Paulo Coelho

Transcrição

Paulo Coelho
Paulo Coelho
Veronika decide morrer
Foto: cortesia Istoé Gente
Edição especial de www.paulocoelho.com.br , venda proibida
“Eis que vos dei o
poder de pisar serpentes... e nada
poderá vos causar dano’
Lucas 10:19
No dia 11 de novembro de 1997, Veronika decidiu que
havia – afinal! – chegado o momento de se matar. Limpou
cuidadosamente seu quarto alugado num convento de freiras,
desligou a calefação, escovou os dentes e deitou-se.
Na mesa de cabeceira , pegou as quatro caixas de
comprimidos para dormir. Ao invés de amassa-los e misturar com
água, resolveu toma-los um a um, já que existe uma grande
distancia entre a intenção e o ato, e ela queria estar livre para
arrepender-se no meio do caminho. Entretanto, a cada comprimido
que engolia, sentia-se mais convencida: no final de cinco minutos,
as caixas estavam vazias.
Como não sabia exatamente quanto tempo ia demorar para
perder a consciência, deixara em cima da cama um a revista
francesa Homme, edição daquele mês, recém chegada na biblioteca
onde trabalhava. Embora não tivesse nenhum interesse especial por
informática, ao folhear a revista descobrira um artigo sobre um
jogo de computador (CD-Rom, como chamavam) criado Paulo Coelho, um
escritor brasileiro que tivera oportunidade de conhecer numa
conferencia no café do hotel Grand Union. Os dois haviam trocado
algumas palavras, e ela terminara sendo convidada por seu editor
para jantar. Mas o grupo era grande, e não houve possibilidade de
aprofundar nenhum assunto.
O fato de haver conhecido o autor, porém, levava-a a
pensar que ele era parte do seu mundo, e ler uma matéria sobre seu
trabalho podia ajudar a passar o tempo. Enquanto esperava a morte,
Veronika começou a ler sobre informática, um assunto pelo qual não
tinha o mínimo interesse – e isto combinava com tudo o que fizera
a vida inteira, sempre procurando o que estava mais fácil, ou ao
alcance da mão. Como aquela revista, por exemplo.
Para sua surpresa, porém, a primeira linha do texto
tirou-a de sua passividade natural (os calmantes ainda não tinham
dissolvido em seu estômago, mas Veronika já era passiva por
natureza), e fez com que, pela primeira vez em sua vida,
considerasse como verdadeira uma frase que estava muito em moda
entre seus amigos: “nada neste mundo acontece por acaso”.
Por que aquela primeira linha, justamente num momento em
que havia começado a morrer? Qual a mensagem oculta que tinha
diante dos seus olhos, se é que existem mensagens ocultas ao invés
de coincidências?.
Embaixo de uma ilustração do tal jogo de computador, o
jornalista começava sua matéria perguntando:
“Onde é a Eslovénia?”
“Ninguém sabe onde é a Eslovénia” pensou. “Nem isso.”
Mas a Eslovénia mesmo assim existia, e estava lá fora,
lá dentro, nas montanhas a sua volta e na praça diante dos seus
olhos: a Eslovénia era seu país.
Deixou a revista de lado, não lhe interessava agora
ficar indignada com um mundo que ignorava por completo a
existência dos eslovenos; a honra de sua nação não lhe dizia mais
respeito. Era hora de ter orgulho de si mesma, saber que fora
capaz, finalmente tivera coragem, estava deixando esta vida: que
alegria! E estava fazendo isso da maneira com que sempre sonhara –
através de comprimidos, que não deixam marcas.
Veronika procurara pelos comprimidos por quase seis
meses. Achando que nunca iria consegui-los, chegara a considerar a
possibilidade de cortar os pulsos. Mesmo sabendo que ia terminar
enchendo o quarto de sangue, deixando as freiras confusas e
preocupadas, um suicídio exige que as pessoas pensem primeiro em
si mesmas, e depois nos outros. Estava disposta a fazer todo o
possível para que sua morte não causasse muito transtorno, mas se
cortar os pulsos fosse a única possibilidade, então não havia
jeito - e as freiras que limpassem o quarto, e esquecessem logo
a história, senão teriam dificuldades de aluga-lo de novo. Afinal
de contas, mesmo no final do século XX, as pessoas ainda
acreditavam em fantasmas.
É claro que ela também podia atirar-se de um dos poucos
prédios altos de Lubljana, mas e o sofrimento extra que tal
atitude terminaria causando aos seus pais? Além do choque de
descobrir que a filha morrera, ainda seriam obrigados a
identificar um corpo desfigurado: não, esta era uma solução pior
do que sangrar até morrer, pois deixaria marcas indeléveis em duas
pessoas que só queriam o seu bem.
“Com a morte da filha eles terminarão se acostumando.
Mas um crânio esmagado deve ser impossível de esquecer”.
Tiros, quedas de prédio, enforcamento, nada disso
combinava com sua natureza feminina. As mulheres, quando se matam,
escolhem meios muito mais românticos – como cortar os pulsos, ou
tomar uma dose excessiva de comprimidos para dormir. As princesas
abandonadas, e as atrizes de Hollywood deram bastante exemplos a
este respeito.
Veronika sabia que a vida era uma questão de esperar
sempre a hora certa para agir. E assim foi: dois amigos seus,
sensibilizados com suas queixas de que não conseguia mais dormir,
arranjaram – cada um – duas caixas de uma droga poderosa, que era
utilizada por músicos de uma boate local. Veronika deixou as
quatro caixas na sua mesa de cabeceira durante uma semana,
namorando a morte que se aproximava, e despedindo-se – sem
qualquer sentimentalismo – daquilo que chamavam Vida.
Agora estava ali, contente de ter ido até o final, e
entediada porque não sabia o que fazer com o pouco tempo que lhe
restava.
Voltou a pensar no absurdo que acabara de ler: como é
que um artigo de computador pode começar com esta frase tão
idiota: “Onde é a Eslovénia?”
Como não achou nada mais interessante para preocupar-se,
resolveu ler a matéria até o fim, e descobriu: o tal jogo tinha
sido produzido na Eslovénia – este estranho país que ninguém
parecia saber onde era, exceto quem morava ali - por causa da mão
de obra mais barata. Há alguns meses atrás, ao lançar o produto, a
produtora francesa dera uma festa para jornalistas de todo o
mundo, num castelo em Vled.
Veronika lembrou-se de ter escutado algo a respeito da
festa, que fora um acontecimento especial na cidade: não apenas
pelo fato de que o castelo tinha sido redecorado para aproximar-se
ao máximo do ambiente medieval do tal CD-Rom, como também pela
polemica que se seguira na imprensa local: havia jornalistas
alemães, franceses, ingleses, italianos, espanhóis – mas nenhum
esloveno tinha sido convidado.
O articulista de Homme – que viera a Eslovénia pela
primeira vez, certamente com tudo pago, e decidido a passar o seu
tempo cortejando outros jornalistas, dizendo coisas supostamente
interessantes, comendo e bebendo de graça no castelo - resolvera
começar a matéria fazendo uma piada que devia agradar muito aos
sofisticados intelectuais do seu país. Deve, inclusive, ter
contado aos seus amigos de redação algumas histórias inverídicas
sobre os costumes locais, ou sobre a maneira rudimentar como as
mulheres eslovenas se vestem.
Problema dele. Veronika estava morrendo, e suas
preocupações deviam ser outras, como saber se existe vida após a
morte, ou a que horas o seu corpo seria encontrado. Mesmo assim –
ou talvez justamente por causa disso, da importante decisão que
tomara – aquele artigo a estava incomodando.
Olhou pela janela do convento que dava para a pequena
praça de Lubljana. “Se não sabem onde é a Eslovénia, Lubljana deve
ser um mito”, pensou. Como a Atlântida, ou a Lemuria, ou os
continentes perdidos que povoam a imaginação dos homens. Ninguém
começaria um artigo, em nenhum lugar do mundo perguntando onde era
o monte Everest, mesmo que nunca tivessem estado lá. No entanto,
em plena Europa, um jornalista de uma revista importante não se
envergonhava em fazer uma pergunta daquelas, porque sabia que a
maior parte dos seus leitores não sabia onde era a Eslovénia. E
muito menos Lubljana, sua capital.
Foi então que Veronika descobriu uma maneira de passar o
tempo – já que dez minutos haviam transcorrido, e ainda não notara
qualquer diferença em seu organismo. O último ato de sua vida ia
ser uma carta para aquela revista, explicando que a Eslovénia era
uma das cinco republicas resultantes da divisão da antiga
Yugoslávia.
Deixaria a carta como seu bilhete de suicídio. De
resto, não daria nenhuma explicação sobre os verdadeiros motivos
de sua morte.
Quando encontrassem seu corpo, concluiriam que se matou
porque uma revista não sabia onde era o seu país. Riu com a idéia
de ver uma polemica nos jornais, com gente a favor e contra seu
suicídio em honra da causa nacional. E ficou impressionada com a
rapidez com que mudara de idéia, já que momentos antes pensara
exatamente o oposto – o mundo e os problemas geográficos já não
lhe diziam respeito.
Escreveu a carta. O momento de bom humor fez com que
quase mudasse de idéia a respeito da morte, mas já havia tomado os
comprimidos, era tarde demais para voltar.
De qualquer maneira, já tivera momentos de bom humor
como esse, e não estava se matando porque era uma mulher triste,
amarga, vivendo em constante depressão. Passara muitas tardes de
sua vida caminhando, alegre, pelas ruas de Lubljana, ou olhando –
da janela do seu quarto no convento - a neve que caia na pequena
praça com a estatua do poeta. Certa vez ficara quase um mês
flutuando nas nuvens, porque um homem desconhecido, no centro
daquela mesma praça, lhe dera uma flor.
Acreditava ser uma pessoa absolutamente normal. Sua
decisão de morrer devia-se a duas razoes muito simples, e tinha
certeza que, se deixasse um bilhete explicando, muita gente ia
concordar com ela.
A primeira razão: tudo em sua vida era igual, e – uma
vez passada a juventude – a tendência era que tudo passasse a
decair, a velhice começasse a deixar marcas irreversíveis, as
doenças chegassem, os amigos partissem. Enfim, continuar vivendo
não acrescentava nada; ao contrário, as possibilidades de
sofrimento aumentavam muito.
A segunda razão era mais filosófica: Veronika lia
jornais, assistia TV, e estava a par do que se passava no mundo.
Tudo estava errado, e ela não tinha como consertar aquela situação
– o que lhe dava uma sensação de inutilidade total .
Daqui a pouco, porém, teria a última experiência de sua
vida, e esta prometia ser muito diferente: a morte. Escreveu a tal
carta para a revista, deixou o assunto de lado, concentrou-se em
coisas mais importantes e mais próprias para o que estava vivendo
– ou morrendo – naquele minuto.
Procurou imaginar como seria morrer, mas não conseguiu
chegar a nenhum resultado.
De qualquer maneira, não precisava se importar com isso,
pois saberia daqui a poucos minutos.
Quantos minutos?
Não tinha idéia. Mas deliciava-se com o fato de que ia
conhecer a resposta para o que todos se perguntavam: Deus existe?
Ao contrário de muita gente, esta não fora a grande
discussão interior de sua vida. No antigo regime comunista, a
educação oficial dizia que a vida acabava com a morte, e ela
terminou se acostumando com a idéia. Por outro lado, a geração dos
seus pais e de seus avós, ainda freqüentava a igreja, fazia
orações e peregrinações, e tinha a mais absoluta convicção que
Deus prestava atenção no que diziam.
Aos 24 anos, depois de ter vivido tudo que lhe fora
permitido viver – e olha que não foi pouca coisa! – Veronika tinha
quase certeza de que tudo acabava com a morte. Por isso escolhera
o suicídio: liberdade, enfim. Esquecimento para sempre.
NO fundo do seu coração, porém, restava a dúvida: e se
Deus existe? Milhares de anos de civilização faziam do suicídio um
tabu, uma afronta a todos os códigos religiosos: o homem luta para
sobreviver, e não para entregar-se. A raça humana deve procriar. A
sociedade precisa de mão-de-obra. Um casal necessita uma razão
para continuar junto, mesmo depois que o amor deixou de existir, e
um país precisa de soldados, políticos, e artistas.
“Se Deus existe, o que eu sinceramente não acredito,
entenderá que há um limite para a compreensão humana. Foi Ele quem
criou esta confusão, onde há miséria, injustiça, ganância,
solidão. Sua intenção deve ter sido ótima, mas os resultados são
nulos; se Deus existe, Ele será generoso com as criaturas que
desejaram ir embora mais cedo desta Terra, e pode até mesmo pedir
desculpas por nos ter obrigado a passar por aqui.”
Que se danassem os tabus e superstições. Sua religiosa
mãe dizia: Deus sabe o passado, o presente e o futuro. Neste
caso, já lhe havia colocado neste mundo com plena consciência de
que ela terminaria por se matar, e não iria ficar chocado com seu
gesto.
Veronika começou a sentir um leve enjôo, que foi
crescendo rapidamente.
Em poucos minutos, já não podia mais concentrar-se na
praça do lado de fora de sua janela. Sabia que era inverno, devia
ser em torno de quatro horas da tarde, e o sol estava se pondo
rápido. Sabia que outras pessoas continuariam vivendo; neste
momento um rapaz passava diante de sua janela, e a viu, sem
entretanto ter a menor idéia de que ela estava prestes a morrer.
Um grupo de músicos bolivianos (onde é a Bolívia? Por que os
artigos de revistas não perguntam isso?) tocava diante da estátua
de France Preseren, o grande poeta esloveno, que marcara
profundamente a alma do seu povo.
Será que conseguiria escutar até o fim a música que
vinha da praça? Seria uma bela recordação desta vida: o
entardecer, a melodia que contava os sonhos do outro lado do
mundo, o quarto aquecido e aconchegante, o rapaz bonito e cheio de
vida que passava, resolvera parar, e agora a encarava. Como
percebia que o remédio já estava fazendo efeito, era a última
pessoa que a estava vendo.
Ele sorriu. Ela retribuiu o sorriso – não tinha nada a
perder. Ele acenou; ela resolveu fingir que estava olhando outra
coisa, afinal o rapaz estava querendo ir longe demais.
Desconcertado, ele continuou seu caminho, esquecendo para sempre
aquele rosto na janela.
Mas Veronika ficou contente de, mais uma vez, ter sido
desejada. Não era por ausência de amor que estava se matando. Não
era por falta de carinho de sua família, nem problemas
financeiros, nem uma doença incurável.
Veronika decidira naquela tarde bonita de Lubljana, com
músicos bolivianos tocando na praça, com um jovem passando diante
da sua janela, e estava contente com o que os seus olhos viam e
seus ouvidos escutavam. Mais contente ainda estava, por não ter
que ficar vendo aquelas mesmas coisas por mais trinta, quarenta,
ou cinquenta anos – pois iam perder toda a sua originalidade, e
se transformar na tragédia de uma vida onde tudo se repete, e o
dia anterior é sempre igual ao seguinte.
O estômago, agora, começava a dar voltas, e ela sentiase muito mal. “Engraçado, pensei que uma dose excessiva de
calmantes me faria dormir imediatamente”. Mas o que estava
acontecendo era um estranho zumbido nos ouvidos, e a sensação de
vomito.
“Se vomitar, não morro”.
Decidiu esquecer as cólicas, procurando concentrar-se na
noite que caia com rapidez, nos bolivianos, nas pessoas que
começavam a fechar suas lojas e sair. O barulho no ouvido tornavase cada vez mais agudo, e – pela primeira vez desde que tomara os
comprimidos, Veronika sentiu medo, um medo terrível do
desconhecido.
Mas foi rápido. Logo perdeu a consciência.
Quando abriu os olhos, Veronika não pensou: “isso deve
ser o céu”. O céu jamais utilizaria uma lâmpada fluorescente para
iluminar o ambiente, e a dor – que apareceu uma fração de segundo
depois - era típica da Terra. Ah, esta dor da Terra – ela é única,
não pode ser confundida com nada.
Quis mexer-se, e a dor aumentou. Uma série de pontos
luminosos apareceram, e mesmo assim Veronika continuou entendendo
que aqueles pontos não eram estrelas do Paraíso, mas conseqüências
do seu intenso sofrimento.
- Recuperou a consciência - escutou uma voz de mulher. Agora você está com os dois pés no inferno, aproveite.
Não, não podia ser, aquela voz a estava enganando. Não
era o inferno – porque sentia muito frio, e notara que estava com
tubos plásticos saindo da boca e do nariz. Um destes tubos – o que
estava enfiado por sua garganta abaixo - lhe dava a sensação de
sufocamento.
Quis mexer-se para retira-lo, mas os braços estavam
amarrados.
- Estou brincando, não é o inferno - continuou a voz. É pior que o inferno onde, aliás, eu nunca estive. É Villete.
Apesar da dor e da sensação de sufocamento, Veronika –
numa fração de segundo – entendeu o que havia acontecido. Tentara
o suicídio, e alguém chegara a tempo para salva-la. Podia ter sido
uma freira, uma amiga que resolvera aparecer sem avisar, alguém
que se lembrara de entregar algo que ela já esquecera haver
pedido. O fato é que tinha sobrevivido, e estava em Villete.
Villete, o famoso e temido asilo de loucos, que existia
desde 1991, ano da independência do país. Naquela época,
acreditando que a divisão da antiga Yugoslávia se daria através de
meios pacíficos (afinal, a Eslovénia enfrentara apenas onze dias
de guerra), um grupo de empresários europeus conseguiu licença
para instalar um hospital de doenças mentais num antigo quartel,
abandonado por causa dos altos custos de manutenção.
Aos poucos, porém, as guerras começaram: primeiro a
Croácia, depois a Bósnia. Os empresários ficaram preocupados: o
dinheiro para o investimento viera de capitalistas espalhados por
diversas partes do mundo, cujos nomes nem sabiam – de modo que era
impossível sentar-se diante deles, dar algumas desculpas, pedir
que tivessem paciência. Resolveram o problema adotando práticas
nada recomendáveis para um asilo psiquiátrico, e Villete passou a
simbolizar - para a jovem nação que acabara de sair de um
comunismo tolerante - o que havia de pior no capitalismo:
bastava pagar para se conseguir uma vaga.
Muitas pessoas, quando queriam livrar-se de algum
membro da família por causa de discussões sobre herança (ou
comportamento inconveniente), gastavam uma fortuna - e conseguiam
um atestado médico que permitia a internação dos filhos ou pais
criadores de problemas. Outros, para fugir de dívidas, ou
justificar certas atitudes que podiam resultar em longos termos de
prisão, passavam algum tempo no asilo e saiam livres de qualquer
cobrança ou processo judicial.
Villete, o lugar de onde ninguém jamais havia fugido.
Que misturava os verdadeiros loucos – enviados ali pela justiça,
ou por outros hospitais – com aqueles que eram acusados de
loucura, ou fingiam insanidade. O resultado era uma verdadeira
confusão, e a imprensa a toda hora publicava histórias de maustratos e abusos, embora jamais tivesse permissão de entrar e ver
o que estava acontecendo. O governo investigava as denúncias, não
arranjava provas, os acionistas ameaçavam espalhar que era difícil
fazer investimentos externos ali, e a instituição conseguia
manter-se de pé, cada vez mais forte.
- Minha tia suicidou-se há alguns meses - continuou a
voz feminina. – Ela passou quase oito anos sem vontade de sair do
quarto, comendo, engordando, fumando, tomando calmantes, e
dormindo a maior parte do tempo. Tinha duas filhas e um marido que
a amava.
Veronika tentou mover sua cabeça na direção da voz, mas
era impossível.
- Só a vi reagir uma única vez: quando o marido
arranjou uma amante. Então ela fez escândalos, perdeu alguns
quilos, quebrou copos e – por semanas inteiras – não deixava a
vizinhança dormir com seus gritos. Por mais absurdo que pareça,
acho que foi sua época mais feliz: estava lutando por alguma
coisa, sentia-se viva e capaz de reagir ao desafio que se colocava
diante dela.
“O que eu tenho a ver com isso?” pensava Veronika,
incapaz de dizer algo. “Eu não sou sua tia, não tenho marido!”
- O marido terminou largando a amante – continuou a
mulher. - Minha tia, pouco a pouco, voltou a sua passividade
habitual. Um dia, me telefonou dizendo que estava disposta a mudar
de vida: parara de fumar. Na mesma semana, depois de aumentar o
numero de calmantes por causa da ausência do cigarro, avisou a
todos que estava disposta a se matar.
“Ninguém acreditou. Certa manhã, ela me deixou um recado
na secretária eletrônica, despedindo-se, e matou-se com gás. Eu
ouvi esta mensagem várias vezes: nunca a escutara sua voz tão
tranquila, conformada com o próprio destino. Dizia que não era nem
feliz nem infeliz, e por isso não aguentava mais.
Veronika sentiu compaixão pela mulher que contava a
história, e que parecia tentar compreender a morte da tia. Como
julgar – num mundo onde se tenta sobreviver a qualquer custo –
aquelas pessoas que decidem morrer?
Ninguém pode julgar. Cada um sabe a dimensão do próprio
sofrimento, ou da ausência total de sentido de sua vida. Veronika
queria explicar isso, mas o tubo em sua boca fez com que
engasgasse, e a mulher veio ajuda-la.
Viu-a debruçando-se sobre o seu corpo amarrado,
entubado, protegido contra a sua vontade e o seu livre arbítrio de
destruí-lo. Mexeu de um lado para o outro com a cabeça, implorando
com seus olhos para que tirassem aquele tubo, e a deixassem morrer
em paz.
- Você está nervosa - disse a mulher. - Não sei se está
arrependida, ou se ainda quer morrer, mas isso não me interessa. O
que me interessa é cumprir com minha função: no caso do paciente
mostrar-se agitado, o regulamento exige que eu lhe aplique um
sedativo.
Veronika parou de debater-se, mas a enfermeira já lhe
aplicava uma injeção no braço. Em pouco tempo estava de volta a um
mundo estranho, sem sonhos, onde a única coisa que se lembrava era
o rosto da mulher que acabara de ver: olhos verdes, cabelo moreno,
e um ar totalmente distante – de quem faz as coisas porque tem que
fazer, sem jamais perguntar por que o regulamento manda isso ou
aquilo.
Paulo Coelho soube da historia de Veronika três meses
depois, quando jantava num restaurante argelino em Paris com uma
amiga eslovena, que também se chamava Veronika, e era filha do
médico responsável por Villete.
Mais tarde, quando decidiu escrever um livro sobre o
assunto, pensou em mudar o nome da Veronika, sua amiga – para não
confundir o leitor. Pensou em chama-la de Blaska, ou Edwina, ou
Marietzja, ou qualquer outro nome esloveno, e terminou resolvendo
que manteria os nomes reais. Quando se referisse a Veronika sua
amiga, chamaria de Veronika, a amiga. Quanto a outra Veronika, não
precisava adjetiva-la de nenhuma maneira, porque ela seria o
personagem central do livro, e as pessoas ficariam aborrecidas de
terem que ler sempre “Veronika, a louca”, ou “Veronika, a que
tentara cometer suicídio”. De qualquer maneira, tanto ele como
Veronika, a amiga, iam entrar na história em apenas um pequeno
trecho– este aqui.
Veronika, a amiga, estava horrorizada com o que o seu
pai tinha feito, principalmente levando-se em consideração de que
ele era o diretor de uma instituição que queria ser respeitada, e
trabalhava em uma tese que precisava passar pelo exame de uma
comunidade acadêmica convencional. .
- Você sabe de onde vem a palavra “asilo”? – perguntava
ela. – Vem da Idade Média, do direito que as pessoas tinham de
buscar refúgio em igrejas, lugares sagrados. Direito de asilo, uma
coisa que qualquer pessoa civilizada entende! Então, como é que
meu pai, diretor de um asilo, pode agir desta maneira com alguém?
Paulo Coelho quis saber em detalhes tudo o que havia
acontecido, porque tinha um excelente motivo para interessar-se
pela história de Veronika.
E o motivo era o seguinte: ele fora internado num asilo
– ou hospício, como era mais conhecido este tipo de hospital. E
isto acontecera não apenas uma vez, mas três vezes – nos anos de
1965, 1966, e 1967. O lugar de sua internação fora a Casa de
Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro.
A razão do seu internamento era, até hoje, estranha
para ele mesmo; talvez os seus pais estivessem desnorteados com
seu comportamento estranho, entre o tímido e o extrovertido, ou
talvez fosse o seu desejo de ser “artista”, algo que todos na
família consideravam como a melhor maneira de viver na
marginalidade, e morrer na miséria.
Quando pensava no fato – e, diga-se de passagem,
raramente pensava nisso – ele atribuía a verdadeira loucura ao
médico que aceitou coloca-lo num hospício, sem qualquer motivo
concreto ( como acontece em qualquer família, a tendência é sempre
colocar a culpa nos outros, e afirmar de pés juntos que os pais
não sabiam o que estavam fazendo, quando tomaram uma decisão tão
drástica).
Paulo riu ao saber da estranha carta aos jornais que
Veronika deixara, reclamando que uma importante revista francesa
nem sequer sabia onde era a Eslovénia.
- Ninguém se mata por isso.
- Por esta razão, a carta não deu nenhum resultado –
disse, constrangida, Veronika, a amiga. – Ontem mesmo, ao me
registrar no hotel, acharam que Eslovénia era uma cidade da
Alemanha.
Era uma história muito familiar, pensou ele, já que
muitos estrangeiros consideram a cidade argentina de Buenos Aires
como capital do Brasil.
Mas, além do fato de viver num país que os estrangeiros,
alegremente, vinham cumprimenta-lo pela beleza da capital (que
ficava no país vizinho), Paulo Coelho tinha em comum com Veronika
o fato que já foi descrito aqui, mas que é sempre bom relembrar:
também fora internado num sanatório de doentes mentais, “de onde
nunca devia ter saído”, como comentara certa vez sua primeira
mulher.
Mas saiu. E quando deixou a Casa de Saúde Dr. Eiras
pela ultima vez, decidido a nunca mais voltar lá, , ele fizera
duas promessas: a) jurou que iria escrever sobre o tema; b) jurou
esperar que seus pais morressem antes de tocar publicamente no
assunto – porque ele não queria feri-los, já que os dois tinham
passado muitos anos de suas vidas culpando-se pelo que fizeram.
Sua mãe morrera em 1993. Mas seu pai, que em 1997
completara 84 anos, apesar de ter efizema pulmonar sem nunca haver
fumado, apesar de alimentar-se de comida congelada porque não
conseguia ter uma empregada que aturasse suas manias, continuava
vivo, em pleno gozo de suas faculdades mentais e de sua saúde.
De modo que, ao ouvir a história de Veronika, ele
descobriu uma maneira de falar sobre o tema, sem descumprir sua
promessa. Embora nunca tivesse pensado em suicídio, conhecia
intimamente o universo de um asilo – os tratamentos, as relações
entre médicos e pacientes, o conforto e a angústia de estar num
lugar como aqueles.
Então deixemos Paulo Coelho e Veronika – a amiga –
saírem definitivamente deste livro, e continuemos a história.
Veronika não sabe quanto tempo ficou dormindo. Lembravase de ter acordado algum momento – ainda com os aparelhos de
sobrevivência em sua boca e em seu nariz – ouvindo uma voz que
dizia:
“Você quer que eu a masturbe?”
Mas agora, com os olhos bem abertos e olhando o quarto
ao seu redor, não sabia se aquilo tinha sido real, ou uma
alucinação. Alem desta lembrança, não conseguia recordar nada,
absolutamente nada.
Os tubos tinham sido retirados. Mas continuava com
agulhas enfiadas por todo o corpo, fios conectados na área da
coração e da cabeça, e os braços amarrados. Estava nua, coberta
apenas por um lençol, e sentia frio – mas resolveu não reclamar.
O pequeno ambiente, circundado por cortinas verdes, estava ocupado
pelas máquinas da Unidade de Tratamento Intensivo, a cama onde
estava deitada, e uma cadeira branca - com uma enfermeira sentada,
entretida na leitura de um livro.
A mulher, desta vez, tinha olhos escuros e cabelos
morenos. Mesmo assim, Veronika ficou em dúvida se era a mesma
pessoa com quem conversara horas – dias? – antes.
- Pode desamarrar meus braços?
A enfermeira levantou os olhos, respondeu com um seco
“não”, e voltou ao livro.
Estou viva, pensou Veronika. Vai começar tudo de novo.
Devo passar algum tempo aqui dentro, até constatarem que sou
perfeitamente normal. Depois me darão alta, e eu verei de novo as
ruas de Lubljana, sua praça redonda, as pontes, as pessoas que
passam pelas ruas indo e voltando do trabalho.
Como as pessoas sempre tendem a ajudar as outras – só
para se sentirem melhores do que realmente são - eles me darão o
emprego de volta na biblioteca. Com o tempo, voltarei a frequentar
os mesmos bares e boates, conversarei com os meus amigos sobre as
injustiças e problemas do mundo, irei ao cinema, passearei no
lago.
Como escolhi os comprimidos, não estou deformada:
continuo jovem, bonita, inteligente, e não terei – como nunca
tive – dificuldades em arranjar namorados. Farei amor com eles em
suas casas, ou no bosque, terei um certo prazer, mas logo depois
do orgasmo a sensação do vazio voltará. Já não teremos muito o que
conversar, e tanto ele como eu sabemos disso: chega a hora de dar
uma desculpa um para o outro – “está tarde”, ou “amanhã tenho que
acordar cedo” - e partiremos o mais rápido possível, evitando nos
olharmos nos olhos.
Eu volto para o meu quarto alugado no convento. Tento
ler um livro, ligo a TV para ver os mesmos programas de sempre,
coloco o despertador para acordar exatamente na mesma hora que
acordei no dia anterior, repito mecanicamente as tarefas que me
são confiadas na biblioteca. Como o sanduiche no jardim em frente
ao teatro, sentada no mesmo banco, junto com outras pessoas que
também escolhem os mesmos bancos para lanchar, que tem o mesmo
olhar vazio, mas fingem estar preocupadas com coisas
importantíssimas.
Depois volto ao trabalho, escuto alguns comentários
sobre quem está saindo com quem, quem está sofrendo o que, como
tal pessoa chorou por causa do marido - e fico com a sensação que
sou privilegiada, sou bonita, tenho um emprego, arranjo o namorado
que quiser. Aí volto aos bares no final do dia, e a coisa toda
recomeça.
Minha mãe – que deverá estar preocupadíssima com minha
tentativa de suicídio – vai se recuperar do susto e continuará me
perguntando o que vou fazer de minha vida, porque não sou igual
as outras pessoas, já que, afinal de contas, as coisas não são
tão complicadas como eu penso que são. “Olhe para mim, por
exemplo, que estou há anos casada com seu pai, e procurei lhe dar
a melhor educação e os melhores exemplos possíveis.”
Um dia eu me canso de ouvi-la sempre repetindo a mesma
conversa, e para agrada-la me caso com um homem a quem me obrigo
a amar. Eu e ele terminaremos encontrando uma maneira de sonhar
juntos com o nosso futuro, a casa de campo, os filhos, o futuro
dos nosso filhos. Faremos muito amor no primeiro ano, menos no
segundo, e a partir do terceiro ano a gente talvez pense em sexo
uma vez a cada quinze dias, e transforme este pensamento em ação
apenas uma vez por mês. Pior que isso, a gente quase não
conversará. Eu me forçarei a aceitar a situação, e me perguntarei
o que há de errado comigo – já que não consigo mais interessa-lo,
ele não presta atenção a mim, e vive falando dos seus amigos como
se fossem realmente o seu mundo.
Quando o casamento estiver realmente por um fio, eu
ficarei grávida. Teremos o filho, passaremos algum tempo mais
próximos um do outro, e logo a situação voltará a ser como antes.
Então começarei a engordar como a tia da enfermeira de
ontem – ou de dias atrás, não sei bem. E começarei a fazer regime,
sistematicamente derrotada a cada dia, a cada semana, pelo peso
que insiste em aumentar apesar de todo o controle. A esta altura,
eu tomarei estas drogas mágicas para não entrar em depressão – a
terei alguns filhos, em noites de amor que passam depressa demais.
Direi a todos que os filhos são a razão de minha vida, mas na
verdade eles exigem minha vida como razão.
As pessoas vão sempre nos considerar um casal feliz, e
ninguém saberá o que existe de solidão, de amargura, de renúncia,
atrás de toda aparência de felicidade.
Até que um dia, quando meu marido arranjar sua primeira
amante, eu talvez faça um escândalo como a amiga da enfermeira, ou
pense de novo em me suicidar. Mas aí estarei velha e covarde, com
dois ou três filhos que precisam de minha ajuda, e preciso educalos, coloca-los no mundo - antes de ser capaz de abandonar tudo.
Eu não me suicidarei: farei um escândalo, ameaçarei sair com as
crianças. Ele, como todo homem, recuará, dirá que me ama e que
aquilo não vai mais se repetir. Nunca lhe passará pela cabeça que,
se eu resolvesse mesmo ir embora, a única escolha seria voltar
para casa dos meus pais, e ficar ali o resto da minha vida, tendo
que escutar todo dia a minha mãe lamentar-se porque eu perdi uma
oportunidade única de ser feliz, que ele era um ótimo marido
apesar de seus pequenos defeitos, que meus filhos irão sofrer
muito por causa da separação.
Dois ou três anos depois, outra mulher aparecerá em sua
vida. Eu vou descobrir – porque vi, ou porque alguém me contou –
mas desta vez finjo que não sei. Gastei toda a minha energia
lutando contra a amante anterior, não sobrou nada, é melhor
aceitar a vida como ela é na realidade, e não como eu imaginava
que fosse. Minha mãe tinha razão.
Ele continuará sendo gentil comigo, eu continuarei o meu
trabalho na biblioteca, os meus sanduíches na praça do teatro, os
meus livros que nunca consigo terminar de ler, os programas de
televisão que continuarão sendo os mesmos daqui a dez, vinte,
cinquenta anos.
Só que comerei os sanduíches com culpa, porque estou
engordando; e não irei mais a bares, porque tenho um marido que me
espera em casa para cuidar dos filhos.
A partir daí, é esperar os meninos crescerem, e ficar
todo dia pensando no suicídio, sem coragem de comete-lo. Um belo
dia, chego a conclusão que a vida é assim, não adianta, nada
mudará. E me conformo.
Veronika encerrou seu monologo interior, e fez uma
promessa a si mesmo: não sairia de Villete com vida. Era melhor
acabar com tudo agora, enquanto ainda tinha coragem e saúde para
morrer.
Dormiu e acordou várias vezes, notando o número de
aparelhos a sua volta diminuia, o calor de seu corpo aumentava, e
as enfermeiras mudavam de rosto -mas sempre havia alguém ao lado
dela. As cortinas verdes deixavam passar o som de alguém chorando,
gemidos de dor, ou vozes que sussurravam coisas em tom calmo e
técnico. De vez em quando um aparelho distante zumbia, e ela
escutava passos apressados no corredor. Nestas horas, as vozes
perdiam seu tom técnico e calmo, e passavam a ser tensas, dando
ordens rápidas.
Num dos seus momentos de lucidez, uma enfermeira lhe
perguntou:
- Você não quer saber o seu estado?
- Eu sei qual é - respondeu Veronika. - E não é o que
você está vendo em meu corpo; é o que está acontecendo em minha
alma.
A enfermeira ainda tentou conversar um pouco, mas
Veronika fingiu que dormia.
Pela primeira vez, quando abriu os olhos, percebeu que
havia mudado de lugar – estava no que parecia ser uma grande
enfermaria. A agulha de um frasco de soro ainda continuava em seu
braço – mas todos os outros fios e agulhas tinham sido retirados.
Um medico alto, com a tradicional roupa branca
contrastando com os cabelos e bigode artificialmente tingidos de
negro, encontrava-se de pé, em frente a sua cama. A seu lado, um
jovem estagiário segurava uma prancheta, e tomava notas.
- Há quanto tempo estou aqui? – perguntou, notando que
falava com uma certa dificuldade, sem conseguir pronunciar direito
as palavras.
- Duas semanas neste quarto, depois de 5 dias na Unidade
de Emergência - respondeu o mais velho. - E dê graças a Deus por
ainda estar aqui.
O mais jovem pareceu surpreso, como se esta última frase
não combinasse exatamente com a realidade. Veronika, de imediato,
notou sua reação, e seus instintos se aguçaram: tinha ficado mais
tempo? Ainda estava correndo algum risco? Começou a prestar
atenção em cada gesto, cada movimento dos dois; sabia que era
inútil fazer perguntas, eles jamais diriam a verdade - mas, se
fosse esperta, podia entender o que estava acontecendo.
- Diga seu nome, endereço, estado civil, e data do
nascimento - continuou o mais velho.
Veronika sabia seu nome, seu estado civil, e sua data
de nascimento, mas reparou que havia espaços em branco em sua
memória: ela não conseguia lembrar direito o endereço.
O médico colocou uma lanterna em seus olhos, e examinouos prolongadamente, em silencio. O mais jovem fez a mesma coisa.
Os dois trocaram olhares, que não significavam absolutamente nada.
- Você disse para a enfermeira da noite que não
sabíamos ver sua alma? - perguntou o mais moço.
Veronika não se lembrava. Tinha dificuldades em saber
direito quem era, e o que estava fazendo ali.
- Você tem sido constantemente induzida ao sono através
de calmantes, e isso pode afetar um pouco a sua memória. Por
favor, tente responder tudo o que perguntarmos.
E os médicos começaram um questionário absurdo, querendo
saber quais os jornais importantes em Lubljana,quem era o poeta
cuja estátua está na praça principal (ah, aquilo ela não
esqueceria nunca, todo esloveno traz a imagem de Preseren gravado
na alma), a cor do cabelo de sua mãe, o nome dos amigos de
trabalho, os livros mais retirados da biblioteca.
No começo, Veronika cogitou não responder – sua memória
continuava confusa. Mas, a medida que o questionário avançava, ela
ia reconstruindo o que havia esquecido. Em determinado momento,
lembrou-se que agora que estava num hospício, e os loucos não tem
nenhuma obrigação de serem coerentes; mas, para seu próprio bem,
e para manter os médicos por perto, a fim de ver se conseguia
descobrir algo mais a respeito do seu estado, ela começou a fazer
um esforço mental. A medida em que citava os nomes e fatos, não
recuperava apenas a memória – mas também sua personalidade, seus
desejos, sua maneira de ver a vida. A idéia do suicídio, que
naquela manhã parecia enterrada debaixo de várias camadas de
sedativos, voltava novamente a tona.
- Está bem - disse o mais velho, no final do
questionário.
- Quanto tempo ainda vou ficar aqui?
O mais moço abaixou os olhos, e ela sentiu que tudo
ficara suspenso no ar, - como se, a partir da resposta para aquela
pergunta, uma nova história de sua vida fosse escrita, e ninguém
mais conseguisse modifica-la.
- Pode dizer - comentou o mais velho. – Muitos outros
pacientes já ouviram os boatos, e ela vai terminar sabendo de
qualquer jeito; é impossível ter segredos neste local.
- Bem, foi você quem determinou seu próprio destino suspirou o moço, medindo cada palavra. - Então, saiba das
consequencias do seu ato: durante o coma provocado pelos
narcóticos, seu coração foi irremediavelmente afetado. Houve uma
necrose no ventríloquo...
- Seja mais simples – disse o mais velho. Vá direto ao
que interessa.
– O seu coração foi irremediavelmente afetado. E vai
deixar de bater em breve.
- O que significa isso? – perguntou, assustada.
- O fato do coração deixar de bater significa apenas uma
coisa: morte física. Não sei quais são suas crenças religiosas,
mas...
- Em quanto tempo meu coração vai parar? – interrompeu
Veronika.
- Cinco dias, uma semana no máximo.
Veronika se deu conta que, por detrás da aparência e do
comportamento profissional, por detrás do ar de preocupação,
aquele rapaz estava tendo um imenso prazer no que dizia. Como se
ela merecesse o castigo, e servisse de exemplo a todos os outros.
Durante toda a sua vida, Veronika percebera que um
imenso grupo de pessoas que conhecia comentavam os horrores da
vida alheia como se estivessem muito preocupados em ajudar - mas
na verdade se compraziam com o sofrimento dos outros, porque isto
os fazia crer que eram felizes, a vida tinha sido generosa com
eles. Ela detestava este tipo de gente: não ia dar aquele rapaz
nenhuma chance de se aproveitar do seu estado, para ocultar as
suas próprias frustrações.
Manteve os olhos fixos no dele. E sorriu.
- Então eu não falhei.
- Não - foi a resposta. Mas o seu prazer em dar
notícias trágicas havia desaparecido.
Durante a noite, porém, começou a sentir medo. Uma coisa
era a ação rápida dos comprimidos, outra era ficar esperando a
morte por cinco dias, uma semana – depois de já se ter vivido
tudo que era possível.
Passara a sua vida esperando sempre alguma coisa: o pai
voltar do trabalho, a carta do namorado que não chegava, os exames
do final do ano, o trem, o ônibus, o telefonema, o dia das férias,
o final das férias. Agora precisava esperar a morte, que vinha com
data marcada.
“Isso só podia acontecer comigo. Normalmente as pessoas
morrem exatamente no dia em que acham que não vão morrer.”
Tinha que sair dali, e arranjar novos comprimidos. Se
não conseguisse, e a única solução fosse jogar-se do alto de
prédio em Lubljana, ela faria isso: tentara poupar os seus pais de
sofrimento extra, mas agora não havia mais remédio.
Olhou a sua volta. Todos os leitos estavam ocupados, as
pessoas dormiam, algumas roncavam forte. As janelas tinham grades.
No final do dormitório, havia uma pequena luz acesa, enchendo o
ambiente de sombras estranhas, e permitindo que o local estivesse
constantemente vigiado. Perto da luz, uma mulher lia um livro.
“Essas enfermeiras devem ser muito cultas. Vivem lendo”.
A cama de Veronika era a mais afastada da porta – entre
ela e a mulher havia quase vinte leitos. Levantou-se com
dificuldade, porque – a acreditar no que dissera o médico estava há quase três semanas sem caminhar. A enfermeira levantou
os olhos, e viu a moça que se aproximava carregando seu frasco de
soro.
- Quero ir ao banheiro” - sussurrou, com medo de acordar
as outras loucas.
A mulher, num gesto descuidado, apontou para uma porta.
A mente de Veronika trabalhava rapidamente, buscando em todos os
cantos uma saída, uma brecha, uma maneira de deixar aquele lugar.
“Tem que ser rápido, enquanto acham que ainda estou frágil,
incapaz de reagir.”
Olhou cuidadosamente a sua volta. O banheiro era um
cubículo sem porta. Se quisesse sair dali, teria que agarrar a
vigilante e domina-la para conseguir a chave – mas estava fraca
demais para isso.
- Isso é uma prisão? - perguntou à vigilante, que tinha
abandonado a leitura e agora acompanhava todos os seus movimentos.
- Não. Um hospício.
- Eu não sou louca.
A mulher riu.
- É exatamente o que todos dizem aqui.
- Está bem. Então sou louca. O que é um louco?
A mulher disse que Veronika não devia ficar muito tempo
em pé, e mandou-a de volta para a sua cama.
- O que é um louco? - insistiu Veronika.
- Pergunte ao médico amanhã. E vá dormir ou terei – a
contragosto – que aplicar lhe aplicar um calmante.
Veronika obedeceu. No caminho de volta, escutou alguém
sussurrar de uma das camas:
“Você não sabe o que é um louco?”
Por um instante, ela pensou em não responder: não
queria fazer amigos, desenvolver círculos sociais, arranjar
aliados para uma grande sublevação em massa. Tinha apenas uma
idéia fixa: morte. Se fosse impossível fugir, daria um jeito de se
matar ali mesmo, o quanto antes possível.
Mas a mulher repetiu a mesma pergunta que ela fizera às
vigilante.
- Você não sabe o que é um louco?
- Quem é você?
- Meu nome é Zedka. Vá até sua cama. Depois, quando a
vigilante achar que você já está deitada , arraste-se pelo chão e
venha até aqui.
Veronika voltou ao seu lugar, e esperou que a vigilante
voltasse a se concentrar no livro. O que era um louco? Não tinha a
menor idéia, porque esta palavra era empregada de uma maneira
completamente anárquica: diziam, por exemplo, que certos
esportistas eram loucos por desejarem quebrar recordes. Ou que os
artistas eram loucos, pois viviam de uma maneira insegura,
inesperada, diferente de todos os “normais”. Por outro lado,
Veronika já vira muita gente andando nas ruas de Lubljana, mal
agasalhados durante o inverno, pregando o fim do mundo, empurrando
carrinhos de supermercado cheio de sacolas e trapos.
Estava sem sono. Segundo o médico, dormira quase uma
semana, tempo demais para quem estava acostumado com uma vida sem
grandes emoções, mas com horários rígidos de descanso. O que era
um louco? Talvez fosse melhor perguntar para um deles.
Veronika agachou-se, tirou a agulha do seu braço, e foi
até onde estava Zedka, tentando não dar importância ao estômago
que começava a dar voltas; não sabia se o enjôo era resultado do
seu coração enfraquecido, ou do esforço que estava fazendo.
- Não sei o que é um louco – sussurrou Veronika. – Mas
eu não sou. Sou uma suicida frustrada.
- Louco é quem vive em seu mundo. Como os
esquizofrênicos, os psicopatas, os maníacos. Ou seja, pessoas que
são diferentes das outras.
- Como você?
- Entretanto – continuou Zedka, fingindo não ter
escutado o comentário - você já deve ter falar de Einstein,
dizendo que não havia tempo nem espaço, mas uma união dos dois. Ou
Colombo, insistindo que do outro lado do mar não estava um abismo,
e sim um continente. Ou de Edmond Hillary, garantindo que um homem
podia chegar ao topo do Everest. Ou dos Beatles, que fizeram uma
música diferente e se vestiram como pessoas totalmente fora de da
época. Todas estas pessoas – e milhares de outras - também viviam
no seu mundo.
“Esta demente está dizendo coisas que fazem sentido”,
pensou Veronika, lembrando-se de histórias que sua mãe contava,
sobre santos que garantiam falar com Jesus ou a Virgem Maria.
Viviam num mundo a parte?
- Já vi uma mulher com um vestido vermelho decotado, os
olhos vidrados, andando pelas ruas de Lubljana – quando o
termômetro marcava 5o abaixo de zero. Achei que ela estava bêbada e
fui ajuda-la, mas ela recusou o meu casaco.
- Talvez, em seu mundo, fosse verão; e seu corpo
estivesse quente pelo desejo de alguém que a esperava. Mesmo que
esta outra pessoa existisse apenas em seu delírio, ela tem o
direito de viver e morrer como quiser, não acha?
Veronika não sabia o que dizer, mas as palavras daquela
louca faziam sentido. Quem sabe, não era ela a mulher que vira
seminua nas ruas de Lubljana?
- Vou lhe contar uma história – disse Zedka. - Um
poderoso feiticeiro, querendo destruir um reino, colocou uma poção
mágica no poço onde todos os seus habitantes bebiam. Quem tomasse
aquela água, ficaria louco.
“Na manhã seguinte, a população inteira bebeu, e todos
enlouqueceram, menos o rei – que tinha um poço só para si e sua
família, onde o feiticeiro não conseguira entrar. Preocupado, ele
tentou controlar a população, baixando uma série de medidas de
segurança e saúde pública: mas os policiais e inspetores haviam
bebido a água envenenada, e acharam um absurdo as decisões do rei,
resolvendo não respeita-las de jeito nenhum.
“Quando os habitantes daquele reino tomaram
conhecimento dos decretos, ficaram convencidos de que o soberano
enlouquecera, e agora estava escrevendo coisas sem sentido. Aos
gritos, foram até o castelo e exigiram que renunciasse.
“Desesperado, o rei prontificou-se a deixar o trono, mas
a rainha o impediu, dizendo: "vamos agora até a fonte, e beberemos
também. Assim, ficaremos iguais a eles.”
“E assim foi feito: o rei e a rainha beberam a agua da
loucura, e começaram imediatamente a dizer coisas sem sentido. Na
mesma hora, os seus súditos se arrependeram: agora que o rei
estava mostrando tanta sabedoria, por que não deixa-lo governando
o país?
“O pais continuou em calma, embora seus habitantes se
comportassem de maneira muito diferente de seus vizinhos. E o rei
pode governar até o final dos seus dias.”
Veronika riu.
- Você não parece louca - disse.
- Mas sou, embora esteja sendo curada, porque o meu
caso é simples: basta recolocar no organismo uma determinada
substância química. Entretanto, espero que esta substancia resolva
apenas o meu problema de depressão crônica; quero continuar louca,
vivendo minha vida da maneira que sonho, e não da maneira que os
outros desejam. Sabe o que existe lá fora, além dos muros de
Villete?
- Gente que bebeu do mesmo poço.
- Exatamente – disse Zedka. – Acham que são normais,
porque todos fazem a mesma coisa. Vou fingir que também bebi
daquela água.
- Pois eu bebi, e é este, justamente, o meu problema.
Nunca tive depressão, nem grandes alegrias, ou tristezas que
durassem muito. Meus problemas são iguais aos de todo mundo.
Zedka ficou algum tempo em silencio.
- Você vai morrer, nos disseram.
Veronika hesitou um instante: podia confiar naquela
estranha? Mas precisava arriscar.
- Só daqui há cinco, seis dias. Fico pensando se existe
um meio de morrer antes. Se você, ou alguém aqui dentro
conseguisse arranjar novos comprimidos, tenho certeza de que meu
coração não aguentaria desta vez. Entenda o quanto estou sofrendo
por ter que ficar esperando a morte, e me ajude.
Antes que Zedka pudesse responder, a enfermeira apareceu
com uma injeção.
- Posso aplica-la eu mesma - disse. - Mas, dependendo
de sua vontade, posso pedir aos guardas lá fora que me ajudem.
- Não gaste sua energia a toa – disse Zedka para
Veronika. – Poupe suas forças, se quiser conseguir o que me pede.
Veronika levantou-se, voltou a sua cama, e deixou que a
enfermeira cumprisse sua tarefa.
Foi seu primeiro dia normal num asilo de loucos. Saiu da
enfermaria, tomou café no grande refeitório onde homens e
mulheres comiam juntos. Reparou que, ao contrário do que mostravam
nos filmes – escândalos, gritarias, pessoas fazendo gestos
demenciais – tudo parecia envolto numa aura de silencio opressivo;
parecia que ninguém desejava repartir seu mundo interior com
estranhos.
Depois do café (razoável , não se podia culpar as
refeições pela péssima fama de Villete) – saíram todos para um
banho de sol. Na verdade, não havia sol algum – a temperatura
estava abaixo de zero, e o jardim encontrava-se coberto de neve.
- Não estou aqui para conservar minha vida, mas para
perde-la – disse Veronika a um dos enfermeiros.
- Mesmo assim, precisa sair para o banho de sol.
- Vocês é que são são loucos: não há sol!
- Mas há luz, e ela ajuda a acalmar os internos.
Infelizmente nosso inverno dura muito; se não fosse assim,
teríamos menos trabalho.
Era inútil discutir: saiu, caminhou um pouco, olhando
tudo a sua volta, e procurando disfarçadamente uma maneira de
fugir. O muro era alto, como exigiam os construtores de quartéis
antigos, mas as guaritas para sentinelas estavam desertas. O
jardim era contornado por prédios de aparência militar, que hoje
abrigavam enfermarias masculinas, femininas, os escritórios de
administração, e as dependências dos empregados. Ao final de uma
primeira e rápida inspeção, notou que o único lugar realmente
vigiado era o portão principal, onde todos que entravam e saiam
tinham suas identidades verificadas por dois guardas.
Tudo parecia estar voltando ao lugar no seu cérebro.
Para fazer um exercício de memória, começou a tentar lembrar-se de
pequenas coisas – como o lugar onde deixava a chave do seu quarto,
o disco que acabara de comprar, o mais recente pedido que lhe
fizeram na biblioteca.
- Sou Zedka - disse uma mulher, se aproximando.
Na noite anterior, não pudera ver seu rosto – estivera
agachada ao lado da cama todo o tempo da conversa. Ela devia ter
aproximadamente 35 anos, e parecia absolutamente normal.
- Espero que a injeção não tenha causado muito
problema. Com o tempo o organismo se acostuma, e os calmantes
perdem o efeito.
- Estou bem.
- Aquela nossa conversa ontem a noite...o que você me
pediu, lembra?
- Perfeitamente.
Zedka pegou-a por um braço, e começaram a caminhar
juntas, por entre as muitas arvores sem folhas do pátio. Além dos
muros, podia-se ver as montanhas desaparecendo nas nuvens.
- Está frio, mas é uma bonita manhã - disse Zedka. - É
curioso, mas minha depressão nunca aparecia em dias como este,
nublado, cinzento, frio. Quando o tempo estava assim, eu sentia
que a natureza estava de acordo comigo, mostrava minha alma. Por
outro lado, quando aparecia o sol, as crianças começavam a brincar
nas ruas, e todos estavam contentes com a beleza do dia, eu me
sentia péssima. Como se fosse injusto que toda aquela exuberância
se mostrasse, e eu não pudesse participar.
Com delicadeza, Veronika soltou-se do braço da mulher.
Não gostava de contatos físicos.
- Você interrompeu sua frase. Você estava falando do
meu pedido.
- Tem um grupo aqui dentro. São homens e mulheres que já
podiam ter alta, estar em casa - mas não querem sair. As razões
para isto são muitas: Villete não é tão mal como dizem, embora
esteja longe de ser um hotel de cinco estrelas. Aqui dentro, todos
podem dizer o que pensam, fazer o que desejam, sem ouvir qualquer
tipo de crítica: afinal de contas, estão em um hospício. Então,
na hora das inspeções do governo, estes homens e mulheres
comportam-se como se estivessem num grau de insanidade perigosa,
já que alguns deles estão aqui às custas do Estado. Os médicos
sabem disso, mas parece que existe uma ordem dos donos, deixando
que esta situação permaneça como está – já que existem mais vagas
do que doentes.
- Eles podem arranjar os comprimidos?
- Procure entrar em contacto com eles; chamam seu grupo
de A Fraternidade.
Zedka apontou para uma mulher com cabelos brancos, que
conversava animadamente com outras mulheres mais jovens.
- Seu nome é Mari, e ela é da Fraternidade. Pergunte a
ela.
Veronika começou a andar na direção de Mari, mas Zedka a
interrompeu:
- Agora não: ela está se divertindo. Não irá interromper
o que lhe dá prazer, só para ser simpática com uma estranha.Se ela
reagir mal, você nunca mais você terá uma chance de aproximar-se.
Os loucos sempre acreditam na primeira impressão.
Varonika riu com a entonação que Zedka dera para a
palavra loucos. Mas ficou inquieta, porque aquilo tudo estava
parecendo normal, bom demais. Depois de tantos anos indo do
trabalho para o bar, do bar para a cama de um namorado, da cama
para o quarto, do quarto para a casa da mãe – agora ela estava
vivendo uma experiência com a qual nunca sonhara: o asilo, a
loucura, o hospício. Onde as pessoas não sentiam vergonha de
confessar-se loucas. Onde ninguém interrompia o que gostava, só
para ser simpático com os outros.
Começou a duvidar se Zedka estava falando sério, ou se
era uma maneira que os doentes mentais adotam para fingir que
vivem num mundo melhor que os outros. Mas que importância tinha
isso? Estava vivendo algo interessante, diferente, jamais
esperado: imagine um lugar onde as pessoas se fingem de loucas,
para fazer exatamente o que querem?
Neste exato momento, o coração de Veronika deu uma
pontada. A conversa com o médico voltou imediatamente ao seu
pensamento, e ela se assustou.
- Quero andar sozinha - disse para Zedka. Afinal de
contas, era também uma louca, e não precisava ficar querendo
agradar ninguém.
A mulher se afastou, e Veronika ficou contemplando as
montanhas além dos muros de Villete. Uma leve vontade de viver
pareceu surgir, mas Veronika a afastou com determinação.
“Preciso arranjar logo os comprimidos”.
Refletiu sobre sua situação ali; estava longe de ser a
ideal. Mesmo que lhe dessem a possibilidade de viver todas as
loucuras que tinha vontade, não saberia o que fazer.
Nunca tivera nenhuma loucura.
Depois de algum tempo no jardim, foram até o refeitório
e almoçaram. Em seguida, os enfermeiros conduziram homens e
mulheres até uma gigantesca sala de estar, com muitos ambientes –
mesas, cadeiras, sofás, um piano, uma televisão, e amplas janelas
de onde se podia ver o céu cinzento e as nuvens baixas. Nenhuma
delas tinha grades, porque a sala dava para o jardim. As portas
estavam fechadas por causa do frio, mas bastava girar a maçaneta,
e poderia sair para caminhar de novo entre as árvores.
A maior parte das pessoas foi para a frente da
televisão. Outros olhavam o vazio, alguns conversavam em voz baixa
consigo mesmo – mas quem não fizera isso em algum momento de sua
vida? Veronika reparou que a mulher mais velha, Mari, estava agora
junto a um grupo maior, num dos cantos da gigantesca sala. Alguns
dos internos passeavam ali perto, e Veronika tentou juntou-se a
eles: queria escutar o que estavam dizendo.
Procurou disfarçar ao máximo suas intenções. Mas quando
chegou perto, eles se calaram e – todos juntos – olharam para
ela.
- O que você quer? - disse um senhor idoso, que
parecia ser o líder da Fraternidade (se é que tal grupo realmente
existia, e Zedka não era mais louca do que aparentava).
- Nada, Só estava passando.
Todos se entreolharam, e fizeram alguns gestos
demenciais com a cabeça. Um comentou com o outro: “ela só estava
passando!” Outro repetiu, em voz mais alta, e – em pouco tempo –
todos começaram a gritar a mesma frase.
Veronika não sabia o que fazer, e ficou paralisada de
medo. Um enfermeiro, forte e mal encarado, veio saber o que
estava acontecendo.
- Nada - respondeu um do grupo. - Ela só estava
passando. Está parada aí, mas vai continuar a passar!
O grupo inteiro caiu na gargalhada. Veronika assumiu um
ar irônico, sorriu, deu meia-volta e afastou-se, para que ninguém
notasse que seus olhos se enchiam de lágrimas. Saiu direto para o
jardim, sem agasalho. Um enfermeiro tentou convence-la a voltar,
mas logo apareceu outro, que sussurrou algo – e os dois a deixaram
em paz, no frio. Não adiantava cuidar da saúde de uma pessoa
condenada.
Estava confusa, tensa, irritada consigo mesma. Jamais se
deixara levar por provocações; aprendera desde cedo que era
preciso manter o ar frio, distante, sempre que uma nova situação
que se apresentasse. Aqueles loucos, entretanto, tinham conseguido
fazer com que tivesse vergonha, medo, raiva, vontade de mata-los,
de feri-los com palavras que não ousara dizer.
Talvez os comprimidos – ou o tratamento para tira-la da
coma – a tivessem transformado numa mulher frágil, incapaz de
reagir por si mesma. Já enfrentara situações muito piores na sua
adolescência, e, pela primeira vez, não conseguira controlar o
choro! Precisava voltar a ser quem era, saber reagir com ironia,
fingir que as ofensas nunca a atingiam, pois era superior a todos.
Quem, daquele grupo, tivera coragem de desejar a morte? Quais
daquelas pessoas podia querer lhe ensinar sobre a vida, se estavam
todos escondidos atrás dos muros de Villete? Nunca iria depender
da ajuda deles para nada – mesmo que tivesse que esperar cinco ou
seis dias para morrer.
“Um dia já passou. Sobram apenas quatro ou cinco”.
Andou um pouco, deixando que o frio abaixo de zero
entrasse por seu corpo e acalmasse o sangue que corria depressa, o
coração que batia rápido demais.
“Muito bem, aqui estou eu, com as horas literalmente
contadas, e dando importância para os comentários de gente que
nunca vi, e que em breve nunca mais verei. E eu sofro, me irrito,
quero atacar e defender. Para que perder tempo com isso? “
A realidade, porém, é que estava gastando o pouco tempo
que lhe sobrava, para lutar por seu espaço num ambiente estranho,
onde era preciso resistir, ou os outros impunham suas regras.
“Não é possível. Eu nunca fui assim. Eu nunca lutei por
bobagens. ”
Parou no meio do jardim gelado. Justamente porque achava
que tudo era bobagem, ela terminara aceitando o que a vida lhe
tinha naturalmente imposto. Na adolescência, achava que era cedo
demais para escolher; agora, na juventude, se convencera que era
tarde demais para mudar.
E onde gastara toda a sua energia, até o momento?
Tentando fazer com que tudo em sua vida continuasse o mesmo.
Sacrificara muitos de seus desejos, para que seus pais a
continuassem amando como a amavam quando criança, embora sabendo
que o verdadeiro amor se modifica com o tempo, e cresce, e
descobre novas maneiras de se expressar. Certo dia, quando
escutara a mãe - aos prantos – lhe dizer que o casamento havia
acabado, Veronika fora em busca do pai, chorara, ameaçara, e
finalmente arrancara a promessa de que ele não sairia de casa –
sem imaginar o preço alto que os dois deviam estar pagando por
causa disso.
Quando resolveu arranjar um emprego, deixou de lado uma
proposta tentadora numa companhia que acabava de se instalar em
seu recem-criado país, para aceitar o trabalho na biblioteca
pública, onde o dinheiro era pouco, mas era seguro. Ia trabalhar
todos os dias, no mesmo horário, sempre deixando claro aos seus
chefes de que não a vissem como uma ameaça, ela estava
satisfeita, não pretendia lutar para crescer: tudo que desejava
era o salário no final do mês.
Alugou o quarto no convento porque as freiras exigiam
que todas as inquilinas voltassem em determinada hora, e depois
passavam a chave na porta: quem ficasse do lado de fora, tinha
que dormir na rua. Ela sempre podia dar uma desculpa verdadeira
aos namorados, para não ser obrigada a passar a noite em hotéis ou
leitos estranhos.
Quando sonhava em casar, imaginava-se sempre num pequeno
chalé fora de Lubljana, com um homem que fosse diferente do seu
pai, que ganhasse apenas o suficiente para sustentar a família,
que ficasse contente com o fato de que os dois estavam juntos numa
casa com a lareira acesa, olhando as montanhas cobertas de neve.
Educara a si mesmo para dar aos homens uma quantia
exata de prazer – nem mais, nem menos, apenas o necessário. Não
sentia raiva de ninguém, porque isso significava ter que reagir,
combater um inimigo – e depois ter que aguentar consequências
imprevisíveis, como vingança.
Quando conseguiu quase tudo o que desejava na vida,
chegou a conclusão que a sua existência não tinha sentido, porque
todos os dias eram iguais. E decidira morrer.
Veronika tornou a entrar, e foi direto ao grupo reunido
em um dos cantos da sala. As pessoas conversavam, animadas, mas
silenciaram assim que ela chegou.
Foi direto até o homem mais idoso, que parecia ser o
chefe. Antes que alguém pudesse dete-la, deu-lhe um sonoro tapa no
rosto.
- Vai reagir? – perguntou alto, para que todos na sala
ouvissem. – Vai fazer alguma coisa?
- Não. - O homem passou a mão no rosto. Um pequeno
filete de sangue escorreu do seu nariz. – Você não vai nos
perturbar por muito tempo.
Ela deixou a sala de estar e caminhou para a sua
enfermaria, com ar triunfante. Tinha feito algo que jamais fizera
em sua vida.
Três dias se passaram deste o incidente com o grupo que
Zedka chamava de “A Fraternidade”. Arrependera-se do tapa - não
por medo da reação do homem, mas porque fizera algo diferente. Em
breve, podia terminar convencida de que a vida valia a pena, um
sofrimento inútil – já que teria que partir deste mundo de
qualquer maneira.
Sua única saída foi afastar-se de tudo e de todos,
tentar de todas as maneiras ser como era antes, obedecer as
ordens e regulamentos de Villete. Adaptou-se a rotina imposta pela
casa de saúde: acordar cedo, café da manhã, passeio no jardim,
almoço, sala de estar, novo passeio no jardim, ceia, televisão, e
cama.
Antes de dormir, uma enfermeira sempre aparecia com
medicamentos. Todas as outras mulheres tomavam comprimidos, ela
era a única a quem aplicavam uma injeção. Nunca reclamou; apenas
quis saber porque lhe davam tanto calmante, já que nunca tivera
problemas para dormir. Explicaram que a injeção não era um
sonífero, mas um remédio para o seu coração.
E assim, obedecendo a rotina, os dias do hospício
começaram a ficar iguais. Quando ficam iguais, passam mais rápido:
mais dois ou três dias, e não seria necessário escovar os dentes
ou pentear o cabelo. Veronika percebia o seu coração enfraquecendo
rapidamente: perdia o fôlego com facilidade, sentia dores no
peito, não tinha apetite, e ficava tonta cada vez que fazia
qualquer esforço.
Depois do incidente com a Fraternidade, chegara a pensar
algumas vezes: “se eu tivesse uma escolha, se tivesse
compreendido antes que meus dias eram iguais porque eu assim os
desejava, talvez...”
Mas a resposta era sempre a mesma: “não há talvez,
porque não há escolha”. E a paz interior voltava, porque tudo
estava determinado.
Neste período, desenvolveu uma relação (não uma amizade,
porque amizade exige uma longa convivência, e isso seria
impossível) com Zedka. Jogavam baralho – o que ajuda o tempo a
passar mais rápido – e as vezes caminhavam juntas, em silêncio,
pelo jardim.
Na manhã daquele dia, logo depois do café, todos saíram
para o “banho de sol” – conforme exigia o regulamento. Um
enfermeiro, porém, pediu que Zedka voltasse a enfermaria, pois era
o dia do “tratamento”.
Veronika estava tomando café com ela, e escutou o
comentário.
- O que é “tratamento”?
- É um processo antigo, da década dos sessenta, mas os
médicos acham que pode acelerar a recuperação. Você quer ver?
- Você disse que tinha depressão. Não basta tomar o
remédio para repor a tal substancia que falta?
- Você quer ver? – insistiu Zedka.
Ia sair da rotina, pensou Veronika. Ia descobrir novas
coisas, quando não precisava aprender mais nada – apenas ter
paciência. Mas sua curiosidade foi mais forte, e ela fez que sim
com a cabeça.
- Isto não é uma exibição - reclamou o enfermeiro.
- Ela vai morrer. E não viveu nada. Deixa que venha
conosco.
Veronika assistiu a mulher ser amarrada na cama, sempre
com um sorriso nos lábios.
- Conta o que está acontecendo - disse Zedka para o
enfermeiro. – Ou ela vai ficar assustada.
Ele virou-se e mostrou uma injeção. Parecia feliz de ser
tratado como um médico, que explica aos estagiários os
procedimentos corretos e os tratamentos adequados.
- Nesta seringa, está uma dose de insulina – disse,
dando as suas palavras um tom grave e técnico. – É usada por
diabéticos para combater as altas doses de açúcar. Entretanto,
quando a dose é muito mais elevada que a habitual, a queda na taxa
de açúcar provoca o estado de coma.
Ele bateu levemente na agulha, retirou o ar, e aplicou-o
na veia do pé direito de Zedka.
- É isso que vai acontecer agora. Ela vai entrar num
coma induzido. Não se assuste se seus olhos ficarem vidrados, e
não espere que a reconheça enquanto estiver sob o efeito da
medicação.
- Isso é horroroso, desumano. As pessoas lutam para
sair, e não para entrar em coma.
- As pessoas lutam para viver, e não para cometerem
suicídio – respondeu o enfermeiro, mas Veronika ignorou a
provocação. – E o estado de coma deixa o organismo em repouso;
suas funções são drásticamente reduzidas, a tensão existente
desaparece.
Enquanto falava, injetava o líquido, e os olhos de
Zedka iam perdendo o brilho.
- Fique tranquila – dizia Veronika para ela. – Você é
absolutamente normal, a história que você me contou sobre o rei...
- Não perca seu tempo. Ela já não pode mais ouvi-la.
A mulher deitada na cama, que minutos antes parecia
lúcida e cheia de vida, agora tinha os olhos fixos num ponto
qualquer, e um liquido espumante saindo de sua boca.
- O que você fez? - gritou para o enfermeiro.
- Meu dever.
Veronika começou a chamar por Zedka, a gritar, a ameaçar
com a polícia, os jornais, os direitos humanos.
- Fique calma. Mesmo estando num sanatório, é preciso
respeitar algumas regras.
Ela viu que o homem estava falando sério, e teve medo.
Mas como não tinha mais nada a perder, continuou gritando.
De onde estava, Zedka podia ver a enfermaria com todos
os leitos vazios – exceto um, onde repousava o seu corpo
amarrado, com uma menina olhando espantada para ele. A menina não
sabia que aquela pessoa na cama ainda tinha suas funções
biológicas funcionando perfeitamente, mas sua alma estava no ar,
quase tocando o teto, experimentando uma profunda paz.
Zedka estava fazendo uma viagem astral – algo que tinha
sido uma surpresa durante o primeiro choque de insulina. Não tinha
comentado com ninguém; estava ali apenas para curar uma depressão,
e pretendia deixar aquele lugar para sempre, assim que suas
condições permitissem.Se começasse a comentar que havia saído do
corpo, pensariam que estava mais louca do que quando entrara para
Villete. Entretanto, assim que voltara ao corpo, começara a ler
sobre aqueles dois temas: o choque de insulina, e a estranha
sensação de flutuar no espaço.
Não havia muita coisa sobre o tratamento: tinha sido
aplicado pela primeira vez por volta de 1930, mas fora
completamente banido de hospitais psiquiátricos, pela
possibilidade der causar danos irreversíveis no paciente. Uma vez,
durante uma sessão de choque, visitara em corpo astral o
escritório do Dr. Igor, justamente no momento em que ele discutia
o tema com alguns dos donos do asilo. “É um crime!” dizia ele.
“Mas é mais barato e mais rápido!” respondera um dos acionistas.
“Além disso, quem se interessa por direitos de louco? Ninguém vai
reclamar nada!”
Mesmo assim, alguns médicos ainda o consideravam como
uma forma rápida de tratar a depressão. Zedka procurara – e pedira
emprestado – tudo quanto era tipo de texto que tratasse do choque
insulínico, principalmente o relato de pacientes que já haviam
passado por aquilo. A história era sempre a mesma: horrores e mais
horrores, sem que nenhum deles tivesse experimentado qualquer
coisa parecida com que ela vivia neste momento.
Concluiu – com toda razão – que não havia qualquer
relação entre a insulina e a sensação de que sua consciência saía
do corpo. Muito pelo contrário, a tendência daquele tipo de
tratamento era diminuir a capacidade mental do paciente.
Começou a pesquisar sobre a existência da alma, passou
por alguns livros de ocultismo, até que um dia terminou
encontrando uma vasta literatura que descrevia exatamente o que
ela estava experimentando: chamava-se “viagem astral”, e muitas
pessoas já haviam passado por isso. Algumas resolveram descrever o
que haviam sentido, e outras chegaram mesmo a desenvolver técnicas
[ara provocar a saída do corpo. Zedka agora conhecia estas
técnicas de cor, e as utilizava todas as noites, para ir onde
queria.
Os relatos das experiências e visões variaram, mas
todos tinham alguns pontos em comum; o estranho e irritante ruído
que precede a separação do corpo e do espírito, seguido do choque,
de uma rápida perda de consciência, e logo a paz e a alegria de
estar flutuando no ar, presa por um cordão prateado ao corpo – um
cordão que podia se esticar indefinidamente, embora corressem
lendas ( nos livros, é claro) de que a pessoa morreria se deixasse
o tal fio de prata arrebentar.
Sua experiência, porém, mostrara que podia ir tão longe
quanto quisesse, e o cordão não se rompia nunca. Mas, de uma
maneira geral, os livros tinham sido muito úteis para ensina-la a
aproveitar cada vez mais a viagem astral. Aprendera, por exemplo,
que quando quisesse mudar de um lugar para o outro, tinha que
desejar projetar-se no espaço, mentalizando onde queria chegar. Ao
invés de fazer um percurso como os aviões – que saem de um lugar e
percorrem determinada distancia até chegar a outro ponto – a
viagem astral era feita por túneis misteriosos. Mentalizava-se um
lugar, entrava-se no tal túnel a uma velocidade espantosa, e local
desejado aparecia.
Fora também através dos livros que perdera o medo das
criaturas que habitavam o espaço. Hoje não havia ninguém na
enfermaria, mas a primeira vez que saíra do seu corpo encontrara
muita gente olhando, divertindo-se com sua cara de surpresa.
Sua primeira reação fora pensar que eram mortos,
fantasmas habitavam o local. Depois, com ajuda dos livros e da
própria experiência, deu-se conta que, embora alguns espíritos
desencarnados vagassem por ali, havia entre eles muita gente tão
viva quanto ela – que desenvolvera a técnica de sair do corpo, ou
que não tinha consciência do que estava acontecendo, porque – em
algum lugar do mundo – dormiam profundamente, enquanto seus
espíritos vagavam livres pelo mundo.
Hoje – por ser sua última viagem astral com insulina,
pois tinha acabado de visitar o escritório do Dr. Igor, e sabia
que ele estava prestes a lhe dar alta – ela decidira ficar
passeando por Villete. Do momento em que cruzasse a porta de
saída, nunca mais voltaria ali, nem mesmo em espírito, e queria
despedir-se agora.
Despedir-se. Esta era a parte mais difícil: uma vez num
asilo, a pessoa acostuma-se com a liberdade que existe no mundo da
loucura, e termina ficando viciada. Já não tem mais que assumir
responsabilidades, lutar pelo pão de cada dia, cuidar de coisas
que são repetitivas e aborrecidas; pode ficar horas olhando um
quadro ou fazendo os desenhos mais absurdos possíveis. Tudo é
tolerável porque – afinal de contas – a pessoa é doente mental.
Como ela própria tivera ocasião de experimentar, a maior parte dos
internos apresenta uma grande melhora assim que pisa num hospício:
já não precisa ficar escondendo seus sintomas, e o ambiente
“familiar” os ajuda a aceitar suas próprias neuroses e psicoses.
No início, Zedka ficara fascinada por Villete, e chegou
a cogitar, quando estivesse curada, em participar da Fraternidade.
Mas entendeu que, com alguma sabedoria, podia continuar fazendo lá
fora tudo o que gostaria de fazer, enquanto cuidava dos desafios
da vida diária. Bastava manter, como dissera alguém, a loucura
controlada. Chorar, preocupar-se, ficar irritada como qualquer ser
humano normal, sem nunca esquecer que, lá em cima, seu espírito
está rindo de todas as situações difíceis.
Em breve estaria de volta a sua casa, aos filhos, ao
marido; e esta parte da vida que também tem seus encantos.
Certamente teria dificuldade em encontrar trabalho – afinal, numa
cidade pequena como Lubljana as histórias correm com rapidez, e
sua internação em Villete já era do conhecimento de muita gente.
Mas o seu marido ganhava para o suficiente sustentar a família, e
ela podia aproveitar o tempo vago para continuar a fazer suas
viagens astrais, – sem a perigosa influência da insulina.
Só uma coisa não queria jamais experimentar de novo: o
motivo que a trouxera para Villete.
Depressão.
O médicos diziam que uma substância recém-descoberta, a
serotonina, era a responsável pelo estado de espírito do ser
humano. A falta de serotonina interferia na capacidade de
concentrar-se no trabalho, dormir, comer, e desfrutar dos momentos
agradáveis da vida. Quando esta substância estava completamente
ausente, a pessoa sentia desesperança, pessimismo, sensação de
inutilidade, cansaço exagerado, ansiedade,dificuldades para tomar
decisões, e terminava mergulhando numa tristeza permanente, que a
conduzia à uma apatia completa, ou ao suicídio.
Outros médicos, mais conservadores, alegavam que
mudanças drásticas na vida de alguém– como troca de país, perda de
um ente querido, divórcio, aumento de exigências no trabalho ou na
família – eram responsáveis pela depressão. Alguns estudos
modernos, baseados no número de internações no inverno e no verão,
apontavam a falta de luz solar como um dos elementos causadores da
depressão.
No caso de Zedka, porém, as razões eram mais simples do
que todos supunham: um homem escondido no seu passado. Ou melhor:
a fantasia que criara em torno de um homem que conhecera há muito
tempo atrás.
Que coisa boba. Depressão, loucura por um homem que nem
sequer sabia mais onde morava, pelo qual se apaixonara
perdidamente em sua juventude – já que, como todas as outras moças
de sua idade, Zedka era uma pessoa absolutamente normal, e
precisava passar pela experiência do Amor Impossível.
Só que, ao contrário de suas amigas, que apenas sonhavam
com o Amor Impossível, Zedka resolvera ir mais longe: tentar
conquista-lo. Ele morava do outro lado do oceano, ela vendera tudo
para ir ao seu encontro. Ele era casado, ela aceitou o papel de
amante, fazendo planos secretos para um dia conquista-lo como
marido. Ele não tinha tempo nem para si mesmo, mas ela resignou-se
a passar dias e noites no quarto do hotel barato, esperando suas
raras chamadas telefônicas.
Apesar de estar disposta a suportar tudo, em nome do
amor, a relação não dera certo. Ele nunca dissera isso
diretamente, mas um dia Zedka entendeu que já não era bem-vinda, e
voltara para a Eslovénia.
Passou alguns meses alimentando-se mal, recordando cada
instante que estiveram juntos, revendo milhares de vezes os
momentos de alegria e prazer na cama, tentando descobrir alguma
pista que lhe permitisse acreditar no futuro daquela relação. Seus
amigos ficaram preocupados, mas algo no coração de Zedka dizia que
aquilo era passageiro: o processo de crescimento de uma pessoa
exige certo preço, que ela estava pagando sem reclamar. E assim
foi: certa manhã acordou com uma imensa vontade de viver,
alimentou-se há tempo não fazia, e saiu para arranjar um emprego.
Conseguiu não apenas o emprego, mas as atenções de um
jovem bonito, inteligente, cortejado por muitas mulheres. Um ano
depois, estava casada com ele.
Despertou a inveja e o aplauso das amigas. Os dois foram
morar numa casa confortável, com o quintal dando para o rio que
cruza Lubljana. Tiveram filhos, e viajavam para a Áustria ou para
a Itália durante o verão.
Quando a Eslovénia resolveu separar-se da Yugoslávia,
ele fora convocado para o exército. Zedka era sérvia – ou seja, “o
inimigo”- e sua vida ameaçou entrar em colapso. Nos dez dias de
tensão que se seguiram, com as tropas prontas para enfrentar-se e ninguém sabendo direito qual o resultado da declaração de
independência, e do sangue que precisava ser derramado por causa
dela - Zedka deu-se conta do seu amor. Passava o tempo inteiro
rezando para um Deus que até então lhe parecera distante, mas que
agora era a sua única saída: prometeu aos santos e anjos qualquer
coisa para ter seu marido de volta.
E assim foi. Ele retornou, os filhos puderam ir a
escolas que ensinavam o idioma esloveno, e a ameaça de guerra
moveu-se para a vizinha república da Croácia.
Três anos se passaram. A guerra da Yugoslávia com a
Croácia moveu-se para a Bósnia, e começaram a aparecer denúncias
de massacres cometidos pelos sérvios. Zedka achava aquilo injusto
– julgar criminosa toda uma nação, por causa dos desvarios de
alguns alucinados. Sua vida passou a ter um sentido que nunca
esperara: defendeu com orgulho e bravura o seu povo - escrevendo
em jornais, aparecendo na televisão, organizando conferencias.
Nada daquilo dera resultado, e até hoje os estrangeiros ainda
pensavam que todos os sérvios eram responsáveis pelas
atrocidades, mas Zedka sabia que tinha cumprido seu dever, e não
abandonara seus irmãos numa hora difícil. Para isso, contara com o
apoio do marido esloveno, dos filhos, e das pessoas que não eram
manipuladas pelas máquinas de propaganda de ambos os lados.
Uma tarde, passou diante da estátua de Preseren, o
grande poeta esloveno, e começou a pensar sobre sua vida. Aos 34
anos, ele entrara certa vez numa igreja e vira a uma moça
adolescente, Julia Primic, pela qual ficara perdidamente
apaixonado. Como os antigos menestréis, começou a lhe escrever
poemas, na esperança de casar-se com ela.
Acontece que Julia era filha de uma família da alta
burguesia, e – afora aquela visão fortuita dentro da igreja –
Preseren nunca mais conseguiu chegar perto dela. Mas aquele
encontro inspirou seus melhores versos, e criou a lenda em torno
do seu nome. Na pequena praça central de Lubljana, a estátua do
poeta mantém os olhos fixos em uma direção: quem seguir seu olhar,
descobrirá – do outro lado da praça – um rosto de mulher esculpido
na parede de uma das casas. Era ali que morava Julia; Preseren,
mesmo depois de morto, contempla para a eternidade o seu amor
impossível.
E se ele tivesse lutado mais?
O coração de Zedka disparou – talvez fosse o
pressentimento de algo ruim, um acidente com seus filhos. Voltou
correndo para casa: eles estavam assistindo televisão e comendo
pipocas.
A tristeza, porém, não passou. Zedka deitou-se, dormiu
quase 12 horas, e – quando acordou – não teve vontade de levantarse. A história de Preseren trouxera de volta a imagem daquele seu
primeiro amante, de cujo destino nunca mais tivera noticias.
E Zedka se perguntava: eu insisti o suficiente? Deveria
ter aceito o papel da amante, ao invés de querer que as coisas
andassem segundo minhas próprias expectativas? Lutei por meu
primeiro amor com a mesma garra com que lutei por meu povo?
Zedka convenceu-se que sim, mas a tristeza não passava.
O que antes lhe parecia o paraíso – a casa perto do rio, o marido
a quem amava, os filhos comendo pipoca diante da televisão –
começou a transformar-se num inferno.
Hoje, depois de muitas viagens astrais e muitos
encontros com espíritos desenvolvidos, Zedka sabia que tudo aquilo
era bobagem. Usara o seu Amor Impossível como uma desculpa, um
pretexto para romper os laços com a vida que levava, e que estava
longe de ser aquilo que verdadeiramente esperava de si mesma.
Mas, doze meses atrás, a situação era outra: ela
começou a procurar freneticamente o homem distante, gastara
fortunas com chamadas internacionais, mas ele já não morava na
mesma cidade, e foi impossível localiza-lo.. Mandou cartas por
correio expresso, que acabavam sendo devolvidas. Ligou para todas
as amigas e amigos que o conheciam, e ninguém tinha a menor idéia
do que lhe acontecera.
Seu marido não sabia de nada, e isto a levava a loucura
– porque ele devia pelo menos suspeitar de algo, fazer uma cena,
queixar-se, ameaçar deixa-la no meio da rua. Passou a ter certeza
de que as telefonistas internacionais, os correios, as amigas
tinham sido subornadas por ele – que fingia indiferença. Vendeu as
jóias que ganhara de casamento e comprou uma passagem para o outro
lado do oceano, até que alguém a convenceu que as Américas eram
muito grandes, e não adiantava ir sem ter certeza de onde chegar.
Certa tarde ela deitou-se, sofrendo por amor como nunca
sofrera antes - nem mesmo quando tivera que voltar para o
aborrecido cotidiano de Lubljana. Passou aquela noite, e todo o
dia seguinte no quarto. E mais outro. No terceiro, seu marido
chamou um médico – como era bondoso! Quanta preocupação por ela!
Será que este homem não entendia que Zedka estava tentando me
encontrar com outro, cometer adultério, trocar sua vida de mulher
respeitada pela de uma simples amante escondida, deixar Lubljana,
sua casa, seus filhos, para sempre?
O médico chegou, ela teve um ataque nervoso, fechou a
porta com a chave – e só tornou a abri-la quando ele foi embora.
Uma semana depois, não tinha vontade nem de ir no banheiro, e
passou a fazer suas necessidades fisiológicas na cama. Já não
pensava mais, a cabeça estava completamente tomada pelos
fragmentos de memória do homem que – estava convencida – também a
buscava sem conseguir encontra-la.
O marido – irritantemente generoso – trocava os lençóis,
passava a mão na sua cabeça, dizia que tudo ia terminar bem. Os
filhos não entravam no quarto desde que ela esbofeteara um deles
sem nenhum motivo - e depois ajoelhara-se, beijara seus pés
implorando desculpas, rasgando camisola em pedaços para mostrar
seu desespero e arrependimento.
Depois de outra semana – onde cuspira a comida que lhe
era oferecida, entrara e saíra desta realidade várias vezes,
passara noites inteiras em claro e dias inteiros dormindo, dois
homens entraram no seu quarto sem bater . Um deles segurou-a,
outro aplicou uma injeção, e ela acordara em Villete.
“Depressão”, ela escutara o médico dizer ao seu marido.
“As vezes provocada pelos motivos mais banais. Falta um elemento
químico, a serotonina, em seu organismo”.
Do teto da enfermaria, Zedka viu o enfermeiro chegar com
uma seringa na mão. A garota continuava ali, parada, tentando
conversar com seu corpo, desesperada com seu olhar vazio. Por
alguns momentos, Zedka considerou a possibilidade de contar para
ela tudo o que estava acontecendo, mas depois mudou de idéia; as
pessoas nunca aprendem nada que lhes é contado, precisam descobrir
por si mesmas.
O enfermeiro colocou a agulha no seu braço, e injetou
glicose. Como se tivesse sido puxado por um enorme braço, seu
espírito saiu do teto da enfermaria, passou em alta velocidade por
um túnel negro, e retornou ao corpo.
- Olá, Veronika.
A menina tinha um ar apavorado.
- Você está bem?
- Estou. Felizmente consegui escapar deste perigoso
tratamento, mas isso não irá se repetir mais.
- Como você sabe? Aqui, não respeitam ninguém.
Zedka sabia porque fora, em corpo astral, até o
escritório do Dr. Igor.
- Eu sei, mas não tenho como explicar. Lembra-se da
primeira pergunta que lhe fiz?
- “O que é a loucura?”
- Exatamente. Desta vez vou lhe responder sem fábulas: a
loucura é a incapacidade de comunicar suas idéias. Como se você
estivesse num país estrangeiro – vendo tudo, entendendo o que se
passa a sua volta, mas incapaz de se explicar e de ser ajudada,
porque não entende a língua que falam ali.
- Todos nós já sentimos isso.
- Todos nós, de um jeito ou de outro, somos loucos.
Do lado de fora da janela gradeada, o céu estava coberto
de estrelas, com uma lua em quarto crescente subindo por detrás
das montanhas. Os poetas gostavam da lua cheia, escreviam milhares
de versos sobre ela, mas Veronika era apaixonada por aquela meialua, porque ainda havia espaço para aumentar, expandir-se,
preencher de luz toda a sua superfície, antes da inevitável
decadência.
Teve vontade de ir até o piano na sala de estar, e
celebrar aquela noite com uma linda sonata que aprendera no
colégio; olhando o céu, tinha uma indescritível sensação de bemestar, como se o infinito do Universo mostrasse também sua própria
eternidade. Mas estava separada de seu desejo por uma porta de
aço, e uma mulher que nunca terminava de ler o seu livro. Além do
mais, ninguém tocava piano àquela hora da noite – terminaria
acordando a vizinhança inteira.
Veronika riu. A “vizinhança” eram as enfermarias
repletas de loucos, estes loucos, por sua vez, repletos de
remédios para dormir.
A sensação de bem-estar, entretanto, continuava.
Levantou-se o foi até o leito de Zedka, mas ela estava dormindo
profundamente, talvez para recuperar-se da horrível experiência
pela qual passara.
- Volte para a cama – disse a enfermeira. – Meninas boas
estão sonhando com os anjinhos ou os namorados.
- Não me trate como criança. Não sou uma louca mansa,
que tem medo de tudo. Sou furiosa, tenho ataques histéricos, não
respeito nem minha vida, nem a vida dos outros. Hoje, então, estou
atacada. Olhei a lua, e quero conversar com alguém.
A enfermeira olhou-a, surpresa com a reação
- Você tem medo de mim? – insistiu Veronika. – Faltam um
ou dois dias para a minha morte, o que tenho a perder?
- Por que você não vai dar uma passeio, mocinha, e me
deixa terminar o livro?
- Porque existe uma prisão, e uma carcereira, que finge
ler um livro, apenas para mostrar aos outros que é uma mulher
inteligente. Na verdade, porém, ela está atenta a cada movimento
dentro da enfermaria, e guarda as chaves da porta como se fosse um
tesouro. O regulamento deve dizer isso, e ela obedece, porque
assim pode mostrar a autoridade que não tem em sua vida diária,
com seu marido e filhos.
Veronika tremia, sem entender direito porque.
- Chaves? – perguntou a enfermeira. – A porta está
sempre aberta. Imagine se vou ficar aqui dentro, trancada com um
bando de doentes mentais!
“Como a porta está aberta? Há alguns dias eu quis sair
daqui, e esta mulher foi até o banheiro me vigiar. O que ela está
dizendo? “
- Não me leve a sério – continuou a enfermeira. – O fato
é que não precisamos de muito controle, por causa dos comprimidos
para dormir. Você está tremendo de frio?
- Não sei. Acho que deve ser coisa do meu coração.
- Se quiser, vá dar o seu passeio.
- Na verdade, o que eu gostaria mesmo era tocar piano.
- A sala de estar é isolada, e seu piano não perturbaria
ninguém. Faça o que tiver vontade.
O tremor de Veronika transformou-se em soluços baixos,
tímidos, contidos. Ela ajoelhou-se, e colocou a cabeça no colo da
mulher, chorando sem parar.
A enfermeira deixou o livro, acariciou seus cabelos,
deixando que a onda de tristeza e pranto fosse embora
naturalmente. Ali ficaram as duas, por quase meia-hora: uma que
chorava sem dizer por que, outra que consolava sem saber o motivo.
Os soluços finalmente terminaram. A enfermeira
levantou-a, pegou-a pelo braço, e conduziu-a até a porta.
- Tenho uma filha da sua idade. Quando você chegou aqui,
cheia de soros e tubos, fiquei imaginando por que uma moça
bonita, jovem, que tem a vida pela frente, resolve matar-se.
“ Logo começaram a correr histórias: a carta que deixou
– e que nunca acreditei ser o real motivo – e os dias contados por
causa de um problema incurável no coração. A imagem da minha filha
não saía de minha cabeça: e se ela resolve fazer alguma coisa
igual? Por que certas pessoas tentam ir contra a ordem natural da
vida - que é lutar para sobreviver de qualquer maneira?”
- Por isso eu estava chorando – disse Veronika. – Quando
tomei os comprimidos, eu queria matar alguém que detestava. Não
sabia que existia, dentro de mim, outras Veronikas que eu saberia
amar.
- O que faz uma pessoa detestar a si mesma?
- Talvez a covardia. Ou o eterno medo de estar errada,
de não fazer o que os outros esperam. Há alguns minutos estava
alegre, esqueci minha sentença de morte; quando voltei a entender
a situação em que me encontro, fiquei assustada.
A enfermeira abriu a porta, e Veronika saiu.
Ela não podia ter me perguntado isso. O que ela quer,
entender por que eu chorei? Será que não sabe que sou uma pessoa
absolutamente normal, com desejos e medos comuns a todo mundo, e
que este tipo de pergunta – agora que já é tarde – pode me fazer
entrar em pânico?
Enquanto caminhava pelos corredores, iluminados pela
mesma lâmpada fraca que vira na enfermaria, Veronika se dava conta
de que era tarde demais: já não conseguia controlar seu medo.
‘Preciso me controlar. Sou alguém que leva até o fim
qualquer coisa que decidi fazer”.
Era verdade que levara até as últimas conseqüências
muitas coisas em sua vida, mas só o que não era importante – como
prolongar brigas que um pedido de desculpa resolveria, ou deixar
de ligar para um homem pelo qual estava apaixonada, por achar que
aquela relação não ia levar a nada. Fora intransigente justamente
naquilo que era mais fácil: mostrar para si mesma que sua força e
indiferença, quando na verdade era uma mulher frágil, que jamais
conseguira destacar-se nos estudos, nas competições esportivas de
sua escola, na tentativa de manter a harmonia em seu lar.
Superara os seus defeitos simples, só para ser derrotada
nas coisas importantes e fundamentais. Conseguia passar a
aparência da mulher independente, quando necessitava
desesperadamente de uma companhia. Chegava nos e todos a olhavam,
mas geralmente terminava a noite sozinha, no convento, olhando a
televisão que nem sequer sintonizava os canais direito. Dera a
todos os seus amigos a impressão de ser um modelo que eles deviam
invejar – e gastara o melhor de suas energias tentando se
comportar á altura da imagem que criara para si mesmo.
Por causa disso, nunca lhe sobrou nunca forças para ser
ela mesma - uma pessoa que, como todas as outras do mundo,
necessitava dos outros para ser feliz. Mas os outros eram tão
difíceis! Tinham reações imprevisíveis, viviam cercados de
defesas, comportavam-se também como ela, mostrando indiferença a
tudo. Quando chegava alguém mais aberto para a vida, ou o
rejeitavam imediatamente, ou o faziam sofrer, considerando-o
inferior e “ingênuo”.
Muito bem: podia ter impressionado muita gente com sua
força e determinação, mas onde havia chegado? No vazio. Na
solidão completa. Em Villete. Na ante-sala da morte.
O remorso pela tentativa de suicídio voltou, e Veronika
tornou a afasta-lo com firmeza. Porque agora estava sentindo algo
que nunca se permitira: ódio.
Ódio. Algo quase tão físico como paredes, ou pianos, ou
enfermeiras – ela quase podia tocar a energia destruidora que saía
do seu corpo. Deixou que o sentimento viesse, sem se preocupar se
era bom ou não - bastava de auto-controle, de máscaras, de
posturas convenientes, Veronika agora queria passar seus dois ou
três dias de vida sendo a mais inconveniente possível.
Começara dando um tapa no rosto de um homem mais velho,
tivera um ataque com o enfermeiro, recusara-se a ser simpática e
conversar com os outros quando queria ficar sozinha, e agora era
livre o suficiente para sentir ódio – embora esperta o bastante
para não começar a quebrar tudo a sua volta, e ter que passar o
final de sua vida sob o efeito de sedativos, numa cama da
enfermaria.
Odiou tudo o que pode naquele momento. A si mesma, ao
mundo, a cadeira que estava na sua frente, a calefação quebrada
num dos corredores, as pessoas perfeitas, os criminosos. Estava
internada num hospício, e podia sentir coisas que os seres humanos
escondem de si mesmos - porque somos todos educados apenas para
amar, aceitar, tentar descobrir uma saída, evitar o conflito.
Veronika odiava tudo, mas odiava principalmente a maneira como
conduzira sua vida - sem jamais descobrir as centenas de outras
Veronikas que habitavam dentro dela, e que eram interessantes,
loucas, curiosas, corajosas, arriscadas.
Em dado momento, começou a sentir ódio também pela
pessoa que mais amava no mundo: sua mãe. A excelente esposa que
trabalhava de dia e lavava os pratos de noite, sacrificando sua
vida para que a filha tivesse uma boa educação, soubesse tocar
piano e violino, se vestisse como uma princesa, comprasse os
tênis e calças de marca, enquanto ela remendava o velho vestido
que usava há anos.
“Como posso odiar quem apenas me deu amor? “ pensava
Veronika, confusa, e querendo corrigir seus sentimentos. Mas já
era tarde demais, o ódio estava solto, ela abrira as portas do seu
inferno pessoal. Odiava o amor que lhe tinha sido dado – porque
não pedia nada em troca - o que é absurdo, irreal, contra as leis
da natureza.
O amor que não pedia nada em troca conseguia enche-la de
culpa, de vontade de corresponder as suas expectativas, mesmo que
isso significasse abrir mão de tudo que sonhara para si mesma. Era
um amor que tentara lhe esconder, durante anos, os desafios e a
podridão do mundo – ignorando que um dia ela iria se dar conta
disso, e não teria defesas para enfrenta-los.
E seu pai? Odiava seu pai, também. Porque, ao contrário
de sua mãe que trabalhava o tempo todo, ele sabia viver, a levava
aos bares e ao teatro, divertiam-se juntos, e quando ainda era
jovem ela o amara em segredo, não como se ama um pai, mas um
homem. Odiava-o porque ele fora sempre tão encantador e tão aberto
com todo mundo - menos com sua mãe, a única que realmente merecia
o melhor.
Odiava tudo. A biblioteca com seu monte de livros cheios
de explicações sobre a vida, o colégio onde fora obrigada a gastar
noites inteiras aprendendo álgebra, embora não conhecesse nenhuma
pessoa – exceto os professores e matemáticos – que precisassem de
álgebra para serem mais felizes. Por que lhe tinham feito estudar
tanto álgebra, ou geometria, ou aquela montanha de coisas
absolutamente inúteis?
Veronika empurrou a porta da sala de estar, chegou
diante do piano, abriu sua tampa, e – com toda a força – bateu com
as mãos no teclado. Um acorde louco, sem nexo, irritante, ecoando
pelo ambiente vazio, batendo nas paredes, voltando aos seus
ouvidos sob a forma de um ruído agudo, que parecia arranhar sua
alma. Mas isso era o melhor retrato de sua alma naquele momento.
Tornou a bater com as mãos, e mais uma vez as notas
dissonantes reverberaram por toda parte.
“Sou louca. Posso fazer isso. Posso odiar, e posso
espancar o piano. Desde quando os doentes mentais sabem colocar as
notas em ordem?”
Bateu no piano uma, duas, dez, vinte vezes – e a cada
vez que fazia isso, seu ódio parecia diminuir, até que passou por
completo .
Então, novamente, uma profunda paz inundou-a, e Veronika
tornou a olhar o céu estelado, com a lua em quarto crescente - sua
favorita - enchendo de luz suave o lugar onde se encontrava. Veio
de novo a sensação de que Infinito e Eternidade andavam de mãos
dadas, e bastava contemplar um deles – como o Universo sem limites
- para notar a presença do outro, o Tempo que não termina nunca,
que não passa, que permanece no Presente, onde estão todos os
segredos da vida. Entre a enfermaria e a sala ela fora capaz de
odiar, tão forte e tão intensamente, que não lhe sobrara nenhum
rancor no coração. Deixara que seus sentimentos negativos,
represados durante anos em sua alma, viessem finalmente a tona.
Ela os tinha sentido, e agora não eram mais necessários – podiam
partir.
Ficou em silêncio, vivendo seu momento Presente,
deixando que o amor ocupasse o espaço vazio que o ódio deixara.
Quando sentiu que chegara o momento, virou-se para a lua e tocou
uma sonata em sua homenagem – sabendo que ela a escutava, ficava
orgulhosa, e isto provocava ciúmes nas estrelas. Tocou então uma
música para as estrelas, outra para o jardim, e uma terceira para
as montanhas que não podia ver de noite, mas sabia que estavam lá.
No meio da música para o jardim, outro louco apareceu –
Eduard, um esquizofrênico que estava além da possibilidade de
cura. Ela não se assustou com sua presença: ao contrário, sorriu,
e para sua surpresa ele sorriu de volta.
Também no seu mundo distante, mais distante do que a
lua, a música era capaz de penetrar e fazer milagres.
“Tenho que comprar um novo chaveiro”pensava o Dr. Igor,
enquanto abria a porta do seu pequeno consultório no Sanatório de
Villete. O antigo estava caindo aos pedaços, e o pequeno escudo de
metal que o enfeitava acabara de cair no chão.
Dr. Igor abaixou-se e pegou-o. O que iria fazer com este
escudo, mostrando o brasão de Lubljana? Melhor jogar fora. Mas
podia mandar conserta-lo, pedindo que refizessem uma nova alça de
couro - ou podia da-lo a seu neto, para brincar. Ambas as
alternativas lhe pareceram absurdas; um chaveiro custava muito
barato, e seu neto ano tinha o menor interesse em escudos –
passava o tempo todo vendo televisão, ou divertindo-se com jogos
eletrônicos importados da Itália. Mesmo assim, não jogou fora;
colocou-o no bolso, para decidir mais tarde o que fazer com ele.
Por isso era um diretor de sanatório, e não um doente;
porque refletia muito antes de tomar qualquer atitude.
Acendeu a luz – amanhecia cada vez mais tarde, a medida
que avançava o inverno. A ausência de luz, , assim como as
mudanças de casa ou os divórcios, eram os principais responsáveis
pelo aumento do número de casos de depressão. Dr. Igor torcia para
que a primavera chegasse logo, e resolvesse metade dos seus
problemas.
Olhou a agenda do dia. Precisava estudar algumas medidas
para não deixar que Eduard morresse de fome; sua esquizofrenia
fazia com que fosse imprevisível, e agora ele deixara de comer por
completo. Dr. Igor já receitara alimentação intravenosa, mas não
podia manter aquilo para sempre; Eduard tinha 28 anos, era forte,
e mesmo com o soro ia terminar definhando, ficando com aspecto
esquelético.
Qual seria a reação do pai de Eduard, um dos mais
conhecidos embaixadores da jovem republica eslovena, um dos
artífices das delicadas negociações com a Yugoslavia, no começo
dos anos 90? Afinal, este homem havia conseguido trabalhar durante
anos para Belgrado, sobrevivera aos seus detratores - que o
acusavam de haver servido ao inimigo – e continuava no corpo
diplomático, só que desta vez representando um país diferente. Era
um homem poderoso e influente, temido por todos.
Dr. Igor se preocupou um instante – como antes se
preocupara com o escudo do chaveiro – mas logo afastou o
pensamento da cabeça: para o Embaixador, tanto fazia que seu filho
tivesse uma boa ou má aparência; não pretendia leva-lo a festas
oficiais, ou fazer com que o acompanhasse pelos lugares do mundo
onde era designado como representante do Governo. Eduard, estava
em Villete - e ali continuaria para sempre, ou pelo tempo que o
pai continuasse ganhando aqueles salários enormes.
Dr. Igor decidiu que retiraria a alimentação
intravenosa, e deixaria Eduard definhar mais um pouco, até que
tivesse, por ele mesmo, vontade de comer. Se a situação piorasse,
faria um relatório e passaria a responsabilidade ao conselho de
médicos que administrava Villete. “Se você não quiser entrar em
apuros, sempre divida a responsabilidade”, lhe ensinara seu pai,
também ele um médico que tivera varias mortes em suas mãos, mas
nenhum problema com as autoridades.
Uma vez receitada a interrupção do medicamento de
Eduard, Dr. Igor passou para o próximo caso: o relatório dizia que
a paciente Zedka Mendel já terminara seu período de tratamento, e
podia receber alta. Dr. Igor queria conferir com seus próprios
olhos: afinal, nada pior para um médico que receber reclamações da
família dos doentes que passavam por Villete. E isso quase sempre
acontecia - depois de um período num hospital para doentes
mentais, raramente um paciente conseguia adaptar-se novamente à
vida normal.
Não era culpa do sanatório. Nem de nenhum de todos os
sanatórios espalhados – só o bom Deus sabia – pelos quatro cantos
do mundo, onde o problema de readaptação dos internos era
exatamente igual. Assim como a prisão nunca corrigia o preso –
apenas o ensinava a cometer mais crimes, os sanatórios faziam com
que os doentes se acostumassem com um mundo totalmente irreal,
onde tudo era permitido, e ninguém precisava ter responsabilidade
por seus atos.
De modo que só restava uma saída: descobrir a cura para
a Insanidade. E o Dr. Igor estava empenhado nisso até a raiz dos
cabelos,, desenvolvendo uma tese que iria revolucionar o meio
psiquiátrico. Nos asilos, os doentes provisórios em convivência
com pacientes irrecuperáveis iniciavam um processo de degeneração
social, e uma vez que era impossível deter esta roda.
A tal
Zedka Mendel terminaria voltando ao hospital – desta vez por
vontade própria, queixando-se de males inexistentes, só para estar
perto de pessoas que pareciam compreende-la melhor que o mundo lá
fora.
Se ele descobrisse, porém, como combater o Vitríolo –
para o Dr. Igor, o veneno responsável pela loucura - seu nome
entraria para a História, e a Eslovenia seria definitivamente
colocada no mapa. Naquela semana, uma chance caída dos céus
aparecera, sob a forma de uma suicida potencial; ele não estava
disposto a desperdiçar esta oportunidade por nenhum dinheiro do
mundo.
Dr. Igor ficou contente. Embora, por razões econômicas,
ainda fosse obrigado a aceitar tratamentos que há muito tinham
sido condenados pela medicina – como o choque de insulina –
também, por razões econômicas, Villete estava inovando o
tratamento psiquiátrico. Além de possuir tempo e elementos para a
pesquisa do Vitríolo, ele ainda contava com o apoio dos donos para
manter no asilo o grupo chamado de “a fraternidade”. Os acionistas
da instituição tinham permitido que fosse tolerada – note bem,
não encorajada, mas tolerada – uma internação maior do que o tempo
necessário. Eles argumentavam que, por razões humanitárias, deviase dar ao recem-curado a opção de decidir qual o melhor momento de
reintegrar-se ao mundo, e isso permitira que um grupo de pessoas
resolvesse permanecer em Villete, como em um hotel seletivo , ou
um clube onde se reúnem aqueles que tem algumas afinidades em
comum. Assim, o Dr. Igor conseguia manter loucos e sãos no mesmo
ambiente, fazendo com que os últimos influenciassem positivamente
os primeiros. Para evitar que as coisas degenerassem – e os
loucos terminassem contagiando negativamente os que tinham sido
curados, todo membro da Fraternidade devia sair do sanatório pelo
menos uma vez por dia.
Dr. Igor sabia que os motivos dados pelos acionistas
para permitir a presença de pessoas curadas no asilo – “razões
humanitárias”, diziam – era apenas uma desculpa. Eles tinham medo
de que Lubljana, a pequena e charmosa capital da Eslovenia, não
tivesse um numero suficiente de loucos ricos, capazes de sustentar
toda aquela estrutura cara e moderna. Além do mais, o sistema de
saúde pública contava com asilos de primeira qualidade, o que
deixava Villete em situação de desvantagem diante do mercado de
problemas mentais.
Quando os acionistas transformaram o antigo quartel em
sanatório, tinham como publico alvo os possíveis homens e mulheres
afetados pela guerra com a Yugoslávia. Mas a guerra durara muito
pouco. Os acionistas apostaram que a guerra ia voltar, mas não
voltou.
Depois, em recente pesquisa, descobriram que as guerras
faziam suas vítimas mentais, mas em escala muito menor que a
tensão, o tédio, as enfermidades congênitas, a solidão, e a
rejeição. Quando uma coletividade tinha um grande problema para
enfrentar – como no caso de uma guerra, ou de uma hiperinflação,
ou de uma peste - notava-se um pequeno aumento no número de
suicídios, mas uma grande diminuição nos casos de depressão,
paranóia, psicoses. Estes voltavam a seus índices normais logo que
tal problema havia sido ultrapassado, indicando – assim entendia o
Dr. Igor – que o ser humano só se dá ao luxo de ser louco quando
tem condições para isso.
Diante de seus olhos, estava outra pesquisa recente,
desta vez vinda do Canadá – eleito recentemente por um jornal
americano como o país do mundo onde o nível de vida era mais
elevado. O Dr. Igor leu:
* De acordo com a Statistics Canadá, já sofreram algum
tipo de doença mental:
40% das pessoas entre 15 e 34 anos;
33% das pessoas entre 35 e 54 anos;
20% das pessoas entre 55 e 64 anos.
* Estima-se que um em cada cinco indivíduos sofra algum
tipo de desordem psiquiátrica.
+ Um em cada oito canadenses serão hospitalizados por
distúrbios mentais pelo menos uma vez na vida.
“Excelente mercado, melhor que aqui”, pensou. “Quanto
mais felizes as pessoas podem ser, mais infelizes ficam”.
Dr. Igor analisou mais alguns casos, ponderando
cuidadosamente sobre os que devia dividir com o Conselho, e os que
podia resolver sozinho. Quando terminou, o dia já tinha raiado por
completo, e ele apagou a luz.
Em seguida mandou entrar a primeira visita – a mãe da
tal paciente que tentara o suicídio.
- Sou a mãe de Veronika. Qual o estado de minha filha?
O Dr. Igor pensou se devia ou não dizer-lhe a verdade, e
poupa-la de surpresas inúteis – afinal de contas, tinha uma filha
com o mesmo nome. Mas decidiu que era melhor ficar calado.
- Ainda não sabemos – mentiu. – Precisamos de mais uma
semana.
- Não sei porque Veronika fez isso – dizia a mulher a
sua frente, em prantos. – Nós somos pais carinhosos, tentamos dar
a ela, a custa de muito sacrifício, a melhor educação possível.
Embora tivéssemos nossos problemas conjugais, mantivemos nossa
família unida, como exemplo de perseverança diante das
adversidades. Ela tem um bom emprego, não é feia, e mesmo assim...
- ... e mesmo assim tentou matar-se – interrompeu o Dr.
Igor. – Não fique surpresa, minha senhora, é assim mesmo. As
pessoas são incapazes de entender a felicidade. Se desejar, posso
lhe mostrar as estatísticas do Canadá.
- Canadá?
A mulher olhou-o com surpresa. Dr. Igor viu que havia
conseguido distraí-la, e continuou.
- Veja bem: a senhora vem até aqui não para saber com
vai sua filha, mas para desculpar-se pelo fato de que ela tentou
cometer suicídio. Quantos anos ela tem?
-Vinte e quatro.
- Ou seja: uma mulher madura, vivida, que já sabe bem o
que deseja, e é capaz de fazer suas escolhas. O que isso tem a ver
com seu casamento, ou com o sacrifício que a senhora e seu marido
fizeram? Há quanto tempo ela mora sozinha?
- Seis anos.
- Está vendo? Independente até a raiz da alma. Mesmo
assim, porque um médico austríaco – Dr. Sigmund Freud, tenho
certeza que a Sra. já ouviu falar dele – escreveu sobre estas
relações doentias entre pais e filhos, até hoje todo mundo se
culpa de tudo. Os índios acham que o filho que se tornou assassino
é uma vítima da educação de seu pais? Responda.
- Não tenho a menor idéia – respondeu a mulher, cada vez
mais surpresa com o médico. Talvez ele tivesse sido contagiado
pelos próprios pacientes.
- Pois eu vou lhe dizer a resposta – disse o Dr. Igor. –
Os índios acham que o assassino é culpado, e não a sociedade, nem
seus pais, nem seus antepassados. Os japoneses cometem suicídio
porque um filho deles resolveu se drogar e sair atirando? A
resposta também é a mesma: Não! E olha que, segundo me consta, os
japoneses cometem suicídio por qualquer motivo; outro dia mesmo li
uma noticia de que um jovem se matou porque não conseguiu passar
no vestibular.
- Será que eu posso falar com a minha filha? – perguntou
a mulher, que não estava interessada em japoneses, índios ou
canadenses.
- Já, já – disse o Dr. Igor, meio irritado com a
interrupção. – Mas antes, eu quero que a Sra. entenda uma coisa:
afora alguns casos patológicos graves, as pessoas enlouquecem
quando tentam fugir da rotina. A senhora entendeu?
- Entendi muito bem – respondeu. – E se o senhor está
achando que não serei capaz de cuidar dela, pode ficar tranquilo:
nunca tentei mudar a minha vida.
- Que bom – o Dr. Igor mostrava um certo alívio. – A
senhora já imaginou um mundo onde, por exemplo, não fossemos
obrigados a repetir todos os dias de nossas vidas a mesma coisa?
Se resolvessemos, por exemplo, comer só na hora em que tivéssemos
fome: como as donas de casa e os restaurantes se organizariam?
“Seria mais normal comer só quanto estivéssemos com
fome”, pensou a mulher, que não disse nada, com medo que lhe
proibissem falar com Veronika.
- Seria uma confusão muito grande – disse ela. – Eu sou
dona de casa, e sei do que está falando.
- Então temos o café da manhã, o almoço, o jantar. Temos
que acordar em determinada hora todos os dias, e descansar uma vez
por semana. Existe o Natal para dar presentes, a páscoa para
passar três dias no lago. A senhora ficaria contente se o seu
marido, só porque foi tomado de um súbito impulso de paixão,
resolvesse fazer amor na sala?
“De que este homem está falando? Eu vim aqui ver minha
filha!”
- Ficaria triste – respondeu ela, com todo cuidado,
esperando ter acertado.
- Muito bem – bradou o Dr. Igor. – Lugar de fazer amor é
na cama. Senão, estaremos dando mau exemplo e disseminando a
anarquia.
- Posso ver minha filha? – interrompeu a mulher.
O Dr. Igor resignou-se; esta camponesa nunca ia entender
do que estava falando, não estava interessada em discutir a
loucura do ponto de vista filosófico – mesmo sabendo que sua filha
tentara o suicídio para valer, e entrara em coma.
Tocou uma campainha, e sua secretária apareceu.
- Mande chamar a moça do suicídio – disse. – Aquela da
carta aos jornais, dizendo que se matava para mostrar onde era a
Eslovenia.
- Não quero vê-la. Eu já cortei os meus laços com o
mundo.
Fora difícil dizer isso ali na sala de estar, na
presença de todo mundo. Mas o enfermeiro tampouco fora discreto, e
avisara em voz alta que sua mãe a estava esperando – como se fosse
um assunto que interessasse a todos.
Não queria ver a mãe porque as duas iam sofrer. Era
melhor que já a considerasse morta; Veronika sempre odiara as
despedidas.
O homem desapareceu por onde viera, e ela voltou a olhar
as montanhas. Depois de uma semana, o sol tinha finalmente
retornado – e ela já sabia isso desde a noite anterior, porque a
lua lhe dissera, enquanto tocava piano.
“Não, isso é loucura, estou perdendo o controle. os
astros não falam – exceto para aqueles que se dizem astrólogos.
Se a lua conversou com alguém, foi com aquele esquizofrênico.”
Mal terminara de pensar isso, sentiu uma pontada no
peito, e um braço ficou dormente. Veronika viu o teto rodar: o
ataque de coração!
Entrou numa espécie de euforia, como se a morte a
libertasse do medo de morrer. Pronto, estava tudo acabado! Talvez
sentisse alguma dor, mas o que eram cinco minutos de agonia, em
troca de uma eternidade em silêncio? A única atitude que tomou,
foi a de fechar os olhos: o que mais lhe horrorizava era ver, nos
filmes, os mortos de olhos abertos.
Mas o ataque de coração parecia ser diferente daquilo
que imaginara; a respiração começou a ficar difícil, e,
horrorizada, Veronika começou a descobrir que estava prestes a
experimentar o pior de seus medos: a asfixia. Ia morrer como se
estivesse sendo enterrada viva, ou fosse puxada de repente para o
fundo do mar.
Cambaleou, caiu, sentiu a pancada forte no rosto,
continuou fazendo um esforço gigantesco para respirar– mas o ar
não entrava. Pior que tudo, a morte não vinha, estava inteiramente
consciente do que se passava a sua volta, continuava vendo as
cores e as formas. Tinha dificuldade apenas de escutar o que os
outros diziam – os gritos e as exclamações pareciam distantes,
como se vindos de um outro mundo. Afora isso, todo o mais era
real, o ar não vinha, simplesmente não obedecia aos comandos dos
seus pulmões e de seus músculos – e a consciência não ia embora.
Sentiu que alguém a pegava e a virava de costas – mas
agoira havia perdido o controle do movimento dos olhos, e eles
rodopiavam, enviando centenas de imagens diferentes ao seu
cérebro, misturando a sensação de sufocamento com uma completa
confusão visual.
Aos poucos as imagens foram ficando também distantes –
e, quando a agonia atingiu seu ponto máximo, o ar finalmente
entrou, emitindo um ruído tremendo, que fez com que todos na sala
ficassem paralisados de medo.
Veronika começou a vomitar descontroladamente. Passado o
momento da quase tragédia, alguns loucos começaram a rir da cena
– e ela sentia-se humilhada, perdida, incapaz de reagir.
Um enfermeiro entrou correndo, e aplicou-lhe uma
injeção no braço.
- Fique tranquila. Já passou.
- Eu não morri! – ela começou a gritar, avançando em
direção aos internos, e sujando o chão e os móveis com seu vômito.
- Eu continuo nesta droga de hospício, sendo obrigado a conviver
com vocês! Vivendo mil mortes a cada dia, a cada noite – sem que
ninguém tenha misericórdia de mim!
Virou-se para o enfermeiro, arrancou a seringa de sua
mão e atirou-a em direção ao jardim.
- O que você quer? Por que não me aplica veneno, sabendo
que eu já estou mesmo condenada? Onde estão seus sentimentos?
Sem conseguir controlar-se, tornou a sentar no chão e
começou a chorar compulsivamente, gritando, soluçando alto,
enquanto alguns dos internos riam e comentavam sobre sua roupa
toda suja.
- Dê-lhe um calmante! - disse uma médica, entrando as
pressas. - Controle esta situação!
O enfermeiro, porém, estava paralisado. A médica tornou
a sair, voltando com mais dois enfermeiros,
e uma nova seringa.
Os homens agarraram a criatura histérica que se debatia no meio da
sala, enquanto a médica aplicava até a última gota de calmante na
veia de um braço imundo.
Estava no consultório do Dr. Igor, deitada em uma cama
imaculadamente branca, com o lençol novo.
Ele escutava seu coração. Ela fingiu que ainda estava
dormindo, mas algo dentro do peito havia mudado, porque o médico
falou com a certeza de que estava sendo ouvido.
- Fique tranquila - disse. - Com a saúde que você tem,
pode viver cem anos.
Veronika abriu os olhos. Alguém havia trocado sua roupa.
Teria sido o Dr. Igor? Ele a vira nua? Sua cabeça não estava
funcionando direito.
- O que o Sr. disse?
- Falei que ficasse tranquila.
- Não. O Sr. disse que eu ia viver cem anos.
O médico foi até sua escrivaninha.
- O Sr. disse que eu ia viver cem anos - insistiu
Veronika.
- Na medicina, nada é definitivo - disfarçou o Dr. Igor.
- Tudo é possível.
- Como está o meu coração?
- Igual.
Então não precisava mais nada. Os médicos, diante de um
caso grave, dizem “você vai conseguir viver cem anos”, ou “não é
nada sério”, ou “você tem um coração e uma pressão de menino”, ou
ainda “precisamos refazer os exames”. Parece que temem que o
paciente vá quebrar o consultório inteiro.
Ela tentou levantar-se, mas não conseguiu: a sala
inteira começara a rodar.
- Fique aí mais um pouco, até sentir-se melhor. Você não
está me incomodando.
Que bom, pensou Veronika. Mas, e se estivesse?
Como experiente médico que era, Dr. Igor permaneceu em
silencio algum tempo, fingindo-se interessado nos papéis que
estavam em sua mesa. Quando estamos diante de outra pessoa, e ela
não diz nada, a situação torna-se irritante, tensa, insuportável.
O Dr. Igor tinha a esperança que a menina começasse a falar – e
ele pudesse colher mais dados para a sua tese sobre a loucura, e o
método de cura que estava desenvolvendo.
Mas Veronika não disse uma palavra. “Talvez já esteja
num grau de envenenamento muito grande pelo Vitríolo”, pensou o
Dr. Igor, enquanto resolvia quebrar o silêncio – que estava se
tornando tenso, irritante, insuportável.
- Parece que você gosta de tocar piano – disse ele,
procurando ser o mais casual possível.
- E os loucos gostam de ouvir. Ontem teve um que ficou
grudado, escutando.
- Eduard. Ele comentou com alguém que tinha adorado.
Quem sabe, volta a alimentar-se como uma pessoa normal.
- Um esquizofrênico gosta de música? E comenta isso com
os outros?
- Sim. E aposto que você não tem a menor idéia do que
está dizendo.
Aquele médico - que mais parecia um paciente, com seus
cabelos tingidos de preto – tinha razão. Veronika escutara a
palavra muitas vezes, mas não tinha idéia do que significava.
- Tem cura? – quis saber, tentando ver se conseguia mais
informações sobre os esquizofrênicos.
- Tem controle. Ainda não se sabe direito o que se passa
no mundo da loucura: tudo é novo, e os processos mudam a cada
década. Um esquizofrênico é uma pessoa que já tem uma tendência
natural para ausentar-se deste mundo, até que um fato - grave ou
superficial, dependendo do caso de cada um – faz com que criem uma
realidade só para ele. O caso pode evoluir até a ausência completa
– que nós chamamos de catatonia – ou pode ter melhoras,
permitindo ao paciente trabalhar, levar uma vida praticamente
normal. Depende de uma coisa só: o ambiente.
- Criar uma realidade só para ele – repetiu Veronika. –
O que é a realidade?
- É o que a maioria achou que devia ser. Não
necessariamente o melhor, nem o mais lógico, mas o que se adaptou
ao desejo coletivo. Você está vendo o que tenho no pescoço?
- Uma gravata.
- Muito bem. Sua resposta é lógica, coerente com uma
pessoa absolutamente normal: uma gravata!
“ Um louco, porém, diria que eu tenho no pescoço um pano
colorido, ridículo, inútil, amarrado de uma maneira complicada,
que termina dificultando os movimentos da cabeça e exigindo um
esforço maior para que o ar possa entrar nos pulmões. Se eu me
distrair quando estiver perto de um ventilador, posso morrer
estrangulado por este pano.
“ Se um louco me perguntar para que serve uma gravata,
eu terei que responder: para absolutamente nada. Nem mesmo para
enfeitar, porque hoje em dia ela tornou-se o símbolo de
escravidão, poder, distanciamento. A única utilidade da gravata
consiste em chegar em casa e retira-la, dando a sensação de que
estamos livres de alguma coisa que nem sabemos o que é.
“Mas sensação de alívio justifica a existência da
gravata? Não. Mesmo assim, se eu perguntar para um louco e para
uma pessoa normal o que é isso, será considerado são aquele que
responder: uma gravata. Não importa quem está certo – importa quem
tem razão.”
- Donde o Sr. conclui que eu não sou louca, pois dei o
nome certo ao pano colorido.
Não, você não é louca, pensou o Dr. Igor, uma autoridade
no assunto, com vários diplomas pendurados na parede de seu
consultório. Atentar contra a própria vida era próprio do ser
humano - conhecia muita gente que fazia isso, e mesmo assim
continuava lá fora, aparentando inocência e normalidade, apenas
porque não tinham escolhido o escandaloso método do suicídio.
Matavam-se aos poucos, envenenando-se com aquilo que o Dr. Igor
chamava de Vitriolo.
O Vitríolo era um produto toxico, cujos sintomas ele
havia identificado em suas conversas com os homens e mulheres que
conhecia. Estava agora escrevendo uma tese sobre o assunto, que
submeteria a Academia de Ciências da Eslovenia para estudo. Era o
passo mais importante no terreno da insanidade, desde que o Dr.
Pinel mandara retirar as correntes que aprisionavam os doentes,
estarrecendo o mundo da medicina com a idéia de que alguns deles
tinham possibilidade de cura
Assim como a libido – o liquido sexual que o Dr. Freud
reconhecera, mas nenhum laboratório fora jamais capaz de isolar, o
Vitriolo era destilado pelo organismos de seres humanos que se
encontravam em situação de medo – embora ainda passasse
desapercebido nos modernos testes de espectrografia. Mas era
facilmente reconhecido pelo seu sabor, que não era nem doce nem
salgado – o sabor amargo. Dr. Igor – descobridor ainda não
reconhecido deste veneno mortal - batizara-o com o nome de um
veneno que fora muito utilizado no passado por imperadores, reis,
e amantes de todos os tipos, quando precisavam afastar
definitivamente uma pessoa incomoda.
Bons tempos aqueles, de imperadores e reis: naquela
época vivia-se e morria-se com romantismo. O assassino convidava a
vítima para um belo jantar, o garçom entrava com duas taças
lindas, uma delas com Vitríolo misturado na bebida: quanta emoção
despertavam os gestos da vitima - pegando a taça, dizendo algumas
palavras doces ou agressivas, bebendo como se fosse mais um drink
saboroso, olhando surpresa para o anfitrião, e caindo fulminada no
solo!
Mas este veneno, hoje caro e difícil de encontrar no
mercado, foi substituído por processos mais seguros de extermínio
– como revolveres, bactérias, etc. Dr. Igor, um romântico por
natureza, resgatara o nome quase esquecido para batizar a doença
de alma que ele conseguira diagnosticar, e cuja descoberta em
breve assustaria o mundo.
Era curioso que ninguém jamais tivesse se referido ao
Vitríolo como um toxico mortal, embora a maioria das pessoas
afetadas identificasse seu sabor, e se referisse processo de
envenenamento como Amargura. Todos os seres tinham Amargura em seu
organismo - em maior ou menor grau - assim como quase todos temos
o bacilo da tuberculose. Mas estas duas doenças só atacam quando o
paciente acha-se debilitado; no caso da Amargura, o terreno para o
surgimento da doença aparece quando se cria o medo da chamada
“realidade”.
Certas pessoas, no afã de querer construir um mundo onde
nenhuma ameaça externa pudesse penetrar, aumentam exageradamente
suas defesas contra o exterior – gente estranha, novos lugares,
experiências diferentes - e deixam o interior desguarnecido. É a
partir daí que a Amargura começa a causar danos irreversíveis.
O grande alvo da Amargura (ou Vitríolo, como preferia o
Dr. Igor) era a vontade. As pessoas atacadas deste mal iam
perdendo o desejo de tudo, e em poucos anos já não conseguiam sair
de seu mundo – pois tinham gasto enormes reservas de energia
construindo altas muralhas para a realidade fosse aquilo que
desejavam que fosse.
Ao evitar o ataque externo, tinham também limitado o
crescimento interno. Continuavam indo ao trabalho, vendo
televisão, reclamando do transito e tendo filhos, mas tudo isso
acontecia automaticamente, e sem qualquer grande emoção interior –
porque, afinal, tudo estava sob controle.
O grande problema do envenenamento por Amargura era que
as paixões – ódio, amor, desespero, entusiasmo, curiosidade –
também não se manifestavam mais. Depois de algum tempo, já não
restava ao amargo qualquer desejo. Não tinham vontade nem de
viver, nem de morrer, este era o problema.
Por isso, para os amargos, os heróis e os loucos eram
sempre fascinantes: eles não tinham medo de viver ou morrer. Tanto
os heróis como os loucos eram indiferentes diante do perigo, e
seguiam adiante apesar de todos dizerem para não fazerem aquilo. O
louco se suicidava, o herói se oferecia ao martírio em nome de uma
causa – mas ambos morriam, e os amargos passavam muitas noites e
dias comentando o absurdo e a gloria dos dois tipos. Era o único
momento em que o amargo tinha força para galgar sua muralha de
defesa e olhar um pouquinho para fora; mas logo as mãos e os pés
cansavam, e ele voltava para a vida diária.
O amargo crônico só notava a sua doença uma vez por
semana: nas tardes de domingo. Ali, como não tinham o trabalho ou
a rotina para aliviar os sintomas, percebiam que alguma coisa
estava muito errada - já que a paz daquelas tardes era infernal,
o tempo não passava nunca, e uma constante irritação manifestavase livremente.
Mas a Segunda-feira chegava, e o amargo logo esquecia os
seus sintomas – embora blasfemasse contra o fato de que nunca
tinha tempo para descansar, e os reclamasse que fins-de-semana
passavam muito rápido.
A única grande vantagem da doença, do ponto de vista
social, é que já se transformara numa regra; portanto, a
internação não se fazia mais necessária – exceto nos casos onde a
intoxicação era tão forte que o comportamento do doente começava a
afetar os outros. Mas a maioria dos amargos podiam continuar lá
fora, sem constituir ameaça a sociedade ou aos outros, já que –
por causa das altas muralhas construídas ao redor de si mesmos –
estavam totalmente isolados do mundo, embora parecessem partilhar
dele.
O Dr. Sisgimund Freud descobrira a libido e a cura para
os problemas causados por ela – inventando a psicanálise. Além de
descobrir a existência do Vitríolo, o Dr. Igor precisava provar
que, também neste caso, a cura era possível. Queria deixar seu
nome na história da medicina, embora não se iludisse quanto as
dificuldades que teria que enfrentar para impor suas idéias – já
que os “normais” estavam contentes com suas vidas, e jamais
admitiriam sua doença, enquanto os “doentes” movimentavam uma
gigantesca indústria de asilos, laboratórios, congressos, etc.
“Sei que o mundo não reconhecerá agora meu esforço”,
disse para si mesmo, orgulhoso de ser incompreendido. Afinal, este
era o preço que os gênios precisavam pagar.
- O que aconteceu com o Sr.? - perguntou a moça a sua
frente. - Parece que entrou no mundo de seus pacientes.
Dr. Igor ignorou o comentário desrespeitoso.
- Você pode ir agora - disse.
Veronika não sabia se era dia ou noite – o Dr. Igor
estava com a luz acesa, mas ele fazia isso todas as manhãs.
Entretanto, ao chegar no corredor, viu a lua, e deu-se conta que
dormira mais tempo do que o que imaginara.
No caminho para a enfermaria, reparou uma foto
emoldurada na parede: era a praça central de Lubljana , ainda sem
a estátua do poeta Preseren, mostrando casais passeando –
provavelmente num domingo.
Reparou a data da foto: Verão de 1910.
Verão de 1910. Ali estavam aquelas pessoas, cujos filhos
e netos já tinham morrido, capturadas num momento de suas vidas.
As mulheres usavam pesados vestidos, e os homens estavam todos de
chapéu, paletó, gravata (ou pano colorido, como chamavam os
loucos), polainas, e guarda chuva no braço.
E o calor? A temperatura devia ser a mesma dos verões de
hoje, 35o à sombra. Se chegasse um inglês de bermudas e mangas de
camisa - vestimenta muito mais apropriada para o calor - o que
estas pessoas pensariam?
“Um louco”.
Tinha entendido perfeitamente bem o que o Dr. Igor
quisera dizer. Da mesma maneira, entendia que sempre tivera em
sua vida muito amor, carinho, proteção, mas lhe faltara um
elemento para tornar tudo isto numa benção: devia ter sido um
pouco mais louca.
Seus pais continuariam a ama-la de qualquer maneira, mas
ela não ousara pagar o preço de seu sonho, com medo de feri-los.
Aquele sonho que estava enterrado no fundo de sua memória, embora
vez por outra fosse despertado num concerto, ou num belo disco que
escutava ao acaso. Entretanto, sempre que o seu sonho era
despertado, o sentimento de frustração era tão grande, que ela
logo o fazia adormecer de novo.
Veronika sabia, desde criança, qual era sua verdadeira
vocação: ser pianista!
Sentira isso desde a primeira aula, com doze anos de
idade. Sua professora também percebera seu talento, e a
incentivara a tornar-se uma profissional. Entretanto, quando –
contente com um concurso que acabara de ganhar – dissera a mãe que
ia largar tudo para dedicar-se apenas ao piano, ela a olhara com
carinho, e respondera: “ninguém vive de tocar piano, meu amor. “
“Mas você me fez ter aulas!”
“Para desenvolver seus dons artísticos, só isso. Os
maridos apreciam, e você pode destacar-se nas festas. Esqueça esta
história de ser pianista, e vá estudar advocacia: esta é a
profissão do futuro.
Veronika fizera o que a mãe pedira, certa de que ela
tinha experiência suficiente para entender o que era realidade.
Terminou os estudos, entrou na faculdade, saiu da faculdade com um
diploma e notas altas – mas só conseguiu um emprego de
bibliotecária.
“Devia ter sido mais louca”. Mas - como devia acontecer
com a maioria das pessoas - descobrira tarde demais.
Virou-se para continuar seu caminho, quando alguém
segurou-a no braço. O poderoso calmante que lhe haviam aplicado
ainda corria em suas veias, por isso não se reagiu quando Eduard,
o esquizofrênico, delicadamente começou a conduzi-la numa direção
diferente – a sala de estar.
A lua continuava em quarto crescente, e Veronika já se
sentara ao piano – o pedido silencioso de Eduard - quando começou
a ouvir uma voz que vinha do refeitório. Alguém que falava com
sotaque estrangeiro, e Veronika não se lembrava de ter escutado
aquele sotaque em Villete.
- Não quero tocar piano agora, Eduard. Quero saber o que
está acontecendo no mundo, o que conversam aqui ao lado, que homem
estranho é esse.
Eduard sorria, talvez sem entender uma só palavra do que
estava dizendo. Mas ela lembrou-se do Dr. Igor: os esquizofrênicos
podiam entrar e sair de suas realidades separadas.
- Eu vou morrer – continuou, na esperança de que suas
palavras fizessem sentido. - A morte roçou suas asas no meu rosto
hoje, e deve estar batendo na minha porta amanhã, ou depois. Você
não deve se acostumar a escutar um piano todas as noites.
“Ninguém pode se acostumar com nada, Eduard. Veja só: eu
estava gostando de novo do sol, das montanhas, dos problemas –
estava mesmo aceitando que a falta de sentido da vida não era
culpa de ninguém, exceto minha. Queria de novo ver a praça de
Lubljana, sentir ódio e amor, desespero e tédio, todas estas
coisas simples e tolas que fazem parte do cotidiano, mas que dão
gosto à existência. Se algum dia pudesse sair daqui, iria
permitir-me ser louca, porque todo mundo é – e piores são aqueles
que não sabem que são, porque ficam repetindo apenas o que os
outros mandam.
“ Mas nada disso é possível, entendeu? Da mesma maneira,
você não pode passar o dia inteiro esperando que venha a noite, e
que uma das internas toque piano – porque isso acabará logo. Meu
mundo e o seu estão no final.”
Levantou-se, tocou carinhosamente no rosto do rapaz, e
foi até o refeitório.
Ao abrir a porta, deparou-se com uma cena insólita; as
mesas e cadeiras tinham sido empurradas para parede, formando um
grande espaço vazio no centro. Ali, sentados no chão, estava os
membros da Fraternidade, escutando um homem de terno e gravata.
- ...então convidaram o grande mestre da tradição sufi,
Nasrudin, para dar uma palestra - dizia ele.
Quando a porta se abriu, todos na sala olharam para
Veronika. O homem de terno virou-se para ela.
- Sente-se.
Ela sentou-se no chão, junto a senhora de cabelos
brancos, Mari – que fora tão agressiva em seu primeiro encontro.
Para sua surpresa, Mari deu um sorriso de boas-vindas.
O homem de terno continuou:
- Nasrudin marcou a conferencia para as duas horas da
tarde, e foi um sucesso: os mil lugares foram todos vendidos, e
ficaram mais de seiscentas pessoas do lado de fora, acompanhando a
palestra por um circuito fechado de televisão.
“As duas em ponto, entrou um assistente de Nasrudin,
dizendo que, por motivo de força maior, a palestra ia atrasar.
Alguns levantaram-se indignados, pediram a devolução do dinheiro,
e saíram. Mesmo assim ainda continuou muita gente dentro e fora da
sala.
“A partir das quatro da tarde, o mestre sufi ainda não
tinha aparecido, e as pessoas foram – pouco a pouco – deixando o
local, e pegando seu dinheiro de volta: afinal de contas, o
expediente de trabalho estava terminando, era chegado o momento de
precisavam voltar para casa. Quando deu seis horas, os 1.700
espectadores originais estavam reduzidos a menos de cem.
“Neste momento, Nasrudin entrou. Parecia completamente
bêbado, e começou a dizer gracinhas a uma bela jovem que sentarase na primeira fila.
“Passada a surpresa, as pessoas começaram a ficar
indignadas: como, depois de esperar quatro horas seguidas, esse
homem se comportava de tal maneira? Alguns murmúrios de
desaprovação se fizeram ouvir, mas o mestre sufi não deu nenhuma
importância: continuou, aos brados, a dizer como a menina era
sexy, e convidou-a para viajar com ele para a França.”
Que mestre, pensou Veronika. Ainda bem que nunca
acreditei nestas coisas.
“Depois de dizer alguns palavrões contra as pessoas que
reclamavam, Nasrudin tentou levantar-se e caiu pesadamente no
chão. Revoltadas, as pessoas resolveram ir embora, dizendo que
tudo aquilo não passava de charlatanismo, que iriam aos jornais
denunciar o espetáculo degradante.
“Nove pessoas continuaram na sala. E, assim que o grupo
de revoltados deixou o recinto, Nasrudin levantou-se; estava
sóbrio, seus olhos irradiavam luz, e havia em torno dele uma aura
de respeitabilidade e sabedoria. “Vocês que estão aqui, são os que
tem que me ouvir”, disse. “Passaram pelos dois testes mais duros
no caminho espiritual: a paciência para esperar o momento certo, e
a coragem de não se decepcionar com o que encontraram. A vocês eu
vou ensinar.”
“E Nasrudin compartilhou com eles algumas das técnicas
sufi.”
O homem deu uma pausa, e tirou uma flauta estranha do
bolso.
- Vamos agora descansar um pouco, e depois faremos a
nossa meditação.
O grupo ficou de pé. Veronika não sabia o que fazer.
- Levante-se também - disse Mari, pegando-a pela mão. Temos cinco minutos de recreio.
- Vou embora, não quero atrapalhar.
Mari levou-a para um canto.
- Será que você não aprendeu nada, nem mesmo com a
proximidade da morte? Pare de pensar o tempo todo que está
causando algum constrangimento, que está perturbando seu próximo!
Se as pessoas não gostarem, elas reclamarão! E se não tiverem
coragem de reclamar, o problema é delas!
- Aquele dia, quando me aproximei de vocês, estava
fazendo algo que nunca ousara antes.
- E se deixou acovardar com uma mera brincadeira de
loucos. Por que não continuou adiante? O que tinha a perder?
- Minha dignidade. Estar onde não sou bem-vinda.
- O que é dignidade? É querer que todo mundo ache que
você é boa, bem-comportada, cheia de amor ao próximo? Respeite a
natureza; veja mais filmes de animais, e repare como eles lutam
por seu espaço. Todos nós ficamos contentes com aquele tapa que
você deu.
Veronika não tinha mais tempo para lutar por nenhum
espaço, e mudou de assunto; perguntou quem era aquele homem.
- Está melhorando -, riu Mari. – Faz perguntas, sem
medo de que pensem que é indiscreta. Este homem é um mestre sufi.
- O que quer dizer sufi?
- Lã.
Veronika não entendeu. Lã?
- O sufismo é uma tradição espiritual dos dervixes, onde
os mestres não procuram mostrar sabedoria, e os discípulos dançam,
rodopiam, e entram em transe.
- Para que serve isso?
- Não estou bem certa; mas nosso grupo resolveu viver
todas as experiências proibidas. Durante toda a minha vida, o
governo nos educou dizendo que a busca espiritual existia apenas
para afastar o homem dos seus problemas reais. Agora me responda o
seguinte: você não acha que tentar entender a vida é um problema
real?”
Sim. Era um problema real. Além do mais, já não tinha
mais certeza do que a palavra realidade queria dizer.
O homem de terno – um mestre sufi, segundo Mari – pediu
que todos sentassem em círculo. De um dos vasos do refeitório,
tirou todas as flores – com exceção de uma rosa vermelha – e
colocou-o no centro do grupo.
- Veja o que conseguimos – disse Veronika para Mari. –
Algum louco resolveu que era possível criar flores no inverno, e
hoje em dia temos rosas o ano inteiro, em toda a Europa. Você acha
que um mestre sufi, com todo o seu conhecimento, é capaz de fazer
isso?
Mari pareceu adivinhar seu pensamento.
- Deixe as críticas para depois.
- Tentarei. Porque tudo que tenho é o presente, por
sinal, muito curto.
- É tudo que todo mundo tem, e é sempre muito curto –
embora alguns achem que possuem um passado, onde acumularam
coisas, e um futuro, onde acumularão ainda mais. Por sinal,
falando em momento presente, você já se masturbou muito?
Embora o calmante ainda estivesse fazendo efeito,
Veronika lembrou-se da primeira frase que escutara em Villete.
- Quando eu entrei em Villete, ainda cheia de tubos de
respiração artificial, ouvi claramente alguém me perguntar se
queria ser masturbada. Que é isso? Por que vivem pensando nestas
coisas aqui?
- Aqui e lá fora. Só que, no nosso caso, não precisamos
esconder.
- Foi você quem me perguntou?
- Não. Mas acho que devia saber até onde pode ir seu
prazer. Da próxima vez, com um pouco de paciência, poderá levar o
seu parceiro até lá, ao invés de ficar sendo guiada por ele. Mesmo
que só lhe restem dois dias de vida, acho não deve partir daqui
sem saber onde poderia ter chegado. - Só se for com o
esquizofrênico que me está esperando para escutar piano.
- Pelo menos, ele é um homem bonito.
O homem de terno pediu silencio, interrompendo a
conversa. Mandou que todos se concentrassem na rosa, e esvaziassem
suas mentes.
- Os pensamentos vão voltar, mas evite-os. Vocês tem
duas escolhas: dominar suas mentes, ou serem dominados por ela. Já
viveram esta segunda alternativa – deixaram-se levar pelos medos,
neuroses, insegurança – porque o homem tem esta tendência a
autodestruição.
“Não confundam a loucura com a perda de controle.
Lembrem-se que na tradição sufi, o principal mestre – Nasrudin – é
o que todos chamam de louco. E justamente porque a sua cidade o
considera insano, Nasrudin tem a possibilidade de dizer tudo o que
pensa, e fazer o que lhe dá vontade. Assim era com os bobos da
corte, na época medieval; podiam alertar o rei sobre todos os
perigos que os ministros não ousavam comentar, porque temiam
perder os seus cargos.
“ Assim deve ser com vocês; mantenham-se loucos, mas
comportem-se como pessoas normais. Corram o risco de serem
diferentes – mas aprendam a fazer isso sem chamar a atenção.
Concentrem-se nesta flor, e deixem que o verdadeiro Eu se
manifeste.”
- O que é o verdadeiro Eu? - interrompeu Veronika.
Talvez todos ali soubessem, mas isso não importava: ela devia
preocupar-se menos com a história de incomodar aos outros.
O homem pareceu surpreso com a interrupção, mas
respondeu:
- É aquilo que você é, não o que fizeram de você.
Veronika resolveu fazer o exercício, empenhando-se ao
máximo para descobrir quem era. Nestes dias em Villete, sentira
coisas que nunca havia experimentado com tanta intensidade – ódio,
amor, desejo de viver, medo, curiosidade. Talvez Mari tivesse
razão: será que conhecia mesmo o orgasmo? Ou só tinha chegado até
onde os homens a quiseram levar?
O senhor de terno começou a tocar a flauta. Aos poucos a
música foi acalmando sua alma, e ela conseguiu fixar-se na rosa.
Podia ser o efeito do calmante, mas o fato é que, desde que saíra
do consultório do Dr. Igor, sentia-se muito bem.
Sabia que ia morrer logo: para que sentir medo? Não
ajudaria em nada, nem evitaria o ataque fatídico do coração; o
melhor era aproveitar os dias, ou horas que restavam, fazendo o
que nunca tinha feito.
A música vinha suave, e a luz embaçada do refeitório
criara uma atmosfera quase religiosa. Religião: por que não
tentava mergulhar dentro de si, e ver o que sobrara de suas
crenças e de sua fé?
Porque a música a conduzia para um outro lado: esvaziar
a cabeça, deixar de refletir sobre tudo, e apenas SER. Veronika
entregou-se, contemplou a rosa, viu quem era, gostou, e ficou com
pena de ter sido tão precipitada.
Quando a meditação terminou e o mestre sufi partiu, Mari
ainda ficou um pouco no refeitório, conversando com a
Fraternidade. A menina queixou-se de cansaço e foi logo embora –
afinal, o calmante que tomara aquela manhã era forte o bastante
para fazer dormir um touro, e mesmo assim ela conseguira forças
para ficar acordada até aquela hora.
“Juventude é assim mesmo, estabelece os próprios limites
sem perguntar se o corpo aguenta. E o corpo sempre aguenta.”
Mari estava sem sono; tinha dormido até tarde, depois
resolveu dar um passeio em Lubljana – Dr. Igor exigia que os
membros da Fraternidade saíssem de Villete todo dia. Fora ao
cinema, e tornara a dormir na poltrona, com um filme
aborrecidíssimo sobre conflitos entre marido e mulher. Será que
não tinham outro tema? Por que repetir sempre as mesmas historias
- marido com amante, marido com mulher e filho doente, marido com
mulher, amante e filho doente? Havia coisas mais importantes no
mundo para contar.
A conversa no refeitório durou pouco; a meditação
relaxara o grupo, e todos resolveram voltar para os dormitórios –
menos Mari, que saiu para dar um passeio no jardim. No caminho,
passou pela sala de estar e viu que a menina não tinha ainda
conseguido ir até o quarto: estava tocando para Eduard,
esquizofrênico, que possivelmente ficara esperando todo este
tempo ao lado do piano. Os loucos, como as crianças, só arredavam
o pé depois de verem seus desejos satisfeitos.
O ar estava gelado. Mari voltou, apanhou um agasalho e
tornou a sair. Lá fora, longe dos olhos de todos, acendeu um
cigarro. Fumou sem culpa e sem pressa, refletindo sobre a menina,
o piano que escutava, e a vida do lado de fora dos muros de
Villete – que estava ficando insuportavelmente difícil para todo
mundo.
Na opinião de Mari, esta dificuldade não se devia ao
caos, ou a desorganização, ou a anarquia – e sim ao excesso de
ordem. A sociedade tinha cada vez mais regras – e leis para
contrariar as regras – e novas regras para contrariar as leis;
isso deixava as pessoas assustadas, e elas já não davam um passo
sequer fora do regulamento invisível que guiava a vida de todos.
Mari entendia do assunto; passara quarenta anos de sua
vida trabalhando como advogada, até que sua doença a trouxera a
Villete. Logo no início de sua carreira, perdera rapidamente a
ingênua visão da Justiça, e passara a entender que as leis não
haviam sido criadas para resolver problemas, e sim para prolongar
indefinidamente uma briga.
Pena que Allah, Jeovah, Deus - não importa que nome lhe
dessem – não tivesse vivido no mundo de hoje. Porque, se assim
fosse , nós todos ainda estaríamos no Paraíso, enquanto Ele
estaria ainda respondendo a recursos , apelos, rogatórias,
precatórias, mandatos de segurança, liminares – e teria que se
explicar em inúmeras audiências sua decisão de expulsar Adão e
Eva do Paraíso – apenas por transgredir uma lei arbitrária, sem
nenhum fundamento jurídico: não comer o fruto do Bem e do Mal.
Se Ele não queria que isso acontecesse, porque colocou a
tal árvore no meio do Jardim – e não fora dos muros do Paraíso? Se
fosse chamada para defender o casal, Mari seguramente acusaria
Deus “omissão administrativa”, porque, além de colocar a árvore
em lugar errado, não a cercou com avisos, barreiras, deixando de
adotar os mínimos requisitos de segurança, e expondo todos que
passavam ao perigo.
Mari também podia acusa-lo de “indução ao crime”: chamou
a atenção de Adão e Eva para o exato local onde se encontrava. Se
não tivesse dito nada, gerações e gerações passariam por esta
Terra sem que ninguém se interessasse pelo fruto proibido – já
que devia estar numa floresta, cheia de árvores iguais, e portanto
sem nenhum valor específico.
Mas Deus não agira assim. Pelo contrário, escreveu a lei
e achou um jeito de convencer alguém a transgredi-la, só para
poder inventar o Castigo. Sabia que o Adão e Eva terminariam
entediados com tanta coisa perfeita, e – mais cedo ou mais tarde –
iriam testar Sua paciência Dele. Ficou ali esperando, porque
talvez também Ele – Deus Todo Poderoso – estava entediado com as
coisas funcionando perfeitamente: se Eva não tivesse comido a
maçã, o que teria acontecido de interessante nestes bilhões de
anos?
Nada.
Quando a lei foi violada, Deus – o Juiz Todo Poderoso –
ainda simulara uma perseguição, como se não conhecesse todos os
esconderijos possíveis. Com os anjos olhando e divertindo-se com a
brincadeira ( a vida para eles também devia ser muito aborrecida,
desde que Lucifer deixara o Céu), Ele começou a caminhar. Mari
imaginava como aquele trecho da Bíblia daria uma bela cena num
filme de suspense: os passos de Deus, os olhares assustados que o
casal trocava entre si, os pés que subitamente paravam ao lado do
esconderijo.
“Onde estás?” perguntara Deus.
“Ouvi seu passo no jardim, tive medo e me escondi,
porque estou nu”, respondera Adão, sem saber que, a partir desta
afirmação, passava a ser réu confesso de um crime.
Pronto. Através de um simples truque, onde aparentava
não saber onde Adão estava, nem o motivo de sua fuga, Deus
conseguira o que desejava. Mesmo assim, para não deixar nenhuma
dúvida à platéia de anjos que assistia atentamente o episódio, Ele
resolvera ir mais adiante.
“Como sabes que estás nu?” dissera Deus, sabendo que
esta pergunta só teria uma resposta possível: porque comi da
arvore que me permite entender isso.
Com aquela pergunta, Deus mostrou aos seus anjos que era
justo, e estava condenando o casal com base em todas as provas
existentes.A partir dali, não importava mais saber se a culpa era
da mulher, nem pedir para ser perdoado; Deus precisava de um
exemplo, de modo que nenhum outro ser – terrestre ou celeste –
tivesse de novo o atrevimento de ir contra Suas decisões.
Deus expulsou o casal, seus filhos terminaram pagando
também pelo crime (como acontece até hoje com os filhos de
criminosos), e o sistema judiciário fora inventado: lei,
transgressão da lei (lógica ou absurda não tinha importância),
julgamento (onde o mais experiente vencia o ingênuo), e castigo.
Como toda a humanidade fora condenada sem direito de
revisão de sentença, os seres humanos decidiram criar mecanismos
de defesa – para a eventualidade que Deus resolvesse de novo
demonstrar Seu poder arbitrário. Mas, no decorrer de milênios de
estudos, os homens inventaram tantos recursos que terminaram
exagerando na dose – e agora a Justiça era um emaranhado de
clausulas, jurisprudência, textos contraditórios que ninguém
conseguia entender direito.
Tanto é assim que, quando Deus resolveu mudar de idéia e
mandar o seu Filho para salvar o mundo, o que acontecera? Caira
nas malhas da Justiça que Ele havia inventado.
O emaranhado de leis terminou fazendo tanta confusão,
que o Filho terminara pregado numa cruz. Não foi um processo
simples: de Anás para Caifás, dos sacerdotes para Pilatos, que
alegou não ter leis suficientes segundo o Código Romano. De
Pilatos para Herodes, que – por sua vez – alegou que o código
judeu não permitia a sentença de morte. De Herodes para Pilatos de
novo, que ainda tentou uma apelação, oferecendo um acordo jurídico
ao povo: açoitou-o e mostrou suas feridas, mas não funcionou.
Como fazem os modernos promotores, Pilatos resolveu
promover-se as custas do condenado: ofereceu-se para trocar Jesus
por Barrabás, sabendo que a Justiça, a esta altura, já se havia
convertido num grande espetáculo onde é preciso um final
apoteótico, com a morte do réu.
Finalmente, Pilatos usou artigo que facultava ao juiz –
e não a quem estava sendo julgado – o benefício da dúvida: lavou
as mãos, o que quer dizer “nem sim, nem não.” Era mais um
artifício para preservar o sistema jurídico romano, sem ferir o
bom relacionamento com os magistrados locais, e ainda podendo
transferir o peso da decisão para o povo – no caso daquela
sentença terminar criando problemas, fazendo com que algum
inspetor da capital do Império fosse verificar pessoalmente o que
estava acontecendo.
Justiça. Direito. Embora fosse indispensável para ajudar
os inocentes, nem sempre funcionava da maneira que todos
gostariam.Mari ficou contente de estar longe desta confusão toda,
embora esta noite – com aquele piano tocando – não estivesse tão
certa se Villete era o lugar indicado para ela.
“Se eu decidir sair de vez deste lugar, nunca mais me
meto em Justiça, não vou mais conviver com loucos que se julgam
normais e importantes – mas cuja única função na vida é fazer tudo
mais difícil para os outros. Vou ser costureira, bordadeira, vou
vender frutas em frente ao Teatro Municipal; já cumpri a minha
parte de loucura inútil.”
Em Villete era permitido fumar, mas era proibido jogar o
cigarro na grama. Com prazer, ela fez o que era proibido, porque
a grande vantagem de estar ali era não respeitar regulamentos, e –
mesmo assim – não ter que aguentar maiores conseqüências.
Aproximou-se da porta de entrada. O guarda – sempre
havia um guarda ali, afinal esta era a lei – cumprimentou-a com um
aceno de cabeça, e abriu a porta.
- Não vou sair – disse ela.
- Belo piano – respondeu o guarda. – Tem acontecido
quase todas as noites.
- Mas vai acabar logo – disse, afastando-se rápido para
não ter que explicar a razão.
Lembrou-se do que lera nos olhos da moça, no momento em
que ela entrou no refeitório: medo.
Medo. Veronika podia sentir insegurança, timidez,
vergonha, constrangimento, mas por que medo? Este sentimento só
justifica-se diante de uma ameaça concreta - como animais ferozes,
pessoas armadas, terremotos – jamais de um grupo reunido num
refeitório.
“Mas o ser humano é assim”, consolou-se. “Substitui
grande parte de suas emoções pelo medo.”
E Mari sabia muito bem do que estava falando, porque
este fora o motivo que a levara até Villete: a síndrome do pânico.
Mari mantinha no seu quarto uma verdadeira coleção de
artigos sobre a doença. Hoje já se falava abertamente do tema, e
recentemente vira um programa de televisão alemã onde algumas
pessoas relatavam as experiências que haviam passado. Neste mesmo
programa, uma pesquisa revelava que parte significativa da
população humana sofre de sindome do pânico, embora quase todos os
afetados procurassem esconder os sintomas, com medo de serem
considerados loucos.
Mas na época em que Maria tivera seu primeiro ataque,
nada disso era conhecido.“Foi o inferno. O verdadeiro inferno”,
pensou, acendendo outro cigarro.
O piano continuava tocando, a moça parecia ter energia
suficiente para passar a noite em claro.
Desde que aquela menina entrara no sanatório, muitos
internos haviam sido afetados – e Mari era um deles. No começo,
tinha procurado evita-la, temendo despertar sua vontade de viver;
era melhor que continuasse desejando a morte, porque não podia
evita-la mais. O Dr. Igor deixara escapar o boato de que, embora
continuasse lhe dando injeções todos os dias, o estado da moça
deteriorava a olhos vistos, e não conseguiria salva-la de jeito
nenhum.
Os internos haviam entendido o recado, e mantinham
distancia da mulher condenada. Mas – sem que ninguém soubesse
exatamente porque – Veronika começara a lutar por sua vida, embora
apenas duas pessoas se aproximassem dela: Zedka, que iria embora
amanhã, e não era de falar muito. E Eduard.
Mari precisava ter uma conversa com Eduard: ele sempre a
escutava com respeito. Será que o rapaz não entendia que a estava
trazendo de volta ao mundo? E que isso era a pior coisa que podia
fazer com uma pessoa sem esperança de salvação?
Considerou mil possibilidades de explicar o assunto:
todas elas envolviam coloca-lo com sentimento de culpa, e isto ela
não faria nunca. Mari refletiu um pouco e resolveu deixar as
coisas correrem seu ritmo normal; já não advogava mais, e não
queria dar o mau exemplo de criar novas leis de comportamento, num
local onde devia reinar a anarquia.
Mas a presença da menina tinha afetado muita gente ali,
e alguns estavam dispostos a repensar suas vidas. Num dos
encontros da Fraternidade, alguem tentara explicar o que estava
acontecendo: os falecimentos em Villete aconteciam de repente,
sem dar tempo do ninguém pensar a respeito, ou no final de uma
longa doença - onde a morte sempre é uma benção.
No caso daquela menina, porém, a cena era dramática –
porque era jovem, estava desejando viver de novo, e todos sabiam
que isso era impossível. Algumas pessoas se perguntavam: “se isso
estivesse acontecendo comigo? Como eu tenho uma chance, será que
a estou utilizando? ”
Alguns não se incomodavam com a resposta; há muito
tinham desistido, e já faziam parte de um mundo onde não existe
nem vida nem morte, nem espaço nem tempo. Outros, porem, estavam
sendo forçados a refletir, e Mari era um deles.
Veronika parou de tocar por um instante, e olhou Mari
lá fora, enfrentando o frio noturno com um casaco leve; será que
ela queria se matar?
“Não. Quem quis se matar fui eu.”
Voltou ao piano. Nos seus últimos dias de vida,
realizara finalmente o grande sonho: tocar com alma e coração, o
tempo que quisesse, na altura que achasse melhor. Não tinha
importância se a sua única platéia era um rapaz esquizofrênico;
ele parecia entender a música, e isso era o que contava.
Mari nunca quisera se matar. Ao contrário, há cinco anos
atrás, dentro do mesmo cinema onde fora hoje, ela assistia
horrorizada um filme sobre a miséria em El Salvador, e pensava o
quanto sua vida era importante. Nesta época – com os filhos já
grandes e encaminhados em suas profissões - já estava decidida a
largar o aborrecido e interminável trabalho de advocacia, para
dedicar o resto de seus dias trabalhando numa entidade
humanitária. Os rumores de guerra civil no país cresciam a cada
momento, mas Mari não acreditava neles: era impossível que, no
final do século, a Comunidade Européia deixasse ocorrer uma nova
guerra em suas portas.
Do outro lado do mundo, porém, a escolha das tragédias
era farta: e entre estas tragédias estava a de El Salvador, com
suas crianças passando fome na rua, e sendo obrigadas a
prostituir-se.
-Que horror - disse ao marido, sentado na poltrona ao
lado.
Ele concordou com a cabeça.
Mari vinha adiando a decisão há muito tempo, mas talvez
fosse a hora de conversar com ele. Já tinham recebido tudo que a
vida podia oferecer de bom: casa, trabalho, bons filhos, conforto
necessário, divertimento e cultura. Porque não fazer agora algo
pelo próximo? Mari tinha contatos na Cruz Vermelha, sabia que
voluntários eram desesperadamente necessários em muitas partes do
mundo.
Estava farta de trabalhar com burocracia, processos,
sendo incapaz de ajudar gente que passava anos de sua vida para
resolver um problema que não havia criado. Trabalhar na Cruz
Vermelha, porém, iria dar resultados imediatos.
Resolveu que, assim que saíssem do cinema, iria convidalo para um café, e discutir a idéia.
A tela mostrava algum funcionário do governo
salvadorenho dando uma desculpa desinteressante para determinada
injustiça, e – de repente – Mari sentiu que seu coração acelerava.
Disse para si mesmo que não era nada. Talvez o ar
abafado do cinema a estivesse asfixiando; se o sintoma
persistisse, ia até a sala de espera respirar um pouco.
Mas, numa sucessão rápida de acontecimentos, o coração
começou a bater mais e mais forte, e ela começou a suar frio.
Assustou-se, e tentou prestar atenção no filme, para ver
se tirava qualquer tipo de pensamento negativo da cabeça. Mas viu
que já não conseguia acompanhar o que estava acontecendo na tela;
as imagens continuavam, os letreiros eram visíveis, enquanto Mari
parecia haver entrado numa realidade completamente diferente, onde
tudo aquilo era estranho, fora de lugar, pertencendo a um mundo
onde jamais estivera antes.
- Estou passando mal - disse ao marido.
Procurara evitar ao máximo fazer este comentário, porque
significava admitir que algo estava errado com ela. Mas era
impossível adia-lo mais.
- Vamos até lá fora- respondeu ele.
Quando pegou na mão da mulher para ajuda-la a levantarse, notou que estavam geladas.
- Não vou conseguir chegar até lá fora. Por favor, me
diga o que está acontecendo.
O marido assustou-se. O rosto de Mari estava coberto de
suor, e seus olhos tinham um brilho diferente.
- Fique calma. Eu vou sair, e chamar um médico.
Ela desesperou-se. As palavras faziam sentido, mas todo
o resto – o cinema, a penumbra, as pessoas sentadas lado a lado e
olhando para uma tela brilhante – tudo aquilo parecia ameaçador.
Tinha certeza de que estava viva, podia até mesmo tocar a vida ao
seu redor, como se fosse sólida. E nunca antes passara por aquilo.
- Não me deixe aqui sozinha, de maneira nenhuma. Vou
levantar, e vou sair com você. Ande devagar.
Os dois pediram licença aos espectadores que se
encontravam na mesma fila, e começaram a caminhar em direção ao
fundo da sala, onde estava a porta de saída. O coração de Mari
agora estava completamente disparado, e ela tinha certeza,
absoluta certeza, de que nunca ia conseguir deixar aquele local.
Tudo que fazia, cada gesto seu – colocar um pé diante do outro,
pedir licença, agarrar-se ao braço do marido, respirar e expirar –
parecia consciente e pensado, e aquilo era aterrador.
Nunca sentira tanto medo em sua vida.
“ Vou morrer dentro de um cinema”.
E julgou entender o que estava passando, porque uma
amiga sua morrera dentro de um cinema, há muitos anos atrás: um
aneurisma havia estourado em seu cérebro.
Os aneurismas cerebrais são as bombas-relógio. Pequenas
varizes que se formam nos vasos sanguíneos – como bolhas em pneus
usados - e que podem passar ali toda a existência de uma pessoa,
sem que nada aconteça. Ninguém sabe se tem um aneurisma, até que
ele é descoberto sem querer – como no caso de uma radiografia do
cérebro por outros motivos – ou no momento em que ele explode,
inundando tudo de sangue, colocando a pessoa imediatamente em
coma, e geralmente fazendo com que morra em pouco tempo.
Enquanto caminhava pelo corredor da sala escura, Mari
lembrava-se da amiga que perdera. O mais estranho, porém, era como
a explosão do aneurisma estava afetando a sua percepção: ela
parecia ter sido transportada para um planeta diferente, vendo
cada coisa familiar como se fosse a primeira vez.
E o medo aterrador, inexplicável, o pânico de estar só
naquele outro planeta. A morte.
“Não posso pensar. Tenho que fingir que tudo está bem, e
tudo ficará bem”.
Procurou agir naturalmente, e por alguns segundos a
sensação de estranheza diminuiu. Desde o momento em que tivera o
primeiro sintoma de taquicardia, até a hora que alcançou a porta,
havia passado os dois minutos mais aterradores de sua vida.
Quando chegaram a sala de espera iluminada, porém, tudo
pareceu voltar. As cores eram fortes, o ruído da rua lá fora
parecia entrar por todos os cantos, e as coisas eram absolutamente
irreais. Começou a reparar em detalhes que nunca antes havia
notado: a nitidez da visão, por exemplo, que cobre apenas uma
pequena área onde concentramos nossos olhos, enquanto o resto fica
totalmente desfocado.
Foi mais longe ainda: sabia que tudo aquilo que via a
sua volta não passava de uma cena criada por impulsos elétricos
dentro de seu cérebro, utilizando impulsos de luz que atravessavam
um corpo gelatinoso, chamado “olho”.
Não. Não podia começar a pensar nisso. Se enveredasse
por aí, ia terminar completamente louca.
A esta altura, o medo do aneurisma já tinha passado; ela
saíra da sala de projeção e continuava viva – enquanto sua amiga
não tivera nem tempo de mover-se da cadeira.
- Chamarei uma ambulância - disse o marido, ao ver o
rosto pálido e os lábios sem cor de sua mulher.
- Chame um taxi - pediu, escutando o som que saia de
sua boca, consciente da vibração de cada corda vocal.
Ir para o hospital significava aceitar que estava
realmente muito mal: Mari estava decidida a lutar até o último
minuto para que as coisas voltassem a ser o que eram.
Saíram da sala de espera, e o frio cortante pareceu
surtir algum efeito positivo; Mari recuperou um pouco o controle
de si mesma, embora o pânico, o terror inexplicável continuasse.
Enquanto o marido, desesperado, tentava encontrar um táxi aquela
hora da noite, ela sentou-se no meio fio e procurou não olhar o
que havia a sua volta – porque os garotos brincando, os ônibus
passando, a música que vinha de um parque de diversões nas
cercanias, tudo aquilo parecia absolutamente surrealista,
assustador, irreal.
Um taxi finalmente apareceu.
- Para o hospital - disse o marido, ajudando a mulher a
entrar.
- Para casa, pelo amor de Deus - pediu ela. Não queria
mais lugares estranhos, precisava desesperadamente de coisas
familiares, iguais, capazes de diminuir o medo que sentia.
Enquanto o taxi se dirigia ao destino indicado, a
taquicardia foi diminuindo, e a temperatura de seu corpo começou a
voltar ao normal.
- Estou melhorando -disse para o marido. - Deve ser sido
alguma coisa que comi.
Quando chegaram em casa, o mundo parecia de novo o mesmo
que conhecera desde sua infância. Ao ver o marido dirigir-se ao
telefone, perguntou o que ia fazer.
- Chamar um médico.
- Não há necessidade. Olhe para mim, veja que estou bem.
A cor de seu rosto havia voltado, o coração batia
normalmente, e o medo incontrolável tinha desaparecido.
Mari dormiu pesadamente aquela noite, e acordou com uma
certeza; alguém colocara alguma droga no café que haviam bebido
antes de entrar no cinema. Tudo não passara de uma brincadeira
perigosa, e ela estava disposta - no final da tarde - a chamar um
promotor e ir até o bar para tentarem descobrir o irresponsável
autor da idéia.
Foi para o trabalho, despachou alguns processos que
estavam pendentes, procurou ocupar-se com os mais diversos
assuntos – a experiência do dia anterior ainda lhe deixava um
pouco assustada, e precisava mostrar a si mesma que aquilo não se
repetiria nunca mais.
Discutiu com um dos seus sócios o filme sobre El
Salvador e mencionou – de passagem – que já estava cansada de
fazer todo dia a mesma coisa.
- Talvez tenha chegado a hora de me aposentar.
- Você é uma das melhores que temos – disse o sócio. – E
o Direito é uma das raras profissões onde a idade sempre conta a
favor. Por que não tira umas férias prolongadas? Tenho certeza que
voltará com entusiasmo para cá.
- Quero dar uma guinada na minha vida. Viver uma
aventura, ajudar os outros, fazer algo que nunca fiz.
A conversa acabou por ali. Foi até a praça, almoçou num
restaurante mais caro do que o que costumava almoçar sempre, e
voltou mais cedo para o escritório – a partir daquele momento,
estava começando a sua retirada.
O resto dos funcionários ainda não voltara, e Mari
aproveitou para ver o trabalho que ainda estava em sua mesa. Abriu
a gaveta para pegar uma caneta que sempre colocava no mesmo lugar,
e não conseguiu encontra-la. Por uma fração de segundo, pensou que
talvez estivesse agindo de maneira estranha, pois não havia
recolocado sua caneta onde devia.
Foi o suficiente para que o coração tornasse a disparar,
e o terror da noite anterior voltasse com toda a sua força.
Mari ficou paralisada. O sol que entrava pelas persianas
dava a tudo uma cor diferente, mais viva, mais agressiva, mas ela
tinha a sensação de que ia morrer no próximo minuto; tudo aquilo
ali era absolutamente estranho, o que estava fazendo naquele
escritório?
“Meu Deus, eu não acredito em você, mas me ajuda”.
Começou de novo a suar frio, e viu que não conseguia
controlar seu medo. Se alguém entrasse ali, naquele momento, ia
notar seu olhar assustado, e ela estaria perdida.
“O frio”.
O frio tinha feito com que se sentisse melhor no dia
anterior, mas como chegar até a rua? De novo estava percebendo
cada detalhe que se passava com ela – o ritmo da respiração (havia
momentos em que sentia que, se não inspirasse e expirasse, o corpo
seria incapaz de fazer isso por si mesmo), o movimento da cabeça
(as imagens mudavam de lugar como se fosse uma câmara de televisão
girando), o coração disparando cada vez mais, o corpo sendo
banhado por um suor gelado e pastoso.
E o terror. Sem qualquer explicação, um medo gigantesco
de fazer qualquer coisa, dar qualquer passo, sair de onde estava
sentada.
“Vai passar”.
Tinha passado no dia anterior. Mas agora estava no
trabalho, o que fazer? Olhou o relógio – que lhe pareceu também um
mecanismo absurdo, com duas agulhas girando em torno do mesmo
eixo, indicando uma medida de tempo que ninguém jamais dissera
porque devia ser 12, e não 10 – como todas as outras medidas do
homem.
“Não posso pensar nestas coisas. Elas me deixam louca”.
Louca. Talvez esta fosse a palavra certa para o que
estava lhe acontecendo; juntando toda a sua vontade, Mari
levantou-se e caminhou para o banheiro. Felizmente o escritório
continuava vazio, e ela conseguiu chegar onde queria em um minuto
– que lhe pareceu uma eternidade. Lavou o rosto, e a sensação de
estranhamento diminuiu, mas o medo continuava.
“Vai passar”, dizia para si mesma. “Ontem passou”.
Lembrava-se que, no dia anterior, tudo havia demorado
aproximadamente uns 30 minutos. Trancou-se dentro de uma das
toaletes, sentou-se no vaso, e colocou a cabeça entre as pernas. A
posição fez com que o som de seu coração fosse ampliado, e Mari
logo ergueu o corpo.
“Vai passar.”
Ficou ali, achando que não conhecia mais a si mesma,
estava irremediavelmente perdida. Escutou passos de gente entrando
e saindo do banheiro, torneiras sendo abertas e fechadas,
conversas inúteis sobre temas banais. Mais de uma vez alguém
tentou abrir a porta do toalete onde estava, mas ela dava um
murmúrio, e ninguém insistia. Os ruídos das descargas soavam como
algo apavorante, capaz de derrubar o edifício e levar todas as
pessoas para o inferno.
Mas - conforme previra - o medo foi passando, e seu
coração foi voltando ao normal. Ainda bem que sua secretária era
incompetente o bastante para sequer notar a sua falta, ou já todo
o escritório estaria no banheiro, perguntando se ela estava bem.
Quando viu que conseguia manter de novo o controle de si
mesma, Mari abriu a porta, lavou o rosto por um longo tempo, e
voltou para o escritório.
- A senhora está sem maquiagem - disse uma estagiária. Quer que eu lhe empreste a minha?
Mari não se deu ao trabalho de responder. Entrou no
escritório, pegou sua bolsa, seus pertences pessoais, e disse para
a secretária que ia passar o resto do dia em casa.
- Mas existem muitos encontros marcados! – protestou a
secretária.
- Você não dá ordens: recebe. Faça exatamente o que
estou mandando.
A secretária acompanhou com os olhos aquela mulher, com
quem trabalhava há quase três anos, e que nunca fora grosseira.
Algo muito sério devia estar acontecendo com ela: talvez alguém
lhe tivesse dito que o marido estava em casa com uma amante, e ela
queria provocar um flagrante de adultério.
“É uma advogada competente, sabe como agir”, disse a
moça para si mesma. Com certeza, amanhã a doutora lhe pediria
desculpas.
Não houve amanhã. Naquela noite teve uma longa conversa
com o marido, e descreveu-lhe todos os sintomas do que passara a
sentir. Juntos, chegaram a conclusão que as palpitações no
coração, o suor frio, a estranheza, impotência e descontrole –
tudo podia ser resumido numa só palavra: medo.
Marido e mulher estudaram juntos o que estava
acontecendo. Ele pensou em um câncer na cabeça, mas não disse
nada. Ela pensou que estava tendo premonições de algo terrível, e
tampouco disse. Procuraram um terreno comum para conversar, com a
lógica e a razão de gente madura.
- Talvez seja bom você fazer uns exames.
Mari concordou, sob uma condição: ninguém, nem mesmo os
seus filhos, podiam saber de nada.
No dia seguinte solicitou – e recebeu – uma licença
não remunerada de 30 dias no escritório de advocacia. O marido
pensou em leva-la para a Áustria, onde estavam os grandes
especialistas de doenças no cérebro, mas ela recusava-se a sair de
casa – os ataques agora eram mais frequentes, e demoravam mais
tempo.
Com muito custo, e a base de calmantes, os dois até um
hospital de Lubljana, e Zedka submeteu-se a uma quantidade enorme
de exames. Nada de anormal foi encontrado – nem mesmo um
aneurisma, o que tranquilizou Mari pelo resto dos anos seguintes.
Mas os ataques de pânico continuavam. Enquanto o marido
ocupava-se das compras e cozinhava, e Mari fazia uma limpeza
diária e compulsiva na casa, para manter a mente concentrada em
outras coisas. Começou a ler todos os livros de psiquiatria que
podia encontrar, e parou de ler logo em seguida – porque parecia
identificar-se com cada uma das doenças que eram descritas ali.
O mais terrível de tudo é que os ataques já não eram
mais novidade, e mesmo assim ela continuava sentindo pavor,
estranhamento diante da realidade, incapacidade de controlar a si
mesma. Além disso, começou a culpar-se pela situação do marido,
que era obrigado a trabalhar dobrado, suprindo suas próprias
tarefas como dona de casa – exceto a limpeza.
Com os dias passando, e a situação não se resolvendo,
Mari começou a sentir – e externar – uma irritação profunda. Tudo
era motivo para que perdesse a calma e começasse a gritar,
terminando invariavelmente num choro compulsivo.
Depois de trinta dias, o sócio de Mari no escritório
apareceu em sua casa. Ele ligava todos os dias, mas ela não
atendia o telefone, ou mandava o marido dizer que estava ocupada.
Naquela tarde, ele simplesmente ficou tocando a campainha, até que
ela abrisse a porta.
Mari tinha passado uma manhã tranquila. Preparou um chá,
conversaram sobre o escritório, e ele perguntou quando ela
voltaria a trabalhar.
- Nunca mais.
Ele recordou a conversa sobre El Salvador.
-Você sempre deu o melhor de si, e tem o direito de
escolher o que quiser– disse ele, sem qualquer rancor na voz. –
Mas penso que o trabalho, nestes casos, é a melhor de todas as
terapias. Faça as suas viagens, conheça o mundo, seja útil onde
acha que estão precisando de você, mas as portas do escritório
estão abertas, esperando sua volta.
Ao ouvir isso, Mari caiu em prantos – como costumava
fazer agora, com muita facilidade.
O sócio esperou até que ela se acalmasse. Como bom
advogado, não perguntou nada; sabia que tinha mais chances de
conseguir uma resposta com o seu silencio, do que com uma
pergunta.
E assim foi. Mari contou a história, desde o que
acontecera no cinema, até os seus recentes ataques histéricos com
o marido, tanto a apoiava.
- Estou louca – disse.
- É uma possibilidade – respondeu ele, com ar de quem
entende tudo, mas com ternura em sua voz. – Neste caso, você tem
duas coisas a fazer: tratar-se, ou continuar doente.
- Não há tratamento para o que estou sentindo. Continuo
em pleno domínio de minhas faculdades mentais, e estou tensa
porque esta situação já se prolonga por muito tempo. Mas não tenho
os sintomas clássicos da loucura – como ausência da realidade,
desinteresse, ou agressividade descontrolada. Apenas medo.
- É o que todos os loucos dizem: que são normais.
Os dois riram, e ela preparou um pouco mais de chá.
Conversaram sobre o tempo, o sucesso da independência eslovena, a
tensões que agora surgiam entre a Croácia e a Yugoslavia. Mari
assistia TV o dia inteiro, e estava muito bem informada sobre
tudo.
Antes de se despedir, o sócio tornou a tocar no assunto.
- Acabam de abrir um sanatório na cidade – disse. –
Capital externo, e tratamento de primeiro mundo.
- Tratamento de que?
- Desequilíbrios, vamos dizer assim. E medo em exagero é
um desequilíbrio.
Mari prometeu pensar no assunto, mas não tomou nenhuma
decisão neste sentido. Continuou a ter ataques de pânico por mais
um mês, até entender que não apenas sua vida pessoal, mas seu
casamento estava vindo abaixo. De novo pediu alguns calmantes, e
ousou sair de casa – pela segunda vez em sessenta dias.
Tomou um táxi, e foi até o novo sanatório. No caminho, o
motorista perguntou se ia visitar alguém.
- Falam que é muito confortável, mas dizem também que os
loucos são furiosos, e que os tratamentos incluem choques
elétricos.
- Vou visitar alguém – respondeu Mari.
Bastou apenas uma hora de conversa para que dois meses
de sofrimento de Mari terminassem. O chefe da instituição - um
homem alto e cabelos tingidos de negro, que atendia pelo nome de
Dr. Igor – explicou que tratava-se de apenas um caso de Síndrome
do Pânico, doença recem-admitida nos anais da psiquiatria
universal.
- Não quer dizer que a doença seja nova – explicou, com
o cuidado de ser bem compreendido. – Acontece que as pessoas
afetadas costumava esconde-la, com medo de serem confundidos com
loucos. É apenas um desequilíbrio químico no organismo, como é o
caso da depressão.
Dr. Igor escreveu uma receita, e pediu que voltasse para
casa.
- Não quero voltar agora – respondeu Mari. – Mesmo com
tudo que o senhor me disse, não vou ter coragem de sair na rua.
Meu casamento virou um inferno, e preciso deixar que meu marido
também se recupere destes meses que passou cuidando de mim.
Como sempre acontecia em casos como estes – já que os
acionistas queriam manter o hospício funcionando em plena
capacidade – o Dr. Igor aceitou a internação, embora deixando bem
claro que não era necessário.
Mari recebeu a medicação necessária, teve um
acompanhamento psicológico, e os sintomas diminuíram – terminando
por passar completamente.
Neste meio tempo, porém, a história da internação de
Mari correu a pequena cidade de Lubljana. O seu sócio, amigo de
muitos anos, companheiro de não se sabe quantas horas de alegria e
medo, veio visita-la em Villete. Cumprimentou-a pela coragem de
aceitar seu conselho, e procurar ajuda. Mas logo disse a razão por
que viera:
- Talvez seja mesmo hora de você se aposentar.
Mari entendeu o que estava por detrás daquelas palavras:
ninguém ia querer confiar seus negócios a uma advogada que já
tinha sido internada num hospício.
- Você disse que o trabalho era a melhor terapia. Eu
preciso voltar, nem que seja por um tempo muito curto.
Ela aguardou qualquer reação, mas ele não disse nada.
Mari continuou:
- Você mesmo sugeriu que eu me tratasse. Quando eu
pensava em aposentadoria, estava pensando em sair vitoriosa,
realizada, por minha livre e expontânea vontade. Não quero largar
meu emprego assim, porque fui derrotada. Dê-me pelo menos uma
chance de recuperar minha auto-estima, e então eu peço a
aposentadoria.
O advogado pigarreou.
- Eu sugeri que você se tratasse, não que se internasse.
- Mas era uma questão de sobrevivência. Eu simplesmente
não conseguia sair na rua, o meu casamento estava acabando.
Mari sabia que estava jogando suas palavras fora. Nada
do que fizesse iria conseguir dissuadi-lo – afinal de contas, era
o prestígio do escritório que estava em jogo. Mesmo assim, tentou
mais uma vez.
- Eu aqui dentro tenho convivido com dois tipos de
pessoas: gente que não tem chance de voltar a sociedade, e gente
que está absolutamente curada, mas prefere fingir-se de louca,
para não ter que enfrentar as responsabilidades da vida. Eu quero,
eu preciso voltar a gostar de mim mesma, devo convencer-me que
sou capaz de tomar minhas próprias decisões. Não posso ser
empurrada para coisas que não escolhi.
- Nós podemos cometer muitos erros em nossas vidas –
disse o advogado. – Menos um: aquele que nos destrói.
Não adiantava continuar a conversa: na opinião dele,
Mari havia cometido o erro fatal.
Dois dias depois, anunciaram a visita de outro advogado
– desta vez de um escritório diferente, considerado o melhor rival
dos seus agora ex-companheiros. Mari animou-se: talvez ele
soubesse que ela estava livre para aceitar um novo emprego, e ali
estava a chance de recuperar o seu lugar no mundo.
O advogado entrou na sala de visitas, sentou-se diante
dela, sorriu, perguntou se já estava melhor, e tirou vários
papéis da mala.
- Estou aqui por causa do seu marido – disse. – Isto é
um pedido de divórcio. É claro, ele pagará suas despesas de
hospital pelo tempo que permanecer aqui.
Desta vez, Mari não reagiu. Assinou tudo, mesmo sabendo
que – de acordo com a Justiça que havia aprendido – podia
prolongar indefinidamente aquela briga. Em seguida, foi até o Dr.
Igor, e disse que os sintomas de pânico haviam retornado.
Dr. Igor sabia que ela estava mentindo, mas prolongou a
internação por tempo indeterminado.
Veronika resolveu se deitar, mas Eduard continuava de
pé, ao lado do piano.
- Estou cansada, Eduard. Preciso dormir.
Gostaria de continuar tocando para ele, retirando de sua
memória anestesiada todas as sonatas, requiens, adágios que
conhecia – porque ele sabia admirar sem exigir. Mas seu corpo não
aguentava mais.
Ele era um homem tão bonito! Se pelo menos saísse um
pouco de seu mundo e a olhasse como uma mulher, então as suas
últimas noites nesta terra podiam ser as mais belas de sua vida,
porque Eduard era o único capaz de entender que Veronika era uma
artista. Conseguira com aquele homem um tipo de ligação como
jamais conseguira com alguém – através da emoção pura de uma
sonata ou de um minueto.
Eduard era o homem ideal. Sensível, educado, que
destruíra um mundo desinteressante para recria-lo de novo em sua
cabeça, desta vez com novas cores, personagens, histórias. E este
mundo novo incluía uma mulher, um piano, e uma lua que continuava
a crescer.
- Eu podia me apaixonar agora, entregar tudo que tenho a
você – disse, sabendo que ele não podia entende-la. –Você me pede
apenas um pouco de música, mas eu sou muito mais do que pensava
que era, e gostaria de dividir outras coisas que passei a
entender.
Eduard sorriu. Será que tinha compreendido? Veronika
ficou com medo – o manual do bom comportamento diz que não se deve
falar de amor de uma maneira tão direta, e jamais com um homem que
vira tão poucas vezes. Mas resolveu continuar, porque não tinha
nada a perder.
- Você é o único homem na face da terra pelo qual eu
posso me apaixonar, Eduard. Simplesmente porque, quando eu morrer,
você não sentirá minha falta. Não sei o que um esquizofrênico
sente, mas certamente não deve ser saudades de alguém.
“Talvez, no início, você estranhe o fato de que não
existe mais música durante a noite; entretanto, sempre que a lua
aparecer, haverá alguém disposto a tocar sonatas, principalmente
num sanatório – já que todos nós aqui somos “lunáticos”.
Não sabia qual a relação entre os loucos e a lua, mas
devia ser muito forte, pois usavam uma palavra daquelas para
descrever os doentes mentais.
- E eu tampouco vou sentir falta de você, Eduard, porque
vou estar morta, longe daqui. E como não tenho medo de perde-lo,
não me importo com o que você vai pensar ou não de mim, eu hoje
toque para você como uma mulher apaixonada. Foi ótimo. Foi o
melhor momento de minha vida.
Olhou para Mari lá fora. Lembrou-se de suas palavras. E
tornou a olhar para o rapaz a sua frente.
Veronika tirou o suéter, aproximou-se de Eduard – se
tivesse que fazer algo, que fosse agora. Mari não ia aguentar o
frio lá fora por muito tempo, e logo tornaria a entrar.
Ele recuou. A pergunta em seus olhos era outra: quando
iria voltar para o piano? Quando tocaria uma nova musica, para
encher sua alma com as mesmas cores, sofrimentos, dores, e
alegrias daqueles compositores loucos, que tinham atravessado
tantas gerações com suas obras?
- A mulher lá fora me disse: “masturbe-se. Saiba onde
quer chegar”. Será que posso ir mais longe do que sempre fui?
Ela pegou sua mão, e quis conduzi-lo até o sofá, mas
Eduard polidamente recusou. Preferia ficar de pé onde estava, ao
lado do piano, esperando pacientemente que ela voltasse a tocar.
Veronika ficou desconcertada, e logo se deu conta que
nada tinha a perder. Estava morta, de que adiantava ficar
alimentando medos ou preconceitos com que sempre limitaram a sua
vida? Tirou a blusa, a calça, o sutiã, a calcinha, e ficou nua
diante dele.
Eduard riu. Ela não sabia de que, mas reparou que ele
rira. Delicadamente, pegou sua mão, e colocou-a em seu sexo; a mão
ficou ali, imóvel. Veronika desistiu da idéia, e retirou-a.
Algo a estava excitando muito mais do que um contato
físico com aquele homem: o fato de que podia fazer o que quisesse,
de que não havia limites – exceto pela mulher lá fora, que podia
entrar a qualquer hora, ninguém mais devia estar acordado.
O sangue começou a correr mais rápido, e o frio –
sentira ao seu despir - foi desaparecendo. Os dois estavam de pé,
frente a frente, ela nua, ele totalmente vestido. Veronika desceu
a mão até o seu sexo, e começou a masturbar-se; já fizera aquilo
antes, sozinha ou com alguns parceiros - mas nunca numa situação
como esta, onde o homem não demonstrava qualquer interesse pelo
que estava acontecendo.
E isso era excitante, muito excitante. De pé, com as
pernas abertas, Veronika tocava seu sexo, seus seios, seus
cabelos, entregando-se como nunca se entregara, nem tanto porque
queria ver aquele rapaz saindo do seu mundo distante, mas porque
nunca tinha experimentado isto.
Começou a falar, a dizer coisas impensáveis, que seus
pais, seus amigos, seus ancestrais considerariam o que havia de
mais sujo no mundo. Veio o primeiro orgasmo, e ela mordeu os
lábios para não gritar de prazer.
Eduard a encarava. Havia um brilho diferente nos seus
olhos, parecia que estava compreendendo alguma coisa, nem que
fosse a energia, o calor, o suor, o cheiro que exalava do seu
corpo. Veronika ainda não estava satisfeita. Ajoelhou-se, e
começou a masturbar-se de novo.
Queria morrer de gozo, de prazer, pensando e realizando
tudo que sempre lhe fora proibido: implorou ao homem que a
tocasse, que a submetesse, que a usasse para tudo o que tinha
vontade. Quis que Zedka estivesse também ali, porque uma mulher
sabe como tocar o corpo da outra como nenhum homem consegue, já
que conhece todos os seus segredos.
De joelhos, diante daquele homem em pé, ela sentiu-se
possuída e tocada, e usou palavras pesadas para descrever o que
queria que ele lhe fizesse. Um novo orgasmo foi chegando, desta
vez mais forte que nunca, como se tudo a sua volta fosse explodir.
Lembrou-se do ataque do coração que tivera aquela manhã, mas isto
não tinha mais nenhuma importância, ia morrer gozando, explodindo.
Sentiu-se tentada a segurar o sexo de Eduard, que se encontrava
bem diante do seu rosto, mas não queria correr nenhum risco de
estragar aquele momento; estava indo longe, muito longe,
exatamente como Mari dissera.
Imaginou-se rainha e escrava, dominadora e dominada. Em
sua fantasia, fazia amor com brancos, negros, amarelos,
homossexuais, mendigos. Era de todos, e todos podiam fazer tudo.
Teve um , dois, três orgasmos seguidos. Imaginou tudo que nunca
imaginara antes – e entregou-se ao que havia de mais vil e mais
puro. Finalmente, não conseguiu mais conter-se e gritou muito, de
prazer, da dor dos orgasmos seguidos, dos muitos homens e mulheres
que tinham entrado e saído do seu corpo, usando as portas de sua
mente.
Deitou-se no chão, e deixou-se ficar ali, inundada de
suor, com a alma cheia de paz. Escondera seus desejos ocultos de
si mesma, sem nunca saber direito por que – e não precisava de uma
resposta. Bastava ter feito o que fizera: entregar-se.
Pouco a pouco, o Universo foi voltando ao seu lugar, e
Veronika levantou-se. Eduard se mantivera imóvel o tempo todo, mas
algo nele parecia ter mudado: seus olhos demonstravam ternura, uma
ternura muito próxima deste mundo.
“Foi tão bom que consigo ver amor em tudo. Até mesmo
nos olhos de um esquizofrênico. “
Começou a colocar suas roupas, e sentiu uma terceira
presença na sala.
Mari estava ali. Veronika não sabia quando ela havia
entrado, o que escutara ou vira, mas mesmo assim não sentia
vergonha ou medo. Apenas olhou-a, com a mesma distância com que se
olha uma pessoa próxima demais.
- Fiz o que você sugeriu – disse. – Cheguei longe.
Mari permaneceu em silêncio; tinha acabado de reviver
momentos muito importantes de sua vida, e sentia um certo malestar. Talvez fosse hora de voltar para o mundo, enfrentar as
coisas lá fora, dizer que todos podiam ser membros de uma grande
Fraternidade, mesmo sem nunca terem conhecido um hospício.
Como aquela garota, por exemplo – cuja única razão por
estar em Villete era ter atentado contra a própria vida. Ela
jamais conhecera o pânico, a depressão, as visões místicas, as
psicoses, os limites que a mente humana nos pode levar. Embora
conhecesse tantos homens, nunca experimentara o que há de mais
oculto em seus desejos – e o resultado é que não conhecia nem
metade de sua vida. Ah, se todos pudessem conhecer e conviver com
sua loucura interior! O mundo seria pior? Não, as pessoas seriam
mais justas e mais felizes.
- Por que nunca fiz isso antes?
- Ele quer que você toque mais uma música – disse Mari,
olhando para Eduard. – Acho que merece.
- Farei isso, mas responda: por que nunca tinha feito
isso antes? Se sou livre, se posso pensar em tudo que quero, por
que sempre evitei imaginar situações proibidas?
- Proibidas? Escute: eu já fui advogada, e conheço as
leis. Também já fui católica, e sabia de cor grande parte da
Bíblia. O que você quer dizer com “proibida”?
Mari aproximou-se dela, e ajudou-a a vestir o suéter.
- Olhe bem nos meus olhos, e não esqueça o que vou lhe
dizer. Só existem duas coisas proibidas – uma pela lei do homem,
outra pela lei de Deus . Nunca force uma relação com alguém, que
é considerado estupro. E nunca tenha relações com crianças,
porque este é o pior dos pecados. Afora isto, você é livre. Sempre
existe alguém querendo exatamente a mesma coisa que você deseja.
Mari não estava com paciência de ensinar coisas
importantes a alguém que iria morrer logo. Com um sorriso, disse
“boa noite” e retirou-se.
Eduard não se moveu, esperando sua música. Veronika
precisava recompensa-lo pelo imenso prazer que ele lhe dera, só
pelo fato de permanecer diante dela, olhando sua loucura sem pavor
ou repulsa. Sentou-se no piano e recomeçou a tocar.
Sua alma estava leve, e nem mesmo o medo da morte lhe
atormentava mais. Tinha vivido o que sempre escondera de si mesma.
Tinha experimentado os prazeres de virgem e de prostituta, de
escrava e rainha – mais de escrava do que de rainha.
Naquela noite, como por milagre, todas as canções que
sabia voltaram a sua mente, e ela fez com que Eduard tivesse quase
tanto prazer quanto ela.
Quando acendeu a luz, o Dr. Igor ficou surpreso ao ver a
moça sentada na sala de espera do seu consultório.
- Ainda é muito cedo. E estou com o dia cheio.
- Sei que é cedo – disse ela. – E o dia ainda não
começou. Preciso falar um pouco, só um pouco. Preciso de ajuda.
Ela estava com olheiras, a pele sem brilho, sintomas
típicos de quem passara a noite inteira em claro.
Dr. Igor resolveu deixa-la entrar.
Pediu que sentasse, acendeu a luz do consultório, e
abriu as cortinas. Ia amanhecer daqui há menos de uma hora, e logo
poderia economizar os gastos com eletricidade; os acionistas
sempre s importavam com despesas, por mais insignificantes que
fossem.
Deu uma rápida olhada em sua agenda: Zedka já havia
tomado seu último choque de insulina, e reagira bem – ou melhor,
conseguira sobreviver ao tratamento desumano. Ainda bem que,
naquele caso específico, o Dr. Igor exigira que o Conselho do
hospital assinasse uma declaração, responsabilizando-se pelos
resultados.
Passou a examinar os relatórios. Dois ou três pacientes
tinham se comportado de maneira agressiva durante a noite, segundo
relato de enfermeiros – entre eles Eduard, que voltara para sua
enfermaria as quatro horas da manhã, e recusara-se tomar os
comprimidos para dormir. Dr. Igor precisava tomar uma providencia;
por mais liberal que Villete fosse do lado de dentro, era preciso
manter as aparecerias de uma instituição conservadora e severa.
- Tenho algo muito importante para pedir – disse a moça.
Mas o Dr. Igor não lhe deu atenção. Pegando um
estetoscópio, começou a auscultar o seu pulmão e coração. Testou
seus reflexos, e examinou o fundo da retina com uma pequena
lanterna portátil. Viu que ela quase não tinha mais sinais de
envenenamento por Vitríolo - ou Amargura, como todos preferiam
chamar.
Em seguida, foi até o telefone e pediu para a
enfermeira trazer um remédio de nome complicado.
disse ele.
- Parece que você não tomou sua injeção ontem a noite –
- Mas estou me sentindo melhor.
- Dá para ver no seu rosto: olheiras, cansaço, falta de
reflexos imediatos. Se você quer aproveitar o pouco tempo que lhe
resta, por favor faça o que eu mando.
- Justamente por isso que estou aqui. Quero aproveitar o
pouco tempo, mas a minha maneira. Quanto tempo sobra?
O Dr. Igor olhou-a por sobre os óculos.
- O Sr. pode me responder – insistiu ela. – Já não tenho
medo, nem indiferença, nem nada. Tenho vontade de viver, mas sei
que isso não basta, e estou conformada com meu destino.
- Então o que quer?
A enfermeira entrou com a injeção. Dr. Igor fez um sinal
com a cabeça; ela levantou delicadamente a manga do suéter de
Veronika.
- Quanto tempo me resta? – repetiu Veronika, enquanto a
enfermeira aplicava a injeção.
- Vinte e quatro horas. Talvez menos.
Ela abaixou os olhos, e mordeu os lábios. Mas manteve o
controle.
- Quero pedir dois favores. O primeiro, que me dê um
remédio, uma injeção, seja o que for – de modo que eu posso ficar
acordada, e aproveitar cada minuto do que sobrou de minha vida. Eu
estou com muito sono, mas não quero mais dormir, tenho muito o que
fazer – coisas que sempre deixei para o futuro, quando pensava que
a vida era eterna. Coisas que perdi o interesse, quando passei a
acreditar que a vida não valia a pena.
- Qual o seu segundo pedido?
- Sair daqui, e morrer lá fora. Preciso subir no
castelo de Lubljana, que sempre esteve ali, e nunca tive a
curiosidade de vê-lo de perto. Preciso conversar com a mulher que
vende castanhas no inverno, e flores na primavera; quantas vezes
nos cruzamos, e eu nunca lhe perguntei como passava? Quero andar
na neve sem casaco, sentindo o frio extremo – eu, que sempre
estive bem agasalhada, com medo de pegar um resfriado.
“Enfim, Dr. Igor, eu preciso apanhar chuva no rosto,
sorrir para os homens que me interessam, aceitar todos os cafés
para os quais me convidam. Tenho que beijar minha mãe, dizer que
a amo, chorar no seu colo – sem vergonha de mostrar meus
sentimentos, porque eles sempre existiram, e eu os escondi.
“Talvez eu entre na igreja, olhe aquelas imagens que
nunca me disseram nada, e elas terminem me dizendo alguma coisa.
Se um homem interessante me convidar para uma boate
eu vou
aceitar, e vou dançar a noite inteira, até cair exausta. Depois
irei para a cama com ele – mas não da maneira como fui com outros,
ora tentando manter o controle, ora fingindo coisas que não
sentia. Quero me entregar à um homem, à cidade, à vida e,
finalmente, à morte. “
Houve um pesado silencio quando Veronika acabou de
falar. Médico e paciente se olhavam nos olhos, absortos, talvez
distraídos com as muitas possibilidades que simples 24 horas
podiam oferecer.
- Posso lhe dar alguns medicamentos estimulantes, mas
não aconselho seu uso – disse finalmente o Dr. Igor. – Eles
afastarão o sono, mas também levarão embora a paz que você
necessita para viver tudo isso.
Veronika começou a sentir-se mal; sempre que tomava
aquela injeção, algo de ruim acontecia no seu corpo.
- Você está ficando mais pálida. Talvez seja melhor ir
para a cama, e voltaremos a conversar amanhã.
Ela sentiu de novo vontade de chorar, mas continuou
mantendo o controle.
- Não haverá amanhã, e o Sr. sabe disso. Estou cansada,
Dr. Igor, extremamente cansada. Por isso pedi os comprimidos.
Passei a noite em claro, entre o desespero e a aceitação. Podia
ter um novo ataque histérico de medo, como aconteceu ontem, mas de
que adiantaria? Se ainda tenho vinte e quatro horas de vida, e há
tantas coisas diante de mim, decidi que era melhor deixar o
desespero de lado.
“Por favor, Dr. Igor, deixe-me viver o pouco tempo que
me resta – porque nós dois sabemos que amanhã pode ser tarde. “
- Vá dormir – insistiu o médico. E volte aqui ao meiodia. Tornaremos a conversar.
Veronika viu que não havia saída.
- Vou dormir, e voltarei. Mas ainda temos alguns
minutos?
- Alguns poucos minutos. estou muito ocupado hoje.
- Vou ser direta. Ontem a noite, pela primeira vez, eu
me masturbei de uma maneira completamente livre. Pensei em tudo
que nunca ousara pensar, tive prazer em coisas que antes me
assustavam ou me repeliam.
O Dr. Igor assumiu a postura mais profissional possível.
Não sabia onde esta conversa podia levar, e não queria problemas
com seus superiores.
- Descobri que sou uma pervertida, doutor. Quero saber
se isso colaborou para que eu tentasse suicídio. Há muitas coisas
que eu desconhecia em mim mesma.
“Bem, é apenas uma resposta”, pensou ele. “Não preciso
chamar a enfermeira para testemunhar a conversa, e evitar futuros
processos por abuso sexual”.
- Todos nós queremos fazer coisas diferentes –
respondeu. – E os nossos parceiros também. O que há de errado?
- Responda o senhor.
- Há tudo de errado. Porque quando todos sonham e só
alguns poucos realizam, o mundo inteiro sente-se covarde.
- Mesmo que estes poucos estejam certos?
- Quem está certo é quem é mais forte. Neste caso,
paradoxalmente, os covardes são mais corajosos, e conseguem impor
suas idéias.
Dr. Igor não queria ir mais longe.
- Por favor, vá descansar um pouco, porque tenho outros
pacientes a atender. Se você colaborar, verei o que posso fazer
com relação ao seu segundo pedido.
A moça saiu. Sua próxima paciente era Zedka, que deveria
receber alta, mas Dr. Igor pediu que esperasse um pouco; precisava
tomar algumas notas sobre a conversa que acabara de ter.
Era necessário incluir um extenso capítulo sobre sexo na
sua dissertação sobre o Vitríolo. Afinal, grande parte das
neuroses e psicoses provinham dali – segundo ele, as fantasias são
impulsos elétricos no cérebro, e, uma vez não sendo realizadas,
terminam descarregando sua energia em outras áreas.
Durante seu curso de medicina, Dr. Igor lera um
interessante tratado sobre as minorias sexuais: sadismo,
masoquismo, homossexualismo, coprofagia, vouyerismo, desejo de
dizer palavras sórdidas - enfim, a lista era muito extensa. No
inicio, achava que aquilo era apenas o desvio de algumas pessoas
desajustadas, que não conseguiam ter um relacionamento saudável
com seu parceiro.
Entretanto, a medida que ia avançando na profissão de
psiquiatra– e entrevistando seus pacientes – dava-se conta que
todo mundo tinha algo de diferente para contar. Sentavam-se na
confortável poltrona de seu escritório, olhavam para baixo, e
começavam uma longa dissertação sobre o que chamavam de
“doenças”(como se não fosse ele o médico!) ou “perversões”(como se
não fosse ele o psiquiatra encarregado de decidir!).
E, uma por uma, as pessoas “normais”descreviam fantasias
que constavam do famoso livro sobre as minorias eróticas – um
livro, aliás, que defendia o direito de cada um ter o orgasmo que
quisesse, desde que não violentasse o direito do seu parceiro.
Mulheres que tinham estudado em colégios de freira
sonhavam em serem humilhadas; homens de terno e gravata,
funcionários públicos de alto escalão, dizendo que gastavam
fortunas com prostitutas rumenas para que apenas pudessem lamberlhes os pés. Rapazes apaixonados por rapazes, moças enamoradas
pelas amigas de colégio. Maridos que queriam ver suas mulheres
possuídas por estranhos, mulheres que se masturbavam cada vez que
encontravam uma pista do adultério do seu homem. Mães que
precisavam controlar o impulso de entregar-se ao primeiro homem
que tocava a campainha para entregar algo, pais que contavam
aventuras secretas com os raríssimos travestis que conseguiam
passar o rigoroso controle da fronteira.
E orgias. Parecia que todo mundo, pelo menos uma vez na
vida, desejava participar de uma orgia.
Dr. Igor largou um pouco a caneta, e refletiu sobre si
mesmo: ele também? Sim, ele também gostaria. A orgia, tal qual a
imaginava, devia ser algo completamente anárquico, alegre, onde o
sentimento de posse não existia mais – apenas o prazer e a
confusão.
Seria este um dos principais motivos para a grande
quantidade de pessoas envenenadas pela Amargura? Casamentos
restritos a um monoteísmo forçado, onde o desejo sexual – segundo
estudos que o Dr. Igor guardava cuidadosamente em sua biblioteca
médica – desaparecia no terceiro ou quarto ano de convivência. A
partir dali, a mulher sentia-se rejeitada, o homem sentia-se
escravo do casamento – e o Vitriolo, a amargura começava a
destruir tudo.
As pessoas, diante de um psiquiatra, falavam mais
abertamente do que diante de um padre – porque o médico não pode
ameaçar com inferno. Durante sua longa carreira de psiquiatra, Dr.
Igor já tinha ouvido praticamente tudo que elas tinham para
contar.
Contar. Raramente fazer. Mesmo depois de vários anos de
profissão, ele ainda se perguntava por que tanto medo de ser
diferente.
Quando procurava saber a razão, a resposta que mais
escutava era: “meu marido vai pensar que sou uma prostituta”.
Quando era um homem que estava na sua frente, este invariavelmente
dizia: “minha mulher merece respeito”.
E a conversa geralmente parava por aí. Não adiantava
dizer que todas as pessoas tinham um perfil sexual diferente, tão
distinto como as suas impressões digitais: ninguém queria
acreditar nisso. Era muito arriscado ser livre na cama, com medo
de que o outro ainda fosse escravo de seus preconceitos.
“Não vou mudar o mundo”, resignou-se, pedindo que a
enfermeira mandasse entrar a ex-depressiva. “Mas pelo menos posso
dizer o que penso em minha teses´.
Eduard viu que Veronika saia do consultório do Dr. Igor,
e encaminhava-se para a enfermaria. Teve vontade de contar seus
segredos, abrir sua alma para ela, com a mesma honestidade e
liberdade com que – na noite anterior – ela abrira seu corpo
para ele.
Tinha sido uma das mais duras provas que passara desde que ingressara em Villete como esquizofrênico. Mas
conseguira resistir, e estava contente – embora seu desejo de
voltar a este mundo começasse a incomoda-lo.
“Todo mundo aqui sabe que esta moça não resistirá até o
final da semana. Não adiantaria nada”.
Ou talvez, justamente por isso, fosse bom dividir com
ela a sua história. Há três anos conversava apenas com Mari, e
mesmo assim não tinha certeza de que ela o compreendia
perfeitamente; como mãe, ela devia achar que seus pais tinham
razão, que desejavam apenas o melhor para eles, que as Visões do
Paraíso era um sonho bobo de adolescente, totalmente fora do mundo
real.
Visões do Paraíso. Exatamente o que lhe levara ao
inferno, as brigas sem fim com a família, a sensação de culpa tão
forte que lhe deixara incapaz de reagir, e o obrigara a refugiarse num outro mundo. Se não fosse por Mari, ele ainda estaria
vivendo nesta realidade separada.
Entretanto Mari aparecera, cuidara, fizera com que se
sentisse de novo amado. Graças a isso, Eduard ainda era capaz de
saber o que acontecia a sua volta.
Há alguns dias atrás, uma moça de sua idade sentara-se
ao piano para tocar “Sonata ao Luar”. Sem saber se a culpa era da
música, ou da moça, ou da lua, ou do tempo que já passara em
Villete, Eduard sentira que as Visões do Paraíso começavam a
incomoda-lo de novo.
Ele a seguiu até a enfermaria de mulheres, onde foi
barrado por um enfermeiro.
- Aqui você não pode entrar, Eduard. Volte para o
jardim; está amanhecendo, e vai fazer um dia lindo.
Veronika olhou para trás.
- Vou dormir um pouco – ela lhe disse, delicadamente. –
Conversamos quando eu acordar.
Veronika não entendia porque, mas aquele rapaz passara a
fazer parte do seu mundo – ou do pouco que restara dele. Tinha
certeza que Eduard era capaz de compreender sua música, admirar
seu talento; mesmo que não conseguisse dar uma palavra, seus olhos
diziam tudo.
Como neste momento, na porta da enfermaria, quando
falavam coisas que ela não queria ouvir.
Ternura. Amor.
“Esta convivência com doentes mentais me fez enlouquecer
rápido”. Esquizofrênicos não sentem isso – não por seres deste
mundo.
Veronika sentiu o impulso de voltar para lhe dar um
beijo, mas controlou-se; o enfermeiro podia ver, contar ao Dr.
Igor, e o médico na certa não daria permissão para que uma mulher
que beija esquizofrênicos saísse de Villete.
Eduard encarou o enfermeiro. Sua atração por aquela moça
era mais forte do que imaginava – mas precisava se controlar, ia
aconselhar-se com Mari, a única pessoa com quem dividia seus
segredos. Na certa ela lhe diria que o que estava querendo sentir
– amor – era perigoso e inútil num caso como aqueles. Mari pediria
para que Eduard deixasse de bobagem, e voltasse a ser um
esquizofrênico normal (e depois daria uma risada gostosa, porque a
frase não fazia qualquer sentido).
Juntou-se aos outros internos no refeitório, comeu o que
lhe ofereceram, e saiu para o obrigatório passeio no jardim.
Durante o “banho de sol” (naquele dia a temperatura estava abaixo
de zero), ele tentou aproximar-se de Mari. Mas ela estava com um
jeito de alguém que deseja ficar sozinho. Não precisava dizer-lhe
nada, pois Eduard conhecia o suficiente da solidão para saber
respeita-la.
Um novo interno chegou perto de Eduard. Ainda não devia
conhecer as pessoas.
“Deus puniu a humanidade”, dizia. “ E puniu com a peste.
Entretanto, eu O vi em meus sonhos – Ele pediu que eu viesse
salvar a Eslovenia.”
Eduard começou a afastar-se, enquanto o homem gritava:
“Você acha que sou louco? Então leia os evangelhos! Deus
enviou seu filho, e seu filho volta pela segunda vez!”
Mas Eduard já não o ouvia mais. Olhava as montanhas do
lado de fora, e perguntava o que estava acontecendo com ele. Por
que tinha vontade de sair dali, se encontrara finalmente a paz que
tanto buscava? Por que arriscar-se a envergonhar de novo os seus
pais, quando todos os problemas da família já estavam resolvidos?
Começou a ficar agitado, andando de um lado para o outro,
esperando que Mari saísse de seu mutismo e pudessem conversar –
mas ela parecia mais distante que nunca.
Sabia como fugir de Villete – por mais severa que a
segurança pudesse parecer, tinha muitas falhas. Simplesmente
porque, uma vez do lado de dentro, as pessoas tinham muito pouca
vontade voltar para o lado de fora. Havia um muro, do lado oeste,
que podia ser escalado sem grandes dificuldades, e já que estava
cheio de rachaduras; quem resolvesse ultrapassa-lo logo estaria
num campo, e – cinco minutos depois, seguindo em direção norte –
encontraria uma estrada para a Croácia. A guerra já tinha
terminado, os irmãos eram de novo irmãos, as fronteiras não eram
mais tão vigiadas como antes; com um pouco de sorte, poderia
estar em Belgrado em seis horas.
Eduard já estivera várias vezes naquela estrada, mas
sempre resolvera voltar, porque ainda não havia recebido um sinal
para ir adiante. Agora as coisas eram diferentes:
este sinal finalmente chegara, sob a forma de uma moça de olhos
verdes, cabelos castanhos, e jeito assustado de quem pensa que
sabe o que quer.
Eduard pensou em ir direto para o muro, sair dali, e
nunca mais ser visto na Eslovenia. Mas a moça dormia, ele
precisava ao menos despedir-se dela.
No final do banho de sol, quando a Fraternidade se
reuniu na sala de estar, Eduard juntou-se a eles.
- O que este louco está fazendo aqui? - perguntou o mais
velho do grupo.
- Deixe-o - disse Mari. - Nós também somos loucos.
Todos riram, e começaram a conversar sobre a palestra do
dia anterior. A questão era: será que realmente a meditação sufi
podia transformar o mundo? Apareceram teorias, sugestões, modos
de usar, idéias contrárias, críticas ao conferencista, maneiras de
melhorar o que já havia sido testado por tantos séculos.
Eduard estava farto daquele tipo de discussão. As
pessoas se trancavam num hospício e ficavam salvando o mundo, sem
se preocuparem em correr os riscos – porque sabiam que lá fora
todos os chamariam de ridículos, mesmo que tivessem idéias muito
concretas. Cada uma daquelas pessoas tinha uma teoria especial
sobre tudo, e acreditava que sua verdade era a única que
importava; passavam dias, noites, semanas, e anos conversando,
sem jamais aceitarem a única realidade que há por detrás de uma
idéia: boa ou má, ela só existe quando alguém tenta coloca-la em
prática. .
O que era meditação sufi? O que era Deus? O que era a
salvação, se é que o mundo precisava ser salvo? Nada. Se todos ali
– e lá fora - vivessem suas vidas e deixassem que os outros
fizessem o mesmo, Deus estaria em cada instante, em cada grão de
mostarda, no pedaço de nuvem que se mostra e se desfaz no momento
seguinte. Deus estava ali, e mesmo assim as pessoas acreditavam
que era preciso continuar procurando, porque parecia simples
demais aceitar que a vida era um ato de fé.
Lembrou-se do exercício tão singelo, tão simples, que
escutara o mestre sufi ensinando, enquanto esperava Veronika
voltar ao piano: olhar uma rosa. Era preciso mais que isso?
Mesmo assim, depois da experiência da meditação
profunda, depois de terem chegado tão perto das visões do
paraíso, ali estavam aquelas pessoas discutindo, argumentando,
criticando, estabelecendo teorias.
Cruzou seus olhos com o de Mari. Ela evitou-o, mas
Eduard estava decidido a terminar de vez com aquela situação;
aproximou-se dela e segurou-a pelo braço.
- Pare com isso, Eduard.
Ele podia dizer: “venha comigo”. Mas não queria faze-lo
na frente daquela gente, que ficaria surpresa com o tom firme de
sua voz. Por isso, preferiu ajoelhar-se e implorar com seus olhos.
Os homens e mulheres riram.
- Você virou uma santa para ele, Mari – alguém comentou.
– Foi a meditação de ontem.
Mas os anos de silencio de Eduard o tinham ensinado a
falar com os olhos; era capaz de colocar toda a sua energia neles.
Da mesma maneira que tinha absoluta certeza que Veronika percebera
sua ternura e seu amor, sabia que Mari iria entender seu
desespero, porque ele estava precisando muito dela.
Ela relutou mais um pouco. Finalmente, levantou-o e
pegou-o pela mão.
- Vamos dar um passeio – disse. – Você está nervoso.
Os dois tornaram a sair para o jardim. Assim que estavam
a uma distancia segura, certos de que ninguém assistia a conversa,
Eduard quebrou o silencio.
- Durante anos permaneci aqui em Villete – disse. –
Deixei de envergonhar meus pais, deixei minhas ambições de lado,
mas as Visões do Paraíso permaneceram.
- Sei disso – respondeu Mari. – Já conversamos a
respeito muitas vezes. E sei também onde você quer chegar: é hora
de sair.
Eduard olhou o céu; será que ela sentia o mesmo?
- E é por causa da garota – continuou Mari. - Já vimos
muita gente morrer aqui dentro, sempre no momento em que não
esperavam, e geralmente depois de terem desistido da vida. Mas
esta é a primeira vez que isso acontece com uma pessoa jovem,
bonita, saudável – com tanta coisa pela frente para viver.
“Veronika é a única que não desejaria continuar em
Villete para sempre. E isto nos fez perguntar: e nós? O que
procuramos aqui?”
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Então, ontem a noite, eu também me perguntei o que
estava fazendo neste sanatório. E achei que seria muito mais
interessante estar na praça, nas Três Pontes, no mercado em frente
ao teatro – comprando maçãs e discutindo o tempo. Claro que
estaria lidando com coisas já esquecidas – como contas a pagar,
dificuldades com os vizinhos, olhar irônico de gente que não me
compreende, solidão, reclamações de meus filhos. Mas penso que
isso tudo faz parte da vida, e o preço de enfrentar estes pequenos
problemas é bem menor que o preço de não reconhece-los como nosso.
“Estou pensando em ir a casa de meu ex-marido hoje, só
para dizer “obrigado”. O que você acha?
- Nada. Será que devia ir até a casa dos meus pais, e
dizer o mesmo?
- Talvez. No fundo, a culpa de tudo que acontece em
nossa vida é exclusivamente nossa. Muitas pessoas passaram pelas
mesmas dificuldades que passamos, e reagiram de maneira diferente.
Nós procuramos o mais fácil: uma realidade separada.
Eduard sabia que Mari tinha razão.
- Estou com vontade de recomeçar a viver, Eduard.
Cometendo os erros que sempre desejei e nunca tive coragem.
Enfrentando o pânico que pode voltar a surgir, mas cuja presença
apenas me dará cansaço, porque sei que não vou morrer ou desmaiar
por causa dele. Posso arranjar novos amigos, e ensina-los a serem
loucos, para que sejam sábios. Direi que não sigam o manual do bom
comportamento, descubram suas próprias vidas, desejos, aventuras,
e VIVAM! Citarei o Eclesiastes para os católicos, o Corão para os
islâmicos,a Torah para os judeus, os textos de Aristóteles para
os ateus. Nunca mais quero ser advogada, mas posso usar minha
experiência para dar conferencias sobre homens e mulheres que
conheceram a verdade desta existência, e cujos escritos podem ser
resumidos em uma única palavra: “Vivam”. Se você viver, Deus
viverá com você. Se você se recusar a correr seus riscos, Ele
retornará ao distante Céu, e será apenas um tema de especulação
filosófica.
“Todo mundo sabe disso. Mas ninguém dá o primeiro
passo. Talvez por medo de ser chamado de louco. E, pelo menos,
este medo nós não temos, Eduard. Já passamos por Villete.
- Só não podemos ser candidatos à Presidência da
República. A oposição ia explorar muito o nosso passado.
Mari riu e concordou.
- Cansei desta vida. Não sei se vou conseguir superar
meu medo, mas estou farta da Fraternidade, deste jardim, de
Villete, de fingir que sou louca.
- Se eu fizer isso, você faz?
- Você não fará isso.
- Quase fiz, há alguns minutos atrás.
- Não sei. Cansei disso tudo, mas já estou acostumada.
- Quando entrei aqui, com diagnóstico de esquizofrenia,
você passou dias, meses, me dando atenção e me tratando como um
ser humano. Eu também estava me acostumando com a vida que
decidira levar, com a outra realidade que criei, mas você não
deixou. Eu a odiei, e hoje a amo. Quero que você saia de Villete,
Mari, como eu saí do meu mundo separado.
Mari afastou-se sem dar resposta.
Na pequena – e nunca frequentada – biblioteca de
Villete, Eduard não achou o Corão, nem Aristóteles, nem outros
filósofos que Mari se referira. Mas ali estava o texto de um
poeta:
“Por isso disse para mim mesmo: “a sorte do insensato
será também a minha”.
“Vai, come teu pão com alegria,
e bebe gostosamente o teu vinho
porque Deus já aceitou tuas obras.
Que tuas vestes sejam brancas todo o tempo,
e nunca falte perfume em tua cabeça.
Desfruta a vida com a mulher amada
em todos os teus dias de vaidade que Deus
te concedeu debaixo do sol.
Porque esta é tua porção na vida
e no trabalho que te afadigas debaixo do sol.
Segue os caminhos do teu coração
e o desejo dos teus olhos,
sabendo que Deus te pedirá contas”.
- Deus pedirá contas no final – disse Eduard em voz alta
- E eu direi: “por algum tempo da minha vida fiquei olhando o
vento, me esqueci de semear, não desfrutei meus dias, nem sequer
bebi o vinho que me era oferecido. Mas um dia me julguei pronto, e
voltei ao meu trabalho. Contei aos homens as minhas Visões do
Paraíso, como Bosch, Van Gogh, Wagner, Beethoven, Einstein, e
outros loucos fizeram antes de mim. Bom, Ele dirá que eu saí do
hospício para não ver uma menina morrendo, mas ela estará lá no
céu, e intercederá por mim.
- O que você está dizendo? interrompeu o encarregado da
biblioteca.
- Quero sair de Villete agora– respondeu Eduard, num tom
de voz mais alto do que o normal. – Tenho o que fazer.
O empregado apertou uma campainha, e em pouco tempo dois
enfermeiros apareceram.
- Quero sair – repetiu Eduard, agitado. – Estou bem,
deixe-me falar com o Dr. Igor.
Mas os dois homens já o tinham agarrado, um por cada
braço. Eduard tentava soltar-se dos braços dos enfermeiros, mesmo
sabendo que era inútil.
- Você está tendo uma crise, fique tranquilo – disse um
deles. – Vamos cuidar disso.
Eduard começou a debater-se.
- Deixem-me falar com o Dr. Igor. Tenho muito o que
dizer a ele, tenho certeza que vai entender!
Os homens já o arrastavam para a enfermaria.
- Soltem-me! – gritava. – Deixem-me falar pelo menos um
minuto!
O caminho para a enfermaria passava pelo meio da sala de
estar, e todos os outros internos estavam ali reunidos. Eduard
debatia-se, e o ambiente começou a ficar agitado.
- Deixe-o livre! Ele é louco!
Alguns riam, outros batiam com as mãos nas mesas e
cadeiras.
- Isto é um hospício! Ninguém é obrigado a se comportar
como vocês!
Um dos homens sussurrou para o outro:
- Precisamos assusta-los, ou daqui a pouco a situação se
tornará incontrolável.
- Só há um jeito.
- Dr. Igor não vai gostar.
- Será pior ver este bando de maníacos quebrando seu
sanatório adorado.
Veronika acordou sobressaltada, suando frio. O barulho
lá fora era grande, e ela precisava de silêncio para continuar a
dormir. Mas a barulheira continuava.
Levantou-se meia tonta, e caminhou até a sala de estar,
a tempo de ver Eduard sendo arrastado, enquanto outros enfermeiros
chegavam as pressas com seringas preparadas.
- O que vocês estão fazendo? gritou.
- Veronika!
O esquizofrênico tinha falado com ela! Tinha dito o seu
nome! Numa mistura de vergonha e surpresa, tentou aproximar-se,
mas um dos enfermeiros a impediu.
- O que é isso? Eu não estou aqui porque sou louca!
vocês não podem me tratar assim!
Conseguiu empurrar o enfermeiro, enquanto os outros
internos gritavam e faziam uma algazarra que a deixou com medo.
Será que devia procurar o Dr. Igor, e ir embora imediatamente?
- Veronika!
Ele dissera de novo o seu nome. Num esforço sobrehumano, Eduard conseguiu livrar-se dos dois homens. Ao invés de
sair correndo, ficou em pé, imóvel, da mesma maneira que ficara na
noite anterior. Como num passe de mágica, todo mundo parou,
esperando o próximo movimento.
Um dos enfermeiros tornou a aproximar-se, mas Eduard
olhou-o, usando de novo toda a sua energia.
- Vou com vocês. Já sei onde estão me levando, e sei
também que desejam que todos saibam. Esperem apenas um minuto.
O enfermeiro decidiu que valia a pena correr o risco;
afinal de contas, tudo parecia haver voltado ao normal.
- Eu acho que você...eu acho que você é importante para
mim – disse Eduard para Veronika .
- Você não pode falar. Você não vive neste mundo, não
sabe que eu me chamo Veronika. Você não esteve comigo ontem a
noite, por favor, diga que não esteve!
- Estive.
Ela pegou sua mão. Os loucos gritavam, aplaudiam, diziam
coisas obscenas.
- Onde estão te levando?
- Para um tratamento.
- Eu vou com você.
- Não vale a pena. Você vai ficar assustada, mesmo que
eu lhe garanta que não dói, não se sente nada. E é muito melhor
que os calmantes, porque a lucidez volta mais rápido.
Veronika não sabia do que ele estava falando.
Arrependera-se de ter segurado sua mão, queria ir embora o mais
rápido possível, esconder sua vergonha, nunca mais ver aquele
homem que presenciara o que havia de mais sórdido nela – e mesmo
assim continuava a trata-la com ternura.
Mas, de novo, lembrou-se das palavras de Mari: não
precisava dar explicações de sua vida para ninguém, nem mesmo para
o rapaz a sua frente.
- Eu vou com você.
Os enfermeiros acharam que talvez fosse melhor assim: o
esquizofrênico já não precisava ser dominado, estava indo por
vontade própria.
Quando chegaram no dormitório, Eduard deitou-se
voluntariamente na cama. Já haviam mais dois homens esperando, com
uma estranha máquina e uma bolsa com tiras de pano.
Eduard virou-se para Veronika, e pediu que sentasse na
cama ao lado.
- Em alguns minutos, a história vai correr por Villete
inteira. E as pessoas ficarão calmas, porque mesmo mais furiosa
das loucuras carrega sua dose de medo. Só quem já passou por isso,
é que sabe que não é tão terrível assim.
Os enfermeiros escutaram a conversa, e não acreditaram
no que o esquizofrênico dizia. Devia doer muito - mas ninguém
pode saber o que se passa na cabeça de um louco. A única coisa que
o rapaz dissera de sensato era sobre o medo: a história correria
por Villete, e a calma voltaria rapidamente.
- Você se deitou antes da hora – disse um deles.
Eduard levantou-se, e eles estenderam uma espécie de
cobertor de borracha. “Agora sim, pode deitar”
Ele obedeceu. Estava tranquilo, como se tudo aquilo não
passasse de rotina.
Os enfermeiros amarraram algumas tiras de pano em torno
do corpo de Eduard, e colocaram uma borracha em sua boca.
- É para que ele não morda involuntariamente a língua –
disse um dos homens para Veronika, contente de dar uma informação
técnica junto com uma advertência.
Colocaram a estranha máquina – não muito maior que uma
caixa de sapatos, com alguns botões e três visores com ponteiros
– numa cadeira ao lado da cama. Dois fios saiam da sua parte
superior, e terminavam em algo parecido com fones de ouvido.
Um dos enfermeiros colocou os fones nas têmporas de
Eduard. O outro pareceu regular o mecanismo, torcendo alguns
botões, ora para a direita, ora para a esquerda. Embora não
podendo falar por causa da borracha na boca, Eduard mantinha seus
olhos nos dela, e parecia dizer: “não se preocupe, não se
assuste”.
- Está regulado para 130 volts em 0.3 segundos – disse o
enfermeiro que cuidava da máquina. – Lá vai.
Ele apertou um botão, e a máquina emitiu um zumbido.
Neste mesmo momento, os olhos de Eduard ficaram vidrados, seu
corpo retorceu-se na cama com tal fúria que – se não fosse pelas
tiras de pano amarradas – teria partido a coluna.
- Parem com isso! gritou Veronika.
- Já paramos – respondeu o enfermeiro, retirando os
fones da cabeça de Eduard. Mesmo assim, o corpo continuava a
contorcer-se, a cabeça balançando de um lado para o outro, com tal
violência que um dos homens resolveu agarra-la. O outro guardou a
máquina numa sacola, e sentou-se para fumar um cigarro.
A cena durou alguns minutos. O corpo parecia voltar ao
normal, e logo recomeçavam os espasmos – enquanto um dos
enfermeiros redobrava sua força para manter firme a cabeça de
Eduard. Aos poucos, as contrações foram diminuindo, até que
cessaram por completo. Eduard mantinha os olhos abertos, e um dos
homens fechou-o, como se faz com os mortos.
Depois tirou a borracha da boca do rapaz, desamarrou-o,
e guardou as tiras de pano na sacola onde estava a máquina.
- O efeito do eletrochoque dura uma hora – disse para a
moça, que já não gritava mais, e parecia hipnotizada pelo que
estava vendo. – Está tudo bem, ele logo voltará ao normal, e
estará mais calmo.
Assim que a descarga elétrica atingiu-o, Eduard sentiu o
que já experimentara antes: a visão normal ia diminuindo, como se
alguém fechasse uma cortina – até que tudo desaparecia por
completo. Não havia qualquer dor ou sofrimento – mas já assistira
a outros loucos sendo tratados por eletrochoque, e sabia o quanto
horrível parecia a cena.
Eduard agora estava em paz. Se, momentos antes, estava
reconhecendo algum tipo de sentimento novo em seu coração, se
começava a perceber que o amor não era apenas aquilo que seus pais
lhe davam, o eletrochoque – ou Terapia Eletro-Convulsiva (TEC)
como preferiam chamar os especialistas -com certeza iria faze-lo
voltar ao normal.
O principal efeito do TEC era o esquecimento das
memórias recentes. Eduard não podia alimentar sonhos impossíveis.
Não podia ficar olhando para um futuro que não existia; seus
pensamentos deviam permanecer voltados para o passado, ou ia
terminar querendo voltar novamente a vida.
Uma hora mais tarde, Zedka entrou na enfermaria quase
deserta – exceto por um leito, onde um rapaz estava deitado. E por
uma cadeira, onde uma moça estava sentada.
Quando chegou perto, viu que a moça havia vomitado de
novo, e sua cabeça estava baixa, pendendo para a direita.
Zedka virou-se para chamar socorro, mas Veronika
levantou a cabeça.
- Não é nada – disse. – Tive outro ataque, mas já
passou.
Zedka pegou-a carinhosamente, e levou-a até o banheiro.
- É um banheiro de homens – disse a moça.
- Não há ninguém aqui, não se preocupe.
Retirou o suetér imundo, , lavou-o, e colocou-o em cima
do radiador de calefação. Depois, tirou sua própria blusa de lã,
e vestiu-a em Veronika.
- Fique com isso. Vim aqui para despedir-me.
A menina parecia distante, como se nada a interessasse
mais. Zedka a conduziu de volta a cadeira onde ela estava sentada.
- Ele vai acordar daqui a pouco. Talvez custe a se
lembrar do que aconteceu, mas a memória retornará rápido. Não
fique assustada se ele não a reconhecer nos primeiros instantes.
- Não ficarei – respondeu Veronika. – Porque tampouco
reconheço a mim mesma.
Zedka puxou uma cadeira, e sentou-se ao lado dela.
Ficara em Villete tanto tempo, que não custava permanecer mais
alguns minutos com aquela menina.
- Lembra-se de nosso primeiro encontro? Naquele dia eu
lhe contei uma história, para tentar explicar que o mundo é
exatamente da maneira que o vemos. Todos achavam o rei louco,
porque ele queria impor uma ordem que já não existia na mente dos
seus súditos.
“Entretanto, há coisas na vida que, não importa de que
lado a enxerguemos, continuam sempre as mesmas – e valem para todo
mundo. Como o amor, por exemplo”.
Zedka notou que os olhos de Veronika haviam mudado.
Resolveu continuar.
- Eu diria que, se alguém tem muito pouco tempo de vida,
e resolve passar este pouco tempo que lhe resta diante de uma
cama, olhando um homem dormindo, há algo de amor. Diria mais: se
durante este tempo, esta pessoa teve um ataque cardíaco, e ficou
em silêncio – só para não ter que sair de perto daquele homem – é
porque este amor pode crescer muito.
- Pode ser também desespero – disse Veronika. - Uma
tentativa de provar que, afinal de contas, não há motivos para se
continuar lutando debaixo do sol. Não posso estar apaixonada por
um homem que vive em outro mundo.
- Todos nós vivemos em nosso próprio mundo. Mas se você
olhar para o céu estelado, verá que todos estes mundos diferentes
se combinam, formando constelações, sistemas solares, galáxias.
Veronika levantou-se e foi até a cabeceira de Eduard.
Carinhosamente, passou as mãos nos seus cabelos. Estava contente
por ter alguém com quem conversar.
- Há muitos anos atrás, quando eu era uma criança e
minha mãe me obrigava a aprender piano, eu dizia a mim mesma que
só seria capaz de toca-lo bem quando estivesse apaixonada. Ontem a
noite, pela primeira vez na minha vida, senti que as notas saiam
de meus dedos como se eu não tivesse controle algum sobre o que
fazia.
“ Uma força me guiava, construía melodias e acordes que
nunca pensei ser capaz de tocar. Eu me entregara ao piano porque
tinha acabado de me entregar a este homem, sem que ele tivesse
tocado um fio sequer do meu cabelo. Ontem eu não fui eu mesma, nem
quando me entreguei ao sexo, nem quando toquei piano. Mesmo assim,
acho que fui eu mesma”.
Veronika balançou a cabeça.
- Nada do que estou dizendo faz sentido.
Zedka lembrou-se de seus encontros no espaço, com todos
aqueles seres que flutuavam em dimensões diferentes. Quis contar
para Veronika, mas ficou com medo de confundi-la mais ainda.
- Antes que você repita que vai morrer, quero dizer
algo: há gente que passa a vida inteira procurando um momento como
você teve ontem a noite, e não consegue. Por isso, se você tiver
que morrer agora, morra com o coração cheio de amor.
Zedka levantou-se.
- Você não tem nada a perder. Muita gente não se permite
amar justamente por causa disso – porque há muita coisa, muito
futuro e passado em jogo. No seu caso, existe apenas o presente.
Ela aproximou-se, e deu um beijo em Veronika.
- Se eu ficar aqui por mais tempo, vou terminar
desistindo de ir embora. Estou curada da minha depressão, mas
descobri, aqui dentro, outros tipos de loucura. Quero carrega-los
comigo, e começar a ver a vida com meus próprios olhos.
“Quando entrei, era uma mulher deprimida. Hoje, sou uma
mulher louca, e tenho muito orgulho disso. Lá fora, me
comportarei exatamente como os outros. Farei as compras no
supermercado, conversarei trivialidades com minhas amigas,
perderei algum tempo importante diante da televisão. Mas sei que
minha alma está livre, e eu posso sonhar e conversar com outros
mundos que, antes de entrar aqui, nem sonhava que existiam.
“Vou me permitir fazer algumas bobagens, só para que as
pessoas digam: ela saiu de Villete! Mas sei que minha alma estará
completa, porque minha vida tem um sentido. Poderei olhar um por
do sol e acreditar que Deus está por detrás dele. Quando alguém me
aborrecer muito eu direi alguma barbaridade, e não vou me
incomodar com o que pensam. já que todos dirão: ela saiu de
Villete!
“Vou olhar os homens na rua, dentro de seus olhos, sem
vergonha de me sentir desejada. Mas, logo depois, passarei numa
loja de produtos importados, comprarei os melhores vinhos que meu
dinheiro puder comprar, e farei meu marido beber junto comigo,
porque quero rir com ele - a quem tanto amo.
“Ele me dirá, rindo: você está louca! E eu responderei:
claro, estive em Villete! E a loucura me libertou. Agora, meu
adorado marido, você tem que pedir férias todos os anos, e me
levar a conhecer algumas montanhas perigosas, porque preciso
correr o risco de estar viva.
“As pessoas vão dizer: ela saiu de Villete, e está
enlouquecendo o marido! E ele entenderá que as pessoas tem razão,
e dará graças a Deus porque o nosso casamento está começando
agora, e nós somos loucos – como são loucos os que inventaram o
amor.”
Zedka saiu, cantarolando uma música que Veronika nunca
havia escutado.
O dia estava sendo exaustivo, mas recompensador. O Dr.
Igor procurava manter a fleugma e a indiferença de um cientistas,
mas quase não conseguia controlar seu entusiasmo: os testes para
a cura do envenenamento por Vitríolo estavam dando resultados
surpreendentes!
- Você não tem hora marcada hoje – disse para Mari, que
havia entrado sem bater na porta.
- Não vou demorar muito. – Na verdade, gostaria de pedir
apenas uma opinião.
“Hoje todos estão querendo apenas uma opinião”, pensou o
Dr. Igor, lembrando-se da menina e sua pergunta sobre sexo.
- Eduard acaba de receber um choque elétrico.
- Terapia Eletro-convulsiva; por favor use o nome
correto, ou vai parecer que somos um grupo de bárbaros. - Dr. Igor
conseguira disfarçar a suprêsa, mas depois iria apurar quem tinha
decidido aquilo. – E se você quer minha opinião sobre o assunto,
devo esclarecer que as TEC não aplicados hoje como eram
antigamente.
- Mas é perigoso.
- Era muito perigoso; não sabiam a voltagem exata, o
local certo onde colocar os eletrodos, e muita gente morreu de
derrame cerebral durante o tratamento. Mas as coisas mudaram: hoje
em dia, a TEC está voltando a ser utilizada com muito mais
precisão técnica, e tem a vantagem de provocar uma amnésia rápida,
evitando a intoxicação química por uso prolongado de medicamentos.
Leia algumas revistas psiquiátricas, por favor, e não confunda a
TEC com os choques elétricos dos torturadores sul-americanos.
“Pronto. Sua opinião está dada. Agora tenho que voltar
ao trabalho.”
Mari não se mexeu.
- Não foi isso que vim perguntar. Na verdade, o que
quero saber é se posso sair daqui.
- Você sai quando quer, e volta porque assim deseja – e
porque seu marido ainda tem dinheiro para mante-la num lugar caro
como este. Talvez você devesse me perguntar: estou curada? E minha
resposta é outra pergunta: curada de que?
“Você dirá: curada do meu medo, da Síndrome de Pânico. E
eu responderei: bem Mari, há três anos você não sofre mais disso.”
- Então estou curada.
- Claro que não. Sua doença não é essa. Na tese que
estou escrevendo para apresentar à Academia de Ciências da
Eslovenia (Dr. Igor não queria entrar em detalhes sobre o
Vitríolo), procuro estudar o comportamento humano dito “normal”.
Muitos médicos antes de mim já fizeram este estudo, chegando a
conclusão que a normalidade é apenas uma questão de consenso; ou
seja, se muita gente pensa que uma coisa está certa, esta coisa
passa a estar certa.
“Existem coisas que são governadas pelo bom-senso
humano: colocar os botões na frente da camisa é uma questão
lógica, já que ficaria muito difícil abotoa-los de lado, e
impossível abotoa-los se estivessem nas costas.
“Outras coisas, porém, vão se impondo porque cada vez
mais gente acredita que elas tem que ser assim. Vou lhe dar dois
exemplos: você já se perguntou porque as letras de um teclado de
máquina de escrever são colocadas naquela ordem?
- Nunca me perguntei isso.
- Chamemos este teclado de QWERTY, já que as letras da
primeira linha estão dispostas assim. Eu me perguntei o por que
disso, e encontrei a resposta: a primeira máquina foi inventada
por Christopher Scholes, em 1873, para melhorar a caligrafia. Mas
ela apresentava um problema: se a pessoa digitava com muita
velocidade, os tipos se chocavam e travavam a máquina. Então
Sholes desenhou o teclado QWERTY, um teclado que obrigava os
datilógrafos a andarem devagar.
- Não acredito.
- Mas é verdade. Acontece que a Remington – na época,
fabricante de máquinas de costura - usou o teclado QWERTY para
suas primeiras máquinas de escrever. O que significa que mais
pessoas foram obrigadas a aprender este sistema, e mais companhias
passaram a fabricar estes teclados, até que ele se tornou o único
padrão existente. Repetindo: o teclado das máquinas, e dos
computadores, foi desenhado para que digitasse mais lentamente, e
não mais rápido, entendeu? Vá tentar trocar as letras de lugar, e
não encontrará um comprador para o seu produto.
Quando vira um teclado pela primeira vez, Mari
perguntara-se por que não estava em ordem alfabética. Mas nunca
mais repetira a pergunta – acreditava que aquele era o melhor
desenho para que as pessoas datilografassem rápido.
- Você conhece Florença? – perguntou o Dr. Igor.
- Não.
- Devia conhecer, não está muito longe, e ali está o meu
segundo exemplo. Na Catedral de Florença, há um relógio belíssimo,
desenhado por Paolo Uccello em 1443. Acontece que este relógio tem
uma curiosidade: embora marque as horas – como todos os outros –
os ponteiros andam em sentido contrário ao que estamos
acostumados.
- O que isso tem a ver com minha doença?
- Eu vou chegar lá. Paolo Uccello, ao criar este
relógio, não estava tentando ser original: na verdade, naquele
momento havia alguns relógios assim, e outros com os ponteiros
andando no sentido que hoje conhecemos. Por alguma razão
desconhecida, talvez porque o Duque tinha um relógio com os
ponteiros andando no sentido que hoje conhecemos como “certo”,
este terminou se impondo como o único sentido – e o relógio de
Uccello passou a ser uma aberração, uma loucura.
Dr. Igor deu uma pausa. Mas sabia que Mari estava
acompanhando o seu raciocínio.
- Então, vamos a sua doença: cada ser humano é único,
com suas próprias qualidades, instintos, formas de prazer, busca
da aventura. Mas a sociedade termina impondo uma maneira coletiva
de agir – e as pessoas não param para se perguntar porque precisam
se comportar assim. Apenas aceitam, como os datilógrafos aceitaram
o fato de que o QWERTY era o melhor teclado possível. Você
conheceu alguém, em toda a sua vida, que tenha perguntado por que
os ponteiros de relógio andam numa direção, e não em sentido
contrário?
- Não.
- Se alguém perguntasse, provavelmente iria escutar:
você está louco! Se insistisse na pergunta, as pessoas tentariam
achar uma razão, mas logo mudariam de assunto – porque não há
qualquer razão além da que expliquei.
“Então eu volto a sua pergunta. Repita-a.”
- Estou curada?
- Não. Você é uma pessoa diferente, querendo ser igual.
E isto, no meu ponto de vista, é considerado uma doença grave.
- É grave ser diferente?
- É grave forçar-se a ser igual: provoca neuroses,
psicoses, paranóias. É grave querer ser igual, porque isso é
forçar a natureza, é ir contra as leis de Deus – que, em todos os
bosques e florestas do mundo, não criou uma só folha igual a
outra. Mas você acha uma loucura ser diferente, e por isso
escolheu Villete para viver. Porque, aqui, como todos são
diferentes, você passa a ser igual a todo mundo. Entendeu?
Mari fez que “sim”com a cabeça.
- Por não terem coragem de ser diferentes, as pessoas
vão contra a natureza, e o organismo começa a produzir o Vitríolo
– ou amargura, como é vulgarmente conhecido este veneno.
- O que é Vitriolo?
Dr. Igor percebeu que tinha se empolgado muito, e
resolveu mudar de assunto.
- Não tem importância o que é Vitriolo. O que quero
dizer é o seguinte: tudo indica que você não está curada.
Mari tinha anos de experiência nos tribunais, e resolveu
coloca-los em prática ali mesmo. A primeira tática era fingir que
estava de acordo com o oponente, para logo em seguida enreda-lo
num outro raciocínio.
- Concordo com o senhor. Eu vim aqui por um motivo muito
concreto – a Síndrome do Pânico – e terminei ficando por um motivo
muito abstrato: incapacidade de encarar uma vida diferente, sem
emprego e sem marido. Concordo com o senhor: eu tinha perdido a
vontade de começar uma vida nova, a qual precisava me acostumar de
novo. E vou mais longe: concordo que num hospício, mesmo com os
eletrochoques – perdão, TEC, como o Sr. prefere - , os horários,
os ataques de histeria de alguns internos, as regras são mais
fáceis de aturar que os as leis de um mundo que, como o Sr. diz,
faz tudo para ser igual.
“Acontece que, ontem a noite, eu ouvi uma mulher tocando
piano. Ela tocou magistralmente, como raramente ouvi. Enquanto
escutava as musicas, pensava em todos que sofreram para compor
aquelas sonatas, prelúdios, adágios: no ridículo que passaram
quando foram mostrar suas peças - diferentes – aos que mandavam
no mundo da música. Na dificuldade e na humilhação de conseguir
alguém que financiasse uma orquestra. Nas vaias que podem ter
recebido de um público que ainda não estava acostumado com tais
harmonias.
‘Pior que tudo isso, eu pensava: não apenas os
compositores sofreram, mas esta moça os está tocando com tanta
alma, porque sabe que vai morrer. E eu, não vou morrer também?
Onde deixei minha alma, para poder tocar a música de minha vida
com o mesmo entusiasmo?”
Dr. Igor ouvia em silencio. Parece que tudo que havia
pensado estava dando resultado, mas ainda era cedo para ter
certeza.
- Onde deixei minha alma? – perguntou de novo Mari. – No
meu passado. Naquilo que eu queria que fosse minha vida. Deixei
minha alma presa naquele momento onde havia uma casa, um marido,
um emprego que eu queria me livrar mas nunca tomava coragem.
“ Minha alma estava em meu passado. Mas hoje ela chegou
até aqui, e eu a sinto de novo em meu corpo, cheia de entusiasmo.
Não sei o que fazer; sei apenas que demorei três anos para
entender que a vida me empurrava para um caminho diferente, e eu
não queria ir.
- Acho que noto alguns sintomas de melhora – disse o Dr.
Igor.
- Eu não precisava pedir para deixar Villete. Bastava
cruzar o portão, e nunca mais voltar. Mas precisava dizer tudo
isso a alguém, e estou dizendo ao senhor: a morte desta menina me
fez entender minha vida.
- Penso que estes sintomas de melhora estão se
transformando numa cura milagrosa – riu o Dr. Igor. – O que
pretende fazer?
- Ir para El Salvador, cuidar das crianças.
- Não precisa ir tão longe: a menos de duzentos
quilômetros daqui, está Sarajevo. A guerra terminou, mas os
problemas continuam.
- Irei para Sarajevo.
O Dr. Igor tirou um formulário da gaveta, preencheu-o
cuidadosamente. Depois levantou-se, e conduziu Mari até a porta.
-Vá com Deus – disse ele, voltando para o escritório e
fechando logo a porta. Não gostava de se afeiçoar aos seus
pacientes, mas nunca conseguia evitar. Mari ia fazer falta em
Villete.
Quando Eduard abriu os olhos, a moça ainda estava ali.
Em suas primeiras sessões de eletrochoque, passava muito tempo
tentando se lembrar do que acontecera – afinal, este era
justamente o efeito terapêutico daquele tratamento: provocar uma
amnésia parcial, de modo que o doente esquecesse o problema que o
afligia, e permitir que ficasse mais calmo.
Entretanto, a medida que os eletrochoques eram aplicados
com mais freqüência, seus efeitos não se faziam sentir por muito
tempo; ele logo identificou a moça.
- Você falou das visões do paraíso enquanto dormia –
disse ela, passando a mão nos seus cabelos.
Visões do paraíso? Sim, visões do paraíso. Eduard olhou
para ela. Queria contar tudo.
Neste momento, porém, uma enfermeira entrou, com uma
injeção.
- Você tem que tomar agora – disse para Veronika. –
Ordens do Dr. Igor.
- Já tomei hoje, não vou tomar nada – respondeu ela. –
Tampouco me interessa sair deste lugar. Não vou obedecer nenhuma
ordem, nenhuma regra, nada que quiserem me forçar a fazer.
A enfermeira parecia acostumada a este tipo de reação.
- Então, infelizmente, teremos que dopa-la.
- Eu preciso conversar com você – disse Eduard. – Tome a
injeção.
Veronika levantou as mangas do suéter, e a enfermeira
aplicou a droga.
- Boa menina – disse. – Por que não saem desta
enfermaria lúgubre, e vão passear um pouco lá fora?
- Você está envergonhada pelo que aconteceu ontem a
noite – disse Eduard, enquanto caminhavam pelo jardim.
- Já estive. Agora estou orgulhosa. Quero saber das
visões do paraíso, porque estive muito próxima de uma delas.
- Preciso olhar mais longe, para além dos prédios de
Villete – disse.
- Faça isso.
Eduard olhou para trás, não para as paredes das
enfermarias, ou para o jardim onde os internos caminhavam em
silencio - mas para uma rua num outro continente, numa terra onde
chovia muito ou não chovia nada.
Eduard podia sentir o cheiro daquela terra – era o
tempo da seca, e a poeira entrava pelo seu nariz e lhe dava
prazer, porque sentir a terra é sentir-se vivo. Pedalava uma
bicicleta importada, tinha dezessete anos, e acabara de sair do
colégio americano de Brasília, onde todos os outros filhos de
diplomata estudavam.
Detestava Brasília, mas amava os brasileiros. Seu pai
tinha sido nomeado embaixador da Yugoslávia dois anos antes, numa
época em que nem sequer sonhavam com a sangrenta divisão do país.
Milosevic ainda estava no poder; homens e mulheres viviam com suas
diferenças, e procuravam harmonizar-se além dos conflitos
regionais.
O primeiro posto de seu pai fora exatamente o Brasil.
Eduard sonhava com praias, carnaval, partidas de futebol, música –
mas fora parar naquela capital, longe da costa, criada apenas para
abrigar políticos, burocratas, diplomatas, e os filhos de todos
eles, que não sabiam direito o que fazer no meio disso tudo.
Eduard detestava viver ali. Passava o dia enfurnado nos
estudos, tentando – mas não conseguindo – relacionar-se com os
colegas de classe. Procurando – mas não encontrando – uma maneira
de interessar-se por carros, tênis da moda, roupas de marca,
únicos temas de conversa entre os jovens.
Uma vez por outra havia uma festa, onde os rapazes
ficavam bêbados de um lado do salão, e as moças fingiam
indiferença do outro lado. A droga corria sempre, e Eduard já
experimentara praticamente todas as variedades possíveis, sem
jamais conseguir interessar-se por nenhuma delas; ficava agitado
ou sonolento demais, e perdia o interesse pelo que estava
acontecendo a sua volta.
Sua família vivia preocupada. Era necessário prepara-lo
para seguir a mesma carreira do pai, e embora Eduard tivesse quase
todos os talentos necessários – vontade de estudar, bom gosto
artístico, facilidade em aprender línguas, interesse por política
– faltava-lhe uma qualidade básica na diplomacia. Tinha
dificuldades no contato com os outros.
Por mais que seus pais o levassem a festas, abrissem a
casa para os seus amigos do colégio americano, e mantivessem uma
boa mesada, eram raras as vezes que Eduard aparecia com alguém. Um
dia sua mãe lhe perguntou porque não trazia seus amigos para
almoçar ou jantar.
- Já sei todas as marcas de tênis, já conheço o nome de
todas as meninas com quem é fácil fazer amor. Não temos mais nada
de interessante para conversar.
Até que apareceu a brasileira. O embaixador e sua mulher
ficaram mais tranquilos quando o filho começou a sair, voltando
tarde para casa.Ninguém sabia exatamente como ela tinha surgido,
mas certo noite Eduard a levou para jantarem casa. A menina era
educada, e eles ficaram contentes; o garoto finalmente ia
desenvolver seu talento na relação com estranhos. Além disso,
ambos pensaram – mas não comentaram entre si – que a presença
daquela garota tirava uma grande preocupação de seus ombros:
Eduard não era homossexual!.
Trataram Maria (este era seu nome) como a gentileza de
futuros sogros, mesmo sabendo que em dois anos seriam transferidos
para outro posto, e não tinham a menor intenção que seu filho
casasse com alguém de um país tão exótico. Tinham planos para que
seu filho encontrasse uma moça de boa família na França, ou na
Alemanha, que pudesse acompanhar com dignidade a brilhante
carreira diplomática que o Embaixador estava preparando para ele.
Eduard, porém, mostrava-se cada vez mais apaixonado.
Preocupada, a mãe foi conversar com o marido.
- A arte da diplomacia consiste em fazer o oponente
esperar - disse o Embaixador - Um primeiro amor pode não passar
nunca, mas sempre acaba.
Mas Eduard dava sinais de haver mudado por completo.
Começou a aparecer em casa com livros estranhos, montou uma
pirâmide no seu quarto, e – junto com Maria – acendiam incenso
todas as noites, ficando horas concentrados num estranho desenho
pregado na parede. O rendimento de Eduard na escola americana
começou a cair.
A mãe não entendia português, mas podia ver a capa dos
livros: cruzes, fogueiras, bruxas penduradas, símbolos exóticos.
- Nosso filho está lendo coisas perigosas.
- Perigoso é o que está acontecendo nos Balcãs respondeu o embaixador. – Há rumores que a região da Slovenia quer
a independência, e isto pode nos levar a uma guerra.
A mãe, porém, não dava a menor importância para
política; queria saber o que estava acontecendo com seu filho.
- E esta mania de acender incenso?
- É para disfarçar o cheiro de marijuana – dizia o
Embaixador. - Nosso filho teve uma excelente educação, não deve
acreditar que estes palitos perfumados possam atrair espíritos.
- Meu filho está envolvido em drogas!
- Isso passa. Eu também já fumei marijuana quando era
jovem, e a gente logo enjoa, como eu enjoei.
A mulher ficou orgulhosa e tranquila: seu marido era um
homem experiente, tinha entrado no mundo da droga e conseguido
sair! Um homem com esta força de vontade era capaz de controlar
qualquer situação.
Um belo dia, Eduard pediu uma bicicleta.
- Você tem chofer e um Mercedes Benz. Para que uma
bicicleta?
- Para o contato com a natureza. Maria e eu vamos fazer
uma viagem de dez dias - disse. – Há um lugar aqui perto com
imensos depósitos de cristal, e Maria garante que eles transmitem
boa energia.
A mãe e o pai tinham sido educados no regime comunista:
cristais eram apenas um produto mineral, que obedeciam a
determinada organização de átomos, e não emanavam nenhum tipo de
energia – fosse ela positiva ou negativa. Pesquisaram, e
descobriram que aquelas idéias de “vibrações de cristais” que
começavam a ficar em moda.
Se seu filho resolvesse falar sobre o tema numa festa
oficial, podia parecer ridículo aos olhos dos outros: pela
primeira vez, o embaixador reconheceu que a situação estava
começando a ficar grave. Brasília era uma cidade que vivia de
rumores, e logo saberiam que Eduard estava envolvido com
superstições primitivas, seus rivais na embaixada podiam pensar
que ele tinha aprendido aquilo com os pais, e a diplomacia - além
de a arte de esperar - era também a capacidade de manter sempre,
em qualquer circunstância, uma aparência convencional e
protocolar.
- Meu filho, isso não pode continuar assim - disse o
pai. - Tenho amigos no Ministério de Relações Exteriores da
Yugoslávia. você será um brilhante diplomata, e é preciso aprender
a encarar o mundo.
Eduard saiu de casa e não voltou aquela noite. Seus pais
ligaram para a casa de Maria, para os necrotérios e hospitais da
cidade – sem nenhuma notícia. A mãe perdeu a confiança na
capacidade de seu marido lidar com a família, embora fosse um
excelente negociador com estranhos.
No dia seguinte Eduard apareceu, esfomeado e sonolento.
Comeu e foi para o quarto, acendeu seus incensos, rezou seus
mantras,dormiu o resto da tarde e da noite. Quando acordou, uma
bicicleta novinha em folha o estava esperando.
- Vá ver os seus cristais - disse a mãe. - Eu explico
para o seu pai.
E assim, naquela tarde de seca e poeira, Eduard dirigiase alegremente para a casa de Maria. A cidade era tão bem
desenhada (na opinião dos arquitetos) ou tão mal desenhada (na
opinião de Eduard) que quase não havia esquinas. Ele seguia pela
direita, numa pista de alta velocidade, olhando o céu cheio de
nuvens que não dão chuva, quando sentiu que subia em direção a
este céu, a uma velocidade imensa – para logo seguir descer e
encontrar-se no asfalto.
PRAC!
“Sofri um acidente”
Quis virar-se, porque seu rosto estava grudado no
asfalto, mas viu que não tinha mais controle sobre seu corpo.
Ouviu o barulho de carros freiando, gente que gritava, alguém que
se aproximou e tentou toca-lo – para logo ouvir um grito de “não
mexa nele! Você pode aleija-lo para o resto da vida!”
Os segundos passavam devagar, e Eduard começou a sentir
medo. Ao contrário do seus pais, acreditava em Deus, e numa vida
além da morte, mas mesmo assim achava injusto tudo aquilo morrer com 17 anos, olhando o asfalto, numa terra que não era a
sua.
- Você está bem? - escutava uma voz.
Não, não estava bem, não conseguia se mexer, mas
tampouco conseguia dizer nada. O pior de tudo é que não perdia a
consciência, sabia exatamente o que estava se passando, e no que
se havia metido. Será que não ia desmaiar? Deus não tinha piedade
dele, justamente num momento em que O procurava com tanta
intensidade, contra tudo e contra todos?
- Já estão vindo os médicos - sussurrou outra pessoa,
pegando sua mão. - Não sei se pode me ouvir, mas fique calmo. Não
é nada grave.
Sim, podia ouvir, gostaria que esta pessoa – um homem –
continuasse falando, garantisse que não era nada grave, embora já
fosse adulto o bastante para entender que sempre dizem isso quando
a situação é muito séria. Pensou em Maria, na região onde havia
montanhas de cristais, cheios de energia positiva – enquanto
Brasília era a maior concentração de negatividade que conhecera em
suas meditações.
Os segundos se transformaram em minutos, as pessoas
continuam tentando consola-lo, e – pela primeira vez desde que
tudo acontecera – começou a sentir dor. Uma dor aguda, que vinha
do centro de sua cabeça, e parecia se espalhar pelo corpo inteiro.
- Já chegaram - disse o homem que lhe segurava a mão.
- Amanhã você vai estar de novo andando de bicicleta.
Mas no dia seguinte Eduard estava num hospital, com as
duas pernas e um braço engessados, sem possibilidade de sair dali
nos próximos 30 dias, tendo que escutar sua mãe chorando sem
parar, seu pai dando telefonemas nervosos, os médicos repetindo a
cada cinco minutos que as 24 horas mais graves já haviam passado,
e não houvera nenhuma lesão cerebral.
A família ligou para a Embaixada Americana – que nunca
acreditavam nos diagnósticos dos hospitais públicos, e mantinham
um serviço de urgência sofisticadíssimo, junto com uma lista de
médicos brasileiros considerados capazes de para atender seus
próprios diplomatas. Vez por outra, numa política de boavizinhança, usavam estes serviços para outras representações
diplomáticas.
Os americanos trouxeram seus aparelhos de última
geração, fizeram um número dez vezes maior de testes e exames
novos, e chegaram a conclusão que sempre chegavam: os médicos do
hospital público tinham avaliado corretamente, e tomado as
decisões certas.
Os médicos do hospital publico podiam ser bons, mas os
programas de TV brasileira eram tão ruins como os de qualquer
outra parte do mundo, e Eduard tinha pouco o que fazer. Maria
aparecia cada vez menos no hospital – talvez tivesse encontrado
outro companheiro para ir com ela até as montanhas de cristais.
Contrastando com o estranho comportamento de sua
namorada, o embaixador e sua mulher iam diariamente visita-lo, mas
recusavam-se a trazer os livros em português que ele tinha em
casa, alegando que em breve seriam transferidos, e não havia
necessidade de aprender uma língua que nunca mais teria
necessidade de usar. Assim sendo, Eduard contentava-se em
conversar com outros doentes, discutir futebol com os enfermeiros,
e ler uma ou outra revista que lhe caía em mãos.
Até que um dia, um dos enfermeiros trouxe-lhe um livro
que acabara de ganhar, mas que achava “muito grosso para ser
lido”. E foi neste momento que a vida de Eduard começou a colocalo um caminho estranho, que o conduziria a Villete, à ausência da
realidade, e ao distanciamento completo das coisas que outros
rapazes de sua idade iriam fazer nos anos que se seguiram.
O livro era sobre os visionários que abalaram o mundo –
gente que tinha sua própria idéia do paraíso terrestre, e dedicara
dedicado a sua vida para dividi-la com os outros. Ali estava Jesus
Cristo, mas também estavam Darwin, com sua teoria de que homem
descendia dos macacos; Freud, afirmando que os sonhos tinham
importância; Colombo, empenhando as jóias da rainha para procurar
um novo continente; Marx, com a idéia de que todos mereciam a
mesma chance.
E ali estavam santos, como Inácio de Loyola, um vasco
que dormira com todas as mulheres que podia dormir, matara vários
inimigos num sem número de batalhas, até ser ferido em Pamplona, e
entender o universo numa cama onde convalescia.
Teresa d’Avila,
que queria de todas as maneiras encontrar o caminho de Deus, e só
conseguiu quando sem querer passeava por um corredor e parou
diante de um quadro. Antonio, um homem cansado da vida que levava,
que resolveu exilar-se no deserto e passou a conviver com demônios
por dez anos, experimentando todo tipo de tentação.Francisco de
Assis, um rapaz como ele, determinado a conversar com os pássaros
e a deixar para trás tudo o que os seus pais tinham programado
para a sua vida.
Começou a ler naquela mesma tarde o tal “livro grosso”,
porque não tinha nada melhor para se distrair. No meio da noite,
uma enfermeira entrou, perguntando se precisava de ajuda, já que
era o único quarto ainda com a luz acesa. Eduard dispensou-a com
um simples aceno de mão, sem desgrudar os olhos do livro.
Os homens e mulheres que abalaram o mundo. Homens e
mulheres comuns, como ele, seu pai, ou a namorada que sabia estar
perdendo, cheios das mesmas dúvidas e inquietações que todos os
seres humanos tinham nos seus cotidianos programados. Gente que
não tinha um interesse especial por religião, Deus, expansão de
mente ou nova consciência, até que um dia – bem, um dia tinham
decidido mudar tudo. O livro era mais interessante porque contava
que, em cada uma daquelas vidas, havia um momento mágico, que os
fizera partir em busca da sua própria visão do Paraíso.
Gente que não deixou a vida passar em branco, e que,
para conseguir o que queria, tinha pedido esmolas ou cortejado
reis; rasgado códigos ou enfrentado a ira dos poderosos da época;
usado diplomacia ou força, mas nunca desistindo, sempre sendo
capaz de vencer cada dificuldade que se apresentava como uma
vantagem.
No dia seguinte, Eduard entregou seu relógio de ouro
para o enfermeiro que lhe dera o livro, pediu que o vendesse, e
que comprasse todos os livros sobre o tema. Não havia mais nenhum.
Tentou ler a biografia de algum deles, mas sempre descreviam o
homem ou a mulher como se fosse um escolhido, um inspirado – e
não uma pessoa comum, que devia lutar como qualquer outra para
afirmar o que pensava.
Eduard ficou tão impressionado com o que lera, que
considerou seriamente a possibilidade de tornar-se um santo,
aproveitando o acidente para mudar sua vida de rumo. Mas estava
com as pernas quebradas, não tivera nenhuma visão no hospital, não
passara diante de um quadro que lhe sacudira a alma, não tinha
amigos para construir uma capela no interior do planalto
brasileiro, e os desertos estavam muito longe, cheios de problemas
políticos. Mas ainda assim, podia fazer algo: aprender pintura, e
tentar mostrar ao mundo as visões que aqueles homens e mulheres
tiveram.
Quanto tiraram o gesso, e voltou para a Embaixada –
cercado de cuidados, mimos, e todo tipo de atenção que um filho de
embaixador recebe dos outros diplomatas, pediu a sua mãe que o
inscrevesse numa curso de pintura.
A mãe disse que ele já tinha perdido muitas aulas no
Colégio Americano, e que era hora de recuperar o tempo perdido.
Eduard recusou-se: não tinha a menor vontade de continuar
aprendendo geografia e ciências.
Queria ser pintor. Num momento de distração, explicou o
motivo:
- Preciso pintar as visões do Paraíso.
A mãe não disse nada, e prometeu conversar com suas
amigas, para ver qual o melhor curso de pintura da cidade.
Quando o Embaixador voltou do trabalho, aquela tarde,
encontrou-a chorando em seu quarto.
- Nosso filho está louco – dizia, com as lágrimas
correndo. – O acidente afetou o seu cérebro.
- Impossível! – respondeu, indignado, o embaixador. Os
médicos, indicados pelos americanos, o examinaram.
A mulher contou o que ouvira.
- É rebeldia normal da juventude. Espere e verá que tudo
volta ao normal.
Desta vez, a espera não resultou em nada, porque Eduard
tinha pressa em começar a viver. Dois dias depois, cansado de
aguardar uma decisão das amigas de sua mãe, resolveu matricularse num curso de pintura. Começou a aprender o escala de cores e
perspectiva, mas começou também a conviver com gente que nunca
falava de marca de tênis ou modelos de carro.
- Ele está convivendo com artistas! – dizia a mãe,
chorosa, ao embaixador.
Deixe o menino – respondia o Embaixador. – Vai
enjoar logo, como enjoou da namorada, dos cristais, das pirâmides,
incenso, da marijuana.
Mas o tempo passava, o quarto de Eduard se transformava
num ateliê improvisado, com pinturas não faziam o menor sentido
para seus pais: eram círculos, combinações exóticas de cores,
símbolos primitivos misturados com gente em posição de prece.
Eduard, o antigo rapaz solitário que em dois anos de
Brasília nunca aparecera em casa com amigos, agora enchia sua casa
com pessoas estranhas, todos eles mal-vestidos, com cabelos
desarrumados, escutando discos horríveis em volume máximo, bebendo
e fumando sem qualquer limite, demonstrando total ignorância dos
protocolos de bom comportamento. Certo dia, a diretora do Colégio
Americano chamou a embaixatriz para uma conversa.
- Seu filho deve estar envolvido em drogas – disse. – O
rendimento escolar dele está abaixo do normal, e se continuar
assim não poderemos renovar sua matrícula.
A mulher foi direto para o escritório do Embaixador, e
contou o que acabara de ouvir.
- Você vive dizendo que o tempo ia fazer tudo voltar ao
normal! – gritava, histérica. – Seu filho drogado, louco, com
algum problema cerebral gravíssimo, enquanto você se preocupa com
coquetéis e reuniões sociais!
- Fale baixo – pediu ele.
- Não falo mais baixo, nunca mais na vida, enquanto você
não tomar uma atitude! Este menino precisa de ajuda, está
entendendo? Ajuda médica! Vá e faça alguma coisa.
Preocupado que o escândalo de sua mulher pudesse
prejudica-lo junto aos seus funcionários, e já desconfiado que o
interesse de Eduard pela pintura estava durando mais tempo do que
o esperado, o embaixador – um homem prático, que sabia todos os
movimentos corretos – estabeleceu uma estratégia de ataque ao
problema.
Primeiro, telefonou para o seu colega, o Embaixador
Americano, e pediu a gentileza de permitir o uso dos aparelhos de
exame da Embaixada. O pedido foi aceito.
Procurou de novo os médicos credenciados, explicou a
situação e solicitou que fosse feita uma revisão de todos os
exames da época. Os médicos, temerosos que aquilo pudesse lhes
render um processo, fizeram exatamente o que lhes foi pedido – e
concluíram que os exames não apresentavam nada de anormal. Antes
do embaixador sair, exigiram que firmasse um documento, dizendo
que, a partir daquela data, eximia a Embaixada Americana da
responsabilidade de ter indicado seus nomes.
Em seguida, o Embaixador foi ao hospital onde Eduard
estivera internado. Conversou com o diretor, explicou o problema
do filho, e solicitou que – a pretexto de um check-up de rotina –
fizessem um exame de sangue para detectar a presença de drogas no
organismo do rapaz.
Assim foi feito. E nenhuma droga foi encontrada.
Restava a terceira e última etapa da estratégia:
conversar com o próprio Eduard, e saber o que estava acontecendo.
Só de posse de todas as informações, poderia tomar uma decisão que
lhe parecesse correta.
Pai e filho sentaram-se na sala de estar.
- Você tem preocupado sua mãe – disse o embaixador. –
Suas notas diminuíram, e há risco de que sua matrícula não seja
renovada.
- Minhas notas no curso de pintura aumentaram, meu pai.
- Acho muito gratificante seu interesse pela arte, mas
você tem uma vida pela frente para fazer isto. No momento, é
preciso terminar o curso secundário, para que eu possa encaminhalo na carreira diplomática. Eduard pensou muito antes de dizer
qualquer coisa. Reviu o acidente, o livro sobre os visionários –
que afinal fora apenas um pretexto para encontrar sua verdadeira
vocação – pensou em Maria, de quem nunca mais havia escutado
falar. Hesitou muito, mas afinal respondeu.
- Papai, eu não quero ser diplomata. Eu quero ser
pintor.
O pai já estava preparado para esta resposta, e sabia
como contorna-la.
- Você será pintor, mas antes termine seus estudos.
Arranjaremos exposições em Belgrado, Zagreb, Lubljana, Sarajevo.
Com a influencia que tenho, posso ajuda-lo muito, mas preciso que
termine seus estudos.
- Se eu fizer isso, vou escolher o caminho mais fácil,
papai. Vou entrar para qualquer faculdade, me formar em algo que
não me interessa, mas que me dará dinheiro. Então a pintura ficará
para segundo plano, e eu terminarei esquecendo minha vocação.
Preciso aprender a ganhar dinheiro com pintura.
O embaixador começou a irritar-se.
- Você tem tudo, meu filho: uma família que o ama, casa,
dinheiro, posição social. Mas você sabe, nosso país está vivendo
um período complicado, há rumores de guerra civil; pode ser que
amanhã eu já não esteja mais aqui para ajuda-lo.
- Eu saberei me ajudar, meu pai. Confie em mim. Um dia
eu pintarei uma série chamada “As Visões do Paraíso”. Será a
história visual daquilo que homens e mulheres apenas
experimentaram em seus corações.
O embaixador elogiou a determinação do filho, terminou
a conversa com um sorriso, e resolveu dar mais um mês de prazo –
afinal, a diplomacia é a arte de adiar as decisões até que elas se
resolvam por si mesmas.
Um mes passou. E Eduard continuou dedicando todo seu
tempo a pintura, aos amigos estranhos, as músicas que deviam
provocar algum desequilíbrio psicológico. Para agravar o quadro,
tinha sido expulso do Colégio Americano, por discutir com a
professora sobre a existência de santos.
Numa última tentativa, já que não dava mais para adiar
qualquer decisão, o Embaixador tornou a chamar o filho para uma
conversa entre homens.
- Eduard, você já está em idade de assumir a
responsabilidade de sua vida. Nós aguentamos enquanto foi
possível, mas é hora de acabar com esta tolice de querer ser
pintor, e dar um rumo a sua carreira.
- Meu pai, ser pintor é dar um rumo à minha carreira.
- Você está ignorando o nosso amor, os nossos esforços
para dar-lhe uma boa educação. Como você nunca foi assim, só posso
atribuir o que está acontecendo a uma conseqüência do acidente.
- Entenda que eu os amo, e os amo mais do que qualquer
outra pessoa ou coisa em minha vida.
O embaixador pigarreou. Não estava acostumado a
manifestações tão diretas de carinho.
- Então, em nome do amor que você tem por nós, por
favor, faça o que sua mãe deseja. Deixe por algum tempo esta
história de pintura, arranje amigos que pertençam ao seu nível
social, e volte aos estudos.
- Você me ama, meu pai. Não pode me pedir isso, porque
sempre me deu um bom exemplo, lutando pelas coisas que queria. Não
pode querer que eu seja um homem sem vontade própria.
- Eu disse: em nome do amor. E eu nunca disse isso
antes, meu filho, mas estou pedindo agora. Pelo amor que você tem
a nós, pelo amor que nós temos a você, volte ao lar – não apenas
no sentido físico, mas no sentido real. Você está se enganando,
fugindo da realidade.
“Desde que você nasceu, nós alimentamos os maiores
sonhos de nossas vidas. Você é tudo para nós: o nosso futuro, e o
nosso passado. Seus avós eram funcionários públicos, e eu precisei
lutar como um touro para entrar e crescer nesta carreira
diplomática. Tudo isto apenas para abrir espaço para você, tornar
as coisas mais fáceis. Tenho ainda a caneta com que assinei o meu
primeiro documento como embaixador, e guardei-a com todo carinho,
para passar a você no dia em que fizer o mesmo.
“Não nos desaponte, meu filho. Nós não vamos viver
muito, queremos morrer tranquilos, sabendo que você foi bem
encaminhado na vida.”
“Se você nos ama realmente, faça o que estou pedindo. Se
você não nos ama, continue com seu comportamento.”
Eduard ficou muitas horas olhando o céu de Brasília,
vendo as nuvens que passeavam pelo azul – belas, mas sem uma gota
de chuva para derramar na terra seca do planalto central
brasileiro. Estava vazio como elas.
Se continuasse com sua escolha, sua mãe terminaria
definhando de sofrimento, seu pai ia perder o entusiasmo pela
carreira, ambos iam se culpar por falharem na educação do filho
querido. Se desistisse da pintura, as visões do Paraíso nunca
veriam a luz do dia, e nada mais neste mundo seria capaz de lhe
dar entusiasmo e prazer.
Olhou a sua volta, viu seus quadros, relembrou o amor e
o sentido de cada pincelada, e achou-os todos medíocres. Ele era
uma fraude; estava querendo ser uma coisa para a qual nunca tinha
sido escolhido, e cujo preço seria a decepção de seus pais.
As visões do paraíso era para os homens eleitos, que
apareciam nos livros como heróis e mártires da fé no que
acreditavam. Gente que já sabia desde criança que o mundo
precisava deles – o que estava escrito no livro era invenção de
romancista.
Na hora do jantar, disse aos seus pais que eles tinham
razão: aquilo era sonho de juventude, e seu entusiasmo pela
pintura também já havia passado. Os pais ficaram contentes, a mãe
chorou de alegria e abraçou o filho; tudo havia voltado ao normal.
De noite, o embaixador comemorou secretamente sua
vitória, abrindo uma garrafa de champanhe – que bebeu sozinho.
Quando foi para o quarto, sua mulher – pela primeira vez em muitos
meses – já estava dormindo, tranquila.
No dia seguinte, encontraram o quarto de Eduard
destruído, as pinturas destroçadas por um objeto cortante, e o
rapaz sentado num canto, olhando o céu. A mãe abraçou-o, disse
quanto o amava, mas Eduard não respondeu.
Não queria mais saber de amor: estava farto desta
história. Pensava que podia desistir e seguir os conselhos do pai,
mas tinha ido longe demais no seu trabalho - atravessara o abismo
que separa um homem do seu sonho, e agora não podia mais voltar.
Não podia ir nem para frente, nem para trás. Então, era
mais simples sair de cena.
Eduard ainda ficou mais cinco meses no Brasil, sendo
cuidado por especialistas, que diagnosticaram um tipo raro de
esquizofrenia, talvez resultante de um acidente de bicicleta. Logo
a guerra civil na Yugoslávia estourou, o embaixador foi chamado as
pressas, os problemas se acumularam demais para que a família
pudesse cuidar dele, e a única saída fora deixa-lo no recém-aberto
sanatório de Villete.
Quando Eduard acabou de contar a sua história já era
noite, e os dois tremiam de frio.
- Vamos entrar – disse ele. – Já estão servindo o
jantar.
- Na minha infância, sempre que ia visitar minha avó,
ficava contemplando um quadro em sua parede. Era uma mulher –
Nossa Senhora, como dizem os católicos – em cima do mundo, com as
mãos abertas para a Terra, de onde desciam raios.
“O que mais me intrigava neste quadro é que aquela
senhora estava pisando uma serpente viva. Então eu perguntei a
minha avó: “ela não tem medo da serpente? Não acha que vai morderlhe o pé, e mata-la com seu veneno?”
“Minha avó disse: a serpente trouxe o Bem e o Mal à
Terra, como diz a Bíblia. E ela controla o Bem e o Mal com seu
amor. “
- O que isso tem a ver com a minha história?
- Como eu lhe conheci há uma semana, seria muito cedo
para dizer: eu te amo. Como não devo passar desta noite, seria
também muito tarde para dizer-lhe isso. Mas a grande loucura do
homem e da mulher é exatamente esta: o amor.
“Você me contou uma história de amor. Acredito que,
sinceramente, os seus pais queriam o melhor para você e foi este
amor que quase destruiu sua vida. Se a Senhora, no quadro da minha
avó, estava pisando a serpente, isto significava que este amor
tinha duas faces.”
- Entendo o que você está falando – disse Eduard. – Eu
provoquei o choque elétrico, porque você me deixa confuso. Não sei
o que sinto, e o amor já me destruiu uma vez.
- Não tenha medo. Hoje, eu tinha pedido ao Dr. Igor para
sair daqui, escolher o lugar onde queria fechar meus olhos para
sempre. Entretanto, quando o vi sendo agarrado pelos enfermeiros,
entendi qual a imagem que eu queria estar contemplando quando
partisse deste mundo: o seu rosto. E decidi que não ia mais
embora.
“Enquanto você estava dormindo pelo efeito do choque, eu
tive mais um ataque, e achei que havia chegado a minha hora.
Olhei seu rosto, tentei adivinhar sua história, e me preparei para
morrer feliz. Mas a morte não veio – meu coração aguentou mais uma
vez, talvez porque sou jovem.
Ele abaixou a cabeça.
- Não se envergonhe de ser amado. Não estou pedindo
nada, apenas que me deixe gostar de você, tocar piano mais uma
noite – se ainda tiver forças para isso.
“Em troca, só lhe peço uma coisa: se você ouvir alguém
dizendo que estou morrendo, vá até a enfermaria. Deixe-me realizar
meu desejo.
Eduard ficou em silêncio por um longo tempo, e Veronika
achou que ele havia retornado ao seu mundo, para não voltar tão
cedo.
Finalmente, olhou as montanhas além dos muros de
Villete, e disse:
- Se você quiser sair, eu a levo lá para fora. Dê-me
apenas tempo de pegar os casacos, e algum dinheiro. Em seguida,
nós dois vamos embora.
- Não vai durar muito, Eduard. Você sabe disso.
Eduard não respondeu. Entrou e voltou em seguida com os
casacos.
- Vai durar uma eternidade, Veronika. Mais do que todos
os dias e noites iguais que passei aqui, tentando sempre esquecer
as Visões do Paraíso. Quase as esqueci, mas parece que estão
voltando.
“Vamos embora. Loucos fazem loucuras.”
Naquela noite, quando se reuniram para jantar, os
internos sentiram falta de quatro pessoas.
Zedka, que todos sabiam ter sido liberada após um longo
tratamento. Mari, que devia ter ido ao cinema, como costumava
fazer com freqüência. Eduard, que talvez ainda não tivesse se
recuperado do eletrochoque – e ao pensar nisso, todos os internos
ficaram com medo, e iniciaram a refeição em silencio.
Finalmente, faltava a moça de olhos verdes e cabelos
castanhos. Aquela que todos sabiam que não devia chegar viva até o
final da semana.
Ninguém falava abertamente de morte em Villete. Mas as
ausências eram notadas, embora todos procurassem se comportar como
se nada tivesse acontecido.
Um boato começou a correr de mesa em mesa. Alguns
choraram, porque ela era cheia de vida, e agora devia estar no
pequeno necrotério que ficava na parte de trás do sanatório. Só
mesmo os mais ousados costumavam passar por ali – mesmo assim
durante o dia, com a luz iluminando tudo. Havia três mesas de
mármore, e geralmente uma delas estava sempre com um novo corpo,
coberto por um lençol.
Todos sabiam que esta noite Veronika estava lá. Os que
eram realmente insanos logo esqueceram que – durante aquela semana
– o sanatório tivera mais um hóspede, que as vezes perturbava o
sono de todo mundo com o piano. Alguns poucos, enquanto a notícia
corria, sentiram uma certa tristeza, principalmente as enfermeiras
que estiveram com Veronika durante as suas noites na UTI; mas os
funcionários tinham sido treinados para não criar laços muito
fortes com os doentes, já que uns saiam, outros morriam, e a
grande maioria ia piorando cada vez mais. A tristeza desses durou
um pouco mais, e logo também passou.
A grande maioria dos internos, porém, soube da notícia,
fingiu espanto, tristeza, mas ficou aliviada. Porque, mais uma vez
o Anjo Exterminador havia passado por Villete, e eles tinham sido
poupados.
Quando a Fraternidade se reuniu após do jantar, um
membro do grupo deu o recado; Mari não tinha ido ao cinema –
partira para não voltar mais, e deixara um bilhete com ele.
Ninguém pareceu dar muita importância: ela sempre
parecera diferente, louca demais, incapaz de adaptar-se a situação
ideal em que todos ali viviam.
- Mari nunca entendeu como somos felizes– disse um
deles. - Temos amigos com afinidades comuns, seguimos uma rotina,
de vez enquanto saímos juntos para um programa, convidamos
conferencistas para falar de assuntos importantes, debatemos suas
idéias. Nossa vida chegou ao perfeito equilíbrio, coisa que tanta
gente lá fora adoraria ter.
- Sem contar o fato de que, em Villete, estamos
protegidos contra o desemprego, as conseqüências da guerra na
Bósnia, os problemas econômicos, a violência – comentou outro. Encontramos a harmonia.
- Mari me confiou um bilhete – disse aquele que tinha
dado a noticia, mostrando um envelope fechado. – Pediu que o lesse
em voz alta, como se quisesse se despedir de todos nós.
O mais velho de todos abriu o envelope e fez o que Mari
pedira. Quis parar no meio, mas já era tarde demais, e foi até o
final.
“Quando eu ainda era jovem e advogada, li certa vez um
poeta inglês, e uma frase dele me marcou muito: “seja como a fonte
que transborda, e não como o tanque, que sempre contem a mesma
água.” Sempre achei que ele estava errado: era perigoso
transbordar, porque podemos terminar inundando áreas onde vivem
pessoas queridas, e afoga-las com nosso amor e nosso
entusiasmo.Então, procurei me comportar a vida inteira como um
tanque, nunca indo além dos limites das minhas paredes interiores.
“ Acontece que, por alguma razão que nunca entenderei,
tive a Síndrome do Pânico. Transformei-me exatamente naquilo que
lutara tanto para evitar: numa fonte que transbordou e inundou
tudo ao meu redor. O resultado disso foi a internação em Villete.
“Depois de curada, voltei para o tanque, e conheci
vocês. Obrigado pela amizade, pelo carinho, e por tantos momentos
felizes. Vivemos juntos como peixes num aquário, felizes porque
alguém jogava comida na hora certa, e nós podíamos, sempre que
desejávamos, ver o mundo do lado de fora, através do vidro.
“ Mas ontem, por causa de um piano e de uma mulher que
deve já estar morta hoje, eu descobri algo muito importante: a
vida aqui dentro era exatamente igual à vida lá fora. Tanto lá
como aqui, as pessoas se reúnem em grupos, criam suas muralhas, e
não deixam que nada de estranho possa perturbar suas medíocres
existências. Fazem coisas porque estão acostumadas a fazer,
estudam assuntos inúteis, divertem-se porque são obrigadas a se
divertirem, e que o resto do mundo se dane, se resolva por si
mesmo. No máximo, assistem – como nós assistimos tantas vezes
juntos – o noticiário da televisão, só para terem certeza do
quanto são felizes, num mundo cheio de problemas e injustiças.
“Ou seja: a vida da Fraternidade é exatamente igual à
vida de quase todo mundo lá fora – todos evitando saber o que se
encontra além das paredes de vidro do aquário. Durante muito tempo
isso foi reconfortante e útil. Mas a gente muda, e agora eu estou
em busca de aventura – mesmo já tendo 65 anos, e sabendo as muitas
limitações que esta idade me trás. Vou para a Bósnia: há gente que
me espera ali, embora ainda não me conheça, e eu tampouco as
conheço. Mas sei que sou útil, e que o risco de uma aventura vale
mil dias de bem-estar e conforto.”
Quando acabou a leitura do bilhete, os membros da
Fraternidade saíram para os seus quartos e enfermarias, dizendo a
si mesmos que ela tinha definitivamente enlouquecido.
Eduard e Veronika escolheram o restaurante mais caro de
Lubljana, pediram os melhores pratos, embriagaram-se com três
garrafas de vinho da safra de 88, uma das melhores do século.
Durante o jantar não tocaram de uma só vez em Villete, do passado,
do futuro.
- Gostei da história da serpente – dizia ele, tornando
a encher o copo pela milésima vez. - Mas sua avó era muito velha,
não sabia interpretar a história..
- Respeite minha avó! – gritava Veronika, já bêbada,
fazendo com que todos no restaurante se virassem.
- Um brinde a avó desta moça! – disse Eduard,
levantando-se. – Um brinde a avó desta louca aqui na minha frente,
que deve ter fugido de Villete!
As pessoas voltaram a prestar atenção nos seus pratos,
fingindo que nada daquilo estava acontecendo.
- Um brinde a minha avó! – insistiu Veronika, também
embriagada.
O dono do restaurante veio até a mesa.
- Por favor, comportem-se.
Eles ficaram mais calmos por alguns instantes, mas logo
voltaram a falar alto, dizer coisas sem sentido, agir de maneira
inconveniente. O dono do restaurante tornou a voltar a mesa, disse
que não precisavam pagar a conta, mas que tinham que sair naquele
minuto.
- Vamos economizar o dinheiro gasto com estes vinhos
caríssimos! – brindou Eduard. – É hora de sair daqui, antes que
este homem mude de idéia!
Mas o homem não ia mudar de idéia. Já estava puxando a
cadeira de Veronika, num gesto aparentemente cortes, mas cujo
verdadeiro sentido era ajuda-la a levantar-se o mais rápido
possível.
Foram para o meio da pequena praça, no centro da cidade.
Veronika olhou seu quarto do convento, e a embriaguez passou por
um instante. Tornou a lembrar-se que ia morrer logo.
- Compre mais vinho! – pediu a Eduard.
Havia um bar ali perto. Eduard trouxe duas garrafas, os
dois sentaram, e continuaram a beber.
- O que há de errado com a interpretação da minha avó? –
disse Veronika.
Eduard estava tão bêbado, que foi preciso um grande
esforço para lembrar-se do que dissera no restaurante. Mas
conseguiu.
- Sua avó disse que a mulher estava pisando aquela cobra
porque o amor tem que dominar o Bem e o Mal. É uma bonita e
romântica interpretação, mas não é nada disso: porque eu já vi
esta imagem, ela é uma das Visões do Paraíso que eu imaginava
pintar. Eu já tinha me perguntado porque sempre retratavam a
Virgem desta maneira.
- Por que?
- Porque a Virgem, a energia feminina, é a grande
dominadora da serpente, que significa sabedoria. Se você reparar
no anel de médico do Dr. Igor, verá que ele tem o símbolo dos
médicos: duas serpentes enroladas num bastão. O amor está acima da
sabedoria, como a Virgem está sobre a serpente. Para ela, tudo é
Inspiração. Ela não fica julgando o bem e o mal.
- Sabe mais o que? – disse Veronika, - A Virgem nunca
ligou para o que os outros estavam pensando. Imagine, ter que
explicar a todo mundo a história do Espírito Santo! Ela não
explicou nada, só disse: “aconteceu assim.” Sabe o que os outros
devem ter dito?
- Claro que sei. Que ela estava louca!
Os dois riram. Veronika levantou o copo.
- Parabéns. Você devia pintar estas Visões do Paraíso,
ao invés de ficar falando.
- Começarei por você – respondeu Eduard.
Ao lado da pequena praça, existe um pequeno monte. Em
cima do pequeno monte, existe um pequeno castelo. Veronika e
Eduard subiram o caminho inclinado, blasfemando e rindo,
escorregando no gelo e reclamando do cansaço.
Ao lado do castelo, existe uma grua gigantesca, amarela.
Para quem vai a Lubljana pela primeira vez, aquela grua dá a
impressão de que estão reformando o castelo, e que em breve ele
será completamente restaurado. Os habitantes de Lubljana, porém,
sabem que ela grua está ali há muitos anos – embora ninguém saiba
a verdadeira razão. Veronika contou a Eduard que, quando se pede
as crianças do jardim de infância para desenhar o castelo de
Lubljana, eles sempre incluíam a grua no desenho.
castelo.
- Aliás, a grua está sempre mais bem conservada que o
Eduard riu.
- Você devia estar morta – comentou, ainda sob o efeito
do álcool, mas com a voz mostrando um certo medo. – Seu coração
não devia ter aguentado esta subida.
Veronika deu-lhe um demorado beijo.
- Olhe bem para o meu rosto – disse ela. – Guarde-o com
os olhos de sua alma, para que possa reproduzi-lo um dia. Se
quiser, comece por ele, mas volte a pintar. Este é o meu último
pedido. Você acredita eu Deus?
- Acredito.
- Então você vai jurar, pelo Deus que você acredita, que
irá me pintar.
- Eu juro.
- E que, depois de me pintar, irá continuar pintando.
- Não sei se posso jurar isso.
- Pode. E vou lhe dizer mais: obrigado por ter dado um
sentido a minha vida. Eu vim a este mundo para passar por tudo que
passei, tentar suicídio, destruir meu coração, encontrar você,
subir a este castelo, e deixar que você gravasse meu rosto em sua
alma. Esta é a única razão pela qual eu vim ao mundo; fazer com
que você retornasse ao caminho que interrompeu. Não faça com que
eu sinta que minha vida foi inútil.
- Talvez seja cedo demais ou tarde demais, mas, da
mesma maneira que você fez comigo, eu quero dizer: te amo. Não
precisa acreditar, talvez seja uma bobagem, uma fantasia minha.
Veronika abraçou-se a Eduard, e pediu ao Deus, que ela
não acreditava, que a levasse naquele momento.
Fechou os olhos, sentiu que ele também fazia o mesmo. E
o sono veio, profundo, sem sonhos. A morte era doce, cheirava a
vinho, e acariciava seus cabelos.
Eduard sentiu que alguém lhe cutucava no ombro. Quando
abriu os olhos, o dia começava a amanhecer.
- Vocês podem ir para o abrigo da prefeitura – disse o
guarda. – Vão congelar, se continuarem aqui.
Em uma fração de segundo, ele lembrou-se de tudo que
tinha se passado na noite anterior. Nos seus braços estava uma
mulher encolhida.
- Ela...ela está morta.
Mas a mulher se mexeu, e abriu os olhos.
- O que está havendo? – perguntou Veronika.
- Nada – respondeu Eduard, levantando-a. – Ou melhor, um
milagre: mais um dia de vida.
Assim que o Dr. Igor entrou no consultório e acendeu a
luz – o dia continuava a amanhecer tarde, aquele inverno estava
durando além do necessário - um enfermeiro bateu a sua porta.
“Começou cedo hoje”, disse ele.
Ia ser um dia complicado, por causa da conversa com a
garota. Preparara-se para isso durante toda a semana, e na noite
anterior mal conseguira dormir.
- Tenho notícias alarmantes – disse o enfermeiro. – Dois
dos internos desapareceram: o filho do embaixador, e a menina com
problemas do coração.
- Vocês são uns incompetentes. A segurança deste
hospital sempre deixou muito a desejar.
- É que ninguém tentou fugir antes –respondeu o
enfermeiro, assustado. – Não sabíamos que era possível.
- Saia daqui! Tenho que preparar um relatório para os
donos, notificar a polícia, tomar uma série de providencias. E
diga que não posso mais ser interrompido, porque estas coisas
levam horas!
O enfermeiro saiu, pálido, sabendo que parte daquele
grande problema terminaria caindo nos seus ombros, porque é assim
que os poderosos agem com os mais fracos. Com toda certeza,
estaria despedido antes que o dia terminasse.
O Dr. Igor pegou um bloco, colocou em cima da mesa, e ia
começar suas anotações, quando resolveu mudar de idéia.
Apagou a luz, deixou-se ficar no escritório
precariamente iluminado pelo sol que ainda estava nascendo, e
sorriu. Tinha conseguido.
Daqui a pouco tomaria as notas necessárias, relatando a
única cura conhecida para o Vitriolo: a consciência da vida. E
dizendo qual o medicamento que empregara em seu primeiro grande
teste com os pacientes: a consciência da morte.
Talvez existissem outros medicamentos, mas o Dr. Igor
decidira concentrar sua tese no único que tivera oportunidade de
experimentar cientificamente, graças a uma menina que entrara –
sem querer – em seu destino. Viera num estado gravíssimo, com
intoxicação séria, e início de coma. Ficara entre a vida e a morte
por quase uma semana, tempo necessário para que ele tivesse a
brilhante idéia do seu experimento.
Tudo dependia de apenas uma coisa: da capacidade da
menina sobreviver.
E ela conseguira.
Sem nenhuma conseqüência séria, ou problema
irreversível; se cuidasse de sua saúde, poderia viver tanto ou
mais que ele.
Mas Dr. Igor era o único que sabia disso, como sabia
também que os suicidas frustrados tendem a repetir seu gesto mais
cedo ou mais tarde. Por que não utiliza-la como cobaia, para ver
se conseguia eliminar o Vitríolo – ou amargura – do seu organismo?
E o Dr. Igor concebera seu plano.
Aplicando um remédio conhecido como Fenotal, conseguira
simular os efeitos dos ataques de coração. Durante uma semana, ela
recebera injeções da droga, e devia ter ficado muito assustada –
porque tinha tempo de pensar na morte, e de rever sua própria
vida. Desta maneira, conforme a tese do Dr. Igor (“A consciência
da morte nos anima a viver mais”, seria o título do capítulo final
do seu trabalho), a menina passou a eliminar o Vitriolo de seu
organismo, e possivelmente não repetiria seu ato.
Hoje iria encontrar-se com ela, e dizer que, graças as
injeções, tinha conseguido reverter totalmente o quadro dos
ataques cardíacos. A fuga de Veronika lhe poupara a desagradável
experiência de mentir mais uma vez.
O que Dr. Igor não contava era com o efeito contagiante
de uma cura por envenenamento de Vitríolo. Muita gente em Villete
ficara assustada com a consciência da morte lenta e irreparável.
Todos deviam estar pensando no que estavam perdendo, sendo
forçados a reavaliar suas próprias vidas.
Mari viera pedir alta. Outros doentes estavam pedindo a
revisão dos seus casos. O caso do filho do embaixador era mais
preocupante, porque ele simplesmente desaparecera – na certa
tentando ajudar Veronika a fugir.
“Talvez ainda estejam juntos”, pensou.
De qualquer maneira, o filho do embaixador sabia o
endereço de Villete, se quisesse voltar. Dr. Igor estava
entusiasmado demais com os resultados, para ficar prestando
atenção a coisas pequenas.
Por alguns instantes, teve outra dúvida: cedo ou tarde,
Veronika se daria conta de que não ia morrer do coração. Na certa,
procuraria um especialista, e este lhe diria que tudo em seu
organismo estava perfeitamente normal. Neste momento, ela acharia
que o médico que cuidou dela em Villete era um incompetente total.
Mas todos os homens que ousam pesquisar assuntos proibidos
precisam de uma certa coragem, e uma dose de incompreensão.
Mas, e durante os muitos dias que ela teria que viver
com o medo da morte iminente?
Dr. Igor ponderou longamente os argumentos, e decidiu:
não era nada grave. Ela ia considerar cada dia um milagre – o que
não deixa de ser, em se considerando todas as probabilidades de
que ocorram coisas inesperadas em cada segundo de nossa frágil
existência.
Reparou que os raios de sol já estavam se tornando mais
fortes, o que significava que os internos, a esta hora, deviam
estar tomando café da manhã. Em breve sua ante-sala estaria cheia,
os problemas rotineiros voltariam, e era melhor começar a tomar
logo as notas de sua tese.
Meticulosamente, começou a escrever o experimento de
Veronika; deixaria para preencher mais tarde os relatórios sobre
a falta de condições de segurança do prédio.
Dia de Santa Bernadette, 1998

Documentos relacionados