trabalho e a segunda,
a formação para a vida. Atualmente, não há que se diferenciar as formas de educar e aprender pois, trabalho e formação para a vida nos
remetem ao conceito de sociedade educativa onde, de forma perma-
nente e constante, como se disse anteriormente, ampliam-se os espa-
ços educativos para proporcionar as pessoas o acesso mais amplo as
aprendizagens. Partilham-se as responsabilidades com a formação e
a educação para o trabalho e a sociedade educativa preocupa-se tam-
bém com a formação em que a realização das potencialidades huma-
nas tornam-se importantes práticas sociais. Retomando as ideais de
MORIN, o estudo do amplo se torna necessário e acaba facilitando a
compreensão do mais específico. Assim, os cursos de formação para o
emprego devem contemplar também as temáticas que abarcam a formação genérica do trabalhador. Os paradigmas orientativos do novo
modelo Europeu de formação profissional levaram à um processo
permanente de construção do direito do trabalho fazendo com que
os Atores Sociais e os próprios trabalhadores sejam os protagonistas
desse novo processo.
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
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Forense Universitária, 1992;
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho e apresentação de Celso Lafer. 5º reimpressão. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004;
InterAção | 95
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Aprendizagem ao Longo da Vida. Bruxelas, 30.10.2000, SEC (2000),
1832;
CONSEJO EUROPEU. Recomendación do Parlamento Europeo
y Consejo sobre el establecimiento de um Marco de Referencia
Europea de Garantia de la Calidad en la Educación y Formación
Profesionales, de 18 de junio de 2009. Publicado no Diário Oficial da
UE 2009/C 155/01;
Conclusões do CONSELHO sobre a garantia da qualidade a educação
e na formação profissional, 9599/04, EDUC 117 SOC 252, 18 de
Maio de 2004;­
DELORS, Jacques (Org.). Educação: um tesouro a descobrir.
Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação
para o século XXI. 10ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006;
FREIRE, Paulo. Política e Educação. Coleção questões da nossa época,
nº 23, 5ª edição. São Paulo: Cortez, 1997;
______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 34ª ed. Coleção Leitura. São Paulo: Paz e Terra, 2006;
______, Educação como Prática da Liberdade. 19ª edição. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989;
MINARELLI, José Augusto. Empregabilidade: como ter trabalho e
remuneração sempre. 19ª Ed. São Paulo: Gente, 2009;
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro.
8ª edição. São Paulo: Cortez: Brasília DF: UNESCO, 2003;
96 | InterAção
______. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o
pensamento. 12ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2006;
MARTÍN PUEBLA, Eduardo. El Sistema de Formación Profesional
para el Empleo. Madrid: Fundación Tripartita para la Formación en el
Empleo. Lex Nova, 2009;
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales.
Madrid: Editorial Tecnos, 2004;
PRADOS DE REYES, Francisco Javier. Contrato de Trabajo y
Formación Profesional: consecuencias laborales y sociales de la
integración de España en la Comunidad Europea. V Jornadas
Universitárias Andaluzas de Derecho dei Trabajo y Relaciones
Laborales, celebradas en Sevilla, 15 y 16 de diciembre de 1986.
Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, s/d;
RECOMENDACIÓN (CE) nº 2006/961/CE del Parlamento
Europeo y del Consejo, de 18 de diciembre de 2006, relativa a la
movilidad transnacional en la Comunidad a efectos de educación y
formación: Carta Europea de Calidad para la Movilidad [Diario
Oficial L 394 de 30.12.2006];
RECOMENDACIÓN del Parlamento Europeo y del Consejo realtiva
a la creación del Sistema Europeo de Créditos para la Educación y
la Formación Profesionales (ECVET). Bruselas, 09.04.2008 [SEC
(2008) 442 SEC(2008) 443];
RECOMENDACIÓN del Parlamento y del Consejo sobre El
estabelecimiento de um Marco de Referencia Europeo de Garantia de
la Calidad en la Educación y Formación Profesional, de 18 de junio de
2009. Publicado no Diario Oficial de la Unión Européa 2009/C 155/01;
SASTRE IBARRECHE, Rafael. El Derecho al Trabajo. Madrid:
InterAção | 97
Trotta, 1996;
UNIÃO EUROPÉIA. Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia. Jornal
Oficial nº C 303 de 14 de dezembro de 2007;
98 | InterAção
InterAção | 99
RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ÍNDIA: RESGATE HISTÓRICO
E POTENCIALIDADES ESTRATÉGICAS ATUAIS
Edson José Neves Júnior1
Resumo
As relações entre Brasil e Índia têm demonstrado crescimento
significativo nos últimos anos, de acordo com a tendência da cooperação
sentido Sul-Sul. Contribuiu para esse aprofundamento alguns fatores relacionados à parceria histórica e contemporânea em fóruns internacionais de
negociação multilateral, como a atuação articulada no G-20, a formação do
Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul – IBAS, em 2003; e a crescente participação coordenada no grupo BRIC. Em função desta recente
convergência, resta averiguar quais os limites colocados para essa aliança e
qual o grau de interdependência derivado de sua aproximação. Este artigo
parte da premissa que o crescimento da colaboração entre estes dois países
ocorre pela mudança na conjuntura mundial, onde um cenário multipolar
se consolida em oposição às tentativas de recuperação hegemônica operadas
pelos EUA, desde 2001, e também pelo aumento evidente das divergências
econômicas e políticas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Palavras-Chave: Relações Internacionais entre Brasil e Índia; Comércio
1 Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Relações Internacionais e Graduado em História, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de História do Ensino Médio municipal. E-mail: [email protected]
100 | InterAção
Brasil-Índia; Cooperação Sul-Sul; Fórum IBAS.
Abstract
The Brazil India relations have shown significant growth in
recent years, according with the trend of South-South cooperation.
Contributed to increase depth of this partnership several factors related to historical and contemporary alliances in international multilateral negotiation, as articulated action on the G-20, the formation of
the Dialogue Forum India, Brazil and South Africa - IBSA in 2003,
and increasing participation coordinated in BRIC group. In light of
this recent convergence, it remains to ascertain what are the limits
placed for this alliance and what degree of interdependence derived
from his approach. This paper assumes that the growth of cooperation
between the two countries is the change in the world situation, where
a multipolar scenario consolidates itself in opposition to attempts to
rescues hegemonic role for U.S.A., operated since 2001, and also by
enlargement of disagreements and economic policies between developed and developing countries.
Keywords: International Relations between Brazil and India, India-Brazil trade, South-South Cooperation; IBSA Forum.
INTRODUÇÃO
�����������������������������������������������������������
No cenário internacional, conformado nas últimas duas déca-
das, que teve como acontecimentos determinantes o fim da Guerra Fria
InterAção | 101
e os atentados terroristas de 2001, têm adquirido crescente importância
os países que demonstram grande importância regional associada a fato-
res tradicionais de prestígio político como uma significativa população,
vasta extensão territorial e poderio militar. Brasil e Índia, em uma perspectiva geral, se apresentam como Estados deste tipo.
Chama atenção a progressiva aproximação operada entre estes
dois atores na cena mundial, fazendo crer na possibilidade de atuação
conjunta, o que se reflete, por exemplo, na criação do Fórum Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), um organismo político intercontinental cria-
do em 2003, e na constituição do Grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China), a princípio apenas uma sigla, cunhada em 2001, mas que se
tornou um grupo internacional, de fato, em maio de 20082. Contudo, é
importante compreender as origens da aproximação entre Brasil e Índia
e avaliar a sua real consistência.
Assim, este artigo tem por metas oferecer uma análise da histó-
ria da cooperação bilateral entre Brasil e Índia, nas parcerias em espaços
multilaterais de negociação internacional e na constituição e finalidades
do fórum trilateral do IBAS e no grupo do BRIC. Para abordar as relações bilaterais utilizamos, basicamente, da diplomacia entre os dois
países e de suas relações comerciais. Para os espaços multilaterais, avalio
2 O termo BRIC foi criado pelo economista Jim O´Neil, em 2001, por meio de um
estudo intitulado Building Better Global Economic BRICs. Desde então, algumas reuniões entre representantes dos países foram efetivadas, mas foi somente em maio de
2008, a partir de uma Reunião dos Chanceleres dos quatro países em Ecaterimburgo,
é que o grupo se tornou formal, com seus integrantes declarando compartilhar de interesses comuns nas áreas da política e da economia e se comprometerem a realizar
encontro anual para discutir temas pertinentes ao cenário internacional contemporâneo. (MRE, Informações Gerais sobre o Grupo BRIC).
102 | InterAção
qual a importância das ações coordenadas em fóruns como a OMC (Organização Mundial do Comércio), Conselho de Segurança das Nações
Unidas e outros, e na criação do Fórum do IBAS e do grupo BRIC.
O resultado evidente na análise das relações entre Brasil e Índia
é que, em termos históricos, a cooperação bilateral, nos quesitos diplomacia e comércio exterior, foi muito reduzida e restrita à breves conjunturas
de aproximação; ao contrário de atuações articuladas em espaços internacionais multilaterais, como aqueles dedicados aos temas da economia
e comércio, como a UNCTAD (United Nations Conference on Trade and
Development), FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e
OMC; e de segurança, como o Conselho de Segurança da ONU.
Breve História das Relações Diplomáticas entre Brasil e Índia.
No campo diplomático, as relações entre Brasil e Índia inicia-
ram com a independência indiana, tendo do lado indiano personagens
como Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru e da parte brasileira, o
presidente Eurico Gaspar Dutra. Já em 1948, foi instalada a primeira
embaixada indiana no Brasil, após visita e “apresentação de credenciais”
do embaixador indiano Minoo Masani (VIEIRA, 2007, p. 52). Depois
destes episódios de “inauguração” das relações entre os dois países, houve
uma série de acontecimentos que, contudo, marcaram negativamente
tais relações. Todos eles se referem à posição brasileira em relação às
colônias portuguesas na Índia.
Ocorrida a independência indiana, restaram, contudo, alguns
problemas territoriais não solucionados. Alguns deles reportavam às
pequenas colônias portuguesas remanescentes de Goa, Damão e Diu,
InterAção | 103
ainda pertencentes à Portugal, visto que a independência conquistada
junto à Inglaterra não abrangia estes entrepostos incrustados na recém-criada União Indiana.
A Índia, por considerar aqueles territórios seus, solicitou a Por-
tugal que cedesse formalmente a sua administração ao governo indiano.
Portugal, por seu turno, receoso de que a libertação das colônias na Índia
pudesse estimular a luta em suas outras possessões na África, rejeitou
qualquer acordo com os indianos. O impasse só teve seu desfecho com
a ocupação militar dessas áreas pelo exército indiano em 1961, passada
mais de uma década de embates diplomáticos e duras negociações na
Organização das Nações Unidas. Interessa trazer à análise esse fato pelo
envolvimento que teve o Brasil ao longo do episódio e pela sua relevância para as relações entre Brasil e Índia nos anos posteriores.
De acordo com o Tratado de Amizade e Consulta entre o Brasil e
Portugal, celebrado no Rio de Janeiro, em 16 de novembro de 1953, os
países se comprometiam a apoiar-se mutuamente em questões diplomá-
ticas que “ferissem seus interesses” (RAMPINELLI, 2007, pp. 83-85).
Dessa forma, quando a Índia mobilizou seus negociadores internacio-
nais para obter apoio no caso das colônias portuguesas, o Brasil foi um
empedernido defensor dos interesses portugueses, argumentando que
Goa, Damão e Diu não eram colônias, mas sim parte do império portu-
guês (Províncias Ultramarinas) e que por isso deveriam se manter sob a
gestão lusitana. A ocupação militar dos antigos entrepostos portugueses
pela Índia foi denunciada pelos representantes brasileiros como um “ato
imperialista” dos indianos. Ainda na esteira das contendas diplomáticas,
a representação do Brasil, insatisfeita com os resultados das divergências políticas, partiu para a retaliação e proibiu, em 1962, a importação
104 | InterAção
de material genético e de animais indianos para melhoria do rebanho
zebuíno de criadores brasileiros, que era mestiço3. O governo indiano,
respondendo, por sua vez, proibiu aos seus cidadãos que exportassem
embriões e animais dessa raça para o Brasil (VIEIRA, 2007, p. 53-54).
As disputas diplomáticas e a “contenda dos zebus”4 marcaram
por algum tempo as relações entre Brasil e Índia de modo negativo,
porque os representantes diplomáticos da Índia passaram a considerar
o Brasil como “submisso” aos interesses das antigas colônias e, posteriormente, das grandes potências, incapaz de se insurgir contra sua me-
trópole e ainda, mesmo depois de independente, advogar em favor dos
antigos opressores europeus. O afastamento diplomático persistiu até a
década de 1990, com exceção de algumas frustradas tentativas de retomar as relações entre os países5.
3 O material genético do rebanho zebuíno indiano é valorizado pelos criadores brasileiros porque os animais são originários daquele país e ainda porque são preservados naturalmente, pois os indianos os utilizam apenas para a produção de leite e
tração, em virtude de ser considerado um animal sagrado. Informações constantes
na página eletrônica <http://www.zebuonline.com.br/pt/index.php>, visitado em 25
de fevereiro de 2011.
4 Este termo não é usual na bibliografia, mas espelha este restrito incidente internacional envolvendo Brasil e Índia. Cabe lembrar que a questão não foi levada adiante
perante qualquer instituição jurídica internacional, ficando restrita apenas às determinações internas de cada país. Contudo, mesmo com a proibição expressa aplicada
pelos governos nacionais, produtores brasileiros e indianos continuaram a realizar
negócios nesse campo, mas sem o amparo legal. O tráfico de material genético só
teve fim com sua regulamentação intergovernamental na década de 1990.
5 Com vistas a restabelecer a aproximação ocorreu com a visita da governante indiana Indira Gandhi, em 1968, no qual foram assinados acordos de cooperação que
não saíram do papel. Na década de 1980 ainda foram celebrados mais alguns atos
diplomáticos que acenaram para a possibilidade de estabelecimento de parcerias,
mas esses acordos não eram mais do que intenções e, na prática, pouco significaram. (VIEIRA, 2007, p. 54)
InterAção | 105
O singelo aumento das atitudes diplomáticas ao longo das últi-
mas duas décadas pode ser mostrado por meio de dois recursos. Primeiro,
mediante a análise da quantidade de “Atos Bilaterais Multitemáticos entre Brasil e Índia”, representados na Tabela 1, elaborada a partir de dados
retirados da página eletrônica do Ministério das Relações Exteriores do
Brasil. Segundo, pela observação das visitas governamentais realizadas
por representantes brasileiros e indianos, no decorrer da década de 1990
até o ano de 2009. Os atos bilaterais firmados desde 1969 não significam,
necessariamente, a execução das finalidades expressas em seus textos. Em
outras palavras, Brasil e Índia demonstraram boa intenção diplomática ao
assinarem os diversos acordos, mas a execução das determinações constantes nos textos dependeria, em última instância, do esforço de setores
governamentais e privados em mobilizar recursos para tal finalidade.
Tabela 1 - Atos Bilaterais* Multitemáticos Brasil – Índia (em vigor)
Ano
Nº de Atos**
1970
1
1969
1990
1992
1996
1997
1998
Ano
Nº de Atos**
2004
1
1
2002
1
2006
3
3
1
2
2008
2009
2010
Total
1
5
6
0
0
25
Fonte: dados do Ministério das Relações Exteriores (elaboração própria)
* a definição de atos bilaterais, de acordo com o MRE, compreende Acordos, Declarações, Convenções, Memorandos, Agendas e Programas.
** Dentre o número total de tipos de Atos celebrados há documentos intitulados Ajustes Complementares, que incrementam os atos anteriormente em vigor.
106 | InterAção
Sobre estes Atos, algumas considerações são necessárias quan-
to a sua importância e conteúdo. Primeiro, o número de acordos celebrados entre Brasil e Índia, se cotejados a outros tradicionais parcei-
ros brasileiros, como Argentina e Estados Unidos, é numericamente
muito menor. Em comparação com o número de atos bilaterais assinados com a Argentina, por exemplo, há uma desvantagem extrema: Brasil e Argentina assinaram mais de duzentos atos bilaterais no
mesmo período apontado na tabela6. Portanto, em termos absolutos,
as relações bilaterais com o governo indiano correspondem a cerca
de dez por cento das relações com um parceiro brasileiro tradicional
como a Argentina7.
A segunda consideração diz respeito aos acordos nas áreas de
cooperação científica e tecnológica e os de cunho comercial. Basicamente, estes são os atos que maior efetividade têm alcançado, principalmente por meio da exportação de etanol e da transferência de
tecnologia para sua produção (acordos de 2006). Sobre os tratados
comerciais, especificamente, ressalta-se a compra de aviões da Em-
braer para integrar a forças aéreas indianas, que tiveram de diversificar suas fontes de abastecimento em função da desintegração da
União Soviética, seu tradicional fornecedor de produtos bélicos.
6 Para estabelecer essa proporção com maior precisão, considera-se apenas os atos
bilaterais Brasil e Argentina a partir do ano de 1968 (visto que nenhum deles entrou
em vigor em 1969, ano do primeiro acordo Brasil-Índia). Os primeiros acordos Brasil/
Argentina datam da primeira metade do século XIX.
7 Obviamente, não se analisa o teor dos mais de duzentos acordos bilaterais com a
Argentina. A comparação aqui proposta é evidenciada em termos absolutos e serve
apenas para demonstrar a diferença entre parceiros internacionais na história das
relações exteriores do Brasil.
InterAção | 107
A terceira ponderação é relativa aos acordos para utilização
pacífica de energia nuclear. Apesar dos recorrentes acordos nesta área
polêmica, há certa precaução por parte do Brasil em implementá-los
devido às distintas concepções que ambos os países têm a respeito do
tema. A Índia desenvolveu armas nucleares e ocasionalmente realiza
testes, para demonstrar seu poderio para o rival regional, o Paquistão.
Os últimos “testes”, demonstrações explícitas de força, dataram de
1998 e foram alvo de críticas da diplomacia brasileira. O Brasil con-
sidera o desenvolvimento desta tecnologia exclusivamente para usos
pacíficos (ALTEMANI DE OLIVEIRA, 2006, p. 7-8).
Outra inferência, relacionada ao aumento do interesse mútuo
das diplomacias brasileira e indiana, indica um significativo crescimen-
to nas relações políticas diplomáticas entre os dois países, a partir do
ano 2000. Esse crescimento pode ser atribuído justamente aos renovados interesses dos representantes políticos em incrementar as relações
entre os países, mas não significa o estabelecimento de primazia entre
eles. O aumento do número de atos bilaterais nos anos de 2006 e 2008,
correspondendo praticamente à metade do total apresentado na Ta-
bela 1, bem como o aumento das visitas diplomáticas (BALADÃO,
2009) são decorrência, principalmente, da aproximação oportunizada
pelo Fórum de Diálogo IBAS e pelas reuniões dentro do Grupo BRIC
e simbolizam a convergência conjuntural da política externa dos dois
países. Não representam, contudo, uma reversão de tendências na política exterior brasileira e indiana, se comparado aos acordos com parcei-
ros tradicionais. O grau de interdependência política entre estes países,
embora crescente, continua pouco significante, visto que as parcerias
internacionais entabuladas são resultado de aproximação recente e es-
108 | InterAção
tão restritas à determinados campos de atuação.
Um último indício da divergência entre as políticas externas do
Brasil e da Índia pode ser encontrado no trabalho elaborado pelo Centro de Estudos das Negociações Internacionais (CAENI), vinculado
ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, e
coordenado pelo Prof. Dr. Amâncio Jorge de Oliveira, relacionado às
posições dos integrantes do IBAS sobre temas vinculados ao Comércio,
Segurança, Meio Ambiente, Direitos Humanos e outros, discutidos
nas organizações internacionais (OLIVEIRA, et al, 2006). Segundo
este estudo se conclui que Índia e Brasil tiveram, ao longo do período
recortado, um grau relativamente baixo de interesses comuns.
O objetivo de analisar o fórum IBAS pelo CAENI surgiu
da indagação sobre qual o grau de interesse dos países integrantes
em promover uma coalizão ou cooperação entre nações “com baixo
grau de interdependência socioeconômica” (OLIVEIRA, et al, 2006,
p. 490). Segundo os próprios autores, baseados em teorias elaboradas
para interpretar processos de integração e formação de coalizões, o
IBAS não busca se configurar uma área onde figure uma “interdependência endógena”, como nos processos de integração regional. Dese-
jam sim, estabelecer parcerias “para lidar com problemas comuns, ou,
ainda, de uma disposição governamental para induzir a ampliação
da interdependência como forma de diversificação de parcerias, para
além dos vínculos com grandes potências.” (OLIVEIRA, et al, Idem.)
De acordo com o “índice de correlação bivariado”8 aplicado
8 Sobre o Índice de Correlação Bivariado, explicam os autores: “Foram criados indicadores que captam as preferências dos três países reveladas na OMC e na ONU. Cada
InterAção | 109
para o conjunto de todos os temas, fica claro o diminuto grau de
convergência internacional. Os diversos apontamentos estatísticos
formulados pelo CAENI indicam que o Fórum permanente trilateral
do IBAS é uma coalizão internacional permeada exclusivamente por
interesses conjunturais comuns, geralmente, determinados pelos respectivos governos nacionais; e bastante frágil, quando consideradas as
convergências bilaterais entre seus integrantes. Embora esteja claro
que formas de cooperação Sul-Sul tenham a tendência a aumentar no
decorrer dos anos, deve ter em conta que alguns dos principais países
têm significativas divergências e objetivos distintos.
Relações Comerciais bilaterais Brasil-Índia
Em relação às trocas comerciais em períodos recentes pode-se
concluir que, nos últimos anos, houve uma intensificação dos negócios
entre Brasil e Índia. A Tabela 2 indica os números das transações nos
últimos quinze anos, comparando as exportações entre os dois países.
O que se nota é o vertiginoso crescimento das trocas comerciais, prin-
cipalmente a partir do período de 2005/2006. Não por coincidência
voto na ONU e cada posição na OMC foram classificados segundo quatro categorias:
voto a favor da resolução; voto contrário; abstenção; e ausência de prerrogativa de voto
(para o caso de algum país não poder expressar suas posições nesses fóruns em algum
período da amostra). Foram recolhidos dados para um período de onze anos (de 1994
a 2004). Foi utilizado o índice de correlação bivariado (entre dois países) para medir o
grau de convergência ou divergência das preferências reveladas. Em uma escala de 0
a 1, quanto mais próximo de 1 for o resultado, maior a convergência de posicionamento
do país em relação ao tema pesquisado. Quanto mais próximo de 0, maior a divergência
de posicionamento do país em relação ao tema.” (OLIVEIRA, et al, 2006, p. 490-491)
110 | InterAção
o incremento das transações comerciais bilaterais ocorre na sequência
da instituição do Fórum Trilateral do IBAS, e também em função de
outros mecanismos facilitadores, como a assinatura do acordo de comércio preferencial entre o Mercosul e a Índia, em 2004.
Tabela 2 - Exportações e Importações Brasil
Índia – 1996 a 2010
Exportações Brasil Índia
Valor
Ano
Importações Índia Brasil
Valor
Ano
1996
184.915.784
1996
185.770.662
-854.878
1997
166.296.026
1997
216.153.816
-49.857.790
1998
144.886.031
1998
211.669.177
-66.783.146
1999
313.906.319
1999
170.041.723
143.864.596
2000
217.450.483
2000
271.355.071
-53.904.588
2001
285.407.449
2001
542.790.833
-257.383.384
2002
653.737.166
2002
573.183.730
80.553.436
2003
553.696.147
2003
485.743.944
67.952.203
2004
652.553.131
2004
556.069.715
96.483.416
2005
1.137.930.199
2005
1.202.914.200
-64.984.001
2006
938.889.310
2006
1.473.951.621
-535.062.311
2007
957.854.449
2007
2.169.274.206
-1.211.419.757
2008
1.102.342.120
2008
3.564.304.236
-2.461.962.116
2009
3.415.040.261
2009
2.191.096.530
1.223.943.731
2010
3.492.350.604
2010
4.242.386.853
-750.036.249
(em US$-FOB)
(em US$-FOB)
Saldo
Fonte: ALICEWEB/MDIC – Balança Comercial
Elaboração própria.
Embora significativo o aumento das transações, deve-se com-
pará-lo com os valores individuais de exportação de Brasil e Índia. Os
dados das exportações brasileiras destinadas à Índia estão contrastados
InterAção | 111
em relação, primeiro, ao volume remetido ao continente asiático (exclusive Oriente Médio), segundo, ao volume total, o que permite re-
presentar a relevância do mercado indiano para o Brasil no contexto da
Ásia e do mundo; e terceiro, em comparação com alguns dos principais
parceiros comerciais brasileiros. A tabela 3 indica esses números.
Tabela 3 – Exportações Brasil
Índia em perspectiva comparada (2004-
2010) (em US$)
Ano
Exportação
Brasil-Índia
Exportação BrasilÁsia
% em
relação ao
comércio
BrasilÁsia
Exportação BrasilMundo
% em
relação ao
total de
exportações
do Brasil
2004
652.553.131
14.577.190.712
4,5
96.677.838.776
0,7
2005
1.137.930.199
18.565.977.366
6,1
118.529.184.899
1,0
957.854.449
25.086.433.209
3,8
160.649.072.830
0,6
2006
2007
938.889.310
2008
1.102.342.120
2010
3.492.350.604
2009
3.415.040.261
20.816.366.719
37.570.970.683
40.239.044.462
56.272.595.819
4,5
2,9
8,5
6,2
137.807.469.531
197.942.442.909
152.994.742.805
201.915.285.335
0,7
0,6
2,2
1,7
Principais parceiros comerciais do Brasil em 2010 (China, EUA, Argentina)
Brasil-China (2010)
US$ 30.785.906.442
(% do total geral: 15,2)
Brasil-EUA (2010)
US$ 19.307.295.562
(% do total geral: 9,6)
Brasil-Argentina (2010)
US$ 18.522.520.610 (% do
total geral: 9,2)
Fonte: ALICEWEB/MDIC – Balança Comercial
Elaboração própria.
O que se conclui é que as negociações com a Índia, no perío-
do indicado, é que, embora o volume de valores negociados esteja em
vertiginoso crescimento, ele não se torna tão distinto se comparado ao
total negociado com a Ásia e com todo o volume de transações bra-
112 | InterAção
sileiras. Pelo que se constata, apenas em três ocasiões o valor transa-
cionado passa dos seis por cento em relação à Ásia e apenas em 2009
atinge cifra maior que dois por cento do total das exportações brasileiras. Se compararmos as exportações do Brasil com a Índia com
as de Brasil e China, no ano de 2010, vemos que é três vezes menor.
Além disso, como indicado no ano de 2008, onde se iniciou a cri-
se econômica internacional mais recente (mais conhecida por “crise
imobiliária dos EUA”), observa-se a fragilidade na parceria comercial
Brasil-Índia, denotada pelo decréscimo em relação à tendência anterior, pelo menos no que se refere ao comércio brasileiro com a Ásia.
No sentido inverso do fluxo de exportações, ou seja, as ori-
ginárias na Índia com destino ao Brasil (em comparação ao total de
exportações indianas) se constata idêntica tendência e avaliação ao se
observar as informações retiradas da página eletrônica do Departa-
mento de Comércio do Governo Indiano. Para os períodos de 2006 a
2010, as exportações indianas para o Brasil representam apenas entre
1 e 1,5% em relação ao total exportado, conforme Tabela 4, a seguir.
Tabela 4 – Quadro de Exportações Índia
Anos
Valor – Exp. para o Brasil
Valor – Exp. Totais
% em relação ao total das
exportações indianas
2006-2007
1.449.250,00
Brasil - 2006 – 2010 (em US$)
2007-2008
2.525.900,00
2008-2009
2.651.430,00
2009-2010
2.414.290,00
26.414.050,00 163.132.180,00 185.295.360,00 178.745.460,00
1.14
1.54
1.43
1.35
Fonte: Governo Indiano - Department of Commerce, Export Import Data Bank
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Uma possível interdependência política e econômica entre Bra-
sil e Índia, pelo menos em se tratando da sua história diplomática e das
InterAção | 113
relações comerciais estabelecidas, não pode ser constatada. Apenas nos
fóruns internacionais trilaterais e multilaterais as parcerias9 se mostra-
ram mais significativas. Na seção subsequente é indicado e examinado o
papel de liderança e parceria entre os dois países em fóruns multilaterais
de comércio, financiamento e segurança, como o G-20 e o G-4, entre
outros, e na instituição e consolidação de espaços políticos internacionais como o IBAS e o BRIC.
Brasil e Índia nos fóruns multilaterais
O destaque entre as relações Brasil e Índia está nas diversificadas
formas de cooperação que esses países empreenderam no campo mul-
tilateral. A participação e, notadamente, a liderança desses dois grandes
Estados periféricos é constatada com certa regularidade nos organismos
internacionais, políticos e econômicos, e suas rodadas de negociações.
A atuação articulada entre representantes governamentais bra-
sileiros e indianos foi importante na criação da Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), na década de
1960. Também neste período, e como decorrência da mobilização dos
países mais pobres ou, os naquela época integrantes do Terceiro Mundo,
foi organizado o G-77, incluindo os países subdesenvolvidos e em de-
senvolvimento. Teve especial destaque na criação deste amplo conjunto
9 Utilizam-se os termos “parceria” e “cooperação” quando se referem aos fóruns
multilaterais porque se trata exclusivamente de associações objetivas, em temáticas
internacionais, onde a unidade de posições se dá para atingir objetivos comuns. Essas parcerias não têm comprometimento internalizado e formalizado como o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), por exemplo.
114 | InterAção
de países a formação, por parte de potências médias, da ideia de não
alinhamento na luta entre os blocos capitalistas e socialistas. A Índia
participou ativamente na criação do Movimento dos Não Alinhados
(MNA), o Brasil nunca o compôs formalmente, mas assistiu a algumas
das suas reuniões como observador.
Ainda dentro da experiência e espírito da criação da UNCTAD
e da organização do G-77, Brasil e Índia fundaram, com outros membros, o G-24, em 1971. Este grupo, ainda ativo, visa formular proposições aos organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial
(BIRD/AID) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). A necessida-
de da sua criação deriva da reação ao predomínio dos países que futuramente integrariam o G-710 na definição de políticas de financiamento
internacional. Considerava-se, à época, que tanto BIRD/AID, quanto
FMI, não atendiam aos interesses dos países menos desenvolvidos e
eram na verdade, organismos dedicados a manter a radical desigualdade
econômica entre as nações, concedendo privilégios em forma de empréstimos apenas àqueles que se “comportassem” de acordo com suas
determinações. Esta tendência ficaria mais patente nas décadas de 1980
e 1990 quando FMI e BIRD impõem aos países pobres planos de reformas econômicas e sociais em troca de financiamento.
Outro grupo importante (e mais recente) criado em decorrência
da liderança de Brasil e Índia, e também da China, foi o G-20, atuante
nas rodadas de negociação da OMC destinadas à regular o sistema de
10 O G-7 foi criado em 1975 e incluía as maiores potências econômicas do mundo
à época: EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá. Desde 1998
passou a ser o G-8 com a inclusão da Rússia.
InterAção | 115
comércio e investimentos internacionais. Este articulado grupo é liderado por países considerados “em desenvolvimento”, como China, Áfri-
ca do Sul, Argentina, Brasil e Índia. Sua atuação na OMC deu sinais
de vida na Rodada de Doha, em 2001, quando os países em desenvolvimento se organizaram para resistir às pressões dos países ricos para
definir e aprovar pautas econômicas pouco interessantes. Contudo, foi
somente na reunião interministerial de Cancún, em 2003, que o G-20
formalizou a coalizão diante da negligência dos países desenvolvidos em
tratar das referidas questões agrícolas e priorizar temas relacionados ao
comércio e economia, os chamados “Temas de Cingapura”.
O G-4 é outra associação mundial na qual Brasil e Índia tive-
ram responsabilidade na formação. Além desses dois países conta tam-
bém com a Alemanha e o Japão. Seu escopo é alterar a configuração
do Conselho de Segurança da ONU, propiciando a elevação dos seus
quatro membros (além de um país africano) à categoria de “permanen-
tes” do CS. Portanto, se a proposta for aprovada, o CS passará a ter 10
países com direito ao poder de veto, ao contrário dos atuais cinco (EUA,
Rússia, China, Reino Unido e França). A intenção brasileira e indiana
de integrar permanentemente o CS é sustentada por ambos devido ao
papel chave que estes países desempenham na suas respectivas regiões.
Do lado indiano, seu poder nuclear, combinado ao tamanho de sua po-
pulação e ao “combate aos grupos terroristas” são argumentos levantados
para justificar seu ingresso como membro permanente. Já o Brasil indica
sua reiterada participação brasileira em forças de paz da ONU e sua
liderança na criação da “Zona de Paz” (CERVO, 2008), na América do
Sul como fatores definitivos de sua entrada no CS. Outro fator que con-
tribui à candidatura brasileira é o fato de ter sido eleito em nove ocasi-
116 | InterAção
ões na qualidade de membro provisório, detendo o recorde de presenças
como integrante sem direito ao veto.
O Fórum permanente de discussões Índia, Brasil e África do Sul
– IBAS foi oficialmente formado em 2003, como resultado da “Decla-
ração de Brasília”. Desde sua criação alcançou objetivos significativos,
como a criação de um Fundo Internacional de Combate à Fome e à
Pobreza, ações de cooperação em Ciência e Tecnologia e propôs a po-
lêmica instituição de uma Área de Livre Comércio que envolveria a
Índia, o Mercosul e a SACU (integrado por África do Sul e parceiros
regionais)11. Além das ações e propostas, o Fórum IBAS pretende abarcar em seu conjunto uma multiplicidade de temas de interesse mundial, como meio ambiente e direitos humanos. Com maior ênfase, está
a questão da segurança internacional e subtemas derivados dela12, como
terrorismo, imigração, tráfico de drogas, criminalidade, fome, epidemias
e outros (DADA; KORNEGAY, 2007).
A história da aproximação dos países-membros do IBAS, con-
tudo, está localizada no ano de 1997, quando se iniciou uma batalha
11 A Área de Livre Comércio Trilateral Índia-Mercosul-SACU foi proposta em outubro de 2007, resultado de cúpula do IBAS. A área incluiria, além da Índia, os países
mercosulinos (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e os da SACU - Southern Africa
Customs Union (Botsuana, Lesoto, Namíbia, África do Sul e Suazilândia).
12 Convém considerar que o IBAS amplia o conceito de segurança internacional inserindo em seu cerne matérias como a fome e as epidemias (de AIDS, por exemplo).
Ademais, a iniciativa de tratar de tema tão sensível, e ainda redimensioná-lo, decorre da intenção implícita de se contrapor ao conceito de segurança internacional
defendido pela política externa estadunidense, pautada quase que exclusivamente
no combate ao terrorismo. Também, a iniciativa de alargar a agenda de segurança
mundial, incluindo a fome como causa da insegurança, denota a intenção tornar mais
evidente as diferenças sociais entre o Norte rico e um Sul pobre.
InterAção | 117
comercial e diplomática envolvendo África do Sul, Índia e Brasil contra,
principalmente, os Estados Unidos, e também alguns países da União
Européia, em torno do contencioso das patentes farmacêuticas, na qual
as nações em desenvolvimento, articulados em torno de um propósito
comum, a quebra da patente para o coquetel de remédios anti-HIV,
obtiveram uma vitória ante os EUA que, por pressão da opinião pública
interna e internacional, recuaram em suas exigências na OMC (OLIVEIRA, 2005).
O grupo BRIC ou Aliança dos Países Baleia, a associação mais
recente envolvendo Brasil e Índia, tem uma potencial importância política, pois reúne quatro grandes economias emergentes. Desde sua funda-
ção formal em 2008, ainda não se implementou significativas medidas
práticas, muito embora em seus discursos e comunicados, resultantes das
três cúpulas realizadas em maio de 2008, junho de 2009 e abril de 2010,
demonstrem crescentes interesses comuns sobre temas importantes ligados ao sistema financeiro mundial, às questões de segurança, ao aque-
cimento global e postulem uma atuação coordenada em organizações
mundiais como o FMI, Banco Mundial, OMC. Resta evidente a importância do diálogo entre os membros do grupo como forma de contestar
a hegemonia americana, tanto no que se refere à definição da agenda
internacional de negociações, quanto às decisões a serem tomadas.
Análise do atual contexto internacional e a ascensão das formas de cooperação Sul-Sul
A cooperação Sul-Sul não pode ser classificada como um fe-
nômeno recente nas relações internacionais. Mesmo durante o perío-
118 | InterAção
do da Guerra Fria havia a percepção de que as clivagens entre capita-
lismo e socialismo, orquestradas pelos líderes dos blocos controversos,
atendiam a interesses específicos e não promoveriam, ao contrário
do que se esperava, o crescimento econômico dos países periféricos e
também não reduziriam as desigualdades entre os países localizados
no hemisfério Norte e os desprovidos do Sul. O Movimento dos Não
Alinhados, o G77 e outras manifestações terceiro-mundistas isoladas,
atestam que a cooperação Sul-Sul já se ensaiava nas décadas de pleno
conflito (indireto) entre os Estados Unidos e União Soviética.
Com o fim da Guerra Fria poderia se esperar uma eclosão es-
petacular dessas articulações Sul-Sul em contraposição ao Norte, pois a
luta ideológica não ocuparia mais a agenda internacional e as diferenças
socioeconômicas se tornariam mais evidentes. Esse despertar dos “menos abastados”, contudo, não ocorreu por três motivos interligados.
O primeiro deles foi o obscurantismo geral em que caíram as
nações menos desenvolvidas, plenamente contentadas com as maravi-
lhas que a abertura dos mercados poderia vir a promover, sem a menor
prova de que esse prometido aumento da riqueza geral pudesse, de fato,
se concretizar. O segundo motivo foi a vinculação que os países sub e em
desenvolvimento mantinham com as grandes potências capitalistas, obri-
gando-os a preservar certos laços e comportamentos condizentes com a
suposta “nova ordem”. E, o último motivo remete à diversidade de pro-
jetos e propostas políticas e econômicas, muitas vezes contraditórias, que
os países pobres apresentavam, inviabilizando certas alianças e coalizões.
Contudo, a reversão dessa conjuntura e a possibilidade de
aproximação entre, pelo menos, um reduzido grupo de países em
desenvolvimento se deu no fracasso dos projetos neoliberais imple-
InterAção | 119
mentados ao longo da década de 1990 e na reorientação da política
internacional americana operada desde fins de 2001, visando o restabelecimento da hegemonia política e econômica (enfraquecida) no
cenário internacional13.
Ficou evidente para Brasil e Índia, ao primeiro pela experiência,
e ao segundo pela observação, que a cooperação em torno de interesses
comuns é condição indispensável para buscar uma colocação mais proveitosa no sistema internacional. Não se trata, pelo averiguado, de pro-
jetar um mundo novo, de promover mudanças de ordem sistêmica, mas
sim de alterar a “clássica” divisão entre periferia, semi-periferia e centro,
proporcionando uma redistribuição internacional de poder, no cenário
transformado pela globalização. Contudo, para que essa necessária parceria seja mais bem estruturada é mister comparar os dois países para
averiguar quais são os fatores positivos e negativos para sua aproximação.
Na tentativa de oferecer um resumo sobre este ponto e es-
quematizá-lo, e com base nas interpretações das leituras consultadas
para este texto, foi elaborado o Esquema 1, que indica os fatores po-
sitivos e negativos nas relações entre Brasil e Índia. Trata-se de um
esquema simples que aponta apenas quais as características de cada
país que podem aproximá-los ou afastá-los. Ressalve-se, contudo, que
esses aspectos têm pesos diferentes no condicionamento das relações
13 A reversão da política exterior estadunidense aqui situada em 2001 faz referência à tentativa, desde então, de localizar no cenário internacional um novo “inimigo
total” contra o qual possa mobilizar apoiadores (ROJO, 2008). Trata-se da eleição do
terrorismo, em lugar do comunismo de outrora, como fator agregador das lutas do
Ocidente, proporcionando a reconstrução da hegemonia política internacional centrada na América do Norte.
120 | InterAção
exteriores. A opção pelo formato de “esquema” se destina à melhor
visualização e maior objetividade.
Esquema 1 - Fatores potencialmente positivos e negativos nas relações
Brasil e Índia
Fatores Positivos
• Interesses Comuns, de acordo com
a Teoria da Inserção Internacional de
Grandes Países Periféricos ou Potências
Intermediárias (GUIMARÃES, 1998).
• Grandes populações e territórios.
• Histórica Cooperação Multilateral.
• Forte característica industrial, com a
intervenção estatal (indústrias de base).
• Ausência de graves rivalidades históricas.
• Tendência conjuntural de cooperação
Sul-Sul.
Fatores Negativos
• Formação histórica dos países.
• Diferenças culturais.
• Distância geográfica.
• Passado de algumas divergências
diplomáticas e políticas.
• Projetos de desenvolvimento nacional
diferentes.
• Não possuem uma grande comunidade
de “diáspora” do outro.
• Modelos de Desenvolvimento
Introjetados.
Fonte: Elaboração própria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações bilaterais entre Brasil e Índia tiveram um incre-
mento apenas em anos recentes. Contribuiu definitivamente para esta
realidade a aproximação consubstanciada historicamente nos fóruns
multilaterais e trilaterais e, também, a tendência de cooperação entre
os países líderes do hemisfério Sul, em favor de interesses comuns
em certas conjunturas. Contudo, suas dificuldades de convergência
política em campos diversos, como mostrado pelo estudo do CAENI,
associadas ao baixo grau de interdependência, fazem com que essa
articulação bilateral seja lenta e controlada.
InterAção | 121
Por outro lado, ao analisar as relações multilaterais o que se
observa é a atuação de diplomacias conscientes das condições de seus
países no cenário internacional. A atuação coordenada dos dois cor-
pos diplomáticos foi decisiva para estruturar os diferentes Grupos)
com objetivos múltiplos. A atuação do G20 principalmente produziu
o entendimento por parte dos países desenvolvidos que o ambiente
internacional da era da globalização já não mais partia de vinculações
automáticas; os fez perceber que o “jogo de xadrez” da Guerra Fria
perdera sua validade enquanto mecanismo de mobilização mundial.
E, mais importante, a liderança organizada em Grupos de atuação em
espaços multilaterais fez de Brasil e Índia atores conscientes do poder
de barganha da maioria, em circunstâncias onde a democracia era
praticada apenas no plano discursivo.
O que esperar dessa cooperação, tendo em vista os seus avan-
ços e considerando as dificuldades conceituais para se classificar o sis-
tema internacional (uni, multi, ou unimultipolar)? Pode-se especular
que as alianças entre esses dois gigantes têm grande chance de serem
marcadas pelo sucesso. Os recentes acordos políticos internacionais
do IBAS e do BRIC reforçam essa tendência. Contudo, é inegável o
peso do fator conjuntural na constituição de tais grupos e a ausência
de laços históricos mais fortes entre os países-membros, o que poderia garantir sua integridade e maior capacidade de sobrevivência.
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InterAção | 125
CAMINHANDO ENTRE GIGANTES: A INSERÇÃO
INTERNACIONAL DOS TIGRES ASIÁTICOS E DOS PAÍSES
DA ASEAN1
Bruno Magno**
Bruno Gomes Guimarães***
Rômulo Barizon Pitt****
Athos Munhoz*****
Raoni Fonseca Duarte******
Resumo
O artigo procura responder como os quatro Tigres Asiáticos
e os países membros da ASEAN estruturaram as suas relações exte-
riores para sobreviver entre as grandes potências que têm influência
sobre a correspondente região asiática. Primeiramente, analisa-se o
impacto da industrialização dos Tigres sobre os realinhamentos regionais e nas alianças internacionais. Logo após, é examinado o papel
diplomático e econômico da ASEAN desde o fim da Segunda Guer-
ra da Indochina e também as modificações ocorridas com a adesão
1 A pesquisa foi realizada com o apoio do UFRGS Model United Nations 2011.
**
Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS e pesquisador do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE).
***
Graduando do curso de Relações Internacionais da UFRGS e Secretário-Geral do
UFRGSMUN 2011.
****
Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS e pesquisador do ISAPE.
*****
Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS e pesquisador do ISAPE.
******
Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS.
126 | InterAção
de novos membros à organização. Por fim, responde-se a questão e
expõem-se perspectivas àqueles países.
Palavras-chave: Tigres Asiáticos, ASEAN, inserção internacional.
Abstract
The article tries to answer how the four Asian Tigers and
ASEAN member countries have structured their foreign affairs for
surviving between the great powers that have influence over the corresponding Asian region. Firstly, it’s analyzed the impact of the in-
dustrialization of the Tigers over regional realignments and interna-
tional alliances. After that, it’s examined ASEAN’s diplomatic and
economic role since the end of the Second Indochina War and also
the modifications that occurred with the entrance of new members
in the organization. Finally, the question is answered and perspectives
for those countries are exposed.
Keywords: Asian Tigers, ASEAN, international insertion.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo elucidar a questão de
como os chamados “Tigres Asiáticos” — quais sejam: Cingapura,
Coreia do Sul, Hong Kong e República da China (Taiwan) — e a
Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) estruturaram
a sua política internacional para poder sobreviver entre as grandes
InterAção | 127
potências com forte influência na região e como eles poderiam se
comportar no futuro, buscando tendências para tal. Os países compreendidos como grandes potências influentes, os “gigantes”,���������
são,����
no-
meadamente, a República Popular da China (RPC), o Japão, a União
Soviética/Rússia, os Estados Unidos (EUA) e em menor grau a Índia.
Para isso, dividir-se-á o trabalho em dois momentos, um específico
sobre os quatro Tigres e outro sobre os países da ASEAN. No primeiro momento, serão verificados os realinhamentos regionais decor-
rentes da industrialização dos Tigres, bem como o seu impacto nas
grandes alianças internacionais. Logo após, será analisado o papel di-
plomático e econômico da ASEAN desde o fim da Segunda Guerra
da Indochina e também da adesão de novos membros à organização.
Por fim, esses dois pontos serão comparados visando a responder a
questão inicial e as perspectivas para o futuro são apontadas.
1 O impacto internacional da industrialização dos quatro Tigres Asiáticos
A região do Leste Asiático esteve sob o domínio direto ou
indireto do Império Japonês do início do século XX até o final da
2ª Guerra Mundial. Com a derrota do Japão nessa guerra, os Esta-
dos Unidos assumiram esse papel de aglutinador da região. Assim
percebe-se o grande peso que essas duas grandes potências — Japão
e Estados Unidos — tiveram (e têm) na região ao longo do período
abarcado pelo trabalho.
Antes da industrialização dos quatro Tigres Asiáticos pro-
priamente dita, ocorreu o chamado “milagre” japonês a partir do final
dos anos 50, ganhando força expressiva durante os anos 60. Nesse
128 | InterAção
período, o país cresceu continuamente a taxas bastante significativas
e pôde reestruturar a sua economia, reinserindo-se com força na
dinâmica do comércio mundial, sendo os Estados Unidos o parceiro
primordial. O formidável desempenho econômico do Japão foi possibilitado pelo seu sistema de subcontratações inigualável até então, no
qual as empresas cooperam entre elas para minimizar a competição
entre pequenas e grandes empresas no mercado de trabalho. Uma
vez esgotada a capacidade de expansão do sistema dentro do próprio
país — os ganhos de produtividade já não eram mais suficientes para
contrapor a tendência de queda da taxa de lucro —, ele se difundiu
transnacionalmente, notadamente para os Tigres Asiáticos, a fim de
desfrutar da abundante e competitiva mão de obra daqueles países
(ARRIGHI, 1997).
Convém ressaltar que a expansão externa das firmas japone-
sas foi antes fruto da necessidade do que da escolha, necessidades
essas oriundas das crises do petróleo, da insustentabilidade do estado
de bem-estar social nos EUA e do fim do padrão-ouro durante os
anos 70. Assim sendo, uma nova divisão regional (até mesmo inter-
nacional) da produção e do trabalho foi se estabelecendo na região
(VIZENTINI & RODRIGUES, 2000). As multinacionais japonesas se viram, então, dispostas a fazer concessões às exigências dos paí-
ses que as receberiam no sentido de industrializá-los. Além disso, era
do próprio interesse nipônico o estabelecimento, sob sua liderança, de
pontos industriais estratégicos para o fornecimento de insumos e de
componentes para as suas indústrias, a fim de diminuir a sua dependência dos Estados Unidos. Todas essas transformações alteraram de
forma considerável a logística e a distribuição da produção industrial
InterAção | 129
na região a partir da fragmentação da mesma entre diferentes centros
industriais.
Desta feita, as tecnologias intensivas em mão de obra e de
valor agregado mais baixo do Japão foram transferidas para os Tigres,
enquanto que o polo dinamizador japonês se especializaria no desen-
volvimento de tecnologia de ponta. Na década seguinte, seria a vez de
os Tigres repassarem essas tecnologias para outros países, principal-
mente aos da ASEAN e ����������������������������������������
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China, com o objetivo de se focarem tam-
bém em técnicas mais avançadas de manufatura, bem como no setor
de serviços (no financeiro especialmente). Esse processo econômico
no Leste Asiático é conhecido por “gansos voadores”, termo revitali-
zado por AKAMATSU (1962) não só para caracterizar essas décadas
de 60 a 80, mas também o período durante o Império Japonês.
Contudo, essas mudanças na estrutura econômica implicaram
também novos desafios para esses países. Internamente, eles sofre-
ram pressões em prol da democratização, da melhoria das relações
trabalhistas e também das condições sociais da população. Isto é, eles
teriam de perder as supostas vantagens comparativas de serem regimes ditatoriais repressivos, assentados numa dinâmica de grande exploração da mão de obra local e no controle estatal sobre a economia
e voltado para o mercado externo.
Então, a industrialização dos Tigres Asiáticos pode ser vista
como uma forma de manutenção de “ilhas” capitalistas de prosperi-
dade a fim de reforçar o cordão anticomunista no Leste Asiático e
baratear o fornecimento de bens fundamentais para as indústrias das
economias capitalistas desenvolvidas. Os quatro países mais o Japão
permaneceram “protetorados militares e clientes políticos” dos EUA,
130 | InterAção
que se especializava no suprimento de proteção político-militar, en-
quanto seus grupos dirigentes puderam se especializar na busca por
lucro (ARRIGHI, 1997).
Além disso, outro impacto, mais sistêmico, foi o deslocamento
do eixo dinâmico de acumulação capitalista do Atlântico para o Pacífico, mais especificamente para o Leste da Ásia. Os Tigres Asiáticos de-
sempenharam papel fundamental nessa mudança após se consolidarem
como plataformas de exportação, durante os anos 70 e 80. No início
desse período de intenso desenvolvimento, esses quatro pequenos países exportavam produtos de baixo valor agregado e componentes bási-
cos para os países centrais nesse sistema. Todavia, com o passar do tempo, eles souberam se valer dos conhecimentos adquiridos (baseados na
experiência japonesa) para se lançarem como atores dentro do mesmo
sistema em que tinham posições inferiores e se tornarem novos polos
irradiadores de capitais e de tecnologia. Por conseguinte, no alvorecer
dos anos 90, os quatro Tigres alcançaram uma posição de desafiadores
da liderança econômica japonesa na região.
2 Os Tigres no Pós-Guerra Fria
Os Tigres Asiáticos, já desde os anos 80, ao dar prossegui-
mento ao processo dos “gansos voadores” fortaleceu o desenvolvimento da República Popular da China, pois todos eles apresentavam
forte presença de uma diáspora chinesa atuante na indústria (embora
com menor peso na Coreia do Sul). Assim, pode-se dizer que os Tigres incentivaram o surgimento de uma grande potência principalmente nos anos 90. Hong Kong foi reincorporado ao território chinês
InterAção | 131
em 1997, garantindo à RPC o controle direto de um dos principais
portos e centros financeiros mundiais. Esse fato também simbolizou
a chegada à condição de potência, bem como, juntamente com a rein-
tegração de Macau em 1999, o fim do colonialismo no Leste Asiático.
Entretanto, o processo de fortalecimento chinês na região deve ser
também compreendido tendo em vista o Japão, que mergulhou numa
estagnação econômica desde o início dos anos 1990 e não conseguia
mais desempenhar o papel de grande e único polo fomentador dessa
dinâmica econômica.
Não obstante, cada um dos Tigres adotou uma estratégia
diferente para se adaptar a nova conjuntura internacional do Pós-Guerra Fria, em que o combate ao comunismo deixou de ser uma
bandeira dos EUA. Hong Kong, apesar de manter leis próprias,
após se reintegrar a China passou a desempenhar um papel central
na estratégia de inserção chinesa na dinâmica comercial mundial,
bem como na afirmação desse país como potência mundial. Taiwan
também buscou uma integração maior com a RPC em termos econômicos ao longo da década de 1990 e, embora ainda se recuse a
ser reincorporada ao continente, houve uma aproximação da elite
econômica do país com os chineses da RPC. Cingapura, dada a sua
localização, procurou se articular mais (econômica e politicamen-
te) com os países do Sudeste Asiático, e a ASEAN constituiu-se
na peça fundamental dessa estratégia. Por fim, a Coreia do Sul, às
voltas ainda com a questão da reunificação da península coreana,
apesar de ter sido o mais afetado dos Tigres pela crise de 1997,
buscou se inserir no jogo das potências da região, aproximando-se
da China e investindo cifras expressivas em gastos militares. Cabe
132 | InterAção
ressaltar também que o país, a fim de aumentar a sua relevância no
sistema regional e mundial, dinamizou os seus investimentos mun-
diais e viu alguns dos seus chaebols, conglomerados empresariais,
se consolidarem como algumas das maiores empresas mundiais nos
ramos em que atuam.
Além disso, cabe destacar o papel que a crise asiática de 1997
teve nessas economias, afetando-as com graus variados de intensida-
de, contudo sinalizando para estes países que uma maior integração
com o restante do continente se fazia necessária em prol de manterem
a posição de atores relevantes na economia regional, uma vez que os
EUA não se mostraram muito dispostos a arcar com os custos de uma
ajuda financeira a países então já desenvolvidos. A China, portanto, se
mostrou também como um parceiro estratégico, bem como os países
do Sudeste Asiático. Além disso, eles precisaram abrir ainda mais as
suas economias para a entrada de capitais externos e estimular o desenvolvimento de outros ramos econômicos.
3 O Surgimento da ASEAN
A ASEAN foi fundada por Indonésia, Malásia, Filipinas,
Cingapura e Tailândia em 1967 em Bangcoc. Contudo, seus ante-
cedentes advieram do P������������������������������������������
ós-���������������������������������������
2ª Guerra Mundial e do processo de descolonização. Com a derrota do Império do Japão e a decadência dos
antigos Impérios Ocidentais, surgiu uma série de novos estados independentes na Ásia Oriental, estados débeis marcados por proble-
mas socioeconômicos e clivagens étnicas. Estas “imitações de estados”
buscavam desesperadamente por uma forma de se legitimar interna-
InterAção | 133
mente, mas principalmente por um meio de legitimação perante o
Sistema Internacional ( JONES & SMITH, 2006, p. 44).
A dinâmica da Guerra Fria trouxe a oportunidade para esta
legitimação. Primeiro, através da Conferência de Bandung em 1955 e
a tentativa de estabelecer uma posição neutra para as ex-colônias. Em
segundo lugar, para fins de legitimação interna, adotaram-se práticas
paternalistas que procuravam tornar o povo coeso acerca de objetivos
econômicos. Esse foi o caminho adotado pelos cinco países fundadores da ASEAN.
Entretanto, os interesses estratégicos estadunidenses, a Se-
gunda Guerra da Indochina e a penetração dos capitais japoneses
via processo de subcontratação não permitiram a manutenção desta
posição “não-alinhada”. Desta forma, após a Konfrontasi1, Sukarno é
deposto com auxílio da CIA (VIZENTINI & RODRIGUES, 2000,
p. 35–36), assumindo Suharto em 1965 que redefiniu a relação dos
EUA com a Indonésia, Estado pino do Sudeste Asiático. Esse foi o
pontapé inicial que levou à formação da ASEAN em 1967.
Sendo assim, a ASEAN surge como um bloco antissoviético,
principalmente como forma de contenção da “ameaça vietnamita”,
aliado da URSS. Porém, o anúncio da Doutrina Nixon em julho de
1969 em Guam, que afirma que os aliados estadunidenses devem cuidar de sua própria defesa, acaba incentivando a regionalização em
todo o mundo, e com a ASEAN não foi diferente. Agora a vaga aliança contra o comunismo era responsável por garantir a paz, a estabili1 Konfrontasi (1962-1966): Guerra não declarada entre Malásia e Indonésia pelo controle da ilha de Bornéu.
134 | InterAção
dade na região e suas independências.
Assim, a ASEAN acaba se tornando um dos protagonistas da
região, o que leva os estados deste bloco a mais uma vez tentar garantir
sua independência de potências externas. Desta forma, surge em 1971,
por iniciativa dos membros da ASEAN, a zona de paz, liberdade e neutralidade do sudeste asiático ou ZOPFAN. A ZOPFAN foi uma tentativa de criar uma política externa independente para os países membros
da ASEAN, mas na prática apenas corroborou o seu alinhamento com
a China (RPC) e os EUA. Este alinhamento pode ser verificado pelo
papel que a ASEAN desempenhou na questão da ocupação vietnamita
do Camboja. Os membros da ASEAN foram contra o reconhecimento
do governo da nova República Popular de Kampuchea, que substituiu o
regime do Khmer Vermelho, promoveram a organização de um governo
em exílio, que contou com a participação de Pol Pot apesar dos já conhe-
cidos crimes contra a humanidade perpetrados durante seu governo, e
viabilizaram o reconhecimento deste governo como o verdadeiro representante do Camboja pela ONU em 1982.
Apesar da aparente eficiência e pró-atividade da ASE-
AN nessa questão, isso só deu resultado, porque coincidiu com
os interesses sino-americanos ( JONES & SMITH, 2006, p. 55).
Assim, constatamos que a ASEAN, durante a Guerra Fria, é um
bloco unido por uma ideologia antissoviética relevante para a ma-
nutenção da independência e integralidade territorial dos estados
membros, mas que, por suas debilidades, são forçados a praticar
bandwagoning com relação aos EUA e à RPC. Porém, a partir da
década de 1990, ocorre um aumento da institucionalização deste
bloco, alterando esse perfil.
InterAção | 135
4 A Institucionalização do Sudeste Asiático
O contexto do final da década de 1980 proveu à ASEAN
a oportunidade de cumprir seu objetivo de representar a totalidade
dos países da região. A partir de 1989, a retração internacional da
URSS teve como consequência imediata o fim do suporte estratégico
fornecido ao seu aliado na Indochina, o Vietnã. Com tal virada con-
juntural, o Vietnã começa a retirar sua presença militar do Camboja,
que permanece em um quadro de guerra civil até o estabelecimento
da administração da força de manutenção da paz das Nações Unidas
através das decisões da Conferência de Paris.
Com o fim da ação desestabilizadora do Vietnã, a primeira
metade da década de 1990 contou com uma série de iniciativas em
prol da institucionalização do regionalismo, dentre as quais se destacam a criação da Área de Livre Comércio da ASEAN (ASEANF-
TA) em 1992, do Fórum Regional da ASEAN (ARF) em 1994 e,
fechando simbolicamente o ciclo, a adesão do Vietnã à organização
em 1995. A entrada do Vietnã se explica pela percepção generalizada
de que a ASEAN como instituição se confirmaria como um centro de
decisão independente da cada vez maior influência chinesa (ABAD
JR, 2003).
Sob o ponto de vista regional, o fim das ocupações militares e
o exemplo de desempenho econômico dado principalmente por Cin-
gapura transformam substancialmente a dinâmica local. Usando os
termos de BUZAN & WAEVER (2003), a região passa de um estado de formação de conflitos para um arranjo securitário. Isto é, embo-
ra o uso de violência em litígios interestatais não seja completamente
136 | InterAção
descartado, como na instituição de uma comunidade aos moldes europeus, a estrutura regional favorece resoluções pacíficas. A principal
moeda de poder é então o desempenho econômico pela consequente
legitimação que traria para os governos frente o povo, fim que pode
ser mais facilmente atingido através da cooperação.
A percepção do sucesso da “ASEAN Way” se verificou com a
rápida consolidação do projeto de criar um arranjo político pan-asi-
ático através do Fórum Regional. O Fórum conta com a participação
de todos os atores relevantes para a segurança regional do Leste e Sul
Asiáticos, assim representando a tentativa de exportar o modelo de
normas e princípios diplomáticos mesmo para as grandes potências
regionais. Mais importante, percebe-se a tentativa de cooptar a política externa chinesa para os princípios de soberania e não-intervenção
cristalizados no Tratado de Amizade e Cooperação de 1976 (BEUKEL, 2008).
O período dourado do padrão de abordagem diplomática
apresentado se encerra em 1997 com a crise asiática. A crise econômica, que se iniciou na Tailândia e rapidamente contagiou as economias vizinhas, afetou negativamente a reputação do projeto de desenvolvimento econômico baseado na cooperação regional. Assim, a
crise também teve efeitos na esfera doméstica, revertendo o processo
da primeira metade da década e enfraquecendo a imagem dos go-
vernos associados ao período anterior. É representativa a queda do
regime de Suharto na Indonésia em 1998, que consolidou uma onda
de fortalecimento da democracia no Sudeste Asiático.
Ainda em 1997, a primeira reunião do grupo ASEAN+3 mar-
cou a nova realidade: de forma a preservar os ganhos institucionais,
InterAção | 137
a organização se associou, ao mesmo tempo, às três grandes maiores
economias do Leste Asiático: Japão, RPC e Coreia do Sul. O evento
demarca o fim da primazia absoluta do modelo ASEAN+1, isto é, em
que o bloco sempre negociava em conjunto com uma parte por vez.
A crise asiática também selou a amálgama entre o Sudeste e o Leste
Asiáticos, que apresentaram sintonia muito superior à destes com o
Sul, apesar da “Look East Policy” promovida pela Índia.
Após a crise, a ASEAN perdeu relativamente seu papel como
ator internacional, dando espaço para a diversificação das ações in-
dividuais dos seus Estados-membros. No contexto do jogo com as
potências extrarregionais, as respostas também se diversificaram: Ma-
lásia e Vietnã firmaram acordos militares com a Rússia; Indonésia se
aproximou do Japão e hoje ensaia uma parceria com a Coreia do Sul,
entre outros.
A mescla econômica entre Sudeste e Leste também assumiu
outra forma após a crise. Com a confirmação da lenta queda da economia japonesa, o modelo dos “gansos voadores” deu lugar à frag-
mentação da rede produtiva. O fim da liderança do modelo japonês
não significou necessariamente o surgimento de uma liderança aná-
loga na RPC, e sim em uma mudança na relação entre as três grandes
economias e os países emergentes do Sudeste. Embora o peso do investimento direto chinês, por exemplo, ultrapasse os 50% no seu antigo adversário, o Vietnã, a ação de empresas multinacionais japonesas
e coreanas diversificam as opções e conferem algum grau de escolha
aos países da ASEAN (HAMAGUCHI, 2008).
Ultimamente, dois novos fatores têm pesado na dinâmica dos
países do Sudeste asiático com as potências extrarregionais. O pri-
138 | InterAção
meiro é a ascensão indiana e a maturação do projeto de aproximação
econômica com o Leste. Na medida em que a China começa a atuar
no Oceano Índico, a Índia investe nas relações com possíveis parceiros
na ASEAN por motivos econômicos e securitários, principalmente
através dos Acordos Globais de Cooperação Econômica2, que, em
comparação com o quadro dos acordos de livre comércio da ASEAN,
possuem uma pauta de produtos e serviços muito mais abrangente.
O segundo fator é a influência latente das normas e princípios da
ASEAN, mesmo em um contexto regional que contempla a parti-
cipação de grandes potências. Isto é, as instituições regionais criadas
no começo da década de 1990, como a Cúpula do Leste Asiático e
o ARF, ainda são os principais fóruns multilaterais nos temas que
condizem à região da Ásia-Pacífico, muito embora não sejam dotadas
de quaisquer formas de assegurar as suas decisões. Qualquer mudança
neste aspecto teria consequências drásticas para a dinâmica regional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os países emergentes da Ásia-Pacífico, desde seu surgimen-
to como Estados-nação no pós-2ª Guerra Mundial, sempre tiveram
que lidar com as ambições e a influência de grandes potências, sejam
elas regionais ou globais. Tanto os países da ASEAN como os Tigres
Asiáticos procuraram sempre evitar a supremacia de uma só potência,
sendo que o ator mais influente em dada região molda a atuação do
país de forma antagônica. Assim, Coreia do Sul e Taiwan aderiram
2 Tradução livre de “Comprehensive Economic Cooperation Agreement”.
InterAção | 139
completamente à retórica anticomunista pela ameaça de anexação
por países socialistas; o Vietnã, enquanto a maior ameaça era um Sul
que contava com o apoio estadunidense, contou com o apoio chinês
— assim que este perigo se dissipou, reacenderam as tensões étnicas
históricas entre vietnamitas e chineses. Cingapura, que após sua expulsão da Federação Malaia contava com uma economia irrisória e
com ameaça urgente tanto através da Malásia quanto da Indonésia,
estabeleceu um programa de desenvolvimento que cooptou investimentos ao mesmo tempo em que resguardava alto grau de independência dos importados da região através do fomento à indústria. Enquanto os outros casos confirmam a lógica, a exceção ao argumento é
Hong Kong, que, embora com uma economia representativa, nunca
teve expressão política considerável.
Em suma, podemos observar que desde os anos 70, com a
nascente interdependência econômica entre eles, o regionalismo se
fortaleceu e os EUA, com a Doutrina Nixon, perderam espaço para
a RPC e para o Japão, ou até mesmo para Coreia do Sul, Taiwan e
Cingapura (SHAMBAUGH & YAHUDA, 2008). Dos anos 70 aos
90, então, verifica-se que tanto os países da ASEAN quanto os Tigres
souberam jogar com os interesses dos “gigantes” para poderem cami-
nhar livremente, ou seja, conseguiram barganhar ante as potências
para crescer economicamente, promover o desenvolvimento e manter
sua autonomia. Entretanto, cabe ressaltar que não foi somente a atuação dos “gigantes” que figuram no topo da agenda dos países emergentes do Leste Asiático. Mesmo durante a década de 1970, a agenda
da ASEAN já contemplava os perigos do desequilíbrio na Indochina
com o expansionismo vietnamita nos vizinhos Laos e Camboja.
140 | InterAção
Portanto, a questão que provavelmente moldará a dinâmica
regional nos próximos anos é o quanto os países aqui estudados estão
agindo contra a consolidação da hegemonia da RPC. Fica claro também que, enquanto se mantiver a ameaça de subordinação econômica
a Pequim e quanto mais agressivo for o comportamento internacional
sínico, maior importância será dada à participação estadunidense no
Leste Asiático. Além disso, a ASEAN como organização figuraria
como um dos pilares de um mundo multipolarizado sem enfrenta-
mento direto com os interesses estadunidenses. Países como a Rússia
e a Índia ainda não possuem força nem influência na região a ponto
de alterar o quadro de alianças no Sudeste Asiático. Embora a Rússia
figure como fonte de aparato militar, ela ainda não consegue prover
parcerias estratégicas na profundidade das oferecidas pelos EUA. No
que tange a Índia, apesar de ainda desempenhar uma presença mo-
desta quando comparada com os demais atores, o país possivelmente
tenderá a participar ativamente dos assuntos da região: a economia
da ASEAN em conjunto já tem peso no comércio indiano quase em
paridade com o da RPC.
Contudo, apesar da ascensão da RPC, os países apresentados
continuarão procurando meios de conciliar os benefícios dos investi-
mentos chineses com a manutenção da soberania nacional. O quadro
apresentado, então, indica que a tendência é a manutenção da autono-
mia, do mesmo modo que já foi realizado entre as décadas de 70 e 90.
REFERÊNCIAS
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InterAção | 141
Challenges and Responses. In: WESLEY, Michael. The Regional
Organizations of the Asia-Pacific. Nova Iorque: Palgrave Macmillan,
2003. p. 40-59.
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developing countries”. In: Journal of Developing Economies, 1(1):325, Março–Agosto 1962.
ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1997.
BEUKEL, Erik. ASEAN and ARF In East Asia’s Security
Architecture: The Role of Norms and Powers. Copenhague: Danish
Institute For International Studies, 2008.
BUZAN, Barry; WAEVER, Ole. Regions and Powers. Nova Iorque:
Cambridge University Press, 2003.
JONES, Dave Martin; SMITH, M.L.R. ASEAN and East Asian
relations: Regional delusion. Cheltenham: Edward Elgar Publishing,
2006.
HAMAGUCHI, Nobuaki. Fragmentation and Production Network in
East Asia. Kobe Economic & Business Review, Kobe, v. 1, n. 52, p.726, fev. 2008.
SHAMBAUGH, David; YAHUDA, Michael. International Relations
of Asia. Nova Iorque: Rowman & Littlefield Publishers, 2008.
VIZENTINI, Paulo Fagundes; RODRIGUES, Gabriela. O Dragão
Chinês e os Tigres Asiáticos. Porto Alegre: Novo Século, 2000.
142 | InterAção
InterAção | 143
O EXERCÍCIO DO SOFT POWER: FUTEBOL E O CASO
BRASILEIRO
Bruno Gomes Guimarães*
Igor Amazarray**
Where politics, diplomacy and the business world have failed,
I believe that football can succeed. João Havelange1
Resumo
Com base no conceito de soft power, o artigo objetiva tratar
do futebol como instrumento de poder estatal. O texto apresenta o
futebol como um fator importante dentro do contexto internacional
através principalmente de seu soft power e tem por objetivo mostrar
que essa modalidade esportiva de fato funciona como instrumento
estatal. Para demonstrar isso, o artigo analisa as ações do governo
brasileiro envolvendo esse esporte, concluindo que o futebol é uma
ferramenta primária, e não secundária, de soft power.
Palavras-chave: Relações Internacionais. Soft power. Esporte. Futebol.
Abstract
Based on the concept of soft power, this article aims to deal
* Graduando de Relações Internacionais pela UFRGS, bolsista de iniciação científica
PIBIC/CNPq e Secretário-Geral do UFRGS Model United Nations 2011.
** Graduando de Relações Internacionais pela UFRGS.
1 apud BONIFACE, 2002, p. 9.
144 | InterAção
with football as a source of State power. The text depicts football as an
important factor in the international context mainly through its soft
power, and its objective is to show that this sport actually works as an
instrument of the state. In order to demonstrate this, the article analyses the Brazilian government’s actions involving this sport, concluding that football is a soft power’s primary source, and not secondary.
Keywords: International Relations. Soft power. Sport. Football.
INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, o papel do esporte nos trabalhos da área
de relações internacionais tem sido negligenciado (no mínimo subva-
lorizado) ou considerado irrelevante, ocupando um espaço marginal
pela comunidade científica (ALLISON e MONNINGTON, 2002,
p. 106–107; BECK, 2003, p. 389–391). Contudo, tendo em conta que
os esportes estão presentes em todos os países do globo e que têm
um alcance maior do que o da própria ONU2, esse suposto hábito de
deixá-lo de lado em estudos internacionais deveria ser revisto.
Como Allison e Monnington (2002, p. 107) disseram: “(...)
nós podemos notar que Estados utilizam o esporte de duas maneiras:
para venderem-se e realçar suas imagens e para penalizar comportamentos internacionais que eles desaprovam.” (tradução nossa3). Além
do mais, basta lembrar os nefastos jogos olímpicos de Berlim em
2 Por exemplo, em 2008 a ONU conta com somente 192 Estados-Membros, enquanto
o Comitê Olímpico Internacional tem 205 países afiliados e a FIFA 208.
InterAção | 145
1936 que serviram como propaganda dos nazistas (SHIRER, 1960;
LARGE, 2007) e das Olimpíadas de Moscou de 1980 e de Los Angeles de 1984, que, devido à Guerra Fria, sofreram boicotes dos Estados Unidos e da União Soviética, respectivamente. Não só isso, mas
o tema é bastante atual, levando autores como Singh (2006) e Nye
(2008) a comentar sobre como as Olimpíadas de Pequim de 2008
serviram para aumentar o prestígio chinês tanto nacional quanto in-
ternacionalmente (e consequentemente seu soft power) ao mostrar a
determinação de seu povo.
A atualidade do tema serviu como a principal inspiração para
a elaboração do presente artigo. Este trabalho pretende ser um passo
inicial ao estudo de como o esporte pode ser relevante para as Rela-
ções Internacionais, ao gerar recursos políticos úteis (ALLISON apud
BECK, 2003, p. 390) e, mais especificamente, como o futebol, o esporte
mais popular do mundo, serve de recurso de soft power. Primeiramente será exposto o conceito de soft power — a
habilidade de obter resultados desejados sem ter que forçar os ou-
tros através de ameaças ou pagamentos — de acordo com o que Nye,
cunhador do termo, escreveu de 1990 até hoje. Também serão discutidos os meios para os Estados poderem exercê-lo, de acordo com Melissen (2005) e Nye (2004). Logo após, será mostrada a importância
do futebol no mundo através de exemplos históricos, e, para finalizar,
será feita uma análise das recentes ações governamentais brasileiras
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(...) we can note that states have used sport in two principal ways: to sell themselves and enhance their image and to penalize international behaviour of which they
disapprove.
146 | InterAção
envolvendo o esporte para averiguar a presença de soft power no meio
futebolístico.
Soft power: Conceito, fontes e limitações
Mesmo que o conceito de poder nas relações internacionais
não seja totalmente consensual, em algum grau concorda-se que po-
der é a habilidade de obter os resultados desejados e stricto sensu a
habilidade de influenciar os outros para obtê-los (NYE, 2004, p. 1–2).
Na política internacional há três meios de realizar essa interação com
os outros países: coerção, indução e cooptação, e a partir disso Nye
(2004, p. 5) divide o poder em dois tipos: o hard power e o soft power, o
primeiro sendo o poder de coagir e induzir, e o segundo o de cooptar.
O hard power tem suas bases em ameaças e barganhas através dos po-
deres econômico e militar para fazer com que os Estados façam o que
se deseja, enquanto o soft power consiste em fazer com que os outros
países queiram a mesma coisa que se procura obter, ou seja, moldar as
preferências dos outros conforme as suas.
Entretanto, Nye (2004, p. 6) ressalta que soft power não é so-
mente influenciar — visto que influência também pode ser realizada
através de hard power — e nem persuadir, mesmo que esses sejam as-
pectos importantes dele, mas é também atrair, e a atração leva muitas
vezes à aquiescência. Nas palavras do autor:
se eu sou persuadido a seguir os seus objetivos sem
qualquer ameaça ou troca acontecendo — em resumo, se meu comportamento é determinado por
uma atração observável, porém intangível — o soft
InterAção | 147
power está agindo. Soft power usa um tipo diferente
de moeda (nem força, nem dinheiro) para engendrar cooperação: uma atração a valores em comum
e à justiça e dever de contribuir para alcançar esses
valores (NYE, 2004, p. 7, tradução nossa4).
Dessa forma, o soft power cria um ambiente propício para que
os outros países desenvolvam preferências semelhantes ou então que
tenham interesse em seguir os mesmos objetivos. As fontes de soft
power de um país para criar esse ambiente são inúmeras, mas as principais, de acordo com Nye (2004, p. 11; 2006), são a cultura (em luga-
res onde ela é atrativa para os outros), os valores políticos (praticados
tanto interna quanto internacionalmente) e a política externa (quan-
do vista como legítima e havendo uma autoridade moral). Todavia, os
valores políticos fazem parte da cultura nacional, e por isso usaremos
apenas uma distinção entre cultura e políticas governamentais externas e internas.
A cultura de uma nação é uma fonte mais efetiva de soft po-
wer quando seus valores são bastante abrangentes e universais, pois
possuem uma maior capacidade de atrair outras culturas — através
de meios populares e de elite —; porém, se a do outro país for muito
rígida e tiver valores muito específicos, é improvável que a do primeiro consiga exercer qualquer atração. Um exemplo disso seria a cultura
brasileira, mais especificamente o carnaval: enquanto essa festividade
4 If I am persuaded to go along with your purposes without any explicit threat or
exchange taking place—in short, if my behavior is determined by an observable but
intangible attraction—soft power is at work. Soft power uses a different type of currency (not force, not money) to engender cooperation—an attraction to shared values
and the justness and duty of contributing to the achievement of those values.
148 | InterAção
atrai pessoas no mundo todo em países ocidentais, em países árabes
onde a cultura muçulmana é muito rígida e as mulheres devem cobrir
seu corpo para sair em público, ela é vista como ofensiva e ultrajante
e, portanto, não exerce atração alguma5.
A cultura de um país se difunde via comércio (cinema, mar-
cas, literatura, culinária, arte, teatro) e intercâmbios culturais (inúme-
ros líderes de todo o mundo estudaram em universidades americanas,
por exemplo). Importante ressaltar que não é apenas o governo que
controla a difusão cultural e o seu soft power, mas as empresas multi-
nacionais e indivíduos renomados também. Exemplos disso seriam a
Microsoft para os EUA, a Adidas para a Alemanha e o Ronaldinho
Gaúcho para o Brasil. Entretanto, nem sempre o soft power desses
grupos pode ser acrescentado ao total do país, pois há a possibilidade
de que faça o contrário do que se deseja e aja contra o soft power na-
cional (NYE, 2004, p. 17), como, por exemplo, as ações da Petrobrás
na Bolívia em 2008.
Do mesmo modo, as políticas governamentais podem acres-
centar ou diminuir o soft power de um país. Se aquilo que é praticado
internamente, em questões tanto de valores políticos quanto de medi-
das mais concretas, for contrário ao que se prega internacionalmente,
há diminuição de soft power. Portanto, o governo do país não pode ser
hipócrita e deve manter uma política coesa em três esferas distintas:
a interna, a bilateral e a multilateral. Um país pode conseguir mais
soft power ao fazer regras, instituições internacionais e definir agen5 No entanto, se houvesse um movimento feminista pela liberdade das mulheres,
talvez o carnaval as atraísse. É sempre uma questão de contexto.
InterAção | 149
das multilaterais que pareçam legítimas aos olhos dos outros (NYE,
1990, p. 168; 2004, p. 10). Destarte ele estaria servindo de exemplo
e poderia estar fazendo com que os outros quisessem o mesmo que
ele — o soft power em ação.
Além dessas duas fontes principais, também há as fontes
ligadas ao hard power. Muitas vezes, nações sentem-se atraídas a
outras por causa de seu poderio militar ou econômico. É apostar
no vencedor. Como disse Osama Bin Laden (apud NYE, 2004, p.
26): “quando as pessoas veem um cavalo forte e um cavalo fraco,
por natureza, eles vão gostar do cavalo forte.” (tradução nossa6).
Esse ponto leva Noya (2006) a criticar Nye por fazer uma teoria
tão dualista, e chega a dizer que assim qualquer fonte legítima de
poder produziria soft power (NOYA, 2006, p. 57). Contudo, Nye
(1990; 2004) deixa claro que apesar de haver um jogo entre os dois
tipos de poder, cada um possui fontes primárias bem diferentes.
Kennedy (2005, p. 1–2) também afirma que, ao contrário do que se
pensa, os dois tipos de poder podem andar juntos sim, não sendo
antitéticos7. Como disse Carr (apud MELISSEN, 2005, p. 2) “po-
der sobre a opinião não é menos essencial para propósitos políticos
do que o poder econômico e militar, e sempre esteve associado
com eles.” Então é notável a interação entre os dois tipos de poder,
principalmente o papel do hard power como fonte secundária de
6 When people see a strong horse and a weak horse, by nature, they will like the
strong horse.
7 O autor também acredita que os dois tipos de poder estão se unificando, principalmente o americano.
150 | InterAção
soft power.
Os efeitos dessas fontes são difusos, característica fundamen-
tal do soft power. Esse tipo de poder não é facilmente percebível em
um só ponto, ele normalmente se encontra espalhado por toda a po-
pulação de um determinado país. Desse fato se apreende que, para
o soft power surtir mais efeitos, é necessário que o povo tenha voz
na política, ao menos em parlamentos, e que governos deem atenção
à opinião pública; democracias tendem a ser mais receptivas de soft
power. Afinal “(...) soft power depende mais do que o hard power da
existência de intérpretes e receptores de boa vontade.” (NYE, 2004, p.
16, tradução nossa8).
Por causa dos efeitos difusos da atração gerada pela cultura e
por políticas governamentais, é raro observar uma ação específica que
tenha ocorrido por causa do soft power; com ele cria-se justamente
uma influência geral e não um comando de ações determinadas — ele
não gera obrigações. Tendo isso em mente, nota-se que o soft power
produz mais frequentemente efeitos de longo prazo9, e, justamente
por causa disso, ele é mais efetivo em objetivos distantes no tempo e
não muito específicos, tais como a defesa da democracia e dos direitos
humanos, mas sempre lembrando que as situações variam; por sua
vez, a efetividade em objetivos imediatos depende muito do contexto
em que se encontra (NYE, 2004, p. 16–17).
8 (...) soft power depends more than hard power upon the existence of willing interpreters and receivers.
9 Efeitos mais diretos ocorrem mais esporadicamente, normalmente envolvendo a
perda de soft power.
InterAção | 151
Exercendo soft power
Ao contrário do hard power, o soft power não é uma ferramen-
ta governamental tão facilmente utilizável para atingir resultados com
uma rapidez considerável. Ameaças e barganhas têm um tempo de
resposta muito menor do que o da atração. Outro motivo para que o
soft power não seja facilmente exercido pelos governos é o fato de que
poucas são as fontes que se podem manejar para conseguir resultados
específicos — ele serve mais para moldar favoravelmente o ambiente
em que ações são tomadas (NYE, 2004, p. 99).
Além das políticas específicas para cada situação, que depen-
dem muito do contexto, um governo pode manter ou produzir soft
power ao promover uma boa imagem de seu país, atraindo outras na-
ções em aspectos gerais de sua cultura, sociedade e valores políticos.
Melissen (2005, p. 19) distingue quatro métodos para que um país
possa fazer isso: propaganda, o país como marca10, relações culturais
em geral e diplomacia pública.
O primeiro método, a propaganda, deliberadamente procura
dar uma informação que mude a opinião e os interesses dos recep-
tores a favor daquele que a divulgou, tenta dizer o que eles devem
pensar, estreitando as possibilidades de escolha de acordo com a von-
tade do propagandista (MELISSEN, 2005, p. 19–22). No passado,
essa forma de atração foi amplamente utilizada, mas hoje um governo
deve ter cuidado ao usá-la, porque “informação que pareça ser propa-
10 Nation branding, no original.
152 | InterAção
ganda pode não apenas ser desdenhada, mas também pode se tornar
contraprodutiva, se minar a reputação por credibilidade de um país.”
(NYE, 2004, p. 107, tradução nossa11). Por exemplo, as notícias que
o governo americano divulgou sobre o Iraque de Saddam Hussein
estar desenvolvendo armas de destruição em massa, que serviram de
justificativa para a guerra de 2003, acabaram minando muito a credibilidade do país, visto que se mostraram infundadas.
Em segundo lugar, a divulgação de um país como marca é a
venda da imagem do país no exterior, uma tentativa de mudar o olhar
da opinião pública internacional ao projetar uma identidade que se
destaque dos outros países (MELISSEN, 2005, p. 22–25). Na maio-
ria das vezes, um dos principais objetivos desse método é criar mer-
cados externos para produtos nacionais, e para isso deve haver uma
ação conjunta do governo com empresas e outras organizações não
governamentais. A construção de uma nova imagem, positiva para o
país, já basta para aumentar o seu soft power.
Por sua vez, as relações culturais diferem dos outros três mé-
todos, já que originalmente são tidas como uma voz não governamental nas relações internacionais dos países. Elas servem para di-
fundir ideias e incentivar debates acerca das distintas realidades entre
os povos, não estando diretamente ligada a políticas externas específicas. Apesar disso, as relações culturais vêm sendo apropriadas e/
ou fomentadas pelos governos, tornando difícil uma clara separação
(MELISSEN, 2005, p. 25–27).
11 Information that appears to be propaganda may not only be scorned but also may
turn out to be counterproductive if it undermines a country’s reputation for credibility.
InterAção | 153
O quarto e último método, a diplomacia pública, é tido por
Melissen (2005, p. 3) como um instrumento-chave do soft power.
Como diz o nome, esse tipo de diplomacia visa à opinião pública
dos países estrangeiros, propagando uma imagem positiva do país e
criando laços amistosos — o que gera mais soft power (NYE, 2004,
p. 105–118). O que o diferencia dos outros métodos é o fato de que
ele estabelece um diálogo com as sociedades civis dos outros países,
não se confinando à transmissão de informações (como a propagan-
da), para manter boas relações entre Estados. A diplomacia pública
complementa o método do país como marca ao conservar e ampliar
as conexões culturais, assim sobrepondo-se às relações culturais como
instrumento de soft power (MELISSEN, 2005, p. 19–27; NYE, 2004,
p. 111). Nye (2004, p. 107–110) põe em evidência três dimensões da
diplomacia pública que juntas formam uma imagem atrativa a favor
do soft power: comunicação diária, que envolve explicar e expor o con-
texto das decisões de política externa e interna do dia-a-dia, estando
sempre preparado para corrigir informações falsas que tenham sido
divulgadas a seu respeito; comunicação estratégica, com eventos simbólicos e debates acerca de temas específicos para facilitar a aceitação
de alguma política governamental em particular; e o desenvolvimento de relações duradouras com indivíduos-chave ao longo do tempo
através de intercâmbios, conferências, treinamentos. O autor também
ressalta que, para funcionarem, elas devem estar em sintonia com a
postura internacional do país, já que não adianta dizer uma coisa e
fazer outra, pois isso levaria a uma crise de credibilidade e faria o país
perder soft power (NYE, 2004, p. 111).
Conforme Wang (2006, p. 35–40) a efetividade da diplo-
154 | InterAção
macia pública varia conforme o objetivo procurado. Para ele, grupos
subnacionais são os melhores para criar e manter um entendimento
comum e cooperação mútua, e não o governo: para transmitir ideais e
valores nacionais, o governo e tais grupos são igualmente relevantes.
Contudo, em políticas governamentais e suas metas, grupos subna-
cionais não teriam muita importância. O autor também afirma que o
governo deve servir mais amiúde como patrocinador, e os grupos mais
como comunicadores e facilitadores (WANG, 2006, p. 40). Tanto ele
quanto Melissen (2005, p. 29–30) lembram que o ideal é que o gover-
no aja sempre em conjunto com os grupos subnacionais para a maior
eficácia da diplomacia pública.
Análise de caso
Um estudo mais detalhado é necessário para uma melhor
compreensão de como o futebol está ligado ao soft power. Por isso
foi selecionado o caso brasileiro, notadamente no Haiti, focando nas
políticas governamentais brasileiras envolvendo o esporte para consolidação do seu soft power.
Brasil
Com o governo de Lula, o Brasil buscou um papel maior no
cenário internacional, procurando se firmar como potência regional
e quiçá mundial. Para isso, foram fechadas parcerias com inúmeros
países em desenvolvimento, e tomou-se papel mais ativo em questões
de manutenção da paz mundial. O caso das forças de paz da ONU no
InterAção | 155
Haiti (MINUSTAH), comandada pelo Brasil, é o caso mais evidente, e nele o papel do futebol foi de extrema importância (BIAZZI e
FRANCESCHI NETO, 2007).
Desde que começou a intervenção militar em junho de 2004,
com 1.200 soldados brasileiros, percebeu-se o papel que o futebol
poderia desempenhar para legitimá-la. Logo de início, o exército do
Brasil levou consigo não apenas armas e equipamentos militares, mas
também mil bolas de futebol e camisas da seleção brasileira, para serem distribuídas em escolas haitianas.
Pouco tempo depois, o governo brasileiro propôs a ideia do
“Jogo da Paz”, entre a seleção brasileira e a haitiana, à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e aos jogadores. Todos prontamente
aceitaram a proposta. Devido ao renome internacional dos jogadores
brasileiros e da seleção canarinho, que então era a campeã do mun-
do, esse jogo seria um legitimador da intervenção da ONU e uma
demonstração de comprometimento e respeito do Brasil para com a
causa do Haiti (BIAZZI e FRANCESCHI NETO, 2007).
A partida foi realizada em agosto de 2004. Ela foi um claro
ato de diplomacia pública através de comunicação estratégica entre
o Estado Brasileiro e o povo haitiano. Ela serviu como aproximação
entre os dois países e abrandou a intervenção militar que acontecia.
Como resultado disso a presença brasileira no Haiti
seria mais bem vista e aceita por parte da população local o que de certa forma facilitaria o trabalho
das Forças de Paz presentes, tornando-o mais ágil e
eficaz e contribuindo para o alcance das metas, que
são: contribuir para a segurança do país e estabelecer condições para uma transição política pacífica
(BIAZZI e FRANCESCHI NETO, 2007).
156 | InterAção
Nesse contexto, a política externa brasileira mostrou como
uma iniciativa não-militar, ao usar de uma imagem agregadora, no
caso, da seleção brasileira de futebol, pode colaborar com os propósitos do país, especificamente em uma missão de paz. As imagens da
calorosa recepção do povo haitiano aos jogadores do Brasil a percor-
rer as ruas de Porto Príncipe em carros blindados a serviço da ONU
ganharam o mundo através da mídia internacional e evidenciaram
como um gesto simples pode se transformar num poderoso instrumento a favor da paz (AGUILAR, 2008, p. 7).
Ademais, o jogo também serviu para unir o povo do Haiti,
que vinha sofrendo com o conflito civil. Antes de o jogo começar, o
hino haitiano foi cantado em uníssono por mais de 15 mil pessoas,
demonstrando todo o seu orgulho e patriotismo. A estabilização da
situação no Haiti pôde, então, tornar-se mais fácil e rápida com a
união dos cidadãos do país, que ocorreu devido ao futebol, instrumento do soft power brasileiro.
Nesse caso, viu-se o soft power brasileiro em ação no país e,
além disso, aumentar em outros países, devido ao apelo internacional
do esporte. Ele permitiu uma maior aproximação entre as tropas bra-
sileiras e a população local. Isto facilita a consecução da operação de
paz, até porque todas as tropas de outras nacionalidades usufruíram
desse maior contato. Além do mais, o “Jogo da Paz” chamou a aten-
ção internacional para a situação haitiana, o que pôde de certa forma
fazer com que maiores esforços fossem realizados para a melhora da
condição do país, inclusive para a “obtenção de recursos para desenvolvimento de projetos de construção da paz” (AGUILAR, 2008).
Além do caso do Haiti, o governo brasileiro, para firmar seu
InterAção | 157
papel de potência, vem criando vínculos com países africanos, tornando-se um polo de atração. Para aumentar seu soft power no continente
africano, o governo brasileiro criou parcerias com as confederações de
futebol daqueles países para que seleções e times africanos treinas-
sem em solo brasileiro, usufruindo de toda a infraestrutura disponível.
Fora isso, o governo brasileiro também incentiva a ida de técnicos
de futebol a times e seleções africanas. Esses são casos claros de di-
plomacia pública brasileira tentando criar vínculos bastante positivos
com outros países: soft power.
Por fim, a própria realização da Copa do Mundo de futebol
em 2014 é um grande ganho para o Brasil em questões de soft power.
Já a partir do anúncio da FIFA de que o Brasil seria o país anfitrião
do evento em outubro de 2007, as atenções se voltaram para o país.
Desde então, o soft power brasileiro vem aumentando e deve ter seu
primeiro ápice quando (e se) a Copa for realizada exitosamente em
2014. Provável e possivelmente, as Olimpíadas no Rio de Janeiro em
2016 também servirão como um marco de atração de outros países
ao Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exemplo brasileiro, é possível perceber o quão re-
levante é o futebol nas Relações Internacionais, especificamente para
o soft power. Ele não somente serve como elemento aglutinador de
massas, mas também como propaganda, e carrega enorme simbolismo. Levando isso em consideração, é no mínimo curioso pensar que
não se tenha abordado esse tema nessa área de estudos com a devida
158 | InterAção
frequência.
O potencial da função do futebol como meio de soft power
se faz presente no fato de que ele é um esporte mundial assistido
por bilhões e praticado por centenas de milhões. As seleções nacio-
nais são vistas como representantes quase oficiais do país, portanto,
cada vez que um jogo é realizado, tem-se a impressão de que é o país
todo em campo. Destarte, o esporte, em especial o futebol, afigura-se
como um elemento fundamental para a criação e manutenção de laços amistosos entre as nações. Tais laços são sinais de que o soft power
está presente, ou seja, o caminho para que os objetivos dos Estados
sejam alcançados sem coerção ou trocas está assentado graças ao fute-
bol. Portanto, conclui-se que o futebol é um instrumento primário no
exercício direto e indireto do soft power, devendo os países prestarem
mais atenção a esse esporte.
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InterAção | 161
O RECONHECIMENTO DA REPÚBLICA POPULAR DA
CHINA E O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL
FATORES DOMÉSTICOS E EXTERNOS
Dimitri Silva Nunes de Oliveira*
Rômulo Barizon Pitt**
Resumo
O presente artigo revisa o papel e os fatores envolvidos no
reatrelamento diplomático do governo brasileiro com a China continental em 1974, no âmbito do “pragmatismo responsável”. O pragmatismo responsável da presidência do general Geisel e a decisão de
reconhecer a China comunista se explicam em grande parte pelas
circunstâncias favoráveis no cenário internacional de então, que exigia
o reposicionamento brasileiro. Entretanto, é a dinâmica política do-
méstica dos dois países, mais criticamente do Brasil, que permitem,
em última instância, a aproximação entre os dois governos.
Abstract
This article reviews the role and the factors involved in the
* Dimitri Silva Nunes de Oliveira é graduando no curso de Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador no IFCH (Departamento de História).
** Rômulo Barizon Pitt é graduando no curso de Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador no NERINT (Núcleo de Estratégia e
Relações Internacionais).
162 | InterAção
diplomatic rapprochement between the Brazilian government, under
the “responsible pragmatism”, and mainland China, in 1974. General
Geisel’s pragmatism and the decision to recognize Communist Chi-
na can be largely explained by favorable circumstances in the interna-
tional arena, which demanded a repositioning on the part of Brazil.
However, it is the domestic political dynamics of the two countries,
Brazil’s most critically, that allow, ultimately, the rapprochement between the two governments.
INTRODUÇÃO
O reconhecimento da República Popular da China (RPC)
constituiu um marco na política externa dos governos militares e da his-
tória diplomática brasileira. Em clara oposição à linha externa adotada
pelos governos predecessores, o governo Geisel relegou menor impor-
tância ao peso da ideologia nas iniciativas de política externa brasileiras,
no contexto da política externa que ficou conhecida como “pragmatismo
responsável”.
De certa forma, como contrapartida da liberalização política
interna, a liberalização da política externa ganhou força com o general
Geisel, militar reconhecido por pertencer às alas moderadas do regime
que ascendeu ao poder em 1964. A liberalização da política internacio-
nal, no primeiro momento, assumiu forma em três principais iniciativas:
a mudança de posição no conflito árabe-israelense em prol das nações
árabes, o apoio à descolonização portuguesa na África e o reatrelamento
de relações diplomáticas com a RPC. Em comum com a contrapartida
interna, a liberalização nas relações exteriores foi colocada em prática de
InterAção | 163
forma “gradual e segura”, muito embora se perceba que no cenário internacional tal iniciativa foi mais veloz que a redemocratização doméstica.
Dada a importância e, principalmente, a representatividade do
evento do reconhecimento da RPC para a política externa brasileira,
encontra-se no Brasil extenso trabalho acadêmico acerca deste evento,
seu papel e seus condicionantes. Assim, este artigo buscará condensar os
fatores internos e externos referentes aos dois países e a dinâmica entre
estes diferentes aspectos no que condiz à aproximação entre os dois governos. Apesar das marcadas diferenças ideológicas entre os regimes, as
mudanças no sistema internacional, assim como as mudanças na dinâ-
mica política dentro das arenas decisórias dos dois países, acabaram por
reverter o processo de afastamento que se vislumbrava desde o início do
governo Castello Branco.
A partir desta constatação, elencamos como hipótese que tanto
as mudanças externas quanto as internas de ambos os países configu-
ram pré-requisitos sem os quais não haveria a aproximação no momento
em que se deu – provavelmente a aproximação diplomática só se daria
mais tarde sem tal conjunto de fatores. Na análise da arena política do-
méstica brasileira, o presente artigo se baseou principalmente no estudo
de HIRST (1984). A partir de uma revisão bibliográfica, será avaliado
o diálogo entre os principais atores envolvidos nas relações bilaterais
Brasil-RPC durante o governo Geisel e seu “pragmatismo responsável”.
1 Contextualização
O fim do governo Médici foi marcado por uma intensa crise
econômica no Brasil e no mundo. No ano de 1973 estourou a crise do
164 | InterAção
petróleo, orquestrada pela OPEP como sinal de protesto ao apoio dos
Estados Unidos a Israel na Guerra do Yom Kippur. O preço do pe-
tróleo teve um aumento vertiginoso, impactando a economia mundial
e especialmente a brasileira. Isso se deve pelo fato de que o Brasil na
época era o maior importador de óleo entre os países em desenvolvi-
mento e o sétimo em escala mundial, o que fez com que o país passas-
se a gastar cerca de 40% de sua receita adquirida em exportações com
a importação desse insumo, em 1974. Para efeito de comparação, o
mesmo percentual, em 1972, girava em torno de 15% (BREDA DOS
SANTOS, 2000).
O choque do petróleo causou forte recessão nos países indus-
trializados, tradicionais importadores de produtos brasileiros e investidores externos na economia nacional. Assim, o modelo de desen-
volvimento escolhido pelo Brasil, que “empregava energia importada
barata, dependia do afluxo de investimentos de capitais estrangeiros
e da utilização de tecnologia também importada” (VIZENTINI,
1998), sofreu forte revés. Em suma, a crise do petróleo inverteu toda
a conjuntura próspera que propiciou o rápido crescimento entre os
anos de 1968 e 1973. A situação se torna mais drástica se levarmos
em conta a opção do governo brasileiro pelo transporte rodoviário em
detrimento do ferroviário e hidroviário, feita como parte da estratégia
para a atração e instalação de indústrias automobilísticas internacio-
nais no país. O aumento do número de automóveis e a consequente
necessidade de aumentar a importação de petróleo intensificavam
ainda mais a derioração das contas externas nacionais.
Mesmo antes do choque do petróleo, o sistema econômico
internacional já apresentava sinais de mau desempenho. Em boa par-
InterAção | 165
te como efeito da administração Nixon e do baixo desempenho da
economia norte americana, atrelada aos custos da guerra na Indochina, o quadro internacional era de recessão e de exacerbação do protecionismo. O protecionismo era proveniente principalmente das nações desenvolvidas, as quais ocupavam posição de destaque na pauta
de comércio exterior do Brasil, enquanto que setorialmente afetavam
diretamente as economias exportadoras de produtos primários – o
que agravava as perdas brasileiras.
Destarte, o “milagre econômico” dava sinais visíveis de esgota-
mento, elimando assim um dos principais pilares de sustentação do governo militar. A discussão sobre abertura política crescia cada dia com
mais força no seio da sociedade e a explosão da radicalização se mostrava como uma perspectiva real e próxima. Concomitantemente, existiam
confrontos internos no governo, onde linha dura e moderada não conseguiam articular uma postura única e eficaz para reverter o quadro da
economia nacional. O cenário conjuntural demandava uma mudança de
postura do governo, cuja legitimidade passava a ser questionada.
Em março de 1974 assumiu a presidência da República Er-
nesto Geisel, militar da linha moderada, com a responsabilidade de
arrefecer a crise interna e permitir que o processo de abertura se desse
de forma “lenta, gradual e segura”. Uma de suas primeiras ações nesse
sentido foi mudar o rumo da política externa, inaugurando o período
conhecido como “pragmatismo responsável” da diplomacia nacional.
Nas palavras de Geisel:
“[...] a política externa (a ser adotada) tinha que ser
realista e, tanto quanto possível, independente. Andávamos demasiadamente a reboque dos Estados
166 | InterAção
Unidos. Sei que a política americana nos levava a
isso, mas tínhamos que ter um pouco mais de soberania, um pouco mais de independência, e não sermos subservientes em relação aos Estados Unidos.
[...] Nossa política tinha que ser pragmática, mas
também responsável. O que fizéssemos tinha que ser
feito com convicção e no interesse do Brasil, sem dubiedades.” (D’ARAUJO & CASTRO, 1996, p. 336)
Comparando-a com a política adotada pelo governo de
Castello Branco, nota-se um contraste significativo, principalmente
quanto ao relacionamento entre Brasil e Estados Unidos. Entre os
anos de 1964 e 1967, a proposta vigente era a de “desmantelar os
princípios que regiam a Política Externa Independente, tais como o
nacionalismo, base da industrialização brasileira, o ideário da Ope-
ração Pan-Americana e a autonomia do Brasil em face da divisão
bipolar do mundo e da hegemonia norte-americana sobre a América Latina” (MALAN, 1984). Em outras palavras, o objetivo central
da política castellista era retificar o “curso sinuoso” apresentado pela
política externa dos governos de Jânio Quadros e João Goulart, pois
se acreditava que a política neutralista até então defendida não servia aos propósitos de um país como o Brasil. A tese da segurança
coletiva1 e o incremento das relações entre Brasil e Estados Unidos
no período foram consequências naturais da nova linha adotada pelo
Itamaraty. Durante os governos de Costa e Silva e Médici, houve uma
atenuação na ênfase da identificação ideológica com o bloco políti-
1 A tese da segurança coletiva foi elaborada num contexto de insegurança interna
nos países da América Latina, onde forças revolucionárias estavam conquistando
vitórias sobre as forças legais. Tal fato gerava grande impacto no mundo ocidental.
InterAção | 167
co-militar ocidental; sem embargo, foi apenas com o “pragmatismo
responsável” que os interesses nacionais foram priorizados, rejeitando o alinhamento automático com o Mundo Ocidental. (SOUTO
MAIOR, 2000)
Essa discrepância entre as políticas adotadas em 1964 e 1974
é explicada em parte pela diferença econômica do Brasil nos dois
períodos. As importações e as exportações dobraram e quadruplica-
ram, respectivamente, nesses dez anos. Além disso, assistiu-se uma
grande diversificação da pauta de produtos exportados, com a parti-
cipação do café caindo para 25%, enquanto que as participações da
soja e dos produtos manufaturados aumentaram consideravelmente.
A expansão da industrialização transformou o país num concorren-
te de outros países industrializados, gerando atritos principalmente
com os Estados Unidos e a Comunidade Europeia. Temos ainda o
aumento da dívida externa, o que significava uma maior exposição
brasileira frente ao jogo das forças econômicas internacionais. Em
resumo, temos uma vigorosa alteração na inserção do Brasil na eco-
nomia internacional, onde o choque de interesses entre países ricos e
pobres corroborou para a mudança de postura do governo nacional.
(SOUTO MAIOR, p. 441-442)
Outro fator relevante para explicar a divergência entre as po-
líticas de Castello Branco e de Geisel é a alteração da conjuntura
Para combater as forças subversivas, o Brasil passou a advogar a defesa coletiva do
continente americano, consubstanciada através da reestruturação da Organização
dos Estados Americanos. Além de coletiva, a segurança seria integral, por abarcar
todos os planos possíveis, seja político, econômico, militar ou ideológico.
168 | InterAção
internacional. Durante os dez anos entre as duas gestões, houve um
relativo abrandamento da guerra fria. A adoção de uma política de
détente pelas duas superpotências contribuiu para o surgimento de
um mundo multipolar, com muito mais alternativas de parceiros co-
merciais para o Brasil. Além disso, as possibilidades para tomada de
empréstimo externo também aumentavam, tendo em vista o grande
volume de capital disponível no mercado financeiro internacional e
o seu interesse em reciclar os chamados petrodólares (PINHEIRO,
1993, p. 247-260). Os empréstimos externos constituíam a única forma de viabilizar o objetivo central do governo de manter o crescimento econômico acelerado.
Unindo-se a abundância no mercado financeiro ao aumento
de protecionismo nos principais parceiros comerciais do país – especialmente nos Estados Unidos – teve-se a circunstância econômi-
ca ideal para a diversificação nas relações diplomático-comerciais.
A linha política a ser perseguida pelo governo Geisel tinha então o
respaldo necessário em vários pontos, consolidando, dentre as partes
civis do governo, a percepção da necessidade da inflexão na política
exterior brasileira.
As conjunturas interna e externa que deliniaram o ano de
1974 são, portanto, fatores que permitem a adoção de uma política externa de afirmação nacional como era o “pragmatismo responsável”. O conceito de pragmatismo se relacionava à eficiência
material; à ideia de uma política descomprometida com princípios
ideológicos que pudessem dificultar a consecução de interesses na-
cionais, que sugeria que o Brasil estava pronto para adaptar-se a
qualquer mudança potencial no sistema internacional. O termo
InterAção | 169
responsabilidade relacionava-se às questões ideológicas, que não
deveriam contaminar a política externa; tratava-se de uma palavra-
-chave dirigida às bases de sustentação do regime militar. Diz-se
ainda que a política externa de Geisel foi “ecumênica”, devido ao
caráter universalista de sua política externa, objetivando o incre-
mento das relações internacionais do país. (VIZENTINI, 2004, p.
208; PINHEIRO, p. 249)
Talvez a grande constatação feita pelos elaboradores da po-
lítica externa que viria a ser adotada em 1974 é a de que a ordem internacional vigente constituía um obstáculo para o desenvolvimento
social e econômico dos países do chamado Terceiro Mundo. Assim,
a aproximação do Brasil com os demais países pobres era necessária,
sendo talvez a única estratégia disponível para alterar a ordem econômica mundial. Não obstante, essa aproximação não era um objetivo
em si, pois havia a consciência de que os países ricos eram os únicos
detentores de tecnologia e financiamentos tão necessários para a conquista do desenvolvimento no país. Com efeito, existia uma política
de solidariedade com o Terceiro Mundo e de preferência econômica
pelo Norte.
Assim, entre as características gerais da política externa ado-
tada pelo governo de Geisel, merecem destaque o fim do apoio ao
colonialismo português na África e a adoção de uma postura pró-árabe no conflito árabe-israelense. Merece menção também a ati-
tude brasileira em fóruns multilaterais, reivindicadora de uma maior
participação no sistema internacional. Tal prática reforçava as posi-
ções brasileiras nas negociações bilaterais com países desenvolvidos.
(PINHEIRO, p. 250)
170 | InterAção
2 Precedentes históricos do Reconhecimento Diplomático
O primeiro momento representativo da política externa bra-
sileira em relação ao novo governo em Beijing se deu com a Guerra
da Coreia, no início da década de 1950. O então governo Vargas,
embora alinhado com os Estados Unidos, recusou o convite de enviar
tropas à península asiática, evitando se comprometer com um lado em
especial. Entretanto, é a partir do governo de Jânio Quadros que a re-
lação com a RPC ganha importância no contexto da Política Externa
Independente (PEI).
A partir de uma série de medidas que posteriormente seriam
caracterizadas por Castello Branco como “práticas sinuosas”, o presidente Jânio Quadros inicia uma aproximação com o governo de
Mao Zedong, culminando no envio do vice-presidente João Goulart
para Beijing em 1961. Na China Popular, um dos principais fatores
da política externa do governo revolucionário de então era o cisma
sino-soviético. Com a morte de Stalin e o revisionismo de Kruschev,
os já existentes ressentimentos entre a China maoísta e a União Soviética se transformaram num afastamento completo entre os dois
países socialistas, ideológica e politicamente. Assim, a RPC, tendo
que contornar o crescente isolamento internacional, passou a investir
no fomento de relações diplomáticas e comerciais com outros países
subdesenvolvidos do chamado Terceiro Mundo. As relações bilaterais
atingiam um ápice inédito quando os eventos de meados da década
de 1960 impuseram um retrocesso na crescente aproximação entre os
dois países.
D urante as duas primeiras décadas do governo comunista em
InterAção | 171
Beijing, a revolução esteve muito presente na política externa da RPC.
A exportação do ideário da revolução maoísta era preponderante nas
iniciativas internacionais chinesas, principalmente após o cisma sino-
-soviético. Existia um conflito entre os dois modelos de revolução
socialista, embora não fosse aberto e total, ao mesmo tempo em que
imperava na América Latina a política de contenção praticada pelos
Estados Unidos. O conhecimento do patrocínio chinês a partidos po-
líticos na América Latina invariavelmente entrava em choque com as
alas políticas conservadoras, já insatisfeitas com as práticas populistas
do governo democrático de então.
Como fruto da alta polarização na política brasileira no con-
texto da queda de João Goulart, nove funcionários chineses que se
encontravam no país, entre eles alguns encarregados de instalar um
escritório comercial (previamente negociado entre o governo Jango e
a RPC), foram presos sob a acusação de “conspirar contra a segurança
nacional”. Em grande parte iniciativa do governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, a prisão ia ao encontro das acusações de que a movimentação sindical, em particular as greves de 1963, havia sido orga-
nizada por inspiração maoísta (PINHEIRO). Tal evento encerra, no
Brasil, o ciclo de aproximação bilateral. Comparativamente, na China
também se observa nos meados da década de 1960 a ação das alas
mais extremadas do Partido Comunista Chinês (PCCh) com a Revo-
lução Cultural, encabeçada por Mao, que visava afastar as lideranças
moderadas e acabou por mergulhar o país na turbulência política. Tais
eventos se relacionam diretamente ao cenário internacional de alta
polarização, agravado com a crise dos mísseis de Cuba de 1962 e a
multiplicação de arsenais nucleares.
172 | InterAção
A prisão dos representantes chineses, de teor político, carac-
teriza a arena decisória da política doméstica do período referido.
Durante a era Castello Branco, ao contrário do que se percebe na era
Geisel, as partes conservadoras – que naturalmente não aceitariam
empreender esforços diplomáticos direcionados a uma nação socialista como a China Popular – têm voz ativa no gabinete presidencial
e poder de veto nas decisões políticas. A isso também se deve as duas
presidências seguintes, de Costa e Silva e Médici, militares ligados à
“linha dura”.
Com as mudanças do equilíbrio internacional do final da dé-
cada de 1960, mudam também as conjunturas internas de Brasil e da
RPC. A criação do TNP e a prática da détente entre as duas superpotências ditam um novo ambiente internacional, onde os dois países
recomeçam a se identificar mutuamente e a reconstruir suas relações.
A oposição à assinatura do TNP por ambos os países aproximam estes nos fori internacionais, enquanto a China continental se aproxima
cada vez mais de países em desenvolvimento como o Brasil, dado o
ressentimento com as doutrinas Nixon e Kruschev. Com as iniciati-
vas norte-americanas em relação à reinserção da China comunista
no cenário internacional, têm-se um episódio controverso: o Brasil
nega a entrada da China continental na ONU. As críticas do então
Ministro Gibson Barbosa (BECARD, 2008) refletem o descontentamento com o “clube do poder das potências ocidentais” que apoiaram
a entrada da China puramente por questões de realismo político; ou
seja, tendo por fim enfraquecer o rival-amistoso, a URSS.
Mas mais importantes foram as mudanças ideológicas nos
governos brasileiro e chinês e na distribuição de poder interno. Na
InterAção | 173
RPC, a Revolução Cultural começa a esmaecer com a percepção do
cumprimento do objetivo, enquanto que o apoio americano fomen-
ta a identificação com o Terceiro Mundo. A luta entre moderados
(dentre os quais estava o futuro líder partidário Deng Xiaoping) e
os extremados continuaria internamente até 1976, embora externamente já houvesse ali um grau de liberalização. Em 1972, a China
apoia diplomaticamente o Chile de Pinochet na questão dos direitos
humanos versus soberania, ponto que é percebido pelo governo militar brasileiro como muito favorável. O apoio ao Chile, que era um
promissor parceiro econômico, juntamente com o apoio às preten-
sões territoriais marítimas de países da América Latina em relação
ao território contestado pelos Estados Unidos, acaba por iniciar uma
reversão da imagem negativa que o governo militar brasileiro tinha
sobre a China de Mao.
3 O Pragmatismo Responsável, a Teoria dos Três Mundos e o Reatrelamento com Beijing
A década de 1970 é de grandes transformações internas no
Brasil e na RPC. No Brasil, sobe ao poder um militar da área moderada
depois de dois presidentes da linha dura. Na China, o grupo moderado, liderado por Deng Xiaoping, consegue ressuscitar politicamente e
começa a reverter a balança de poder interna, culminando na queda
do grupo que ficou conhecido como Bando dos Quatro, proeminente
durante a revolução cultural. Também no cenário internacional se contemplam mudanças significativas. O choque do petróleo, a desvalorização do dólar e o mau desempenho econômico das potências ocidentais
174 | InterAção
impõem uma nova realidade aos países exportadores de produtos primários no bloco ocidental, onde se encaixa o Brasil.
A questão para o Brasil era se existiam condições internas
para a diversificação das parcerias internacionais para além das barreiras ideológicas, mesmo em um regime que se respaldava na questão ideológica. Com a ascensão do general Geisel e as consequentes
mudanças no processo de decisão política, a resposta foi positiva. O
pragmatismo responsável, colocado em prática por uma política ex-
terna “responsável e ecumênica”, eliminava na medida do possível as
barreiras ideológicas para a diplomacia do regime militar. Mas se sabe
que havia forte oposição dentre os militares. Portanto, dificilmente o
reconhecimento teria acontecido no tempo em que se deu, não fosse
a atitude da liderança de Geisel e o enfraquecimento de certos órgãos
do regime.
O processo de reaproximação com a China já estava em anda-
mento, embora com pouca profundidade, desde o final da década de
1960, por iniciativa do Itamaraty. Mais especificamente, a iniciativa
foi feita pela Divisão de Ásia e Oceania, encabeçada pelo conselheiro
Carlos Antônio Bettencourt Bueno. O Ministério das Relações Ex-
teriores manteve um acompanhamento constante do que acontecia
na República Popular da China, o que lhe permitiu perceber o esmae-
cimento da Revolução Cultural e das novas possibilidades de parceria
que o país asiático oferecia.
O Itamaraty consolida sua liderança em matéria de política
externa na gestão Geisel-Azeredo da Silveira, Ministro das Relações
Exteriores até a posse de Figueiredo. Como se observa no cronograma das missões e de outras iniciativas diplomáticas, a aplicação do
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pragmatismo responsável no reconhecimento diplomático da RPC
foi uma decisão tomada unilateralmente pelo gabinete presidencial,
em consulta e com o consentimento do Itamaraty. Quando a Secretaria Geral da Comissão de Segurança Nacional se pronunciou a respeito da questão, a iniciativa já havia sido tomada.2
Assim, o estilo autocrático da administração Geisel consti-
tuiu fator chave no reconhecimento da RPC. O governo acabou por
ser muito mais um governo pessoal do que característico de “junta”,
como se observa frequentemente nos regimes militares. Não só isso,
mas também a boa relação com o Itamaraty, que ganhava destaque
dentre os órgãos informativos no plano da política externa, possibili-
tou a percepção das novas possibilidades oriundas das mudanças no
sistema internacional e na dinâmica política interna chinesa. Uma
vez percebido o novo quadro, era somente natural o curso de ação
tomado, o que aconteceu apesar da falta de consenso entre os mi-
litares. Também se percebe a perda de espaço de outros órgãos de
inteligência, em especial do SNI, que contava com participação direta
nos gabinetes civil e militar, em matéria de política externa, durante o
governo Médici.
De fato, a China transformava-se na década de 1970. Pas-
sados os piores anos da rixa entre Mao Zedong e Deng Xiaoping, o
discurso na Assembleia Geral da ONU de Deng Xiaoping sobre a
2 Observando o calendário dos acontecimentos, percebe-se que a decisão já escolhida previamente foi só referendada pelo restante do governo, ainda assim sem
consenso. Os ministros militares – Exército, Marinha, etc. – se opuseram à proposta
do presidente Geisel (PINHEIRO)
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Teoria dos Três Mundos3, em 1974, sela um retorno das iniciativas
internacionais em geral, com foco na relação Sul-Sul. Este tipo de
relacionamento havia ficado em segundo plano durante a década de
1960, dado o foco exigido pelo conflito político interno. O Itamaraty
acompanhava o processo com atenção, através dos chamados Relatórios de Hong-Kong (PINHEIRO), e a comunicação direta com o
presidente da qual usufruía o MRE possibilitou que a ação apropriada fosse tomada.
Com efeito, após a chegada da delegação comercial chinesa
em sete de agosto de 1974, o governo brasileiro fez pública a decisão,
em 15 de agosto, do reconhecimento da China de Beijing, cristalizan-
do as mudanças empreendidas com a presidência do General Geisel
em relação aos presidentes militares anteriores. Tal atitude não poderia ter acontecido tão prontamente não fosse a nova dinâmica política
no governo Geisel.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro aspecto a se ressaltar é a importância do momen-
to interno vivido nos dois países durante as iniciativas de fomento
das relações bilaterais. As circunstâncias internacionais favoráveis à
aproximação comercial e diplomática entre novos parceiros já exis3 A Teoria dos Três Mundos chinesa difere da contrapartida ocidental, em que o
1º Mundo é o capitalista desenvolvido, o 2º é o socialista e o 3º é composto pelas
economias subdesenvolvidas. A Teoria chinesa se foca nas diferenças ideológicas e
de poder: o 1º Mundo é composto pelas super-potências, o 2º é formado pelos seus
aliados e o 3º seria formado pelos não-alinhados, onde se encontraria a RPC
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tiam desde o início da década, com a crise do petróleo consolidando
o novo quadro. Entretanto, a cooperação que se deu exigia esforço
diplomático e superposição ao poder de veto, no caso do Brasil, dos
setores descontentes com a nova parceria. A política externa, embora
combatesse esse poder, deveria ser gradual e, portanto, “responsável”.
Nota-se que:
“A implementação do projeto de política externa
do governo Geisel passou pela recomposição da
correlação de forças dentro da estrutura de poder.
Este projeto aparece como causa e efeito desta recomposição, na medida em que se inclui no pacote
de políticas que, ao serem desenvolvidas concretamente, agravam o nível de tensões e divergências no
próprio meio militar.” (HIRST apud PINHEIRO)
As mudanças domésticas tiveram papel mais crítico no lado
brasileiro do que no chinês, uma vez que foi o Brasil que havia in-
terrompido o crescente das relações bilaterais com o início do regime
militar em 1964. A contrapartida chinesa sempre se apresentou com-
prometida com a aproximação, que era barrada pelo lado brasileiro.
Entretanto, a análise das mudanças chinesas não deve ser descartada,
uma vez que, como aponta PINHEIRO, foi a percepção, por parte do
Itamaraty, das mudanças no panorama político da China continen-
tal que acionou a série de iniciativas visando a reaproximação com
Beijing. Como mais um exemplo da importância do cenário doméstico, observa-se que os primeiros anos da parceria foram de pouca
transação comercial – foram os anos, na RPC, em que o poder ain-
da não havia sido consolidado pela facção em ascensão, liderada por
Deng Xiaoping, que só consegue reverter de fato a situação em 1976.
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Destarte, em 1976, ano da queda do Bando dos Quatro na China, a
corrente de comércio Brasil-China foi a mais baixa da história das
relações diplomáticas formais entre os países. Já em 1977, ultrapassou
a marca de US$150 milhões. (BECARD)
Finalmente, percebe-se também a relação dos momentos po-
líticos internos entre os dois países. O grau de semelhança no jogo
entre moderados e exaltados dentro do novo regime, em ambos os
países, deve-se em muito às semelhanças dos países e do seu papel no
sistema internacional bipolar. Ambos de tamanho continental, com
economias em vias de se desenvolver, Brasil e China sofriam as consequências do jogo entre as superpotências (respectivamente, EUA e
URSS) de forma semelhante.
REFERÊNCIAS
BECARD, Danielly Silva Ramos .O Brasil e a República Popular da
China: política externa comparada e relações bilaterais (1974-2004).
Brasília, FUNAG, 2008.
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Nações Unidas: da criação do Estado de Israel ao pós-sionismo”. In:
BREDA DOS SANTOS, Norma. Brasil e Israel: diplomacia e sociedades.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 56.
D’ARAUJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (org.). Ernesto Geisel. Rio
de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1997, p. 335-360.
HIRST, Mônica. “Democratic transition and foreign policy; the
experience of Brazil” in Latin American nations in world politics. Boulder,
Colorado: Westview Press, 1984.
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MALAN, Pedro Sampaio. Relações Econômicas Internacionais do
Brasil (1945-1964). In: FAUSTO, Bóris (org.). História Geral da
Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1984, p. 51-106.
MENEZZETTI, Fernando. De Mao a Deng: a transformação da China.
Brasília: Edunb, 2000.
PINHEIRO, Letícia. O Restabelecimento de relações diplomáticas
com a República popular da China. Estudos históricos. Vol 6, n 12, p.
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SOUTO MAIOR, Luiz Augusto. O Pragmatismo Responsável. In:
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (Org.). Sessenta Anos de Política
Externa 1930-1990. São Paulo: ANNABLUME/NUPRI/USP, 2000, v. 1.
VIZENTINI, Paulo. G. F. A política externa do Regime militar brasileiro.
Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998.
VIZENTINI, Paulo Fagundes; RODRIGUES, Gabriela. O Dragão
Chinês e os Tigres Asiáticos. Porto Alegre: Novo Século, 2000.
FORMATAÇÃO
DIREÇÃO DE ARTE: André
Luis
DESIGNER RESPONSÁVEL: Mariana Zago
CAPA: André
Luis
Zago
MIOLO: Mariana
MEDIDAS: 160 x 230mm
TIPOLOGIA: Adobe Caslon Pro
ISSN 2178-1842

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