A MÍDIA, AS MULHERES, O CORPO E OS MODELOS Ivia Alves

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A MÍDIA, AS MULHERES, O CORPO E OS MODELOS Ivia Alves
Pontos de Interrogação n. 2
Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural
Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas
pontos de interrogação
A MÍDIA, AS MULHERES, O CORPO E OS MODELOS
Ivia Alves
UFBA/PPGLL/PPGNEIM/
NEIM/CNPq
RESUMO: O artigo trata da emergência da mídia no cotidiano das pessoas e como através de
programas voltados para a moda e a estética, bem como através de novelas e séries reitera um
discurso que opera com o corpo das mulheres, dominando um modelo de normatizações no qual
o corpo magro significa saúde que significa beleza que vai levar à felicidade.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Discurso. Seriados. Representações de mulheres. Idelogia.
ABSTRACT:
The
media,
women,
the
body
and
the
models
(I)
The article discusses the emergence of media in daily life and how through programs focused on
fashion and aesthetics, as well as through novels and series repeats a speech that works with
women's bodies, dominating a model of norms in which the body lean which means beauty
means
health
that
will
lead
to
happiness.
KEYWORDS:
Gender.
Speech.
Serial.
Representations
of
female.
Idelogy.
Esta minha fala percorre vários espaços e vários assuntos em torno das mulheres.
Primeiro, o que entendo de Políticas Públicas, depois transito pelas recentes notícias
veiculadas na mídia que são uma violência sobre a mulher para, finalmente, analisar
uma série norteamericana, Sex and the city, que apresenta uma das maiores audiências
na tv paga.
Entende-se por Políticas Públicas, “o conjunto de ações coletivas voltadas para a
garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa dar conta
de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação daquilo que é do
âmbito privado em ações coletivas no espaço público” (Guareschi et alii 2004, pág.
180).
Na verdade, o incremento de políticas públicas é demanda da sociedade
organizada, e, nesses últimos dez anos, vimos a criação de secretarias e ministérios em
favor das mulheres, dos negros, dos direitos da criança e do adolescente, entre outras.
Algumas incursões dessas instituições/entidades estão sendo incrementadas,
desdobradas. Muitas delas contra o preconceito de raça/etnia ou a desigualdade e
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violência sobre a mulher estão sendo desenvolvidas na Educação e principalmente,
junto ao corpo docente, buscando a mudança de olhar da escola, que é o primeiro
espaço de socialização do indivíduo em formação.
Tenho conhecimento de algumas dessas ações, por ser pesquisadora do NEIM e
participar de alguns desses trabalhos. Mas não me sinto a pessoa competente para tratar
do incremento das políticas públicas já implantadas ou das demais demandas.
Minha atuação é acadêmica e, embora minha grande preocupação seja tornar o
indivíduo um cidadão ou cidadã, um ator social e político, reflexivo e crítico, procuro
me envolver com a pesquisa de temas que estão presos à realidade e aos contextos
atuais. Minha “militância”, portanto, é fazer pessoas jovens e adultas refletirem sobre a
realidade em que vivem, sobre seus contextos e, de alguma forma, atualmente, trazer
um olhar de alerta para o que lemos, ouvimos e recebemos pelos meios de
comunicação; perceber o mundo de forma analítica, sem julgamentos, mas com uma
postura mais reflexiva, mais crítica.
Assim, vou falar do que mais me preocupa atualmente, um tema que se insere no
meu projeto de pesquisa sobre mulheres, aprovado pelo CNPq e que venho trabalhando
há mais de cinco anos.
Parto de uma assertiva, de uma afirmação: Estou completamente segura que
muitos paradigmas e alinhamentos sociais que estão, atualmente, normatizando a
sociedade passam para nós quando “baixamos a guarda”, e isso quer dizer, através do
lazer. Seja uma revista, seja um programa de televisão ou até músicas. A “baixa da
guarda” não nos deixa refletir ou pensar criticamente sobre a situação e é por aí que vão
sendo inculcadas algumas normatizações que, sem pensar, passamos a achar certas e
outras erradas, pois esses discursos já são dados prontos.
Basta ouvir ou ler os noticiários, documentários etc que passam na mídia, para se
tomar conhecimento de que o mundo mudou e que agora existe um paradigma, como se
existisse um único modelo a ser seguido. E mais, há um retorno às normas que existiam
antes de 1960, principalmente, se a gente pensar nas mulheres. Explicitarei melhor
minha afirmação.
Recentemente, ouvi notícias de que uma Universidade dos EUA impediu um
aluno de receber o diploma porque ele era... obeso. Muitas firmas e planos de saúde dos
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EUA não aceitam mais incluir pessoas jovens obesas ou diabéticas, porque o custo
dessas pessoas sairia muito alto para o plano.
No Brasil, temos uma forma sutil de discriminar mulheres chamando-as de
“piriguetes”. E esse modelo tem dado frutos, com a grande incidência de assassinatos de
namoradas, por ciúme, ou, como aconteceu recentemente, com a discriminação da
estudante paulista que, numa sexta feira, como iria continuar sua noite após as aulas, e
foi para a faculdade vestida para a balada. Seus colegas se viram ameaçados, e passaram
a xingá-la de prostituta, encurralando-a em uma sala da qual ela saiu vestindo um
jaleco! Ora, dessa forma, a turba venceu. No entanto, sendo uma jovem de classe média
em uma faculdade paga, a notícia circulou, e bem, pelos noticiários do país.
No entanto, semanas antes, em Salvador, uma professora primária teve que se
demitir do seu trabalho por estar se divertindo (provavelmente numa balada) e alguém
resolveu filmá-la e colocar sua dança da garrafa no You tube. Nesse caso, houve uma
reação regional, mas, me questiono. Como demitir uma professora do curso infantil a
bem da moral do trabalho, se nem as crianças, nem os pais devem navegar por páginas
“indecorosas” do You tube? Como a escola tomou conhecimento de um fato que não
incluía a competência profissional da professora? Como identificar a professora, se
apenas a pessoa aparece de costas? Estariam aí se reproduzindo dois tipos de
discriminações? Ser a professora mulher e negra?
E por falar em discriminações, foi noticiado que um grupo de jovens estudantes
de medicina de escola particular, no interior de S. Paulo, atirou, como arma, um tapete
de carro para abater um trabalhador negro que andava para o trabalho em sua bicicleta
paralelamente a eles!
O atual paradigma de felicidade e alegria não condiz com o contexto de
violência e agressão da sociedade civil. Mas, como analisar questões relacionadas com a
família e o papel de mãe, para as jovens mulheres? Como analisar a situação da mãe
jovem que no ano passado deixou a criança no carro enquanto ela e o marido pararam
no bar? Não se discute os estímulos que a mídia apresenta para os jovens. Como
analisar a mãe, trabalhadora, que deixou a filha no carro, pois ia levá-la ao médico mais
tarde? Será que ela podia levar a criança para o trabalho, será que a firma na qual ela
trabalha tem creche? A admiração do fato pára simplesmente no papel de mãe. Como
pode existir uma mãe que deixa sua filha no carro, é apenas a notícia bombástica, mas
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não há a reflexão sobre o contexto, as limitações de uma sociedade que exige ao mesmo
tempo uma profissional eficiente e uma mãe amorosa e cuidadora, dentro de dois
espaços que não podem se interpenetrar. Como operar com essas várias situações sem
admitir uma reflexão sobre as mensagens, regras e normatizações que legitimam a
sociedade na qual a gente hoje vive?
Realmente, estamos numa época de policiamento e julgamento das pessoas sobre
as outras. As mensagens empurram as pessoas para concretizar sua felicidade, mas ao
mesmo tempo as impedem, porque as obrigações não aparecem explicitadas. E, se a
gente observar a guerra de mensagens que bombardeiam as mulheres, é realmente
chocante o que pode acontecer ou já está acontecendo.
O direito ao corpo, ao desejo, que as mulheres alcançaram no século anterior,
com tanta luta, vai sendo eliminado, sorrateiramente, nesse começo do século XXI!
Temos roupas para ir à balada, temos roupas para ir ao cinema, temos roupas
para as festas de quinze anos, temos roupas para a academia e temos roupa diferenciada,
simplesmente, para andar nas calçadas, temos vestuário diferenciado para todas as
situações, assim o consumo exige e nós obedecemos. E tudo isso nós aprendemos com e
na mídia. A indústria da beleza (a indústria, que está em primeiro lugar, que movimenta
bilhões em cosméticos, cremes, aparelhos e operações estéticas) nos diz que,
combinando saúde e beleza, nossa auto-estima se transforma em alta estima e seremos
felizes para sempre.
Ouvi, outro dia, em um noticiário, que cada mulher brasileira gasta por ano 107
dólares só em cosmésticos. Como nem todas entram na engrenagem nem na modelagem
que a mídia dissemina, creio que aquelas que se transformam em imagem e semelhança
aos modelos das celebridades gastam muito mais.
Helena Miranda, em sua pesquisa para o Mestrado, ao entrevistar moças de 18 a
25 anos, solteiras, que ganhavam entre mil a dois mil reais, trouxe à tona o gasto
excessivo que elas tinham com o cabelo, bem como com procedimentos contra as rugas
precoces e o envelhecimento. Nenhuma ainda tinha passado por uma cirurgia, visto que
elas provinham de classe média, mas o excesso de cremes para o cabelo chamou tanto a
ela quanto a mim a atenção. Sendo as baianas, em geral, mulheres de cabelos ondulados
ou crespos e o paradigma dos modelos exigir cabelos lisos, as pobres jovens, saídas das
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faculdades e em seus primeiros empregos, gastavam muito mais que a metade de seu
salário em torno da beleza do corpo e com o vestuário.
As regras sobre o corpo da mulher e o que é “feminino” voltaram com toda força
no backlash. O policiamento sobre o corpo magro, esquálido (hoje em dia, o bom é
estar 20 kilos de peso abaixo da sua altura) está tão grande que, para você se “afirmar”
como mulher, em qualquer lugar, você não só tem que ter esse corpo esquálido, mas,
também, usar vestidos e saias. De preferência, um vestido que modele seu corpo,
deixando seus seios à mostra. Assim, a mulher tem que reiterar que é mulher através das
“marcas” que ditam para ela como sendo marcas do “feminino” ou da “feminilidade”. E
quando é que as mulheres vão tomar consciência de que os “outros” estão se apossando
novamente de seu corpo e de suas atitudes? Poderia até acrescentar que “a dominação
masculina sabe, portanto, como se renovar e avançar, disfarçadamente, sob a bandeira
da liberdade sexual” (Sohn, 2008, 154).
Tais considerações provêm da observação do cotidiano, das estreitas relações que se
intercambiam entre a ficção e à sociedade, entre a mídia com suas representações de
mulheres e a modelagem das mulheres na vida social. Em outras palavras, analiso as
representações de mulheres em séries televisivas norteamericanas que passam nas tvs
abertas ou nos canais fechados.
Trabalhando com séries de televisão, pude observar como a mídia opera com tais
modelos paradigmáticos e como as pessoas não detêm o poder de análise, tomando um
modelo como a única forma de identidade. Eu questiono tais modelos assumidos como
identificadores de identidades e a imposição deles como forma de pertencimento.
Para mim, como pesquisadora das relações de gênero, ou melhor, em outras
palavras mais claras, como feminista, não posso deixar de fazer uma reflexão sobre a
mídia de massa e acato as palavras de Ghilardi-Lucena quando escreve:
Estudar as representações da figura feminina na mídia, por si só, não
resolve os problemas da busca da igualdade entre homens e mulheres,
mas os traz à tona e mostra o quanto ainda há por ser feito e
conquistado. Pelo fato de a mídia ser formadora de opinião [esses
poderão demonstrar] o processo lento e secular de luta contra a
discriminação da mulher nas sociedades (2003, p.5).
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Para dar um exemplo, vou tratar, rapidamente, de uma inversão entre o produto e
a recepção do público. Vou apenas focalizar a distorção que está havendo entre a
produção da série Sex and the city e a sua recepção (a audiência). Sendo uma série que
faz muito sucesso, nos últimos anos, principalmente, a partir do momento em que
passou a ser divulgada por canais de entretenimento ou destinados às mulheres, a série
se tornou, inadvertidamente, o paradigma (norma) para as mulheres quanto ao vestuário,
às atitudes e aos comportamentos.
Voltemos ao contexto no qual a série foi produzida: a série foi produzida pela
HBO, entre 1999 e 2004, correspondendo à parte de um livro de crônicas escritas pela
jornalista especializada em antropologia social, Candance Bushnell, para o jornal de
New York Observer, no ano de 1994. Em 1966, a autora transformou essas crônicas em
livro, com o mesmo título, e obteve razoável sucesso.
Podemos asseverar que o interesse do livro pelo HBO para transformá-lo em
série era pela ácida crítica a determinadas situações, que começavam a emergir no
espaço público da cidade de Nova York e que estavam comentadas no livro Sex and the
city. Como a HBO é um canal pago, que independente de patrocinadores e propagandas,
pois é financiada pelos seus assinantes, está livre para colocar temas adultos e
complexos para o seu público mais exigente, sem precisar contemporizar com a
indústria da propaganda e outros fatores.
O interesse da série Sex and the city, que é uma comédia, está, pelo menos na
primeira temporada, no(s) discurso(s) diferenciado(s) dessas mulheres solteiras,
brancas, independentes, na faixa entre 30 e 40 anos, e em suas dificultosas relações
afetivas e sexuais e, ainda mais, em uma crítica às instituições que não se adequaram.
Suas histórias, suas falas e atitudes são narradas, na série, pela personagem principal,
que é a jornalista especializada em antropologia social, Carrie Bradshaw.
Na realidade, as crônicas contidas no livro eram muito críticas sobre atitudes e
comportamentos de homens e mulheres solteiros (as) da cosmopolita cidade e em como
as relações afetivas não se efetivavam, não progrediam ou não levavam a relações
estáveis. Sempre se tornavam encontros fortuitos, descartáveis, instigados pela atração e
pelo sexo. Ela falava e fazia várias observações humoradas e cáusticas sobre diversas
situações que tinham acontecido com vários homens e mulheres que conhecia ou tinha
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observado em amigas e amigos. Já começava a diferença para a série, que focalizava
tais situações através das experiências de três amigas, além dela.
No livro, logo na Apresentação, entramos em contato direto com a sarcástica
Bushnell:
Passamos horas debatendo nossos relacionamentos malucos, e
chegamos à conclusão de que, se não ríssemos deles, provavelmente
íamos acabar pirando. Acho que foi por isso que Sex and the city saiu
assim, essa análise tão sentimentalmente isenta dos relacionamentos e
hábitos de acasalamento do ser humano.
Embora algumas pessoas achem perturbadores sua falta de
sentimentalismo e humor cruel, é provável que seja apenas porque o
livro contém algum tipo de verdade universal.
Mas, acima de qualquer outra coisa, Sex and the City busca responder
a uma pergunta crucial: por que ainda estamos solteiras?
Ora, depois da experiência que adquiri nesse campo, posso afirmar
que estamos solteiras porque queremos.
Portanto, o livro iria mostrar as dificuldades e impedimentos que existiam no
dia-a-dia, no cotidiano, entre homens e mulheres – essas, herdeiras do feminismo e suas
regras e leis permaneciam as mesmas de quando foi instituído pela burguesia capitalista.
É interessante dizer que, ao analisar as personagens mulheres das séries dos anos 90,
nove entre dez são solteiras: não há espaço para a mulher independente e casada.
Portanto, o livro, provavelmente, iria querer abordar esse descompasso entre as
conquistas da mulher (adulta, independente financeiramente e dona de seu corpo e de
seus desejos) em face da sociedade que não se adaptou a tais mudanças e como a
liberação da mulher criou o espaço para uma mensagem ambígua, generalizada como
uma certa “libertinagem”, devido à sua disponibilidade sexual, e dessa disponibilidade,
a sociedade conservadora traduziu como essa liberação sexual seria o fundamento para
encontros (afetivos) fortuitos.
Embora a reflexão acima não esteja explícita na série, de alguma forma, ela
aparece quando a narradora coloca a seguinte questão: “É como o enigma da esfinge.
Por que existem tantas solteiras incríveis e nenhum solteiro incrível?”. No entanto, a
autora é mais assertiva no livro, quando ela conclui que: “estamos solteiras porque
queremos”.
A recepção crítica de uma leitora portuguesa sobre o livro mostra a diferença
entre o tom do livro e as modificações ambíguas para a série televisiva:
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O livro conta a história de como vive uma mulher solteira em
Manhattan, seus relacionamentos e sua rotina de trabalho, tudo isso
levando em consideração sua faixa etária, sua profissão, beleza e
status.
Ao contrário do seriado, o livro não me parece nada romântico, as
grandes amigas da TV não são muito citadas e até a Carrie não é a
escritora.
As histórias ocorridas durante o livro mostram claramente que o
romance e principalmente o Amor estão em baixa e que as mulheres
de Manhattan são independentes, descoladas e principalmente
desapegadas, e assim como os homens, buscam freneticamente o sexo
casual ao invés de um relacionamento duradouro .
A posição esclarecida da leitora-espectadora portuguesa não é a corrente
dominante entre as telespectadoras da série, pelo menos, no Brasil, onde a maioria
abraçou a série como uma representação de si e achou que essa era a norma, o modelo a
ser seguido, inclusive na busca do amor romântico.
Se consultamos o Orkut, observamos que, entre as 2000 comunidades da série,
apenas duas dizem que não gostam da personagem principal e quatro comunidades
dedicam-se, apenas, a comentar o vestuário, bolsas e os sapatos das personagens. Por
outro lado, apenas quatro comunidades falam sobre Samantha, a mulher mais madura e
independente sexualmente da série. Talvez essa quase exclusão da audiência esteja
relacionada às resenhas de divulgação que, para descrever seu comportamento livre em
relação ao sexo, ressuscitam a palavra desqualificadora e já esvaziada de sentido que é
ninfomaníaca. Novamente, voltamos às bipolaridades da construção moderna na
representação das mulheres e quase “recaímos” na forma de designar comportamentos
sexuais diversificados como histéricos, ninfômanos.
Vejamos como aparece a apresentação e a entrada dos créditos da série Sex and
the city.
As cenas em sucessão contam uma pequena história: uma mulher vai andando
por uma avenida, meio alheia ao que se passa ao redor, entre grandes edifícios e
enormes filas de táxis, quando um carro passa dentro de uma poça d’água, borrifando
lama na sua roupa, ao mesmo tempo em que ela vê a propaganda de sua coluna do
jornal, Sex and the city, na lateral de um ônibus.
Mas essa pequena história é contada pelas imagens, dando margem a leituras
ambíguas.
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-céus que definem o local como
sendo Nova York. 2a cena: surge um rosto de mulher, loira, ainda jovem, que olha a
cidade de baixo para cima (o rosto apresenta variada gama de emoções), enquanto ela
anda pelas calçadas; observa-se que a câmara vai abrindo e percebe-se que ela está
vestindo uma camiseta rosa, apresentando braços tonificados pelo hábito das academias;
3a cena: baixando o foco para a rua, vê-se uma fileira inumerável de táxis na avenida
enquanto ela continua a caminhar; em seguida, aparece uma poça d’água, uma roda de
carro e os respingos da água suja que atingem sua saia – de babados, tecido
visivelmente leve, talvez filó, e saltos altos; os respingos a trazem para a realidade; 4a
cena: aparecendo a personagem de corpo inteiro, observamos certas marcas disformes,
corpo e vestuário que marcam novamente a ambiguidade: camiseta atual de cor rosa,
como se viesse de um turno por uma academia de ginástica, justa, complementada por
uma saia de duas camadas de tecido fino semelhante ao vestuário das bailarinas
clássicas, formando um conjunto destoante: a parte de cima correspondendo à mulher
contemporânea e a saia de bailarina clássica inauguram o diálogo entre duas formas de
comportamento de mulher.
Sua expressão corporal vai se modificando do devaneio ao susto quando sente os
respingos de água em sua roupa, enquanto passa um ônibus, cuja lateral estampa uma
propaganda da mesma mulher, agora vestindo uma roupa colada ao corpo, entre cetim e
lingerie, olhando para o público, com uma perna levantada, como se estivesse em uma
pose sensual e íntima e, em letras garrafais, o anúncio da coluna de jornal Sex and the
city com o seguinte texto “Carrie Bradshaw conhece tudo sobre sexo”
Todas essas informações “prensadas” para passar na tv em 42 segundos!
A própria apresentação da série, pelas marcas disformes que configuram a
mulher em cena, como: camiseta regata rosa agregada à saia de babados de filó ou
tecido semelhante ou mesmo a foto no ônibus em uma roupa delineando o seu corpo, de
textura de cetim, deitada em pose sensual, que se assemelha a uma camisola
antiga/nova, marcam uma composição híbrida da personagem e da série. Ao mesmo
tempo em que indica o tema sensualidade, sexualidade, a mulher em cena tem marcas
de ironia e de releituras da própria trajetória das mulheres na sociedade.
Infelizmente, os(as) telespectadores(as) não perceberam tais marcas na
apresentação.E a crítica feroz aos comportamentos atuais foi lida e interpretada como
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sendo o único imaginário das mulheres na entrado do século XXI. A série foi tomada
como uma leve comédia sobre o cotidiano de mulheres independentes e profissionais. E
a audiência, levada pelas informações da publicidade, tomou a série como um modelo
de comportamento e das possibilidades de consumo de vestimentas, sapatos e bolsas de
marca como normatização para as mulheres de mais de 25 anos.
Houve um intervalo de significação entre o livro e a série. A distorção se dá,
basicamente, pela ambiguidade dos discursos incluídos na série televisiva.
Como se distorceu a intenção da mensagem e por quê?
Mas essa contradição vai ser assunto para outro momento.
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RECEBIDO EM: 03 de novembro de 2011
APROVADO EM: 05 de dezembro de 2011
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