A MÍDIA, AS MULHERES, O CORPO E OS MODELOS Ivia Alves
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A MÍDIA, AS MULHERES, O CORPO E OS MODELOS Ivia Alves
Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação A MÍDIA, AS MULHERES, O CORPO E OS MODELOS Ivia Alves UFBA/PPGLL/PPGNEIM/ NEIM/CNPq RESUMO: O artigo trata da emergência da mídia no cotidiano das pessoas e como através de programas voltados para a moda e a estética, bem como através de novelas e séries reitera um discurso que opera com o corpo das mulheres, dominando um modelo de normatizações no qual o corpo magro significa saúde que significa beleza que vai levar à felicidade. PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Discurso. Seriados. Representações de mulheres. Idelogia. ABSTRACT: The media, women, the body and the models (I) The article discusses the emergence of media in daily life and how through programs focused on fashion and aesthetics, as well as through novels and series repeats a speech that works with women's bodies, dominating a model of norms in which the body lean which means beauty means health that will lead to happiness. KEYWORDS: Gender. Speech. Serial. Representations of female. Idelogy. Esta minha fala percorre vários espaços e vários assuntos em torno das mulheres. Primeiro, o que entendo de Políticas Públicas, depois transito pelas recentes notícias veiculadas na mídia que são uma violência sobre a mulher para, finalmente, analisar uma série norteamericana, Sex and the city, que apresenta uma das maiores audiências na tv paga. Entende-se por Políticas Públicas, “o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa dar conta de determinada demanda, em diversas áreas. Expressa a transformação daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço público” (Guareschi et alii 2004, pág. 180). Na verdade, o incremento de políticas públicas é demanda da sociedade organizada, e, nesses últimos dez anos, vimos a criação de secretarias e ministérios em favor das mulheres, dos negros, dos direitos da criança e do adolescente, entre outras. Algumas incursões dessas instituições/entidades estão sendo incrementadas, desdobradas. Muitas delas contra o preconceito de raça/etnia ou a desigualdade e A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 31 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação violência sobre a mulher estão sendo desenvolvidas na Educação e principalmente, junto ao corpo docente, buscando a mudança de olhar da escola, que é o primeiro espaço de socialização do indivíduo em formação. Tenho conhecimento de algumas dessas ações, por ser pesquisadora do NEIM e participar de alguns desses trabalhos. Mas não me sinto a pessoa competente para tratar do incremento das políticas públicas já implantadas ou das demais demandas. Minha atuação é acadêmica e, embora minha grande preocupação seja tornar o indivíduo um cidadão ou cidadã, um ator social e político, reflexivo e crítico, procuro me envolver com a pesquisa de temas que estão presos à realidade e aos contextos atuais. Minha “militância”, portanto, é fazer pessoas jovens e adultas refletirem sobre a realidade em que vivem, sobre seus contextos e, de alguma forma, atualmente, trazer um olhar de alerta para o que lemos, ouvimos e recebemos pelos meios de comunicação; perceber o mundo de forma analítica, sem julgamentos, mas com uma postura mais reflexiva, mais crítica. Assim, vou falar do que mais me preocupa atualmente, um tema que se insere no meu projeto de pesquisa sobre mulheres, aprovado pelo CNPq e que venho trabalhando há mais de cinco anos. Parto de uma assertiva, de uma afirmação: Estou completamente segura que muitos paradigmas e alinhamentos sociais que estão, atualmente, normatizando a sociedade passam para nós quando “baixamos a guarda”, e isso quer dizer, através do lazer. Seja uma revista, seja um programa de televisão ou até músicas. A “baixa da guarda” não nos deixa refletir ou pensar criticamente sobre a situação e é por aí que vão sendo inculcadas algumas normatizações que, sem pensar, passamos a achar certas e outras erradas, pois esses discursos já são dados prontos. Basta ouvir ou ler os noticiários, documentários etc que passam na mídia, para se tomar conhecimento de que o mundo mudou e que agora existe um paradigma, como se existisse um único modelo a ser seguido. E mais, há um retorno às normas que existiam antes de 1960, principalmente, se a gente pensar nas mulheres. Explicitarei melhor minha afirmação. Recentemente, ouvi notícias de que uma Universidade dos EUA impediu um aluno de receber o diploma porque ele era... obeso. Muitas firmas e planos de saúde dos A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 32 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação EUA não aceitam mais incluir pessoas jovens obesas ou diabéticas, porque o custo dessas pessoas sairia muito alto para o plano. No Brasil, temos uma forma sutil de discriminar mulheres chamando-as de “piriguetes”. E esse modelo tem dado frutos, com a grande incidência de assassinatos de namoradas, por ciúme, ou, como aconteceu recentemente, com a discriminação da estudante paulista que, numa sexta feira, como iria continuar sua noite após as aulas, e foi para a faculdade vestida para a balada. Seus colegas se viram ameaçados, e passaram a xingá-la de prostituta, encurralando-a em uma sala da qual ela saiu vestindo um jaleco! Ora, dessa forma, a turba venceu. No entanto, sendo uma jovem de classe média em uma faculdade paga, a notícia circulou, e bem, pelos noticiários do país. No entanto, semanas antes, em Salvador, uma professora primária teve que se demitir do seu trabalho por estar se divertindo (provavelmente numa balada) e alguém resolveu filmá-la e colocar sua dança da garrafa no You tube. Nesse caso, houve uma reação regional, mas, me questiono. Como demitir uma professora do curso infantil a bem da moral do trabalho, se nem as crianças, nem os pais devem navegar por páginas “indecorosas” do You tube? Como a escola tomou conhecimento de um fato que não incluía a competência profissional da professora? Como identificar a professora, se apenas a pessoa aparece de costas? Estariam aí se reproduzindo dois tipos de discriminações? Ser a professora mulher e negra? E por falar em discriminações, foi noticiado que um grupo de jovens estudantes de medicina de escola particular, no interior de S. Paulo, atirou, como arma, um tapete de carro para abater um trabalhador negro que andava para o trabalho em sua bicicleta paralelamente a eles! O atual paradigma de felicidade e alegria não condiz com o contexto de violência e agressão da sociedade civil. Mas, como analisar questões relacionadas com a família e o papel de mãe, para as jovens mulheres? Como analisar a situação da mãe jovem que no ano passado deixou a criança no carro enquanto ela e o marido pararam no bar? Não se discute os estímulos que a mídia apresenta para os jovens. Como analisar a mãe, trabalhadora, que deixou a filha no carro, pois ia levá-la ao médico mais tarde? Será que ela podia levar a criança para o trabalho, será que a firma na qual ela trabalha tem creche? A admiração do fato pára simplesmente no papel de mãe. Como pode existir uma mãe que deixa sua filha no carro, é apenas a notícia bombástica, mas A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 33 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação não há a reflexão sobre o contexto, as limitações de uma sociedade que exige ao mesmo tempo uma profissional eficiente e uma mãe amorosa e cuidadora, dentro de dois espaços que não podem se interpenetrar. Como operar com essas várias situações sem admitir uma reflexão sobre as mensagens, regras e normatizações que legitimam a sociedade na qual a gente hoje vive? Realmente, estamos numa época de policiamento e julgamento das pessoas sobre as outras. As mensagens empurram as pessoas para concretizar sua felicidade, mas ao mesmo tempo as impedem, porque as obrigações não aparecem explicitadas. E, se a gente observar a guerra de mensagens que bombardeiam as mulheres, é realmente chocante o que pode acontecer ou já está acontecendo. O direito ao corpo, ao desejo, que as mulheres alcançaram no século anterior, com tanta luta, vai sendo eliminado, sorrateiramente, nesse começo do século XXI! Temos roupas para ir à balada, temos roupas para ir ao cinema, temos roupas para as festas de quinze anos, temos roupas para a academia e temos roupa diferenciada, simplesmente, para andar nas calçadas, temos vestuário diferenciado para todas as situações, assim o consumo exige e nós obedecemos. E tudo isso nós aprendemos com e na mídia. A indústria da beleza (a indústria, que está em primeiro lugar, que movimenta bilhões em cosméticos, cremes, aparelhos e operações estéticas) nos diz que, combinando saúde e beleza, nossa auto-estima se transforma em alta estima e seremos felizes para sempre. Ouvi, outro dia, em um noticiário, que cada mulher brasileira gasta por ano 107 dólares só em cosmésticos. Como nem todas entram na engrenagem nem na modelagem que a mídia dissemina, creio que aquelas que se transformam em imagem e semelhança aos modelos das celebridades gastam muito mais. Helena Miranda, em sua pesquisa para o Mestrado, ao entrevistar moças de 18 a 25 anos, solteiras, que ganhavam entre mil a dois mil reais, trouxe à tona o gasto excessivo que elas tinham com o cabelo, bem como com procedimentos contra as rugas precoces e o envelhecimento. Nenhuma ainda tinha passado por uma cirurgia, visto que elas provinham de classe média, mas o excesso de cremes para o cabelo chamou tanto a ela quanto a mim a atenção. Sendo as baianas, em geral, mulheres de cabelos ondulados ou crespos e o paradigma dos modelos exigir cabelos lisos, as pobres jovens, saídas das A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 34 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação faculdades e em seus primeiros empregos, gastavam muito mais que a metade de seu salário em torno da beleza do corpo e com o vestuário. As regras sobre o corpo da mulher e o que é “feminino” voltaram com toda força no backlash. O policiamento sobre o corpo magro, esquálido (hoje em dia, o bom é estar 20 kilos de peso abaixo da sua altura) está tão grande que, para você se “afirmar” como mulher, em qualquer lugar, você não só tem que ter esse corpo esquálido, mas, também, usar vestidos e saias. De preferência, um vestido que modele seu corpo, deixando seus seios à mostra. Assim, a mulher tem que reiterar que é mulher através das “marcas” que ditam para ela como sendo marcas do “feminino” ou da “feminilidade”. E quando é que as mulheres vão tomar consciência de que os “outros” estão se apossando novamente de seu corpo e de suas atitudes? Poderia até acrescentar que “a dominação masculina sabe, portanto, como se renovar e avançar, disfarçadamente, sob a bandeira da liberdade sexual” (Sohn, 2008, 154). Tais considerações provêm da observação do cotidiano, das estreitas relações que se intercambiam entre a ficção e à sociedade, entre a mídia com suas representações de mulheres e a modelagem das mulheres na vida social. Em outras palavras, analiso as representações de mulheres em séries televisivas norteamericanas que passam nas tvs abertas ou nos canais fechados. Trabalhando com séries de televisão, pude observar como a mídia opera com tais modelos paradigmáticos e como as pessoas não detêm o poder de análise, tomando um modelo como a única forma de identidade. Eu questiono tais modelos assumidos como identificadores de identidades e a imposição deles como forma de pertencimento. Para mim, como pesquisadora das relações de gênero, ou melhor, em outras palavras mais claras, como feminista, não posso deixar de fazer uma reflexão sobre a mídia de massa e acato as palavras de Ghilardi-Lucena quando escreve: Estudar as representações da figura feminina na mídia, por si só, não resolve os problemas da busca da igualdade entre homens e mulheres, mas os traz à tona e mostra o quanto ainda há por ser feito e conquistado. Pelo fato de a mídia ser formadora de opinião [esses poderão demonstrar] o processo lento e secular de luta contra a discriminação da mulher nas sociedades (2003, p.5). A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 35 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação Para dar um exemplo, vou tratar, rapidamente, de uma inversão entre o produto e a recepção do público. Vou apenas focalizar a distorção que está havendo entre a produção da série Sex and the city e a sua recepção (a audiência). Sendo uma série que faz muito sucesso, nos últimos anos, principalmente, a partir do momento em que passou a ser divulgada por canais de entretenimento ou destinados às mulheres, a série se tornou, inadvertidamente, o paradigma (norma) para as mulheres quanto ao vestuário, às atitudes e aos comportamentos. Voltemos ao contexto no qual a série foi produzida: a série foi produzida pela HBO, entre 1999 e 2004, correspondendo à parte de um livro de crônicas escritas pela jornalista especializada em antropologia social, Candance Bushnell, para o jornal de New York Observer, no ano de 1994. Em 1966, a autora transformou essas crônicas em livro, com o mesmo título, e obteve razoável sucesso. Podemos asseverar que o interesse do livro pelo HBO para transformá-lo em série era pela ácida crítica a determinadas situações, que começavam a emergir no espaço público da cidade de Nova York e que estavam comentadas no livro Sex and the city. Como a HBO é um canal pago, que independente de patrocinadores e propagandas, pois é financiada pelos seus assinantes, está livre para colocar temas adultos e complexos para o seu público mais exigente, sem precisar contemporizar com a indústria da propaganda e outros fatores. O interesse da série Sex and the city, que é uma comédia, está, pelo menos na primeira temporada, no(s) discurso(s) diferenciado(s) dessas mulheres solteiras, brancas, independentes, na faixa entre 30 e 40 anos, e em suas dificultosas relações afetivas e sexuais e, ainda mais, em uma crítica às instituições que não se adequaram. Suas histórias, suas falas e atitudes são narradas, na série, pela personagem principal, que é a jornalista especializada em antropologia social, Carrie Bradshaw. Na realidade, as crônicas contidas no livro eram muito críticas sobre atitudes e comportamentos de homens e mulheres solteiros (as) da cosmopolita cidade e em como as relações afetivas não se efetivavam, não progrediam ou não levavam a relações estáveis. Sempre se tornavam encontros fortuitos, descartáveis, instigados pela atração e pelo sexo. Ela falava e fazia várias observações humoradas e cáusticas sobre diversas situações que tinham acontecido com vários homens e mulheres que conhecia ou tinha A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 36 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação observado em amigas e amigos. Já começava a diferença para a série, que focalizava tais situações através das experiências de três amigas, além dela. No livro, logo na Apresentação, entramos em contato direto com a sarcástica Bushnell: Passamos horas debatendo nossos relacionamentos malucos, e chegamos à conclusão de que, se não ríssemos deles, provavelmente íamos acabar pirando. Acho que foi por isso que Sex and the city saiu assim, essa análise tão sentimentalmente isenta dos relacionamentos e hábitos de acasalamento do ser humano. Embora algumas pessoas achem perturbadores sua falta de sentimentalismo e humor cruel, é provável que seja apenas porque o livro contém algum tipo de verdade universal. Mas, acima de qualquer outra coisa, Sex and the City busca responder a uma pergunta crucial: por que ainda estamos solteiras? Ora, depois da experiência que adquiri nesse campo, posso afirmar que estamos solteiras porque queremos. Portanto, o livro iria mostrar as dificuldades e impedimentos que existiam no dia-a-dia, no cotidiano, entre homens e mulheres – essas, herdeiras do feminismo e suas regras e leis permaneciam as mesmas de quando foi instituído pela burguesia capitalista. É interessante dizer que, ao analisar as personagens mulheres das séries dos anos 90, nove entre dez são solteiras: não há espaço para a mulher independente e casada. Portanto, o livro, provavelmente, iria querer abordar esse descompasso entre as conquistas da mulher (adulta, independente financeiramente e dona de seu corpo e de seus desejos) em face da sociedade que não se adaptou a tais mudanças e como a liberação da mulher criou o espaço para uma mensagem ambígua, generalizada como uma certa “libertinagem”, devido à sua disponibilidade sexual, e dessa disponibilidade, a sociedade conservadora traduziu como essa liberação sexual seria o fundamento para encontros (afetivos) fortuitos. Embora a reflexão acima não esteja explícita na série, de alguma forma, ela aparece quando a narradora coloca a seguinte questão: “É como o enigma da esfinge. Por que existem tantas solteiras incríveis e nenhum solteiro incrível?”. No entanto, a autora é mais assertiva no livro, quando ela conclui que: “estamos solteiras porque queremos”. A recepção crítica de uma leitora portuguesa sobre o livro mostra a diferença entre o tom do livro e as modificações ambíguas para a série televisiva: A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 37 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação O livro conta a história de como vive uma mulher solteira em Manhattan, seus relacionamentos e sua rotina de trabalho, tudo isso levando em consideração sua faixa etária, sua profissão, beleza e status. Ao contrário do seriado, o livro não me parece nada romântico, as grandes amigas da TV não são muito citadas e até a Carrie não é a escritora. As histórias ocorridas durante o livro mostram claramente que o romance e principalmente o Amor estão em baixa e que as mulheres de Manhattan são independentes, descoladas e principalmente desapegadas, e assim como os homens, buscam freneticamente o sexo casual ao invés de um relacionamento duradouro . A posição esclarecida da leitora-espectadora portuguesa não é a corrente dominante entre as telespectadoras da série, pelo menos, no Brasil, onde a maioria abraçou a série como uma representação de si e achou que essa era a norma, o modelo a ser seguido, inclusive na busca do amor romântico. Se consultamos o Orkut, observamos que, entre as 2000 comunidades da série, apenas duas dizem que não gostam da personagem principal e quatro comunidades dedicam-se, apenas, a comentar o vestuário, bolsas e os sapatos das personagens. Por outro lado, apenas quatro comunidades falam sobre Samantha, a mulher mais madura e independente sexualmente da série. Talvez essa quase exclusão da audiência esteja relacionada às resenhas de divulgação que, para descrever seu comportamento livre em relação ao sexo, ressuscitam a palavra desqualificadora e já esvaziada de sentido que é ninfomaníaca. Novamente, voltamos às bipolaridades da construção moderna na representação das mulheres e quase “recaímos” na forma de designar comportamentos sexuais diversificados como histéricos, ninfômanos. Vejamos como aparece a apresentação e a entrada dos créditos da série Sex and the city. As cenas em sucessão contam uma pequena história: uma mulher vai andando por uma avenida, meio alheia ao que se passa ao redor, entre grandes edifícios e enormes filas de táxis, quando um carro passa dentro de uma poça d’água, borrifando lama na sua roupa, ao mesmo tempo em que ela vê a propaganda de sua coluna do jornal, Sex and the city, na lateral de um ônibus. Mas essa pequena história é contada pelas imagens, dando margem a leituras ambíguas. A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 38 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação -céus que definem o local como sendo Nova York. 2a cena: surge um rosto de mulher, loira, ainda jovem, que olha a cidade de baixo para cima (o rosto apresenta variada gama de emoções), enquanto ela anda pelas calçadas; observa-se que a câmara vai abrindo e percebe-se que ela está vestindo uma camiseta rosa, apresentando braços tonificados pelo hábito das academias; 3a cena: baixando o foco para a rua, vê-se uma fileira inumerável de táxis na avenida enquanto ela continua a caminhar; em seguida, aparece uma poça d’água, uma roda de carro e os respingos da água suja que atingem sua saia – de babados, tecido visivelmente leve, talvez filó, e saltos altos; os respingos a trazem para a realidade; 4a cena: aparecendo a personagem de corpo inteiro, observamos certas marcas disformes, corpo e vestuário que marcam novamente a ambiguidade: camiseta atual de cor rosa, como se viesse de um turno por uma academia de ginástica, justa, complementada por uma saia de duas camadas de tecido fino semelhante ao vestuário das bailarinas clássicas, formando um conjunto destoante: a parte de cima correspondendo à mulher contemporânea e a saia de bailarina clássica inauguram o diálogo entre duas formas de comportamento de mulher. Sua expressão corporal vai se modificando do devaneio ao susto quando sente os respingos de água em sua roupa, enquanto passa um ônibus, cuja lateral estampa uma propaganda da mesma mulher, agora vestindo uma roupa colada ao corpo, entre cetim e lingerie, olhando para o público, com uma perna levantada, como se estivesse em uma pose sensual e íntima e, em letras garrafais, o anúncio da coluna de jornal Sex and the city com o seguinte texto “Carrie Bradshaw conhece tudo sobre sexo” Todas essas informações “prensadas” para passar na tv em 42 segundos! A própria apresentação da série, pelas marcas disformes que configuram a mulher em cena, como: camiseta regata rosa agregada à saia de babados de filó ou tecido semelhante ou mesmo a foto no ônibus em uma roupa delineando o seu corpo, de textura de cetim, deitada em pose sensual, que se assemelha a uma camisola antiga/nova, marcam uma composição híbrida da personagem e da série. Ao mesmo tempo em que indica o tema sensualidade, sexualidade, a mulher em cena tem marcas de ironia e de releituras da própria trajetória das mulheres na sociedade. Infelizmente, os(as) telespectadores(as) não perceberam tais marcas na apresentação.E a crítica feroz aos comportamentos atuais foi lida e interpretada como A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 39 Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas pontos de interrogação sendo o único imaginário das mulheres na entrado do século XXI. A série foi tomada como uma leve comédia sobre o cotidiano de mulheres independentes e profissionais. E a audiência, levada pelas informações da publicidade, tomou a série como um modelo de comportamento e das possibilidades de consumo de vestimentas, sapatos e bolsas de marca como normatização para as mulheres de mais de 25 anos. Houve um intervalo de significação entre o livro e a série. A distorção se dá, basicamente, pela ambiguidade dos discursos incluídos na série televisiva. Como se distorceu a intenção da mensagem e por quê? Mas essa contradição vai ser assunto para outro momento. REFERÊNCIAS BUSHNELL, Candance. Sex and the city – o sexo e a cidade. 9a. ed.. Rio de Janeiro: Record, 2008. (Tradução Celina Cavalcante Falk) DUARTE, Elizabeth B.; CASTRO, Maria Lília de (Orgs) Televisão entre o mercado e a academia. Porto Alegre: Sulina, 2006. FALUDI, Susan. Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. FERREIRA, Silvia Lúcia; ALVES, Ivia; COSTA, Ana Alice (Orgs) Construindo interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador: UFBA/ Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, 2008. FUNCK, Susana B; WIDHOLZER, Nara (Orgs) Gênero em discursos da Mídia. Florianópolis: Ed. Mulheres, Santa Ceuz do Sul: EDUNISC, 2006. HAUSSEN, Doris F. (Org.) 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RECEBIDO EM: 03 de novembro de 2011 APROVADO EM: 05 de dezembro de 2011 A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 41
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