Aproximações e distanciamentos entre brasileiros e bolivianos na

Transcrição

Aproximações e distanciamentos entre brasileiros e bolivianos na
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM ESTUDOS FRONTEIRIÇOS
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CAMPUS DO PANTANAL
ANDRÉ LUIS RAMALHO JUNIOR
APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE
BRASILEIROS E BOLIVIANOS NA VIVÊNCIA FRONTEIRIÇA EM
CORUMBÁ-MS.
CORUMBÁ – MS
2012
1
ANDRÉ LUIS RAMALHO JUNIOR
APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE
BRASILEIROS E BOLIVIANOS NA VIVÊNCIA FRONTEIRIÇA EM
CORUMBÁ-MS.
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Mestrado em Estudos Fronteiriços da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campus do Pantanal, como requisito final para
obtenção do título de Mestre.
Linha de Pesquisa: Ocupação e Identidades
Fronteiriças.
Orientador(a): Prof. Dr. Paulo Marcos Esselin.
Corumbá - MS
2012
2
ANDRÉ LUIS RAMALHO JUNIOR
APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE
BRASILEIROS E BOLIVIANOS NA VIVÊNCIA FRONTEIRIÇA EM
CORUMBÁ-MS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Estudos Fronteiriços
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, como requisito final
para obtenção do título de Mestre. Tendo sido considerada _________________.
Corumbá, 31 de agosto de 2012.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Orientador(a):
Prof. Dr. Paulo Marcos Esselin
(Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)
___________________________________________
1º Avaliador(a):
Profº. Drº Edgar Aparecido da Costa
(Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)
_____________________________________________
2º Avaliador (a):
Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira.
(Universidade Federal da Grande Dourados)
3
À Georgette, Nair e Genésio: o meu lugar.
4
AGRADECIMENTO
A minha família, que sempre se empenhou em transmitir a mensagem de que a
educação transforma nossas vidas, assim, investiram e acreditaram muito nos meus planos.
Essa é minha maior herança.
A Deus, que me deu a vida, meu maior bem. E graças a sua força me mantém lúcido e
saudável. Que por sua bondade enviou pessoas especiais para iluminar a minha passagem por
este mundo. Dentre essas pessoas, meus avós, meus pais, meus irmãos e amigos.
Dentre essas pessoas, Cintia, minha mulher, meu amor. A você agradeço imensa e
eternamente. Por todas as horas do seu tempo que destinou a me ajudar, por amor e carinho.
Amo você.
Ao meu orientador, Professor Paulo Esselin, que com sua seriedade e experiência
ajudou infinitamente nos rumos desta pesquisa. Muitíssimo obrigado!
Aos professores do Programa de Mestrado, onde cada um ao seu modo nos ajudou
grandemente. Agradecimento especial aos professores Gustavo Villela e Edgar Aparecido da
Costa, que muito contribuíram no processo de qualificação e em muitos outros momentos.
Aos meus colegas do mestrado, turma de 2010, que em algumas oportunidades
discutimos fronteira e nos ajudamos com preciosas dicas. Em especial, Edson Grylo e
Lourival, com os quais publiquei textos nascidos no âmbito do Mestrado. Também ao Felipe
Marôpo, amigo desde a graduação, sempre solícito e educado.
Ao meu grande amigo e irmão, Roberto Mauro, companheiro de inúmeras situações
indescritíveis e inesquecíveis. Ainda vamos longe, meu amigo.
A Ramona Trindade, secretária do Mestrado, sempre muito gentil e prestativa.
Aos meus colegas das escolas em que trabalho, em especial à Diretora Adjunta da
Escola Dr. João Leite de Barros, Eliete Maciel, que me deu oportunidades e sempre que
preciso me estende a sua mão amiga.
A Nilza (in memorian), que compartilhou com meus pais a tarefa de educar-me, por
isso, uma mãe para mim.
A todas as pessoas que direta e indiretamente ajudaram na construção desta pesquisa.
A cada pessoa que gentilmente cedeu seu tempo para responder aos meus questionamentos.
A cada pessoa que acreditou nesta pesquisa, incentivando e apoiando, debatendo e
questionando, contribuindo para seu desenvolvimento e crescimento. Meus sinceros
agradecimentos a todos.
5
Creo que He visto una luz al otro lado del rio.
(Jorge Drexler - Al otro lado del rio)
6
RAMALHO JR., André Luis. Aproximações e Distanciamentos entre brasileiros e
bolivianos na vivência fronteiriça de Corumbá-MS. 69f. 2012. Dissertação de Mestrado do
programa de pós-graduação strictu senso Estudos Fronteiriços, da Fundação Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal. Corumbá, MS.
RESUMO
A presente pesquisa abordou as interações entre brasileiros e bolivianos na vivência
fronteiriça na cidade de Corumbá-MS. O grande número de imigrantes bolivianos presentes
nesta cidade e a fronteira suscitam diferentes reações em sua população local. Levantou a
hipótese de que o Estado, com suas políticas para as fronteiras, auxiliado pelos meios de
comunicação que reproduzem uma imagem da fronteira, geram barreiras na vivência
fronteiriça. O objetivo deste trabalho foi captar e analisar manifestações em que brasileiros e
bolivianos estejam interagindo. Ao analisar tais manifestações apresenta a teoria de Pontos de
Aproximação e Pontos de Distanciamento: em quais situações ou eventos brasileiros e
bolivianos se aproximam amistosamente ou se distanciam através de atitudes restritivas entre
si e com a fronteira. Caracteriza os Pontos de Distanciamento diante de suas manifestações
captadas: são discretas e anônimas. O que por sua vez demonstra a força das aproximações
entre brasileiros e bolivianos nesta região. Os Pontos de Aproximação que se mostraram mais
evidentes e que foram analisados são o esporte, a religião e as manifestações artísticoculturais. Estes Pontos de Aproximação são resistentes, pois, ergueram-se espontaneamente,
sem auxílio governamental. Diante disso, a pesquisa propõe que futuras políticas para as
fronteiras devem compreender as particularidades de suas relações, não promover
distanciamentos, através de políticas fiscalizadoras e repressivas, mas, sim tentar ampliar as
aproximações já existentes.
Palavras-chaves: Fronteira, Aproximações, Distanciamentos, Imigrantes.
7
RAMALHO JR., André Luis. Similitudes y diferencias entre Brasil y Bolivia en la
frontera viven Corumbá-MS. 69f. 2012. Disertación Programa de postgrado estrictas
Estudios Fronterizos sentido, la Universidad Federal de Mato Grosso do Sul, el Campus
Pantanal. Corumbá, MS.
RESUMEM
El presente estudio abordó las interacciones entre brasileños y bolivianos que viven en la
ciudad fronteriza de Corumbá-MS. El gran número de inmigrantes bolivianos presentes en
esta ciudad fronteriza y elevar diferentes reacciones en la población local. La hipótesis de que
el Estado, con sus políticas de fronteras, con ayuda de los medios de comunicación que
reproducen una imagen de la frontera, generan barreras a la experiencia fronteriza. El objetivo
de este estudio fue el de capturar y analizar los eventos en los cuales los brasileños y
bolivianos están interactuando. Mediante el análisis de este tipo de eventos se presentan los
puntos de enfoque de la teoría y lugares de Distanciamiento: ¿en qué situaciones o eventos
brasileños y el enfoque de los bolivianos o alejarse amablemente a través de actitudes
restrictivas entre sí y con la frontera. Puntos características Distanciamiento capturados antes
de sus manifestaciones: son discretos y anónimo. Lo que a su vez demuestra la fuerza de las
asociaciones entre brasileños y bolivianos en esta región. Enfoque puntos que fueron más
evidentes y que se analizaron son los deportes, la religión y las manifestaciones artísticas y
culturales. Estos puntos son resistentes Enfoque por lo tanto se levantó espontáneamente sin
ayuda del gobierno. Por lo tanto, la investigación sugiere que las políticas futuras de las
fronteras deben entender las particularidades de sus relaciones, no promover distancias a
través de políticas de control y represión, sino más bien tratar de ampliar los enfoques
existentes.
Palabras claves: Frontier, aproximaciones, las distancias, los inmigrantes.
8
RAMALHO JR., Andre Luis. Approaching and withdrawing points between Brazilians
and Bolivians at the border area of Corumbá-MS. 69f. 2012. Dissertation of Graduate
Studies Programm, Master Degree in the strict sense Border Area Studies, Federal University
of Mato Grosso do Sul, Campus of Pantanal. Corumbá, MS.
ABSTRACT
This piece of work addressed how Brazilians and Bolivians deal with each other by sharing
the same border at Corumba/MS/Brazil and Puerto Quijarro/Bolivia. The great presence of
Bolivians immigrants living at the Brazilian side and the own existence of the border can
cause an awakening on its local dwellers, in which each individual reacts differently. It brings
up the hypothesis of specific border politics driven by the State that interferes with the frontier
worker along with the media that promotes the idea of it by broadcasting what have been
causing barriers on the border daily life. This work aims to capture and analyze the common
signs of interaction between Brazilians and Bolivians. By analyzing their interactions it
proposes a theory called Approching Points and Withdrawing Points: they are situation or
events where Brazilians and Bolivians either approach friendly or withdraw through
restrictive actions between them and involving the border. The features of Withdrawing
Points according to what had been studied are: discretion and anonymity, whereas the
Approaching Points shows its ability of bringing Brazilians and Bolivians together at this
area. The most effective Approaching Points are sports, religion, artistic shows. These points
are resistant, they stand up spontaneously without government aid. Before all this, the actual
study proposes that future politics for the boarders should understand its evolving
particularities and not support withdrawing through surveillance and repressive policies,
rather, they should try making the existent approaching broaden.
Keywords: boarder, approaching, withdrawing, Immigrants, Bolivians, Corumba.
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Foto de Pichação na Av. General Rondon, em Corumbá – MS.
Figura 02: Foto da tabela de preços, em Reais e Pesos Bolivianos, utilizado no Congresso
Quéchua.
Figura 03: Foto do Convite para o evento em homenagem à Nossa Senhora de Copacabana.
Figura 04: Foto do Grupo de dança Caporales, de Cochabamba em Corumbá – MS.
Figura 05: Foto da missa na Igreja Matriz de Corumbá em homenagem à Virgem de
Copacabana.
Figura 06: Foto do andor com a imagem da Virgem de Urkupiña.
Figura 07: Foto do banner com a imagem da Virgem de Urkupiña.
Figura 08: Foto da final do Campeonato da Bras-Bol: brasileiros e bolivianos jogando futebol
em Corumbá - MS.
Figura 09: Foto da final do Campeonato da Bras-Bol: brasileiros e bolivianos jogando futebol
em Corumbá - MS.
Figura 10: Foto do amistoso entre a escolinha de futsal do Corumbaense Futebol Clube e
Colégio Boliviano - Canadiense.
Figura 11: Foto do amistoso entre a escolinha de futsal do Corumbaense Futebol Clube e
Colégio Boliviano – Canadiense.
Figura 12: Foto da apresentação cultural do grupo Morenada no III Seminário de Estudos
Fronteiriços, Corumbá - MS.
Figura 13: Foto da apresentação cultural do grupo Morenada no III Seminário de Estudos
Fronteiriços, Corumbá - MS.
Figura 14: Foto da Associações bolivianas desfilando no aniversário de 233 anos de
Corumbá-MS.
Figura 15: Foto do desfile referente à independência da Bolívia: centro de Corumbá - MS
2011.
Figura 16: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Figura 17: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Figura 18: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Figura 19: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Figura 20: Foto de expressão artística de grupo boliviano no Dia Internacional da Diversidade
Cultural.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................
11
1 - CORUMBÁ: CIDADE FRONTEIRIÇA CONSTRUÍDA POR IMIGRANTES ...........
16
1.1 IMIGRANTES NA CIDADE DE CORUMBÁ ....................................................................
16
1.2 IMIGRANTES BOLIVIANOS NA CIDADE DE CORUMBÁ ...........................................
20
1.3 O IMIGRANTE E A FRONTEIRA ...................................................................................... 23
2 – ESTADO E FRONTEIRA ................................................................................................. 27
2.1 O ESTADO NA CONSTRUÇÃO DA VIVÊNCIA FRONTEIRIÇA. .................................. 27
2.2 A FRONTEIRA CONSTRUINDO A SI PRÓPRIA ............................................................
35
3 – A FRONTEIRA E SUAS VIVÊNCIAS A PARTIR DE COMENTÁRIOS DE
LEITORES DE UM SITE DE NOTÍCIA ................................................................................ 38
4 - PONTOS DE APROXIMAÇÃO E PONTOS DE DISTANCIAMENTO........................ 50
CONSIDERAÇOES FINAIS ....................................................................................................
64
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS .....................................................................................
67
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa lançou seu olhar e análises sobre a vivência fronteiriça das cidades de
Corumbá, localizada na região oeste do estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, e Puerto
Quijarro, município da província de Germán Bush, departamento de Santa Cruz, Bolívia.
O objeto de pesquisa está focado na fronteira e suas circunstâncias. O foco está nos
povos fronteiriços1 locais, nos quais se percebem aproximações e distanciamentos entre as
duas nacionalidades, por motivos diversos, em diferentes níveis e em diferentes formas,
algumas abertas outras discretas.
O desenvolvimento retórico retroage no tempo para revelar que a cidade de Corumbá
possui uma característica que marca sua História: foi construída, em grande parte, por
imigrantes2 de diversas nacionalidades, com destaque aos paraguaios, italianos, portugueses,
sírios, libaneses e, em maior quantidade numérica, os bolivianos. Nesta investigação
descobre-se que há uma grande presença de imigrantes vindos de diversas partes do território
brasileiro. O reflexo desta miscigenação atinge visivelmente a arquitetura, a linguagem
empregada, a musicalidade, a culinária, as festividades, entre outras.
Dessa forma, esta pesquisa se desenvolveu numa localidade permeada por
particularidades, pois, os territórios fronteiriços carregam em si manifestações muito
peculiares, tais como as miscigenações (lingüística e matrimonial), fluente troca monetária e
transporte internacional de mercadorias. E uma cidade fronteiriça que suas construções sociais
foram erguidas por diferentes arcabouços socializatórios, amplifica muito mais suas
distinções. Noutros termos, uma cidade fronteiriça construída por imigrantes. Tanto que este
é o título do primeiro capítulo.
Conforme previamente enunciado, e devido ao seu número de imigrantes que vivem
na cidade de Corumbá, os bolivianos figuram como principais atores deste trabalho. Sua forte
presença não é apenas detectável em termos numéricos por comporem 74,4% dos imigrantes
da cidade de Corumbá, segundo informação do Censo Demográfico do ano de 2.000. Sua
presença reverbera no comércio, nas moradias, no trânsito, na culinária, nas manifestações
artístico-culturais, esportivas, religiosas, educativas, e outros âmbitos. Essa marcante
presença, inarredável, provoca diferentes reações na população local.
1
Nesta pesquisa aponta-se como fronteiriços todos que vivem na fronteira em análise, não se tratando de algum
tipo de identificação ou autoindentificação.
2
Nesta pesquisa denominam-se imigrantes todos aqueles que não nasceram em Corumbá, mas que vivem na
cidade.
12
Para abordar a presença boliviana, foram imprescindíveis os dados constantes na
pesquisa de Souchand e Baeninger (2008), que apresentam diversas características do fluxo
migratório boliviano para o território brasileiro, caracterizada pela presença em regiões
metropolitanas e fronteiriças. Nada menos razoável, eis que a localidade que mais possui
números de imigrantes bolivianos é São Paulo, sendo seguida por Corumbá.
Não obstante, o território fronteiriço é marcado pela forte movimentação social,
econômica e cultural entre seus habitantes. Os modos e facetas de como estas interações
sociais se desenvolvem são os objetos do presente estudo. Se elas caminham para
aproximações amistosas, de uma maneira a inclinar-se para solidariedade, ou, se tendem ao
distanciamento, tendo como referência ideias preconceituosas.
Ainda no primeiro capítulo abordam-se analogias existentes entre a fronteira e o
imigrante, que apesar de serem categorias diferentes, possuem intersecções que se
apresentaram de relevância na presente pesquisa. O caráter transitório inerente à fronteira e ao
imigrante confere amplificações às interações sociais engendradas naquela localidade. A
fronteira que vivencia o local, o nacional e o global. O imigrante transitando entre aqui e lá, o
provisório e o permanente. Estes elementos atuam no modo como os imigrantes constroem
suas relações com o território e seus habitantes.
No segundo capítulo, Estado e fronteira, trabalha-se a hipótese que o Estado, com suas
políticas e instituições, tem papel preponderante na construção da vivência fronteiriça, que o
seu modo de entender a fronteira não somente gerou políticas e instituições com atuação
fiscalizadora e repressiva, mas também atuou na maneira como os fronteiriços ergueram sua
vivência. Ainda relata como o restante do território nacional enxerga as fronteiras. O Estado,
enquanto a maior instituição organizada da sociedade e provedora da sua organização equipou
as fronteiras de modo que sua presença fosse evidente, que suas ordens fossem atendidas
pelos seus nacionais e entendida pelos vizinhos, em uníssono.
Porém, a fronteira é local onde a maleabilidade é a ordem, subvertendo a lógica do
poder central. E por esse seu caráter indolente aos olhos do Estado, enseja um permanente
requerimento de vigilância. Isto é perceptível nas operações policiais, nas quais o cadeado é
utilizado como símbolo oficial. E esta concepção alcançou a alguns fronteiriços, que pedem
“que a fronteira seja fechada e que joguem a chave fora”. Ou por aqueles que picham “Muro
na fronteira” e “Fora Chollos”.
Desse modo, o olhar do Estado para a fronteira ensejou políticas repressivas e
restritivas às aproximações entre os povos, ainda que existisse uma ideia de integração, mas
13
que não extrapola os discursos políticos, influenciando no modo como os fronteiriços
interagem entre si e veem a fronteira.
Sob este prisma, as políticas que o Estado produziu para as fronteiras auxiliaram no
distanciamento entre brasileiros e os povos vizinhos, bem como os brasileiros externos às
fronteiras enxergam esta localidade. O que se verifica é a vinculação da fronteira ao ilícito e
às contravenções. Tudo nela estaria relacionado à permissividade e da relativização das leis.
Não há óbice em entender que a veiculação dos meios de comunicações na região
aplicou a visão estadista sob suas lentes, contaminando os noticiários. Quase sempre
funcionais da reprodução de ideias restritivas, os midiáticos quase sempre focalizam apenas
os acontecimentos atrelados às transgressões. É preciso sublinhar que as contravenções e o
ilícito realmente ocorrem nas fronteiras, que são portas para o contrabando, o descaminho e
ao tráfico. No entanto, é preciso evidenciar mais ainda que, estas atividades não se aplicam a
todos os fronteiriços, e que a justificativa para a existência do erro é ainda um fator social nos
dois países. Apoiar-se no equívoco como fundo midiático é impedir que o homem de bem,
fronteiriço ou não, possa insurgir-se contra qualquer injustiça, enquanto o que incorre em
preconceitos pensa ter razão.
Com o mesmo esforço que o Estado ergueu marcos físicos na tentativa de manter a
integridade territorial e impor suas políticas, os fronteiriços produziram suas vivências a partir
das suas necessidades, assim, a fronteira foi ao longo dos séculos construindo a si própria.
As políticas estatais fundamentam-se na ideia que a fronteira deve ser o seu
instrumento delimitador, que tem por funcionalidade a garantia que suas políticas e ordens
serão acatadas. No entanto, contraditoriamente, é na fronteira que os limites são
desconsiderados, e a ordem do poder central destoa. Neste cenário, o que se verifica não é a
desordem, mas uma nova configuração da ordem, referenciada na própria vida na fronteira.
Os fronteiriços, com seu modo de viver a fronteira, quando desconsideram a
interpretação totalizante do Estado, promovem uma integração muito mais enérgica e
vigorosa que qualquer política de integração jamais alcançará.
Sob uma nova ótica, a concepção relativa aos fins deste trabalho e o contexto em que
ele está inserido emergem. Seu alvo não se encontra no poder público para fins de políticas
publicas, mas diretamente nas pessoas, de modo que elas tornem públicas as ideias de
solidariedade entre os povos e seus benefícios. Porque o que se vê com frequência é o Estado
se apropriando de ideias e estampando o símbolo estatal, aplicando-as sob o crivo oficial. O
que provoca deformações e incompatibilidades, mais distanciamentos e preconceitos. Nesta
vertente, as práticas interpessoais cambiam para aproximações amistosas, exigem novos
14
olhares e soluções que respeitem estas condições. De modo lento e gradual algumas políticas
já estão sendo implantadas nas fronteiras, respeitando a configuração de suas práticas, como
por exemplo, o Programa Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIBF).
Com o propósito de conhecer as interações entre brasileiros e bolivianos na região
estudada, foi necessário presenciar alguns eventos e conversar com os atores envolvidos,
perceber as reações, principalmente, da população local em relação às manifestações que se
desenvolviam. Na maioria das oportunidades se mostrou inoportuno aplicar questionários
fechados, mas sim deixar fluir os acontecimentos e, quando possível, se aproximar. No mais,
o método consistia em presenciar, tentar captar os acontecimentos, posteriormente analisá-los
e, principalmente, compreender as características das interações e onde e como elas se
apresentam mais atuantes.
Dessa maneira, determinados eventos e situações que foram presenciados serviram de
campo de análises. As análises não consideraram apenas as macrorrelações presentes, mas
também os sentidos aplicados pelos atores sociais a determinadas expressões e atividades.
Depois de feitos os levantamentos bibliográficos e no processo do trabalho de campo,
os objetivos foram delineados: captar e analisar pontos de aproximação e pontos de
distanciamento na vivência fronteiriça. Situações em que brasileiros e bolivianos aproximamse ou distanciam-se dentro da vivência fronteiriça, apresentando as características dessas
movimentações.
Para tanto, a cidade de Corumbá foi nosso principal local de análises. Logicamente
que os acontecimentos e manifestações nas cidades bolivianas de Puerto Quijarro e Puerto
Suárez não foram desconsiderados, sobretudo pelo grande número de seus habitantes que
diariamente se deslocam para Corumbá para realizar diversas atividades.
O terceiro capítulo, A fronteira e suas vivências a partir de comentários de leitores de
um site de notícias, é um estudo de caso no qual se verifica muitas das hipóteses apresentadas
nos capítulos anteriores. O modo como os leitores se referem à fronteira e aos bolivianos
revela traços interessantes e inerentes das interações sociais construídas na região estudada.
O quarto capítulo, Pontos de Aproximação e Pontos de Distanciamento, apresenta
casos de manifestações de aproximação e de distanciamento nas relações sociais entre
brasileiros e bolivianos na vivência fronteiriça, sua dinâmica e características.
Estas manifestações foram apenas captadas e não provocadas ou instigadas. Por isso,
elas foram apreendidas do modo como aconteciam, sem interferência deste mestrando. As
interpretações que seguem são interferências desta pesquisa.
15
Para compor esta pesquisa buscou-se transitar pelas diferentes disciplinas que os
estudos de fronteira se relacionam, sua complexidade demanda um olhar complexo.
16
CAPÍTULO I
CORUMBÁ: CIDADE FRONTEIRIÇA CONSTRUÍDA POR IMIGRANTES
1.1 Imigrantes na cidade de Corumbá
A cidade de Corumbá completou 233 anos em 2011. Localizada no extremo oeste de
Mato Grosso do Sul, dista 427 quilômetros de Campo Grande, capital do estado. Tomando
como referência sua zona central, está apenas há seis quilômetros da área urbana de Arroyo
Concepción, Bolívia. Seu município abriga grande parte do Pantanal de Mato Grosso do Sul,
o que deu origem ao apelido de “capital do pantanal”. Construída às margens do rio Paraguai,
Corumbá hoje conta com pouco mais de 100 mil habitantes. Grande parte dos variados fluxos
sociais, econômicos e culturais que emergem nesta urbe está relacionada com a existência da
fronteira Brasil/Bolívia através deste município.
Corumbá possui diversas peculiaridades, algumas próprias das regiões de fronteira, o
que a torna uma localidade privilegiada. O destaque é o grande número de imigrantes que
sempre recebeu. Após a Guerra do Paraguai, tornou-se importante centro atrativo de
estrangeiros, quando imigrantes de diversas nacionalidades, como italianos, portugueses,
espanhóis, franceses, sírios, libaneses entre outras se radicaram no local.
Desse processo, são notáveis diversos vestígios distribuídos na arquitetura e
urbanismo através do casario do porto, prédios do centro da cidade, cemitério, calçadas, etc.
A reabertura do rio Paraguai permitiu o contato direto da Província com as Repúblicas sulamericanas platinas, como também o intercâmbio com o Rio de Janeiro e o acesso ao
Atlântico. Corumbá foi porta de entrada de mercadorias de todo o mundo e seus comerciantes
levavam essas mercadorias a todo o Estado de Mato Grosso uno.
Conforme o Censo/20003, verifica-se a marcante presença de diversas nacionalidades
na cidade de Corumbá. Os dados registrados informam a existência de 1.474 estrangeiros, o
que representa 1,54% da população da cidade, provenientes de 13 nacionalidades
especificadas. Na mesma mostra verifica-se também 39 habitantes nominados como de
Outros
Países
da
Ásia,
e
outros
11
como
não
especificados.
Esta cidade recebe grande fluxo de migrantes, e de acordo com os dados da fonte
3
Foram utilizados dados do Censo/2000 e não do Censo/2010 porque as informações referentes à imigração
ainda não foram disponibilizadas.
17
citada, verificou-se a presença de naturais de todos os estados brasileiros e do Distrito
Federal. Na amostra, estes migrantes somam 9.897 habitantes, o que representa 10,34% do
total da população da cidade, com destaque para os estado de São Paulo (20,5%), Rio de
Janeiro (13,3%) e Mato Grosso (19,4%).
A entrada de imigrantes é uma característica do estado de Mato Grosso do Sul, tanto
uma imigração interna como externa. Com essas contribuições a população de Mato Grosso
do Sul aumentou cerca de dez vezes, entre os anos de 1940 e 2007, e de acordo com dados do
IBGE, no ano de 2005, os imigrantes representavam 30,2% do total de seus habitantes.4
Uma presença marcante é a dos paraguaios. A acentuada presença dos imigrantes
paraguaios em Corumbá está relacionada à Guerra do Paraguai (1864-70), o que foi o mesmo
estímulo para grandes movimentos migratórios para outras regiões, devido às consequências
desastrosas deste conflito para o Paraguai. Diversos fatores combinados contribuíram para
que houvesse grande migração, tanto que os números, dos que partiram e dos que
permaneceram, ainda são alvo de debates. No que diz respeito à cidade de Corumbá, de
acordo com Wilcox (2008, p.7): “seis anos após a guerra, estimava-se que os paraguaios
constituíam mais da metade da população crescente da cidade de Corumbá, provavelmente,
seis mil pessoas.”
Segundo Lewis, todo o ônus do trabalho recaiu sobre os ombros dos imigrantes
paraguaios que entraram na Província após o fim da Guerra da Tríplice Aliança5. Na verdade,
foram necessários alguns anos para que a população paraguaia se reestruturasse, consumida
que foi no esforço da guerra. Paul Lewis afirma que, “ao iniciar a guerra, o Paraguai contava
com uma população de 550 mil habitantes e, no final da mesma, mais da metade havia
morrido. Afirma ainda que dos sobreviventes apenas 14.000 eram homens”. (LEWIS apud
MORAES, 2000, p. 13). De acordo com Efraim Cardozo, “dos cerca de um milhão e trezentos
mil habitantes paraguaios, apenas cerca de trezentos mil sobreviveram à guerra, sendo na sua
maioria mulheres e crianças”. (CARDOSO apud MORAES, 2000, p. 13).
(...) La teoria de que el pueblo tenía que expiar su adhesión al tirano, freno la
ayuda de los vencedores. El Paraguay quedó librado a su suerte. La parte
màs dura de la empresa de reconstruir el país recayó sobre las muyeres.
Crearon un género de sociedad poligámica, revivencia forzada de las
costumbres del siglo XVI, que permitió reponer rápidamente las pérdidas
demográficas. (CARDOZO, 1991, p. 121).
4
Disponível em http://www.geomundo.com.br/mato-grosso-do-sul-50122.htm. Acesso em 02/08/2011.
Sobre esse assunto ver ainda WILCOX, Robert Wilton. Cattle ranching on the Brazilian frontier: Tradition and
innovation in Mato Grosso. 1870-1940. New York University 1992, p. 123 e 124. SODRÉ, Nélson Werneck.
Oeste: Ensaio sobre a grande propriedade pastoril. Rio de Janeiro, Jose Olympio, 1941, p. 101. BARROS, Abílio
Leite. Gente pantaneira: Crônicas da sua História. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1998, p. 213 e seg.
5
18
Carlos Pastore, citado por Jorge Lara Castro, diz que “a população paraguaia no início
da guerra era estimada em 800 mil pessoas, tendo ficado reduzida a pouco mais de 200 mil.
Dos 68.379 homens que sobreviveram, apenas 13.663 eram maiores de 24 anos”. (CASTRO
apud MORAES, 2000, p. 13). Isso sem levar em conta os inválidos que, pela natureza dos
combates, certamente era um número significativo.
Os números apresentados não deixam dúvidas, são consensuais: a nação paraguaia
sofreu um duro golpe; a população masculina sobrevivente era na sua grande maioria formada
por crianças e idosos, mesmo assim indispensáveis ao esforço nacional de recuperação
econômica do país no pós-guerra. As mulheres, grande maioria da população, tiveram que
ocupar postos na produção e comércio, até então reservados aos homens, como o de
empunhar o arado para tirar da terra o sustento dos seus filhos ou exercer atividades
comerciais e industriais.
O naturalista Herbert H. Smith, que esteve em Assunção na década de 80 do século
XIX, deixou registrado:
Quase não se vêem homens; a guerra tragou-os todos, e os rapazes que
cresceram depois procuram empregos na cidade ou na labuta do rio. Agora
os povoados têm quasi exclusivamente por habitantes mulheres e crianças.
(...) Talvez a parte de Assunção que mais parece prosperar é o mercado, que
achamos bem supprido de carne e vegetaes. Estava cheio de compradores e
vendedores, na maior parte mulheres (...). (SMITH, Herbert H. 1921, p. 231
e 232).
De acordo com o Wilcox, o porto de Corumbá, “tornou-se, nos anos de 1870, um
centro em relativa expansão, oferecendo a única opção viável para os paraguaios que
procuravam uma vida melhor” (WILCOX, 2008, p.14). O referido autor indica que noutras
conjunturas houve novas levas migratórias, citando o ano de 1876, na região que
compreende Corumbá e a vizinha Ladário, onde se estima que os paraguaios constituíssem
metade da população. Nesta localidade, com a retirada das tropas brasileiras do território
paraguaio, no mencionado ano e subsequentemente, chegou um contingente feminino com
cerca de 1.500 mulheres e crianças, em companhia de aproximadamente 4.000 homens.
Ressalte-se que foram necessárias algumas décadas para que a população paraguaia,
consumida pelo esforço de guerra, se reestruturasse. Nas palavras do Wilcox: “embora tais
estatísticas impressionistas possam estar exageradas, elas revelam efetivamente a enorme
presença paraguaia em Corumbá nos primeiros anos do pós-guerra.” (Wilcox, 2008, p.15).
Esta presença ainda se verifica acentuada, conforme dados do Censo do ano de 2.000, onde
os paraguaios representam 10,4% dos imigrantes da cidade de Corumbá, de fato uma
presença destacada.
19
Em meados dos anos 1950, começaram a chegar nesta cidade imigrantes palestinos,
expulsos de sua terra natal após a ocupação de Israel em 1948 (OLIVEIRA, 2004). A
comercialização de mercadorias, prática dominante entre os imigrantes vindos do Oriente
Médio, passou a ganhar maior dinamismo com a presença dos palestinos. Segundo o mesmo
autor, um dos motivos que teria atraído os palestinos para esta cidade foi o fato de sírios e
libaneses terem alcançado sucesso, principalmente, no comércio. Posteriormente, o que teria
estimulado novas migrações palestinas foi o comércio estabelecido com os bolivianos.
Sobre a imigração árabe na região do Pantanal, Souza (2009, p.1) afirma que:
a maior parte dos imigrantes se estabeleceu em São Paulo, no Brasil, e
Buenos Aires, Argentina, no caso da imigração para a América do Sul, e
vieram para a região do Pantanal mato-grossense cuja concentração maior
foi na cidade de Corumbá.
E segundo o mesmo autor, “sua ação foi absolutamente importante não apenas no que
concerne ao abastecimento, mas com relação às interferências culturais e espaciais.” Após a
Guerra do Paraguai, o Pantanal sul foi o grande beneficiário da expansão capitalista que
ocorreu na segunda metade do século XIX, com a internacionalização da economia. A
reabertura do rio Paraguai à navegação permitiu intenso intercâmbio comercial, como também
o crescimento da economia portuária e a penetração de capitais estrangeiros tanto para o
desenvolvimento da pecuária como para os transportes e a mineração. Antes dos árabes, a
partir do final da segunda guerra mundial, Corumbá já havia vivido intenso processo de
desenvolvimento econômico e cultural.
Após a acomodação desses imigrantes na cidade, e a conseqüente ascensão social de
parte considerável deles, a partir dos anos 1950, Corumbá experimentou um ciclo de
desenvolvimento econômico com a instalação de diversas indústrias, cujos proprietários eram,
predominantemente, imigrantes.
O ponto de confluência de toda essa movimentação era o porto da cidade, dada sua
importância estratégica, como afirma Oliveira Neto (2005, p. 43-44):
o seu porto passou a ser o local de transferência dos produtos para
embarcações de diferentes calados, dependendo do seu destino. O mesmo
acontecia com as mercadorias importadas, que passaram a lotar os armazéns
das casas comerciais corumbaenses, para depois seguirem, por vários navios
de menores dimensões, para Cuiabá ou para outras cidades ribeirinhas do
interior e daí circularem via térrea (...) tudo isso garantiu a elevação da
cidade de Corumbá à condição de principal entreposto comercial de Mato
Grosso. O volume de mercadorias, possibilitou para aquela cidade,
conjuntamente, um grande trânsito de pessoas e de dinheiro (...) Essa nova
realidade, causada pelo aumento da circulação de mercadorias, possibilitou a
chegada de uma grande quantidade de imigrantes estrangeiros.
20
Imigrantes de diversas nacionalidades contribuíram para a construção da cidade de
Corumbá/MS, cada qual com sua importância cultural, socioeconômica, e política. A presente
peça versa sobre a seleção e apresentação e importância da presença dos imigrantes citados.
Há de se reconhecer a amplitude do universo que é muito maior que a abrangida. Não
obstante o reconhecimento desse imenso universo, a intenção é evidenciar a relevância dos
imigrantes na construção desta cidade.
1.2 Imigrantes bolivianos na cidade de Corumbá
A partir da segunda metade do século XX, com o dinamismo trazido pela construção
da ferrovia em direção à Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, intensificou-se a construção de
relações com os vizinhos bolivianos (OLIVEIRA NETO, 2005). Muitos vieram daquele país
para trabalhar nas obras da ferrovia, mas, também, para ocupar-se em outras tarefas no
comércio, serviços e construção civil. Neste mesmo sentido aponta Barreda (2008) onde a
presença boliviana, no estado de Mato Grosso do Sul, é registrada desde antes dos anos de
1950 e a Ferrovia Noroeste teria sido um chamariz. Como reitera Marques (2008): a ferrovia,
portanto, constituiu-se num dos elementos propulsores do povoamento entre fronteiras até
então praticamente subordinada à navegação platina.
Sobre a presença boliviana no Brasil e na cidade Corumbá, é valiosa a contribuição da
pesquisa de Souchand e Baeninger (2008), que apresentam, sob os dados do censo
demográfico do ano de 2000, que esta vem aumentando consideravelmente. Entre os anos de
1991 e 2000, o número de imigrantes bolivianos no país apresentou um crescimento anual de
2,41%. Todavia, estes números ainda não representam um total, já que existe um contingente
que escapa aos censos.
Souchand e Baeninger (2008) traçam um perfil desta presença, que tem por
características uma distribuição significativa nas áreas de fronteira e regiões metropolitanas,
com uma tendência a aglomeração em municípios fronteiriços, e nisso se destaca a cidade de
Corumbá, que tem a segunda maior concentração de imigrantes bolivianos do país (5,4%),
atrás apenas de São Paulo (37,9%).
De acordo com dados da mencionada pesquisa e do censo demográfico de 2000
registrou-se em Corumbá “789 domicílios com presença boliviana (mesmo que os filhos ou
cônjuges sejam brasileiros), representando 3,4% do total dos domicílios e englobando uma
população de 3.240 pessoas.” (SOUCHAND e BAENINGER, 2008, p.276). Ressaltando que
este número representa os recenseados, não inclui os não documentados, ou seja, os que,
21
devido sua situação ilegal escapam às estatísticas governamentais. De acordo com Fusco e
Souchand (2009) “é importante insistir que o Censo subestima a presença boliviana, por subregistro, e segundo a estimativa da Pastoral do Migrante, a população boliviana em Corumbá
se aproximaria a 8.000 indivíduos”.
Os dados do Censo/2000 informam que os imigrantes bolivianos na cidade de
Corumbá representam 74,4% do total de estrangeiros habitantes nesta cidade, o que soma um
número de 1.098 pessoas, evidenciando o destaque desta presença. As 3.240 pessoas que a
pesquisa acima citada se refere é uma estimativa, que inclui filhos e cônjuges. A presença
boliviana na cidade de Corumbá é facilmente perceptível aos olhos.
Narram Souchand e Baeninger que “a concentração da imigração boliviana em
poucos lugares, ou seja, registrados em poucas cidades, marcadamente em regiões
metropolitanas e fronteiriças, faz com que sua presença seja muito mais marcante e visível.”
(SOUCHAND e BAENINGER, 2008, p.276). E sobre a cidade de Corumbá, apontam que ela
é “um lugar estratégico de articulação dos fluxos de bens, pessoas e informações (...)” Acerca
das atividades exercidas pelos imigrantes bolivianos, segundo Fusco e Souchand (2009, p.5)
“a atividade principal dos migrantes é o comércio. Essa especialização entende-se pela
localização da cidade, sendo a fronteira um lugar predileto para os comerciantes.” Cabe dizer
que a opção pela atividade comercial pode estar ligada ao nível de inserção destes imigrantes
no mercado de trabalho da sociedade receptora, sobretudo quando se trata de nãodocumentados. A presença boliviana é apercebida com mais frequência nas feiras livres, feira
Bras-Bol6 e no centro comercial da cidade.
Sobre a escolaridade dos imigrantes bolivianos, os pesquisadores Fusco e Souchand
nos apresentam que “as proporções mais semelhantes estão entre 5 e 9 anos de estudo, para
ambos contingentes de imigrantes” (os pesquisadores fazem uma diferenciação dos
provenientes de Terras Altas e Terras Baixas, isto relativo ao território boliviano). Por Terras
Baixas os pesquisadores entenderam os departamentos de Santa Cruz, Beni Pando e Tarija,
enquanto os de Terras Altas os departamentos de La Paz, Potosí, Oruro, Chuquisaca e
Cochabamba. (FUSCO e SOUCHAND, 2009, p.12).
Dessa forma, com o nível de escolaridade apresentado, a inserção no mercado de
trabalho, através das vias formais, se torna mais difícil, o que faz da atividade comercial não
mais uma opção, mas uma saída. O nível de escolaridade, somado ao tempo de chegada e
condições de estabelecimento no novo destino também influenciam na inserção no mercado
6
A feira Bras-Bol assemelha-se a um “camelódromo”, onde trabalham brasileiros e bolivianos, comercializa os
mais variados tipos de produtos.
22
de trabalho. A situação ilegal também diminui a possibilidade do estabelecimento de uma
atividade formal e até mesmo na capacitação para o trabalho. Assim, como na cidade de
Corumbá já existem outros bolivianos que através do comércio prosperaram, esta atividade
torna-se um importante ramo para os imigrantes recém-chegados. Vale expor que as
atividades comerciais, de certo modo, também tem representado uma alternativa de trabalho
aos corumbaenses, devido à dificuldade de inserção em outros ramos do mercado de trabalho,
muitas vezes pela baixa qualificação profissional.
A pesquisa de Fusco e Souchand (2009) nos revela que a presença boliviana na cidade
de Corumbá é marcadamente heterogênea, sob diversos ângulos, tais como linguísticas,
socioeconômicos, localização espacial (tanto na origem como no destino), escolaridade, sexo,
entre outros, o que confere peculiaridades aos diversos grupos de bolivianos que habitam esta
cidade.
Esta apresentação tem por proposta expor a marcada presença boliviana nesta região
fronteiriça, presença que já foi analisada por diversos estudos no âmbito do Programa de
Mestrado em Estudos Fronteiriços, por exemplo, o de Silva (2010, p.28), o qual registra que
“eles se fazem presentes em todos os cantos da cidade, como feiras, mercados, escolas,
praças, postos de saúde, restaurantes, etc.” A mesma autora descreve um dado interessante:
“quem mora em Corumbá geralmente conhece na cidade pelo menos uma família constituída
por brasileiros e bolivianos”. Dessa forma, os dados estatísticos e a experiência cotidiana
convergem.
A intenção deste trabalho não é analisar as características desta presença, mas sim
determinados desdobramentos advindos dela, em foco estão as aproximações e
distanciamentos provocados pelas manifestações de preconceito e solidariedade entre os
fronteiriços desta região. Outras pesquisas desenvolvidas no âmbito do Programa de Mestrado
em Estudos Fronteiriços focalizaram diferentes aspectos acerca da presença boliviana na
cidade de Corumbá. Estas pesquisas abordaram as moradias, trabalho infantil, práticas
comerciais e emprego informal, ambiente escolar, violência doméstica, entre outras. O que
reflete a intensidade da presença boliviana nesta cidade.
A fronteira Brasil-Bolívia é o foco desta pesquisa, quando abrange as cidades de
Corumbá/MS e Puerto Quijarro/BO. As duas cidades conjunta e reciprocamente fomentam
atividades das quais se conferem uma acentuada movimentação de pessoas, mercadorias,
informações e tantas outras movimentações, lícitas ou ilícitas. Dessa forma pode-se dizer que
existe uma sólida vivência fronteiriça neste território, mesmo quando negada por parte dos
atores sociais que compõem a vida nesta fronteira.
23
O grande número de imigrantes bolivianos que vivem em Corumbá e os trabalhadores
bolivianos que moram na Bolívia, mas que diariamente exercem suas atividades na cidade
brasileira potencializam as relações advindas da vivência fronteiriça. Ou seja, elementos com
traços marcantes envolvidos num só corpo social: a fronteira, a vivência fronteiriça e o
imigrante. Elementos que em sua composição possuem universalidades, mas quando
analisadas de perto apresentam suas particularidades.
Neste palco, de uma cidade fronteiriça que, em grande parte, construída por
imigrantes, que se desenvolveu este trabalho. Assim, numa localidade efervescente do ponto
de vista de suas construções sociais, pois tanto a fronteira como o imigrante possuem lógicas
próprias pautadas em suas condições e contradições.
1.3 O imigrante e a fronteira
O imigrante e a fronteira são elementos constituintes desta pesquisa, ambos os alvos
de diversos trabalhos, amplamente discutidos e problematizados. O que interessa são suas
intersecções, onde eles interagem e atuam criando representações próprias. E nisso, tanto a
fronteira quanto o imigrante são fecundos. Talvez por isso, por essa face das propriedades que
estes elementos possuem, ensejam tantas discussões, controvérsias e tentativas de
conceituações.
O imaginário criado em torno das fronteiras e dos imigrantes gerou e, ainda gera,
descompassos entre as interpretações e o real, principalmente sobre suas condições e
contradições. Eles possuem uma característica comum: a transitoriedade. A fronteira entre o
local e o internacional, entre a integração e integridade, por exemplo. E o imigrante entre o
permanente e o provisório. Assim como também são flexíveis nessas suas condições. Por
vezes contraditórios, ou ambíguos. Sobretudo, é de grande complexidade envolvê-los. Como
apresenta Castilho (2003) citado em Marques (2008), quando se refere às esferas em que o
fenômeno migratório se insere: na econômica, nas políticas estatais, na sociocultural, na
demografia, entre demais esferas.
Dessa maneira, a referida intersecção está nos imigrantes em região de fronteira. E
como já exposto, os imigrantes bolivianos escolhem preferencialmente as regiões de fronteira
para se estabelecer. O que prescinde diferenciações, pois se trata de um processo singular. A
propósito Albuquerque afirma (2008, p. 3):
a imigração fronteiriça apresenta singularidades em relação às imigrações
internacionais de longa distância e às migrações em contextos nacionais (...)
24
De uma maneira mais específica, entretanto, compreendo a imigração
fronteiriça como os deslocamentos populacionais nas zonas de fronteiras
entre países vizinhos. Os imigrantes fronteiriços, com exceção das ocasiões
de guerra ou outros conflitos diplomáticos entre a nação de origem e de
destino, continuam mantendo muitos contatos com seu país e permanecem se
comunicando em seu idioma nativo.
As fronteiras têm em sua composição a confluência, a interação de diversos elementos.
Estes elementos quando gerados tinham como referência o quadro nacional, mas como o
próprio processo de erigir fronteiras está atrelado à existência próxima do outro, a
convivência aconteceu, e muitos desses elementos acabaram por experimentar alterações,
tanto para reforçar a nacionalidade como para criar novos modos de vida.
Assim, o manuseio dos símbolos nacionais foi se tornando uma característica forte das
fronteiras, o que fez com que seus respectivos Estados adotassem políticas de intervenção,
impondo marcos fiscalizatórios, como se estes fossem frear alguma interação que as pessoas
que ali vivem se propusessem gerar.
Muller (2008, p.16), a respeito afirma:
Através de um exercício diário, o fronteiriço extrapola qualquer discurso que
pregue a integração, coloca em prática ações surgidas de uma necessidade
premente, descobre e inventa formas de ultrapassar barreiras, enfrentando
dificuldades de modo a tornar viável a vida na fronteira.
Para fortalecer esta ideia “o cotidiano no espaço fronteiriço, tem em si imenso
potencial de integração e, da mesma forma, de conflito, capaz de incidir decisivamente nas
relações bilaterais e na integração maior” (SCHAFFER apud SOARES, 2008, p.40).
Entre a integração de povos vizinhos e a integridade física do território e das políticas
nacionais está a fronteira, mas quem determina o sentido dessas ações são agentes diferentes.
Para aproximação e também para o distanciamento, estão os fronteiriços, mas o modo de lidar
com os vizinhos passa pelo olhar que o Estado emprega à fronteira. Mas, se aqueles que ali
vivem se inclinam muito mais para a interação amistosa, ou seja, para uma aproximação, o
Estado tem por obrigação agir de acordo com esta característica.
Desse modo, infere-se que a flexibilidade é característica da fronteira. Obedece
claramente às políticas que partem do poder central, porém sua aplicabilidade requer ajustes,
pois, sua atmosfera é singular. E tentar aplicar qualquer projeto que não veja ou não entenda
suas particularidades é incorrer em equívocos que podem, como conseqüência, ampliar ainda
mais os distanciamentos, tanto no que diz respeito das relações entre os limítrofes quanto das
incompatibilidades com o projeto nacional.
25
O que se verifica é que a fronteira, por sua vivência diferenciada e lógica própria, que
tem como referência suas necessidades, acabou por se estabelecer num campo transitório, que
só é possível através da flexibilização.
Tal fenômeno não deveria ser visto como impróprio, quando a diversidade é o mote da
globalização, o que faz crer que os Estados prescindem unificações. Contar com
diferenciações, sobretudo nas fronteiras, não faz parte do plano do Estado, e tampouco dos
agentes de suas instituições. Um Agente Federal, por exemplo, que trabalha na fronteira
precisa entender que se trata de uma localidade com estruturas diferentes das de outros
lugares, eis que há a inerente proximidade de outro país e todas as circunstâncias advindas
desta proximidade. Do contrário, a falta de discernimento sobre as diferenças entre uma
região fronteiriça e de outra qualquer, acarretará no equívoco de ver irregularidades e
restrições nas legítimas relações construídas historicamente nas fronteiras. Essa visão decorre
do tipo de instrução uniformizada que se recebeu, a qual não pondera as diferenças das
regiões fronteiriças.
E nesse sentido, de rigorosidade com que os Estados foram compondo suas políticas
nacionais, com a proposta de unidade em todo seu território, engendraram-se muitas
desarmonias, que por sua vez ensejou mais interdições do que aproximações entre os
fronteiriços. E nisso a fronteira e os imigrantes têm fortes laços: ganham a forma atual com a
criação do Estado-Nação e os olhares que se lançam sobre eles tem como referência o Estado.
A ação do deslocamento é muito mais antiga que o Estado e mais ainda que os Estados
nacionais. No entanto, com sua criação e estabelecimento como modelo, os deslocamentos
passaram a se dar entre nações, ou seja, internacionais. E como um dos pilares do EstadoNação é a unidade, o de fora passou a ser o estranho, o outro, muitas vezes indesejado, pois,
rompia com a ideia de unidade, com a ideia de um povo, uma nação. Mesmo antes das
unificações nacionais o indivíduo estrangeiro já existia. Na Grécia Antiga não eram
considerados cidadãos. Mais precisamente em Esparta eram os periécos, os habitantes da
periferia, sem direitos políticos. E esta ideia perpassou a Antiguidade e atingiu a
Modernidade, alcançando os dias atuais. Não é difícil ver os imigrantes sendo culpados pelas
mazelas de determinados locais. Assim como também as fronteiras são responsabilizadas por
diversos problemas, muitos deles não exclusivos das regiões fronteiriças.
A condição imigrante se funda na contradição (SAYAD, 1998). Entre o provisório e o
permanente. Assim como no permanentemente provisório. A respeito das provisoriedades,
afirma Sayad, estão ligadas a ilusão do eterno retorno, elemento constitutivo da condição do
imigrante (SAYAD, 2000), e isto ocorre porque cada vez mais os imigrantes se instalam
26
definitivamente, desse forma, estabelecem laços reforçados com suas origens, mas ao mesmo
tempo se vê obrigado a se inserir numa nova realidade, e para isto, se nega como imigrante e
se mostra como morador de uma nova casa. Ou seja, deveras complexa a condição do
imigrante.
Entre adotar os novos costumes de um novo lugar e resistir aos antigos costumes, o
imigrante se coloca numa situação inédita, que não é nem um nem outro, mas um novo
indivíduo.
E nesse sentido, se colocarmos a questão da localidade isto se amplifica. Pois, o
imigrante também é antes um emigrante (SAYAD, 1998). Noutras palavras, ele não é
totalmente daquele novo lugar que o recebeu, como também não é mais do antigo lugar do
qual foi embora. Mesmo que conserve antigos costumes, estes estão agora modificados, pois,
o novo lugar restringe as condições ideais do seu uso e aplicação.
Mais do que apresentar a condição contraditória dos imigrantes, é preciso expor as
consequências de sua saída e de sua presença, sobretudo no que diz respeito aos Direitos
Humanos. Segundo Schwarz (2010): “a imigração está colocando à prova a capacidade do
mundo de universalizar os direitos humanos”.
O mesmo autor relaciona este problema às ações estatais, ao afirmar:
a imigração está desvelando a dupla face com que atuam os países centrais,
generosos no momento de produzir grandes declarações internacionais,
mesquinhos no momento de fazer efetivos os mesmo direitos dentro dos
respectivos territórios nacionais” (SCHWARZ, 2010, p.1)
Nesse sentido, as fronteiras acabam por exercer um papel relevante dentro das
políticas destes Estados, pois, quase como regra, são políticas de caráter proibitivo e visam
coibir a entrada de imigrantes. O que também revela uma face ambígua da globalização, que
prega o viver sem fronteiras. Que noutras palavras quer dizer, sem fronteiras paras as
mercadorias dos países capitalistas desenvolvidos. Entretanto, muros, arames farpados e
postos policiais para imigrantes dos países subdesenvolvidos. O que Milton Santos denomina
de fábula da globalização.
Dessa maneira, conjugando a fronteira e o imigrante, colocando-os sob a mesma mira
de análise, encontramos a flexibilidade como ponto comum entre estes elementos. Suas
condições implicam em contradições, os tornando elementos complexos que transitam, mas
que
também
possuem
suas
particularidades
flexibilidade/transitoriedade são suas marcas.
visíveis.
Podemos
dizer
que
a
27
CAPÍTULO II
ESTADO E FRONTEIRA
2.1 O Estado na construção da vivência fronteiriça
Preliminarmente, há que considerar tanto o conceito de Estado como o de fronteira. O
referencial encontra-se no trabalho de Sahid Maluf, a Teoria Geral do Estado (2003), na qual
o autor apresenta apoiado em outros autores, diversas definições e algumas delas se
mostraram apropriadas trabalho em tela.
Diante das ideias que se desenvolveram nesta pesquisa, foi imprescindível conceituar
Nação, relacionada com a noção de Estado. Assim, nos apresenta Maluf (2003, p.15): “Nação
e Estado são duas realidades distintas (...) Nação é uma realidade sociológica; Estado, uma
realidade jurídica. O conceito de Nação é essencialmente de ordem subjetiva, enquanto o de
Estado é necessariamente objetivo.”
Para Mancini, citado por Maluf (2003, p.15), a formação nacional está assentada nos
seguintes fatores: naturais (territórios, unidade étnica e idioma), históricos (tradições,
costumes, religião e leis) e psicológicos (aspirações comuns, consciência nacional, etc.).
Sahid Maluf cita Clóvis Beviláqua, em que “o Estado é um agrupamento humano,
estabelecido em determinado território e submetido a um poder soberano que lhe dá uma
unidade orgânica” (Maluf, 2003. p. 21).
A população, o território e o governo são os elementos constitutivos do Estado. E
nesse sentido, afirma Maluf (2003) que “A condição de Estado perfeito pressupõe a presença
concomitante e conjugada desses três elementos, revestidos de característica essenciais:
população homogênea, território certo e inalienável e governo independente.” Trata-se de o
Estado idealizado, no qual os elementos citados na realidade se alteram, principalmente, se
pensarmos na heterogeneidade da população do Brasil, nas transitoriedades que o território
experimenta e na dinâmica das relações internacionais.
Diante desse enunciado conceitual serão pautadas as ideias referentes ao Estado e
também à Nação. Do Estado que pretende ser total e soberano, que promove a organização e
deseja ser respeitado em todo o seu território, sem considerar insubordinações à sua
autoridade, ainda que estas representem a necessidade de sobrevivência e suas referências
sejam as necessidades locais, que destoam da ordem nacional. E nesse ponto as fronteiras são
28
especiais, pois, experimentam em algumas oportunidades certas situações, nas quais a sua
vivência fronteiriça se sobrepõe aos símbolos nacionais.
Com a criação do Estado-Nação, a ótica do poder central sempre caminhou em direção
de uma unidade, das forças armadas, território, língua e leis que estivessem de acordo com
uma lógica nacional. Mesmo considerando que as fronteiras estiveram, nesse processo,
condicionadas à obediência desse sentido, sua existência sempre esteve marcada pela
maleabilidade, seja pela experiência bi-nacional, seja pela condição de borda.
Quando à baila os assuntos políticos, a ideia de importância e grandeza do Estado
emerge. Na atualidade é lúcido raciocinar que sua autoridade reproduza autoridades
pregressas, como as das religiões, por exemplo, assim como a força militar, pois, se a primeira
buscava a onipresença, a segunda a onipotência das elites sobre seu povo e de um povo sobre
outro povo.
É mister reconhecer que o Estado é a instituição maior de uma nação. Administrativa e
historicamente, ele criou diversas outras instituições com o fim de regular as atividades
desenvolvidas na sociedade, sejam econômicas, políticas, sociais, culturais, etc. Tais
instituições possuem mecanismos de aferição daquelas atividades para confirmá-las ou coibilas. Ou, pelas palavras de Bresser-Pereira (2005):
O Estado é o instrumento de ação coletiva por excelência da sociedade. É a
forma, através da qual, a sociedade busca alcançar seus objetivos políticos
fundamentais: a ordem ou estabilidade social, a liberdade, o bem estar e a
justiça social. Estes quatro objetivos são cada um deles finais, mas a ordem
ou segurança pública é o primeiro e o principal deles. Não apenas porque
sem ela não é possível alcançar os outros três objetivos, mas também porque
é o único que está implicado na definição mínima de Estado.
O reconhecimento ao Estado é um dos suportes jurídicos fundadores da modernidade.
Não se trata aqui de vinculação às flutuações políticas que ele está sujeito, mas ao seu corpo
legal e administrativo. Tal subordinação, e as penalidades aplicadas à insubordinação, visam
garantir a ordem social mencionada. Contudo, deve-se admitir que tais prerrogativas do
Estado não são monolíticas, pois, o modo de compor a vida em cada lugar também se
constitui em uma busca pelos objetivos políticos fundamentais, e a liberdade para essa
empreita também é um objetivo. Isto denota a existência de peculiaridades que o Estado não
alcança.
Uma das características mais marcantes das fronteiras não é apenas estar ou não estar
subordinada às ordens nacionais às quais elas compõem. Isto se dá porque que ela extrapola
os sentidos de “ordens e desordens”, eis que é notável este fenômeno nas lacunas inatingidas
pelo Estado. Em síntese, as fronteiras não são apenas possuidoras de dinâmicas próprias, elas
29
são possuidoras de si próprias, mesmo que em diversas delas isso não seja assumido. Como
forma e símbolo de manter as ordens nacionais, nelas circundam e atuam diversas instituições
de Estado de cada nação que as compõem. Diante desse quadro fático, destacam-se as que têm
caráter repressor e fiscalizador. Tal zelo que as nações descarregam sobre as fronteiras é fruto
da insegurança que elas sempre inspiraram ao poder central, criando mecanismos que têm, por
essência, o enrijecimento de suas ações. O sentido policial que o Estado-Nação despeja sobre
as fronteiras repercute, principalmente, na manutenção da ideia estigmatizada de espaços
altamente sujeitos aos atos ilícitos e à violência.
O Estado busca legitimar-se de diversas formas, principalmente pela força ou pela
organização. Isto é possível através da sua máxima expansão e presença, visíveis nas
instituições que criou e operacionalizada pela sua burocracia. De fato, as instituições, segundo
suas determinadas cartas, existem num sentido de concretização e sua aceitação, que
encontram compatibilidades e são geradas no meio social (HAURIOU, 1927).
Neste sentido, entende-se que a reprodução, por parte da sociedade, de enredos
funcionais das instituições formais quando a organização social das fronteiras se estabelece
através dos fronteiriços, através das suas necessidades. A elas se estabelece valores
simbólicos e diversos significantes que delineiam seus semblantes. Ou seja, ao reproduzir o
Estado, a sociedade fortalece seus símbolos e diminui os vazios entre o discurso estatal e a
vivência fronteiriça. Assim, o Estado se estabelece e o fronteiriço evidencia sua pertinência a
ele.
Por entender que as fronteiras são palcos de contravenções, o Estado as equipa com
vigilância constante. Essa visão tem auxiliado desde sempre para a formação da ideia que se
faz das fronteiras. E se o sentido é de que ali residem contravenções, a partir desse olhar serão
projetadas as relações com a localidade fronteiriça, sobretudo nas políticas públicas.
Essas relações com a fronteira estão presentes tanto naqueles que são seus habitantes
quanto nos que não são. E estes últimos, os não-fronteiriços, abraçam muito mais a ideia de
que a fronteira é o local da ameaça à legalidade. Principalmente porque nunca
experimentaram a vida na fronteira, incorrendo assim em preconceitos.
No entanto, alguns fronteiriços também procedem diante da fronteira tendo como
referência o olhar estatal, o que acarreta restrições à vivência fronteiriça, alcançando a
negação. Desse modo, tomam a condição fronteiriça como algo negativo. Assim, a fronteira
enseja experiências diversas, ou seja, a existência de vivências fronteiriças diferenciadas.
Na fronteira Corumbá-Puerto Quijarro, o modo como os brasileiros e os bolivianos
vivem e entendem a fronteira é diferente. Esta afirmativa pode soar como obviedade, mas é
30
preciso olhar atentamente para o óbvio. É intrigante o número de estabelecimentos na cidade
de Puerto Quijarro que recorre ao símbolo das duas bandeiras nacionais entrelaçadas e
estampadas em suas paredes. Da mesma maneira é intrigante a ausência desta prática na
cidade de Corumbá. Isto pode ser indício da mencionada restrição à vivência fronteiriça, no
que resulta em distanciamentos tanto com a fronteira quanto com os bolivianos. E estas
restrições têm como base ideias preconceituosas que enxergam a fronteira e tudo que dela
emana como passível de subversão.
Aí reside a forte vocação da fronteira, subverter a lógica do poder central e criar suas
próprias representações, tendo como referência suas condições. Daí decorre a razão do olhar
atento com que o Estado continuamente designa à fronteira. Diante dessa perspectiva, de que
a fronteira é caracterizada pela subversão, que tanto foi produzida pelo Estado como ainda o é
por ele endossada, vide os aparatos fiscalizatórios e repressivos que o Estado se empenha em
se impor nas fronteiras.
Através de esse olhar, a fronteira, sobretudo a que está em questão, apresenta
experiências diversas. De um lado o Estado, que olha e vê na fronteira um local necessitado
de sua presença e ordenação, e assim impõe limites físicos. E, por outro lado, o fronteiriço,
que vivencia a fronteira de maneira contraditória. Ao mesmo tempo em que cria laços, recusaos, às vezes sem perceber que os reforça. São os paradoxos que fazem a fronteira uma
localidade especial, então, os olhares sobre ela devem considerar esta condição, para não
incorrer no risco de criar abismos em vez de aproximar.
O distanciamento entre os fronteiriços, sobretudo dos brasileiros com a fronteira e com
o que a ela está relacionado, tem um auxiliar de peso, o verdadeiro formador de opinião: a
mídia. A mídia opera diariamente emitindo o seu olhar, ou seja, sua interpretação e sentido
para os fatos, mas de modo imperativo e taxativo. Embora pregue o jornalismo imparcial e
respeitoso à diversidade, não obstante se empenha em divulgar as negatividades, e com pouca,
ou nenhuma vontade relata as cordiais aproximações existentes, expondo-as quase em
notinhas de rodapé. Infere-se que as publicações nas quais brasileiros e bolivianos se integram
harmoniosamente não chamam tanta à atenção quanto aos ligados ao tráfico e contrabando. É
inegável que as interações positivas ocorrem de maneira fluente e natural, mas não causam
nos meios de comunicação e na repercussão dos leitores os mesmos impactos que o noticiário
das contravenções.
A fronteira tem sido sede constante dos meios de comunicação, quase sempre de
maneira informativa e muito pouco analítica. Daí a resultante produção de vácuos entre o que
se noticia e o que se vivencia nas experiências da fronteira. Assim, a mídia tem
31
desempenhado um papel negativo, uma vez que sua preocupação tem sido construir no
imaginário social a ideia de que a fronteira é o espaço da criminalidade, ilegalidade,
irregularidades,
etc.
Para
Pereira
(2008,
p.133),
são
“imagens
enviesadas
que
costumeiramente veem a fronteira associada ao contrabando e ao narcotráfico”. Até mesmo o
chefe do executivo da cidade de Corumbá, na primeira reunião do Comitê de Integração
Fronteiriça Brasil-Bolívia, realizado no dia 28 de setembro de 2011, disse: "não queremos ser
conhecidos como corredor de tráfico e vizinhos de uma região que só traz problemas. Aqui e
na Bolívia tem gente de bem que quer construir".
Estas mensagens transmitidas pela mídia estão fundamentadas no pensamento estatal
de fronteira, que trabalha enquanto reprodutora de ideias, de modo a reforçar as negatividades
existentes nas regiões fronteiriças. Isto ocorre mais frequentemente nas mídias externas às
regiões de fronteira, mas é percebido também na mídia fronteiriça, com menor frequência, eis
que a proximidade amistosa entre os fronteiriços de ambas as nacionalidades propalam entre
si o que foi enunciado.
Neste cenário, a propalado está focado nos assuntos ligados à negatividade de tudo que
emerge da vida fronteiriça, ou seja, o contrabando, o descaminho, o furto/roubo de carros,
atravessadores, o tráfico de drogas e pessoas, entre outros.
Na fronteira em questão, existe uma movimentação que gera diversas reações, até
mesmo devido seus desdobramentos para região e para outras localidades que têm suas
atividades ligadas à fronteira. Este movimento é o fechamento da fronteira, também
denominado de Paro Cívico. Em relação ao Paro Cívico, COSTA (2011) explica que “a
principal manifestação pública e política de reivindicação de demandas fronteiriças, que
ocorre de forma organizada, entre Puerto Quijarro e Corumbá é o “fechamento” da fronteira,
ou “paros cívicos”.
As reações que os fechamentos da fronteira geram não se restringem a ordem
econômica, mas alcançam outras esferas, pois, suas reivindicações demandam ações políticas,
estas reverberam em todo tecido social, em menor ou maior escala. São exigências em torno
cotas de mercadorias, impostos, salários de professores, transporte, bem como tantas outras.
Por essas razões, os meios de comunicação, apoiados na visão estatal de vigilância
constante, e porque as fronteiras estão mais suscetíveis às contravenções e ao afastamento dos
rigores da lei, acharam por bem adotar e disseminar uma visão irreal ou exagerada, ou pelo
menos parcial e distorcida, sobre as fronteiras, o que tem interferido no modo como os
fronteiriços vivenciam as fronteiras.
32
Ressaltar o que é falível e negativo tem produzido um distanciamento na vida da
fronteira. Até mesmo porque essas informações estão incompletas e não são profundamente
acompanhadas, importando mais em impacto de transmissão da notícia, do que a notícia em
si.
Estas ideias ganham alcance nacional e até mesmo internacional, o que amplifica os
distanciamentos que se dão, à primeira vista, de duas maneiras: o do centro do poder e seus
pontos de irradiação para com a fronteira; e do próprio fronteiriço, sobretudo o brasileiro, que
prefere a inexistência da fronteira.
Diante desta falácia, a opinião mais genérica que se tem sobre as regiões de fronteira é
de que ali ocorrem diversas ilegalidades, a ideia de “terra de ninguém”, local das
permissividades, o que tem gerado interpretações entre as pessoas e, principalmente, no poder
público, que estão ligadas às implementações de políticas públicas.
A intenção é criar políticas para as fronteiras. Porém, estas políticas focam apenas nas
negatividades e têm por finalidade o seu combate. É fática a questão dos problemas
fronteiriços, mas eles não exprimem o todo da vivência fronteiriça. Incorre-se com tais
implantações políticas, o grande risco de alargar as distâncias para com a fronteira, bem como
com os povos vizinhos.
Exemplo deste tipo de visão de fronteira que culminou em política para fronteira é o
Gabinete de Gestão Integrada de Fronteira (GGI-F), implantado na cidade de Corumbá, no
mês de abril de 2011, com o objetivo de combater o crime organizado nas regiões de
fronteira, contando com a integração das forças de seguranças das esferas municipal, estadual
e federal, bem como uma ação conjunta com o governo boliviano.
A ideia de uma ação integradora entre os países deve ser visto como um passo para
aproximações amistosas, pois, entendem que dividem problemas comuns que afetam a ambos,
no entanto, no caso do Gabinete de Gestão Integrada, seu único foco é combater
articuladamente o crime organizado transnacional, nem ao menos foi considerada a hipótese
de uma gestão integrada para políticas culturais na região de fronteira.
Outro exemplo de política para fronteiras, que tem como foco somente suas
ilegalidades é a operação que ganhou o nome de “Fronteira Legal”. Nesta operação, que conta
com os postos da Receita Federal das cidades de Campo Grande, Ponta Porã e Corumbá, já
apreenderam mais um milhão de reais em mercadorias irregulares e ilegais, entre drogas,
munições, cigarros e veículos.
Sob este vértice, não há dificuldades para que se olhe e veja a fronteira como
localidade estritamente caracterizada pelas ilegalidades que ali se desdobram. Porém há
33
objeções em considerar que ali existam trocas culturais históricas, variadas aproximações
amistosas nas feiras, nos campos de futebol, nas escolas, nos cultos religiosos, e tantas outras
que poderiam ser mais visíveis se não houvesse tanto empenho por parte do Estado em
sublinhar as negatividades que existem na fronteira, que muitas nem são de sua exclusividade,
mas sua condição de borda, de contato imediato com outro modo de vida, com outro projeto
político e outro arcabouço histórico-social impõem ao Estado necessidade de marcos físicos,
na tentativa de estabelecer e reforçar a unidade e a integridade nacional.
O que se pretende aqui não é tratar as contravenções e os ilícitos da fronteira como
algo inexistente, ou criação dos meios de comunicação, no entanto, a tentativa é de expor
como estas práticas não explicam o todo da vivência fronteiriça, não são suficientes para
interpretá-la, pois, não inclui esta visão a grande parte da população fronteiriça.
Reitera-se que não se está desconsiderado o grande volume de drogas que circulam
nesta fronteira, pois, ela de fato é uma porta de entrada para o narcotráfico e tantos outros
crimes, como, por exemplo, o tráfico de pessoas. Porém, o número de fronteiriços envolvidos
nestes crimes é muito pequeno e muitas das vezes a prática de algumas atividades que o
Estado entende como ilícita, configuram alternativas de sobrevivência.
Para exemplificar e dar continuidade às ideias apresentadas, citem-se os enunciados
jornalísticos referentes às movimentações na fronteira. Dentre eles, mídias locais, notícias do
ano de 2011 com foco na intenção de elucidar como o discurso estatal atinge até mesmo quem
vivencia a fronteira. A reação de como absorvem a ideia de que a fronteira é um local que
precisa de um olhar atento e de que forma edificam suas atuações. E as consequências que
esse mecanismo causa, em especial implicando em distanciamentos entre os viventes desta
fronteira.
Ao apresentar enunciados jornalísticos e trechos das reportagens, a intenção é expor o
caráter e as práticas das instituições que atuam na fronteira em questão, bem como dar voz aos
agentes destas operações e analisar a relação existente entre os discursos midiático e estatal
para com a fronteira.
No dia 09 de setembro, na página inicial do site do jornal Correio de Corumbá o título
da notícia era: DOF aponta crescimento de 1623% em apreensão de cocaína. No corpo do
noticiário consta a fala do comandante do Departamento de Operações Fronteiriças, onde
relata que o número de apreensões demonstra o bom trabalho da instituição.
No mesmo site, mas no dia 15 de julho, o título da notícia era: Durante três dias blitz é
realizada na Ramão Gomez para combater crimes fronteiriços. Ramão Gomez é a rodovia
que liga as cidades de Corumbá e Puerto Quijarro, rotineiramente escolhida para blitz e
34
revista, inclusive a que trata a reportagem. Esta, em especial, uma operação conjunta entre a
Prefeitura de Corumbá e a Polícia Rodoviária Federal. Como o próprio título anuncia, o
objetivo da ação era o combate aos “crimes fronteiriços”.
Ainda neste site, outro título de reportagem chamou a atenção, datado do dia 18 de
agosto: Bolívia promete reforçar segurança na área de fronteira com Mato Grosso do Sul. De
acordo com a reportagem, a Bolívia anunciara o reforço das áreas de fronteira com o Brasil, o
Plano Nacional de Defesa. Nas palavras da ministra da Defesa Maria Cecília Chacón, "o que
estamos fazendo agora é uma patrulha ao longo do Rio Paraguai. Estamos visitando vários
postos militares nessa área, com o objetivo de intensificar as patrulhas nos rios, permitindo
maior presença das forças do Estado". Tal medida, de acordo com diretor da Agência para o
Desenvolvimento das Macrorregiões Fronteiriças da Bolívia, Ramon Quintana, objetiva dar
atenção às famílias que vivem ao longo dos 300 quilômetros de fronteira.
Em outro site da cidade de Corumbá, denominado Diarionline, o título da reportagem
do dia 24 de agosto ilustrou a manchete: Integração pode combater roubos e furtos de carros
enviados à Bolívia. A matéria tratou da Audiência Pública da Comissão de Segurança Pública
e Combate ao Crime Organizado. Em pauta a decisão do governo boliviano em legalizar os
veículos sem documentos. A ideia era buscar uma integração entre os países no sentido de
evitar o contrabando de carros, que de acordo com os parlamentares brasileiros, a Bolívia teria
mais de 128 mil veículos irregulares, em sua maioria de procedência do Brasil e Argentina.
Como saída para esta problemática, o delegado de Polícia Federal Luiz Flávio Zampronha
defende a integração das forças policias no combate aos carros furtados/roubados e enviados à
Bolívia que, de acordo com procurador da República Raphael Parissé, estes carros alimentam
o tráfico internacional. No corpo da reportagem também consta a fala do embaixador
boliviano Jose Alberto Gonzales Samaniego, em cuja opinião a Bolívia estaria sendo
estigmatizada, e disse: "não quero dizer que não exista roubo de carro no Brasil para envio à
Bolívia. Contudo, a Bolívia não incentiva isso". E continua: "há sim casos como esses, mas
isso não é a regra. A Bolívia está sendo estigmatizada como o país da droga e do delito, mas
isso não é verdade".
No mesmo site, no dia 25 de julho, o título da reportagem era: Dilma: extensão e
diversidade desafiam segurança na fronteira. A reportagem trata do Plano Estratégico de
Fronteiras, que tem por objetivo a repressão à entrada de drogas e armas no território
brasileiro, e de acordo com a presidente Dilma Rousseff “o tamanho do Brasil e a diversidade
da nossa geografia são os grandes desafios para a segurança na fronteira brasileira. São quase
dezessete mil quilômetros de extensão. E, para cada região, precisamos ter estratégias
35
diferentes". Sobre estas estratégias ela diz: "é impossível imaginar que quase dezessete mil
quilômetros de fronteira possam ser monitorados só com policiais e soldados. É preciso usar
informações e ter equipamentos que permitam planejar as ações".
Com o objetivo de reforçar a fiscalização e combate aos crimes fronteiriços, foi
instituído em junho de 2011, o Plano Estratégico de Fronteiras, com operações permanentes
(Sentinela) e de curta duração (Ágata). Trata-se de mais uma política para as fronteiras que
considera apenas parte de suas atividades, as relacionadas às contravenções.
Pelo que se verifica nos exemplos citados, existe um grande empenho por parte do
Estado em firmar sua presença, seja através da repressão, apontando números gigantescos de
apreensões de drogas, seja pelo controle do acesso ao seu território, na tentativa de combater
os rebatizados “crimes fronteiriços”.
Interessante os esforços verificados pelos Estados em se fazer presente na faixa
fronteiriça, no entanto, os Estados, tanto brasileiro quanto boliviano pautam suas presenças
nas fronteiras pelo viés fiscalizador, e assim equipam suas instituições, que na maioria das
vezes, pelo caráter de suas atuações, ampliam os distanciamentos já existentes entre os povos
fronteiriços. Dessa forma desconsideram que existam aproximações amistosas que não têm
como referência as práticas ilícitas comumente relacionadas à população das fronteiras.
2.2. A fronteira construindo a si própria
O modo como o Estado organizou suas políticas nas regiões de fronteira, interferiu nas
relações entre os habitantes das fronteiras e seus vizinhos. No entanto, mesmo com todo
esforço em criar limites físicos, intencionando que estes criassem barreiras nas fronteiras e em
suas movimentações, a vida na fronteira fluiu de um lado ao outro, muitas das vezes
desconsiderando ou subvertendo a lógica do poder central, construindo suas vivências a partir
das suas necessidades e possibilidades.
A vida na fronteira é permeada de contradições, visto que ela faz parte de um projeto
assentado na ideia de Estado, no qual o território inalienável é uma condição. Assim, a
fronteira ganha um significado estratégico, de instrumento para integridade física do território,
bem como das suas leis, sua jurisdição. Mas é justamente nas fronteiras que se apresentam as
mais notáveis manifestações de interações positivas entre os povos. Para dar força a esta
hipótese, Muller (2008, p.16): “em regiões como a fronteira, a vida passa a ser redesenhada de
modo a satisfazer as exigências do momento e do local”.
36
Através das práticas cotidianas os fronteiriços constroem suas vivências e seus
respectivos significados, geralmente referenciados na própria vida fronteiriça e não no
conceito de Estado homogêneo.
Até mesmo as situações conflituosas estão ligadas, na maioria das vezes, às questões
locais e não ao sentido restritivo institucional. Essa situação pode ser exemplificada no
conflito entre taxistas na fronteira de Corumbá com Puerto Quijarro. O que está em jogo ali é
a sobrevivência, devido a uma clientela já reduzida, resultado da atividade moto-taxista, com
preços muito mais acessíveis à maioria da população. Não está em jogo, mas acaba sendo
utilizado como instrumento, o que é legal ou ilegal, pois, durante muito tempo existiu nesta
região fortes relações entre taxistas dos dois lados. Nos dias de hoje os taxistas brasileiros
utilizam um “fiscal”, devidamente aparamentado de um porrete, que vigia os carros
bolivianos, no sentido de evitar que esses façam transporte ilegal de pessoas.
O que se percebe experimentando e analisando a vida na fronteira é que os marcos
físicos dos instrumentos institucionais, principalmente, os de atuação regulatória e
fiscalizadora, como Polícia e Receita Federal, cumprem seu papel, ou seja, representam a
presença do Estado e suas práticas políticas. No entanto, eles são constantemente derrubados,
não com a mesma força que são erguidos, pois, esta prática não é arbitrária. Mais uma vez a
questão é socorrida por Muller (2008, p.17), que ao abordar aos aspectos culturais da
fronteira, diz que “os limites aqui tratados, estão presentes muito no imaginário do que nas
práticas cotidianas”.
Dessa maneira, se o uso define a excelência do território (SANTOS apud OLIVEIRA,
2009), o modo como os fronteiriços vivenciam a fronteira, diz muito do que eles pensam
sobre o lugar de onde vivem. E nesse sentido, podemos dizer que as políticas para as
fronteiras que desconsideram o modo como os fronteiriços definem seu território, incorre em
equívocos e promovem distanciamentos. Ou seja, é preciso considerar as especificidades do
lugar, principalmente das fronteiras, localidades tão exclusivas em suas manifestações.
No sentido de colaborar com esta hipótese, que demanda das políticas de fronteiras
que conheçam as localidades para as quais estão legislando, no sentido justo, que entendam
ao menos que as regiões fronteiriças têm por característica suas especificidades, assim, não se
pode cogitar políticas gerais, conforme o olhar que expõe o autor abaixo:
A fronteira não é somente o limite ou a linha divisória internacional. Nos
dias atuais, a fronteira enquanto categoria político-administrativa que
delimita a soberania entre os Estados nacionais, está sendo ressemantizada,
deixando de ser apenas como limite formal para se tornar zona de contacto,
de intenso intercâmbio, de circulação de pessoas, demandando investigações
37
que elucidem aspectos educacionais, lingüísticos e sociais dessas áreas que
ainda se encontram obscuros” PEREIRA, 2008,p.131)
Nesse emaranhado de interesses, por um lado o Estado com vistas à integridade, tanto
do território como do respeito às suas leis e símbolos; doutro lado o fronteiriço, mais difuso
ainda, pois, num sentido reproduz largamente o discurso estatal, endossando sua soberania e,
num outro sentido subvertendo e desconsiderando a voz do Estado, construindo a vivência
fronteiriça a partir dos seus interesses; em meio a estes tanto outros interesses, principalmente,
econômicos, sobretudo externos aos Estados e às fronteiras.
É preciso um esforço para entender os símbolos da fronteira a partir das fronteiras
territoriais e políticas. Como explicita Grimson:
se trata de ir a las fronteras estatales con una perspectiva abierta que permita
detectar y comprender no solo la multiplicidad y mixtura de identidades,
sino también sus distinciones y conflictos. Disputas culturales en los
confines del poder.” (GRIMSON, 2000, p.1) (grifo do autor)
Assim, pode-se afirmar que existe uma distância entre o que o Estado pretende com
suas políticas e aquilo que se alcança nas fronteiras. Isto não significa que as políticas de
Estado não surtem os efeitos desejados, já que efetivamente estão presentes e regulam
sobremaneira a vida na fronteira. No entanto, os aparatos que o Estado criou não foram
suficientes para serem plenamente eficientes, do ponto de vista do controle, nem de
mercadorias, nem de pessoas, muito menos das relações interpessoais ali construídas.
Tais aparatos poderiam provocar os limites para os quais foram criados, mas eles não
foram suficientes para conter a geração de laços fortes o bastante para resistir, se impor e
transpor barreiras. E isto é ilegalidade? Não. É a condição fronteiriça exercendo a vida.
Como exposto anteriormente, parafraseando Bresser-Pereira, é pelo Estado que a
sociedade busca a ordem, a liberdade e a justiça social. No entanto, quando se trata da
fronteira, o Estado tem privilegiado o estabelecimento da ordem, por meio de instituições de
caráter fiscalizador e repressivo, que não objetivam a liberdade e a justiça social, mas tão
somente a ordem.
38
CAPÍTULO III
A FRONTEIRA E SUAS VIVÊNCIAS A PARTIR DE COMENTÁRIOS DE
LEITORES DE UM SITE DE NOTÍCIAS.7
Este capítulo versa sobre aproximações e distanciamentos nas interações sociais entre
os fronteiriços da região de Corumbá-MS e Puerto Quijarro-Bolívia. Tem por objetivo
analisar estas interações a partir de comentários de leitores de um site de notícias da cidade
brasileira, diretamente na sessão Fronteira.
Analisando os discursos verifica-se o impacto das relações produzidas entre
brasileiros e bolivianos, uns com os outros e com a fronteira em questão. No site são
transferidos e reproduzidos aqueles comentários, nos quais uns tendem ao preconceito, outros
à solidariedade.
Serão aqui tratados os aspectos pertinentes à fronteira e sua vivência, principalmente,
as manifestações de preconceito e solidariedade para com os bolivianos que vivem nesta
região. As manifestações preconceituosas tendem a ocorrer quando a fronteira é o tema, e os
comentários solidários quando as situações envolvendo os bolivianos fazem alusão às
festividades religiosas e culturais.
A vinculação do preconceito contra os bolivianos e a fronteira tem a ver com um
discurso comum: o discurso midiático. Este, geralmente, apresenta a fronteira (e tudo que dela
emana), como local do ilícito, da contravenção, das drogas, da permissividade e de outros
termos pejorativos que depreciam a região fronteiriça. Este tipo de discurso sobre a fronteira,
na maioria das vezes, é emitido por quem não vivencia a fronteira. Além disso, os brasileiros
desta fronteira não se sentem fronteiriços, e recorrem ao conjunto simbólico nacional ao se
oporem ao conjunto (aviltante) fronteiriço, sem se dar conta que carregam consigo a marca da
fronteira.
Outro fator que alarga as restrições dos fronteiriços brasileiros desta região com a
fronteira está no âmbito das relações internacionais. As relações entre países têm por
característica a desigualdade (SAYAD, 1998), com preponderâncias por alguma das partes
envolvidas, pois no âmbito da América do Sul o Brasil se apresenta como grande potência.
Dessa maneira, não é apenas por ser fronteira, mas por ser fronteira com a Bolívia, por isso,
tendem a se distanciarem da ideia de convivência. É o jogo diplomático das relações desiguais
7
O texto que compõe este capítulo foi extraído do artigo com o mesmo título, apresentado no Seminário de
Estudos Fronteiriços de 2011.
39
entre as nações influenciando as relações interpessoais. Dessa forma, a relação fronteiriça
projeta no boliviano o “outro” indesejado, gerando estereótipos que contribuem para manter
os distanciamentos (CÁRDENAS, 2006). De acordo com Alves (apud PEREIRA, 2008), há
uma tendência de omitir as semelhanças existentes entre os povos latino-americanos, isto a
partir de mecanismos ideológicos que enxergam na união uma ameaça à dominação guiada
pelo capital, motivando ações desagregadoras nas relações supranacionais, alcançando as
relações interpessoais.
No mesmo sentido, o centro do poder nacional ergue suas políticas em regiões
fronteiriças mirando as depreciações que delas emanam. É preciso reiterar que as atividades
depreciativas da fronteira existem, mas não são suficientes para dizer o todo da fronteira.
Dessa maneira, o que se vê são as fronteiras abarrotadas de órgãos de fiscalização e repressão,
sublinhando os aspectos que a desvaloriza, criando barreiras para relações amistosas. Mesmo
assim, elas existem e persistem, porque a fronteira também possui a característica de recriar
conceitos em conformidade às suas necessidades. Talvez se deva a isso o olhar atento do
poder central. Assim, a fronteira e o fronteiriço, sobretudo o boliviano e suas atividades,
foram recebendo nomes depreciativos, que ganham eco nos discursos que partem de diversos
atores sociais.
Este pequeno painel tem por proposição expor como a fronteira ganhou contornos
negativos, suficientes para que uma parcela de seus habitantes a reneguem, e outra deseje a
inexistência da convivência. Entretanto, mesmo diante dessas circunstâncias, são engendradas
aproximações amistosas, como nos laços matrimoniais, nos eventos esportivos, religiosos e,
por exemplo, na rede escolar, principalmente pública8. Outras atitudes de caráter
aproximativo partiram de ações do poder público local, como uma cartilha contendo medidas
preventivas contra a dengue e um Plano de Ação para Redução de Acidentes (PARA), ambos
em língua espanhola e amplamente distribuídos em locais públicos da cidade brasileira.
O preconceito apoia-se no senso comum e na reprodução de discursos infundados e
insustentáveis. O comom sense é aquilo de conhecimento de todos, no entanto, o discurso é a
simples reprodução de ideias, e na reprodução, geralmente, não se recorre a ideias
minimamente sustentáveis. Ou como nos apresenta Pereira (2002): “a noção de preconceito se
refere a uma atitude injusta e negativa em relação a um grupo ou a uma pessoa que se supõe
8
A Prefeitura Municipal de Corumbá, através Da Secretaria Municipal de Educação (SEMED), divulgou que
548 estudantes bolivianos estudam na Rede Municipal de Ensino (REME). De acordo com o descrito em
reportagem para o site www.midiamax.com.br, no dia 05/07/2011, o levantamento visa gerar políticas a fim de
garantir que estes alunos aprendam tanto quanto os demais. De acordo com a mesma reportagem, o Secretário de
Educação da Corumbá disse: "solicitamos as informações referentes aos estudantes brasileiros que frequentam as
escolas de Puerto Quijarro”.
40
ser membro do grupo.” De acordo com Foucault (1979), “os discursos adquirem eficácia e
poder, têm o poder de reificar, criando hierarquias sociais.” Para Cárdenas (2006): “los
sujetos pueden mantener sus prejuicios y realizar acciones discriminatorias sin siquiera ser
conscientes de ello, respondiendo de forma automática o inconsciente en relación a los
sujetos del exogrupo.”
Mesmo sem haver um esforço intelectual, no sentido de formar um pensamento
alicerçado e fundamentado, existe outro tipo de esforço, o de direcionar os discursos. É neste
sentido, de captar e analisar esse direcionamento, que este capítulo se desenrola.
Pelo mesmo caminho, tentar expor o sentido solidário das relações entre brasileiros e
bolivianos na fronteira em questão, no qual a solidariedade é apenas mais um elemento no
multifacetado quadro das relações fronteiriças, cujas aproximações amistosas entre os
habitantes desta região fronteiriça não deve recorrer às ideias infundadas para estabelecer
relações com o outro.
Como se trata de uma ação de captar discursos, é mister enveredar-se pela via que os
analisa, pois a crença é que eles estão recheados de intenções, na qual as palavras são parte de
uma ação. Os discursos referidos, e que serão parte deste campo de análise, são comentários
de leitores de um site de notícias da cidade de Corumbá/MS, que possuiu uma coluna
destinada às notícias relativas à fronteira, em especial à fronteira local. Isto porque são
verificáveis os diversos aspectos das relações ali geradas, de modo que as notícias também
constituem um olhar, uma interpretação do real, com capacidade para construir uma realidade.
Os comentários utilizados seguem um critério seletivo, privilegiando os que constam
nas matérias do último “Paro Cívico”, que aconteceu entre os dias 16 e 19 de maio de 2011.
Tal manifestação fechou a passagem da fronteira entre Corumbá/MS com Puerto
Quijarro/BO, de tal forma que o assunto tem ensejou reações na população local, em
diferentes ordens. Em relação ao “Paro Cívico”, apresentamos Costa (2011): “a principal
manifestação pública e política de reivindicação de demandas fronteiriças, que ocorre de
forma organizada, entre Puerto Quijarro e Corumbá é o “fechamento” da fronteira, ou “paros
cívicos”.
Para compor a presente metodologia, além dos elementos citados, também será
utilizado o consagrado método da antropologia social, o etnográfico, que envolve a
observação-participante. Neste método, de caráter subjetivo, a vivência do pesquisador é
muito relevante, sobretudo para entender as dinâmicas sociais de estigmatização. Dessa
maneira, não serão desconsideradas as falas ouvidas e as percepções sentidas por este
mestrando nos locais de trabalho, no bairro de moradia, nas feiras livres, na vizinhança, nas
41
experiências do dia-a-dia; todos estes locais que contam grande circulação de bolivianos cujas
atividades estão ligadas à fronteira; são percepções tanto da Bolívia quanto dos bolivianos.
Além disso, utilizaremos a análise de discurso, tal como proposta por Foucault,
sobretudo para analisar as narrativas do "senso comum", entendendo-o como um fenômeno
coletivo, manifestado nos comentários dos leitores e das reportagens do site de notícia. Num
esforço para entender os símbolos da fronteira a partir das fronteiras territoriais e políticas.
Aspectos teóricos da História Oral, chamada híbrida, se apresentam adequados,
porque fazem uso de fontes orais, documentais, bibliográficas e outras (COSTA, 2000). Um
aspecto valioso da História Oral para este trabalho é a ideia de que não existem fatos, e sim
versões (COSTA, 2000). De maneira a divulgar ideias daqueles que não o fariam formalmente
(escrita ou oralmente), principalmente se não houvesse o instrumental do anonimato, além de
tratar das subjetividades implícitas nos discursos, podendo ser utilizado como documento
histórico, pois se apresentam num contexto e como construção social. Os discursos não
apenas como “conjunto de signos, mas como práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam” (FOUCAULT, 1986, p.56). Assim, como produções históricas que têm
suas raízes em relações de poder e estão para além das palavras.
Dessa maneira, o nosso olhar será lançado sobre os discursos relativos à fronteira e aos
bolivianos, sua construção e efeitos, que implicam na convivência fronteiriça e que são
manifestadas, geralmente, sob forma de preconceito, mas que também produz aproximações
solidárias. E o que é interessante: ao mesmo tempo. Às vezes, os mesmos atores que
produzem manifestações preconceituosas, paradoxalmente se aproximam de maneira
solidária.
As manifestações serão postas da maneira como se apresentam: discretas e anônimas.
O que propomos é uma análise de determinadas “falas” e como elas ecoam, muitas vezes, sem
encontrar reflexos na realidade, mas de alguma forma refletindo a “realidade” do preconceito.
A fronteira recebeu e ainda recebe, constantemente, um espaço considerável nos meios
de comunicação, quase sempre de maneira informativa e muito pouco analítica, o que vem
produzindo vácuos entre o que se noticia e o que se vivencia na região fronteiriça. Assim, a
mídia tem desempenhado um papel negativo, uma vez que sua preocupação tem sido construir
no imaginário social a ideia de que a fronteira é o espaço da criminalidade, ilegalidade, etc. O
que se vê é a vinculação da fronteira e, consequentemente, de quem vive nela, aos seus
aspectos negativos. Além de muitas dessas ideias serem incompletas e falíveis, produzem um
distanciamento nas vivências que ali se estabelecem. E é preciso sublinhar: as vivências ali se
estabelecem, ou seja, criam-se a si próprias, independentes do que pretende o midiático e o
42
dogma da soberania (unidade). E estas experiências solidárias da vivência fronteiriça pouco
são noticiadas, principalmente, por veículos de comunicação externos a ela.
Ainda sobre os distanciamentos, eles se dão, à primeira vista, de duas maneiras: o do
centro do poder e seus pontos de irradiação para com a fronteira; e do próprio fronteiriço,
sobretudo o brasileiro, que prefere a inexistência da fronteira. Mas estes distanciamentos têm
raízes históricas e remetem a contrastes entre as cidades brasileiras e bolivianas, ligadas à
urbanidade e economia, o que levou os brasileiros a culpar a fronteira por diversos problemas,
como bocas de fumo, sujeiras na cidade, rotas de fugas, entre outros (OLIVEIRA, 2009,
p.39). Esta associação, de ideias restritivas com a fronteira e com o boliviano, ensejou
distanciamentos pautados em ideias preconceituosas. Essa perspectiva, de que a fronteira é
caracterizada pela subversão, que tanto foi produzida pelo Estado, e como ainda o é por ele
endossada, vide os aparatos fiscalizatórios e repressivos que o Estado se empenha em decorar
as fronteiras.
Tais aparatos poderiam provocar limites, para os quais foram criados, mas eles não
foram suficientes para conter a geração de laços fortes o bastante para resistir, se impor e
transpor barreiras. E isto é ilegalidade? Não. É a condição fronteiriça exercendo a vida.
Através dessa ótica, a fronteira, sobretudo a que está em questão, apresenta
experiências diversas. De um lado o Estado, que olha e vê na fronteira um local necessitado
de sua presença e ordenação, e assim impõe limites físicos. E, por outro lado, o fronteiriço,
que vivencia a fronteira de maneira contraditória. Ao mesmo tempo em que cria laços, recusaos, às vezes sem perceber que os reforça. São os paradoxos que fazem a fronteira uma
localidade especial, então, os olhares sobre ela devem considerar esta condição, para não
incorrer no risco de criar abismos em vez de aproximar. Para fortalecer esta ideia: “o
cotidiano no espaço fronteiriço, tem em si imenso potencial de integração e, da mesma forma,
de conflito, capaz de incidir decisivamente nas relações bilaterias e na integração maior”
(SCHAFFER apud SOARES, 2008, p.40). Corroborando com esta ideia: “Sin embargo, la
periferia puede tener una ignorada centralidad” (GRIMSON, 2000, p.1).
Desse modo, os discursos a seguir apresentados, e de alguma forma analisados, são
recortes de interpretações acerca da fronteira e dos bolivianos, alguns inclinados às
aproximações amistosas, outros aos distanciamentos preconceituosos. Seja como for, a
presença marcante nas relações sociais produzidas nesta região estão sempre bem registradas,
de uma forma que o preconceito e a solidariedade permeiam a vivência fronteiriça. De acordo
com Grimson (2003), a nacionalidade para os moradores fronteiriços constitui uma categoria
43
central em sua vida diária, que organiza o espaço cotidiano, determina acesso a direitos ou
define o “estrangeiro”, e é condição para tornar-se pessoa na vida local.
Tomar os comentários dos leitores de um site de notícias como documento é afirmar
seu caráter histórico-social, pois estão carregados de significados, devido às respostas que dão
a determinados estímulos, à intensidade e o modo como desenvolvem tal atividade. Sobretudo
pelo contexto um site de notícias de uma região fronteiriça, numa seção sobre fronteira.
Assim, o que dizem sobre a fronteira expressa o que pensam do lugar onde vivem,
significando mais que palavras e refletindo as relações ali produzidas demonstrando que
determinados assuntos relacionados à fronteira afloram muito mais movimentos do que
indiferenças. O que não ocorre com outros segmentos ali postados.
Um fator expressivo é o fato de se fazê-los se valendo do anonimato, o que acentua o
valor simbólico dos discursos. Outro fator contundente, relacionado ao anonimato, é que os
leitores não compõem um personagem para representar, ou seja, para dizer algo que não
pertence a eles, mas justamente o contrário, dizem o que realmente pensam sobre os
bolivianos e a fronteira. De modo a emitir opiniões que não correspondem com a realidade,
dessa forma, infundados e preconceituosos. O que nos dizeres de Cárdenas (2006) são formas
modernas de preconceito, socialmente aceitáveis e que não aludem a causas racistas. Ou
ainda, preconceito sutil (Pettigrew e Meertens, apud Cárdenas 2006).
Ao fazer seus comentários sob o anonimato, sobretudo os que tendem ao preconceito,
revela-se o traço interessante da existência de vínculos solidários suficientemente fortes, que
não permitiriam manifestações escancaradas do preconceito, principalmente com os
bolivianos. Isto porque estas manifestações, de preconceito e solidariedade, são muitas vezes
desenvolvidas ao mesmo tempo. Ao passo que a pessoa que atira adjetivos negativos à
fronteira e à Bolívia, rotineiramente para lá se dirige para compras. Ao mesmo tempo em que
se distancia dos bolivianos ou nega os laços existentes, os reforça, por exemplo, com o
matrimônio. Ou nos dizeres de Oliveira (2009, p.40): “as pessoas, ao comprar ou vender, se
conhecem, convivem, se desprezam, se apaixonam, se casam, se separam, etc.”.
Após tais considerações teórico-metodológicas, dá-se início ao foco deste capítulo: os
discursos contidos em comentários de notícias acerca da fronteira e dos bolivianos que vivem
nesta região.
No dia 16 de maio de 2011, o título da reportagem da seção Fronteira era “Por cota de
mercadorias, bolivianos voltam a fechar a fronteira”. A mobilização reivindicava uma
revisão à normativa brasileira RFB nº1.059/2010, da Portaria MF 440. A referida normativa
“dispõe sobre os procedimentos de controle aduaneiro e o tratamento tributário aplicável aos
44
bens de viajantes”9 o qual estipula a quantidade de mercadorias estrangeiras que entram no
Brasil.
De acordo com Marco Aranibar, presidente da Organização 12 de Outubro10 e um dos
dirigentes da paralisação, "o problema começou quando a Receita Federal do Brasil baixou a
cota de roupas, que era de cinco peças para apenas três e aumentou em álcool e cigarros. Isso
é um grande problema, pois a Bolívia é uma grande produtora de roupas e o que podemos
trazer da Bolívia é um percentual muito baixo para nós. Não há justificativa para essa
redução, e essa é a nossa reivindicação”. Marcos Aranibar argumenta que a paralisação não é
apenas pela cota de mercadorias, mas também por questões sociais, alegando maus tratos
devido à associação de sua origem às drogas e ao contrabando, sublinha querer igualdade
entre os povos e igualdade de direitos. Na mesma reportagem, Thayssa Schiefler da Costa,
chefe substituta da Receita Federal, explica que a questão das cotas não depende da Receita
Federal de Corumbá, e sim da Coordenação-Geral dos Sistema Aduaneiro (COANA), situada
em Brasília.
Vejamos alguns comentários relativos à reportagem citada11:
Um leitor de cognome Simpson diz: (...) “Fechem bem fechado e joguem a chave
fora”.
Logo em seguida o leitor A.G diz: “Concordo com você e acho que a grande maioria
também”!
Mais adiante o leitor Sarandi reforça: “caro Simpson você foi brilhante em sua
opinião, concordo com você”.
Mas, em seguida o leitor Transporte Dinâmico Express diz: “Trabalhamos há mais de
20 anos Brasil-Bolívia, e enquanto os corumbaenses ficam preocupados com problemas que
só o Itamarati pode resolver, a região Sul e Sudeste vende milhões para o país vizinho”.
O leitor Claudinei Gonçalves diz: “os bolivianos têm todo direito de requerer aquilo
que julgam necessário, devemos, nós, brasileiros, aprendermos com eles e requerer nossos
direitos também”.
Estes são apenas alguns dos 22 comentários que esta reportagem recebeu. Nenhuma
outra coluna com nenhuma outra notícia recebeu tanto retorno dos leitores, o que indica a
importância da fronteira na vida desta região, por mais que seja negada ou negativada. Estes e
9
Informações retiradas do site http://www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/ins/2010/in10592010.htm
Uma das instituições cívicas bolivianas envolvidas no fechamento da fronteira naquela ocasião.
11
Lembrando que os leitores do site ficam desobrigados de apresentar seu verdadeiro nome. Assim, tanto aqui
quanto no próprio site, são cognomes que estão sendo divulgados. Todos os comentários inseridos então
disponíveis em www.diarionline.com.br
10
45
outros comentários, os que tendem ao distanciamento, fazem forçosas associações tanto da
fronteira como dos bolivianos com aspectos pejorativos. Os que tendem a aproximação veem
na paralisação um instrumento legítimo de luta por direitos e, geralmente, apreciam a atitude,
enfatizando que esta atitude de luta por direito nos falta. Ao escrever “Fechem e joguem a
chave fora”, o leitor, possivelmente, recorre ao discurso do poder central, contido até mesmo
nos nomes com qual batiza suas operações nas fronteiras: Operação Cadeado. Coincidência
ou não, os EUA assim também o fazem: Operation Blockad (VILA, 2000,p.167). Dessa
maneira, a ideia de integração dos povos fica deveras complicada, mesmo assim ocorre, mas
por outras vias, que não invoca a estatal.
No dia 18 de maio de 2011, o título da notícia foi “Autoridades do Brasil e da Bolívia
tentam pôr fim ao Paro Cívico”. No dia anterior ocorreu uma reunião entre o Consulado
Boliviano e os representantes da Receita Federal, a fim de uma revisão da normativa das cotas
de mercadorias. No interior da reportagem, algumas falas chamam atenção. A do cônsul da
Bolívia em Corumbá, elucidando as recíprocas dependências entre os países, pelo lado
boliviano por depender de abastecimentos, sobretudo alimentício, e pelo brasileiro, referindose ao transporte internacional, que movimenta a economia brasileira. Outras falas são da
diretoria da feira Bras-Bol e do Centro Boliviano Brasileiro 30 de Marzo12, onde ambos
esclarecem não ter participação na manifestação, que apoiam seus compatriotas, mas que
respeitam as decisões legais do Brasil.
Desta reportagem selecionamos apenas dois comentários, nem por isso, menos
pertinentes:
O leitor José Carlos diz: “Ainda está fechada Faz alguma diferença? Vamos
aproveitar e colocar na pauta de discussão o envolvimento dos bolivianos, principalmente da
Polícia Nacional no roubo de veículos”.
O leitor Simpson reafirma: “é como falei, “Fechem bem fechado e joguem a chave
fora”.
Na tentativa de verificar a compatibilidade da fala do leitor José Carlos com a
realidade, se o fechamento da fronteira faz alguma diferença, em entrevista com Marcos
Panovich, um dos proprietários da Rede de Supermercados Panoff desta urbe, serviu de
esclarecimento. Foi controversa sua opinião ao mencionado no site, pois o mesmo afirmou
que há um vultoso número de bolivianos que consomem seus produtos e serviços, apesar de
ele não saber informar em números concretos. Ao responder se fazia alguma diferença em
12
Entidade que reúne a colônia boliviana na cidade de Corumbá, que completou 50 anos em 2012.
46
suas vendas quando havia fechamentos na fronteira, ele foi enfático: “com toda certeza, há
considerável queda”. Este relato é importante devido ao espaço que esta rede de
supermercados ocupa no total de vendas da cidade.
No sentido de corroborar com esta ideia, também foram entrevistados representantes
de algumas empresas de Transportes Internacional de Cargas, devido sua grande presença na
economia da região e sua total ligação com o fluxo fronteiriço. Das empresas visitadas13, de
diferentes maneiras elas alegaram prejuízos, como a falta de movimentação de mercadorias e
recursos, acréscimos de despesas, pátios lotados, entre outros. Todas foram unânimes em
afirmar que o fechamento da fronteira altera drasticamente o andamento do serviço, ao ponto
de estagná-lo. E isso afeta um grande número de trabalhadores que têm suas atividades
ligadas ao transporte internacional de cargas: carregadores, motoristas, despachantes
aduaneiros, entre muitos outros. Ou seja, os relatos acima expostos reforçam a
interdependência estabelecida nesta região fronteiriça.
Ainda sobre os comentários expostos, trata-se de acusação infundada, ou seja,
preconceituosa, sendo que não vem devidamente acompanhada de qualquer evidência que
alicerce a afirmação. De acordo com dados obtidos junto à Primeira Delegacia de Polícia
Civil, da cidade de Corumbá, os números demonstram outro quadro, apenas no mês de maio
de 2011 (mês da paralisação), foram registrados 17 roubos ou furtos de veículos, no mês
anterior foram 12. A título de comparação, no mês de maio de 2009 (pois 2010 não havia
registros no Sistema), foram 13 registros. Em abril de 2010, foram 10 registros14. Assim,
diante dos números, verifica-se infundado o argumento que liga o fechamento da fronteira à
diminuição do roubo de veículos.
No dia 19 de maio de 2011, o enunciado foi: “Manifestantes decidem manter fronteira
com Corumbá fechada”. Em nova reunião, a decisão foi pela manutenção da fronteira
fechada, agora por tempo indeterminado, no sentido que autoridades bolivianas ratifiquem as
reivindicações junto ao governo brasileiro, “para que nosso apelo à normativa possa ser
revista de acordo com as necessidades de nossa fronteira”, complementou o cônsul boliviano
Juan Carlos Mérida Romero.
13
As empresas de transporte visitadas foram: TransLi, TransNet, Mira Transportes, Rápido Transpaulo, VLG
Transportes.
14
Estes números foram obtidos através do Sistema Integrado de Gerência Operacional (SIGO). Foram expostos
em períodos mensais, seguindo a estrutura do Sistema, que também não traz uma diferenciação entre roubos e
furtos de veículos.
47
Esta notícia suscitou diversos comentários, que seguem o caminho ao distanciamento,
e outros ao da aproximação, e na maioria sequer comentam algo relativo ao assunto noticiado,
tão importante para região. Seguem alguns comentários:
O leitor Cabeça diz: “Coincidência ou fato? Desde que foi fechada (fronteira)
diminuiu o roubo de carros e motos”.
HD diz: “vejam só a ignorância desses hermanos com a fronteira fechada e se
prejudicando. O comércio de Corumbá vendendo mais e o roubo de veículos diminuíram, que
interessante, né?”.
O leitor Eduardo diz: “viva! Diminui o roubo de motos!”
O leito de cognome Corumbaense diz: “não reabram essa fronteira, vamos ver até
quando vocês aguentarão. Quem legisla no Brasil são os brasileiros. Respeitem nossas leis,
afinal, elas são soberanas”.
Mas num outro sentido, escreve e a leitora Dália Cabral: “nossa! A fronteira fechada!?
Que bom! Isso é pra ver que os bolivianos têm atitude e não ficam de braços cruzados
observando as falcatruas que são feitas contra seu povo”.
O leitor Ademilson diz: “acho justa reivindicação dos hermanos bolivianos, não
podemos generalizar, há pessoas honestas e trabalhadoras na Bolívia, acho muito baixa a
cota realmente, deveria ser revista.”
Outra vez os sentidos de distanciamento e aproximação se apresentam. O primeiro de
modo preconceituoso, manifestando o discurso do poder central, empenhado em unificar,
independente das particularidades locais; a segunda de modo a dirigir-se em direção ao outro.
De alguma maneira são as identificações afloradas, evocadas, que aproximam.
Ainda no dia 19 de maio de 2011 a fronteira foi reaberta e o site noticiou: “Após 84
horas interditada, fronteira é reaberta e congestiona a Ramão Gomez.15” A decisão pela
reabertura foi tomada após contato do Ministério de Comércio Exterior e Imigração com o
Consulado Boliviano em Corumbá, indicando que uma comissão governamental se dirigiria
para a fronteira para dialogar com os manifestantes, com a finalidade de expor as negociações
junto às autoridades brasileiras. A reportagem ainda traz as condições do trânsito após a
reabertura, e apresenta a Portaria da Receita Federal.
Os comentários desta notícia acabam por seguir os mesmos aspectos discursivos dos
demais, a saber:
15
Rodovia que liga Corumbá à Bolívia.
48
Um leitor de cognome H.D postou: cuidado população que preza por aquilo que
conquistou seu bem, como moto e carro, vai começar tudo novamente. Roubo!
Um leitor de cognome Ramon postou: “Ustedes solo hablan de robo, son los mismos
dueños brasileros que vienen los venden y dan el golpe del seguro. Creo que les falta
inteligencia para opinar, no sean racistas.”
Verificam-se
assim,
distanciamentos
ou
aproximações
para
emitir
ideias
preconceituosas. É preciso assinalar que os laços existem e seu reforço também, no entanto,
como elas se estabelecem é que é o seu diferencial, se através do preconceito ou da
solidariedade.
Outro aspecto interessante de expor é o “aviso” do site em relação aos comentários dos
leitores. O qual diz não publicar “comentários ofensivos, que violem a lei, a moral e os bons
costumes ou direitos de terceiros (...) incitação à violência também não é permitida”. Ou seja,
os bolivianos e a fronteira não se enquadram nestas prerrogativas, para eles, o filtro é mais
largo e permissivo.
Se a fronteira enseja aproximações e distanciamentos, tanto para a solidariedade
quanto para o preconceito, como captam essas manifestações? Por que não se mostram os
atores sociais dessas práticas como querem ser vistos? Sim, pois, não compõem personagens
para representar, mas dizem o que realmente pensam sobre a condição fronteiriça e seus
vizinhos. E o fazem abertamente, pois se valem do anonimato. É preciso evidenciar que os
comentários não configuram gestos involuntários, mas uma sequência de etapas: buscar o site,
depois a seção fronteira, em seguida aderir à sala dos comentários, e finalmente, postar seu
comentário. Sugerindo que os acontecimentos relacionados à fronteira têm grande
importância, provocando diversas reações dos atores sociais daquela região. Desse modo, o
que se verifica nos comentários são representações da vivência fronteiriça, gestos de
aproximação e de distanciamento.
Há componentes desse quadro, no qual o discurso do comentário é o resultante: frases
que se reproduzem sem combinação prévia, mas que se assemelham o bastante para não
deixar de serem ignorados suas origens e efeitos de verdade (FOUCAULT, 1979). Além dos
discursos selecionados, havia outros interessantes no que diz respeito ao que expressam,
nomeando pejorativamente a fronteira e os bolivianos, repudias por eles “entupirem e
infestarem” às ruas das cidades com suas “bugigangas e quinquilharias”, ou seja,
forçosamente associando desprestígio à presença boliviana.
A linguagem textual é um código carregado de significados, abrangendo desde o
instrumental que cada indivíduo possui para expressar suas experiências, como as relações de
49
poder nelas contidas, que as levam para além das palavras, mas enquanto desdobramentos
daquilo que se vivencia. Por isso, os comentários utilizados são um campo audível dessas
relações, porque exprimem até mesmo o que não é dito abertamente, compondo um arquivo
desse quadro recheado de significados históricos, socioeconômicos e políticos, como já
expostos.
De alguma maneira o fronteiriço deprecia a si próprio. Se procedesse no contrário,
revertesse em positividades o que o deprecia - a condição fronteiriça, a proximidade com o
outro, das possibilidades que se abrem diante de suas peculiaridades - encontraria outras ou
uma identidade. Uma identidade a partir do seu estigma (HALL, 2003).
Os acontecimentos na fronteira em questão tornaram-se notícias, estas por sua vez,
comentários de seus leitores, o que indica uma aproximação entre a fronteira e os fronteiriços
que nela vivem. Os comentários dos leitores do site de notícias apontaram algumas ideias que
colocamos em análise e buscamos verificar a compatibilidade com a realidade. Ideias
restritivas à construção de uma vivência fronteiriça harmoniosa, algumas abertamente
preconceituosas. No entanto, ficou evidente a importância que a fronteira representa na vida
dos habitantes dessa região. Mesmo que de formas diferentes, sua importância se apresenta,
até quando negada por parte de seus habitantes.
50
CAPÍTULO IV
PONTOS DE APROXIMAÇÃO E PONTOS DE DISTANCIAMENTO
Este capítulo expõe as diversas manifestações captadas ao longo do trabalho de campo,
tomando como referência a teoria dos pontos de aproximação e pontos de distanciamento, na
qual se analisa as diferentes atividades em que brasileiros e bolivianos interagiram. Se nessas
interações eles se inclinaram para aproximações amistosas, de forma a estabelecer laços
solidários, ou se distanciaram, pautando suas ações em ideias preconceituosas e restritivas.
O objetivo está centrado em analisar tais manifestações, sobretudo na cidade de
Corumbá, onde sua população se aproxima ou se distancia tanto dos bolivianos quanto da
fronteira, ou seja, como compõem a vivência fronteiriça, interagem com o país vizinho e
também com os imigrantes bolivianos.
Com os dados obtidos foram captados os seguintes aspectos das manifestações
analisadas: aquelas que provocam distanciamentos têm como base ideias preconceituosas, por
isso, restritivas com a vivência fronteiriça e com os bolivianos; quanto à sua prática, assumem
dois aspectos: anônimas e discretas; o exemplo, visualizados a partir de comentários de
leitores do site de notícias, no capítulo anterior, possibilita levantar a hipótese de que isto
assim ocorre porque as aproximações, as interações amistosas e solidárias são suficientemente
sólidas a ponto de não se permitir ações escancaradas de preconceito. Desse modo, os pontos
de aproximação se apresentam muito mais resistentes, pois foram estabelecidos abertamente,
geralmente de maneira espontânea e amigável, o que possibilita aproximações amigáveis e
conciliadoras entre brasileiros e bolivianos, nos mais diferentes âmbitos da vida social na
fronteira.
A imagem negativa da fronteira, que o Estado e suas instituições auxiliaram em sua
construção, (esta imagem) constitui um elemento que distancia os fronteiriços, entre si e com
a fronteira. Para exemplificar o exposto, selecionamos a foto que segue:
51
Figura 01: Foto de Pichação na Av. General Rondon, em
Corumbá – MS.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2009.
Nesta foto é possível verificar algumas das características acima citadas: o anonimato,
o preconceito, as restrições tanto com a vivência fronteiriça (muro na fronteira) quanto com os
bolivianos (fuera chollos!).
No entanto, mesmo representando uma manifestação escancarada de preconceito, não
causou nenhum efeito e nem conseguiu romper os resistentes laços solidários resultantes dos
pontos de aproximação apresentados, porque são fortes, oriundos da religião, do esporte, e das
expressões artístico-culturais, e imbuídos de consistência e resistência.
No âmbito religioso as manifestações mais exteriorizadas ocorreram na esfera cristã,
com atividades conjuntas, entrelaçamentos que extrapolam o campo religioso, alcançando
intercâmbios linguísticos, relacionamentos afetivos, até monetários, entre outros. Por
exemplo, a Igreja Evangélica Assembléia de Deus, da cidade de Corumbá/MS, mantém
interações com os vizinhos bolivianos desde 1962, que segundo o Pastor Euclides Moreira
Barreto, a Igreja trabalha prestando assistência espiritual e ministerial, com ensino teológico.
No ano de 2011 foi realizada nas dependências da Igreja o Congresso Quéchua, com objetivo
de confraternização entre brasileiros e bolivianos. Nestas interações, ainda segundo o Pastor
Euclides, foram e ainda são erguidos fortes laços de solidariedades entre brasileiros e
bolivianos.
52
Figura 02: Foto da tabela de preços, em Reais e Pesos Bolivianos,
utilizado no Congresso Quéchua.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
É preciso esclarecer que existem pontos de aproximação em outras religiões, por
exemplo, naquelas de origem africana. Porém estas ocorrem de maneira mais reservada.
Através de contato com alguns membros dessas religiões de origem africana, obtivemos que,
periodicamente, grupos se dirigem para a Bolívia para prestar trabalhos espirituais, tanto na
região fronteiriça quanto em outras localidades do território boliviano.
No ano de 2011, foi realizado um grande evento em homenagem à Virgem de
Copacabana. Este evento ocorre há vários anos, no entanto, em 2011 ganhou outra dimensão.
O evento se estendeu pelas ruas de Corumbá e caminhou até Puerto Quijarro, contou também
com uma missa na Igreja Matriz de Corumbá, celebrada em espanhol, além do grupo de dança
Caporales, que veio da cidade boliviana de Cochabamba. Através do comparecimento ao
evento foi possível perceber que a religiosidade e as expressões artístico-culturais
apresentavam-se como elementos que aproximam, causando reações amistosas.
53
Figura 03: Foto do Convite para o evento em homenagem à Nossa Senhora
de Copacabana.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Figura 04: Foto do Grupo de dança Caporales, de Cochabamba em
Corumbá - MS
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
54
Figura 05: Foto da missa na Igreja Matriz de Corumbá em
homenagem à Virgem de Copacabana
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Da mesma forma ocorrem festividades pela cidade em homenagem a Nossa Senhora
de Urkupiña, contando com muitos devotos brasileiros.
Figura 06: Foto do andor com a imagem da Virgem de Urkupiña.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
55
Figura 07: Foto do banner com a imagem da Virgem de Urkupiña.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Ainda no âmbito religioso, as Prefeituras de Corumbá e Ladário apresentaram um
projeto denominado "Unidos pela Fé Brasil/Bolívia - Caminhos da Fé Roteiros do Brasil",
que intenciona criar uma rota de peregrinação pelos atrativos históricos e religiosos de
Corumbá, e também das cidades bolivianas. Segundo o então Superintendente de Turismo de
Corumbá, Rodolfo Assef Vieira, em entrevista ao site de notícias Diário Online no dia 12 de
setembro de 2011: "esse roteiro busca a diversificação, para que possamos atrair outro tipo de
turista para a região".
No esporte, o futebol aparece como forte ponto de aproximação. O que os brasileiros
chamam de “paixão nacional”, apresentou-se como uma paixão em comum entre brasileiros e
bolivianos. Tal como se verifica nas imagens:
Figura 08: Foto da final do Campeonato da Bras-Bol: brasileiros e
bolivianos jogando futebol em Corumbá - MS.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2010.
56
Figura 09: Foto da final do Campeonato da Bras-Bol: brasileiros e
bolivianos jogando futebol em Corumbá - MS.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2010.
Em Ladário, cidade vizinha de Corumbá, o campeonato amador na categoria de
veteranos é atuante, cujo nome é Quijarumbá, uma junção, ou trocadilho, formado a partir dos
nomes Quijarro e Corumbá em homenagem às duas cidades fronteiriças entre si. Em seu
plantel estão brasileiros e bolivianos, que estendem suas ligações para o pós-jogo, de forma a
promover uma aproximação espontânea.
Ainda no campo esportivo, captamos outra aproximação interessante, entre os alunos
da escolinha de futsal do Corumbaense Futebol Clube e alunos do Colégio BolivianoCanadiense, que esporadicamente promovem amistosos, tanto em Corumbá como em Santa
Cruz de La Sierra, sede da escola boliviana. De acordo com os professores que organizam os
amistosos, eles já ocorrem há mais de dez anos.
57
Figura 10: Foto do amistoso entre a escolinha de futsal do Corumbaense
Futebol Clube e Colégio Boliviano - Canadiense.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2010
Figura 11: Foto do amistoso entre a escolinha de futsal do Corumbaense
Futebol Clube e Colégio Boliviano - Canadiense
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2010.
As expressões artístico-culturais apresentaram-se como outro resistente e potencial
ponto de aproximação. Para esta afirmação nos valemos da análise presencial de diversos
eventos, principalmente em que os bolivianos e suas manifestações eram os protagonistas. O
que em geral foi registrado foram reações amistosas e curiosas, elementos importantes para
derrubar preconceitos.
58
Figura 12: Foto da apresentação cultural do grupo Morenada no
III Seminário de Estudos Fronteiriços, Corumbá - MS.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Figura 13: Foto da apresentação cultural do grupo Morenada no III Seminário de
Estudos Fronteiriços, Corumbá - MS.
Autor: André Luis Ramalho Junior, 2011.
59
Figura 14: Foto da Associações bolivianas desfilando no aniversário
de 233 anos de Corumbá-MS.
Fonte: www.corumba.com.br 2011.
Figura 15: Foto do desfile referente à independência da Bolívia: centro de
Corumbá - MS 2011.
Fonte: André Luis Ramalho Junior, 2011.
60
Figura 16: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Fonte: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Figura 17: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Fonte: André Luis Ramalho Junior, 2011.
61
Figura 18: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Fonte: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Figura 19: Foto de expressão artística boliviana nas ruas de Corumbá- MS.
Fonte: André Luis Ramalho Junior, 2011.
As manifestações culturais bolivianas que ocorrem nas ruas de Corumbá são de grande
relevância, pois, solidificam as atitudes amistosas entre os povos desta fronteira. Ademais,
além de caminhar em direção à quebra de preconceitos, possibilitam o conhecimento de algo
que lhes era invisível aos olhos, desconhecido. E as reações dos corumbaenses curiosos, em
geral, são de apreço e respeito pela cultura e pelo povo boliviano. Oportunidade em que
estampam sua admiração e retribuem com recepção calorosa através de aplausos, com registro
fotográfico. A forma sutil e cordial de agradecimento pela cultura do vizinho.
62
Eis a contestação humana ao governo federal que ergue suas políticas para fronteira,
referenciado estritamente na segurança pública. É imprescindível registrar que o poder
municipal corumbaense tem tentado outras vias, como a educação e a cultura, para o
relacionamento discutido.
A prefeitura de Corumbá realiza anualmente um evento para comemorar o Dia
Internacional da Diversidade Cultural, em 21 de maio. Oportunidade de evento no qual foi
possível captar mais aproximações entre brasileiros e bolivianos através das manifestações
culturais, como seguem nas fotos:
Figura 20: Foto de expressão artística de grupo boliviano no Dia Internacional
da Diversidade Cultural.
Fonte: André Luis Ramalho Junior, 2011.
Outro ponto de aproximação que vem aos poucos se desenvolvendo através da
administração municipal é o da educação. Em junho de 2012, em parceria com a Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, foi lançado o Programa Escolas Interculturais de Fronteira,
que tem por objeto a interação entre as escolas fronteiriças, alunos e professores, objetivando
também a comunicação entre a língua espanhola e a língua portuguesa em seus currículos
comuns. Este projeto está contido no programa do Governo Federal, o Projeto Escola
Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIBF), criado em 2005, por ação conjunta entre Brasil e
Argentina, que segundo o documento do projeto, visa estabelecer um intercâmbio entre os
professores dos países do MERCOSUL.
Ações desse tipo são de grande importância para ampliação dos laços de aproximação
entre brasileiros e bolivianos que convivem nesta fronteira. Assim, as ações que tem sido
desenvolvidas pela administração municipal apoiada em projeto federal, são apenas possíveis
porque nesta fronteira as aproximações entre brasileiros e bolivianos já se apresentam
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presentes, assim, o apoio não vem para promover um primeiro passo de integração, mas sim
para dar sequência aos que já existem.
Em síntese, aprende-se que os pontos de distanciamento, apesar de contundentes, se
disseminam e ocorrem em âmbitos reservados, e quando manifestos abertamente aplicam-se
sob o anonimato. Com tais características, os pontos de distanciamento, recorrentemente
estabelecidos por preconceito, geralmente se baseiam na imagem negativa associada à
fronteira – são frágeis e falíveis. Frágeis, pois, não rompem com os laços solidários
estabelecidos, falíveis porque se estabelecem sobre ideias infundadas, que se reproduzem em
discursos que ecoam apenas em campos privados, no âmbito dos preconceituosos, senão
estatista.
Sobre os pontos de aproximação, eles constituem elementos de integração muito
resistentes, principalmente porque não são resultantes de projetos políticos governamentais,
ocorrem de forma espontânea e aberta, aproximam e criam laços fortes suficientemente
rígidos para romper preconceitos e fazer prevalecer o amistoso.
Faz-se necessário registrar que a dinâmica dos pontos é empreendida pelas pessoas, os
atores sociais, o que implica em variações de comportamento. Com isso queremos dizer que
os mesmos que atuam nos âmbitos do distanciamento podem ser encontrados promovendo ou
estabelecendo aproximações. E o verso também é verificável.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As fronteiras são locais de contato entre diferentes construções sociais, históricas,
políticas e econômicas, que podem ter elementos convergentes identificadores da sua forma
de se desenvolver e impactar o meio. Esta pesquisa captou e analisou manifestações que
demonstrassem as características do contato entre brasileiros e bolivianos na região fronteiriça
da cidade brasileira de Corumbá com a cidade boliviana de Puerto Quijarro. Verificou-se que
os habitantes dessa região produzem uma pulsante vivência fronteiriça.
Além de compartilhar sua peculiaridade na mesma condição de vizinho confrontante
com a Bolívia, a cidade de Corumbá também é grande receptora de imigrantes bolivianos que
nela habitam fomentando ainda mais as relações sociais da vida nesta fronteira. Dessa forma,
o que se verifica nesta urbe é a presença boliviana através de vários signos: nas escolas, no
trânsito, nos transportes, nas feiras, nos supermercados, nas festividades, no esporte, na
religião, na cultura em geral e em outros. Ou seja, uma sólida vivência fronteiriça.
As reações a esta marcada presença foram nosso objeto de estudo. Assim no presente
trabalho foi produzida a teoria dos Pontos de Aproximação e Pontos de Distanciamento.
Nesse sentido, se brasileiros e bolivianos, diante de diferentes estímulos, se aproximavam ou
se distanciavam. Aproximação, criando e reforçando laços amistosos entre os fronteiriços;
distanciamento, pautando suas ações em ideias preconceituosas e restritivas.
Trabalhou-se a hipótese de o Estado auxiliar na construção da vivência fronteiriça,
figurando como o principal ator na produção de distanciamentos, através de suas políticas
fronteiriças embasadas na permanente ideia de fiscalização e repressão, e desta forma
privilegiando a segurança pública e desconsiderando outras esferas que se desenvolvem na
fronteira, como a cultura, por exemplo.
O grande número de instituições estatais que se fazem presente na fronteira é o
alicerce desta hipótese estatista porque estão exclusivamente para vigiar, reprimir e punir o
que se costuma denominar de “crimes fronteiriços”. Podendo-se elencá-las: PEFRON16,
DOF17, Polícia Federal, Receita Federal, todos os entes públicos com vistas a frear a
criminalidade na fronteira. É preciso registrar que não há nenhum tipo de afirmativa
ressaltando que inexistam crimes na fronteira; o que se deseja evidenciar é que eles não
16
Policiamento Especializado de Fronteiras, criado em 2008, com a função de atuar no combate aos crimes nas
regiões de fronteira. De acordo com o portal do Ministério da Justiça o objetivo do PEFRON é fomentar os
estados brasileiros a criarem grupos especiais para atuarem na prevenção e na repressão de maneira mais
qualificada nas regiões de fronteira, combatendo os crimes típicos de cada região do país.
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Departamento de Operações de Fronteira, de jurisdição Estadual, passou a atuar na fronteira coma Bolívia,
também com objetivo de repressão aos crimes na fronteira.
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representam a fronteira, a qual oportuniza e produz experiências riquíssimas que em nada
intersectam com crimes e ilegalidades.
Concomitantemente, os meios de comunicação emergem produzindo distanciamento
ao se noticiar uma fronteira tematicamente rotulada por criminosa. O que se verifica é a
criação da imagem de que tudo na fronteira está associado à ilegalidade, e os que ali transitam
ou residem também respondem por esse prejulgamento social-estatista-midiático.
Paulatinamente, este mestrando, juntou enunciados jornalísticos que exemplificam o
trabalho da mídia e relata o que agentes do Estado pensam e esclarecem sobre o tema. Com a
apresentação de alguns noticiários sobre a fronteira, verificou-se a disposição de determinados
órgãos que nela atuam e seus objetivos e prática.
De um modo geral, os Pontos de Distanciamento recorrem às ideias preconceituosas,
como aquelas que relacionam a fronteira com a ilegalidade e a desordem. E em análise, foi
levantada a hipótese de que a concepção atual de fronteira é um fator que distancia os
fronteiriços. Como a ideia negativa da fronteira foi promovida, em grande parte pelo Estado,
quando equipou as fronteiras necessariamente de marcos fiscalizatórios e limitadores, afirmase a teoria que o Estado atuou e atua na construção da vivência fronteiriça.
As manifestações de preconceito assumem, em sua maioria, dois aspectos: são
discretas e anônimas. O manifestante se vale de um sítio de notícias na internet na cidade de
Corumbá para desvelar suas opiniões. Não há relatos de manifestações escancaradas de
preconceito que pudesse ser atribuída a determinado grupo ou indivíduo.
Estes aspectos das manifestações de preconceito, que incidem no distanciamento entre
brasileiros e bolivianos, nos revelaram a força das aproximações existentes. Ou seja, as
manifestações de preconceito são dissimuladas, pois, de um lado, recorrem às ideias
infundadas e, por outro, encontram um caráter solidário, proporcionado pelas aproximações,
muito mais cristalizado e resistente, embora parcamente propalado.
Entretanto, é preciso que os Pontos de Aproximação se multipliquem. A integração,
enquanto iniciativa governamental, precisa procurar outros elementos que não sejam
estritamente repressivos e comerciais. A religião, o esporte e as atividades artístico-culturais
são pontos de aproximação deveras resistentes e, principalmente, partiram de iniciativas da
população. Isto não pode ser desconsiderado.
De maneira geral pode-se concluir que a região fronteiriça estudada enseja muito mais
Aproximações do que Distanciamentos, o que já se mostrou propícia para elaboração e
efetivação de práticas conjuntas entre brasileiros e bolivianos. Reitera-se que qualquer política
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pública que intencione integração entre os fronteiriços desta região deve considerar suas
formas e as práticas já existentes, pois, elas surgiram de modo espontâneo e vigoroso.
Assim, as políticas que venham a se desenhar para Aproximações entre os fronteiriços
dessa região devem buscar ao máximo a organização das práticas positivas já existentes, e não
criação de práticas aproximativas, pois, elas já existem e se mostram o suficiente para serem
aproveitadas.
De modo muitíssimo espontâneo e enérgico, brasileiros e bolivianos desta fronteira
constroem variados Pontos de Aproximação e nos mais variados e surpreendentes âmbitos de
atuação. Nas confraternizações de fim de semana, no futebol, nas celebrações religiosas, nos
funerais, na música, na dança, nos protestos, nas escolas, no poder público, no comércio, nas
feiras, na construção civil, nas vizinhanças e em tantos outros e pelos mais variados motivos.
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