REVISTA ELETRÔNICA DOS ESTUDANTES DE FILOSOFIA DA UFRJ

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REVISTA ELETRÔNICA DOS ESTUDANTES DE FILOSOFIA DA UFRJ
REVISTA ELETRÔNICA DOS ESTUDANTES DE FILOSOFIA DA UFRJ
Revista(Aproximação(—(Primeiro(semestre(de(2015(—(Nº(9(
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Revista Aproximação
(Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)
Volume 9 – Edição 2015/01
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A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em
Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da
UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o da
pesquisa filosófica.
© Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro
Expediente – Comissão Editorial
Alline Schalcher, Elis Bondim, Fabiana Lessa, Guilherme Santos, Henrique Luz, Irene
Danowski, Jorge Américo Vargas, Manoela Caldas
Conselho Editorial
Carolina de Melo Bomfim Araújo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha,
Fernando José de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco
Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mário Antônio de Lacerda Guerreiro,
Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael
Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro,
Wilson John Pessoa Mendonça.
Contato: [email protected]
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Índice:
Editorial............................................................................................................................ 3
A Filosofia como modo de vida na Grécia Antiga, segundo Pierre Hadot...................... 5
A retórica psicagógica no diálogo Fedro....................................................................... 25
Da animalidade à humanidade: ontologia na obra de Mikhail Bakunin......................... 40
Nietzsche com Freud: sobre a possibilidade ou impossibilidade da afirmação do eterno
retorno............................................................................................................................. 54
O Argumentum Libertatis na Opera Politica de Guilherme de Ockham........................ 70
O que está além do erotismo: Georges Bataille em perspectiva..................................... 87
O ser primeiro n’O livro das opiniões dos habitantes da cidade excelente, de
Al-Fārābī....................................................................................................................... 109
Refutação do cognitivismo moral não-naturalista......................................................... 119
Schopenhauer: o prazer enquanto ausência de dor........................................................ 134
Sociedade, literatura e contingência.............................................................................. 145
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Editorial 2015.1
É com imensa satisfação que realizamos mais uma edição da Revista
Aproximação! Neste período de 2015.1, com a nova comissão editorial já consolidada,
porém mantendo nesta nona edição e nas demais por vir o propósito herdado dos antigos
membros da revista. Tal compromisso não poderia ser outro senão servir como terreno
para que os jovens graduandos tenham uma primeira oportunidade de fertilizar suas
ideias e reflexões em busca de uma transformação da realidade social nas suas mais
diversas instâncias.
No entanto, a preservação desse espaço de possibilidades que nossa revista abre
àqueles que iniciam a carreira acadêmica não poderia ser mantida, nem ao menos
concebida, caso não contássemos com a inestimável participação dos professores e
doutorandos colaboradores, que ampararam os artigos aqui publicados com suas análises
e sugestões.
Não podemos deixar de mencionar o tempestuoso momento em que vivemos nas
universidades públicas, onde cada vez mais verbas são cortadas, resultando em
trabalhadores com seus salários reduzidos e atrasados, diminuição na quantidade de
bolsas de estudo disponíveis, péssimas condições de assistência estudantil, etc. Diante
desse cenário árido, estudantes, técnicos e professores se mobilizam em greve para que
suas exigências sejam cumpridas e garantam uma melhor qualidade na educação pública
brasileira. Posto isto, deixamos aqui nosso total apoio a todos aqueles que se organizam
e lutam por essas melhorias nas condições de vida da população.
Então sem mais delongas, apresentamos agora os trabalhos que compõem a nona
edição. Neste semestre, podemos contar com uma riqueza plural de temas desde filosofia
medieval muçulmana até estudos contemporâneos a respeito do erotismo. Começando
pelo artigo de Elis Bondim, que pretende introduzir a concepção da filosofia como modo
de vida na Grécia Antiga, como descrita por Pierre Hadot. Em seguida, encontramos a
abordagem de Michelle Belatto sobre o Fedro de Platão, com o intuito de nos indicar
uma relação entre a retórica, a psicagogia e a dialética que compõem a obra. Temos
também o importante questionamento levantado pela Luciana brito acerca da origem e
ordem do mundo a partir da filosofia materialista do pensador anarquista Mikhail
Bakunin. Alexandre Starnino traça um diálogo entre a noção de psique de Nietzsche e
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Freud, com a finalidade de discutir sobre a possibilidade ou impossibilidade de
afirmação do eterno retorno como um imperativo existencial. O graduando Willian
Borges busca evidenciar qual seja o papel exercido pelo argumentum libertatis na Opera
Política de Guilherme de Ockham. Enquanto o André Quirino analisa criticamente as
noções de violência, sagrado e morte de acordo com o texto O Erotismo, de Georges
Bataille. Já a Carolina Rubira explora a leitura metafísica que o filósofo árabe Al-Fārābī
faz de Aristóteles a cerca do ‘Ser Primeiro’. Logo após, temos o texto de Rafael
Vogelmann que nos traz uma refutação sobre a incapacidade do cognitivismo moral nãonaturalista dar conta de nossas noções morais. O artigo de Kairon Araújo nos instiga a
refletir sobre a ideia schopenhauriana de felicidade enquanto supressão temporária da
dor. Por fim, temos o artigo do mestrando Matêus Cardoso, a respeito das noções de
Richard Rorty sobre a relação entre Verdade e Realidade e sua chamada Cultura
Literária.
Desejamos uma excelente leitura a todos!
Comissão Editorial – Revista Aproximação.
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A FILOSOFIA COMO MODO DE VIDA NA GRÉCIA ANTIGA,
SEGUNDO PIERRE HADOT
Elis de Aguiar Bondim Ribeiro de Oliveira
Graduanda em filosofia na UFRJ
Resumo: Esse trabalho visa divulgar, apresentar e introduzir o leitor à concepção de
filosofia como modo de vida na Grécia Antiga, de acordo com Pierre Hadot, autor base
desse trabalho. O artigo introduz brevemente também Sócrates e a sua filosofia,
conhecida até onde é possível através principalmente dos escritos de Platão, e algumas
escolas do período Helenístico – a saber, a Academia, o estoicismo e o epicurismo –,
com o objetivo de apresentá-los como exemplos de seguidores da filosofia como modo
de vida.
Palavras-chave: Filosofia como modo de vida. Pierre Hadot.
Abstract: This work aims to divulge and present the conception of philosophy as a way
of life in Ancient Greece, just like Pierre Hadot says. The article discourses about
Socrates and his thought briefly, known, mainly, by Plato writings, and some thoughts
from Hellenistic period, like the Academy, the Stoicism and the Epicureanism, with the
objective of to present Socrates and such schools like examples of followers of
philosophy as a way of life.
Keywords: Philosophy as a way of life. Pierre Hadot.
Introdução
Como diz Pierre Hadot, é muito difícil definir o que é filosofia. Toda a história da
filosofia mostra a diversidade de modos de se filosofar – ou seja, de filosofias propostas.
Com isso quer-se referir aqui não apenas às diferentes doutrinas filosóficas – que são
diferentes modos de se explicar o mundo, cada uma com a sua genialidade e com seus
problemas – mas também, e principalmente, às diferentes estruturas e comportamentos
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filosóficos. Isso se relaciona com a concepção da própria filosofia que cada autor ou
escola tem e propõe.
Nesse trabalho discorre-se sobre uma concepção específica de filosofia: a de
filosofia como modo de vida na Grécia Antiga, ou seja, como algo que se relaciona
intrinsecamente com a vida que se leva, com as escolhas práticas que se faz e, no caso,
numa época determinada. Para tanto, Pierre Hadot é a base desse trabalho, e também os
exemplos da figura de Sócrates e de algumas escolas helênicas1. Ressalta-se que o
trabalho não se estenderá sobre Sócrates e tais escolas helênicas, apresentando-os
brevemente a título de exemplificações, visto que eles não são exatamente o objeto do
trabalho, mas sim a filosofia como modo de vida. Discorrer brevemente sobre eles é
relevante porque são ótimos exemplos do que se pretende dizer com ‘filosofia como
modo de vida’.
De acordo com isso, o presente trabalho se divide em três partes, sendo a
primeira a que introduz a filosofia como modo de vida de acordo com Pierre Hadot; a
segunda a que apresenta Sócrates, sua filosofia e sua vida; e a terceira a que apresenta
algumas escolas do período helenístico, a saber, a Academia de Platão, a dos epicuristas
e a dos estoicos2. Por fim, considerações finais fecham esse trabalho, que visa divulgar,
apresentar e introduzir esta concepção de filosofia.
1. A filosofia como modo de vida na Grécia Antiga
A concepção de filosofia como modo de vida não deixa de lado o seu aspecto
teórico – as possíveis teorias explicativas do mundo ou de aspectos do mundo e da vida
– mas sim abarca, além destas e prioritariamente, um modo de viver e de encarar a vida.
Segundo Pierre Hadot, essa é a concepção antiga de filosofia, da onde provém o próprio
termo philosophia, que significa “amor pela sabedoria” – uma filosofia que é
primeiramente uma escolha de vida, um modo de se comportar e de se conduzir e apenas
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1
Como se pode verificar através da leitura do próprio Hadot, essa concepção de filosofia é grega antiga, o
que não significa que não haja autores posteriores que proponham algo similar. Pierre Hadot propõe
em “O que é a filosofia antiga?” que Michael Foucault e a sua tese do cuidado de si são similares ao
que se encontra na filosofia grega antiga. Não se discorrerá sobre Foucault aqui por ser a filosofia
grega antiga como modo de vida o enfoque do trabalho.
2
A apresentação destas três escolas se deve a uma delimitação do tema; como o objetivo é apresentá-las
como exemplos de escolas que compreendem a filosofia como modo de vida, e não exatamente
discorrer sobre as escolas do período helenístico, selecionou-se as escolas sobre as quais o próprio
Pierre Hadot, autor base do presente trabalho, mais discorre.
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segundamente uma reflexão teórica, sendo esta uma tentativa de representação teórica e
racional acerca de tal escolha de vida, justificando-a e explicando-a.
Em primeiro lugar, ao menos desde Sócrates3, a opção por um modo de vida
não se situa no fim do processo da atividade filosófica, como uma espécie de
apêndice acessório, mas, bem ao contrário, na origem, em uma complexa
interação entre a reação crítica e outras atitudes existenciais, a visão global de
certa maneira de viver e de ver o mundo, e a própria decisão voluntária; e essa
opção determina até certo ponto a doutrina e o modo de ensino dessa doutrina.
O discurso filosófico tem sua origem, portanto, em uma escolha de vida e em
uma opção existencial, e não o contrário. (...) Essa opção existencial implica,
por seu turno, certa visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico
revelar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa
representação do mundo. (HADOT, 2014: 17 e 18)
Assim, aqui não há oposição entre modo de vida e discurso (oral ou escrito), como
se o primeiro dissesse respeito apenas à vida prática e o segundo apenas à teoria. Como
assinala o autor, o discurso pode produzir um efeito sobre o ouvinte ou o leitor, o que é
de caráter prático, assim como o modo de vida pode ser teorético, ou seja,
contemplativo. Há uma relação mútua entre discurso e vida: o discurso participa e influi
na vida e a vida define o discurso.
A própria palavra sophia – saber ou sabedoria – traz à tona, em seu sentido
original, um aspecto prático, pois ela abarca tanto a noção de saber muitas coisas,
conhecer e/ou ver muitas coisas, quanto a de saber se conduzir bem na vida. De modo
que “o verdadeiro saber é, finalmente, um saber-fazer, e o verdadeiro saber-fazer é um
saber-fazer o bem” (HADOT, 2014: 39). Observar isso é importante à medida que a
origem da palavra philosophia está nas palavras philos (amor) e sophia. Filosofia é,
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3
Muito se discute sobre até que ponto pode-se chamar de filósofos os pensadores anteriores a Sócrates,
visto que o termo só foi definido por Platão, no século IV a.C.. O termo parece ter sido empregado
pela primeira vez por Heródoto, no século V, em sua obra Histórias, mas ainda não tinha o sentido
filosófico que o termo recebeu com Platão e que permaneceu. Isso é relevante à medida que esses
pensadores anteriores talvez não compreendessem a sua atividade de “filosofar” - ou próxima ao que é
o filosofar – como modo de vida, do modo como Sócrates o compreendeu e aqueles a ele posteriores.
Por isso considera-se aqui Sócrates como o primeiro grande exemplo de filósofo no sentido de
filosofia como modo de vida, que é o tema desse trabalho.
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como já se disse, amor à sabedoria; essa sabedoria – sophia – abarca tanto a teoria, o
conhecer ou ver muitas coisas, quanto a prática, o saber-fazer.
Esses dois aspectos do termo philosophia se refletem também na origem dos
termos philósophos (filósofo) e sophistés (sofista) que, em dado momento, passam a se
diferenciar por ser o sofista aquele que ensina o que é útil à vida política, como métodos
de persuasão, retórica, aritmética, geometria e cultura geral, mediante pagamento; e o
filósofo aquele que ensina a quem quiser, sem cobrar pagamento e até recusando-o, com
o objetivo de que o seu ouvinte pense por si mesmo em vez de aprender certos
conteúdos e métodos simplesmente, e isso não com enfoque para a vida política, mas
sim para todo o seu modo de se conduzir na vida, em todos os seus âmbitos. Esse
modelo de filósofo é bastante claro em Sócrates,4 sobre quem se discorrerá adiante.
É nesse contexto que Hadot define o que ele chama de exercícios espirituais, por
ele compreendidos como sendo as práticas destinadas a modificar e transformar àquele
que as pratica. Os exercícios espirituais podem ser práticas físicas, como o regime
alimentar ou o hábito de exercícios físicos; discursivas, como o exercício do diálogo; ou
intuitivas, como a contemplação. Todas essas práticas fazem parte da filosofia grega
antiga como modo de vida. Assim, ressalta-se que
na expressão “exercício espiritual”, o acento deve recair sobre o primeiro
termo. Trata-se efetivamente de exercício, no sentido mesmo físico, biológico
e corporal do termo. Vem daí o significado terapêutico da filosofia tal como é
concebida, por exemplo, pelo estoicismo e pelo epicurismo (ALMEIDA,
2011: 108), (sobre o que se fala na terceira parte do trabalho).
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É relevante lembrar que não há escritos de Sócrates, de modo que as poucas fontes que se têm acerca
dele são indiretas (a saber, consideram-se como fontes primárias acerca de Sócrates apenas Platão,
Xenofonte, Aristófanes e Aristóteles; os dois últimos em menor medida por ser o primeiro um
comediógrafo que, portanto, não tinha nenhum compromisso com os fatos exatos e o segundo por ter
nascido depois da morte de Sócrates, com certeza não tendo tido contato direto com ele). Assim, o que
se entende por Sócrates quando se fala dele aqui é a figura que ficou conhecida e que é possível
conhecer através das fontes que se têm e, portanto, sem compromisso com o Sócrates histórico,
justamente porque este não é cognoscível. Recomenda-se o artigo O problema Socrático, de William J.
Prior, presente no livro Platão, de Hugh Benson e colaboradores para o leitor que tiver interesse no
tema.
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Os exercícios espirituais, como se verá abaixo, mostram-se sendo principalmente,
por exemplo, a lógica aplicada no dia-a-dia, o diálogo, o exercício de imaginação, de
meditação, de atenção e vigilância, dentre outros. Por exemplo, a lógica assume um
papel muito maior do que o silogístico, sendo aplicada ao dia-a-dia para que se
percebam as conexões necessárias entre os acontecimentos; dependendo da escola,
percebe-se com isso que a racionalidade humana se espelha na racionalidade da
natureza. A meditação pode ter diferentes objetivos também, dependendo da escola, mas
está presente em todas as escolas helênicas; pode ter como objetivo que o indivíduo
medite sobre a doutrina da escola, de modo a memorizá-la e sempre fortificá-la, ou que
o indivíduo reflita sobre o que fez e o que deveria ter feito, sobre suas faltas e seus
avanços, para que se mantenha consciente de si, para que busque ter consciência de si e
do que deve modificar.
O exercício de imaginação pode ter como objetivo que o indivíduo consiga
“olhar as coisas do alto”, sob uma perspectiva não mais humana e sim da natureza, “de
cima”, de modo a compreender o quanto as coisas humanas são pequenas. Os exercícios
de atenção e vigilância, assim como a meditação, geralmente visam à consciência de si.
O diálogo se mostra sendo o exercício de se abrir mão de suas opiniões individuais para
se chegar a um logos comum e, portanto, universal; nem sempre se chega a uma
conclusão, mas a alma se exercita no diálogo a estar sempre buscando o bem, a virtude.
Abaixo se discorrerá sobre Sócrates e sobre algumas escolas, de modo a se compreender
a escolha de vida e a filosofia em cada um desses casos, o que se relaciona com o que
Hadot chama de exercícios espirituais.
2. Sócrates: o grande exemplo
Sócrates, de acordo com que é possível conhecer da figura fundamental dos
diálogos platônicos,5 é o grande exemplo de filósofo que viveu na prática tudo que a sua
filosofia apresentava. Essa, aliás, não foi apresentada por meio de sentenças e
proposições, mas justamente através de sua práxis e de seu método, o diálogo. Através
do diálogo, Sócrates examinava muito mais a quem falava do que o conteúdo do seu
dizer. Tudo o que o diálogo envolve vê-se refletido na filosofia socrática – como se verá,
uma filosofia de vida.
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Conferir nota anterior.
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Como se disse, através da dialética socrática - que é o método do diálogo, de
perguntas e respostas – Sócrates analisa não simplesmente a doutrina do interlocutor e
sua opinião, mas também e principalmente a sua pessoa, o seu caráter. Ou seja, se essa
pessoa vive de acordo com o que diz, com o que acredita, com o que defende. Porém, no
decorrer dos diálogos, os interlocutores costumam se mostrar inconsistentes com o que
defendem ou mostram ainda inconsistências entre os seus próprios dizeres. Sócrates visa
com isso conscientizar o interlocutor de que esse nada sabe, fazendo-o se desfazer de
suas supostas certezas através da inserção da dúvida.
Assim, Sócrates interroga as doxas (opiniões) do interlocutor de tal maneira que, à
medida que o interlocutor vai falando e sendo conduzido pelos dizeres de Sócrates, vêm
à tona contradições internas às próprias doxas deste. Isso vai fazendo com que o
interlocutor vá se conscientizando da sua ignorância sobre o tema discutido, ele que
antes supunha conhecer algo. Assim, o próprio interlocutor, ao apresentar contradições
em suas falas e não conseguir manter e argumentar em prol de sua doxa, refuta-se. Essa
refutação de uma tese do interlocutor através da inconsistência desta com outras crenças
dele próprio costuma gerar vergonha e raiva nele próprio – isso é o chamado elenchus
socrático.6 Vale observar que
(...) Sócrates, apesar de disseminar aporia por todos os lados, é um homem
constantemente inserido na vida social. (...) o indivíduo não precisa estar forado-mundo para transformar-se interiormente, muito pelo contrário, o cuidado
de si perde a sua eficácia social quando se dá em casos isolados. Não adianta
apenas um indivíduo tornar-se melhor, pois participar da vida social é uma
aspiração para que as coisas mudem, e a melhor maneira de resistir ao que
está errado é estando próximo do erro. (PEREIRA, s/d: 9)
Isso leva à famosa maiêutica, que é o nome dado à prática socrática de não ensinar
nada, apenas conduzir o interlocutor a se questionar e, assim, a pensar por si mesmo e
acerca de si mesmo: repensar, perceber as contradições de seu discurso, as discordâncias
entre seu discurso e seus atos. Todo esse método do diálogo e do elenchus, ressalta-se,
relaciona-se totalmente com as teses socráticas acerca do conhecimento/sabedoria e da
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6
Para o leitor que tiver interesse recomenda-se o artigo O Elenchus socrático, de Charles M. Young,
presente no livro Platão, de Hugh Benson.
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virtude. Para ele, a verdadeira sabedoria é excelência, é virtude. Ser virtuoso é saber
fazer bem, é ter conhecimento acerca do agir bem, de onde advém o pensamento
socrático de que só se erra ou se faz o mal por ignorância, por se achar ser o bem algo
que não o é. Nesse contexto, Sócrates alega que a suposta sabedoria humana tem muito
pouco valor, fornecendo com isso a concepção de que sabedoria verdadeira apenas os
deuses têm, e os homens nada sabem dessa sabedoria que apenas os deuses têm.
É esse sentido de sabedoria/conhecimento que se deve ter em mente quando
Sócrates alega que nada sabe – a ironia socrática7; ele é o “mais sábio dos homens”,
como teria dito o oráculo de Delfos, justamente por ter consciência do pouco valor que
tem aquilo que o homem pode conhecer e de que a verdadeira sabedoria é divina,
inacessível
aos
homens.
8
É
tendo
em
mente
também
esse
sentido
de
sabedoria/conhecimento que se deve compreender a crítica socrática aos sofistas e à
compreensão desses de que sabedoria/conhecimento pode ser ensinada(o), como se fosse
um conteúdo que pode ser dado e aprendido. É justamente por essa concepção de
sabedoria também que Sócrates é quem interroga, e não quem responde a questões –
como se disse, a sabedoria é inacessível ao homem e não pode ser ensinada; tudo que se
pode fazer é viver buscando-a, portanto, buscando a virtude.
O que Sócrates realmente analisa, portanto, é se o seu interlocutor realmente é
virtuoso como diz ser, ou seja, se tem a sabedoria/conhecimento que diz ter. Quer dizer,
como o interlocutor alega ter conhecimento – ou seja, virtude – Sócrates analisa o
interlocutor para que este “perceba” as inconsistências daquilo que ele pensa ser
sabedoria, de modo a tomar consciência de si e de sua ignorância e, assim, continuar em
busca da sabedoria, portanto, da virtude. O que está em questão é mais aquele que fala
do que aquilo que ele fala.
A prática do diálogo já é totalmente um reflexo da filosofia socrática, como se
viu. O próprio Sócrates não escreveu teorias filosóficas e o que se afirma sobre a sua
filosofia, portanto, é com base em suas fontes, que relatam justamente a sua práxis e o
seu método de filosofar, que é o diálogo. Mas observações sobre suas ações podem ser
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Para o leitor que tiver interesse recomenda-se o artigo A ignorância socrática, de Gareth B. Matthews,
presente no livro Platão, de Hugh Benson.
8
Conferir Apologia de Sócrates, Platão. É cabível a observação de que Xenofonte também escreveu uma
Apologia de Sócrates, texto que se tem preservado.
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feitas esclarecendo mais ainda a concordância que há entre a vida e a filosofia de
Sócrates, uma determinando a outra.
Por exemplo, Sócrates, acerca da sabedoria, através das fontes que se tem, parece
compreendê-la como não podendo ser ensinada, não se resumindo a proposições e
assertivas sobre temas, o que o faz criticar os sofistas; e ele de fato não ensina
conteúdos, não profere sentenças, nem recebe nada por seus diálogos. É descrito por
todas as suas fontes como alguém que vive com o mínimo possível em sentido material
e que vive nas ruas e no mercado conversando com todos que com ele quiserem
conversar .Nem mesmo no seu julgamento Sócrates deixou de seguir a sua doutrina
filosófica: não apelou a discursos piegas implorando que não o condenassem, mantevese comprometido em sua busca pela virtude e pela sabedoria. E como, inclusive, só com
a morte poderia talvez alcançar a verdadeira sabedoria, não a temeu, não havendo
motivos para interpretá-la como algo ruim. Nem quando teve opção de fugir, não o fez,
sempre em busca da virtude.9 Como se vê, não é á toa que Sócrates influenciou tantos
quanto influenciou: ele viveu a sua filosofia como ninguém.
Sócrates inspirou, ao mesmo tempo, Antístenes – o fundador da escola cínica,
que preconizava a tensão e a austeridade e deveria influenciar profundamente
o estoicismo – e Aristipo – fundador da escola de Cirene, para quem a arte de
viver consistia em tirar o melhor partido possível das situações que se
apresentavam concretamente, que não desdenhava o repouso e o prazer e
deveria, também, exercer influência considerável sobre o epicurismo –; mas
ele inspirou igualmente Euclides – fundador da escola de Megara, célebre por
sua dialética. (...) Em todo caso, um ponto parece comum a todas essas
escolas: com elas aparece o conceito, a ideia de filosofia, concebida, nós o
veremos, como um discurso vinculado a um modo de vida e como um modo
de vida vinculado a um discurso. (HADOT, 2014: 49).
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Para o leitor que queira se informar melhor, indica-se os diálogos platônicos Apologia de Sócrates para
conferir o discurso de defesa de Sócrates e a sua narração sobre o que teria sido dito pelo Oráculo de
Delfos e a sua investigação sobre; o Críton para conferir sobre a possibilidade de fuga e recusa por
parte de Sócrates; e o Fédon para conferir sobre por quê Sócrates não temia a morte. Ressalta-se, mais
uma vez, que o Sócrates sobre quem se fala nesse trabalho é a figura a qual se tem acesso, e não o
Sócrates histórico.
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As escolas citadas acima exemplificam a influência de Sócrates e os aspectos da
vida de Sócrates mostram a sua clara relação com a sua filosofia. Abaixo se discorre
sobre algumas outras escolas do período helenístico, que exemplificam claramente a
concepção grego antiga de filosofia como modo de vida.
3. As escolas do período Helenístico
O período Helenístico vai desde Alexandre Magno, o Macedônio, até o início do
período da dominação romana, ou seja, desde por volta do século IV a.C. ao fim do
século I a.C. Alexandre, durante o seu governo, estendeu em muito os domínios gregos,
dominando lugares como Egito e até partes da Índia. Com essa extensão territorial,
inicia-se uma grande troca tanto comercial quanto cultural. Nesse contexto, houve
muitas diferentes escolas e correntes filosóficas:
No começo do período helenístico, assiste-se a uma extraordinária
proliferação de escolas, na esteira do movimento sofístico e da experiência
socrática. Todavia, a partir do século III a.C., uma espécie de seleção se
efetua. Em Atenas, subsistem apenas as escolas cujos fundadores se
preocuparam em dar instituições bem organizadas: a escola de Platão, a de
Aristóteles e Teofrasto, a de Epicuro, a de Zenão e Crisipo. Ao lado dessas
quatro escolas, existem também dois movimentos que são, sobretudo,
tradições espirituais: o ceticismo e o cinismo. (HADOT, 2012: 18)
Em relação a todas essas escolas é preciso ter em mente que “Nenhuma
obrigação universitária orienta o futuro filósofo para esta ou aquela escola, mas é em
função do modo de vida que nela se pratica que o futuro filósofo passa a assistir a aulas
na instituição escolar (skholê) de sua escolha” (HADOT, 2014: 148). Assim, primeiro o
indivíduo escolhe o seu modo de vida e só depois estuda as doutrinas da escola cujo
modo de vida tiver sido escolhido. Aliás, em todas elas havia o costume de se viver
próximos uns dos outros e de se realizar juntos refeições. Portanto, havia hábitos
comuns e convivência. A filosofia não se faz isoladamente, mas em convívio. Em todas
as escolas são os seus métodos e exercícios espirituais que educam o caráter e
personalidade daqueles que delas participam; com isso,
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(...) em todas as escolas serão praticados exercícios destinados a assegurar o
progresso espiritual na direção do estado ideal da sabedoria, exercícios da
razão que serão para a alma análogos ao treinamento de um atleta ou às
práticas de um tratamento médico. De maneira geral, eles consistem,
sobretudo, no controle de si e na meditação. (HADOT, 2012: 23 e 24)
Portanto, é muito mais a concepção que cada escola tem de como viver e como
alcançar a virtude/sabedoria e a prática dessa concepção que as define, e não possíveis
doutrinas e teses. Estas têm o objetivo de explicar e fundamentar o modo de vida – como
se disse acima, primeiro se escolhe o modo de vida e depois se estuda as teses que a
explicam e justificam. Esses métodos e exercícios espirituais têm, portanto, um objetivo
prático: o de transformar aquele que participa da escola, transformar o seu modo de ser e
de viver, conduzindo-o à sabedoria.
Todas as escolas helenísticas parecem, com efeito, defini-la [a sabedoria]
quase nos mesmos termos e, antes de tudo, como um estado de perfeita
tranqüilidade da alma. Nessa perspectiva, a filosofia aparece como uma
terapêutica dos cuidados, das angústias e da miséria humana (...). Quer
reivindiquem ou não a herança socrática, todas as filosofias helenísticas
admitem, com Sócrates, que os homens estão submersos na miséria, na
angústia e no mal, porquanto estão na ignorância: o mal não está nas coisas,
mas nos juízos de valor que os homens atribuem a elas. Trata-se dos homens
cuidarem de mudar seus juízos de valor: todas essas filosofias se querem
terapêuticas. (HADOT, 2014: 154 e 155)
As escolas compreendem a filosofia como modo de vida e, por isto mesmo, seus
integrantes vivem filosoficamente. “Cada escola elaborará então sua representação
racional desse estado de perfeição que deveria ser o do sábio e se dedicará a traçar-lhe o
retrato” (HADOT, 2012: 21). Para todas elas, assim, viver filosoficamente será viver
segundo a concepção que se tiver de sabedoria.
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3.1. A Academia de Platão
Platão nasceu por volta de 427 a.C., em Atenas, e morreu em 347 a.C. Parece ter
fundado a Academia quando tinha cerca de 40 anos. Escreveu diálogos e não textos
diretos expositivos de suas doutrinas. Nesses diálogos Sócrates aparece como
personagem principal. Platão parece reunir características socráticas, como o método do
diálogo, a preocupação com a vida, com o bem e a virtude, e outras do pitagorismo,
como o uso da matemática como método de racionalização. Ele institucionaliza a
concepção de educação de Sócrates na Academia (esse nome se deve ao fato de que as
atividades da escola de Platão se realizavam nos limites do ginásio chamado Academia,
tendo por isto ficado assim conhecida).
A Academia era uma escola aberta a quem dela quisesse participar, havendo
registro, inclusive, de pelo menos duas mulheres que participaram de suas atividades – a
saber, Axioteia e Lasteneia (HADOT, 2014: 96). É um local de livre discussão e
pensamento, em que todos convivem como iguais, pois todos estão ali pelo mesmo
motivo: em busca da virtude e a investigando. Nesse contexto, o diálogo aparece como
principal exercício espiritual: “A dialética platônica não é um exercício puramente
lógico. Ela é, antes de tudo, um exercício espiritual que exige dos interlocutores uma
ascese, uma transformação deles mesmos.” (HADOT, 2014: 99).
O objetivo do diálogo não é simplesmente dois indivíduos discutirem uma tese
disputando uma possível solução para ela, mas sim a sua própria atividade, que permite
que ambos sejam racionais e consigam chegar juntos a um discurso, a um logos comum.
Como diz muito bem Hadot, o objetivo do diálogo é formar e não informar (HADOT,
2014: 113), ou seja, formar um caráter da alma, educar. É por isso que, assim como para
Sócrates, o exercício mesmo do diálogo é mais importante do que os seus resultados de
conteúdo, o que se demonstra, inclusive, pela liberdade de pensamento que havia na
Academia – ou seja, apesar de Platão ter as suas teses filosóficas, ele não é um
dogmático.
Essa ética do diálogo explica a liberdade de pensamento que, pode-se
vislumbrar, reinava na Academia. Espeusipo, Xenócrates, Eudoxo ou
Aristóteles professavam teorias que não estavam totalmente de acordo com as
de Platão, notadamente sobre o tema da doutrina das Ideias, e mesmo da
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definição do bem, pois sabemos que Eudoxo pensava que o bem supremo
fosse o prazer. (HADOT, 2014: 101)
Essa liberdade de pensamento levanta a questão acerca do que unia estes filósofos
então, já que suas doutrinas diferiam bastante. A resposta dessa questão parece ser
justamente a escolha do modo de vida: escolher viver filosoficamente praticando o
diálogo e visando à transformação a qual ele poderia conduzir, mais do que a alguma
doutrina (Ibdem). Outra característica da filosofia e da vida de Platão que é reflexo da
sua filosofia ser um modo de vida é a de que, com a Teoria das Ideias/Formas, Platão
defende o distanciamento do corpo e das coisas do corpo. Essa característica consiste em
priorizar a virtude e não o prazer físico, “em renunciar aos prazeres dos sentidos, em
também observar um regime alimentar” (HADOT, 2014: 104), em ser cada vez mais
senhor de si.10 A relação da filosofia e vida de Platão com Eros – o amor, o desejo do
que é belo – é outro aspecto relevante. O homem deseja/ama o que é belo e, no caso de
Platão, esse amor pelo que é belo se eleva do amor pelo que é belo fisicamente ao que é
belo intelectualmente.11 Assim, a busca pela virtude e a sua investigação é também
busca e investigação do belo, que é amado.
Assim, a escola de Platão, a sua filosofia verdadeira, é muito mais uma escolha
de vida do que as suas teses.12 A essência da sua filosofia é essa escolha de viver
filosoficamente, em busca da virtude, que é o objeto amado, de desejo, o que há de mais
belo, por isso mesmo buscado. O diálogo é um exercício espiritual porque transforma
aquele que o pratica, o educa, o forma, independentemente das conclusões a que se
chegar, caso se chegue a alguma. O que mais importa é esse modo de viver e não as
doutrinas, o que se vê pela própria diversidade de teses dos próprios participantes da
Academia.
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10
Essa é uma característica da filosofia e da vida de Platão, não necessariamente, como já se viu, da
filosofia e da vida de todos os membros da Academia.
11
Conferir os diálogos platônicos O Banquete e Fedro.
12
Não se deve ler erroneamente essa assertiva e pensar que se está aqui a diminuir o valor das teses
platônicas. Apenas o foco aqui é pensar o quanto a filosofia de Platão – assim como dos demais casos
apresentados – se relaciona com o seu modo de viver, tendo as suas teses muito valor, mas não sendo
aqui desenvolvidas por não serem objeto do trabalho.
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3.2. O Epicurismo
Epicuro nasceu por volta de 341 ou 342 a.C. e viveu até 270 ou 271 a.C., não se
sabe com certeza. Por volta de 306 a.C. ele fundou uma escola em Atenas, conhecida
como o Jardim de Epicuro, onde os seus seguidores podiam viver juntos e em comunhão
com a natureza.
Epicuro, diferentemente de Platão, não defendia um distanciamento do corpo, não
defendia que se deve suportar todas as necessidades físicas, como a fome, a sede e o
frio, vivendo com o mínimo possível. Pelo contrário, ele defendia que as necessidades
do corpo devem ser supridas e não reprimidas, que o sofrimento do corpo deve ser
eliminado. Com isso o prazer se torna possível. Mas a concepção de prazer aqui é
bastante específica: não é o mero prazer dos sentidos e do corpo. Este prazer do corpo só
existe à medida que lhe falta algo, assim, o suprimento do que falta causa prazer – um
falso prazer. É por isso que Epicuro defende que não se deixe o corpo sofrer, suprindo
sempre as suas necessidades, pois só assim se pode ter acesso ao verdadeiro prazer, que
é o puro prazer de existir. Nesse contexto,
(...) o papel da filosofia consistirá em saber procurar o prazer de maneira
racional, isto é, em procurar o único prazer verdadeiro, o puro prazer de
existir, pois toda a infelicidade, toda a pena dos homens provém de que eles
ignoram o verdadeiro prazer. Procurando o prazer, são incapazes de atingi-lo,
pois não conseguem se satisfazer com o que têm, ou porque procuram o que
está fora de seu alcance, ou porque arruínam o prazer pensando o tempo
inteiro que hão de perdê-lo. (...) A missão de Epicuro será, antes de tudo,
terapêutica: será necessário curar a doença da alma e ensinar o homem a viver
o prazer. (HADOT, 2014:171)
Assim, Epicuro distingue os prazeres falsos e temporários e o prazer verdadeiro e
estável, sendo os primeiros os prazeres que se tem com o desejo de poder, com a cobiça,
com o comer muito, por exemplo, pois esses são prazeres intermináveis, sem fim. O
verdadeiro prazer é o da existência. É à medida que se tem esse prazer da existência,
com a própria existência, que se tem prazer também em, por exemplo, contemplar e
estudar a natureza – ou seja, a physis. É à medida que esse estudo permite que se
conheça e se contemple a existência tanto dos seres sublunares como dos seres vivos,
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mesmo quando aparentemente sem beleza e importância, que este conhecimento é
importante para Epicuro. Essas investigações são importantes para se compreender as
causas das coisas e, assim, deixar-se de temer a morte e os deuses. Essa física13 – estudo
da physis – conduz, assim, à paz da alma, sendo relevante para o epicurismo apenas
nessa medida.
Portanto, como se vê, enquanto para Sócrates a sabedoria era inacessível ao
homem e para Platão a sabedoria, a virtude, era acessível ao homem apenas em poucos
momentos, sendo necessário para isso que se passasse a vida sempre a se afastar das
coisas do corpo e a se exercitar racionalmente através do diálogo e da matemática para
que um dia – provavelmente quando da morte do corpo – se pudesse ter acesso ao
mundo das Ideias e, assim, à verdadeira sabedoria,14 de acordo com a sua concepção,
aqui a sabedoria parece ser possível, sendo essa tranquilidade da alma, esse prazer em
existir. Assim como para Sócrates e para Platão, há exercícios espirituais que se deve
praticar visando à sabedoria.
No epicurismo o principal desses exercícios parece ser a ascese dos desejos, que é
aprender a se contentar com o que se tem, com o que supre as necessidades, não
desejando o que é supérfluo nem o que é difícil. Ou seja, “contentar-se com comidas
simples, roupas simples, renunciar às riquezas, às honras, aos cargos públicos, viver
retirado” (HADOT, 2014: 182). Viver retirado não significa viver sozinho, mas sim
viver retirado da cidade corrompida por todos esses falsos prazeres. A amizade e o
convívio, como na Academia de Platão, são importantes aqui: “Mestres e discípulos
devem ajudar-se mutuamente para alcançar a cura de suas almas.” (FESTUGIÉRE apud
HADOT, 2014: 183), através do exame de consciência, da confissão e da correção
fraterna. O mestre não deve ter receio em repreender e corrigir e o discípulo não deve ter
receio em reconhecer suas faltas e confessá-las.
Vale dizer que, segundo Hadot, a dialética não tinha nenhuma função na escola
epicurista. O seu método era dedutivo, ou seja, deduziam consequências de princípios.
Outro importante exercício espiritual que aparece nessa escola é a memorização e leitura
dos resumos da doutrina de Epicuro. A memorização e leitura podem ser consideradas
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13
O termo ‘física’ se refere ao estudo da physis (natureza), não se devendo confundi-lo com a ciência
Física como se tem hoje. Esse termo é empregado pelo próprio Pierre Hadot, por isso é mantido aqui.
14
Conferir o diálogo platônico Fédon.
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exercícios espirituais porque, como já se disse, o indivíduo epicurista primeiro escolhe
esse modo de vida e depois sim é que aprende a sua doutrina, aos poucos – ou seja, esses
exercícios de memorização e leitura visam transformar o indivíduo de acordo com o
modo de viver que ele já escolheu para si. Assim, essas práticas, junto com a meditação
também, são exercícios espirituais, pois visam à modificação do indivíduo. São elas que
dão base às doutrinas epicuristas, sendo o epicurismo, por isso mesmo, muito mais do
que uma filosofia teórica, uma filosofia como modo de vida.
3.3. O Estoicismo
O estoicismo é a escola de Zenão de Cítion,15 fundada no final do século IV a.C.,
cujo principal discípulo é Crisipo, mestre dos demais seguidores da escola. A escolha do
que deve conduzir a vida na escola estoica é a mesma de Sócrates: a exigência e busca
pelo bem, pela virtude, que transcende o indivíduo. Os estoicos, porém, diferem-se do
platonismo porque, para eles, o bem é acessível a todos.
Para o estoicismo os limites do bem e do mal são os limites do que depende do
indivíduo para se realizar, de maneira que o bem e o mal se restringem ao âmbito moral,
o único no qual o individuo tem liberdade. Eles acreditam no destino, que determina as
coisas serem como são e graças ao qual não se tem liberdade acerca de coisas como ser
rico ou pobre, ter boa saúde ou não, ser belo ou feio, ter sorte na vida ou não. Essas
coisas dependem de fatores externos ao indivíduo, de modo que não se tem liberdade de
escolha sobre elas e, por isso mesmo, não são nem boas nem más. Assim, a única coisa
sobre o que se tem controle é a vontade de fazer o bem, a única coisa sobre o que se
pode decidir é fazer o bem e, nesse contexto, o grande valor estoico é a coerência
consigo mesmo. Segundo Hadot, Zenão definia a escolha de vida estoica da seguinte
maneira: “Viver de maneira coerente, isto é, segundo uma regra de vida una e
harmoniosa, pois aqueles que vivem na incoerência são infelizes” (HADOT, 2014: 189).
A física,16 a lógica e a ética são as três partes do discurso filosófico do estoicismo.
A física, aqui, como no epicurismo, tem finalidade ética, justamente por mostrar que há
coisas – quase todas – que não dependem do indivíduo, sobre as quais não se tem
controle, cujas causas são externas ao indivíduo. E também por mostrar que todas essas
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
15
Deve-se tomar cuidado para não se confundir Zenão de Cítion com Zenão de Eléia, discípulo de
Parmênides.
16
Conferir nota 14.
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coisas têm uma coerência interna, assim como o homem deve ter. Com isso, a
racionalidade da natureza é a base da racionalidade humana: viver de acordo com a
razão é viver de acordo com a natureza, com a physis. Mas se é deste modo pode-se
ainda questionar como a escolha é possível de alguma maneira, ao que se diz:
É que a forma da razão própria ao homem não é a razão substancial,
formadora, imediatamente imanente às coisas, que é a Razão universal, mas
uma razão discursiva que, nos juízos, nos discursos que enuncia sobre a
realidade, tem o poder de dar um sentido aos acontecimentos que o destino
lhe impõe e às ações que ela produz. É nesse universo de sentido que se
situam tanto as paixões humanas como a moralidade. (HADOT, 2014: 193)
Como se vê, aqui, mais uma vez, o que perturba a alma não são as coisas elas
mesmas, os acontecimentos eles mesmos, mas sim os juízos que se faz deles, os sentidos
que se dão a eles. Os estoicos diferem representações compreensivas objetivas de
representações discursivas e subjetivas. As primeiras independem da vontade humana e
se caracterizam por serem sinais do objeto que marcam a sensação do indivíduo; as
segundas são as que dependem da vontade humana e se caracterizam por descreverem a
sensação e o indivíduo pode assentir ou não com essa descrição – são nessas e apenas
nessas que se insere o âmbito da escolha, da liberdade e, portanto, do erro.
Nesse contexto, por exemplo, uma tempestade de trovões e raios não é nem boa
nem má: o indivíduo é que dá a ela o sentido de ser má e, com isso, atemoriza-se e
desespera-se. O estoico, diferentemente, não dá nenhum sentido à tempestade, visto que
não é algo que depende dele, mas apenas a aceita. Similarmente, o mesmo pode ser dito
em relação à saúde ou doença, pobreza ou riqueza, sorte ou azar, prazer ou dor – não são
nem bons nem maus. É o juízo que se faz dessas coisas – o qual um estoico não fará,
pois para ele só há bem e mal morais – que faz com que essas coisas perturbem a alma.
Essas coisas que independem do indivíduo devem ser indiferentes ao homem, segundo o
estoicismo.
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A perspectiva aqui não é a dos homens, mas a da natureza. A única coisa que não é
indiferente é a intenção moral. Se só o que não é indiferente é a ação moral, questionase, como o estoico se orienta na vida? A resposta para isso é a sua teoria dos “deveres”
ou das “ações apropriadas”, que permite ao indivíduo encontrar onde exercitar o bem,
sendo guiado por um código de conduta prática. Hadot explica muito bem isso:
Para fundar essa teoria dos “deveres”, os estoicos retornaram à sua intuição
fundamental, a do acordo instintivo e original do ser vivo consigo mesmo, que
exprime a vontade profunda da natureza. Os seres vivos têm uma propensão
original a conservar-se e a repelir o que ameaça sua integridade. Com a
aparição da razão no homem, um instinto natural tornar-se-á coisa refletida e
raciocinada: o amor pela vida, por exemplo, o amor pelas crianças, o amor
pelos concidadãos, fundado no instinto de sociabilidade. Casar-se, ter uma
atividade política, servir à pátria, todas essas ações serão apropriadas à
natureza humana e terão valor. O que caracteriza a “ação apropriada” é que
em parte ela depende de nós, pois supõe uma intenção moral, e em parte não
depende, pois seu êxito depende não só de nossa vontade, mas dos outros
homens ou das circunstâncias, dos acontecimentos, do destino enfim. Essa
teoria dos deveres ou ações apropriadas permite ao filósofo orientar-se na
incerteza da vida cotidiana, ao propor escolhas razoáveis, que nossa razão
pode aprovar sem jamais ter a certeza de fazer o bem. O que conta, com
efeito, não é o resultado, sempre incerto, não é a eficácia, mas a intenção de
fazer bem. O estoico age sempre “sob reserva”, ao dizer a si mesmo: “Eu
quero fazer isto se o destino o permitir”. Se o destino não o permite, buscará o
êxito de outra maneira ou aceitará o destino, “querendo o que acontece”.
(HADOT, 2014: 197 e 198)
Como se vê, os estoicos encontraram uma maneira bastante razoável de explicar e
justificar o seu modo de vida. Eles agem a serviço da comunidade humana, sendo o
próprio bem também o bem dos outros, diferentemente dos epicuristas que se retiram
totalmente das coisas da vida cotidiana comum. Por fim, como se pôde observar acima,
os estoicos propõem um modo de vida coerente com a sua teoria filosófica, sendo uma
fundamentada na outra.
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Considerações finais
A filosofia na Grécia Antiga, como se pode ver, era muito mais do que o discurso
filosófico, sendo antes um modo de vida. Assim, é muito mais prática do que teórica.
Cada escola tem a sua escolha de vida, a sua doutrina, e o seu discurso filosófico visa
explicar, justificar e estimular essa escolha e doutrina, sendo posterior a ela. De qualquer
modo, pode-se dizer, apesar das diferenças entre as escolas a respeito disso, que ambos –
prática filosófica e discurso filosófico - constituem a filosofia e ambos fundamentam um
ao outro. Como diz Hadot...
Os estoicos distinguiam a filosofia, isto é, a prática vivida das virtudes – que
era para eles a lógica, a física e a ética –, do “discurso segundo a filosofia”,
isto é, o ensino teórico da filosofia, dividido em teoria da física, teoria da
lógica e teoria da ética. Essa distinção, que tem um sentido muito preciso no
sistema estoico, pode ser utilizada de maneira mais geral para descrever o
fenômeno da “filosofia” na Antiguidade. Reconhecemos, ao longo de nosso
estudo, de um lado, a existência de uma vida filosófica, mais precisamente de
um modo de vida que se pode caracterizar como filosófico e se opõe
radicalmente ao modo de vida dos não filósofos e, de outro, a existência de
um discurso filosófico que justifica, motiva e influencia essa escolha de vida.
(HADOT, 2014: 249).
O discurso filosófico não é suficiente para expressar a vida filosófica, o que não
significa que sejam separáveis um do outro. O discurso filosófico e a vida filosófica,
afinal, só são assim chamados – ‘filosófico’ e ‘filosófica’ – por se relacionarem com a
filosofia. Como diz Hadot, de modo muito interessante, não se deve confundir a filosofia
com a filologia, o amor pela palavra (philologia) (HADOT, 2014: 252). Em geral as
escolas buscam uma ascese do Espírito, uma elevação, cada uma ao seu modo;
compreendem que esse é o modo do espírito alcançar a sabedoria. Correndo o risco de
citar demais Hadot, finaliza o presente trabalho mais uma citação sua, por se considerar
ótima à explicação do que se quer:
Quase todas as escolas propõem exercícios de ascese (a palavra grega askésis
significa precisamente “exercício”) e de domínio de si: há a ascese platônica,
que consiste em renunciar aos prazeres dos sentidos e em praticar um regime
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alimentar,
em
certas
circunstâncias
chegando,
sob
influência
do
neopitagorismo, até a abstinência da carne de animais, ascese destinada a
enfraquecer o corpo pelos jejuns e pelas vigílias, para melhor viver a vida do
espírito; (...) há a dos epicuristas, que limitam seus desejos para chegar ao
prazer puro; há a dos estoicos, retificando seus juízos sobre os objetos e
reconhecendo que não se deve prender-se às coisas indiferentes. (...) Ele [o
espírito] se eleva, com isso, de um ponto de vista injusto e parcial a uma
perspectiva universal, seja ela da natureza ou do espírito. (HADOT, 2014: 273
e 274)
Por fim, a filosofia como modo de vida visa uma elevação do espírito, pois só
assim ele pode, talvez, chegar à sabedoria. Todas parecem concordar acerca disso,
distinguindo-se apenas em relação aos modos como realizar isso, como se viu acima.
Bibliografia
ALMEIDA, FÁBIO FERREIRA DE. Pierre Hadot e os exercícios espirituais: a
filosofia entre a ação e o discurso in Revista de Filosofia Aurora, v. 23, n. 32, pp. 99111. Curitiba: PUCPR, 2011.
BARNES, JONATHAN. Aristóteles. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela
Gonçalves. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
BENSON, HUGH H. e colaboradores. Platão. Tradução de Marco Zingano. Porto
Alegre: Artmed, 2011.
HADOT, PIERRE. Elogio da Filosofia Antiga. Tradução Flávio Fontenelle Loque e
Loraine Oliveira. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
HADOT, PIERRE. O que é a filosofia antiga? Tradução Dion Davi Macedo. 6ª ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2014.
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LAÊRTIOS, DIÔGENES. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego,
introdução e notas de Mário da Gama Kury. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1977.
PEREIRA, BIANCA CRISTINA VIERA. Exercícios Espirituais: Pierre Hadot,
Michel Foucault e a filosofia como modo de vida. s/d. Disponível em:
http://antropologia.com.br/arti/colab/a11-bpereira.pdf
PLATÃO. Apologia de Sócrates precedido de Êutifron (Sobre a piedade) e seguido
de Críton (Sobre o dever). Introdução, tradução do grego e notas de André Malta.
Porto Alegre: L&PM, 2013.
PLATÃO. Banquete, O. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA.
2011.
PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA. 2011.
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PLATÃO. Teeteto. Tradução de Adriana Freire Nogueira e Marcelo Boeri. 3ª ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian. 2005.
STONE, I. F. O Julgamento de Sócrates. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
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A RETÓRICA PSICAGÓGICA NO DIÁLOGO FEDRO
Michelle Belatto
Graduanda em filosofia na UFSC
Resumo: A retórica ganha uma nova abordagem no Fedro, de Platão. Ela passa a ser
entendida como psicagogia: a condução da alma por palavras, efetivadas num percurso
dialético. A retórica como psicagogia pode ser constatada em todo o Fedro, pois, o
Diálogo movimenta-se de uma demonstração da pseudorretórica a uma revelação da
verdadeira retórica. Neste artigo, temos a finalidade de indicar uma relação entre retórica,
psicagogia e dialética, uma vez que os três fundamentos permeiam o Diálogo como um
todo.
Palavras-chave: Retórica. Dialética. Psicagogia.
Abstract: The rhetoric receives a new account in Plato’s Phaedrus. It turns to be
understood as psychagogy, the conduction of the soul through words, actualized in a
dialectical path. The rhetoric as psychagogy can be found in throughout the Phaedrus,
because the dialogue moves from a demonstration of the pseudo-rhetoric to a revelation
of true rhetoric. In this paper, we indicate a relation between rhetoric, psychagogy and
dialectic, since the three arts permeate the dialogue as a whole.
Keywords: Rhetoric. Dialectic. Psychagogy.
Introdução
Além de ser a arte da palavra, a retórica recebe uma nova abordagem no Fedro, de
Platão. Ela passa a ser compreendida como psicagogia: a condução da alma por palavras
(PLATÃO, Fedro, 2009, 261a-b), edificadas num caminho dialético. Em seu artigo
“Psicagogia no Fedro de Platão”, Elizabeth Asmis sugere que este é o tema subjacente,
o qual conecta todo o Diálogo. Ao ponderarmos que é uma constituição com suas partes
vinculadas, notamos que o processo de psicagogia, pelo qual Sócrates conduz a alma do
menino Fedro à verdade, passa por vários estágios, segundo divide Asmis: a celebração
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do discurso de Lísias; a exposição de Sócrates para rivalizar com o texto do orador; a
oposição que o filósofo faz a seu próprio discurso com uma retratação mítica e o
ensinamento a Fedro, por um exame dialético, do que exemplifica a retórica verdadeira
(ASMIS, 1986, p. 57). Enfatizando a conexão entre esses fragmentos, temos o objetivo
de mostrar uma relação entre retórica, psicagogia e dialética, uma vez que os três
fundamentos permeiam o Diálogo como um todo.
Percebemos que a presença do movimento psicagógico pode ser constatada no
Fedro, integralmente, e não apenas na parte seguinte aos três discursos sobre o amor – o
que podemos pensar, a princípio, já que lá estão as duas únicas referências ao vocábulo
“psicagogia” feitas na totalidade do Diálogo – notando que há duas alusões, se levarmos
em conta as duas aparições do termo em grego (psycagogía). Senão, há somente uma,
pois a segunda aparece traduzida não por “psicagogia”, mas por seu significado:
“condução da alma” (PLATÃO, Fedro, 2009, 271c).
Da mesma maneira que Sócrates se direciona da noção de uma retórica
fraudulenta à verdadeira retórica, na discussão dialética posterior aos discursos, o
Diálogo se movimenta de uma demonstração da pseudo retórica a uma revelação da
“genuína” retórica. De acordo com Asmis, isso é uma transição da psicagogia como
ilusão à psicagogia como guia da alma. Por esse prosseguimento, Sócrates pode ser
considerado um verdadeiro retórico e um verdadeiro psicagogo, que conduz almas à
verdade (ASMIS, 1986, p. 57).
A Celebração do Discurso de Lísias
No começo do Diálogo, observamos Fedro encantado com um discurso de Lísias,
no qual o orador tenta seduzi-lo. O encantamento do garoto é tamanho, que passa a
manhã inteira memorizando o texto. Sócrates é quem transmite essas informações
quando Fedro o convida para uma caminhada fora da cidade. O filósofo pede ao jovem
que recite o discurso e ele diz que não pode fazer, de memória, justiça à composição
feita, num longo período de estudo, pelo mais hábil dos escritores. Sócrates exclama:
“Se eu não conheço Fedro, então, perdi também a consciência de mim próprio!”
(PLATÃO, Fedro, 2009, 228a). Ele está convicto de que, primeiramente, Fedro escutou
o discurso várias vezes e, não satisfeito, pegou o manuscrito emprestado para examinálo e, em seguida, treinar declamando-o além dos muros da cidade (Ibid, 227a-228d).
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Sócrates conhece bem Fedro: sabe que o garoto alegrar-se-ia ao vê-lo, já que os
dois são fascinados por ouvir discursos, e incitá-lo-ia a acompanhá-lo no passeio.
Instigado a falar por um apaixonado por ouvir discursos, far-se-ia de difícil, como se não
fosse isso que desejasse. Em último caso, estaria disposto a fazer o proferimento à força,
se ninguém o quisesse escutar de livre vontade. Fedro persiste dizendo que é incapaz de
pronunciar o discurso de cor, mas que consegue enumerar seus principais argumentos. O
menino quer alguém para testar sua habilidade oratória, porém, Sócrates percebe que ele
tem algo escondido debaixo do manto. Desconfia de que é o próprio discurso e lhe pede
que retire de cima deste a veste que o recobre, impedindo-o de vê-lo. Assim, Sócrates
acaba com a esperança que Fedro alimenta de exercitar sua oratória às custas dele (Ibid,
228c-e).
Devemos apreender que o conhecimento da alma, à qual se deseja falar, é um prérequisito do verdadeiro orador. Sócrates entende que, para não violentar a liberdade de
conhecer de Fedro, é preciso partir do entusiasmo do garoto pelo discurso de Lísias. A
fim de não perdê-lo, o filósofo entusiasma-se com ele, situando-se na sua condição, pois
assim pode conduzir melhor sua alma. A medida socrática é aceitar a abordagem do
interlocutor, tornando-a seu ponto de partida.
Sócrates e Fedro caminham pelo campo, parecendo num cortejo báquico, em
que os dois celebrantes conduzem um ao outro, cada um a sua vez. A alternância dos
condutores insinua um trajeto dialético rumo à verdade, já que a dialética precisa dos
dois participantes a fim de chegar ao que se presta: a investigação do verdadeiro.
Primeiramente, Sócrates sugere que saiam da estrada e andem pela beira do rio à procura
de um lugar agradável e solitário. Enquanto procuram, Fedro lembra-se história de
Orítia17 (filha do rei de Atenas, Erecteu) raptada por Bórias (o vento norte) (Ibid, 229ae). Assim como Bóreas raptou Orítia para junto dele, Sócrates e Fedro também parecem
raptados por um poder sobrenatural. Essa impressão é reforçada quando o lugar que
Fedro escolhe confirma-se como sendo de um arvoredo consagrado a uma ninfa e a um
rio (ASMIS, 1986, p. 158).
Com o objetivo de alcançar o arvoredo, eles precisam cruzar o rio. Esse rio serve
de limite entre a cidade e o campo, como o corpo de água fora do Hades, que separa as
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
1. O laço amoroso que unia Bóreas à Orítia o fez raptá-la e levá-la para junto dele. Na ocasião em que foi
raptada, Orítia brincava nas margens do rio com a ninfa Farmaceia. Orítia foi jogada ao abismo contra
rochas e morreu. A lenda de seu rapto por Bóreas nasceu das circunstâncias de sua morte (PLATÃO,
Fedro, 2009, 229a-e).
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almas dos vivos das almas dos mortos. É como se suas almas fossem transportadas a um
reino do qual eles normalmente são excluídos: esse local é um despertar à filosofia. (Ibid,
p. 59).
Chegando ao lugar pretendido, Sócrates comemora o arvoredo com uma
descrição liricamente detalhada. Diz a Fedro que não pode haver melhor guia para
conduzi-lo, no seu caso, como um estrangeiro que não sai da cidade, a um território
estranho: o campo. Fedro reconhece que Sócrates se comporta, realmente, como um
estrangeiro que é conduzido. A justificativa de Sócrates é de que o garoto descobriu uma
droga com a qual pode levá-lo aonde ele queira, ao balançar discursos à sua frente, como
quem oferece frutas a um animal faminto (PLATÃO, Fedro, 2009, 230a-d). Esse
suposto cortejo báquico é uma psicagogia: as almas dos dois são evocadas a um
território estrangeiro, por um poder semelhante ao das palavras (ASMIS, 1986, p. 58).
Fedro age como líder nessa jornada. Maravilhado pelo discurso de Lísias, ele
seduz Sócrates a um lugar de estranhamento. No entanto, agir como líder não significa
que lidera de fato. Guiado por um comando divino, é Sócrates quem leva Fedro a um
lugar de purificação, pois deve libertá-lo do encantamento maligno ocasionado pelo
escrito do famoso orador: o estrangeiro conhece o território melhor que seu guia.
O garoto lê, para Sócrates, o escrito de Lísias, o qual defende que o amado deve
ceder ao amante não apaixonado, em vez de ao amante apaixonado. O filósofo diz
sentir-se atordoado com a leitura e atribui tal estado a Fedro, convencido de que o
menino entende aquelas coisas melhor que ele. Fedro questiona a atribuição de Sócrates,
desconfiado de que seu amigo não fala sério. Pergunta ao filósofo se ele acha que algum
outro grego é capaz de proclamar um discurso mais elevado, pois acredita que Lísias
esgota o assunto em seu texto e que ninguém está apto a fazer um discurso melhor.
Indignado, Sócrates responde perguntando se deve louvar o manuscrito por seu autor
escrever aquilo de que tem obrigação. Ele sensibiliza-se com a retórica de Lísias, fora
isso, parece-lhe que o escritor usa várias vezes os mesmos argumentos, feito um jovem
que deseja causar boa impressão, mas não tem mais nada a declarar sobre o tema ou,
simplesmente, não quer aprofundá-lo (PLATÃO, Fedro, 2009, 231a-235b).
Entretanto, Fedro está certo de que o discurso é perfeito e de que ninguém
consegue pronunciar outro melhor. Sócrates discorda argumentando que, se concordasse,
seria refutado por antigos sábios que falaram ou escreveram sobre o assunto.
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Paralelamente às ideias expostas por Fedro, diz que pode citar outras nem um pouco
inferiores, apesar de não as ter descoberto por si mesmo, uma vez que é consciente de
sua ignorância. Fedro aceita o esquecimento de Sócrates a respeito de suas fontes,
contanto que o filósofo cumpra sua promessa: dizer de maneira diferente argumentos
mais belos e nada inferiores aos contidos no escrito de Lísias, preservando a tese de que
o amante apaixonado encontra-se mais doente que aquele que não ama. (Ibid, 235b-d).
O Discurso Rival
Sócrates entra no jogo proposto por Fedro, porque sabe que não pode derrotar o
discurso de Lísias em abstrato. Ele assume o papel de amante do jovem a fim de
desfazer sua admiração por Lísias, posicionando-se como orador rival do escritor. Sua
estratégia é competir com Fedro, reivindicando que antigos sábios trataram mais
amplamente do mesmo tema abordado por Lísias e que pode fazer melhor que o autor de
renome. O filósofo é cauteloso em conferir sua própria invenção a alguma fonte que não
tem condições de nomear no momento. Não nos interessa, aqui, discutir qual seria a
fonte do primeiro discurso socrático. Interessa-nos o movimento psicagógico, o qual
Sócrates promove com esse discurso, livrando Fedro do encantamento por Lísias,
oferecendo-lhe as primeiras direções para conduzi-lo à verdadeira filosofia, mesmo que
discorde do tipo de retórica que usa: uma retórica fundada na opinião e não na verdade.
Os retóricos, de modo geral, utilizam artifícios baseados na opinião da maioria, pois
acreditam ser esta a maneira mais fácil de chegarem a seu objetivo de convencer o
auditório, por estarem mais preocupados com a satisfação de seus próprios interesses
que com um compromisso com aquilo que é verdadeiro.
Ao esconder o discurso de Lísias, Fedro protesta que não pode recitá-lo. Os papeis
se revertem e Sócrates toma o lugar do entusiasta estudante de retórica: depois de se
vangloriar de sua capacidade discursiva, ele reluta, dizendo que só está provocando
Fedro e que não sabe pronunciar um discurso mais refinado que o de Lísias. Por sua vez,
Fedro usa as mesmas palavras de seu amigo: “Se eu não conheço Sócrates, então, perdi
também a consciência de mim mesmo” (Ibid, 236c). Ele acusa Sócrates de se fazer de
tímido e avisa que não sairá de onde estão sem que o filósofo fale o que guarda no peito
nem que tenha que dizê-lo à força (Ibid, 236b-d).
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Sócrates faz seu pronunciamento com o rosto velado de vergonha, pois suas
palavras são ofensas ao Amor. De início, avisa que o discurso é direcionado a um
menino muito belo por um de seus muitos amantes, que finge não estar apaixonado por
ele (Ibid, 237a-b). Com essa estratégia, ele se preserva da acusação de enganar seu
ouvinte, diferentemente de Lísias, que faz do engano instrumento retórico. Sócrates
denuncia a retórica como ilusão – um tipo de psicagogia incorreta - na discussão
dialética, posterior a seu segundo discurso, ao alegar que alguns retóricos acatam que
não há necessidade de conhecer a verdade, uma vez que argumentos a partir da
verossimilhança são mais convincentes ao auditório (Ibid, 272c-273e).
O filósofo evoca o jovem no começo do discurso, dizendo que a respeito de
qualquer assunto, há apenas um ponto de partida a quem deseja julgá-lo de modo
adequado: conhecer o objeto sobre o qual se quer deliberar, a fim de não falhar
totalmente em sua deliberação. Explica que Fedro e ele devem entrar em acordo sobre a
natureza do amor, para decidirem se é melhor ceder a quem ama ou a quem não ama.
Propõe que reflitam sobre dois princípios existentes nos seres humanos, que os guiam
para onde vão: um – inato – residente no desejo dos prazeres; outro – adquirido –
encontrado na reflexão. Quando a reflexão, por meio da razão, predomina, são tomados
pela temperança; quando o desejo é mais forte, recebe o nome de desregramento (Ibid,
237b-238a)
Os argumentos do primeiro discurso são fundamentados numa definição de amor
como desejo irracional pela fruição da beleza corporal (Ibid, 238a-b). Em seu segundo
discurso, Sócrates mostra que a definição dada no primeiro é enganosa, já que discorre
sobre um tipo perverso de amor, oposto ao verdadeiro, conforme faz Lísias. Os
proferimentos são um exercício retórico-dialético-psicagógico, que levam Fedro da
falsidade à verdade. Sócrates age como legítimo orador, ajustando suas palavras à alma
do ouvinte. Impressiona Fedro construindo um discurso que é, na superfície, tão
enganoso quanto o de Lísias, mas construído para ser verdadeiro, pois funciona como
ponto de partida a fim de encaminhar o menino à verdade. O filósofo interrompe,
bruscamente, seu discurso e explica a Fedro que se continuar, as ninfas as quais o garoto
o lançou, o possuirão de fato. Diz que atravessará o rio para o caminho de volta, antes
que Fedro o force a algo mais grave. Mas o garoto não o deixa partir, pois estão no calor
do meio-dia e é preciso esperarem refrescar para poderem ir embora (Ibid, 241e-242a).
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Então, Sócrates fala a Fedro da admiração que sente por ele: compreende que,
dos discursos surgidos na vida do adolescente, a maioria nasce por causa dele – Fedro –
pronunciados por ele mesmo ou obrigando outros a fazê-lo, certo de que o menino é o
motivo do proferimento que entoará a seguir. Prevenido por sua voz divina de que não
deve cruzar o rio, sem antes se purificar, Sócrates se conscientiza de que precisa de uma
retratação da falta que cometeu contra a divindade. Enquanto declamava seu primeiro
discurso, ele sentiu um receio que atribuiu ao poder mântico da alma, o qual prenunciava
seu pecado contra o Amor. Tanto o manuscrito que Fedro trouxe, quanto o discurso que
Sócrates recitou, envenenado pelo garoto, difamaram o deus (Ibid, 242a-e).
A Retratação Mítica
Sócrates convence Fedro da imprudência que cometeram e, feito isso, está pronto
a proclamar, com a cabeça desvelada, o elogio ao Amor. Desse modo, livrar-se-á da
vergonha que sente por caluniar a divindade (Ibid, 243b-d). O novo discurso não apenas
subverte, mas também, complementa o anterior, oferecendo um louvor ao amante
verdadeiro para equilibrar a condenação do amante pervertido. A retratação revela o
amor da alma e da verdade, oposto ao falso amor dirigido ao corpo do outro. Os
discursos socráticos formam uma continuidade, na qual o primeiro é um fragmento
completado e ao qual é dado um novo sentido pelo segundo (ASMIS, 1986, p. 64).
Ao censurar alguns erros dos dois primeiros discursos, que ele e Lísias cometeram,
Sócrates antecede sua fala de elogio ao amor com uma pergunta: “Onde está o jovem a
quem eu me dirigia? Que ele escute também este discurso e se não apresse, por o não ter
ouvido, a conceder os favores a alguém que não ama”. “Está junto de ti: muito perto,
mesmo, sempre a teu lado, logo que tu o desejes”, Fedro responde (PLATÃO, Fedro,
2009, 243e). Esse detalhe nos chama atenção, porque explicita a quem o
pronunciamento se direciona, ao contrário do de Lísias, que não se endereça a ninguém
especificamente.
O filósofo enfatiza que seu primeiro proferimento pertence a Fedro e o seguinte é
de Estesícoro, pois, a quem peca, em matéria de mitologia, há uma purificação da qual o
poeta tem consciência. Estesícoro é um poeta que fica cego, como castigo por caluniar
Helena de Troia. Ele compreende que a causa da cegueira é a calúnia e escreve uma
retratação – palinódia - que lhe traz a visão de volta. Sabendo disso, Sócrates precisa
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retratar-se da ofensa cometida contra Eros antes que seja castigado, operando um novo
discurso que modifique o sentido dado ao amor, desvinculando-o da doença entendida
como loucura. Se ela é compreendida como a origem dos males que atingem o amado,
no discurso de Lísias e em seu primeiro, a partir do Elogio ao Amor, ela passa a
conectar-se à manifestação do divino no âmbito humano (Ibid, 242a-243e).
Primeiramente, Sócrates discorre sobre as loucuras divinas, a erótica entre elas,
explicando a Fedro que não devem temê-las, já que o amor é um dom divino que os faz
preferir o amante apaixonado àquele detentor do autodomínio (Ibid, 244a-245b). Em
seguida, para ajustar o conteúdo à alma de Fedro e reconduzi-la da falsidade à verdade,
usa um mito como estratégia retórico-psicagógica. Esse ajuste é confirmado ao fim do
discurso, quando Sócrates se dirige ao deus Amor, dizendo que foi proferido com um
certo tom poético, ao qual Fedro o forçou (Ibid, 257a).
No mito, o amor estabelece uma relação entre mundos opostos, visto que o Eros
filosófico consiste no movimento que liga a vida à morte, a morte à imortalidade. Como
a alma humana, da qual é função própria, o amor une a natureza sensível à intelectual,
sendo um meio de adquirir e de comunicar o conhecimento. Com isso, notamos que a
eficácia do método filosófico depende de sua relação fundamental com o delírio
amoroso. O princípio do método é ter o Eros como esforço de ultrapassar o múltiplo em
direção ao uno, num exercício dialético, por meio da reminiscência: atividade
característica da alma que lhe permite lembrar-se do que presenciou no Inteligível, por
meio de um objeto sensível que lhe sirva de imagem (Ibid, 249b-c).
Nesse elogio do amor, que também é um elogio do amor à sabedoria, Sócrates
mostra a verdadeira relação retórico-dialético-psicagógica e faz da psicagogia o assunto
de sua retratação. Ele guia a alma de Fedro à anterior condição divina e, assim, encontra
sua própria alma no deslocamento reminiscente que a beleza do menino lhe provoca. O
filósofo tem o mesmo objetivo como retórico e como amante: conduzir a alma de Fedro
à verdade, tornando a retórica e o amor um só (ASMIS, 1986, p. 64).
Ao término de sua palinódia, Sócrates leva Fedro a uma nova retórica que
repudia as dos proferimentos anteriores. O garoto deve abandonar sua retórica e devotarse à filosofia inspirada pelo amor. Mas, conforme diz na própria retratação, o amado não
compreende, de imediato, o sentimento, o qual o toma (PLATÃO, Fedro, 2009, 255d). O
filósofo precisa desenvolver a nova retórica, com uma discussão dialética posterior a seu
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discurso, para que Fedro entenda as implicações do novo amor. O mito é um passo à
compreensão, que necessita da completude de um exame dialético, a fim de ser parte da
busca filosófica.
A busca dialética pela verdade
A psicagogia errada
Para Asmis, a retórica de Lísias é um tipo errado de psicagogia. Por que o
discurso do renomado orador seria um jeito incorreto de guiar a alma? Iniciemos a
explicação no ponto, logo depois da inspirada retratação socrática, em que o manuscrito
de Lísias já não possui mais elevação para Fedro. Ele lembra que Lísias foi insultado de
logógrafo por um político que reprovou seus escritos, justamente por considerá-los
desprovidos de louvor. O garoto acredita que, por amor próprio, o orador não escreveria
outro discurso contra Sócrates e ele, pensando que os mais influentes da cidade não se
dedicam a escrever por temerem ser confundidos com sofistas pelas gerações futuras
(PLATÃO, Fedro, 2009, 257c-d).
Sócrates se opõe, afirmando que os políticos mais vaidosos gostam tanto de
escrever que, quando algum de seus escritos é admirado por alguém, eles fazem questão
de acrescentar no começo do texto o nome de seus aduladores e retiram-se alegres do
auditório, se tiverem sua proposta aceita. No entanto, se for rejeitada, privando-os da
dignidade de escrever, ficam a lamentar-se junto a seus amigos (Ibid, 257d-258a).
A atitude de Lísias se assemelha à de tais políticos, pois, assim como eles parecem
mais preocupados em agradar ao público que com o conteúdo o qual transmitem, o
orador está mais atento ao efeito que seu pronunciamento pode causar em Fedro, que à
construção acerca do amor propriamente dita, já que sua intenção é ser amado pelo
menino. Empenhados em persuadir os ouvintes, Lísias e, ao que nos parece, os políticos
da época deixam de lado a verdade do assunto de que pretendem tratar, usando artifícios
retóricos para realizarem sua apresentação.
Sócrates pergunta a Fedro se há necessidade de se estabelecer uma relação entre o
conhecimento da verdade do tema a ser exposto e um bom discurso. A resposta do
garoto representa o senso comum daquele tempo: a multidão julga o discurso e, para ela,
basta que este tenha a aparência de belo e bom, sem ser preciso de que seja verdadeiro a
fim de convencer quem quer que seja. Mediante a resposta de Fedro, Sócrates questiona
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a capacidade de julgamento da multidão e usa um exemplo de um discurso que procura
vender um asno como se fosse um cavalo, supondo que nem ele nem Fedro soubessem,
realmente, o que seria um cavalo (Ibid, 259e-260c).
O modelo serve de pano de fundo para ilustrar o que ocorre nas cidades onde a
população não distingue o bem do mal quando um orador, que também não os diferencia,
tenta convencê-la, exaltando o mal como sendo o bem (Ibid, 260c). Nos tribunais, por
exemplo, a verdade nada interessa, pois o persuasivo está no provável: na opinião da
maioria. Devem-se preferir as verossimilhanças aos fatos sucedidos se estes parecerem
improváveis, sendo que a probabilidade abre caminho à arte – dizem os que se
consideram peritos na oratória (Ibid, 272d-273a). Ao agirem de tal maneira:
negligenciando a verdade, desonram a arte da palavra. E a arte da palavra diz-lhes:
Ó homens estranhos, porque dizeis tais absurdos?! Ora eu não obrigo
ninguém que desconheça a verdade a aprender a falar; mas se o meu conselho
tem algum valor, então devem pegar em mim só depois de adquirir aquela. No
entanto, proclamo solenemente que quem conhecer a realidade, mas não
dispuser do meu auxílio, não irá muito longe na arte de persuadir (Ibid, 260d).
A verdadeira psicagogia
Em prelúdio à primeira aparição do termo psycagogia no Diálogo, Sócrates evoca
certas criaturas nobres – argumentos - para persuadirem Fedro de que, a não ser que
filosofe adequadamente, nunca será um falante apropriado sobre coisa alguma. Na sua
referência a Fedro, o filósofo evidencia que a discussão a seguir, conforme os dois
discursos precedentes, direciona-se diretamente ao menino. Pergunta a Fedro se não é
verdade que a arte da palavra é uma espécie de psicagogia: uma arte de conduzir as
almas por meio de palavras, tanto nas cortes jurídicas e em outros eventos públicos,
quanto em encontros privados, voltando-se às grandes questões, sem esquecer-se das
pequenas (Ibid, 261a-b).
No entanto, não é isso que Fedro ouviu falar: mas que é sobretudo nos processos
judiciais e na assembleia popular que se escreve e fala com arte. Então, Sócrates o
conduz por meio de um jogo dialético, no qual os papeis de interrogante e interrogado
invertem-se. O filósofo lhe explica que, com técnicas retóricas, os oradores fazem a
mesma coisa parecer, às mesmas pessoas, ora justa, ora injusta; umas vezes boa, outras,
o oposto – algo que se constata não apenas nos eventos públicos, mas em todo o gênero
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oratório. Assim, a arte da psicagogia leva a alma à ilusão, que acontece por conta da
semelhança entre um discurso verdadeiro e um que se baseia numa opinião, numa crença,
ou no que satisfaz o auditório. Além disso, é mais fácil enganar e deixar enganar-se a
respeito de algo sobre o que se entra em desacordo com os outros e, até, consigo mesmo,
como a justiça, o bem e o amor (PLATÃO, Fedro, 2009, 261c-262a).
Por esse motivo, Sócrates ressalta que apenas quem conhece, realmente, a verdade
pode falar melhor a respeito das semelhanças e das diferenças das coisas sem, com isso,
iludir e permitir iludir-se. Ao passo que quem a ignora, na tentativa de dizer com o que
algo se parece, pode acabar por convencer o auditório da falsidade que profere e, mais
ainda: convencer a si próprio. Conhecendo a verdade sobre o que pretende discorrer, o
autor do discurso se resguarda de não compreender, ilusoriamente, a realidade bem
como, a partir desta, pode persuadir seu ouvinte de modo mais efetivo. Dessa maneira,
Sócrates evidencia que a persuasão pretendida pela retórica não deve estar desvinculada
da verdade, transformando a compreensão que Fedro tinha de tal prática (Ibid, 261c262c).
Sócrates e Fedro passam à análise dos três discursos proferidos, que lidam com
questões íntimas da relação entre amante e amado, a fim de examinar se são, ou não,
dotados de arte – lembrando que o amor participa dos assuntos de ordem privada. Em
primeiro lugar, Sócrates ensina a Fedro que quem deseja seguir a arte retórica,
inicialmente, deve fazer a distinção entre dois caminhos: aquele em que a opinião da
multidão é flutuante e aquele em que não o é. Depois, deve-se compreender se a matéria
a ser tratada é, ou não, controversa. Exemplo disso é o amor, caso contrário, os dois
discursos socráticos – um expondo suas calamidades e outro, seus benefícios – não
seriam possíveis, entende Fedro (Ibid, 262c-263d).
A concepção que Lísias faz do amor é equivocada, porque desconsidera sua
natureza e seus efeitos. Ele o concebe de acordo com a realidade que quer impor a seu
ouvinte. O orador inicia seu discurso pelo fim, em sentido contrário, dizendo as coisas
que o amante falaria para o amado ao concluí-lo, Sócrates analisa. Os argumentos são
jogados a esmo, sem nexo causal entre eles, podendo ser encaixados em qualquer parte
do texto sem qualquer prejuízo. Mas um discurso deve ser construído como um
organismo vivo: com cabeça, pés, tronco e membros convenientes entre si e com relação
ao todo, sem permitir que suas partes sejam cortadas e coladas em qualquer lugar do seu
corpo (Ibid, 263d-264c).
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Com a finalidade de exemplificar essa construção, Sócrates toma a análise da arte
da eloquência, usando seus dois discursos sobre o amor como loucura: um ressaltando
que o amado deve ceder a quem não o ama e o outro, que deve ceder a quem ama. O
filósofo retoma a concepção das manias divinas, em especial, a erótica. As exposições
socráticas reúnem a loucura a uma ideia comum, criando uma unidade da qual saem
membros duplos: o discurso sobre o amor como loucura humana e o sobre o amor como
loucura divina. Ele faz seu primeiro discurso para competir com o de Lísias, mas confia
a capacidade de compor seu segundo discurso à inspiração amorosa, a qual, conforme
ele acredita, possibilita que seja proferido com alguma verdade (Ibid, 265a-c).
Com isso, numa explicação da dialética, o filósofo diz que se deve aprender como
passar da censura ao louvor num discurso. A unidade é o primeiro aspecto de uma boa
elaboração, pois reduz as várias realidades dispersas a uma ideia única - o que possibilita
uma percepção de conjunto - para que cada tema que se pretenda expor fique evidente
pela definição, propiciando que a exposição seja clara e coerente: é o que faz, bem ou
mal, quando define o amor em seu primeiro discurso. O segundo aspecto é a capacidade
de separar essa ideia comum em partes, conforme suas articulações naturais, sem causar
cortes, aos moldes de um açougueiro inexperiente (Ibid, 265d-e).
Sócrates concentra a ideia geral do amor como loucura e a divide, em sua primeira
fala, numa loucura esquerda, atacando-o, e em sua segunda, numa loucura direita,
proclamando suas graças (Ibid, 266a-b). Conforme a prática retórica que condenam, ele
move-se de uma posição à oposta. Porém, diferentemente dos retóricos que se guiam
pelas conveniências, subvertendo a arte da psicagogia ao engano, o filósofo conduz o
ouvinte da falsidade à verdade: do falso amor fundado no desejo carnal ao verdadeiro
amor inspirado pelo delírio divino, que tem como fonte a alma.
O filósofo se declara apaixonado pelo processo que engloba as divisões e as
sínteses: a arte do pensar e do falar. Chama aqueles capazes de desenvolvê-lo de
“dialéticos”. Fedro reconhece que Lísias e tantos outros oradores não detêm os
conhecimentos, aos quais Sócrates se refere, para conceber um discurso. Entretanto,
insiste que algo sobre a retórica lhes escapa. Então, Sócrates pergunta a Fedro se pode
existir algo belo que, fora da dialética, seja passível de aquisição por meio de uma
técnica ou arte e que devem dizer no que consiste a parte que, porventura, ignoram.
Fedro responde que se trata do conjunto de técnicas retóricas estudadas e registradas nos
livros e nos manuais (Ibid, 266b-d).
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Na época de Platão, já havia uma técnica elaborada de constituição de discursos,
adotada por mestres que procuravam ensiná-la a outros para uso no campo público. De
acordo com essa técnica, o discurso seria composto pelo exórdio (a parte inicial); a
exposição do tema e os testemunhos que lhe diziam respeito; os indícios; as
probabilidades; a prova; a contraprova e, por fim, a peroração (o resumo). Sócrates a
exemplifica com adendos feitos por grandes sofistas da antiguidade, como Tísias e
Górgias, representantes da escola retórica siciliana; Hípias, Trasímaco e Pródico, entre
outros, e com o que cada um contribui à arte da palavra (Ibid, 266d-267e).
Posteriormente, o filósofo propõe que esqueçam as normas e observem o poder da
oratória e quando ele é exercido. Fedro cita as reuniões do povo como o lugar e o
momento em que esse poder se manifesta. Sócrates demonstra a Fedro o quanto os
proferimentos lá realizados não são, necessariamente, bons discursos, apesar da técnica.
Ele menciona arquétipos de ostentadores de conhecimentos preliminares: um na área da
medicina e outro na da composição de tragédias (Ibid, 268-d).
Como verdadeiros médicos tratam alguém que conhece o efeito de alguns
medicamentos e se julga capaz de, com isso, ensinar a medicina, sem saber quantidades,
para quem ou quando medicar? Do mesmo modo, como renomados autores de tragédias
tratam alguém que sabe compor discursos grandes sobre coisas pequenas e discursos
pequenos sobre coisas grandiosas, acreditando ter a capacidade de transmitir a técnica de
composição de tragédias? (Ibid, 268a-d).
O suposto médico é tratado como louco por seus colegas de profissão, enquanto o
suposto autor de tragédias recebe apenas uma leve crítica. Quanto a grandes oradores,
como Péricles, Sócrates pergunta a Fedro se seriam rudes, como os dois, com quem
escreve algumas técnicas e ensina-as como sendo retórica ou diriam que, em vez de
censurar, devem desculpar os que, por desconhecimento da dialética, não estão em
condições de definir a retórica. Por encontrarem, casualmente, uns poucos
conhecimentos, pensam que descobriram a retórica e por transmitirem a outras pessoas
essas mesmas noções, convencem-se de que lhes ensinam a arte da palavra (Ibid, 269ac).
Se tais técnicas das quais falaram não são a verdadeira arte da eloquência e da
persuasão, Fedro deseja saber como transmiti-la. Sócrates lhe explica que a
possibilidade de se tornar um perfeito orador é natural: se estiver na sua natureza, será
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(
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um orador célebre quando adquirir conhecimento e prática, mas se descuidar de algum
desses pontos, será imperfeito (Ibid, 269d). No entanto, como isso efetivar-se-ia?
Sócrates responde a questão, dizendo que a medicina e a retórica compartilham a
mesma maneira de proceder. Em ambas, é necessário dividir a natureza: numa a do
corpo, noutra, a da alma. Se a pretensão é, por um lado, fornecer remédios e alimentos
para a saúde e para a força e, por outro, discursos e estudos prescritos à persuasão
desejada e à virtude, isso não só aconteceria por rotina e experiência, mas por arte.
Ensinar a arte da palavra com rigor requer mostrar, com exatidão, a natureza do objeto
ao qual se fala: a alma (Ibid, 270b-e).
O conhecimento exato da alma possibilita ordenar os tipos de discursos e de almas,
bem como todas as causas que as afetem. Além disso, esse conhecimento possibilita,
também, a adaptação de cada discurso à alma correspondente e o ensino dos motivos
pelos quais umas almas se deixam persuadir por certos discursos e outras não. Daí a
possibilidade de algumas almas, sob a ação de determinados discursos, tornarem-se
obedientes a certas convicções e outras, com natureza diferente, não se deixarem
persuadir pelas mesmas razões (Ibid, 271b-d).
Com isso em mente, Sócrates adverte Fedro de que os autores da arte retórica,
sobre os quais o menino ouviu falar, são astutos e, apesar de possuírem um
conhecimento perfeito do que respeita à alma, dissimulam-no. Sabendo desse
encobrimento, os dois – Sócrates e Fedro – não se devem iludir de que tais retóricos
falam e escrevem com arte, pois a função do discurso é psycagogia (Ibid, 271c-d) – esta
é a segunda e última vez que o termo aparece no Diálogo. Entendemos, assim, que falar
e escrever com arte só será possível se a alma do ouvinte ou leitor for conduzida à
verdade – o que não fazem os autores criticados na discussão, ao mascararem o
conhecimento sobre as almas.
Quando for capaz de declarar por quais discursos determinada pessoa se deixa
convencer e, diante desta, reconhecê-la; quando adquirir o sentido da oportunidade do
que, em dada altura, deve ser dito ou calado e quando souber usar as técnicas retóricas
de maneira apropriada a cada uma, então, o orador cultiva a arte da palavra com beleza e
perfeição. Se lhe faltar o menor desses requisitos, ao ensinar, discursar ou escrever, por
mais que presuma fazê-lo de acordo com a arte, não terá força persuasiva: não afetará a
alma (Ibid, 271e-272b).
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Percebemos que, se o perfeito orador necessita do conhecimento técnico a fim de
adaptar o discurso a cada alma, a retórica não pode ser interpretada como um aspecto
que mereça ser diminuído ou desprezado. Confirmamos isso na retratação socrática na
qual o filósofo ajusta o conteúdo à alma de Fedro, usando um mito como elemento
retórico de persuasão. Assim, os recursos retóricos devem participar da elaboração de
um discurso, embora precisem estar a serviço da dialética. Acompanhada da linguagem
mítica, a dialética socrática permite ao filósofo construir um discurso como um
organismo vivo, em que a disposição e a ordem de seus elementos são imprescindíveis à
manutenção do sentido do todo, em um local e momento oportunos: o cenário do Fedro.
Constatamos, desse modo, que a arte da palavra aliada à dialética, ao
conhecimento da alma, à qual o proferimento se destina, e à oportunidade de discursar
são os componentes fundamentais à psicagogia. A interdependência desses fundamentos
integra uma relação retórico-dialético-psicagógica que pode ser obtida com muita
aplicação e sensatez, não apenas para falar e conviver com as pessoas, mas,
principalmente para adotar uma conduta e uma linguagem do agrado dos deuses (Ibid,
273e).
Referências
ASMIS, E. “Psychagogia” in Plato’s Phaedrus. Illinois Classical Estudies. Estados
Unidos, v. 11, n. ½, 1986, p. 53-72.
Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/23064075> Acesso em 12 de maio de 2013.
PLATÃO. Fedro. Trad. José Ribeiro Ferreira. 1. Ed. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 135
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DA ANIMALIDADE À HUMANIDADE: ONTOLOGIA NA OBRA
DE MIKHAIL BAKUNIN
Luciana Brito!
Graduanda em Filosofia da UNESP(
(
Resumo: Os questionamentos acerca da origem e ordem do mundo e da razão de ser de
todas as coisas existentes são parte fundamental das elaborações teóricas de um sem
número de pensadores, dentre eles, Mikhail Bakunin. No presente artigo, nos propomos
a fazer um breve resgate dos elementos que fundamentam filosoficamente a teoria desse
importante pensador russo do século XIX, em especial os debates sobre os conceitos
elementares de natureza e sociedade e sua inter-relação, buscando contribuir
minimamente para o resgate e a difusão de sua filosofia materialista. (
Palavras-chave: Bakunin. Materialismo. Naturalismo. Ontologia.(
(
Résumé: Le questions concernant l’origine et l’ordre du monde et de la raison d’être de
toutes les choses existentes est la partie fondamentale des élaborations théoriques d’un
sans nombre de penseurs, parmi lesquels, Mikhail Bakunin. Dans l’article présent, nous
avons l’intention de faire un bref rescousse des élements qui basent la théorie
philosophique de ce important penseur russe du siècle XIX, particulièrement les débats
sur les concepts élémentaires de nature et société et son relation réciproque, en cherchant
contribuer au minimum por le sauvetage et la diffusion de sa philosophie matérialiste.(
Mots-clés: Bakunin. Matérialisme. Naturalisme. Ontologie. (
Introdução
Em 1864, durante sua estadia na Suécia, Bakunin elabora três documentos que
versam sobre as bases teóricas, o modelo organizacional e o programa de uma
organização revolucionária clandestina de caráter internacional. Dentre eles, destaca-se
o Programa de uma sociedade internacional secreta da emancipação da humanidade,
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que delineia os princípios filosóficos e políticos em torno dos quais essa aliança de
revolucionários deveria se orientar. (
Alguns anos mais tarde, Bakunin dirige-se para França – inflamada pela Guerra
Franco-Prussiana e pela insurgência dos trabalhadores - e, em 1871, começa a redação
de um manuscrito intitulado Considerações filosóficas sobre o fantasma divino, o
mundo real e o homem,18 no qual desenvolve de maneira mais aprofundada os debates
filosóficos que já apareciam de maneira germinal em seus escritos anteriores,
sistematizando uma filosofia materialista, crítica à teologia, à especulação metafísica, ao
positivismo e a toda forma de idealismo. (
Esses dois escritos servirão como base de nosso estudo orientado para a
compreensão dos elementos ontológicos presentes na filosofia de Bakunin. Partimos
aqui de uma concepção que entende a ontologia como a teoria da natureza, da realidade
e da existência dos seres.(
O pensador russo é categórico sobre o ponto de partida da investigação filosófica
– para se construir um conhecimento profundo e completo acerca da lógica do mundo e
dos seres é preciso partir de sua existência real, do estudo dos detalhes que os compõem,
dos fatos e fenômenos que fazem parte de sua constituição e das relações de causalidade
que estabelecem. (
O que é a verdade? É a justa apreciação das coisas e dos fatos, de seu
desenvolvimento ou da lógica natural que se manifesta neles. É a
conformidade mais severa possível do movimento do pensamento com
o do mundo real, que é o único objeto do pensamento. Portanto, todas
as vezes que o homem raciocinar sobre as coisas e sobre os fatos sem
se preocupar com suas relações reais e com as condições reais de seu
desenvolvimento e de sua existência; ou então quando construir suas
especulações teóricas sobre coisas que não existiram jamais, sobre
fatos que não puderam ocorrer nunca e que possuem apenas uma
existência imaginária, fictícia, na ignorância e na estupidez histórica
das gerações passadas, será derrotado necessariamente, por poderoso
pensador que seja. (BAKUNIN, 2014, p.363-364)(
(
Nesse sentido, qualquer forma de especulação sobre uma causa primeira, a
autoridade divina, a imortalidade da alma, o dualismo metafísico das substâncias, ou
qualquer hipótese de caráter idealista e misantropo19 deve ser extirpada do seio da
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
18
Trata-se de um apêndice à obra Império Knuto-germânico e a revolução social, do mesmo ano. O
manuscrito foi interrompido, deixando inconclusa sua quinta parte, “Filosofia, ciência”.
19
“Pois o cristianismo, como eu acabo de provar, é a negação absoluta e sistemática da moralidade, da
dignidade, da caridade, dos direitos e dos deveres do homem. [...] quem fala sobre religião, fala sobre
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(
filosofia, sob o risco de condená-la a um trabalho inócuo. As únicas questões que devem
ser realmente adotadas e estudadas pelo homem são aquelas que dizem respeito ao nosso
mundo, as questões humanas e terrestres, que se apresentam à nossa razão sob a forma
de infinitude - não no sentido da abstração religiosa, onisciente, onipresente e
onipotente, mas como uma imensidão infinita de detalhes que nenhuma filosofia e
nenhuma ciência jamais poderão esgotar. (
A discussão a respeito da ordem do mundo e da existência dos seres é de
fundamental importância para o estudo da filosofia de Bakunin, pois nos revela duas
características fundamentais de sua teoria e de seu método: a totalidade e o naturalismo.(
(
1. A natureza, causalidade universal
Referir-se à filosofia de Bakunin classificando sua ontologia como naturalista
significa reconhecer que a base principal sobre a qual se assenta o desenvolvimento
dessas elaborações filosóficas é, justamente, o conceito de natureza. (
Bakunin trabalha esse conceito de modo amplo, conferindo-lhe um caráter
totalizante, pois assume a natureza como sinônimo de totalidade das coisas, fatos e
fenômenos existentes. A natureza seria então o imenso conjunto das transformações
reais das coisas que se produzem e reproduzem incessantemente em seu seio. Trata-se de
assumir a existência de um complexo emaranhado de inter-relações entre todos os
elementos do real, constituído por todas as ações e reações produzidas continuamente
por todas as coisas, combinadas em um movimento geral, de caráter único. O motor
desse movimento é a transformação, de modo que os processos perpétuos de
transformação de cada coisa agem sobre todo o resto, incidindo sobre a totalidade e,
simultaneamente, sendo influenciados por sua reação. Dessa forma, a totalidade das
coisas existentes é efeito da ação simultânea de uma infinidade de causas particulares e
das transformações incessantes de todas as coisas que existem. O universo se produz no
movimento de incidência de múltiplas causas, umas sobre as outras, pois esse
movimento determina a configuração física, química, geográfica e mecânica do planeta,
toda a existência biológica – a vida vegetal e animal - e todo o mundo humano.(
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empobrecimento da terra para o céu – e quem transporta a realização dos destinos humanos para o céu,
condena necessariamente a terra e, com ela, o homem vivo e real, à degradação, à miséria e à
escravidão.” (BAKUNIN, 2014, p.83)
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(
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(
Todas as coisas finitas são causadas por algo além de si mesmas, de modo que a
natureza, ao mesmo tempo causa e efeito, é a própria causalidade universal. Essa
concepção de natureza refuta por completo a argumentação cosmológica, pois não dá
lugar à possibilidade de existência de uma causa sem causas. (
É claro que a solidariedade universal, explicada desse modo, não pode
ter o caráter de uma causa absoluta e primeira; não é, ao contrário,
mais que um efeito, produzido e reproduzido sempre pela ação
simultânea de uma infinidade de causas particulares, cujo conjunto
constitui precisamente a causalidade universal, a unidade composta,
sempre reproduzida pelo conjunto indefinido das transformações
incessantes de todas as coisas que existem e, ao mesmo tempo,
criadora de todas as coisas; cada ponto atuando sobre o todo (eis aí o
universo produzido), e o todo atuando sobre cada parte (eis aí o
universo produtor ou criador). (BAKUNIN, 2014, p.340)(
(
É possível observar a existência de certa ordem na natureza, verificável a partir
da repetição constante dos mesmos fenômenos sob as mesmas circunstâncias – ou ainda,
a reprodução constante dos mesmos fatos pelos mesmos procedimentos - e, quando sob
a influência de novas circunstâncias, esses mesmos fenômenos se modificam de maneira
também
regular. Daí apreende-se a existência de leis naturais: leis que regem a
existência de todas as coisas, inerentes a elas, determinando seus modos particulares de
transformação e ação. Certas leis são inerentes à matéria, de modo que todas as coisas
materiais - ou seja, que possuem existência real -, por infinitamente diversas que sejam,
estão sujeitas ao governo dessas leis, como as leis do equilíbrio, da gravidade, do calor,
da composição e decomposição dos corpos, entre outras. Além destas, existem leis que
são próprias apenas a certos tipos de fenômenos, formadas entre sistemas e grupos
particulares, como as leis da organização vegetal, que diferem das leis da organização
animal, que também diferem das leis do desenvolvimento social do homem. A lei
suprema da natureza é o conjunto de todas as leis particulares.(
É essa mesma causalidade universal, inconsciente, fatal e cega, é esse
conjunto de leis mecânicas, físicas, químicas, orgânicas, animais e
sociais, o que impulsiona todos os animais, inclusive o homem, à ação,
e é este o verdadeiro, o único criador do mundo animal e humano.
Aparecendo em todos os seres orgânicos e vivos como um conjunto de
faculdades ou de propriedades, das quais umas são inerentes a todos e
outras somente próprias a espécies, a famílias ou a classes particulares,
ela [a causalidade] constitui, de fato, a lei fundamental da vida e
imprime em cada animal, inclusive o homem, essa tendência fatal a
realizar por si mesmo todas as condições vitais de sua própria espécie,
quer dizer, a satisfazer todas as suas necessidades. (BAKUNIN, 2014,
p.371)(
(
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(
A razão humana é capaz de entender os fatos e fenômenos da natureza por via da
constatação empírica de sua existência, de suas propriedades, de suas relações e ações
que exercem sobre outros elementos reais, ou seja, o homem é capaz de conhecer
realmente um fenômeno ou fato natural constatando as diversas fases de seu
desenvolvimento,
ou
seja,
reconhecendo
sua
lei
natural.
Anteriormente
ao
desenvolvimento da humanidade existiam somente fatos naturais e processos regulares,
o que significa dizer que é o próprio pensamento humano que confere aos processos
naturais a forma de leis. Sobre isso, é importante ressaltar que a subjetividade humana
organiza a forma desses processos, mas não os estabelece, visto que sua origem está na
própria materialidade, de modo que não se pode conferir às leis naturais uma existência
própria que esteja além da existência dos seres reais, afinal “elas mesmas não constituem
nenhum ser imaterial ou à parte, sendo eternamente aderentes às transformações da
matéria inorgânica, orgânica e animal, ou melhor, não sendo elas nada além destas
transformações regulares do ser único, da matéria” (BAKUNIN, 2014, p.378). (
A natureza particular de uma coisa não pode ser reconhecida apenas pela soma
das causas que a produziram, pois também é preciso observar suas diferentes
manifestações e ações que exerce pra além de si. Tudo o que existe, só existe no
movimento de ação e reação incessante sobre outras coisas do mundo real, ou seja, as
propriedades de um elemento da natureza, seu movimento e o seu fazer são
determinantes fundamentais de seu ser. A ação seria, então, a categoria ontológica
fundamental para Bakunin:
Tudo o que chamamos de propriedades das coisas: propriedades mecânicas,
físicas, químicas, orgânicas, animais, humanas, não são nada além de diferentes
modos de ação. Toda coisa é uma coisa determinada ou real apenas pelas
propriedades que ela possui; e ela as possui apenas enquanto as manifesta, já
que as propriedades determinam as suas relações com o mundo exterior; disto
resulta que toda coisa só é real enquanto se manifesta, enquanto age. A soma
das suas ações diferentes, eis aí todo o seu ser. (BAKUNIN, 2014, p.430)(
(
(
(
(
2. Humanidade e animalidade
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(
As leis específicas do desenvolvimento da espécie humana não se encontram em
nenhum outro modo de vida, mas todas as leis do mundo vegetal e animal se encontram,
de algum modo, modificadas e desenvolvidas no mundo humano. (
Particularmente, os animais humanos são os únicos capazes de tomar consciência
das leis que os regem. A constatação dessas leis pelo ser humano é possível através da
observação dos fenômenos, mas a real compreensão destas só é possível a partir da
capacidade de abstração e generalização (processo no qual se distingue o que é acidental
e variável daquilo que é sempre reproduzido). Essa faculdade permite a elevação de um
conjunto de coisas inferior a um conjunto superior, conduzindo à compreensão da
hierarquia natural dos seres e fenômenos, cuja orientação vai sempre do simples ao
complexo.(
O impulso de conhecer o mundo é uma necessidade propriamente humana. O
despertar e a capacidade de satisfazer progressivamente a necessidade de saber são
justamente o que distingue o homem das demais espécies animais. O ser humano
necessita conhecer a si, o que só é possível ao conhecer também a natureza exterior, da
qual é produto. O mundo propriamente humano é inaugurado quando o homem,
penetrando com seu pensamento todas as esferas da realidade, compreende e supera a
fatalidade do mundo exterior. (
O mundo exterior, do qual todas as espécies dependem por completo, é um
ambiente sempre hostil. A severidade das condições do ambiente natural impõe a todas
as espécies um estado de constante luta pela sobrevivência, uma luta perpétua pela
preservação da vida. A fatalidade natural que cria todos os seres é também responsável
por sua destruição. A harmonia no mundo natural se estabelece pela luta: triunfo de uns
e derrota e morte de outros, em que os fortes vivem e os fracos sucumbem. Tal é a
condição de todos os seres viventes – uma vida de combates. (
Considerado desse ponto de vista, o mundo natural nos apresenta o
quadro mortífero e sangrento de uma luta encarniçada e perpétua, da
luta pela vida. Não é somente o homem que combate: todos os
animais, todos os seres vivos, digo mais, todas as coisas que existem e
que levam em si o germe de sua própria destruição e, por assim dizer,
seu próprio inimigo, - essa mesma fatalidade natural que os produz, os
conserva e os destrói, ao mesmo tempo, em seu seio -, lutam como ele,
pois toda categoria de coisas, toda espécie vegetal e animal, só vive em
detrimento das demais; uma devora a outra, de modo que, como eu
disse em outro lugar, o mundo natural pode ser considerado como uma
sangrenta hecatombe, como uma tragédia sombria criada pela fome. É
palco constante de uma luta sem quartel. (BAKUNIN, 2014, p.348).
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(
Daí desdobra-se que vida individual e social do homem é a continuação imediata
da vida animal, diferenciada e complexificada pelo pensamento.20 O desenvolvimento da
razão propicia a emergência do homem da condição de animalidade a uma nova
condição, propriamente humana. Nesse sentido, todas as manifestações humanas –
políticas, econômicas, sociais, intelectuais e morais – são, ao mesmo tempo, a
determinação final e a negação da animalidade no homem. (
A faculdade de abstração permite ao homem elevar-se acima das imposições do
mundo exterior, observando, comparando e aos poucos compreendendo as relações entre
os objetos – assim se inicia a ciência experimental. Essa mesma potencialidade permite
que o homem seja também objeto de seu próprio pensamento, comparando, ordenando e
criticando suas próprias necessidades, elevando-se acima das determinações naturais
interiores, como os instintos e apetites, e tornando-se capaz de escolher entre elas
segundo as circunstâncias e os ideais da sociedade. A essa capacidade chamamos
vontade.(
Apesar das imensas diferenças entre o mundo animal e o mundo humano, os
pontos fundamentais da existência dos seres humanos coincidem com os dos outros
animais: nascer, desenvolver-se, trabalhar para viver, preservar sua vida e morrer. Para o
homem, acrescenta-se a faculdade de pensar e conhecer; acrescenta-se a vontade. Para
manter sua existência e desenvolver-se em sua plenitude, o homem, assim como
qualquer outra espécie, realiza trabalho. A fim de garantir sua existência, todos os seres
vivos são forçados a se colocar em movimento, a agir e criar no ambiente as condições
favoráveis a sua sobrevivência. O trabalho é a lei suprema da vida animal. (
Daí também resulta, para o animal, a necessidade de lutar durante toda
a sua vida contra os perigos que o ameaçam de fora; de sustentar sua
existência própria, enquanto indivíduo, e sua existência social,
enquanto espécie, em detrimento de tudo o que o rodeia: coisas, seres
orgânicos e vivos. Daí, para os animais de qualquer espécie, a
necessidade do trabalho. (BAKUNIN, 2014, p.374-375)
(
Todos os seres trabalham e somente por isso vivem. Porém, há uma distinção
enorme entre o trabalho humano e o das demais espécies: o trabalho dos animais não se
desenvolve; não se aperfeiçoa, pois sua inteligência é estacionária, ao contrário da
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
20
A própria razão é também o produto de novas relações causais operantes no nível da matéria orgânica,
especificamente nas estruturas do cérebro humano.
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(
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(
inteligência humana que permite um desenvolvimento perfectível do trabalho, tanto em
seus métodos quanto em seus produtos.
(
Iluminado pela ciência e dirigido pela vontade abstratamente reflexiva do
homem, o trabalho animal, ou essa atividade fatalmente imposta a todos os
seres vivos, como uma condição essencial de sua vida – atividade que tende a
modificar o mundo exterior segundo as necessidades de cada um, e que se
manifesta no homem com a mesma fatalidade que no último animal desta terra , se transforma, não obstante, para a consciência do homem, em um trabalho
inteligente e livre. (BAKUNIN, 2014, p.372)(
(
O trabalho só se torna propriamente humano quando deixa de atender apenas às
necessidades fixas das espécies e passa a atender também às necessidades do indivíduo
pensante, que tende a realizar-se plenamente e conquistar sua liberdade.21 A combinação
da atividade nervosa e do trabalho muscular, através da aplicação do pensamento ao
trabalho, dá origem ao mundo propriamente humano. Nesses termos, o trabalho
inteligente, reflexivo e criador adquire uma dimensão ontológica. (
O ser humano só se torna propriamente humano ao romper com a escravidão do
mundo exterior. A inteligência progressiva da qual o homem é dotado permite a
compreensão das leis que regem o desenvolvimento de todos os fenômenos naturais e, a
partir disso, essas mesmas leis podem ser utilizadas em proveito da realização dos
objetivos humanos. Através da observação e do conhecimento das leis da natureza, ou
seja, através do desenvolvimento da ciência das leis naturais, o homem é capaz de
sujeitá-la. Dotado dessas faculdades particulares, o homem pode, por meio da ciência e
do trabalho, se livrar da dependência quase absoluta do meio externo e, mais ainda,
subjugá-lo, fundando sobre ele sua humanidade e sua liberdade.
(
Último produto da natureza sobre a Terra, o homem continua, por assim dizer,
através de seu desenvolvimento individual e social, a obra, a criação, o
movimento e a vida desta. Seus pensamentos e atos mais inteligentes, mais
abstratos e, enquanto tais, mais afastados daquilo que chamamos comumente de
natureza, não são nada além de criações ou manifestações novas desta. [...]
Porém, ao estudar suas leis, ao se identificar, de certa forma, com estas, ao
transformá-las através de um procedimento psicológico, próprio ao seu cérebro,
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
21
“Os homens começam como os brutos, devoram-se mutuamente. Depois se reconhecem como irmãos,
respeitam-se e se amam em sua mútua liberdade. Esta longa e sucessiva transição da escravidão à
liberdade, à grande, à perfeita, à real liberdade – eis aí todo o sentido da história. Ser livre é o direito, o
dever, toda a dignidade, toda a felicidade, toda a missão do homem.” (BAKUNIN, 2014, p.86)
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em ideias e convicções humanas, ele se emancipa da tripla dominação que lhe
impõem, primeiro, a natureza exterior, [e depois], sua própria natureza
individual interior, e a sociedade da qual é produto. (BAKUNIN, 2014, p.381)(
(
3. A sociedade
Bakunin se contrapõe ferrenhamente às teses inatistas adjacentes a filosofias
racionalistas, como a de Descartes, que entendem que os sujeitos são dotados de dons
divinamente justificáveis, com sua personalidade, crenças, hábitos e condutas formados
já ao nascimento, sem possibilidade de mudança substancial dessa determinação
biológica ou de interferências significativas do meio social. (
Ao contrário, o pensador russo defende que um indivíduo, ao nascer, não possui
sentimentos ou qualidades morais inatas, sendo dotado apenas de faculdades anatômicas
e fisiológicas. Considerando a impossibilidade de que conhecimentos e sentimentos
sejam congênitos, ou seja, inteiramente determinados pelas estruturas orgânicas, a
sociabilidade é identificada como a fonte de transmissão dos valores e das ideias22 que se
estabelecem como hegemônicas e governam um grupo social.
(
As associações de sentimentos e de ideias, cujo desenvolvimento e
cujas transformações sucessivas constituem toda a parte intelectual e
moral da história da humanidade, não determinam, no cérebro humano,
a formação de novos órgãos, correspondentes a cada uma, tomada à
parte, não podem ser transmitidas aos indivíduos por via de herança
fisiológica. O que se herda fisiologicamente é a aptidão cada vez mais
fortificada, ampliada e aperfeiçoada de concebê-las e de criar novas
associações. Mas estas associações e as ideias complexas que as
representam, tais como a ideia de Deus, da pátria, da moral etc., nunca
podendo ser inatas, só são transmitidas aos indivíduos pela via da
tradição social e da educação. (BAKUNIN, 2012, p.87)(
Procuramos provar que os vícios, tanto quanto as qualidades morais,
feitos de consciência individual e social, não podem ser fisicamente
herdadas e nenhuma determinação fisiológica pode condenar o homem
ao mal ou torná-lo irrevogavelmente incapaz do bem; mas não
pensamos de forma alguma em negar que existam naturezas muito
diferentes, dentre as quais umas, mais felizmente dotadas, não sejam
mais capazes de um amplo desenvolvimento humano que as outras.
Pensamos que se exageram muito nos dias de hoje as diferenças
naturais que separam os indivíduos, e que é preciso atribuir a maior
parte das que existem entre eles, não tanto à natureza quanto à
educação diferente que foi dada a cada um. (BAKUNIN, 2012, p.88)(
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22
Chamamos ideias às conclusões originadas a partir da comparação, combinação e memorização de
diversas noções abstratas dos objetos exteriores à consciência, visando à constatação e explicação de
um fato existente.
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(
O meio social produz, no indivíduo humano, uma influência imensamente
poderosa, proporcional àquela produzida pela natureza exterior nos animais de outras
espécies. As ideias e valores sociais penetram de diversas formas a consciência
inicialmente infantil do homem, influenciando-a durante todo seu desenvolvimento.
Começando a vida apenas como um organismo vivo, desprovido de consciência e
completamente determinado por uma infinidade de circunstâncias e condições anteriores
ao seu próprio nascimento, o indivíduo humano possui inicialmente apenas uma maior
ou menor capacidade de assimilar as ideias e sentimentos que lhe serão transmitidos por
herança social e modificados ao longo da vida. Nesse sentido, ao longo do
desenvolvimento de sua consciência e de sua vontade, o homem é formado pelo meio
social através da instrução, da orientação moral, dos exemplos e, da mesma forma, por
tudo aquilo que percebe do mundo exterior, natural e social, de acordo com o que lhe
proporcionam suas condições de vida. (
Podemos afirmar, então, que Bakunin estabelece que a origem da subjetividade
humana seja a combinação das capacidades biológicas de cada indivíduo particular e das
influências do meio social em que este se criou. A sociedade se faz presente dentro e
fora dos indivíduos que a compõe, envolvendo-os e tomando parte na constituição de
seu ser.(
Tomando a educação no sentido mais amplo desta palavra, incluindo
nela não somente a instrução e as lições de moral, mas ainda e
sobretudo os exemplos que dão à criança todas as pessoas que a
cercam, a influência de tudo o que ela entende, do que ela vê, e não
somente a cultura de seu espírito, mas ainda o desenvolvimento de seu
corpo pela alimentação, pela higiene, pelo exercício de seus membros
e de sua força física, diremos com plena certeza de não podermos ser
seriamente contraditados por ninguém; que toda criança, todo adulto,
todo jovem e finalmente todo homem maduro é o puro produto do
mundo que o alimentou e que o educou em seu seio (BAKUNIN,
2012, p.87)
(
Desse modo, pode-se assumir que o indivíduo humano tem sua existência
determinada por dois fatalismos: o fatalismo natural, que impõe condições a partir da
construção orgânica e da herança fisiológica, e o fatalismo social, cujas imposições se
originam da herança social e da organização política, econômica e social de cada povo e
de cada país. Observa-se, então, que a conformação da subjetividade, na teoria de
Bakunin, se dá a partir da associação de fatores biológicos e sociais, ou seja, é resultado
da ação simultânea de diferentes elementos da realidade.(
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(
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(
Os fatores naturais, ou o desenvolvimento da matéria orgânica que culmina na
conformação da estrutura fisiológica propriamente humana, e os fatores sociais, como as
tradições, os valores e as condições econômicas e políticas de um determinado período,
são inter-relacionados para compreender a constituição das individualidades. (
Do mesmo modo que o ser humano considerado individualmente, a associação
humana, na teoria de Bakunin, se semelha a todas as associações animais, sendo um
produto imediato dos desenvolvimentos da natureza, das relações naturais entre seres
humanos. A sociedade é o modo natural de existência da coletividade humana.(
Na contramão das teses contratualistas que atribuem a origem da sociedade
humana a um contrato tácito estabelecido entre indivíduos autônomos, Bakunin defende
que os seres humanos não criam voluntariamente a sociedade, ao contrário, são
involuntariamente produto dela. A humanidade é ontologicamente social. (
As únicas leis que regem desde o início a formação da sociedade são as leis
naturais - inerentes aos corpos orgânicos e sociais e independentes dos indivíduos que
compõem as associações. Isso significa que a sociedade existe antes mesmo do despertar
da razão e da vontade humana, se colocando para os animais humanos como uma
necessidade instintiva, assim como a que impulsiona os animais selvagens, uma lei de
solidariedade natural que orienta as espécies a se agruparem e se conservarem
coletivamente. O instinto de conservação da espécie estabelece a sociabilidade como
condição de sobrevivência da humanidade, como lei que se coloca acima da vontade dos
indivíduos, como determinação da natureza sobre a sociedade. Segundo Bakunin, “o
homem é, instintiva e fatalmente, um ser social” (BAKUNIN, 2014, p.87). (
Desta sociabilidade natural resulta a solidariedade entre os homens, que
possibilita a produção e o desenvolvimento coletivo das ideias e estruturas constituintes
das agrupações sociais. Assim como a partir do movimento natural de desenvolvimento
das estruturas cognitivas do animal humano surge a faculdade formal de conceber
pensamentos, é a partir do desenvolvimento do trabalho coletivo nas diferentes fases do
desenvolvimento histórico da humanidade que se consolida o pensamento coletivo de
uma sociedade.
(
Através da palavra, as ideias elaboradas se fixam no espírito do
homem e se transmitem de uns a outros, de modo que as noções
individuais sobre as coisas, as ideias individuais de cada um, ao se
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(
encontrarem, ao se controlarem e ao se modificarem mutuamente, e
confundindo-se, harmonizando-se em um só sistema, acabam por
formar a consciência comum ou o pensamento coletivo de uma
sociedade de homens mais ou menos extensa, pensamento sempre
modificável e sempre impulsionado para frente pelos trabalhos novos
de cada indivíduo; e, transmitido pela tradição de uma geração a outra,
esse conjunto de imaginações e de pensamentos, enriquecendo-se e
estendendo-se mais e mais pelo trabalho coletivo dos séculos, forma
em cada época da história, em um meio social mais ou menos extenso,
o patrimônio coletivo de todos os indivíduos que compõem esse meio.
(BAKUNIN, 2014, p.353)
(
As ideias e representações consolidadas na consciência coletiva de um grupo
social convertem-se em causas produtivas de novos fatos sociais, capazes de modificar a
vida, os costumes e as instituições estabelecidas, agindo diretamente na origem de todas
as relações sociais. Diante disso, assumindo que a razão e as ideias são traços essenciais
da humanidade nos homens e que as relações sociais experimentadas são fundamentais
para a construção do indivíduo enquanto sujeito ativo da coletividade social, estabelecese que a própria humanidade realiza-se progressivamente no indivíduo humano através
do desenvolvimento coletivo do meio social.(
A sociedade, como produto do mundo natural e, simultaneamente, como
produtora das formas de pensamento e das instituições, é assumida por Bakunin como
categoria fundamental, que cumpre papel central em sua teoria, como base constitutiva
de seu método analítico de caráter materialista. (
(
Considerações Finais: naturalismo e materialismo(
Toda a filosofia idealista parte da concepção de que o pensamento precede a
existência, de modo que a subjetividade é eleita como causa fundante da realidade
objetiva, o que denota que essas correntes filosóficas partem de uma matriz
antropocêntrica e adotam um método especulativo. A filosofia de Bakunin se contrapõe
a essas teses ao compreender que o real, a vida, ou ainda, a natureza precede a
subjetividade humana, estabelecendo a materialidade como ponto de partida de toda
forma de existência. (
Bakunin compreende a existência de uma diretiva geral, uma tendência natural
no desenvolvimento dos fenômenos. Trata-se de um movimento universal que parte do
simples ao complexo, dos detalhes à complexidade, evidenciando uma coerência lógica
intrínseca aos processos da natureza. Com base nesse entendimento, seu método
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(
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(
materialista propõe que a análise da realidade seja feita a partir de uma rigorosa
observação dos elementos e da lógica da causalidade universal. Desse modo, a ação
concreta dos fenômenos e seres naturais seria o ponto de partida para o desenvolvimento
das ideias - que devem, necessariamente, refletir e acompanhar o movimento do real. Os
fatos naturais e sociais precedem sempre, necessariamente, as ideias.(
De acordo com a concepção filosófica de Bakunin, não pode haver nenhuma
causa anterior à existência do mundo natural, pois todas as causas derivam de sua
materialidade. A matéria e a natureza se identificam, de modo que a totalidade do
mundo real pode ser chamada abstratamente de matéria. Cabe salientar que não se trata
aqui de uma concepção limitada de materialidade, que abrange meramente as coisas que
possuem existência concreta, pois, ao contrário, tanto a natureza quanto a materialidade
existem enquanto totalidade de possibilidades, enquanto potencialidade. A matéria não é
apenas o que é, mas também o que pode ser. Partindo dessa compreensão, que
estabelece uma identidade entre a natureza e a matéria, o filósofo Paul McLaughlin
sugere que naturalismo e materialismo, na obra de Bakunin, devam ser considerados
sinônimos (2002, p.106).
(
Eternamente ativa, todo-poderosa, fonte e resultado eterno de tudo que
existe, de tudo o que nasce, age e reage, depois morre em seu seio, esta
universal solidariedade, esta causalidade mútua, este processo eterno
de transformações reais, tanto universais quanto infinitamente
detalhadas, que se produzem no espaço infinito, a natureza criou, entre
uma quantidade infinita de outros mundos, a nossa terra, com toda a
escala de seus seres, desde os mais simples elementos químicos, desde
as primeiras transformações da matéria com todas as suas propriedades
mecânicas e físicas, até o homem. (BAKUNIN, 2014, p.385-386)(
(
Nesses termos, a filosofia de Bakunin se constitui a partir de uma ontologia naturalista e
um método materialista de análise da realidade, dois elementos que se sustentam
mutuamente, se fundem e se identificam no interior de um sistema teórico totalizante uma teoria do desenvolvimento multifocal, uma teoria da ação.(
(
Referências
ABRUNHOSA, Rafael. Da Vontade à Liberdade: Ciência, Trabalho e Educação em
Mikhail Bakunin. Monografia – UFC. Fortaleza, 2013.
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(
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BAKUNIN, Mikhail. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. s.l: s.n., 2012.
Disponível
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<https://uniaoanarquista.files.wordpress.com/2012/09/sc3a9rie_ba-
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______. Programa de uma sociedade internacional secreta da emancipação da
humanidade. In: FERREIRA, Andrey Cordeiro; TONIATTI, Tadeu Bernardes de
Souza (Org.). De baixo para cima e da periferia para o centro: textos políticos,
filosóficos e de teoria sociológica de Mikhail Bakunin. Niterói: Alternativa, 2014. p. 65119.
______. Considerações filosóficas sobre o fantasma divino, o mundo real e o homem.
In: FERREIRA, Andrey Cordeiro; TONIATTI, Tadeu Bernardes de Souza (Org.). De
baixo para cima e da periferia para o centro: textos políticos, filosóficos e de teoria
sociológica de Mikhail Bakunin. Niterói: Alternativa, 2014. pp. 339-446.
FERREIRA, Andrey Cordeiro. Materialismo, Anarquismo e Revolução Social: O
bakuninismo como filosofia e como política do movimento operário e socialista. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27. 2013, Natal. Anais eletrônicos.
Disponível
em:
<http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364431983_ARQUIVO_Materiali
smoeAnarquismo_final.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2015.
MCLAUGLHIN, Paul. Mikahil Bakunin: The philosophical basis of his anarchism.
2002. Disponível em: <http://www.mediafire.com/view/?96x2w85k1fp2kxm>. Acesso
em: 09 mar. 2015.
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(
NIETZSCHE COM FREUD: SOBRE A POSSIBILIDADE OU
IMPOSSIBILIDADE DA AFIRMAÇÃO DO ETERNO RETORNO23
Alexandre Starnino
Graduando em filosofia na UFRJ
Resumo: o tema do eterno retorno de Nietzsche foi associado por algumas
interpretações a um imperativo existencial. No presente artigo, procuramos
problematizar esta interpretação ao estabelecer uma discussão acerca da possibilidade ou
impossibilidade do “sujeito” afirmar o eterno retorno como um imperativo existencial.
Seria um ato da consciência, um esforço da vontade humana, afirmar o eterno retorno de
Nietzsche? Para estabelecer essa discussão e examinar o questionamento que carrega o
titulo deste artigo, traçamos aproximações entre o pensamento de Nietzsche e a
psicanálise de Freud, particularmente naquilo que remete à noção de Psique de ambos os
autores. Apenas abrangendo a compreensão do domínio psicológico avesso à tradição
filosófica anterior a Nietzsche e Freud, ampliando, portanto, o domínio psicológico para
uma unidade onde se é reconhecido o inconsciente, é que podemos estimar o valor do
imperativo existencial. Essa é a hipótese defendida no presente artigo.
Palavras Chaves: Nietzsche, Freud, Eterno Retorno, Psicanálise.
Abstract: Nietzsche’s concept of eternal recurrence has been associated, in some
interpretations, to an existential imperative. In the following paper, our goal is to
problematize this interpretation by building a discussion about the possibility, or the
impossibility, of the “subject”’s affirming of the eternal recurrence as an existencial
imperative. Could it be an act of the conscience, an effort of human will, to affirm
Nietzsche’s eternal recurrence? To better build this discussion and to examine the
question that this paper’s title brings forth, we draw approximations between
Nietzsche’s thought and Freud’s psychoanalysis, particularly in what refers to both
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
23
O presente artigo está vinculado ao projeto de pesquisa que recebeu o apoio da FAPERJ - Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro : Para repensar o desejo: um
diálogo entre filosofia e psicanálise (2014).
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(
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(
authors’ idea of psyche. Only by including the understanding of the psychological
domain contrary to the philosophical tradition prior to Nietzsche and Freud, and by,
therefore, broadening the psychological domain and allowing it to comprehend the
unconscious, can we estimate the value of the existencial imperative. This is the
hypothesis put forth by the following article.
Keywords: Nietzsche. Freud. Eternal recurrence. Psychoanalysis.
Introdução
Seria exagero nosso expor algumas aproximações teóricas entre dois “mestres da
suspeita”, Nietzsche e Freud, em uma pequena comunicação como esta? É possível que
não agradasse nem aos estudiosos do filósofo alemão, tampouco aos estudiosos do
freudismo. O que sabemos é que Nietzsche influenciou profundamente a Psicanálise, e
isso deixou de ser novidade há algum tempo.24 Neste artigo, as aproximações entre a
filosofia de Nietzsche e a psicanálise de Freud são promovidas no intento de discutir o
tema do eterno retorno e a sua relação com o domínio psicológico, vale lembrar,
valorizado por Nietzsche.
Isto posto, convém salientar que o tema do eterno retorno aludido por Nietzsche
não foi interpretado de uma única forma: a temática já recebeu interpretações de ilustres
filósofos como é o caso, por exemplo, das interpretações de Heidegger e Deleuze.25
Entretanto, nossa investigação se concentra nas interpretações que pretenderam
relacionar o eterno retorno a uma espécie de imperativo existencial. Interessa-nos
problematizar e discutir essa interpretação. No trecho do §341 de A Gaia Ciência,
Nietzsche diz:
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
24
O próprio Freud admite a profunda influência de Nietzsche: “[A Psicanálise] recebeu muito
da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto
sua intuição prenuncia as nossas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos
duais da conduta humana e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O
seu Zaratustra diz: ‘A dor Grita: vai! Mas o prazer quer eternidade. Pura, profunda eternidade’".
SOUZA. Sigmund Freud e o Gabinete do Dr. Lacan. p. 126. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
Há importantes obras que abordam a influencia de Nietzsche em Freud, a saber, Freud e Nietzsche:
Semelhanças e Dessemelhanças. São Paulo: Brasiliense, 1991; e também a recente obra de Reinhard
Gasser, que ainda não foi traduzida para o português: Nietzsche und Freud. Walter de Gruyter.
Berlin/New York: 1997.
25
Para ver as respectivas interpretações do eterno retorno de Nietzsche, consultar: Deleuze, G. Nietzsche.
Lisboa: Edições 70; HEIDEGGER, Nietzsche – Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2014.
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E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária
solidão e te dissesse: Esta vida, assim como tu a vives e como a viveste, terás
de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de
novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar. (..) Se esse
pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e
talvez te triturasse; a pergunta diante de tudo e de cada coisa: Quero isto ainda
uma vez e ainda inúmeras vezes?
Um pensamento, uma ideia, um imperativo, teria o poder de pesar como o mais
pesado dos pesos sobre teu agir? As consagradas palavras de Nietzsche podem atingir
uma dimensão própria? Dito de outro modo, poderia uma representação psíquica
(Vorstellung), um pensamento como esse, em si mesmo, dominar imperativamente o
homem?26 Pode um pensamento em si mesmo ter o poder de orientar e conduzir os atos
procedentes de um ser? Pode uma perspectiva de existência que valorize o momento
presente nos perseguir a ponto de nos transformar, nos triturar? Interpelações como
essas podem nos conduzir e nos farão refletir acerca da possibilidade ou impossibilidade
do “sujeito” afirmar o eterno retorno como um imperativo existencial.
Para tanto, pretendemos expor uma possível interpretação da noção de psique que
encontramos na obra de Nietzsche. É preciso compreender certos elementos do
pensamento de Nietzsche que fazem dele um crítico fundamental da noção de psiquismo
atrelado a uma suposta autonomia do eu consciente. Como afirma Nietzsche, “o ser
humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se
torna consciente é apenas a parte menor; a mais superficial”27. Apenas abrangendo a
compreensão do domínio psicológico fragmentado e avesso à tradição filosófica anterior
a Nietzsche, é que podemos estimar o valor do imperativo existencial, essa é nossa
principal suposição. Sem isso corremos o risco de superestimar a atividade consciente,
considera por Nietzsche corrupta, rasa e superficial.28
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
26
Cf. NIETZSCHE, Além e do bem e do mal. § 19. 13ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.
NIETZSCHE, A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. § 354.
28
Cf. Ibidem.
27
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(
O aspecto psicológico das obras de Nietzsche
O fato do aspecto psicológico presente nas obras de Nietzsche não ter sido
devidamente valorizado por algumas leituras é visto com espanto por Kaufmann, um dos
precursores que observou a dimensão psicológica da obra de Nietzsche: “Isso é decerto,
espantoso. Porém, ainda mais espantoso é que ninguém se espante com isso”29, afirma.
Algumas passagens relevantes podem atestar a importância central dada por Nietzsche à
questão psicológica. Em Ecce Homo, por exemplo, Nietzsche diz: “Que nos meus
escritos fala um psicólogo, que não tem igual, eis porventura a primeira discriminação a
que chega um bom leitor, tal como eu o mereço, que me lê como os bons velhos
filólogos liam o seu Horácio”30.
De antemão, é preciso lembrar que a possível compreensão de Psicologia ou
Pisque
31
encontrada nas obras de Nietzsche não deve, indubitavelmente, ser
compreendida e associada à noção de psicologia experimental. A naturalização do
pensamento é criticada, veementemente, por Nietzsche 32 . Uma possibilidade de
compreensão se apresenta como a "imagem" de uma psique expandida ou grande
psicologia. Não devemos associar, também, à dimensão fenomênica dos simples atos da
consciência ou do comportamento imediato do ente humano, à ideia de psique
formulada por Nietzsche. A imediatez da consciência, a primazia do eu penso cartesiano,
sempre foram criticados por Nietzsche. É atribuída ao filósofo alemão a originalidade
das duras críticas à primazia da consciência como aspecto principal da psique humana.
Como afirma Nietzsche, “toda psicologia, até o momento, tem estado presa a
preconceitos e temores morais: não ousou descer até às profundezas. [...] Na medida em
que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui
silenciado” 33 . Esse descer as profundezas significa descortinar a primazia do eu
consciente, e isso nos conduz diretamente a uma noção de psique expandida:
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
29
KAUFMANN, Apud, GIACOIA, Nietzsche como psicólogo. P. 9 – Unisinos, 2004.
NIETZSCHE, Ecce Homo. P.58, São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
31
Utilizo no decorrer do texto os termos psique, psicologia e psiquismo como se fossem correlatos. A
rigor, a noção de Psicologia contemporaneamente está mais associada à "ciência" que estuda os atos
psíquicos. E Psique é o termo grego que a Psicanálise se apropria para desiginar a estrutura mental ou
psíquica de um indivíduo, se diferenciando da proposta de ciência psicológica que leva em conta,
sobretudo, os caracteres comportamentais, naturais e positivos do organismo.
32
Cf. NIETZSCHE, Além e do bem e do mal. § 21. 13ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.
33
NIETZSCHE, Além e do bem e do mal. P.27. 13ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.
30
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O programa dessa “grande psicologia” [psique expandida] deve incluir,
portanto, além da tarefa de reportar a esfera espiritual da cultura aos seus
condicionantes afetivos e pulsionais, uma série de outras tarefas. Dentre elas,
gostaria de apontar a desconstrução do primado atribuído a consciência do
domínio psicológico, o reconhecimento e a valorização de um vasto e inaudito
psiquismo inconsciente, a proposta de um novo conceito de unidade subjetiva
– ou de processos de subjetivação -, que se orienta por uma compreensão
ampliada do corpo e da racionalidade. (Giacoia, 2001, P. 11)
A noção de psique expandida que pretendemos expor a seguir diz respeito a toda
história da filosofia. A tradição filosófica sempre se moveu a partir do pressuposto
metafísico - o homem é um animal racional34. Esta definição grega do homem, que
remete a metafísica, em si mesma, não havia até então sido devidamente discutida:
“pensa-se sempre a partir dessa definição, mas não se problematiza a definição em si
mesma”35. De saída ela impõe uma dicotomia, a do corpo e da alma, e mais que isso,
esse dualismo assume uma hierarquia entre corpo e alma: o corpo sendo inferior, por ser
perecível, contingente; ao passo que a alma é superior, por ser imortal, eterna, espiritual.
Esta dicotomia é aprofundada no percurso da tradição filosófica: em Descartes, o
homem, literalmente, passa a ter duas substâncias sem vinculação imanente entre ambas.
“No fundo, a compreensão do homem como animal racional apenas espelha a
interpretação geral da realidade, também ela dividida em dois mundos” 36 . Essa
compreensão de duas realidades promovida pela filosofia não é inaugural, pois bem
antes do desabrochar da filosofia, no período neolítico “entendia-se a realidade como
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
34
Circulava na cultura grega a concepção de que “o homem é o vivente que tem o poder do logos”. Essa
definição percorre toda a história da filosofia. Embora haja diversos significados para o termo Logos,
comumente esse termo assume o conceito de razão e é empregado para invocar e caracterizar a
essência mesma do homem. “A ‘razão’ era assim concebida como a diferença específica do homem em
relação aos demais seres vivos – e, portanto, como uma forma imutável, a-histórica, da humanidade,
ela própria forma imutável e a-histórica”. WOLFF, Nascimento da razão, origem da crise. P. 67-82.
In.: NOVAES, Adauto, Crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Como se sabe, esse
pressuposto é veementemente questionado após a modernidade por diversos pensadores, Heidegger,
por exemplo, afirma que “a questão sobre a essência do ser humano não entra no rumo certo até que
nos afastemos da mais velha, mais obstinada e mais perniciosa das práticas da metafísica europeia:
definir o ser humano como animal rattionale. Nessa interpretação da essência do homem, este
continua a ser entendido como uma animalitas expandida por adições espirituais” HEIDEGGER, Apud
SLOTERDIJK, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o
humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 24-25.
35
BORNHEIM, Da superação à necessidade: o desejo em Hegel e Marx. p.144. in A. NOVAES, O
Desejo - São Paulo: Cia das Letras, 1990.
36
Ibidem.
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composta por um mundo superior, dos deuses, residência do fundamento, e um mundo
inferior, sensível, habitado inclusive por esses pobres mortais que são os homens”37.
Portanto, antes mesmo da filosofia essa dicotomia já se hierarquizava. Quando
esse preceito “doutrinante” que divide a realidade em dois mundos começou a
manifestar sinais de decadência, com a crise da metafísica, o fundamento da existência
humana passou a ser devidamente questionado.
Os pressupostos dessa grande psicologia criticam as dicotomias existentes, e
questiona veementemente a plena autonomia da consciência, suspeitando do caráter
axial da consciência, da pureza e incorruptibilidade da razão. Poderíamos nos perguntar:
por que o pensar, em sua consumação, é causado apenas pela atividade racional? Qual o
papel do corpo e de suas forças no uso da razão e da consciência? Por que a expressão
daquilo que denominamos psicológico deve necessariamente estar associado aos
processos conscientes?
A decomposição do Eu e a noção de psique expandida
A expansão do domínio psicológico numa unidade que admita o inconsciente e
não mais a submissão do psíquico aos processos conscientes é a grande contribuição
dessa grande psicologia. Sempre foram tecidas por Nietzsche sólidas críticas ao caráter
axial da consciência e direcionadas aos filósofos da tradição filosófica. A autonomia do
eu, da vontade, e a desconfiança quanto ao caráter incorruptível da razão, também
foram criticados por este pensador:
A maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades
instintivas, inclusive o pensamento filosófico. Atrás de toda lógica e da
aparente soberania de seus movimentos existem valorações, ou melhor,
exigências fisiológicas para a preservação de determinada espécie de vida. [...]
Assim como o ato de nascer não conta no processo geral da hereditariedade,
também “estar consciente” não se opõem de algum modo decisivo ao que é
instintivo. Em sua maior parte, o pensamento consciente de um filósofo é
secretamente guiado “governado” pelos seus instintos e forçosamente
conduzido por vias definidas [...] Suponho que nada seja “dado” como real,
exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer a
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
37
Ibidem. (P. 146).
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nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois
pensar é apenas a relação desses impulsos entre si. (Nietzsche, 2013 § 3, §
36)
No trecho acima o filósofo afirma que "pensar" é a relação de impulsos entre si:
desejos, paixões, instintos, necessidades, etc. Participa e vigora da atividade consciente
um “complexo de forças” que se estende, sem fronteira nítida, a uma dimensão
denominada por Nietzsche de Isso (Es). E tal complexo, efetivamente, impulsiona,
motiva aquilo que é simplificado em eu penso. A célebre crítica que Nietzsche faz ao
sacro “eu penso” pode ser encontrada no §16 e §17 da obra Além do bem e do Mal:
Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas
imediatas”; por exemplo o “ eu penso”. [Este] "eu penso" pressupõe que eu
compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço,
para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um
“saber” de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma
“certeza imediata”. – No lugar dessa “certeza imediata”, em que o povo pode
crer, no caso presente, o filósofo depara com uma série de questões da
metafísica, verdadeiras questões de consciência para o intelecto, que são: “De
onde retiro o conceito de pensar? Porque acredito em causa e efeito? O que
me dá o direito de falar de um Eu, e até mesmo de um Eu como causa, e por
fim de um Eu como causa do pensamento?” Quem, invocando uma espécie de
intuição do conhecimento, se aventura a responder de pronto essas questões
metafísicas, como faz aquele que diz: “eu penso, e sei ao menos que isso é
verdadeiro, real e certo” – esse encontrará hoje à sua espera, num filósofo, um
sorriso. [...] Isso pensa: mas que este “isso” seja precisamente o velho e
decantado “eu” é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma
firmação, e certamente não uma “certeza imediata”.
Nietzsche investe suas criticas na certeza imediata, e nos questiona porque
devemos crer que o pensar tem como causa o eu: “De onde retiro minha noção de
"pensar"? Por que devo crer na causa e no efeito? Com que direito posso falar de um
"eu" como causa e para cúmulo, causa do pensamento? Freud, inspirando-se em
Nietzsche e Groddeck, também afirma que a atividade pensante é sublinhada pela
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impessoalidade de um Isso38 (Es), em oposição à postura doutrinante que afirma ser a
consciência o princípio da consumação do pensar.
Quando se toma como premissa básica não afirmar o eu como axial e como causa
do pensar, necessariamente, estamos expandindo a noção de psique. Freud, convergindo
com Nietzsche, diz:
A diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente é a premissa básica
da psicanálise e o que a ela permite compreender e inscrever na ciência os
processos patológicos da vida psíquica, tão frequentes e importantes.
Dizendo-o mais uma vez e de outra forma: a psicanálise não pode pôr a
essência do psíquico na consciência, mas é obrigada a ver a consciência como
uma qualidade do psíquico, que pode juntar-se a outras qualidades ou estar
ausente. Se eu pudesse imaginar que todos os interessados em psicologia
leriam este trabalho, esperaria que já neste ponto um bom número de leitores
parasse e não seguisse adiante, pois aqui está o primeiro xibolete da
psicanálise. Para a maioria daqueles que têm cultura filosófica, é tão
inapreensível a ideia de algo psíquico que não seja também consciente, que
lhes parece absurda e refutável pela simples lógica. Acho que isto se deve ao
fato de não terem jamais estudado os pertinentes fenômenos da hipnose e do
sonho, que — sem considerar o dado patológico — obrigam a tal concepção.
A sua psicologia da consciência é incapaz de resolver os problemas do sonho
e da hipnose. “Estar consciente” é, em primeiro lugar, uma expressão
puramente descritiva, que invoca a percepção imediata e segura. A
experiência nos mostra, em seguida, que um elemento psíquico — por
exemplo, uma ideia — normalmente não é consciente de forma duradoura.
(Freud, 2013, P.15)
Nota-se que a posição de Nietzsche e Freud relacionada ao domínio psíquico se
diferencia das posturas experimentais e fenomênicas. No trecho acima Freud afirma que
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38
É imprescindível frisar que o teórico do inconsciente recalcado é Freud. Nietzsche admite a influencia
da atividade inconsciente, inclusive valoriza mais esta do que a tradicional consciência psíquica, mas
não se pode dizer que ambos dizem exatamente o mesmo quando aludem ao termo Isso (Es) e ao termo
inconsciente. Como já mencionado, existem estudos consagrados que discutem as aproximações
teóricas de ambos os autores, contudo não é intuito deste ensaio discutir, a rigor, tais “semelhanças e
dessemelhanças”. Como já dissemos, algumas obras se destacam no estudo das relações entre
Nietzsche e Freud: a consagrada obra de Assoun: Freud e Nietzsche: Semelhanças e Dessemelhanças,
São Paulo: Brasiliense, 1991, e também a atualíssima obra de Reinhard Gasser, que ainda não há
tradução para o português: Nietzsche und Freud. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1997.
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é um xibolete da psicanálise atribuir a atividade psicológica marcada por uma instância
inconsciente39. À medida que se formula “a equivalência do eu = consciência”, se
promove a impossibilidade de outra instância que não a consciência efetuar a atividade
pensante. Nietzsche e Freud, cada um a seu modo, contestam a antropologia metafísica
ao admitir um “complexo de força”, um Isso (Es) inconsciente, que de algum modo
impulsiona o “epigonal” pensamento consciente40. Ambos deslocam da consciência
para o inconsciente o caráter fundamental da psique: “o sujeito se identificava com a
consciência; a partir de Freud [e também Nietzsche] temos de nos perguntar por esse
sujeito do inconsciente e por sua articulação com o sujeito consciente”.41
Portanto, a noção de psique de ambos os autores é expandida numa unidade
subjetiva onde se reconhece e valoriza um vasto psiquismo inconsciente.
O mais pesado dos pesos
Ocorre que não é tão simples assim desarticular a primazia da atividade consciente
e da autonomia do eu. Tal discussão remete a toda história da filosofia e somente neste
artigo seria impossível articular rigorosamente o problema. É fundamental deixar claro,
também, que não é nosso intuito expor qual é a posição de Nietzsche e Freud em relação
à atividade volitiva. Até aqui procuramos, na verdade, problematizar a atividade
consciente ao apresentar os pressupostos que visam compreender a noção de psique
expandida valorizada por Nietzsche e Freud.
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39
Como nos alerta Garcia-Roza, "Aquilo em relação ao qual o inconsciente freudiano marca uma
diferença radical é a psicologia da consciência. [...] É importante ser ressaltado que a identificação do
inconsciente com o caos, o mistério, o inefável, ilógico etc., e esta identificação ocorreu tanto
anteriormente a Freud como no interior do próprio espaço do saber psicanalítico. Até hoje
encontramos 'descrições' do inconsciente como sendo o lugar da vontade em estado bruto e
impermeável a qualquer inteligibilidade. A esse respeito, Lacan declara que 'o inconsciente de Freud
não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da
noite'. [...] O inconsciente não é aquilo que se encontra 'abaixo' da consciência, nem o psicanalista é o
mineiro da mente que, inversamente ao alpinista platônico da psicologia clássica, vai descer às
profundezas infernais do inconsciente para encontrar, no mínimo, o malin génie cartesiano" GARCIAROZA, Freud e o inconsciente. P.170 – 171, 24.ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
40
“Nietzsche e Freud são pensadores que implodem a noção substancial de subjetividade identificada com
a unidade da consciência, seja como unidade simples, como Res-cogitans ou como Vontade, o eu
perde seu caráter de dado natural e de unidade autárquica da razão ou volição, não mais podendo ser
considerado ‘senhor em sua própria casa’”. GIACOIA, Nietzsche como psicólogo. P. 43. – Unisinos,
2004.
41
GARCIA-ROZA, Freud e o inconsciente. P.170 – 171, 24.ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
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Após termos problematizado a atividade consciente e deixado evidente a postura
de Nietzsche frente à incerteza do eu, podemos pensar naquilo que Nietzsche intitula de
“o mais pesado dos pesos”.
O mais pesado dos pesos. – E se um dia ou uma noite um demônio se
esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “esta vida, assim como
tu a vives e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras
vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada
pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande
em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do
mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este
instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada
outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” – Não te lançarias ao chão e
rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou
viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és
um deus, e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse
poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a
pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e ainda
inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou
então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não
desejar nada mais do que esta última, eterna confirmação e chancela? –
(Nietzsche, 2002 § 341)
Encarar o eterno retorno - como um imperativo existencial que procura valorizar a
existência terrena, onde cada acontecimento ganha peso único, tornando a vida
magnífica ou infernal, uma vez que ela seria repetida infinitamente, de forma cíclica, “o
inferno da simples repetição” ou “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!” – é
um caminho possível de se trilhar?
A nosso ver é um ato de ingenuidade afirmar que o imperativo existencial por si só
produza um efeito ético. Seria uma postura idealista e conflitante42 frente à compreensão
de psique descrita nas obras de Nietzsche. Em nenhum momento o autor assume tal
postura. O simples “exercício” do pensamento consciente não é determinante para
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42
Nietzsche sempre procurou afastar a sua concepção de psicologia das perspectivas idealistas: “Quem,
entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo, e não o seu oposto, superior embusteiro, ‘idealista’?
Antes de mim, não havia absolutamente psicologia”. NIETZSCHE, Ecce Homo. Porque sou um
destino § 6, São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
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conduzir os atos precedentes de um ser. A nós parece claro que o desígnio de Nietzsche
é competir com os pressupostos de valor que desvalorizavam a existência terrena,
permeados e difundidos por diversas correntes da metafísica e pelas diversas religiões.43
Em O futuro de uma Ilusão e Mal Estar na Civilização de Freud e em diversas
obras de Nietzsche, em especial a Genealogia da Moral, Além do bem e do Mal e O
nascimento da tragédia, ambos os autores apresentam uma constelação de valores
contidos em concepções metafísicas e religiosas, que convergem numa desvalorização
da existência mesma: vida eterna, a verdade absoluta, a verdade do ser, da unidade.
Tais perspectivas se amparam em uma justiça transcendental, incorporando em suas
crenças um bem e mal em si. Todos esses elementos metafísicos e ascéticos podem
culminar numa desvalorização do momento presente e da existência mesma em prol de
uma vida além-túmulo, concebida pela admissão de uma alma eterna, independente do
corpo, este que, por sua vez, é considerado por essas perspectivas como sendo inferior,
perecível, mortal.44 Afasta-se com isso o medo do vir-ser, do sem sentido, por operar,
parece, uma espécie de consolo metafísico.
É aceitável admitir que a tentativa de reintegrar o valor ao momento presente, acolher a tragicidade da existência terrena e, por isso mesmo, valorizar cada escolha,
cada ato, cada momento, - é uma proposta pertinente e valorizada em diversas obras de
Nietzsche, mas em nenhum momento é afirmado pelo filósofo à possibilidade de
autonomia do homem em deliberar sobre se será influenciado realmente por qualquer
imperativo. Como diz Nietzsche: “se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim
como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta diante de tudo e de cada
coisa”.
O imperativo ético por si só é, como diz Nietzsche, “uma introspecção ingênua”,
“falsificação, superficialização e generalização”. Como é possível catequizar o Isso (Es),
o inconsciente, valorizado por Nietzsche? Como instruir, prescrever, converter o
inconsciente a qualquer doutrina, ideia, ou princípio ético? É possível que uma ideia por
si só nos triture? Como!? Mas se não está na tutela do eu e portanto não é unicamente
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43
Nietzsche por vezes descreve uma dinâmica onde um pensamento “desce às profundezas” e se torna
“instinto dominante”. Ver, por exemplo, Genealogia da Moral, II, § 3.
44
A extrema vergonha de Plotino relacionada ao seu corpo ilustra bem a hierarquização entre “corpo” e
“alma” que atravessa a humanidade: “o exemplo oferece as brenhas da própria metafísica. Conta a
lenda que Plotino, solicitado por um pintor a posar a fim de tornar imortal a sua imagem, recusa
alegando vergonha de ter um corpo”. BORNHEIM, ‘Da superação à necessidade: o desejo em Hegel
e Marx’ P.144. in NOVAES, O desejo - São Paulo: Cia das Letras, 1990.
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um esforço da vontade humana afirmar o eterno retorno, qual seria, então, o devido
valor, o lugar, o poder do imperativo existencial, intitulado por Nietzsche de o mais
pesado dos pesos?
Conclusão
Uma ideia apreendida pela consciência, um "pensamento ético", não age por si só.
Mas, em contrapartida, seria infundado pensar que o inconsciente, o Isso (Es), por si só,
fosse capaz de autonomia irrestrita: Isto não é afirmado nem por Nietzsche nem por
Freud.45 O que se pode afirmar é que uma ideia lançada à consciência só torna-se capaz
de possibilitar um movimento dilacerante, pungente, desde que encontre reforço noutro
lugar: na dimensão inconsciente.
Seria preciso e adequado afastar-se, mesmo que por um instante, do premente
“desejo de livre arbitrariedade” 46 e autonomia depositadas no eu, com a estrita
finalidade de não identificar o eterno retorno de Nietzsche a uma espécie de doutrina
prescritiva direcionada à consciência, pois no fundo,
nossas ações são, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável, únicas,
ilimitadamente individuais, sem dúvida nenhuma; mas, tão logo nós as
traduzimos na consciência, elas não parecem mais sê-lo ... Isto é propriamente
o fenomenalismo e perspectivismo, assim como eu o entendo: a natureza da
consciência animal acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência,
é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado,
vulgarizado – que tudo que se torna consciente justamente com isso se torna
raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com
todo tornar consciente, está associada a uma grande e radical corrupção,
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45
Nem Freud nem Nietzsche defendem qualquer forma de determinismo. Sobre isso ver § 19 e § 21 de
Alem do bem e do mal, onde Nietzsche expõe e critica as noções de cativo e livre arbítrio. Convêm
citar, também, a interessante metáfora do cavalo e do cavaleiro exposta por Freud para ilustrar a
dinâmica entre o Eu e o Isso: “A importância funcional do Eu se expressa no fato de que normalmente
lhe é dado o controle dos acessos à motilidade. Assim, em relação ao Id [Isso], ele se compara ao
cavaleiro que deve pôr freios à força superior do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro tenta fazêlo com suas próprias forças, e o Eu, com forças emprestadas. Este símile pode ser levado um pouco
adiante. Assim como o cavaleiro, a fim de não se separar do cavalo, muitas vezes tem de conduzi-lo
aonde ele quer ir, também o Eu costuma transformar em ato a vontade do Id [Isso], como se ela fosse a
sua própria”. FREUD, O Eu e o Id. P. 31 In: Obras Completas, V.16 – O Eu e o Id, “Autobiografia” e
outros textos– São Paulo: Cia das Letras, 2013.
46
NIETZSCHE, Além e do bem e do mal. § 21. 13ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013
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falsificação, superficialização e generalização. (Nietzsche, 2002 §354 (grifo
nosso))
Freud, convergindo com Nietzsche, afirma:
Normalmente nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos, de
nosso Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem demarcado e
tudo o mais. Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se prolonga
para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que
denominamos Isso, à qual ele serve como uma espécie de fachada — isto
aprendemos somente com a pesquisa psicanalítica. (Freud, 2010, P.9)
Se associarmos o eterno retorno unicamente a um imperativo ético existencial
lançado
a
imediatez
do
eu consciente, necessariamente
realizaríamos
uma
superestimação da ação consciente; o que seria completamente incompatível com a
postura de Nietzsche. O imperativo ético tem valor e influência na medida em que
assume uma dimensão afetiva, de forma alguma como um “exercício” da consciência.
Apenas pesaria como o maior dos pesos se atingisse uma dimensão afeccional. Uma
afecção capaz de ser sentida - como o mais pesado dos pesos - de tal forma que fizesse o
homem estimar a existência mesma. Um mal estar que “te transformaria e talvez te
triturasse”. Não é, insistimos, uma atitude genuinamente consciente. Não é possível
deliberar, decidir ser afectado por tal força: não se trata de um simples esforço da
vontade.
É preciso, na verdade, ir além da experiência imediata. Porque é propriamente na
relação de reciprocidade entre o Eu e o Isso (Es) que se pode situar o poder afetivo do
mais pesado dos pesos de Nietzsche: Os desejos, representações, paixões, impulsos
inconscientes formam o Isso (Es), o qual contrasta com a experiência imediata, que é
conduzida pela ação inseparável da consciência, do nosso Eu. Dito de outro modo, a
vivência do ser no mundo e suas possibilidades originam as afecções sentidas. É o que
nos precisa o já citado trecho de Além do Bem e do Mal: “Suponho que nada seja “dado”
como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer a
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nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é
apenas a relação desses impulsos entre si47”.
Em suma, uma ideia, um imperativo existencial, é capaz de mobilizar e comover o
“sujeito” a agir como se fosse para a eternidade, desde que encontre apoio sublinhado e
acentuado por fortes desejos e paixões estruturadas inconscientemente. Deve-se,
portanto, afastar-se de qualquer paradigma da filosofia naturalista, da filosofia
mentalista ou da consciência, para se conceber o eterno retorno. Se os textos de
Nietzsche carregam uma dimensão “Ética”, ela certamente é incompatível com uma
espécie de doutrina moral prescritiva, nem tampouco se consuma como exigência de
uma espécie de tomada de consciência a respeito de algum conjunto de conteúdos.
Referências
ASSOUN, P.L. Nietzsche e Freud: Semelhanças e Dessemelhanças. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
BORNHEIM, Gerd. ‘Da superação à necessidade: o desejo em Hegel e Marx’ in A.
NOVAES, O desejo - São Paulo: Cia das Letras, 1990.
Deleuze, G. (1976). Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio. (1985).
______. Nietzsche. Lisboa: Edições 70
FREUD, Sigmund. El inconciente. In: Obras completas. vol. 14. 2. ed. Buenos Aires:
Amorrortu editores, 1992 [1915]. p. 153-214.
______.
O Eu e o Id. In: Obras Completas, V.16 – O Eu e o Id, “Autobiografia” e
outros textos– São Paulo: Cia das Letras, 2013.
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47
NIETZSCHE, Além e do bem e do mal. § 36. 13.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013
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______.
Obras
Completas,
V.12
Introdução
ao
narcisismo,
ensaios
de
metapsicologia e outros textos – São Paulo: Cia das Letras, (2010).
______. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
______. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
______. O mal estar na civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
GARCIA-ROZA. L. A. Freud e o inconsciente – 24.ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2009.
GASSER, Reinhard. Nietzsche und Freud. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1997.
GIACOIA, Oswaldo. Sobre saúde mental: a natureza proteiforme das pulsões - São
Paulo – USP, 2007.
______. Nietzsche como psicólogo. – Unisinos, 2004.
HEIDEGGER, Martin – Nietzsche – Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária,2014
LACAN, J. Écrits, Paris: Seuil, 1966.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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Revista(Aproximação(—(Primeiro(semestre(de(2015(—(Nº(9(
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______. Além e do bem e do mal. 13.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013
______. A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
______. Acerca da verdade e da mentira no sentido extra-moral. Lisboa: Relógio
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PRADO JUNIOR, Bento – Entre o alvo e o objeto do desejo: Marcuse, Cítico de
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SOUZA, PAULO CEZAR Sigmund Freud e o Gabinete do Dr. Lacan. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1989.
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WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise. In.: NOVAES, Adauto. A
crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. P. 67-82.
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O ARGUMENTUM LIBERTATIS NA OPERA POLITICA DE
GUILHERME DE OCKHAM
William Saraiva Borges
Graduando em filosofia na UFPel
“Não só os direitos dos imperadores, dos
reis e de outros devem ser excetuados do poder
concedido a Pedro e a seus sucessores por aquelas
palavras de Cristo: ‘Tudo o que ligares’, mas
também as liberdades concedidas aos mortais por
Deus e pela natureza.” (Guilherme de Ockham)
Resumo: O objetivo deste artigo é evidenciar qual seja o papel exercido pelo
argumentum libertatis (argumento da liberdade) na Opera Politica de Guilherme de
Ockham. Tal argumento foi elaborado pelo Venerabilis Inceptor com a finalidade de
fundamentar sua crítica à pretensa plenitude do poder (plenitudo potestatis) arrogada
pelos papas. Assim sendo, apresentamos, inicialmente, o conceito de plenitudo potestatis
papalis e, em seguida, analisamos a noção de naturalis et divina libertas a partir de seis
obras políticas redigidas por Ockham na última década de sua vida.
Palavras-chave: Filosofia Política Medieval. Guilherme de Ockham. Liberdade.
Plenitude do Poder Papal.
Abstract: This paper aims to evidence the role performed by the argumentum libertatis
(argument of freedom) into William of Ockham’s Opera Politica. This argument was
elaborated by the Venerabilis Inceptor in order to underlie his criticism to alleged
plenitude of power (plenitudo potestatis) desired by the popes. Initially, we present the
concept of plenitudo potestatis papalis. After that, we analyze the notion of naturalis et
divina libertas from six political works written by Ockham in the last decade of his life.
Keywords: Freedom. Medieval Political Philosophy. Papal Fullness of Power. William
of Ockham.
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1. Introdução
A produção intelectual de Guilherme de Ockham48 totaliza a volumosa soma de 40
obras.49 Dentre essas, que podem ser classificadas em filosóficas, teológicas e políticas,
a absoluta maioria está editada e publicada, excetuando-se apenas algumas, porque
perdidas e/ou espúrias. Desse total de 40 obras, 25 abordam temas filosóficos e/ou
teológicos e foram elaboradas por Ockham, predominantemente, no período
compreendido entre 1307 e 1324 durante o qual realizou sua formação acadêmica em
Oxford. Dessas 25 obras filosóficas e/ou teológicas, 20 estão publicadas nos 17 volumes
da Opera Philosophica et Theologica Guillelmi de Ockham 50 organizados pelo
Franciscan Institute ligado à St. Bonaventure University, New York51.
As outras 15 obras52, das quais 12 estão publicadas nos quatro volumes da Opera
Politica Guillelmi de Ockham editados junto à University of Manchester e à University
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48
Guilherme de Ockham ou William of Ockham, também conhecido pelos epítetos de Minorita Inglês e de
Venerabilis Inceptor, foi um dos filósofos de maior envergadura do século XIV. Nasceu no vilarejo de
Ockham, localizado a sudoeste de Londres, entre 1280 e 1285 e ainda na juventude ingressou na
Ordem dos Frades Menores (Franciscanos). Realizou seus estudos filosóficos e teológicos da
Universidade de Oxford, concluindo seu comentário ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo em
1318. No ano de 1324 foi convocado a apresentar-se ante a corte papal de João XXII, em Avinhão, a
fim de responder a acusação do antigo chanceler oxoniense, João Lutterell, de que 56 teses extraídas
de seus escritos conteriam erros doutrinais perigosos. Todavia, a permanência em Avinhão fez com que
Guilherme tivesse contado com Miguel de Cesena, então Ministro Geral da Ordem dos Frades
Menores, e com outros frades que encabeçavam a disputa contra o papa, em defesa da pobreza
evangélico-franciscana. Decide, então, unir-se ao grupo de frades dissidentes e foge com eles para
Pisa, em 1328, vindo a colocar-se sob a proteção do Sacro Imperador Romano-Germânico Ludovico
IV da Baviera. Em 1330, seguindo o séquito do Bávaro, Ockham se instala em Munique e é a partir
desse ano que virão à luz suas obras polêmicas, isto é, seus textos de caráter político. De acordo com o
epitáfio encontrado em uma lápide tumular na Igreja dos Franciscanos de Munique, destruída em
1802, o “Reverendo Padre Frei Guilherme de Ockham, Doutor na Sagrada Teologia”, teria morrido em
10 de abril de 1347 (Cf. GHISALBERTI, 1997, pp. 15-23 e SOUZA, 2010, pp. 95-105).
49
Cf. GHISALBERTI, 1997, pp. 23-36 e, ainda, SPADE, 1999, pp. 1-16.
50
Merecem destaque: (1) o volumoso comentário ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, (2) as 170
questões “à respeito de qualquer coisa”, reunidas sob o título geral de Quodlibeta Septem, (3) a Suma
Lógica, (4) o comentário à Isagoge de Porfírio e (5) os comentários à algumas obras de Aristóteles
(Categorias, Sobre a interpretação e Física).
51
Dessas 20 obras, 18 delas são, concomitantemente, mencionadas por Ghisalberti (1997) e, também,
publicadas nos 17 volumes da Opera Philosophica et Theologica, enquanto duas estão publicadas e
não são referidas por Ghisalberti e, ainda, cinco são apenas citadas por Ghisalberti e não estão
publicadas.
52
Ou até mesmo 16, se considerarmos a primeira e a terceira partes do Dialogus como duas obras
distintas. Uma edição dessa obra, com exceção da segunda parte que está perdida, foi publicada por
The
British
Academy
(University
of
Oxford)
e
pode
ser
acessada
em:
http://www.britac.ac.uk/pubs/dialogus/
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of Oxford, possuem um caráter precipuamente político e foram elaboradas pelo
Venerabilis Inceptor após sua fuga para Munique, em cuja cidade, a partir do ano de
1330, se refugiou sob a proteção de Ludovico IV da Baviera. Dessas 15 obras que
constituem a Opera Politica de Guilherme de Ockham, três são consideradas espúrias53
e as demais podem ser reunidas em dois grupos. O primeiro é constituído por textos
politicamente incipientes que vieram à luz entre 1333 e 1336 54 e que versam,
eminentemente, sobre o problema da pobreza franciscana55. O segundo conjunto é
formado por obras mais sofisticadas e maduras nas quais Ockham, revindicando os
direitos e as liberdades espirituais e temporais concedidos aos homens por Deus e pela
natureza, se posiciona contra a plenitude do poder pretendida pelos pontífices.56 Tais
escritos foram elaborados no arco de dez anos compreendido entre 1336/37 e 1347,
provável ano da morte de Ockham.57
Nesse trabalho, analisaremos algumas das obras políticas elaboradas pelo
Venerabilis Inceptor nessa última fase de sua produção intelectual, particularmente, seis
delas: o Tratado contra Benedito XII (livro VI), o opúsculo Pode um príncipe, o
Brevilóquio sobre o principado tirânico, as Oito questões sobre o poder papal, a
Consulta sobre uma questão matrimonial e o tratado Sobre o poder dos imperadores e
dos papas.58 Não se pretende, contudo, empreender uma exposição exaustiva a respeito
de todo o conteúdo nelas desenvolvido, mas compreender, especialmente, como
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
53
(1) Allegationes religiosorum virorum, (2) Allegationes de potestate imperiali (ocasionalmente
denominada Allegationes de potestate papae) e (3) De electione Caroli IV (Cf. SPADE, 1999, p. 11).
54
(1) Opus nonaginta dierum, (2) Dialogus (primeira parte), (3) Epistola ad fratres minores in capitulo
apud Assisium congregatos, (4) De dogmatibus papae Johannis XXII e (5) Tractatus contra Johannem
XXII (Cf. SPADE, 1999, pp. 10-11 e GHISALBERTI, 1997, pp. 31-32).
55
“É importante ressaltar que a defesa da pobreza, empreendida pelo movimento franciscano, transcendia
a esfera especificamente espiritual e religiosa, uma vez que acabava sendo uma crítica ao poder
político e material da Igreja, ao mesmo tempo em que questionava toda pretensão de poder, religioso
ou laico, que não fosse promotor da liberdade” (VASCONCELOS, 2011, p. 168).
56
(1) Tractatus contra Benedictum XII, (2) An princeps pro suo succursu, scilicet guerrae, possit recipere
bona ecclesiarum, etiam invito papa, (3) Breviloquium de potestate papae, (4) Octo quaestiones de
potestate papae, (5) Consultatio de causa matrimoniali (também denominada Tractatus de
jurisdictione imperatoris in causis matrimonialibus), (6) De imperatorum et pontificum potestate, (7)
Dialogus (terceira parte) e (8) Compedium errorum papae Johannis XXII (Cf. SPADE, 1999, pp. 10-11
e GHISALBERTI, 1997, pp. 33-36).
57
“A última etapa da vida de Ockham, a partir de 1336 até sua morte, é aquela em que ele se destacou
precipuamente como pensador político-social, tendo defendido a autonomia da esfera secular, em
geral, e do império, em especial, contra a hierocracia pontifícia, com o propósito de tentar restabelecer
a harmonia que devia haver, no seio da Cristandade, entre os poderes espiritual e temporal, bem como
entre estes, considerados isoladamente, e os grupos que a constituíam” (SOUZA, 1999, p. 12).
58
Excluiremos desta análise o Dialogus (terceira parte) e o Compedium errorum papae Johannis XXII por
não estarem, ainda, traduzidos ao vernáculo.
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Ockham, apelando à noção liberdade (libertas), efetua sua contundente censura às
pretensões papais de plenitude de poder (plenitudo potestatis). Em suma, o objetivo do
presente artigo é evidenciar qual seja o papel da argumentação em torno da liberdade,
isto é, do argumentum libertatis (argumento da liberdade) ou do argumentum ad
libertatem (apelo à liberdade), na crítica ockhamiana à plenitude do poder papal
(plenitudo potestatis papalis). Nesse sentido, procuraremos arrolar grande número de
excertos extraídos das obras políticas do Venerabilis Inceptor para que o leitor possa ter
contato com os próprios textos redigidos por ele e, assim, perceber as características
típicas de sua argumentação.
2. A Plenitudo Potestatis Papalis
Para que se possa investigar qual seja a noção liberdade apresentada por Ockham
em sua Opera Politica e compreender como ela é tomada na argumentação contra a
plenitude do poder papal, é necessário, primeiramente, reconstruir o conceito de
plenitudo potestatis papalis, isto é, sua definição, fundamentação e consequências
diretas.
A plenitudo potestatis papalis pode ser definida como a doutrina bíblicoteológica, segundo a qual, Jesus Cristo teria concedido ao papa, ou seja, a Pedro e seus
sucessores, um absoluto poder tanto na esfera espiritual quanto no âmbito temporal.
Desse modo, de direito, o pontífice poderia fazer e ordenar tudo o que quisesse (até
mesmo contradizer os direitos canônico, civil e dos povos) exceto, entretanto, aquilo que
repugna à lei divina e à lei natural. Assim, provindo de Deus, todo o poder passaria pelo
papa e por este seria delegado aos potentados civis. O romano pontífice,
consequentemente, teria direito sobre o império terreno e o poder secular dele
dependeria, sendo a obediência a Sé Apostólica indispensável à salvação.59
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59
“[...] o papa possui a plenitude do poder nas esferas espiritual e temporal, de tal modo que pode fazer
tudo o que quiser, desde que não seja expressamente contra a lei divina nem contra o direito natural,
embora possa ser contra o direito dos povos, o direito civil e o canônico” (Oito Questões, I, 2).
“[...] esta plenitude [do poder], da qual alguns afirmam que o papa a recebeu de Cristo de tal modo que
pode, por direito, tanto no temporal como no espiritual, tudo que não repugna ao direito natural ou à lei
divina” (Brevilóquio, II, 1).
“[...] há uma opinião defendida por algumas pessoas, segundo a qual o papa recebeu de Cristo a plenitude
do poder, tanto na esfera temporal quanto da espiritual, de modo que pode ordenar tudo o que quiser
àqueles que estão subordinados à sua autoridade, desde que não haja proibições a respeito disso, nem
na lei divina, nem na natural” (Pode um príncipe, 2).
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A hierocrática doutrina da plenitude do poder papal estaria, assim, diretamente
relacionada com duas outras doutrinas bíblico-teológicas, quais sejam, a doutrina do
Primado de Pedro (Commissio Petri) e a doutrina do Poder das Chaves (Potestas
Clavium). Aliás, a plenitudo potestatis nada mais é que o corolário imediato da
Commissio Petri e da Potestas Clavium. Com efeito, a fundamentação para tal
supremacia pontifícia, nas esferas espiritual e secular, era coligida dos textos do Novo
Testamento, mormente daquela perícope do Evangelho de Mateus que, segundo a
doutrina católica, narraria o momento em que Cristo conferiu a Pedro o primeiro lugar
no colégio apostólico e o poder de ligar-desligar (potestas ligandi et solvendi).
Essas são, segundo o evangelista Mateus, as palavras de Jesus Cristo dirigidas ao
apóstolo Pedro: “Tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja; e as portas no
inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; e tudo o que
ligares sobre a terra, será ligado nos céus, e tudo o que desligares sobre a terra, será
desligado nos céus”. 60 A partir dessa breve e enigmática assertiva, concluíram os
papistas, teólogos e/ou canonistas da Cúria Romana, supostamente sem equívoco, que o
pescador Pedro fora elevado pelo Nazareno a condição de príncipe dos apóstolos, tendo
recebido de Cristo o primado apostólico, isto é, a dignidade de ser o primeiro entre os
demais apóstolos e discípulos. Além disso, ainda teria recebido um duplo poder,
alegoricamente simbolizado pelas chaves, para que tudo o que ligasse-desligasse sobre a
terra (poder secular) ficasse, igualmente, ligado-desligado nos céus (poder espiritual).
Também Ockham, em suas obras, faz menção a esse texto do Evangelho de Mateus
como sendo o mais frequentemente aduzido na fundamentação da plenitudo potestatis.61
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“[...] o papa recebe de Cristo a plenitude do poder, tanto sobre a esfera espiritual quanto sobre a temporal,
de maneira que, graças ao poder absoluto que detém, pode fazer tudo [o que quiser] que não seja
contrário à lei divina ou à lei da natureza e, por esse motivo, todos os cristãos estão obrigados a
obedecer-lhe em tudo, como algo necessário à sua salvação” (Contra Benedito, VI, 2).
“[...] parece que ele [Jesus Cristo] teria concedido ou prometido a plenitude do poder nos âmbitos
espiritual e temporal ao Príncipe dos Apóstolos e aos seus sucessores, bem como os direitos do império
terreno, a ponto de ter de se acreditar que todo o poder secular depende do sumo pontífice, enquanto
vigário de Cristo, pois este, ao dizer ‘tudo’, entende-se que não teria excluído nada de sua autoridade”
(Consulta, p. 159).
60
Mt 16, 18-19. Cf. outras perícopes que também eram aduzidas como fundamentação à plenitudo
potestatis: Lc 22, 31 (a ordem de Cristo para que Pedro confirme na fé seus irmãos) e Jo 21, 15-17 (a
tríplice ordem de Cristo para que Pedro apascente seus cordeiros e suas ovelhas).
61
“[...] essas pessoas, que defendem tais teses, se fundamentam principalmente naquelas palavras de
Cristo, que ele disse ao bem-aventurado Pedro e, na pessoa dele, a todos os seus sucessores, as quais se
encontram no Evangelho de Mateus, XVI [16,19]: ‘Dar-te-ei as chaves do reino dos céus. E tudo o que
ligares sobre a terra, será ligado nos céus e tudo o que desligares sobre a terra será desligado nos céus’.
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Em síntese, ao conceder a Pedro a primazia em relação aos demais apóstolos
(Commissio Petri) e a competência de tudo ligar-desligar (Potestas Clavium), Cristo
teria cominado a este, por consequência, a plenitudo do poder nos âmbitos temporal e
espiritual (plenitudo potestatis in saecularibus et spiritualibus). Ora, os papas são os
sucessores de Pedro e, portanto, os mesmos poderes possuídos por ele seriam
identicamente estendidos àqueles que o sucedem. Logo, os romanos pontífices deteriam
a plenitudo potestatis, isto é, o absoluto e supremo poder sobre toda a Cristandade, tanto
nos assuntos referentes à vida religiosa dos fiéis quanto no tocante à organização civil e
política da sociedade.
Diferentes teólogos e juristas da Cúria Romana procuraram argumentar a favor
dessa teocracia papal defendendo o ilimitado poder espiritual e temporal arrogado pelos
pontífices. O mais contundente deles, sem dúvida, é Egídio Romano.62 Em sua obra
principal, datada de 1301/1302, o De Ecclesiastica Potestate,63 sustenta que “o sumo
pontífice possui tanto poder que ele é aquele homem espiritual que julga tudo e não é
julgado por ninguém”64 e que “a autoridade espiritual tem poder de instituir a autoridade
terrena e, se a autoridade terrena não for boa, a autoridade espiritual poderá julgála”.65Assim sendo, “o poder régio é constituído através e pelo poder eclesiástico e é
ordenado em função e a serviço do eclesiástico. Por isso fica mais claro como as coisas
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Haurindo-se nessas palavras, tais pessoas inferem que Cristo prometeu a plenitude do poder, isenta de
qualquer limite, ao bem-aventurado Pedro e, na pessoa dele, aos seus sucessores, os sumos pontífices,
de forma que pode ordenar tudo que o desejar” (Pode um príncipe, 1).
“Alguns costumam reforçar esta asserção principalmente com aquelas palavras de Cristo a Pedro [Mt 16,
19]: ‘Eu te darei as chaves do reino do céus. Tudo o que ligares sobre a terra será ligado nós céus e
tudo o que desligares sobre a terra será desligado nos céus’. Com estas palavras, como parece, Cristo
prometeu a Pedro tal plenitude de poder, que ele, sem qualquer exceção, pode tudo na terra”
(Brevilóquio, II, 2).
“[...] sem ter estabelecido exceção alguma, nem sobre as coisas espirituais nem sobre as temporais, como
tinha prometido, Cristo conferiu a plenitude do poder ao bem-aventurado Pedro e, por extensão, a
todos os seus sucessores, como se acha escrito no Evangelho de Mateus, 16 [18-19], ao lhe dizer: ‘Tu
és Pedro’ etc., e em seguida: ‘Tudo o que ligares no céu será ligado na terra’, etc. Logo, tampouco nós
devemos excetuar algo de seu poder. Por conseguinte, não só na esfera espiritual, mas também na
temporal, o papa possui a plenitude do poder” (Oito Questões, I, 2).
62
“Egídio Romano, o porta-voz mais avançado das teorias hierocráticas do tempo, embora reconhecendo
que as atribuições e competências do poder civil são claramente distintas das do poder espiritual,
sustentava que ambos os poderes são reconduzidos a uma única fonte, ou seja, à autoridade de Deus.
Por isso, do momento em que, por investidura direta de Deus, o papa é o representante mais
qualificado da autoridade divina, toda outra autoridade deve reconhecer que depende da autoridade
papal” (GHISALBERTI, 1997, p. 296).
63
EGÍDIO ROMANO, 1989.
64
Idem, ibidem, p. 38.
65
Idem, ibidem, p. 44.
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temporais estão colocadas sob o domínio da Igreja”66. “Embora não haja poder que não
venha de Deus,67 contudo ninguém é digno de qualquer poder se não se tornar digno sob
a Igreja e através dela”.68 Egídio, retoricamente, pergunta “o que é a plenitude do
poder?”, mas não responde expressando a quididade (o que é) da plenitudo potestatis,
mas mostrando, por outro lado, sua localidade (onde está): “A plenitude do poder
encontra-se no sumo pontífice”.69 Ademais, “na Igreja há tanta plenitude de poder que o
poder dela é sem peso, número e medida”.70
Além da fundamentação bíblica diretamente haurida do Evangelho e do discurso
teológico apresentado pelos doutores nas Sagradas Páginas, também merece destaque o
discurso oficial da Igreja, isto é, o ensinamento magisterial que é veiculado através dos
documentos pontifícios. No que se refere à plenitudo potestatis papalis, sem dúvida, a
célebre bula Unam Sanctam, promanada por Bonifácio VIII, em novembro de 1302, é a
mais peremptória e incisiva:
Fora dela não há salvação [...]. Ela representa o único corpo místico, cuja
cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. [...] esta Igreja, una e única, tem
um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro,
vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao
próprio Pedro [...]. As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência
comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada
espiritual e a espada temporal. [...] O espiritual deve ser manuseado pela mão
do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e
segundo a vontade do padre. [...] a autoridade temporal deve ser submissa à
autoridade espiritual. [...] o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre
e julgá-lo se este não for bom. [...] Mas, se o poder superior se desvia,
somente Deus poderá julgá-lo e não o homem. [...] Esta autoridade, ainda que
tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é humana, mas de
Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus
sucessores [...]. Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
66
Idem, ibidem, p. 90.
Cf. Rm 13,1: “Não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram instituídas por Deus”.
68
EGÍDIO ROMANO, op. cit., p. 116.
69
Idem, ibidem, p. 223.
70
Idem, ibidem, p. 237.
67
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é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao
romano pontífice71.(
Nessa bula estão reunidas as teses nucleares do curialismo romano: (1) fora da
Igreja e da submissão ao papa não há salvação, (2) a Igreja é una e sua cabeça é Cristo,
Pedro e os papas (sucessores de Pedro), (3) os poderes espiritual e temporal pertencem a
Igreja, (4) os governantes seculares são delegados eclesiásticos e (5) a autoridade
temporal deve ser submissa a Igreja e esta só está submetida a Deus. Todavia, no
entardecer do século XIII e na aurora do século XIV, os imperadores, reis e príncipes
não mais se sujeitaram às arbitrariedades pontifícias fundamentadas em tendenciosas
teses hauridas das Sagradas Escrituras, mas reivindicaram autonomia na administração
de seus Estados. Por esse motivo, eclodiram muitos conflitos entre os papas reinantes
nesse período e os imperadores e/ou reis de diferentes nações. Basta citar, a título de
exemplo, o embate entre Bonifácio VIII72 e Felipe IV, o Belo, rei da França73 a respeito
da tributação sobre os bens eclesiásticos em situações bélicas.74 E, ainda, a tensão entre
João XXII75 e Ludovico IV da Baviera,76 Sacro Imperador Romano-Germânico, em
virtude da recusa do papa em reconhecer a legitimidade da eleição do Bávaro77. Fato
esse caracterizado por Ockham como o “erro de João”.78
3. A Naturalis et Divina Libertas
“A noção de liberdade é, pois, a chave para a compreensão do pensamento político de
Ockham”.79 Com efeito, nas obras políticas do Venerabilis Inceptor
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71
BONIFÁCIO VIII apud SOUZA; BARBOSA, 1997, pp. 202-204.
Pontífice de 1294 a 1303.
73
Reinante entre 1285 e 1314.
74
Cf. STREFLING, 2002, pp. 65-72 e GOLDMAN, 1996, pp. 441-444.
75
Pontífice de 1316 a 1334.
76
Rei dos Romanos entre 1314 e 1347.
77
Cf. STREFLING, 2002, pp. 73-78, SOUZA, 2010, pp. 11-63 e GHISALBERTI, 1997, pp. 265-273.
78
Tal é o erro: sustentar que “o rei eleito dos romanos não deve assumir o nome e o título régios, antes que
sua pessoa tenha sido aprovada pela Sé Apostólica, nem deve ser considerado como rei, nem deve ser
designado como tal, muito menos, em qualquer circunstância, deve se ocupar com a administração do
reino ou do império, nem nesse ínterim há um rei dos romanos” (Contra Benedito, VI, 2).
79
DE BONI, 2003, p. 305.
72
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ocorre um uso inusitado, a seu tempo, da noção de liberdade. Como diz
Lagarde, ‘a originalidade [de Ockham] sobre todos os seus predecessores foi
haver invocado um novo slogan para opor-se às investidas do espiritual sobre
o temporal: o da liberdade cristã’. A plenitude de poder que se arrogava o
papado seria a negação de toda a forma de liberdade, e o Autor entende que o
cristianismo é a ‘lei da perfeita liberdade’. Tal formulação é, talvez, o melhor
achado retórico de Ockham.80
De fato, a “liberdade é uma noção que Ockham traz para o âmago de sua teoria
[política] e a qual haverá de recorrer em várias ocasiões”.81 Como já mencionado, o
intricado problema enfrentado pelo Venerabilis Inceptor é a pretensa plenitudo
potestatis avocada pelos pontífices romanos sobre as esferas espiritual e temporal.
Ockham discorda frontalmente dessa doutrina, embora os argumentos aduzidos a favor
dela estejam contidos nas Sagradas Escrituras. O Minorita Inglês, naturalmente,
reconhece a autenticidade das Sagradas Páginas, contudo não assente com a
interpretação que é dada a elas pelos juristas e teólogos da Cúria Romana. Assim, ao
apresentar sua própria interpretação, Ockham traz à luz a noção de libertas (argumentum
libertatis ou argumentum ad libertatem) e através dela empreende sua refutação à
plenitudo potestatis papalis.
Em suma, “plenitude do poder e liberdade são conceitos contraditórios, que se
excluem mutuamente: a plenitude do poder é algo que destrói tanto o cristão quanto o
cidadão, porque rouba-lhes a liberdade”.82 Com efeito,
[...] tipicamente franciscana, ou melhor, ockhamista é a crítica à plenitude do
poder que se queria atribuir ao papa, porque tal plenitude parecia-lhe
diametralmente oposta à concepção bíblica de liberdade da nova lei. Se a
oposição às pretensões pontifícias vinham já de longa data, ninguém, contudo,
havia argumentado a partir da liberdade. [...] Guilherme de Ockham via em tal
pretensão, acima de tudo, a tirania a oprimir a liberdade.83
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80
ESTÊVÃO, 2000, p. 369. É importante destacar que “se a expressão acabada da defesa da liberdade
cristã só amadurece nas obras teológico-políticas, o tema é recorrente em toda sua obra filosófica e
teológica” (idem, ibidem).
81
DE BONI, 2006, p. 125.
82
DE BONI, 2003, p. 305.
83
Idem, ibidem, p. 247. “Com isto a noção de liberdade, que Olivi, por primeiro, trouxera para o âmago da
Teologia, que Duns Scotus elevara a fundamento de sua antropologia, passava a exercer uma função
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De modo geral, nas obras políticas do Venerabilis Inceptor84 encontramos a
seguinte estrutura: inicialmente, Ockham apresenta a definição de plenitudo potestatis,
em seguida, expõe os argumentos bíblicos em que tal plenitude do poder se fundamenta
e, por fim, aduz sua refutação a mesma. Com efeito, o Minorita Inglês arrola diferentes
alegações que se contrapõem a plenitude do poder papal, entretanto, em todas as obras o
argumentum libertatis e/ou argumentum ad libertatem é o primeiro a ser apresentado e o
mais longamente desenvolvido. Ora, já analisamos supra o conceito de plenitudo
potestatis e seu embasamento, fundamentalmente, haurido do “Tu és Pedro” encontrado
no Evangelho de Mateus. Agora, portanto, é preciso concentrar-se nas passagens da
Opera Politica Ockhamiana nas quais o Venerabilis Inceptor expõe sua concepção de
libertas e efetua sua contestação às pretensões papais.85
Segundo Ockham, a liberdade nos foi concedida por Deus e pela natureza,86 isto é,
somos livres tanto pela lei divina quanto pelo direito natural. Ora, o sumo pontífice tudo
pode fazer e ordenar, exceto aquilo que contradiz a lei divina e o direito natural.
Consequentemente, se a liberdade é dom divino e natural, está excluído do poder papal
tudo quanto tolhe ou mesmo compromete tal liberdade dos indivíduos. Logo, o papa não
possui a plenitude do poder e esta nada mais é do que a herética usurpação da liberdade
e dos direitos que possuímos por concessão de Deus e da natureza.87
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questionadora no campo da política: o papa não possuía a plenitude do poder nas coisas temporais
porque, primeiramente e acima de tudo, por direito divino, os cristãos não eram seus escravos” (Idem,
ibidem, p. 248). Sobre a concepção de liberdade em Pedro Olivi e João Duns Scotus, cf. DE BONI,
2006, p. 125, onde tal conceito é situado nas próprias obras desses autores.
84
Particularmente nas seis que aqui estão em apreço, quais sejam, Contra Benedito, Pode um príncipe,
Consulta, Sobre o poder, Brevilóquio e Oito Questões.
85
Ockham se ocupa com a questão da liberdade, principalmente, nas seguintes passagens de sua obra
política: Contra Benedito, VI, 4, Pode um Príncipe, 2, 5 e 6, Brevilóquio, II, 3, 4 e 17, Oito Questões,
I, 6, 7, 9, 11, 12, 15 e 16, Consulta, p. 161 e Sobre o poder, 1, 3, 4, 5, 9 e 11.
86
“[...] o papa não pode subtrair de ninguém o seu direito, especialmente pelo fato de não o ter recebido
dele próprio, mas de Deus, ou da natureza ou de outrem. E, pela mesma razão, não pode privar outras
pessoas de gozarem das suas liberdades as quais foram-lhes concedidas ou por Deus ou pela natureza”
(Sobre o poder, 4). “Não só os direitos imperadores, dos reis e de outros devem ser excetuados do
poder concedido a Pedro e a seus sucessores por aquelas palavras de Cristo: ‘Tudo o que ligares’, mas
também as liberdades concedidas aos mortais por Deus e pela natureza [...]” (Brevilóquio, II, 17). Cf.
também Brevilóquio, prólogo e, ainda, Consulta, p. 161.
87
“[...] o papa não possui nas esferas temporal e espiritual um pleníssimo poder, nem tampouco aquela
plenitude do poder que seus proponentes lhe atribuem, antes, algumas pessoas julgam que aquela
opinião é herética e perigosíssima a toda a Cristandade” (Pode um príncipe, 2). “Aflijo-me com não
menor angústia porque não procurais inquirir quão contrário à honra divina é este principado tirânico
usurpado de vós iniquamente, embora seja tão perigoso à fé católica, tão oposto aos direitos e
liberdades que Deus e a natureza vos concederam” (Brevilóquio, prólogo).
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Esta naturalis et divina libertas (liberdade divina e natural), evocada de forma tão
original pelo Minorita Inglês, é, segundo ele, a própria lei evangélica, ou seja, a lei cristã
que de acordo com as Sagradas Escrituras é a lei perfeita da liberdade.88 Ora, tal lei da
liberdade (lex libertatis) está, evidentemente, contida nas Escrituras, pois “[...] o bemaventurado Tiago, na sua Epístola Canônica [1, 25], diz que a lei evangélica é a ‘lei
perfeita da liberdade’”89. Ockham, então, arrola inúmeras perícopes bíblicas (extraídas
da Epístola de Tiago, das cartas paulinas aos Gálatas e aos Coríntios e dos Atos dos
Apóstolos) nas quais o cristianismo é caracterizado como uma religião da liberdade90.
Para Ockham, a religião evangélico-cristã é regida pela “[...] lei da perfeita liberdade,
cujo ‘jugo’, segundo o seu próprio instaurador, ‘é suave e o seu peso é leve’”91, de modo
que, “[...] os cristãos, mediante a lei evangélica, absolutamente não estão sujeitos a tanta
servidão quanta havia na antiga lei, seja na esfera temporal, seja na espiritual [...]”.92
O Venerabilis Inceptor, todavia, teme que seu apelo à libertas christiana possa
ser inadequadamente compreendido93. Desse modo, procura explicitar-se com a maior
limpidez possível: “tal liberdade deve mais ser entendida de modo negativo, porque pela
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88
Algumas expressões usadas pelo Venerabilis Inceptor: “lei da perfeita liberdade” (Consulta, p. 150 e
Sobre o poder, 9), “liberdade da religião evangélica” (Sobre o poder, 3), “liberdade da lei evangélica”
(Sobre o poder, 1 e 5, Consulta, p. 161, Pode um príncipe, 2 e Brevilóquio, II, 3 e 17), “a lei
evangélica é uma lei de liberdade” (Questões, I, 6), “a lei cristã é uma lei de liberdade” (Contra
Benedito, VI, 4 e Pode um príncipe, 2) e “a lei evangélica é a ‘lei perfeita da liberdade’” (Sobre o
poder, 3 e 11 e Pode um príncipe, 2).
89
Sobre o poder, 3.
90
Essas são as perícopes recorrentemente arroladas por Ockham: “[...] quem se concentra numa lei
perfeita, a lei da liberdade, e nela continua firme, não como ouvinte distraído, mas praticando o que ela
manda, esse encontrará a felicidade no que faz” (Tg 1, 25). “Nem Tito, meu companheiro, que é grego,
foi obrigado a circuncidar-se. Nem mesmo por causa dos falsos irmãos, os intrusos que se infiltraram
para espionar a liberdade que temos em Jesus Cristo, a fim de nos tornar escravos” (Gl 2, 3-4). “[...]
irmãos, nós não somos filhos da escrava, mas da mulher livre. Cristo nos libertou para que sejamos
verdadeiramente livres. Portanto, sejam firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão” (Gl
4, 31-5, 1). “Irmãos, vocês foram chamados para serem livres. Que essa liberdade, porém, não se torne
desculpa para vocês viverem satisfazendo os instintos egoístas. Pelo contrário, disponham-se a serviço
uns dos outros através do amor” (Gl 5, 13). “[...] onde se acha o Espírito do Senhor aí existe a
liberdade” (2 Cor 3, 17). Cf. também Atos 15 onde se narra o conflito ocorrido entre os apóstolos
durante o Concílio de Jerusalém a respeito da necessidade da circuncisão.
91
Consulta, p. 150. Cf. Mt 11, 30: “O meu jugo é suave e o meu ônus é leve”.
92
Pode um príncipe, 2. “[...] na verdade, a lei cristã estabelecida por Cristo é uma lei de liberdade, de
maneira que, graças à determinação de Cristo, nela não há igual ou maior servidão como existiu na
antiga lei. [...] a misericórdia de Deus quis que a religião cristã fosse mais livre quanto aos ônus, ainda
que de per si não se tratasse de coisas ilícitas, em relação aos que havia sob a antiga lei, e, por
conseguinte, a lei evangélica não apenas é designada por lei de liberdade, porque liberta os cristãos da
servidão do pecado e da lei mosaica, mas também, porque os cristãos, graças à mesma, não são
oprimidos por maior ou igual servidão como aquela que havia na antiga lei” (Idem, ibidem).
93
“Pode ser bem ou mal compreendido o fato de que a lei evangélica é a lei da perfeita liberdade e que,
por isso, o papa não possui a mencionada plenitude do poder” (Brevilóquio, II, 4).
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lei evangélica de modo algum se coloca um jugo pesado, e por ela ninguém se torna
escravo de outrem [...]”94. Por essa razão, “[...] pela lei evangélica não só os cristãos não
se tornam servos do papa, como também o papa não pode, pela plenitude do poder,
onerar qualquer cristão, contra a vontade deste [...]”.95
A argumentação de Ockham, ao longo de sua Opera Politica, é desenvolvida
com clareza e de forma enfática. Julgamos oportuno transcrever alguns trechos
específicos das obras do Minorita Inglês para que se possa reconhecer seu estilo retórico
e compreender a sutileza e a perspicácia de seus argumentos.
Em primeiro lugar, comprova-se isso [que o papa não possui a plenitude do
poder] do seguinte modo: como em outro lugar foi dito, a lei cristã é uma lei
de liberdade, de acordo com o que se encontra claramente escrito na Sagrada
Escritura. Logo, nem todos os fiéis, por força da lei cristã, tornam-se servos
do papa, dado que ele, através da disposição de Cristo, não possui sobre a
esfera secular todo poder que possuem os senhores temporais sobre seus
servos, os quais os podem espoliar de todos os seus bens temporais e, ao seu
líbito, podem igualmente doá-los a outrem ou vendê-los96.
O primeiro argumento [contrário a plenitudo potestatis], que algumas pessoas
consideram o mais sólido é o seguinte: conforme os textos sagrados, a lei
evangélica, se comparada com a lei mosaica, é uma lei de liberdade e isso
deve ser entendido ao menos negativamente no sentido que, seja nas coisas
temporais, seja nas espirituais, ela não implica em tanta servidão quanto
houve na lei mosaica no que concerne às cerimônias e às práticas exteriores.
[...] Ora, se graças à instituição de Cristo e mediante a lei evangélica o papa
possuísse tal plenitude do poder, a própria lei evangélica possuiria uma
intolerável servidão muito maior do que aquela que a lei mosaica possuiu.
Com efeito, graças à mesma, todos os cristãos se tornariam servos do papa e,
em tal circunstância, este exerceria sobre eles um poder semelhante àquele
que qualquer senhor temporal teve ou pode ter sobre seus servos, a tal ponto
que o papa poderia dar, vender e submeter à servidão os reis e os outros
homens. Ele também poderia impor à comunidade dos fiéis muitas cerimônias
e práticas exteriores semelhantes às que houve na antiga Lei e, assim, a lei
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
94
Brevilóquio, II, 4.
Idem, ibidem.
96
Contra Benedito, VI, 4.
95
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evangélica possuiria uma servidão incomparavelmente maior do que aquela
que houve na lei mosaica. Mas isso tudo parece herético a algumas pessoas.
Logo, não se admite que o papa possui tal plenitudo do poder.97
Esta asserção [de que o papa possui a plenitudo do poder] não só é falsa e
perigosa para a comunidade dos fiéis, mas considero-a também herética. Em
primeiro lugar, mostrarei que é herética, porque contradiz manifestamente as
Escrituras Divinas. A lei evangélica não é de maior, mas de menor servidão se
comparada com a mosaica, e por isso é chamada por Tiago [Tg 1, 25] de lei
da liberdade. [...] Contudo, a lei de Cristo seria uma servidão de todo
horrorosa, e muito maior que a da lei antiga, se o papa, por preceito e
ordenação de Cristo, tivesse tal plenitude de poder que lhe fosse permitido por
direito, tanto no temporal como no espiritual, sem exceção, tudo o que não se
opõe à lei divina e ao direito natural.98
Ora, se Cristo tivesse concedido ao bem-aventurado Pedro a plenitude do
poder na esfera temporal sobre todos os fiéis, os teria transformado em seus
servos, o que contraria manifestamente a liberdade da lei evangélica [...]. De
fato, dado que Cristo não deu ao bem-aventurado Pedro a plenitude do poder
no âmbito temporal, assim também não lhe concedeu semelhante poder na
esfera espiritual. Na verdade, [...] a lei evangélica impõe menor servidão do
que a que existiu sob a antiga lei, acerca da qual o bem-aventurado Pedro, de
acordo com o que consta dos Atos [15, 10], disse que era ‘um jugo que nem’
ele próprio ‘nem’ seus ‘pais puderam suportar’”.99
[...] se porventura o santo padre possuísse tal plenitude do poder, todas as
pessoas seriam seus servos, conforme a mais ampla acepção possível do
vocábulo servo, o que abertamente contraria a liberdade da lei evangélica, a
qual está escrita ou se lê na Sagrada Escritura e, por esse motivo, aquela
asserção [segundo a qual o papa possui a plenitude do poder]
apropriadamente deve ser computada entre as heresias.100
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
97
Oito Questões, I, 6.
Brevilóquio, II, 3.
99
Sobre o poder, 1.
100
Consulta, p. 161.
98
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[...] se o papa, por força do mandato de Cristo, possuísse semelhante plenitude
do poder nas esferas temporal e espiritual, as autoridades da Escritura Sagrada
não teriam dito, nem afirmativa, nem negativamente, que a lei evangélica
deve ser entendida como lei de liberdade, porque a mesma seria uma lei de
horribilíssima servidão, incomparavelmente maior do que aquela que havia
existido na lei mosaica, tanto no âmbito secular quanto no espiritual”.101
4. Considerações Finais
O problema posto pela realidade concreta, ou seja, pelo contexto histórico e
geográfico do décimo quarto século europeu, fora a pretensão papal de possuir uma
supramacia de poder espiritual e secular sobre toda a Cristandade. Dois eram, no
entanto, os elementos que poderiam limitar o poder do papa e contra os quais o sumo
pontífice jamais deveria atentar: a lei divina e o direito natural. Com efeito, a argúcia
lógica de Guilherme de Ockham, rapidamente, encontrou uma brilhante via de
refutação: notou que, por direito divino e natural, possuímos uma inalienável liberdade,
qual seja, a liberdade evangélico-cristã. Ora, se tal libertas é divinamente natural e
naturalmente divina, por consequência imediata, o papa não pode possuir a arrogada
plenitudo potestatis, pois se a possuísse, tolheria a liberdade dos seres humanos e nisso
atentaria contra a lei divina e contra o direito natural.
Dito em outras palavras, o papa, em virtude da fé cristã que professa e das
premissas evangélicas que dela decorrem, está obrigado a respeitar as leis divinas e
naturais. Desse modo, se de fato possuísse o supremo poder espiritual e temporal,
evidentemente, usurparia dos homens sua naturalis et divina libertas e, assim, tornar-seia réu de heresia por repugnar o direito estabelecido por Deus e pela natureza. Desse
modo, segundo a exegese bíblica do Venerabilis Inceptor,
[...] aquelas palavras de Cristo, antes referidas, dirigidas ao bem-aventurado
Pedro, que se encontram no Evangelho de Mateus [16, 19]: ‘tudo o que
ligares’ etc., bem como os cânones, nos quais se afirma que o papa deve ser
obdecido em tudo, devem ser entendidas, admitindo-se a hipótese de haver
exceções. Com efeito, se fosse de outra maneira, o poder do papa seria
idêntico ao divino e, então, ele poderia de direito tirar o império do
imperador, os reinos dos reis e os principados dos príncipes e, em geral, de
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101
Pode um príncipe, 2.
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todos os mortais os seus próprios bens, e os tomar para si ou retê-los ou doálos a quaisquer outras pessoas, até mesmo àquelas de condição humilde. Ora,
isso elimina e destrói a liberdade perfeita da lei evangélica.102
Libertas e plenitudo potestatis não podem coexistir de forma concomitante, pois
dado que suas naturezas são contraditoriamente opostas (conflitantes, incompatíveis e/ou
inconciliáveis), se autoexcluem mutuamente. Assim sendo, fica manifesto qual seja a
função ou o papel da liberdade, isto é, do argumentum libertatis ou do argumentum ad
libertatem na Opera Politica de Guilherme de Ockham: pela naturalis et divina libertas
a plenitudo potestatis arrogada pelos pontífices é impugnada e refutada, sendo tal
pretensão papal, com grande razoabilidade, contada entre as heréticas contradições
perpetradas contra os direitos divino e natural, sintetizados na lei evangélica.
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O QUE ESTÁ ALÉM DO EROTISMO: GEORGES BATAILLE EM
PERSPECTIVA
André Gomes Quirino
Graduando de filosofia na USP
Resumo: Neste artigo, analisamos criticamente as noções de violência, sagrado e morte
presentes em O erotismo, de Georges Bataille, assumindo o desafio de fazer dialogar
uma filosofia que se pretende ao silêncio. Para tanto, as confrontamos com as mesmas
noções conforme expostas por, respectivamente, Eric Weil (cuja oposição violênciarazão consiste em ponto de partida para a abordagem de Bataille), René Girard (cuja
obra procura atualizar a antropologia de Mauss e a psicanálise de Freud, as quais
fornecem a base para a visão bataillana do sagrado primitivo) e Roger Scruton (cuja
análise da ópera romântica Tristão e Isolda situa Wagner numa discussão filosófica que
serve de pano de fundo para a problemática de O erotismo) – autores que, segundo
sustentamos, levam a uma apreensão mais plena das noções de que Bataille lança mão.
A partir da perspectiva alcançada por esses três confrontos, também procuramos
revisitar a crítica de Bataille ao mundo do trabalho.
Palavras-chave:Morte e erotismo. Mundo do trabalho. Sagrado primitivo. Violência e
razão.
Abstract: In this paper, we discuss critically the notions of violence, sacred and death
contained in Georges Bataille’s Eroticism, taking on the challenge of putting in dialogue
a philosophy that aims to silence. For that, we confront those notions with the same ones
as exposed by, respectively, Eric Weil (whose opposition violence-reason consists in
starting point for Bataille’s approach), René Girard (whose work seeks to update Mauss’
anthropology and Freud’s psychoanalysis, which provide the basis for Bataillean vision
of primitive sacred), and Roger Scruton (whose analysis of romantic opera “Tristan and
Isolde” locates Wagner on a philosophical discussion that serves as background for
Eroticism’s issue) – authors who lead, as we hold, to a fuller grasp of the notions that
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Bataille makes use. From the perspective achieved by these three confrontations, we also
seek to revisit Bataille’s critique of the world of work.
Keywords: Death and eroticism. Primitive sacred. Violence and reason. World of work.
1. Introdução
Georges Bataille (1897 – 1962), escritor francês, publicou L’érotismeem 1957. O
livro divide-se em duas partes: “O interdito e a transgressão” e “Estudos diversos sobre
o erotismo”. Na primeira, o autor analisa os tabus mais correntes na história das culturas
humanas (relativos à morte, aos excrementos, à nudez, ao sangue menstrual etc.), bem
como as formas como eles comumente foram transgredidos, com especial ênfase
naqueles que tangem à atividade sexual. O autor também analisa o trato das religiões
arcaicas com o erotismo, comparando-o ao trato do cristianismo com o mesmo. Na
segunda parte, há estudos de Bataille sobre o famoso relatório Kinsey, as obras do
Marquês de Sade, o tabu do incesto, uma série de ensaios sobre sexualidade publicados
na revista católica ÉtudesCarmélitaines e as relações entre santidade, erotismo e solidão.
Em passagens-chave do livro, Bataille também aplica sua proposta à política,
desenvolvendo críticas, nem sempre nominais, à sociedade moderna, ao capitalismo e
aos regimes totalitários.
Contudo, a estrutura de O erotismo não é linear e sua argumentação não pretende
seguir passos lógicos claros. Com isso se coaduna a forma estética adotada pelo autor,
sobremaneira influenciado pelo movimento surrealista francês. Isso impõe uma
dificuldade de interpretação, e nos impele a respeitar, em cada texto de Bataille que for
aludido, o seu contexto imediato e a função que o autor lhe atribuiu perante a obra como
um todo. É o que faremos.
Outras referências incontornáveis no pensamento de Bataille são as filosofias de
Nietzsche e Hegel, a antropologia de Marcel Mauss e a psicanálise de Sigmund Freud. A
partir desse arcabouço, ele discorre acercada atividade erótica. Para tanto, lança mão de
variadas noções, que não se preocupa em definir cientificamente, conquanto as
caracterize com imagens ricas. Bataille critica as abordagens científicas que tomam o
erotismo como um objeto puramente exterior. Sua intenção é analisá-lo enquanto
experiência interior.Para ele, os interditos relativos ao sexo e aos excrementos
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constituem, junto à história do trabalho e à consciência da morte, “a especificidade
humana”(BATAILLE, 2013, p. 241).
A princípio, Bataille faz uma distinção entre o erotismo dos corpos, o erotismo
sagrado e o erotismo dos corações, mas na maior parte do tempo se refere a um erotismo
singular. Também nos referiremos a um erotismo unívoco, que pode ser entendido como
qualquer uma das três formas inicialmente distintas, desde que se note que estamos a
tratar do erotismo enquanto aspecto da vida interior do homem.103 Lê-se, no primeiro
capítulo do livro: “Não falo nem de ritos, nem de dogmas, nem de uma comunidade
determinados, mas somente do problema que toda religião se colocou: faço meu esse
problema como o teólogo faz da teologia o seu”(BATAILLE, 2013, p. 56).
Três caracterizações do erotismo figuram como cruciais para o entendimento da
proposta bataillana. Em primeiro lugar, “o erotismo se define pela independência entre o
gozo erótico e a reprodução como fim” (BATAILLE, 2013, p. 36), ou seja, ele não tem
como intento a procriação, mas apenas a violação do ser do parceiro (BATAILLE, 2013,
p. 41): o erotismo é um ato de violência transgressora. Além disso, “o erotismo é, na
consciência do homem,o que nele coloca o ser em questão” (BATAILLE, 2013, p. 53);
portanto, não pode ser considerado independentemente da história das religiões
(BATAILLE, 2013, p. 30), independentemente do sagrado. E o erotismo é “a aprovação
da vida até na morte” (BATAILLE, 2013, p. 35), porque, se vemos nos interditos
essenciais “a recusa que o ser opõe à natureza encarada como uma dissipação de energia
viva e como uma orgia de aniquilamento, não podemos mais diferenciar a morte da
sexualidade” (BATAILLE, 2013, p. 86, grifo nosso). Assim, temos as três noções que
guiarão o nosso estudo: violência, sagrado e morte. E, como pano de fundo para elas,
estão as noções de experiência interior e continuidade,a oposição interdito e transgressão
e a história do trabalho, às quais inevitavelmente também nos referiremos.
Assumindo o desafio de fazer dialogar uma filosofia que, como veremos, se
pretende ao silêncio, confrontaremos a visão de Bataille com as de: Eric Weil,
principalmente a partir do livro Logique de laphilosophie104 (cuja oposição violênciarazão consiste em ponto de partida para a abordagem da violência em O erotismo); René
Girard (cuja obra procura atualizar, inclusive, a antropologia de Marcel Mauss e a
psicanálise de Sigmund Freud, as quais fornecem a base para a visão bataillana do
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
103
Cf. MORAES, 2013, p. 311.
Lógica da filosofia.
104
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sagrado primitivo), especialmente em La violence et lesacré;105 e Roger Scruton (cuja
análise da ópera romântica Tristão e Isolda, Death-devotedheart: sex andthesacred in
Wagner’s ‘Tristan andIsolde’,106situa Wagner numa discussão filosófica que serve de
pano de fundo para a problemática bataillana) – autores que, segundo sustentamos,
levam a uma apreensão mais plena das noções de que Bataille lança mão.
2. Violência e razão: a dualidade Weiliana e a escolha de Bataille
Bataille (2013, p. 79) alude à violência no quarto capítulo de O erotismo alegando
não poder e não necessitar defini-la precisamente. Então esclarece, numa nota de rodapé,
que parte de uma noção originada da “obra magistral de Eric Weil, Logique de
laphilosophie”. Em capítulos posteriores, Bataille explicitará uma “antinomia da
violência e da consciência”. De acordo com ele,
a vida humana é feita de duas partes heterogêneas que nunca se unem. Uma,
sensata, cujo sentido é dado pelos fins úteis, consequentemente subordinados:
essa é a parte que aparece à consciência. A outra é soberana: quando a ocasião
se apresenta, ela se forma graças a um desregramento da primeira, é obscura,
ou antes, se é clara, cega; furta-se, assim, de toda maneira, à consciência
(BATAILLE, 2013, p. 220).
Podemos com precisão dizer que esta última parte é a que aparece à violência. Não
subordinar-se aos fins úteis, mas agir soberanamente, num ato de transgressão,
alcançando assim o instante sagrado, a continuidade, é precisamente a caracterização
que Bataille faz do erotismo. Não se trata em primeiro lugar, como poder-se-ia
precipitadamente depreender, de desafiar imposições vindas de autoridades exteriores ou
acordos sociais. Antes de tudo, o erotismo é uma experiência interior, “dada no instante
em que, quebrando a crisálida, ele [o homem] tem a consciência de dilacerar a si mesmo,
não a resistência oposta de fora” (BATAILLE, 2013, p. 62). Trata-se de um drama
interno a cada ser humano.
Assim também a violência é caracterizada por Weil (1967), que concebe a vida
humana como sendo constituída fundamentalmente pela dualidade violência e logos
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105
A violência e o sagrado.
Coração devotado à morte: sexo e sagrado em ‘Tristão e Isolda’, de Wagner.
106
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(razão, linguagem, discurso). Essa dualidade seria insuperável, estando presente em toda
a história humana – e da filosofia –, como uma realidade permanente. Para Weil,
violência e razão são antônimas, as duas possibilidades extremas do ser humano.
Naturalmente tendemos à violência, mas é-nos dada a possibilidade de escolher107 a
razão. A violência é estranha a quem escolhe a razão; a razão é estranha a quem
permanece na violência. Enquanto se está na violência, não se tem conhecimento da
existência da dualidade, nem se sabe com clareza que se está opondo à razão. Mas o
estado ou escolha inicial não é irreversível. Mesmo quem permaneceu na violência pode,
em algum momento, voltar-se à razão, e então tomará conhecimento de que a dualidade
existe. Por outro lado, quem escolheu a razão sabe necessariamente da existência da
dualidade, e vê a si mesmo, enquanto ser racional, ameaçado pela possibilidade da
violência. O filósofo é o protótipo desse ser racional: ele sabe que a violência é capaz de
destruir a linguagem, o discurso, a filosofia, e portanto a teme, mais do que a qualquer
outra ameaça. Mas quem escolhe a razão também pode a qualquer momento aderir
novamente à violência, se conscientemente – conquanto incontrolavelmente – o desejar.
A tensão entre violência e razão é perene. Ambas são possibilidades constantes para o
ser humano.
Em Bataille, esse drama é a princípio o pano de fundo para a contemplação do
erotismo. Servindo como uma espécie de metonímia da razão, os interditos que se
opõem à ação erótica não devem ser considerados erros de que a humanidade é vítima;
eles são uma escolha sempre possível, legítima, frequentemente inevitável, para as
comunidades humanas, “efeitos do sentimento fundamental de que a humanidade
dependeu” (BATAILLE, 2013, p. 61). Por isso mesmo, a violência, impulso oposto,
nãoé uma vontade refletida, racionalizada, de violência; a razão sempre a nega, por
considerá-la inútil e perigosa, e somente não a suprime porque disso não é capaz.
Em Weil (1967), por um lado, o homem pode compreender a si mesmo e, por este
mesmo fato, não é pura violência,108 mas, por outro, o homem não é, nem jamais será,
ele mesmo, discurso, nem é “essencialmente razão, mas apenas razoável” (PERINE,
2006, p. 325). Verdadeiramente, em seu estado natural, o homem é um ser violento. “A
violência não é somente a outra possibilidade, mas a possibilidade realizada em primeiro
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107
Embora não se trate de uma escolha razoável, mas, sim, livre – “o que significa, do ponto de vista do
discurso absolutamente coerente, uma escolha absurda” (WEIL, 2012, p. 86).
108
Cf. PERINE, 1987, p. 136.
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lugar: o discurso se forma, o homem forma o seu discurso na violência contra a
violência” (WEIL, 1996, p. 69apud VALE, 2011, p. 157). Mas que é a violência? Na
perspectiva weiliana, violência é não se justificar racionalmente. Quando o homem
pretere a violência em favor da razão e se transporta para o mundo do discurso coeso,
cada ato violento é em si negatividade, enquanto ameaça à razão, mas a possibilidade
mesma da violência é positividade, enquanto constatação racional de liberdade. Nesse
estado, o homem de algum modo vence a dualidade violência e razão, porque a
compreende racionalmente e, não obstante tenha liberdade para escolher a violência,
prefere o discurso. Mas, pelo mesmo motivo, num sentido mais profundo, a dualidade
continua sendo necessária, e a violência é, nas palavras de Weil (1967, p. 55apud
PERINE, 2006, p. 322), o “motor sem o qual não haveria movimento”, sem o qual, vale
dizer, a razão não seria razão.
O erotismo causa escândalo porque a violência é sua alma. Toda a sua atividade
“tem por fim atingir o ser mais íntimo, no ponto onde ficamos sem forças, onde nos
enfraquecemos e nos aniquilamos” (STROZZI, 2007, p. 16). O desejo erótico é movido
por, em e para a violência, isto é, a “violência daqueles que negam todo interdito, toda
vergonha, e só podem manter essa negação na violência” (BATAILLE, 2013, p. 163).
Como notará Girard (1998, p. 183), “a violência é ao mesmo tempo o instrumento, o
objeto e o sujeito universal de todos os desejos”, e para Bataille – como também para
Weil (cf. 1967, p. 57) – o homem codifica linguisticamente suas experiências empíricas
a fim de conferir inteligibilidade à vida, de modo que o erotismo, na medida em que é
violento, “existe para nós como se não existisse” (BATAILLE, 2013, pp. 278-9). Se o
mundo do trabalho o recusa por razões práticas evidentes, a linguagem o faz com a
mesma intensidade, porque “a violência é contrária a essa lealdade para com o outro que
é a lógica, que é a lei, que é o princípio da linguagem” (BATAILLE, 2013, p. 217).
Nos termos bataillanos, “a violência que apavora, mas fascina” é visada pela
sexualidade tanto quanto pela morte. Ao passo que o mundo dos interditos, da
consciência, da razão, tem por objetivo conservar a vida, a consequência da
irregularidade, da transgressão, da violência, é a destruição. Erotismo é necessariamente
violência, e violência é necessariamente barbarismo, mas Bataille enfatiza que
barbarismo não é necessariamente involução:
[...] os civilizados falam, os bárbaros se calam, e aquele que fala é sempre
civilizado. Ou, mais exatamente, a violência é silenciosa, já que a linguagem
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é, por definição, a expressão do homem civilizado. [...] civilização e
linguagem se constituíram como se a violência fosse exterior, estranha não
apenas à civilização, mas ao próprio homem (o homem sendo a mesma coisa
que a linguagem). [...] é portanto necessário dizer que a violência, sendo
própria a toda a humanidade, permaneceu em princípio sem voz, que a
humanidade inteira mente assim por omissão e que a própria linguagem está
fundada nessa mentira (BATAILLE, 2013, pp. 212, 214).
Bataille insiste que esse discurso fundado na mentira é um erro grave, uma vez
que nega aquilo mesmo que define o humano. É neste ponto que a exposição weilianada
dualidade violência-razão se mostra melhor realizada: é verdade que o homem não seja a
mesma coisa que a linguagem, que a violência seja própria a toda a humanidade e que
seja possível ao homem racional escolher a violência conscientemente. Mas um primeiro
esclarecimento necessário é que um homem não é cínico quando trata a violência com
estranheza, uma vez que, tendo se voltado à razão, a violência torna-se-lhe de fato
estranha. Outrossim, na medida em que a intenção de Bataille é exaltar (e não apenas
voltar-se a) a possibilidade da violência, requer-se de sua proposta a máxima
independência do discurso. O autor toma o cuidado de se contrapor a toda forma de
“apologia verbosa do erotismo” (BATAILLE, 2013, p. 291), mas lhe escapa que não
apenas a apologia, mas o próprio elogio à violência é já um raciocínio. Mesmo a estética
influenciada pelo movimento surrealista e o desenvolvimento de uma filosofia que
pretensamente sacrifica a linguagem109 dependem de um esclarecimento, dependem do
logos.110
Do ponto compartilhado de que o estado natural do homem é a violência, porém,
se seguirão outras reflexões profícuas. Quando fizer uma aproximação entre o
assassinato e o sacrifício, atos comuns ao homem primitivo, Bataille concluirá que a
semelhança entre ambos é a presença da violência. Como observa Strozzi (2007, p. 112),
daí a se afirmar que a violência é inata ao homem tem-se apenas um passo. E esse passo
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109
Weil não necessita operar emendas semelhantes porque a sua Lógica da filosofia, que revela e
reconhece a permanente dualidade violência e discurso, procura precisar “o logos do discurso eterno
na sua historicidade” (PERINE, 2006, p. 320), através de uma filosofia das atitudes (ver PERINE,
2006, p. 318).
110
Na conclusão de O erotismo, o autor menciona uma objeção feita por Jean Wahl que tem o mesmo
sentido da que desenvolvemos acima. Bataille (2013, p. 301) reconhece então que “no limite, por
vezes, a continuidade e a consciência se aproximam”. Fatalmente, essa concessão implica problema a
trechos (constantes durante o livro) como: “só a violência, uma violência insensata, que quebra os
limites de um mundo redutível à razão, nos abre à continuidade!” (BATAILLE, 2013, p. 164).
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é definitivamente impulsionado pela constatação girardiana de que todos os métodos
com vistas à moderação da violência – entre eles, o sacrifício para apaziguar a ira de um
deus e a punição social imposta a assassinos – envolvem a violência. A violência é
desejada, desejada violentamente, e “se o desejo segue a violência como sua sombra, é
porque ela significa o ser e a divindade” (GIRARD, 1998, p. 190). Em última análise,
todas as formas de violência têm uma origem e uma finalidade em comum, como
mostrará René Girard.
O pensamento moderno, como todos os pensamentos anteriores, busca
explicar o exercício da violência e da cultura em termos de diferenças. É este
o mais enraizado de todos os preconceitos, o próprio fundamento de qualquer
pensamento mítico: apenas uma leitura correta do religioso primitivo pode
dissipá-lo [...] (GIRARD, 1990, p. 380).
3. Da violência ao sagrado: Bataille, Girard e as narrativas do sacrifício
Ainda no prólogo de O erotismo, Bataille (2013, p. 30) revela que sua maior
atenção, enquanto escrevia o livro, dirigia-se à possibilidade de encontrar numa
perspectiva geral a imagem de Deus, pela qual sua adolescência fora obsedada. Assim, o
erotismo é considerado por ele enquanto aspecto da vida religiosa do homem. Uma vez
que os interditos mais comuns à sociedade humana são os que restringem o contato com
a morte e com a atividade sexual, ele conclui que ambas formam o domínio sagrado.
Bataille o caracteriza como o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses, em
complementaridade ao mundo profano. Então se lança a investigar a experiência
interior, crendo que a busca iniciada pela religião permite aos homens modernos
alcançar o êxtase desejado sem para tanto necessitar fundamentar-se em dogmas. Para
alcançá-lo, o erotismo é apresentado como um meio comparável ao sacrifício, este
último mui frequente nos primórdios das sociedades humanas.
O amante não desagrega menos a mulher amada do que o sacrificador que
sangra o homem ou o animal imolado. A mulher, nas mãos daquele que a
assalta, é despossuída de seu ser. Perde, com seu pudor, essa firme barreira
que, separando-a de outrem, a tornava impenetrável: bruscamente, ela se abre
à violência do jogo sexual desencadeado nos órgãos de reprodução, abre-se à
violência impessoal que a transborda de fora (BATAILLE, 2013, pp. 114-5).
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Girard (2008) percebe, na história primitiva e na literatura, um mecanismo
universal: trata-se do desejo mimético. Haveria uma triangularidade no desejo humano:
conscientemente ou não, um sujeito somente é levado a desejar um objeto se este for
desejado por outro sujeito, que é tomado pelo primeiro como modelo. A isto chama-se
mimesis de apropriação. Contudo, não raro, o primeiro sujeito é incapaz de realizar o
desejo que imitou de seu modelo. Então, o segundo sujeito passa a ser visto como um
rival pelo primeiro, e também considera este um rival quando nota que está sendo
imitado, uma vez que a rivalidade não extingue o mimetismo, mas simultaneamente o
sugere e interdita. Tem-se aqui um doublebind, o qual culminará numa crise mimética,
quando objeto, sujeito e desejo tornam-se indiferençáveis. Esse processo gera violência,
a qual tende a se alastrar pela comunidade assim como o mimetismo. O desejo de
violência precisa ser satisfeito, mas não o pode ser difusamente, pois desse modo dar-seia uma autodestruição coletiva. Ele é, então, canalizado contra um bode expiatório,
eleito irracionalmente por todos os demais como o portador da culpa. Tem-se o
“assassinato fundador da cultura humana”, a partir do qual pode-se diferenciar os
integrantes da sociedade e regulamentar ou racionalizar a violência.111 Como o desejo
mimético não se extingue após o homicídio, a vítima do sacrifício, como a etimologia
indica, torna-se sagrada: rememorá-la traz paz à comunidade, que em torno dela se
reúne, se religa (e novamente há conformidade com a etimologia: daí religare, raiz da
palavra religião), procurando sempre renovar ritualisticamente sua morte pacificadora.
Embora esclareça que erotismo e santidade não são de mesma natureza, Bataille
(2013, p. 330) insiste, no texto inédito “A significação do erotismo” tanto quanto na
obra publicada, em apontar o erotismo como fundamentalmente participante do mesmo
impulso que o divino. Ele lembra que o vocabulário dos êxtases místicos é semelhante
ao do amor sexual, e o explica apontando para o fato de ambas as práticas envolverem
arrebatamentos violentos. Girard (1998, p. 49), por seu turno, acusa certa
superficialidade nas interpretações do sagrado que se baseiam na sexualidade e
minimizam o essencial da violência (de que o erotismo é, mesmo para Bataille, uma
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111
Cumpre notar que Girard é mais preciso que Freud, porque distingue o assassinato fundador como um
sacrifício. A partir de Weil, seria difícil conceber um puro e simples assassinato fundador da cultura,
haja vista o ato de matar alguém só poder ser chamado assassínio (i.e., tornar-se alvo de um juízo
moral) após haver se passado da violência para a razão. A ideia de um sacrifício fundador, porém,
parece conciliável com a dualidade weiliana: não há qualquer elemento de racionalidade na violência
que reúne a comunidade em torno do bode expiatório para agredir-lhe fatalmente (a comunidade não
tem consciência de estar injustamente elegendo um bode expiatório), mas os que ali se reuniram serão
repentinamente despertados à razão.
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forma, mas não a única expressão), mencionando o fato de que os modos mais extremos
de violência, ao contrário do ato sexual, são coletivos. Essa ressalva é de alta
importância: em Bataille, o dado antropológico fundamental são os interditos – é a partir
deles que o autor busca compreender o sacrifício. Em Girard, o dado antropológico
fundamental é o desejo mimético, e é a partir das consequências deste – notadamente, a
crise mimética – que se buscará a compreensão dos interditos.
Girard insiste que a teoria mimética não implica uma “iniciação”, pois seus
fundamentos são reconhecíveis por qualquer que estude a história humana. Assim,
empreende uma análise de variados autores que teriam vislumbrado o mecanismo do
desejo mimético, mas não com suficiente distinção para identificá-lo. Entre estes estaria
Freud, que necessitou imaginar um “instinto de morte” humano por “não enxergar que o
dinamismo do desejo mimético é desde sempre orientado para a loucura e a morte”
(GIRARD, 2008, p. 467). Bataille seria outro exemplo? Ele se aproxima da constatação
do mimetismo, quando afirma, ao tratar da orgia, que, “na esfera humana, o exemplo é
contagioso” (BATAILLE, 2013, p. 139). Girard (1998, p. 273), na única menção que faz
a Bataille em A violência e o sagrado, conquanto acuse O erotismo de ser expressão
extrema de um esteticismo decadente, reconhece-lhe o mérito de reformular a verdadeira
função dos interditos, que fora descoberta e esquecida por Freud. Contudo, um ponto de
discrepância é revelador: por subordinar a instituição do sacrifício à existência dos
interditos, Bataille se vê na necessidade de distinguir o sacrifício humano do sacrifício
animal. Para ele, uma vez que sagrado é o que não é sujeito a interditos, a princípio os
homens, percebendo a indiferença dos animais para com as regras humanas,
consideraram os animais mais sagrados do que eles próprios e, como os sacrifícios não
tinham ainda fins substitutivos,112 imolavam precisamente esses animais. Para Girard,
uma vez que o sacrifício é a solução para uma crise mimética, tanto uma vítima humana
quanto uma vítima animal podem, e só podem, ser divinizadas após sacrificadas113,
quando transformam-se em fonte de paz para a comunidade, o que motiva a observação
de interditos que tenham por fim resguardá-la de novas crises miméticas. Girard reitera
que não se pode isolar qualquer tipo de sacrifício de sua instituição mesma. Nesta
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112
Os ritos sacrificiais seriam o modo de o aspecto violento e deletério do divino se manifestar
(BATAILLE, 2013, p. 208), ao ponto de o critério de escolha das vítimas ser a possibilidade de expor o
mais sensivelmente a brutalidade da morte (BATAILLE, 2013, p. 168).
113
A partir desse ponto de vista, pode-se também explicar com naturalidade o questionamento levantado
por Bataille (2013, p. 274) quanto a Cristo não ter sido objeto de meditação mística enquanto vivera.
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perspectiva, a menção que Bataille (2013, p. 207) precisa fazer a um miasma de morte,
causado em todos os homens que acolheram o princípio de divindade, exibe-se
flagrantemente ad hoc, tanto quanto o instinto de morte freudiano.
Nos termos de Mayné (1993, p. 171), a divergência fundamental entre a proposta
“a teológica” de Bataille e a proposta “teológica” de Girard se dá precisamente no
problema da escolha da vítima sacrificial, que, para Bataille, deveria ser algo ou alguém
precioso para a comunidade (MAYNÉ, 1993, p. 11), enquanto, para Girard, poderia ser
praticamente “qualquer um”. Essa não é uma descrição precisa de como Girard enxerga
a instituição do sacrifício. Embora ele afirme que a escolha da espécie a ser imolada é
uma questão de sorte mais do que de talento (GIRARD, 2008, p. 461) – e a razão para
essa posição está dada no que expúnhamos anteriormente, a saber, que a existência dos
interditos é que subordina-se à instituição do sacrifício (que, por sua vez, é engendrado
por um mecanismo de desejo mimético), em vez de o contrário –, quanto à escolha do
indivíduo a ser submetido ao ato sacrificial afirma-se que, quanto mais aguda é a crise
mimética, mais a vítima deve ser “preciosa” aos olhos da comunidade (GIRARD, 1998,
p. 31). Mayné (1993, p. 106) aproxima a visão girardiana à de Henry Miller, que aspira a
um mundo completamente esvaziado de sua violência, o que equivaleria à sociedade
criticada por Bataille, que é “homogênea, autocentrada, sobrecarregada pelo trabalho,
receosa e hostil ao estrangeiro e ao desconhecido, que tem todas as respostas e é tão
amorfa e incapaz de questionar a si mesma que pode gerar o fascismo”. A bem da
verdade, para Girard é nas crises miméticas, em que a violência é eminente, que as
sociedades se mostram homogêneas, porque então não há diferenciação. De todo modo,
ele é categórico ao dizer que a morte do bode expiatório não extingue a violência, e por
isso mesmo o sacrifício precisa ser rememorado sazonalmente em forma de ritos, o que
abre para a possibilidade de se alcançar sempre e novamente o sagrado.
Assim, a ausência do sagrado corretamente denunciada por Bataille não poderá
ser superada retornando-se à violência pré ou meso-sacrificial, confiando-se que aí
haverá um “miasma de morte” capaz de guiar-nos ao divino. O sagrado está no cântico
de “felix culpa!” que a comunidade religiosa entoa, e que Bataille mais de uma vez
precisou mencionar, mas em nenhuma delas reconhecendo que ali se encontrava uma
problematização decisiva à sua proposta.
A experiência mística interessa à crítica de Bataille ao mundo do trabalho na
medida em que ele enxerga nela, ou mais especificamente em seus “estados teopáticos”,
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a possibilidade de uma soberania completa. Na visão bataillana, os transes e
arrebatamentos constituem um desprendimento em relação à manutenção da vida. O
homem, diz Bataille (2013, p. 300) na conclusão de seu livro, é “essa abertura a todo o
possível, essa expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar e que o
jogo da linguagem não poderia enganar”. A esse ser, o sagrado é indispensável, é
mesmo inevitável; “num mundo inteiramente profano, não haveria mais que a mecânica
animal” (BATAILLE, 2013, p. 152). Portanto, é preciso que a noção que se tem do
sagrado incorpore toda a complexidade que sua vivência exige para que a crítica e toda a
proposta bataillana possam se desenvolver.
Na visão de Girard, Bataille é o principal de uma leva de pensadores cujo erro
básico é inverter os significados de arcaico e de cristianismo, propondo em seguida, para
que se retorne ao primeiro, um desvencilhamento do último.114 De fato, conforme indica
Hussey (2000, p. 5), interessava a Bataille as experiências místicas que se mostrassem
independentes de tradições religiosas. Bataillanamente, a soberania só pode ter lugar no
homem enquanto não houver qualquer ente soberano, ausência que permite mesmo ao
mais miserável dos homens ser Deus, desde que blasfeme (BATAILLE, 2013, p. 296).
Esse fetiche do pecado acompanha todo o livro de Bataille, e o cerne de sua crítica ao
cristianismo é que esta religião haveria encoberto o que a transgressão revelaria: “que o
sagrado e o interdito se confundem, e o acesso ao sagrado é dado na violência de uma
infração” (BATAILLE, 2013, p. 150). Em Girard (GIRARD; GOUNELLE;
HOUZIAUX, 2011), é o inverso que se dá. A vingança (rivalidade mimética) é
apresentada como a primeira invenção humana, invenção que possui algo de religioso,
pois transcende os indivíduos que a desejam e dá-lhes a impressão de que transcende
também o tempo e o espaço. Em seguida, exibe-se a peculiaridade do cristianismo: ao
contrário dos mitos arcaicos, em que os bodes expiatórios são sempre culpados, os
Evangelhos narram o drama do sacrifício sob a ótica da vítima, que é inocente. Em
termos girardianos, enquanto os mitos arcaicos encobriam a vocação humana de
perseguir seus semelhantes, fazendo-nos crer que os bodes expiatórios eram de fato
culpados, o cristianismo a revela, mostrando que a vítima é inocente, que culpados são
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114
CHANTRE, Benoît. Entretien René Girard. Extratos. [S.l.]: [s.n.]. Disponível em: <http://www.renegirard.fr/offres/doc_inline_src/57/RenE9+Girard+-+Beaubourg.pdf> Acesso em: 24out. 2014,
02:07:43.
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os que a mataram e, o que é ainda mais profundo, que foi a culpa destes que sacrificou a
vítima inocente, e esta não se vingou.115
Assim lemos no prefácio de Madame Edwarda, incluído por Bataille como
último capítulo de O erotismo:
É o sentido, é a enormidade desse livrinho insensato: esse relato coloca em
jogo, na plenitude de seus atributos, o próprio Deus; e esse Deus, não
obstante, é uma prostituta, em tudo semelhante às outras. Mas aquilo que o
misticismo não pôde dizer (no momento de dizê-lo, ele desfalecia), o erotismo
o diz: Deus não é nada se não for superação de Deus em todos os sentidos; no
sentido do ser vulgar, naquele do horror e da impureza; finalmente, no sentido
de nada... (BATAILLE, 2013, p. 296).
Efetivamente, como afirma Hussey (2000, p. 166, tradução nossa), “a experiência
interior almejada por Bataille tem como objetivo colocar a morte de Deus na forma de
um sacrifício”. Girardianamente, é a realização desta proposta o que os Evangelhos
narram. Bataille insiste no momento erótico como o mais intenso e significativo da vida
humana. Esse estatuto só pode ser posto à prova quando se está perante o limite da vida,
quando se está perante a morte. Esta é a terceira noção crucial em O erotismo para a qual
nos voltaremos, valendo-nos da obra de Roger ScrutonDeath-devotedheart: sex
andthesacred in Wagner’s‘Tristan andIsolde’.
4. A morte que satisfaz: o homem soberano de Bataille perante Tristão e Isolda
A ênfase de Bataille ao tratar da morte não é, num primeiro momento, o
desfalecimento literal a que os romancistas frequentemente recorrem. Seu método é,
prioritariamente, comparar a toda e qualquer forma de morte a prática erótica, que
implica “lapetitemort” (“a pequena morte”, eufemismo da língua francesa para o
orgasmo), cuja distância até a morte real seria insensível (BATAILLE, 2013, p. 266).
Mais do que no clichê do enamorado que se dispõe a morrer na ausência da amada, a
noção bataillana de morte insiste, refletindo a visão do Marquês de Sade, que, se o ato
sexual é comparável ao sacrifício, então o desejo erótico é, no limite, um desejo de que o
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115
Bataille (2013, p. 208) enxerga na divindade uma necessidade primordial de consumir e de arruinar que,
em Girard, não poderia ter outra origem que não o mimetismo humano.
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ser amado pareça tanto quanto possível estar morto, no sentido ativo de negligenciar as
prudências que o medo da morte engendra, para que assim possa ser contemplado como
algo sagrado e, com a condição de que o amante também se entregue à morte, ser
desfrutado num sentimento de continuidade. A morte é o que “abre para a negação da
duração individual” (BATAILLE, 2013, p. 47), “é o que arranca-nos da obstinação que
temos de ver durar o ser descontínuo que somos” (BATAILLE, 2013, p. 40). Entregar-se
a ela tem também um sentido positivo, uma vez que, como dizia Hegel, “a morte é o que
há de mais terrível, e manter a obra da morte é o que exige a maior força” (apud
BATAILLE, 2013, p. 292). Morrer torna-se, assim, num sentido muito particular, ser
liberto da monotonia. Bataille (2013, p. 333) nos diz, numa adição inédita a O erotismo:
“A repetição é a sina do homem que não morre”. Na medida em que confunde objetos
distintos, recusa o desejo de retrair-se em si mesmo e, por assim dizer, instaura a
eternidade, o erotismo é um convite para a morte.
Não obstante para os homens racionalizados ela pareça extraordinária, os
mecanismos reprodutivos encontrados na natureza, em sua maioria, dependem da morte.
Além disso, em muitos casos, um cadáver humano não é considerado impuro exceto
enquanto nele borbulha a dinâmica da decomposição, que aparece como uma forma
agressiva de vida. De algum modo, a vida implica a morte, sendo verdadeira também a
recíproca. Aqui Bataille se encontra com Girard (1998, p. 320), que afirma: “na morte há
morte, mas também há vida. Não existe vida, no plano da comunidade, que não fale da
morte”. E Girard continua, propondo que, devido ao fato de na morte se reunirem o mais
benéfico e o mais maléfico, ela pode aparecer como a verdadeira divindade. Bataille
(2013, p. 294) percebe o paradoxo que torna a morte sagrada, e a equipara à alegria;
segundo ele, “só chegamos ao êxtase na perspectiva, mesmo que longínqua, da morte,
do que nos aniquila”. Como escreve em A experiência interior, a morte significa, num
sentido vulgar, inevitável, mas num sentido profundo, inacessível.
Uma das teses principais de Scruton (2003) é a de que Tristan undIsolde constitui
uma intervenção de Wagner na questão filosófica alemã agravada por Kant e explorada
por, entre outros, Schopenhauer: os limites da autonomia humana. Vislumbrava-se então
o curioso paradoxo de os homens serem, simultaneamente, sujeitos cognoscentes que
agem e objetos do mecanismo natural de causalidade. A tese de Wagner, segundo
Scruton, é a de que no amor erótico o ser humano pode ser ao mesmo tempo sujeito que
contempla e deseja um objeto e objeto que é contemplado e desejado por um sujeito. De
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fato, numa carta inacabada e não enviada de Wagner a Schopenhauer, o compositor fala
da nossa “predisposição ao amor sexual” como “um caminho para a salvação, o
autoconhecimento e a autonegação da vontade” (apud DAUB, 2014, p. 33, tradução
nossa).116 Para Bataille (2013, p. 266), algo semelhantemente, o amor é “um movimento
de perda rápida, logo escorregando para a tragédia, e só se detendo na morte”. Como
escreve Scruton (2003, p. 13, tradução nossa), a morte “está no coração da comunidade
moral, e o amor é uma relação entre coisas moribundas. [...] o amor também inclui, em
sua forma mais alta, um reconhecimento e uma aceitação da morte”. Para Bataille (2013,
p. 257), porém – e nisto se percebe a influência de Nietzsche –, a distinção do homem
em relação ao animal reside no movimento da sexualidade em que a sordidez entra em
jogo e em que, por conseguinte, a sexualidade benéfica “desejada por Deus” dá lugar à
maldição.
Bataille (2013, p. 109) supõe que o mundo dos interditos surgiu como uma reação
dos primeiros homens à reprodução da vida (alcançada, no caso humano, por vias
sexuais) e à morte: “considerada em seu conjunto, a vida é o imenso movimento que a
reprodução e a morte compõem”, e isso nos causa vertigem. Mas tal reação haver-se-ia
constituído somente após a consciência dos primeiros homens ter se despertado pelo
trabalho. Se, por um lado, o falecimento de um trabalhador acarreta empecilhos
concretos para o progresso do trabalho, por outro, a morte entrega o falecido ao mundo
da continuidade, colocando em evidência aos homens vivos que ainda trabalham (e que,
assim, conhecem a própria descontinuidade) quão vão é o seu labor. Desse modo, não
apenas a morte física, mas também a morte alcançada no erotismo, na medida em que é
um caminho para a continuidade, é um “grave desarranjo”, um “completo transtorno”,
um “desastre elementar”, em relação ao mundo do trabalho. Nesse sentido, assassinato,
guerra e vida sexual podem ser equiparados, porque todas essas atividades são, em tese,
negações do medo de morrer e, como se expressa Strozzi (2007, p. 108), “o trabalho e o
medo de morrer são solidários”.
Em sua motivação de desafiar o medo da morte e afirmar a naturalidade da
mesma, Bataille empreende uma apologia de “tudo o que é mais do que o que é”, isto é,
uma apologia da superação dos limites:“jamais me subordino, mas reservo minha
soberania, que só minha morte, que provará a impossibilidade em que eu estava de me
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116
Bataille (2013, p. 258) considerava as teses de Schopenhauer acerca da sexualidade “simplificações”.
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limitar ao ser sem excesso, separa de mim” (BATAILLE, 2013, p. 295).117Scruton não é
totalmente alheio à visão de que a morte no erotismo, conquanto seja um caminho ao
sagrado, envolve a maldição. Ele diz:
Um mundo de coisas sagradas é um mundo de santidade, consagração e
sacrifício, e também de sacrilégio e profanação: essas coisas estão conectadas,
não meramente na etimologia, mas também nas profundezas de nossas
emoções sociais (SCRUTON, 2003, p. 7, tradução nossa).
Entretanto, ele observa que “a humanidade não pode viver de profanação” e, “se
não redescobrirmos o momento sagrado, perderemos a perspectiva em que a nossa
liberdade reside” (SCRUTON, 2003, p. 198, tradução nossa). A diferença das
conclusões que se encontram na filosofia de Bataille se dá pela drástica concepção do
autor do que seja a supracitada maldição. Ora, para Bataille, superar limites (morrer) é
tão inevitável quanto estabelecê-los, e o Deus cristão é um dos limites estabelecidos
pelos homens: é inevitável superar Deus. Bataille (2013, p. 295) afirma que “o ser nos é
dado numa superação intolerável do ser, não menos intolerável do que a morte”, e que,
haja vista a morte literal retirar o ser de quem a ela sucumbe (uma vez que para além
dela não há redenção), devemos buscá-lo no sentimento da morte (que pode ser atingido,
por exemplo, no erotismo). Bataille (2013, p. 165) arremata: “O que o amor por Deus
atinge no ápice é em verdade a morte de Deus”.
A existência desse sentimento (que não está presente apenas em Bataille) é
comentada por Scruton:
A sociedade moderna está vivendo à sombra da morte de seus deuses. E isso
significa que nós vivemos com uma consciência realçada da nossa
contingência – do fato de sermos lançados no mundo sem nenhum objetivo ou
explicação (SCRUTON, 2003, p. 10, tradução nossa).
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117
Nos termos de Girard (1998, p. 319), “a morte é a pior violência que se pode sofrer”. Com efeito, a
morte pode, tanto quanto a violência, ser considerada como estando em oposição à razão. Diante desta,
diz-nos Strozzi (2007, p. 152) acompanhando o pensamento de Bataille, a morte é uma impostura.
Aceitando-se essa oposição – e não vemos como se possa bataillanamente negá-la –, é forçoso
asseverar que, assim como o apelo à justificação racional para sustentar a violência, o apelo à
manutenção da descontinuidade individual para exaltar a premência da morte exibe-se como uma
grave inconsistência.
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Mas, ele continua,
o amor erótico não nos permite escapar de nossa culpa; antes, coloca-nos
numa posição em que a confrontamos e expiamos. O amor do tipo mais alto é
uma peregrinação para um lugar de purificação e sacrifício. E nesse lugar
permanece a Morte, guardiã do mistério último. No amor nossa contingência
se torna uma necessidade, e nossa mortalidade um tipo de eternidade
[...](SCRUTON, 2003, p. 11, tradução nossa).
Não está nos objetivos de Scruton distinguir o erotismo (que, numa das
caracterizações de Bataille, não tem a reprodução como fim) do amor romântico; antes,
ele se refere abrangentemente a um “amor erótico”. Contudo, perante a insistência de
Bataille em associar o erotismo à morte, podemos apreender as disparidades entre a sua
concepção do erotismo e a concepção de Scruton do amor erótico a partir das ressalvas
que este faz à devoção à morte. Ele enfatiza que a redenção, para os deuses tanto quanto
para nós, está no amor e na aceitação exaltada da morte que o amor torna possível, ou
seja, que a morte não é ela mesma a redenção, mas adquire esse significado “quando
concebida, por assim dizer, sob o aspecto do amor – apenas quando parte de um ato todo
abrangente de renúncia, inspirado pelo amor” (SCRUTON, 2003, p. 13, tradução nossa).
Em Bataille, em princípio, a renúncia é portadora de um valor inerente. É
fundamentalmente à negação de si mesmo implicada pelo erotismo que o autor dirige
seu elogio. Entretanto, se o que se afirma em detrimento do “eu” é a continuidade, a
negação de si requer necessariamente a presença de outrem.118 Disso decorre que a
morte enquanto mera superação de limites, no erotismo, depende de uma segunda
personagem cuja ausência poderia causar no amante, em última instância, uma morte
literal. Ou seja: a morte que é objeto de devoção na ópera de Wagner é a continuidade
bataillana levada às últimas consequências. Bataille (2013, p. 268) o vislumbra, quando
afirma que “a privação eventual da posse do outro – ou a perda de seu amor – não é
sentida menos duramente do que uma ameaça de morte”, e que dizê-lo não é equiparar a
febre sensual ao desejo de morrer ou o amor ao desejo de perder, mas assumir que o
amor é o desejo de “viver no medo de sua perda possível, o ser amado mantendo o
amante à beira do desfalecimento”.
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118
Evidentemente, utilizando-se “erotismo” como metonímia para outras experiências interiores (e.g., o
êxtase místico), a presença física do amado também se tornará metonímica, havendo apenas que se
preservar, noutros termos, a noção de necessidade de um Outro sagrado.
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Qual será, destarte, a inovação substancial da proposta de Bataille, comparada, por
exemplo, à proposta de Wagner?119 Sabemos que o homem só pode alcançar o erotismo,
neste mundo da razão, por meio da violência extrema que é a morte. Quanto mais lhe é
negado alcançar a continuidade, mais devotado à morte ele se mostra, e essa devoção é
em si mesma uma abertura para a continuidade. Esse jogo pode se aprofundar ao ponto
de fazer brotar o desejo de soçobrar, que é o desejo de morrer acrescido do desejo de
viver “nos limites do possível e do impossível”, que “fustiga intimamente cada ser
humano”, e que “talvez só Santa Teresa tenha pintado com suficiente força nestas
palavras: ‘Morro de não morrer’!” (BATAILLE, 2013, p. 266).
Bataille pensou que o erotismo declarasse a morte de Deus porque depreendeu da
vulnerabilidade dos sujeitos que se relacionam a falta de sentido da existência. Wagner
fez Tristão e Isolda se entregarem à morte objetivamente, para assim nos mostrar que a
vulnerabilidade da vida é a conditio sinequa non do amar. Como descreve Scruton
(2003, p. 8, tradução nossa): na ópera wagneriana, aponta-se “o caminho para a
redenção, mostrando-se que a mortalidade, a contingência e o Geworfenheit [‘serlançado’] acidental da nossa existência são, na verdade, pré-condições do sacrifício que
faz a vida valer a pena”.
5. Considerações finais
Assim, acompanhamos neste artigo o tratamento que Georges Bataille dispensa a
três noções fundamentais para sua visão do erotismo, insistentemente confrontando-as
com o tratamento dispensado às mesmas noções por outros autores: a violência, o
sagrado e a morte. Na maior parte do tempo, o expediente bataillano é teológico (ou,
antes, “a teológico”), mas a aplicação mais recorrente em O erotismo dessas e de outras
noções é como fundamentação para uma crítica ao mundo do trabalho. Bataille (2013, p.
293), sem dúvida, tem o mérito de analisar os interditos estabelecidos pelas sociedades
humanas evitando a crítica rasteira de que eles são preconceitos dos quais é tempo de se
desfazer. Contudo, sua proposta esbarra em problemas cruciais, que se tornam patentes
quando nos esforçamos em colocá-lo em diálogo com outros pensadores.
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119
Note-se que, para Bataille (2013, p. 329), como se lê no inédito “A significação do erotismo”, os
modernos passaram por uma revolução sexual que lhes alterou os costumes e lhes aprofundou a
consciência de si, opondo-os de maneira contundente à humanidade anterior.
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Em primeiro lugar, seu elogio à violência coloca em xeque a própria dualidade
violência e razão que ele em larga medida, e reconhecidamente, tomara emprestada de
Eric Weil e que é fundamental para todo o restante de seu argumento. Em segundo
lugar, e em contrapartida, o modo como sobrepõe os interditos ao descobrimento do
sagrado, inclusive em instituições como o sacrifício, minimiza a motivação
genuinamente violenta do ato sacrificial, e o desloca do âmbito do desejo. Em terceiro
lugar, sua idealização da morte impede uma consideração profunda da alteridade, da
morte que é desejada como autossacrifício em favor de outro.
Embora Bataille diga não ser nem um pouco inclinado a pensar que o essencial
neste mundo seja a volúpia, que “o homem não é limitado ao órgão do gozo” e “não há
razão para dar ao amor sexual uma eminência que só a vida em sua totalidade tem”
(BATAILLE, 2013, p. 297), ele também afirma que “o erotismo é o problema dos
problemas”, que, “enquanto animal erótico, o homem é para si mesmo um problema” e
“a suprema interrogação filosófica coincide [...] com o ápice do erotismo” (BATAILLE,
2013, p. 299). Mais do que isso: segundo postula Bataille (2013, p. 329) em “A
significação do erotismo”, “podemos reencontrar a significação do erotismo no plano em
que se colocava outrora a religião”, e “talvez cheguemos assim a uma das descobertas
mais importantes de nosso tempo”.
Bataille (2013, p. 216) vê com simpatia o homem soberano, de que Sade foi portavoz, que “não tem a mínima consideração por seus semelhantes”, “nunca se explica” e
“não presta contas a ninguém”. Segundo ele,a solidariedade em relação a todos os outros
“impede um homem de ter uma atitude soberana. O respeito do homem pelo homem
engaja num ciclo de servidão em que não temos mais do que momentos subordinados
[...]” (BATAILLE, 2013, p. 198). Bataille (2013, p. 85) posiciona-se contrariamente ao
desejo de produzir a baixo custo e favoravelmente aos procedimentos dispendiosos e
custosos; contrariamente ao capitalismo (BATAILLE, 2013, p. 234), em que se acumula
os resultados do trabalho para criar novos produtos, e favoravelmente ao gasto vão,
inútil, doentio, ruinoso (BATAILLE, 2013, p. 197). O erotismo seria a traição contra o
mundo em que o aumento dos recursos é a regra, o caminho para invertê-lo e torná-lo ao
avesso.
O excesso está fora da razão, a volúpia zomba do trabalho. “Há, portanto, entre a
consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, uma incompatibilidade
cujo rigor não poderia ser negado” (BATAILLE, 2013, p. 188). De fato, não se pode
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negá-lo. No trabalho, o trabalhador é um meio, uma coisa, e na exuberância sexual, o
homem não pode ser reduzido a coisa. Contudo, para além das objeções que se pode
erguer a partir das ciências históricas, sociológicas e econômicas contra a proposta de
Bataille, há uma solução alternativa que escapou ao nosso autor: a violência define os
impulsos humanos primitivos num sentido radical, em que não há espaço para
fragmentos de racionalidade, e que assim o é porque descende inexoravelmente do
desejo (ao mesmo tempo em que o funda); em contrapartida, é ao sermos
simultaneamente sujeitos e objetos do desejo que a possibilidade de um autossacrifício
consciente se nos apresenta. Superada a negação meramente retórica da razão, pode-se
usar da consciência ligada ao trabalho para, na medida do possível, humanizá-lo.
Assim se encerra O erotismo:
É na contestação, fundada na crítica das origens, que a filosofia,
transformando-se numa transgressão da filosofia, chega ao ápice do ser. O
ápice do ser só se revela em sua totalidade no movimento da transgressão, em
que o pensamento fundado, pelo trabalho, no desenvolvimento da
consciência, supera por fim o trabalho, sabendo que não pode se subordinar a
ele (BATAILLE, 2013, p. 302).
Resta questionar, ao fim deste esforço de debate, se não é hora de transgredir o
silêncio que a consciência autodenominada soberana impõe.
Referências
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DAUB, Adrian. Tristan’s shadow: sexuality and the total work of art after Wagner.
1 ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.
GIRARD, René. A violência e o sagrado.2 ed.São Paulo:Editora da UNESP/Paz e
Terra, 1998. (1 ed.: 1990).
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Paulo: É Realizações, 2011.
HUSSEY, Andrew. The inner scar: the mysticism of Georges Bataille. 1 ed.
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MAYNÉ, Gilles. Eroticism in Georges Bataille and Henry Miller.1 ed. Birmingham:
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MORAES, Eliane Robert. Traços de Eros. Posfácio. In: BATAILLE, Georges. O
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107, pp. 315–326, 2006.
SCRUTON, Roger. Death-devoted heart: sex and the sacred in Wagner’s ‘Tristan
and Isolde’.1 ed. New York: Oxford University Press, 2003.
STROZZI, Gina Valbão. Erotismo e religião em Georges Bataille.Tese de doutorado.
Pontifícia
Universidade
Católica
de
São
Paulo.
2007.
Disponível
em:
<http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5503> Acesso em:
24out. 2014, 02:07:08.
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WEIL, Eric. Logique de laphilosophie.2 ed. Paris: Vrin, 1967.
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O SER PRIMEIRO N ’O LIVRO DAS OPINIÕES DOS
HABITANTES DA CIDADE EXCELENTE, DE AL-FĀRĀBĪ
Carolina de Pontes Rubira
Graduanda em Letras Espanhol-Português na USP
Resumo: Em O Livro a respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A Cidade
Excelente, escrito pelo filósofo árabe Al-Fārābī (870 – 950 d.C.), a apresentação do Ser
Primeiro é de grande importância para o autor. Inicialmente, a presença de um termo
como ‘Ser Primeiro’, ligado a questões essencialmente metafísicas, num tratado político,
chama atenção. A justificativa central para tal fato é que se tudo parte do Ser Primeiro,
não se pode definir coisa alguma sem antes compreendê-lo. As bases da apresentação
desse termo metafísico estão na leitura que o filósofo árabe faz de Aristóteles, sendo
importante que se faça uma busca pelas alusões que aproximam o texto de Al-Fārābī do
aristotélico, trabalho a que se propõe este artigo.
Palavras-chave: Al-Fārābī. Aristóteles. Metafísica. Ser Primeiro.
Abstract: In the Book of Opinions of the people of the Ideal City, written by Arab
philosopher Al-Farabi (870-950 AD), the presentation of the First Cause is very
important to the author. Initially, the presence of a term such as "First Cause”, a
metaphysical term, in a Political Treaty, draws attention. The justification for this is that
all things comes from the First Being, so is impossible to definite anything without
understanding it first. The basis of this presentation of this metaphysical term is in the
reading that the Arab philosopher makes of Aristotle, so this article proposes a search by
this allusions that Al-Farabi's makes to the Aristotelian text, specifically related to Being
Cause.
Keywords: Al-Fārābī. Aristotle. First Cause. Metaphysics.
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Abū Nasr Muhammad ibn al-Farakh Al-Fārābī (870 – 950 d.C.) nasceu na região
hoje conhecida como Uzbequistão. Foi o filósofo do mundo árabe medieval que
desenvolveu o conhecimento filosófico inaugurado por Al-Kindī. Os escritos de AlFārābī tiveram grande influência sobre os filósofos que o sobrevieram, marcando sua
imensa importância no pensamento filosófico do mundo árabe.
Uma das obras deixadas por Al-Fārābī é O Livro a respeito dos princípios das
opiniões dos habitantes d’ A Cidade Excelente, que se apresenta como uma série de
manuscritos não numerados e sem títulos, organizados de acordo com os assuntos
abordados; a divisão de capítulos que hoje se observa foi feita com base na ordem dos
assuntos, não tendo sido dispostos dessa maneira pelo autor. É na tradução que traz tal
divisão que este artigo se baseia.
Os capítulos I a VI abordam uma série de questões metafísicas, fato que chama
atenção considerando-se que O Livro a respeito dos princípios das opiniões dos
habitantes d’ A Cidade Excelente é um tratado político. Essas questões metafísicas
referem-se essencialmente ao Ser Primeiro, “que guarda semelhanças com o Uno de
Plotino”120, do qual emanaria tudo que existe. Certamente, é necessário que o tratado se
inicie desse modo ao se considerar o fundamento estruturante de todo o texto: “o
existente primeiro é a causa primeira da existência de todos os demais existentes”121.
Considerando-se esta afirmação de Al-Fārābī, torna-se clara a necessidade de definir o
Ser Primeiro, pois se tudo parte dele, é imprescindível explicá-lo para que toda a
definição que se suceda esteja satisfatoriamente contextualizada.
Referente às abordagens metafísicas n’ O Livro a respeito dos princípios das
opiniões dos habitantes d’ A Cidade Excelente, são muitos os conceitos presentes na
Metafísica de Aristóteles utilizados por Al-Fārābī para compor seu pensamento. Todavia,
apesar de o presente artigo ter como objetivo demonstrar a presença dos textos
aristotélicos na apresentação do Ser Primeiro na referida obra de Al-Fārābī, é preciso ter
em conta a importância de Plotino na constituição do pensamento exposto pelo filósofo
árabe, sobretudo no que concerne às Enéadas plotinianas, por conformarem suas fortes
características neoplatônicas.
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120 ATTIE F°, M. Falsafa-A filosofia entre os árabes, 2002, p. 200.
121 Al-Fārābī, 2009, p.79.
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Tal influência ocorreu de maneira curiosa, pois, entre as obras aristotélicas
utilizadas por Al-Fārābī estavam alguns comentários das Enéadas plotinianas escritas,
provavelmente, por um discípulo de Plotino, Porfírio122. Sobre seu possível autor, temos
no prólogo da Teologia:
Do livro do filósofo Aristóteles, intitulado em grego Teologia, a saber, o
discurso sobre a divindade; o comentário de Porfírio Sírio, vertida para o
árabe por ‘Abd al-Masih ibn‘Abdallah ibn Na‘ima al-Himsi e corrigida, para
Ahmad ibn al-Mu‘‘tasim bi-l-llah por Abu Yusuf Ya‘qub ibn Ishaq al-Kindi,
Deus tenha misericórdia dele. (PSEUDO-ARISTÓTELES:2010, p. 61)
Esses comentários restringem-se aos livros IV, V e VI das Enéadas, são
apresentados em ordem diferente do que se vê no texto plotiniano e foram atribuídos
pelos árabes a Aristóteles, sendo nomeados como Teologia de Aristóteles. Esse
‘Aristóteles neoplatônico’ trouxe a Al-Fārābī, como apontado por Miguel Attiê Filho
(2002), meios de buscar uma harmonização entre as ideias de Platão e Aristóteles, o que
se vê no tratado O livro da concordância entre as ideias dos sábios: Platão – o divino –
e Aristóteles, sobre o qual compreende-se que:
Sem dúvida um dos pontos altos do tratado foi tentativa de harmonização
entre a teoria e as ideias de Platão com as teses de Aristóteles. A obra que
serviu de guia para essa harmonização foi a própria Teologia de Aristóteles,
pois Al-Fārābī, ao mesmo tempo que interpretou Platão segundo a doutrina
neoplatônica, tomou por aristotélico o mesmo neoplatonismo presente na
Teologia, fato que o possibilitou uma leitura de aproximação entre os dois
filósofos gregos. (ATTIE FILHO: 2002, p. 199)
Nesta conjuntura, é claro que qualquer citação à obra de Plotino deva ter em conta
o texto ao qual Al-Fārābī teve acesso ao constituir seu pensamento, ou seja, a Teologia
de Aristóteles, que apresenta em seu prólogo:
O nosso propósito neste livro é discorrer primeiro sobre a divindade, e
explicá-la na medida em que é a causa primeira, e em que a eternidade e o
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122 ATTIE F°, M. Falsafa-A filosofia entre os árabes, 2002, p. 155.
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tempo lhe estão sujeitas, e que é a causa das causas e as gera através de um
tipo de causalidade. Igualmente, o poder luminoso dá-se a partir dela para o
intelecto, e dela através do intelecto para a alma universal celeste, e do
intelecto através da alma para a natureza, e da alma através da natureza para
as coisas que nascem e morrem, e esse
acto advém do intelecto, sem movimento. O movimento de todas as coisas dáse a partir dele e por sua causa, e as coisas movem-se em sua direcção, por
desejo e atracção. O nosso propósito neste livro é discorrer primeiro sobre a
divindade, e explicá-la na medida em que é a causa primeira, e em que a
eternidade e o tempo lhe estão sujeitas, e que é a causa das causas e as gera
através de um tipo de causalidade.
(PSEUDO-ARISTÓTELES: 2010, p. 63)
É clara, na Teologia, a importância da causa primeira sobre a qual se debruçará
Al-Fārābī no início d ‘O Livro a respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A
Cidade Excelente, bem como as características que a compõem retomadas pelo filósofo
árabe. Contudo, ainda que uma obra de grande importância para o pensamento de AlFārābī tenha sido erroneamente atribuída a Aristóteles, o filósofo árabe possuía amplo
conhecimento sobre os escritos do Estagirita, tendo produzido numerosos comentários
sobre textos aristotélicos. Sendo assim, é também justificável uma leitura d‘O Livro a
respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A Cidade Excelente com bases na
Metafísica aristotélica.
Dessa maneira, também pela combinação do pensamento de Al-Fārābī com
conceitos aristotélicos presentes na Metafísica, tem-se nos capítulo iniciais d ‘O Livro a
respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A Cidade Excelente uma
exposição detalhada do que seria o Ser Primeiro e é essa exposição que será
demonstrada neste artigo. Também nesses capítulos apresenta-se a linha de raciocínio
seguida pelo filósofo para denominar o Ser Primeiro, aquele de quem se originam todas
as coisas.
De acordo com Al-Fārābī, o Ser Primeiro é aquele que existe de maneira
fundamental, nada falta a ele, nada existe antes dele, estando, portanto no nível mais alto
da perfeição. Este Ser é perfeito, ou seja, ele se perfaz. Nesta definição inicial
apresentada por Al-Fārābī, o filósofo ressalta o fato de que o Ser Primeiro, por meio da
própria substância, basta a si mesmo: ele é um tipo de substância à qual nada se compara
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além dele próprio. Sobre essa noção de substância, Al-Fārābī utilizou um conceito que
se assemelha ao apresentado por Aristóteles no Livro XII da Metafísica; observar a
definição dada por Aristóteles é um modo de compreender melhor do que se trata essa
substância que é o Ser Primeiro: “Se consideramos a realidade como um todo, a
substância é a primeira parte; e se a consideramos como a série das categorias, também
assim a substância é primeira [...].(Aristóteles, 1069a 19-21).
A existência do Ser Primeiro é una, portanto ele, em sua substância, não abarca
coisas que não sejam ele próprio123. Tudo parte do Ser Primeiro, mas ele não se divide
para gerar: ele não se destitui da própria unidade para gerar, permanecendo absoluto em
sua substância, já que, pela natureza dessa substância, não há nada que se associe ao Ser
Primeiro.
Todos os existentes possuem causa. Nestas é impossível ir ao infinito, que seria
admitir que não há causa, portanto se admite que haja uma causa que cause outras causas
e não seja causada. Esta causa não causada é o que pode ser dita Causa Primeira. Não há
uma causa para a existência do Ser Primeiro, pois, se nada o antecede, algo que o tivesse
causado teria sido anterior a ele; isso anularia sua qualidade de eterno, portanto, não
seria possível que algo o causasse. Assim sendo, o Ser Primeiro também pode ser
entendido como a Causa Primeira.
Ele também é completo e a ele nada pode se assemelhar ou comparar, pois sendo
completo não pode ser corrompido por algo que a ele se some ou dele se subtraia Na
natureza nunca há dois seres perfeitamente iguais, pois seriam excludentes. Logo, a
criação deve ter vindo de um único Ser Primeiro; sua estrutura e permanência residem
na substância que ele é. Sobre ser completo, explica-nos Al-Fārābī:
(...) o completo é aquilo fora do qual não é possível encontrar uma existência
da [mesma] espécie que a sua. Isso ocorre em qualquer coisa que seja: o
completo em grandeza é aquilo fora do qual não existe grande algum; o
completo em beleza é aquilo fora do qual não existe beleza de espécie
alguma e, do mesmo modo, o completo em substância é aquilo fora do qual
não existe coisa alguma que seja da [mesma] espécie de sua substância. (AlFārābī: 2009, p.83)
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123 Apresenta-se aqui a ideia de “Enteléquia” em Aristóteles, isto é, tal Ser Primeiro é perfeito, que se
perfaz por sua característica de atualização completa (Met., IX, 8, 1050a 23). G. Leibniz se apropria do
termo.
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A substância que define este Ser Primeiro não pode existir à parte, parece tratar-se
da substância eterna e imóvel da qual fala Aristóteles em Metafísica (XII, 6), ele
também não tem extensão, não apresentando, portanto, forma física, corpo.
Considerando essas definições, no capítulo IV d’ O Livro a respeito dos princípios
das opiniões dos habitantes d’ A Cidade Excelente, Al-Fārābī conclui que o Ser
Primeiro é uno e indivisível, discorrendo sobre esse assunto no capítulo seguinte. Esse
conceito do uno também se aproxima do que se encontra na Metafísica de Aristóteles:
Se existe algo que é Ser-em-si e Um-em-si, será muito difícil compreender
como poderá existir algo além deles, isto é, como os seres poderão ser
múltiplos. De fato, o que não é ser, não é; consequentemente cairíamos na
doutrina de Parmênides, para quem todos os seres constituem uma unidade e
esta é o ser. (Aristóteles, 1001a 30-1001b1.)
Se o Ser Primeiro é uno e abarca tudo que existe, nele não há separação entre
aquele que intelige, inteligível e inteligência: nele essas três coisas são uma, ou seja, ele
é o inteligente que intelige a si mesmo por meio da própria inteligência, formando sobre
si uma espécie de dobradura. Sendo absolutamente autossuficiente, único, uno e
indivisível; não possuindo corpo, por não se compor por partes distintas, o Ser Primeiro
apresenta-se como a inteligência pura; afinal, aquilo que é conhecido por nós, existe e
não tem forma é a inteligência. Daí se pode concluir que o Ser Primeiro, aquele que
fundamenta todos os existentes, é uma espécie de inteligência. Disto resulta que, sendo
ele uma forma de inteligência, a melhor maneira de o homem se aproximar dele é pelo
intelecto.
Al-Fārābī destaca algumas diferenças entre o homem e o Ser Primeiro. A principal
delas é o fato de o homem não ser pura inteligência por estar envolvido com a matéria;
portanto o homem se trata de um ser que não é uno e que é divisível: “No que diz
respeito ao homem, o inteligível não é, portanto, aquele [mesmo] que intelige; nem
jamais o intelecto é [o mesmo] que o inteligível”124. Assim sendo, o homem não é
possuidor de uma inteligência, mas de um intelecto, e se concebe, pois, que o homem é,
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124 Al-Fārābī , 2009, p.91.
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por si, a criatura própria para aproximar-se do Ser primeiro, por ser aquele que possui
intelecto, guardada a ressalva de que não é capaz de inteligir a si próprio.
O conhecimento do Ser Primeiro é excelente e supremo, afinal dele partem todas
as coisas e todo conhecimento sobre elas. Enquanto o homem necessita dos sentidos
para estabelecer contato com o mundo e compreendê-lo, o Ser Primeiro contém em si
essa compreensão.
Al-Fārābī ainda acrescenta a essa comparação entre o homem e o Ser Primeiro a
relação entre estar vivo e ser vida. O homem só se reconhece como vivo ao relacionar-se
com o mundo através dos sentidos; o Ser Primeiro, sendo o fundamento existencial de
tudo, é real, vivo e vida ao mesmo tempo.
A dificuldade do homem em reconhecer o Ser Primeiro reside na “debilidade de
nossas faculdades intelectuais”125; essa debilidade deve-se essencialmente à grandeza
ofuscante da excelência do Ser Primeiro. Al-Fārābī compara o Ser Primeiro a uma luz
tão imensa que cega àquele que a vislumbra, daí a dificuldade do homem em reconhecêlo.
Enquanto o Ser Primeiro é uno e possuidor de inteligíveis plenos em sua
substância, no homem os inteligíveis são incompletos, entendendo-se ‘inteligíveis’ como
“objetos de pensamento, da inteligência, da razão”126.
No que se refere ao intelecto no homem, o modo de utilizá-lo para aproximar-se
do Ser Primeiro seria o homem se afastar da matéria (que o torna divisível) buscando ser
intelecto em ato.
Ser intelecto em ato liga-se às noções de ato e potência que estão presentes no
Livro IX da Metafísica de Aristóteles, sendo a potência a possibilidade de agir e o ato, a
potência em ação. Daí conclui-se que o homem deve pôr em ação a potência do intelecto
para aproximar-se do Ser Primeiro.
No que se refere à perfeição, a perfeição humana provém de fatores externos,
como bens conquistados; no Ser Primeiro, a perfeição é inerente a ele, ele não possui
coisas consideradas perfeitas, ele é a própria perfeição. Logo, o Ser Primeiro, sendo
perfeito em si mesmo, se satisfaz em si mesmo, sendo amado e amante de si próprio:
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125 Ib., p.95.
126 Dicionário de Filosofia, 2001, p.1539.
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Isto é o contrário do que se encontra em nós, pois o que nos apaixona é a
virtude e a beleza, ao passo que aquele que, em nós se apaixona não é a beleza
e a virtude, mas é outra faculdade. Ora, esta [faculdade] não pertence àquilo
pelo que se está apaixonado. Portanto, para nós, aquele que se apaixona não é
propriamente aquilo porque se está apaixonado. Quanto ao [primeiro] (...), o
amante é o amado. (Al-Fārābī: 2009, p.103)
Inteligência e Amor são os polos da argumentação de Al-Fārābī que se inicia com
questões metafísicas e é encerrada com a exposição de atributos divinos. A construção
do pensamento feita por Al-Fārābī inicia-se por uma demonstração daquilo que o Ser
Primeiro não é, depois pelo que ele é, seguindo-se da comparação entre o homem e o Ser
Primeiro e finalizando-se com a demonstração da característica do Ser Primeiro de ser
amado e amante ao mesmo tempo. Trata-se de um método pedagógico: primeiro se
começa do mais fácil, mais possível de ser compreendido, até serem atingidas as
categorias mais difíceis de serem apreendidas. Havendo, assim, uma ascensão da
compreensão e da própria ideia de Ser Primeiro.
Toda essa demonstração apresenta o caráter primordial do Ser Primeiro enquanto
substância fundamental emanadora de tudo o que há; além de sua capacidade de
preservar a própria unidade, mesmo originando outras coisas.
A definição do Ser Primeiro é fundamental para que sejam compreendidas as
estruturas que serão apresentadas por Al-Fārābī nos capítulos seguintes d’ O Livro a
respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A Cidade Excelente,
especialmente no que se refere à teoria das emanações, resumidamente descrita por
Catarina Belo (2010) na introdução à obra do Pseudo-Aristóteles, A teologia de
Aristóteles: consiste na teoria de que do Uno emana o intelecto que, por sua vez, produz
a alma criadora do mundo terrestre. Al-Fārābī identifica esse primeiro intelecto com
Deus; sendo assim, o intelecto divino ou situado no mundo inteligível não seria inferior
a Deus, mas igual a Ele. Em vez de duas emanações (intelecto e alma), a partir da
primeira causa haveria dez emanações. O mundo celeste surgiria por meio de uma
emanação devido à autorreflexão do primeiro intelecto que é Deus. Essa primeira
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emanação é o intelecto separado. Ao pensar sobre o Primeiro a primeira causa gera outro
intelecto. Assim se procede até se chegar ao total de dez intelectos emanados.127
Fique clara a complexidade de tal teoria, apresentada neste artigo de forma
extremamente resumida apenas para que se tenha em conta quão importante é a
compreensão sobre Causa Primeira na construção do pensamento de Al-Fārābī. Além
disso, pelo modo como o presente artigo se propôs a introduzir as características gerais
da Causa Primeira e sua importância, buscou-se demonstrar que, apesar das fortes
características neoplatônicas presentes na referida obra, é possível destacar traços da
Metafísica aristotélica n’ O Livro a respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’
A Cidade Excelente.
Referências
AL-FARABI, Abul Nasr. O livro dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A
Cidade Excelente. Trad. Miguel Attie Filho. São Paulo: Tiraz, Revista de Estudos
Árabes e Culturas do Oriente Médio, vol. VI, pp. 76-105, 2009.
ARISTÓTELES, Metafísica. Trad. Leonel Vallandro, Porto Alegre: Globo, 1969.
ARISTÓTELES. Metafísica. Bilíngue. Trad. a partir do italiano por Marcelo Perine.
São Paulo: Loyola, 2002.
ARISTÓTELES. Da Alma. Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2001.
ATTIE F°, Miguel. Falsafa, a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Atena, 2002.
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127
BELO, Catarina. Introdução in A Teologia de Aristóteles, pp. 21-22.
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GUERRERO, R. R. A Cidade Excelente de Alfarabi. Trad. Jacqueline Beyrouti Del
Nero. São Paulo: Revista Tiraz, Revista de Estudos Árabes e Culturas do Oriente
Médio, nº3, pp.90-103, 2006.
PSEUDO-ARISTÒTELES. Teologia de Aristóteles. Trad. Catarina Belo. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da moeda, v. XIII, Tomo II, 2010.
Tomo II. Trad. BAGNO, Marcos; CAMPANÁRIO, Nicolás Niymi; GONÇALVES,
Maria Stela; SOBRAL, Adail U. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola,
2005.
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REFUTAÇÃO DO COGNITIVISMO MORAL NÃO-NATURALISTA
Rafael Graebin Vogelmann
Granduando em filosofia na UFRGS
Resumo: Apresentaremos uma refutação da forma de cognitivismo moral segundo a
qual o juízo moral da forma “x é bom” consiste em atribuir a x a propriedade irredutível
de primeira ordem designada por “bom”. O argumento parte de dois aspectos de nossos
conceitos morais: (C) covariação de propriedades morais e propriedades não-morais e
(P) que a instanciação de propriedades morais não é logicamente implicada pela
instanciação de propriedades não-morais. Se a família de predicados M co-varia com
família de predicados N, então, necessariamente, para todo predicado F em M e para
todo objeto x, se x é F, então existe algum G em N, tal que x é G e para todo y, se y é G
então y é F. A forma de cognitivismo moral acima é incapaz de dar conta destes dois
aspectos em conjunto e, portanto, não dá conta de nossas noções morais.
Palavras-chave: Cognitivismo. Covariação. Juízo Moral. Meta-Ética.
Abstract: We will present an refutation of the form of moral cognitivism according to
which a moral judgment of the form “x is good” consist in the attribution to x of a first
order irreducible property designated by “good”. The argument is based on two aspects
of our moral concepts: (C) the covariation of moral properties and non-moral properties
and (P) the fact that the instantiation of moral properties is not logically implied by the
instantiation of non-moral properties. If the family of predicates M covariates with the
family of predicates N, then, necessarily, for every predicate F on M and for every object
x, if x is F, then there is a G on N, such that x is G and for every y, if y is G then y is F.
The form of cognitivism above cannot account for these two aspects and, therefore, does
not account for our moral notions.
Keywords: Cognitivism. Covariation. Moral Judgment. Metaethics.
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A forma cognitivismo moral da qual vamos nos ocupar sustenta que o seguinte é
verdadeiro a respeito de juízos morais: (i) juízos morais são expressão de um estado
cognitivo dotado de conteúdo representacional; (ii) assim sendo juízos morais têm
caráter descritivo, representam a realidade de certa forma e como tal têm valor de
verdade; (iii) sua forma gramatical é transparente, a avaliação consiste em atribuir uma
propriedade a um objeto; (iv) a propriedade em questão é de primeira ordem, irredutível
a qualquer outra propriedade; (v) o juízo moral é justificado mostrando que é verdadeiro,
isto é, mostrando que o objeto de fato instancia a propriedade sui generis que lhe é
atribuída.
Acrescento a qualificação “de primeira ordem” no item (iv) porque há uma forma
de cognitivismo naturalista que concorda com (i)-(v) exceto em que sustenta que a
propriedade designada por “bom” é uma propriedade de segunda ordem. Essa forma de
cognitivismo se inspira em resultados na área da Filosofia da Mente, especificamente na
tese do Funcionalismo segundo a qual tipos mentais são definidos em termos dos inputs
sensoriais que os causam, dos outputs comportamentais que resultam deles e de suas
relações com outros tipos mentais, de maneira que tais tipos podem se realizar em
substratos físicos radicalmente diferentes. De maneira semelhante, essa forma de
cognitivismo sustenta (ver Boyd, 1988 e Brink, 1989) que embora a propriedade
designada por “bom” não seja redutível a nenhuma propriedade natural, ainda é possível
sustentar que se trata de uma propriedade natural funcional, definida em termos de suas
relações com ações humanas e bens que tendem a resultar dessas ações. A propriedade
designada por “bom” seria então uma propriedade irredutível de segundo grau e, como
tal, multiplamente realizável. Não nos ocuparemos desta forma de cognitivismo. A tese
que vamos atacar recebeu no debate a designação de “cognitivismo não-naturalista”
devido ao modo como foi apresentada por Moore (1903). Dadas, contudo, as
considerações acima, podemos chamá-la de “Cognitivismo Não-Redutivo de Primeira
Ordem”. No que se segue me refiro a esta tese simplesmente por “cognitivismo”.
Essa formulação técnica pode dar a impressão de que se trata de uma tese
recôndita, dificilmente sustentada, a ponto de que um argumento que busque refutá-la é
supérfluo. Quero fazer alguns apontamentos rápidos no sentido de que este não é o caso.
Essa é na verdade uma tese que ocorre de forma bastante natural, que é frequentemente
tomada como fazendo perfeita justiça ao senso comum moral e cujas consequências a
tornam digna de consideração. Essas consequências são uma forma de ceticismo moral
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que acusa a prática moral ordinária de incorporar graves erros metafísicos.
Se alguém chega a se perguntar em que consiste o ato de realizar um juízo moral e
pensa a respeito de avaliações simples como “x é bom” uma resposta se oferece
rapidamente: realizar esta avaliação consiste em atribuir àquilo que “x” designa a
propriedade designada por “bom”. Se perguntamos de que propriedade se trata, a
resposta pode ser esta: trata-se simplesmente da propriedade de ser bom. Que esta
propriedade difere de qualquer propriedade ordinária que possas imaginar se mostra pelo
fato de que podemos concordar quanto a descrição completa de um objeto e discordar
sobre se ele instância ou não a propriedade de ser bom. Isto é, não existe uma descrição
N do objeto avaliado que seja tal que seja contraditório dizer “x é N, mas não é bom”.
Além do mais, o juízo moral tem um papel de destaque em deliberações práticas, eles
guiam nossa ação, de maneira que a propriedade que um juízo moral atribui ao objeto
avaliado deve ser muito especial na medida em que reconhecer que ela é instanciada por
algo basta para fornecer razões para agir para qualquer pessoa.
Esta argumentação resulta na forma de cognitivismo da qual nos ocuparemos. Na
verdade, ela pode ser considerada uma apresentação rudimentar do racionale do famoso
argumento da questão aberta de Moore (1903, §13). Embora ela possa parecer uma tese
bastante implausível não podemos nos escusar de debatê-la porque ela é um prato cheio
para o cético moral. Um cético pode, como fez Mackie (1977), argumentar assim: se
você reconhece que o juízo moral consiste na atribuição de uma propriedade tão
especial, você se dá conta de que seus juízos morais não podem ser justificados e
provavelmente são todos falsos, pois como detectaríamos uma propriedade assim tão
diferente das propriedades com as quais estamos acostumados? Na verdade, temos
razões para suspeitar que tal propriedade não existe: ela não pode ser encaixada na visão
de mundo que as ciências naturais nos oferecem. Não quero entrar em detalhes quanto a
esta argumentação do cético, quero apenas ressaltar um ponto de sua estratégia: ele
distingue entre questões conceituais e questões substanciais e argumenta que o
cognitivismo é uma boa resposta à questão conceitual a respeito da noção de juízo moral
e que se daí se seguem consequências metafísicas intoleráveis é só porque estes
compromissos metafísicos se encontram incorporados a nossas noções morais.
Embora o cognitivismo tenha caído em desuso, isto se deu porque esta tese
pareceu implausível à luz de suas consequências metafísicas desagradáveis. Mas uma
resposta satisfatória não foi dada ao cético que pretende sustentar essa forma de
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cognitivismo para argumentar que estas consequências metafísicas de fato se seguem de
nossas noções morais e que, portanto, nossas práticas morais incorporam um grave erro.
A objeção aqui apresentada é interessante porque permite responder a este cético. Ela
mostra que esta forma de cognitivismo não deve ser repudiada apenas em face de suas
consequências metafísicas intoleráveis, mas que se olharmos com cuidado para nossas
noções morais veremos que esta forma tão natural de encarar o juízo moral não lhes faz
justiça. É, portanto, um resultado importante mostrar que “x é bom” não consiste
simplesmente na atribuição a x da propriedade de ser bom sem mais.
Isto basta sobre a tese da qual nos ocuparemos e porque o esforço de refutá-la não
é vão. Podemos formular agora uma restrição que deve ser imposta a nossa
argumentação: devemos mostrar que essa forma de cognitivismo é uma má resposta à
questão conceitual “em que consiste o ato de realizar um juízo moral?”; ao fazer isto não
podemos apelar a considerações substanciais que mostrem que esta forma de
cognitivismo moral atribui ao juízo moral suposições que não encontram respaldo na
realidade. Por exemplo, mostrar que a propriedade que é atribuída ao objeto avaliado no
juízo moral, de acordo com este tipo de cognitivismo, não existe não faz nada para
mostrar que esta forma de cognitivismo é uma má análise do juízo moral128. Nossa
argumentação deve apelar apenas a nossa noção de juízo moral e mostrar que há algum
traço desta noção do qual a análise cognitivista não-redutiva de primeira ordem não dá
conta. Isto é, devemos mostrar que se assumimos que esta forma de cognitivismo moral
é correta a imagem que obtemos do juízo moral é tal que há algum traço de nossa noção
de juízo moral que não ocorre nela.
O argumento que se segue deve-se a Blackburn e foi exposto em seus artigos
Moral Realism (1993a) e Supervenience Revisited (1993b). Contudo, como apresentado
por Blackburn o argumento tem por alvo o cognitivismo moral em geral. O resultado do
argumento em verdade é mais humilde: ele mostra apenas que inadequação conceitual
da forma de cognitivismo que vamos considerar aqui e não coloca nenhuma dificuldade
para outras formas de cognitivismo. A reconstrução que se segue então, embora
inspirada na argumentação de Blackburn, não pretende necessariamente fazer jus ao
argumento como originalmente apresentado. Antes apresentaremos o argumento de
maneira que resulte em uma objeção eficiente, embora menos abrangente.
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128 Por “análise do juízo moral” me refiro a qualquer proposta de resposta à questão “em que consiste o
ato de realizar um juízo moral?”.
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O argumento consiste simplesmente em formular um traço conceitual da noção de
juízo moral do qual o cognitivismo não dá conta. Fazemos isso apelando a dois aspectos
do juízo moral: (C) a covariação de predicados morais e predicados descritivos e (P) o
fato de que a instanciação de predicados morais não é logicamente implicada pela
instanciação de predicados descritivos. Conjuntamente (C) e (P) resultam em um traço
conceitual do qual o cognitivismo não pode dar conta. O primeiro passo no argumento é,
então, apresentar (C) e (P) como aspectos conceituais de nosso pensamento moral.
A noção de covariação é passível de várias formulações ligeiramente diferentes.
Estas formulações tentam capturar as trivialidades segundo as quais: (i) dois objetos
idênticos quanto a todas suas demais propriedades são também idênticos quanto a suas
propriedades morais e (ii) as qualidades morais de algo não podem mudar sem que haja
uma mudança correspondente em suas propriedades naturais ou descritivas. Blackburn
(1993b, p.131), por exemplo, formula (C) da seguinte forma: Necessariamente, se existe
um x tal que x é F e G, e tal que G subjaz a F, então para todo y, se y é G então é F. Esta
formulação pode ser apresentada assim:
(C) □(( x)(Fx
Gx
(Gx U Fx))
( y)(Gy
Fy))
O problema com esta formalização é que ela faz uso do conectivo “U” que
equivale a “(1) subjaz a (2)” que é o mesmo que “(2) sobrevém a (1)”. A noção de
superveniência129 ou covariação então reaparece na formulação. Esta fórmula não nos
informa nada senão que se a propriedade F co-varia com G então todo y que instanciar G
também instanciará F – não nos diz em que consiste a covariação.
Adotarei aqui a formulação desenvolvida por Jaegwon Kim (1984, p.158).
Covariação é uma relação entre famílias de predicados. A família de predicados M covaria com a família de predicados N se, e somente se, necessariamente, para todo
predicado µ em M e para todo objeto x, se x é µ, então existe algum Φ em N, tal que x é
Φ e para todo y, se y é Φ então y é µ. Importante notar que os predicados em questões
podem ser bastante complexos e envolver muitas clausulas. “Φ”, por exemplo, poderia
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129 Este é o termo geralmente utilizado na literatura. Opto, contudo, por “covariação” porque
“superveniência” é geralmente introduzido na tentativa de dar conta de problemas metafísicos com o
quais não precisamos nos envolver aqui.
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ser um predicado da forma “Q
P
¬X
¬ Y”. Formalizamos assim a tese da
covariação:
(C) □(
µ em M)( x) [µ x → (
Φ em N)(Φx
y)(Φy → µy))]
Já que estamos interessados na covariação de predicados morais e predicados
naturais, tomamos M como sendo a família dos predicado morais e N como sendo a
família dos predicado não-morais. Assim (C) afirma que, necessariamente, para
qualquer propriedade moral instanciada pelo objeto x existe uma propriedade natural (ou
uma descrição do objeto em termo não-avaliativos) que também é instanciado por x e
que é tal que é sempre acompanhado da propriedade moral em questão. Porém, como
devemos ler o “necessariamente” no início da fórmula? O operador de necessidade pode
ser lido de diversas maneiras (ver BLACKBURN, 1993b, p.135-136). Podemos falar em
necessidade analítica, necessidade metafísica, necessidade física e talvez existam outros
tipos. Ler (C) como enunciando uma necessidade física seria absurdo, mas a necessidade
em questão é analítica ou metafísica?
Uma verdade metafisicamente necessária é tal que é verdade em todo mundo
possível. Um possível exemplo deste tipo de necessidade é a necessidade de enunciados
de identidades científicas, como “água é H2O” ou “calor é movimento molecular”130.
Identidades deste tipo não são verdadeiras em razão apenas dos conceitos que articulam.
Descobrimos que água é H2O não mediante uma investigação conceitual, analisando os
conceitos articulados na identidade, mas mediante uma investigação científica a
posteriori. Mas uma vez que descobrimos que esta coisa que chamamos de “água” é na
verdade H2O, sabemos que em qualquer mundo possível que contenha esta coisa
chamada “água”, água é H2O. Podemos então dizer algo do tipo “necessariamente, água
é H2O” e com isso queremos dizer apenas que não há uma mundo possível onde “água é
H2O” seja falso.
Agora, admitindo que enunciados científicos de identidade verdadeiros são
metafisicamente necessários, suponha que alguém negue que necessariamente água é
H2O. Esta pessoa pode ser acusada de ignorar descobertas científicas importantes, mas
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130 Este exemplo é retirado de KRIPKE, S. Naming and Necessity. 12.ed. Cambridge: Harvard University
Press, 2001, p.128-129
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podemos admitir que ela domina os conceitos de água e de H2O? Sim, podemos. Esta
pessoa pode entender perfeitamente noções de química e simplesmente crer, por alguma
razão qualquer, que a substância que cobre a maior parte de nosso planeta não é
composta de átomos de hidrogênio e oxigênio. Esta pessoa tem uma crença factual
aberrante, mas não pode ser acusada de confusão conceitual. Se, contudo, a necessidade
envolvida na identidade fosse necessidade analítica, então esta acusação seria cabível.
Diremos que uma proposição é analiticamente necessária caso seja verdade em
razão apenas dos conceitos que articula. Todos aqueles que dominam os conceitos
relevantes deveriam ser capazes de verificar a verdade da proposição. Negar a verdade
da proposição trairia falta de domínio sobre os conceitos ou confusão: uma incapacidade
de apreender corretamente aspectos importantes do conceito e operar com eles. Outro
modo de apresentar a noção de necessidade analítica é a seguinte: assentir a verdades
analítica é constituinte da competência no uso dos termos utilizados na expressão da
verdade em questão; negar tais verdades é constituinte da falta de competência no uso
dos termos.
Essa distinção se aplica não só a operadores de necessidade mas também a
operadores de possibilidade. Algo é uma possibilidade metafísica se há ao menos um
mundo possível onde ocorre. Algo é uma possibilidade analítica se sua negação não for
uma verdade analiticamente necessária – isto é, não há restrição conceitual a sua
possibilidade. Necessidade, seja analítica seja metafísica, implica tanto a possibilidade
analítica como a possibilidade metafísica. A necessidade analítica implica necessidade
metafísica, mas o contrário não é verdade. E a possibilidade metafísica implica
possibilidade analítica, mas o contrário não é verdade.
Mas então, como devemos ler o operador de necessidade em (C)? Se M é a família
de predicados morais e N a família de predicados naturais, (C) é verdadeira quando o
operador é lido como necessidade analítica, e isso implica que é verdadeira também se o
operador é lido como necessidade metafísica. Como queremos um argumento que
mostra que o cognitivismo não dá conta de um aspecto conceitual da moralidade, o
operador deve ser lido como operador de necessidade analítica. É uma premissa do
argumento que a covariação de propriedades morais e propriedades naturais faz parte do
pensamento moral ordinário.
Deve ser fácil mostrar que (C) é uma verdade analiticamente necessária. Para tal
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temos que mostrar que quem não reconhece (C) carece de algo que é constitutivo da
competência no uso de termos e noções morais. Um modo de fazer isto é confiar em
nosso domínio dos termos e noções relevantes e pedir que cada leitor faça o esforço de
avaliar a verdade de (C). Podemos apontar para casos nos quais (C) não é observado e
esperar que os leitores concordem que nestes casos a falta de domínio sobre as noções
em questão é evidente. Imagine, por exemplo, o caso de alguém que diante de dois
objetos iguais, ambos instanciando a propriedade natural (da família N) designada por
“G” e não contendo nenhuma outra propriedade relevante para o juízo moral, afirma que
enquanto o primeiro objeto é bom o segundo não é. Se perguntado o porque da distinção
ele afirma que simplesmente é o caso de que o primeiro é bom e o segundo não é. Diante
disso ficamos perplexos. O comportamento deste sujeito é incompreensível e não
podemos senão afirmar que ele não compreende a noção de bom. O mesmo diríamos de
alguém que certo dia considera A bom e no dia seguinte, sem que nenhuma propriedade
de A se altere, já não o considere bom. Se questionado, o sujeito diz apenas que A
deixou de ser bom.
Podemos ainda acrescentar a estes exemplos a seguinte consideração (ver
BLACKBURN, 1993b, p.137): nestes casos em que (C) não é observado, o propósito
mesmo da prática de fazer avaliações é frustrado. Fazemos avaliações para guiar nossas
atitudes, escolhas e ações. E o mundo no qual temos que nos guiar é um mundo habitado
por objetos dotados de propriedades naturais. Se nossas avaliações não respondem a
estas propriedades, de que nos servem? Que fim pode ter a prática de avaliar? Parece
que nenhum. O comportamento de quem nega (C) é tão aleatório com as avaliações
quanto seria sem elas. Parece que o único fim possível da prática moral de fazer
avaliações é traído pela rejeição de (C) e por isto aceitar (C) é parte constituinte da
competência nesta prática.
Dado (C), se x instancia uma propriedade moral F, então x instancia também uma
propriedade não-moral G, que é tal que é sempre acompanhada de F. Mas que
propriedade é G não é algo que descobrimos mediante análise conceitual – é algo que
descobrimos por meio de uma investigação moral substancial.
Compare agora (C) com a tese mais forte (C*):
(C*) □(
µ em M)( x) [µx → (
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Φ em N)(Φx
□
y)(Φy → µy))]
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Enquanto (C) declara a necessidade de um condicional, em (C*) há um operador
de necessidade no consequente do condicional. Se x instancia a propriedade moral F
dado (C*) sabemos que, necessariamente, há uma propriedade natural G que sempre é
acompanhada pela presença de F. Se lemos novamente os operadores de necessidade
como necessidade analítica, então (C*) é falsa. Seria constitutivo do domínio de noções
morais admitir que se algum objeto instancia alguma propriedade moral F então existe
uma propriedade G tal que é constitutivo do domínio de noções morais admitir que todo
objeto que é G é F. Isto é, qualquer objeto que instanciasse qualquer propriedade moral
poderia ser descrito de certa forma (capturada por “G” tomado como uma variável), tal
que negar que todo objeto que é G é F seria trair falta de domínio sobre noções morais.
Mas neste caso, adotar certo padrão de avaliação seria constitutivo da competência na
prática de fazer avaliações morais. Se este fosse o caso, sempre que duas pessoas
discordassem sobre se a instanciação de certa propriedade natural implica a presença de
certa propriedade moral, ao menos uma delas deveria ser incompetente no uso de termos
morais ou estar confusa. Isto é, um desacordo moral genuíno, entre pessoas igualmente
capazes no uso de termos avaliativos, seria impossível.
Poderíamos imaginar uma outra comunidade que usa termos como “bom” em uma
prática como a nossa. Eles usam estes termos para recomendar e louvar certas coisas; os
termos são aplicados de maneira regular, respondendo a aspectos descritivos dos objetos
avaliados; estes termos aparecem na expressão das deliberações dos habitantes desta
comunidade e eles estão normalmente dispostos a agir de acordo com seus juízos sobre o
que é “bom”. Parece que os habitantes desta comunidade tem pleno domínio sobre este
vocabulário e são capacitados para a prática de fazer avaliações. Contudo, suponha que
seus juízos respondem a aspectos naturais muito diferentes dos nossos. Suponha, por
exemplo, que eles estão dispostos a julgar como aceitável e até louvável a execução
desnecessária de prisioneiros de guerra. Isto é, o padrão de avaliação deles difere do
nosso. De acordo com (C*), se uma tal ação tem a propriedade de ser má, de acordo com
nossos padrões, então qualquer ação que possa ser descrita como “execução
desnecessária de prisioneiros de guerra” deveria ser má também, e reconhecer isto seria
constitutivo da competência na prática de fazer avaliações. Deveríamos dizer então, que
se alguém que faz parte da nossa comunidade discordar de um habitante desta outra
comunidade sobre a avaliação de uma tal ação, então ao menos uma das partes da
discordância está confusa ou não tem pleno domínio do vocabulário avaliativo. Mas este
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é o caso? Se para toda propriedade moral e para todo objeto de avaliação, existe uma
descrição do objeto tal que é constitutivo da competência na prática moral (uma vez que
reconhecemos a aplicação da descrição em questão) avaliar de certa forma o objeto em
questão, então todo e qualquer desacordo moral deveria ser visto dessa forma: em todo
caso, alguma das partes seria incompetente ou estaria confusa. Contudo, duas pessoas
podem discordar a respeito de se certa propriedade natural implica a presença de certa
propriedade moral e nenhuma delas precisa estar aplicando seus conceitos de maneira
confusa: pode ser que uma delas esteja cometendo uma falha em sua deliberação ou que
seja de fato má, mas isso não abala sua competência no uso de conceitos morais.
Gostaríamos de dizer, por acaso, que, dado que há grande desacordo entre filósofos
praticantes de ética normativa, a maior parte destes filósofos aplica confusamente seus
conceitos morais?
Admitir (C*) tornaria impossível o desacordo moral entre pessoas competentes em
avaliar e, além disso, reduziria todo erro moral a incompetência ou confusão. A
competência moral caberia neste caso apenas a quem fosse infalível em suas avaliações:
caberia apenas ao sábio ou santo moral. Mas é certo que a competência em uma prática
qualquer não pode caber apenas a seus maiores mestres, mas deve pertencer, mesmo que
em menor medida, a boa parte de seus praticantes adultos.
Além da plausibilidade de negar (C*) se lemos os operadores de necessidade como
indicando necessidade analítica, devemos notar que os principais defensores do
cognitivismos não-redutivo de primeira ordem se comprometem com a negação de (C*)
em sua argumentação. No caso de Moore, o argumento da questão aberta tem por fim
justamente apontar que a propriedade designada por “bom” não está analiticamente
ligada a nenhuma propriedade natural. E Mackie 131 admite explicitamente isto ao
apresentar as dificuldades metafísicas nas quais incorre esta forma de cognitivismo.
É exatamente à negação de (C*) que se referia (P): não é o caso que para qualquer
propriedade moral e para qualquer objeto de avaliação, o objeto em questão possa ser
descrito de maneira tal que seja constitutivo da nossa competência admitir que tudo que
pode ser assim descrito instancia a propriedade moral em questão. É possível (ao menos,
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
131 Ver MACKIE, J.L. "The Subjectivity of Values". In: MACKIE, J.L. Ethics: Inventing Right and
Wrong. 1.ed. London: Penguin, 1977, p.47: “Qual é a conexão entre o fato natural de que uma ação é
um exemplo de crueldade deliberada – digamos, causar dor por diversão – e o fato moral de que é
errada? Não pode ser implicação, uma necessidade lógica ou semântica” (tradução nossa).
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analiticamente possível) que exista uma propriedade moral e um x, tal que se x instancia
a propriedade moral em questão, então existe uma descrição de x que explica porque x
instancia a propriedade moral em questão, mas que seja tal que é compatível com a
competência na prática de fazer avaliações admitir que essa descrição poderia nunca ser
acompanhada da propriedade moral em questão. Chamaremos (P) de tese da ausência de
implicação e ela pode ser formalizada assim:
(P) ◊(
µ em M)( x)[µx → (
Φ em N)(Φx
¬ µy))]
y)(Φy → µy)
◊
y)(Φy
132
Talvez o cognitivista poderia mostrar que (P) é falso se lido como afirmando uma
possibilidade metafísica, mas se (P) é lido como afirmando uma possibilidade analítica,
então o cognitivista está comprometido com (P).
Embora não seja compatível com (C*), (P), lido como possibilidade analítica, é
compatível com (C). Suponha então, de acordo com a análise do cognitivista, que um
objeto x instancia a propriedade F. Suponha que F é a mesma propriedade que a
designada por “bom”. Segue-se de (C) que x se conforma a uma descrição G que explica
porque ele é bom (“
y)(Gy → Fy)”) e segue-se de (P) que embora G explique porque
x é bom, não é constitutivo da competência na prática de fazer avaliações admitir que G
implica F (“◊
y)(Gy
¬ Fy)” que pode ser reescrito como “◊
y) ¬(Gy → Fy)”).
Em outras palavras, segundo (P), ser bom, por exemplo, não é analiticamente implicado
pela instanciação das propriedades, designadas por “G”, que explicam porque algum x
em particular é bom. Ou seja, é uma possibilidade, até onde vão as restrições conceituais
(é uma possibilidade que pode ser admitida por alguém competente), que x fosse tal
como é quanto a suas propriedades descritivas mas que sua bondade não existisse.
Alguém que admitisse que x é G poderia negar que é bom e nem por isso trairia
incompetência no uso de termos morais – a única acusação cabível seria de ignorância
do fato de que x instancia a propriedade de ser bom. De acordo com (C), é constitutivo
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
132 Segundo esta formulação, toda predicado moral é tal que, ao menos em alguns casos, desacordo
genuíno (no qual nenhuma das partes precisa ser declarada confusa ou incompetente) sobre sua
aplicação é possível. Isso deixa em aberto a possibilidade de que em ao menos em alguns casos,
desacordo genuíno possa não ser possível. Se for o caso de que haja algum predicado moral a respeito
do qual nenhum desacordo genuíno é possível, essa formulação deveria ser enfraquecida, substituindose o primeiro quantificador universal por um quantificador existencial.
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da nossa competência em fazer avaliações admitir que se x é F então x se conforma a
uma descrição G, tal que tudo o que é G é de fato, embora não necessariamente (lido
aqui como necessidade analítica), também F.
Agora, de acordo com o cognitivista, “bom” é o nome de uma propriedade. De
acordo com (P) podemos explicar que algo seja bom por apelo a uma descrição G, com
o qual a propriedade designada por “bom” não tem uma ligação analítica (isto é, não é
constitutivo da nossa competência admitir que instanciar G implica instanciar bondade).
Mas, de acordo com (C), se em algum caso G explica porque algo é bom, ele deve
explicar também em outros casos, isto é, instanciar G de fato implica instanciar bondade.
Em outras palavras, a propriedade designada por “bom” e G não tem nenhuma ligação
conceitual (um falante competente pode admitir que G ocorra desacompanhado de
bondade), mas se num caso bondade acompanha G então ela acompanhará em todos os
casos (e sabemos isso a priori). Porque? O que queremos saber agora é o seguinte: se é
uma possibilidade analítica (que pode ser admitida por falantes competentes) que G
ocorra na ausência de bondade, porque não é uma possibilidade analítica que a bondade
ora acompanhe ora não acompanhe G?
O problema para o cognitivismo pode ser posto de maneira mais clara assim: se a
noção de bondade é a noção de uma propriedade do tipo sustentada pelo cognitivista,
então (C) e (P) não podem ambos ser traços conceituais da noção de juízo moral, mas
são.
Assumindo que o cognitivismo é correto temos que a noção de bondade é a noção
de uma propriedade irredutível não-funcional. Suponha que esta propriedade se
conforma a (C). Temos então que o seguinte cenário: há uma descrição G que explica
porque algo instancia a propriedade designada por “bom” e esta propriedade sempre
acompanha G. Como explicamos o fato de que a propriedade designada por “bom” covaria com G? Importante ressaltar que admitir que existe esta descrição G e que ela
sempre é acompanhada de bondade (mesmo que não saibamos que propriedade “G”
designa) é constitutivo da nossa capacidade de fazer avaliações. O que precisamos é uma
explicação deste traço conceitual. Parece que o único modo de explicar a covariação é
supor que, como questão de fato conceitual, há alguma propriedade que é sempre
acompanhada da propriedade designada por “bom”. Mas isto equivale a admitir (C*). É
admitir que para todo x que instancia a propriedade designada por “bom” existe uma
propriedade G que x instancia e que é tal que, como questão de fato conceitual, é sempre
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acompanha por (implica a presença de) bondade. Isto é, parece que para explicar a
covariação como traço conceitual do juízo moral o cognitivista tem que incorporar um
padrão de avaliação às condições de competência na prática de fazer avaliações – o que
torna o desacordo e o erro impossível para pessoas competentes.
Dada a suposição de que, conforme o cognitivista, a noção de bondade é a noção
de uma propriedade, (C) se torna problemática e parece exigir que nos comprometamos
com a negação de (P), admitindo que a propriedade designada por “bom” está ligada
conceitualmente (de maneira que nossa competência depende do reconhecimento disso)
a certas propriedades.
Mas o cognitivista não-naturalista pode resistir simplesmente afirmando que a
noção de uma propriedade irredutível não-funcional é tal que todo aquele que a
compreende reconhece que a propriedade em questão co-varia com propriedades
naturais. E não há necessidade de negar (P). Não era este talvez o interesse em insistir
em falar em “propriedade não-natural”, de maneira a enfatizar uma certa relação
peculiar com propriedades naturais? Ele pode argumentar que é parte do conceito de
uma propriedade não-natural que ela respeita (C). Isso tornaria a covariação um fato
conceitual opaco e não-explicado a respeito de nossos conceitos morais. Mas se isso é
problemático, o cognitivista cético, como Mackie, poderia argumentar que não passa de
mais um erro incorporado a nosso pensamento moral e que tudo o que ele fez foi
identificar este erro.
Assuma então a correção do cognitivismo e assuma também que (P) não é violado.
Como compreender (C) agora? Se assumimos (P) não podemos dizer que a propriedade
designada por “bom” é tal que é analiticamente necessário que ela esteja ligada a certas
propriedades. O cognitivista pode querer dizer o seguinte: é analiticamente necessário
que propriedades não-naturais, como a bondade, estejam ligadas a alguma propriedade
natural indeterminada. Isto é, que nos casos nos quais a propriedade é instanciada ela é
tal que sempre acompanha uma propriedade qualquer. Seria então um aspecto conceitual
da noção de uma propriedade desse tipo que ela adere regularmente a uma propriedade
aleatória em cada mundo possível onde existe. Ela seria, por assim dizer, uma
propriedade pegajosa: se em um mundo possível qualquer ela se liga a uma propriedade
natural aleatória, ela permanece sempre ligada a esta mesma propriedade. Mas não
podemos tolerar a ideia de que nossos conceitos morais são conceitos de propriedades
não-naturais pegajosas. Este não é apenas um traço conceitual opaco e sem explicação, é
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um traço conceitual bizarro e totalmente inesperado. É absolutamente implausível
sugerir que nossa noção de bom seja a noção de uma propriedade deste tipo.
A conjunção de (C) e (P) então é um traço conceitual da noção de juízo moral do
qual o cognitivismo não dá conta. O cognitivismo não-redutivo de primeira ordem falha
em acomodar trivialidades a respeito da covariação de predicados morais e predicados
naturais e, portanto, falha em dar conta de nossas noções morais. Isto mostra que o juízo
moral não pode consistir na atribuição ao objeto avaliado de uma propriedade irredutível
de primeira ordem. Não há razão, então, para supor como Mackie que nossa prática
moral incorpore qualquer erro metafísico que possa decorrer dessa análise do juízo
moral.
Referência Bibliográficas
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_______________. Moral Realism. In: BLACKBURN, S. Essays in Quasi-Realism.
1.ed. New York: Oxford University Press, 1993a
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Realism. Cornell University Press, 1988, p.181-228
BRINK, D. Moral Realism and the Foundations of Ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989.
KIM, J. Concepts of Supervenience. In: Philosophy and Phenomenological Research,
vol. XLV, n.2, pp.153-176, dez. 1984, p.158
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MACKIE, J.L. The Subjectivity of Values. In: MACKIE,J.L. Ethics: Inventing Right
and Wrong. 1.ed. London: Penguin, 1977, p.15-49
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SCHOPENHAUER: O PRAZER ENQUANTO AUSÊNCIA DA DOR
Kairon Pereira de Araujo Sousa
Graduando em psicologia na Universidade Estadual do Piauí
!
O mundo e a vida não são feitos para
proporcionar uma existência feliz.
(SCHOPENHAUER, O Mundo.....)
Resumo: Neste texto, discutiremos à ideia schopenhaueriana de felicidade enquanto
supressão temporária da dor. Para tanto, faremos uma análise da concepção de
sofrimento, como um dos temas centrais no pensamento filosófico de Schopenhauer. No
entanto, convém situarmos, num primeiro momento, a respeito do conceito de Vontade,
já que o sofrimento, na ótica de Schopenhauer, é desencadeado quando emergem
obstáculos que se contrapõem à satisfação ou realização dessa Vontade.
Palavras-chave: Felicidade. Sofrimento. Vontade.
Abstract: In this paper, we discuss Schopenhauer's idea of happiness as a temporary
suppression of pain. To do so, we will make an analysis of the concept of suffering as a
central theme in the philosophical thought of Schopenhauer. However, it is situate, at
first, about the concept of Will, since the suffering, in Schopenhauer's viewpoint, is
triggered when emerge obstacles that oppose the satisfaction or fulfillment of this Will.
Keywords: Happiness. Suffering. Will.
1. Introdução
Schopenhauer foi um implacável crítico que soube, como ninguém,
problematizar com maestria às causas da miséria e dor humana. O filósofo alemão
mergulha a fundo nas questões existenciais, e conforme Tanner: “Schopenhauer
distingui-se entre os filósofos da tradição ocidental por abraçar uma visão fortemente
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pessimista da vida e por enfatizar a vontade, às expensas do intelecto, em seu retrato da
constituição mental do homem”.133
O pensador aborda, com destreza de espírito, às misérias e tormentos que
circunscrevem à existência humana. Deste modo, utiliza como conceito-chave em defesa
do seu ponto de vista pessimista, a ideia de Vontade.
Neste texto, discutiremos à definição schopenhaueriana de felicidade enquanto
supressão temporária da dor. Desta forma, como ponto de partida de nosso breve
percurso pela articulação filosófica desse eminente escritor, procuraremos abordar o que
ele nos afirma a respeito do conceito de Vontade. Logo em seguida, partiremos para
descrição de Schopenhauer referente ao sofrimento, ou seja, sua explicação para a dor
humana. Finalizaremos à temática com a apresentação do que Arthur define como bemestar.
2. O conceito de Vontade
Para Schopenhauer, o mundo é movido por algo que é o em si das coisas, ou seja,
a Vontade. O conceito de Vontade perpassa todo seu pensamento filosófico,
constituindo-se na base para a compreensão de sua reflexão teórica em O Mundo Como
Vontade e Representação. Deste modo, convém situarmos um pouco mais sobre esse
conceito fundamental em seu postulado filosófico.
No livro supracitado, nosso pensador esclarece que a Vontade é: “a coisa em si, a
substância, a essência do mundo”134. Logo, ela não é fenômeno, uma vez que não pode
ser experenciada, revelando-se ao indivíduo através do querer. É nesses termos, que para
Arthur, a Vontade é a coisa mais importante, o subtrato da vida, “a essência íntima de
todo o universo”135; sendo o mundo visível, isto é, o fenômeno, apenas seu espelho. Em
outras palavras, a Vontade é o que permite dar entendimento a tal fenômeno. É o mundo
como Vontade, ou seja, da força ou impulso que atua sobre a representação fenomênica.
Schopenhauer, portanto, sublinha que a Vontade se manifesta no mundo, de modo que
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
1. Tanner. Schopenhauer: metafísica e arte, p.5.
2. Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação, p.4.
3. Morais. A crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral proposto por Kant, p. 192.
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este é sua manifestação.136 Como pontua Morais, é o mundo dividido: “a representação
ou fenômeno só constitui um lado ou aspecto do mundo – o mundo enquanto
representação. Mas existe outro aspecto do mundo e é justamente a Vontade como
coisa-em-si.”137
Nesse contexto, Schopenhauer aponta que Ela está presente também entre os
animais e vegetais, objetivando-se em nossa vida. “Assim, a Vontade é o em-si de todo o
mundo, sendo o ser humano somente uma das muitas objetivações da Vontade.”138
Por esta forma, não existe nada externo ao indivíduo que fundamente suas ações,
pois a base do nosso querer é a Vontade, isto é, Ela é responsável por fazer de nós o que
somos. Nesta linha, Schopenhauer tenta nos fazer compreender que nossa vida não passa
de uma luta para satisfazer seus desejos.
Nota-se, que em Schopenhauer, a Vontade revela-se como força que rege nossas
ações, sendo à vida apenas mais uma de suas expressões. Deste modo, a Vontade tem
como função perpetuar uma vida entrelaçada de sofrimento.
3. As causas do sofrimento
De acordo com Schopenhauer, o sofrimento é o que move o humano, ou seja, é à
essência (cabe observar o seguinte dito do filósofo: “a essência da existência é a dor”139.)
da vida, uma vez que ele é afirmação e negação da Vontade. Schopenhauer causa
espanto, ao trazer um olhar filosófico desmascarado em relação à existência humana.
Sem censuras, e com uma postura ousada, o teórico tenta descortinar todas às formulas
mágicas e suavizantes em relação à vida, à existência, à humanidade. Schopenhauer traz
à tona o lado mais trágico e miserável do ser humano: individualismo, egoísmo,
maldade, etc.
Essa postura descompromissada, cunhada, muitas vezes, com o rótulo de
pessimismo, mostra um Schopenhauer que procura, a partir de certo distanciamento,
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
4.
Entretanto, cabe pontuar, que embora Schopenhauer pondere que a Vontade se manifesta no mundo,
devemos notar, como ele mesmo explica, que este só pode ser entendido como representação do ser
cognoscente ou como manifestação dos sentimentos do próprio fenômeno. O mundo é a representação
do indivíduo, ou seja, ele existe, porque o sujeito existe.
5.
Morais. A crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral proposto por Kant, p. 192.
6.
Ibid., p. 193.
7.
Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação, p.91.
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interpretar à vida e o mundo como realmente ele nos apresenta, isto é, um mundo real, e
não aquele que desejaríamos ter. É nessa perspectiva, que Schopenhauer observa à vida
como algo desagradável, como uma fonte de tormentos e infortúnios, na qual nos
encontramos imersos. Vejamos o que ele próprio afirma: “sofrimento é inseparável da
vida, [...], colocando-lhe a base na própria essência.”140 Então, acrescenta ele, “a vida
não está aí para ser gozada, mas para ser vencida e superada”.141
As dores e sofrimentos do mundo nos capturam desde a mais tenra idade e vão
multiplicando-se por toda à vida. Sendo assim, somos candidatos ao sofrimento, desde o
momento do nascimento. O mundo é perigoso, já que a desgraça, como cita, é regra,
portanto, o sofrimento é inevitável. Nosso filósofo chega a concluir que tal universo não
poderia ser obra de um ser bondoso, mas de um ser diabólico que se realiza com o
tormento da sua criação. Nesse ponto, Barboza assinala que: “o sofrimento e as dores do
mundo, [...], são o núcleo propriamente dito da vida. A filosofia schopenhaueriana,
assim, constitui-se numa exposição da condição finita do homem - isto é, da sua
condição de ser transitório, que vai morrer.”142
A respeito de tal enfoque relacionado à morte, para Schopenhauer, a partir do
momento que vimos ao mundo, ao contrário do que pensamos, estamos morrendo a cada
dia, portanto, a morte é o que nos espera. Nesse sentido, se a vida é uma espécie de
sonho, a morte, por outro lado, representaria o despertar de tal sonho. Desta forma, ainda
que empreendamos esforços na tentativa de afastá-la, estamos destinados à derrota, pois
a morte, enfim, vencerá. Segundo ele, logo após brincar com sua presa, ela a devorará.
Assim, todo nosso cuidado e luta, de modo a retardá-la, é um esforço vão, já que ela,
depois de cansar da brincadeira, nos assaltará.
Outrossim, Schopenhauer nos lembra de que a existência humana não passa de
uma luta ilusória, com um final trágico estabelecido. Ademais, o combate que o homem
desenvolve a cada dia não diz tanto respeito ao cuidado com a vida, mas com o temor da
morte. Entretanto, conforme o pensador: “a própria vida é um mar semeado de escolhos
e de abrolhos que o homem evita com prudência e cuidados extremos, embora não
ignore que apenas lhe tenha escapado”. Para ele, “cada novo passo o aproxima dum
naufrágio
bem
diversamente
formidável,
dum
naufrágio
total,
inevitável
e
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
8.
Ibid., p. 39.
Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 141.
10.
Barboza. Schopenhauer, p.10.
9.
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(
irreparável” 143 . Por este motivo, todos esses comportamentos empreendidos pelo
indivíduo, de modo a evitar a morte, são ineficientes, pois a cada dia ele navega pela
direção da mesma, porto final da trágica travessia.
Não é por acaso, que autor alemão considera o mundo e a vida, nele presente,
como uma piada de mau gosto. Deste modo, segundo Arthur, a “vida é um contínuo
sofrimento”144, do qual ele nos convida a refletir a respeito do alto preço que
pagamos para dela fruir. Notemos o seu argumento:
Um homem que estivesse fortemente penetrado pela verdade que estabeleci,
mas que, ou por experiência própria, ou por capacidade superior da mente,
não estivesse em estado de reconhecer que o fato
145
da vida é um contínuo
sofrimento; que, ao contrário, estivesse satisfeito com a vida e se encontrasse
nela perfeitamente à vontade e que refletindo a sangue-frio desejasse que a
vida lhe durasse indefinidamente ou recomeçasse incessantemente; um
homem, enfim, que possuísse suficientemente o ardor da vida para pagar-lhe
as alegrias ao preço das moléstias e dos tormentos aos quais está sujeita,
esse “pousaria com pé seguro sobre o solo bem batido da eterna máquina
146
rotunda” e não teria coisa alguma a temer.
Nesse contexto, é interessante tomarmos como ponto de partida para a reflexão
desse tópico ou capítulo, o seguinte questionamento: por que para Schopenhauer Alles
Leben Leiden ist.? Ou melhor, o que causa tal sofrimento?
O autor, tecendo uma argumentação a respeito do conceito de Vontade, afirma
que: “à Vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente; é uma simples
tendência, cega e irresistível”147. Nesse sentido, cabe observar, que para Schopenhauer, a
Vontade,148 como uma força arbitrária, sem finalidade e algo que a direcione, é a causa
da dor ou sofrimento humano. Por quê? Segundo ele, ao sermos entrelaçados pela
Vontade, agimos sempre para satisfazer os seus desejos. A problemática, então, é que,
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
11.
Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação, p.31.
Ibid., p. 9.
13.
As partes destacadas são grifos nossos.
14.
Ibid., p. 9.
15.
Ibid., p.4
16.
Schopenhauer destaca a Vontade como à raiz do sofrimento, porque, segundo ele, a Vontade direciona
nossas ações ou comportamentos. Já que a Vontade como coisa em si manifesta-se em nós.
12.
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(
conforme Schopenhauer, essa vontade nunca é totalmente satisfeita, e tornamo-nos seres
infelizes, sempre em busca da saciação de uma Vontade sem limites. Reforçando esta
ideia, Tanner destaca que:
Tendo declarado que a coisa mais familiar em nós mesmos é à vontade, ele
chega à afirmação de que todos estamos num estado contínuo de insatisfação
extrema, pois, a cada alvo atingido, sobrepõem-se imediatamente novos
desejos, de modo que nossa condição é incurável.
149
Nessa direção, tal sofrimento emerge no conflito estabelecido entre a realização
da Vontade, ou seja, “quando surge um obstáculo entre ela e o seu escopo momentâneo,
chamamos a tal obstáculo sofrimento”. 150 Em outros termos, o sofrimento é
desencadeado quando despontam obstáculos que se contrapõem à satisfação ou
realização dessa Vontade. Para nosso filósofo, cada desejo decorre de uma necessidade,
ou mesmo de um descontentamento com algo; sendo assim, ele argumenta que o
sofrimento está na não realização dessa necessidade ou Vontade.
Isso significa, que enquanto tal satisfação não for atingida, há sofrimento.
Schopenhauer nos frustra ao argumentar que: “não existe satisfação durável: esta não é
senão o ponto de partida duma nova aspiração, sempre embargada porto da maneira,
sempre lutando, portanto, sempre causa de dor: para ela jamais um escopo final, jamais
para ela um limite ou termo de sofrimento.”151
Com efeito, nota-se que esse querer sempre mais, esses desejos insaciáveis
conduzem os indivíduos ao sofrimento, de modo que a cada realização, vivenciamos o
tédio, a frustração, o aborrecimento, seja pela realização do querer ou pela não
concretização do mesmo. Trata-se, assim, de uma sede insaciável. É por isso que
Schopenhauer aponta que: “a base de cada querer é uma falta, é uma indigência, é a dor;
pela sua origem, pela sua essência, o querer está, portanto, destinado a sofrer.” Destarte,
ele acrescenta que: “ainda que não tivesse objetos a desejar, uma satisfação demasiado
fácil de súbito lhos tolheria, e o homem sentir-se-ia invadido por um vácuo espantoso e
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
17.
Tanner. Schopenhauer: metafísica e arte, p.16.
Schopenhauer. O Mundo Como Vontade e Representação, p.28.
19.
Ibid., p.28
18.
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pelo fastio, em outros termos, seu ser e sua existência se lhe tornariam um peso
insuportável.”152
É em decorrência disso, que para o pensador alemão, a vida oscilaria entre a dor e
o tédio, de modo que, “a atividade do nosso espírito não é mais que um esforço
constante para desviar o fastio.”153 E, nesse aspecto, o indivíduo seria uma mera coisa
indefesa aprisionada por uma força cruel e insaciável: a Vontade.
Atormentado pelas diversas exigências de uma vida miserável e pesada, que
renovam154-se a cada dia, o sofredor cumpriria sua árdua e incansável luta para atender
as suas precisões, reclamadas pelo fastio da sua existência.
Considerando esses aspectos, conforme Schopenhauer, tal sofrimento é maior
quanto mais elevada for à inteligência. Notemos:
À medida que o conhecimento se torna mais claro e em que a consciência
aumenta, o sofrimento cresce, chegando no homem ao grau supremo; e é
neste ponto tanto mais violento quanto melhor é o homem dotado da lucidez
de conhecimento, quanto mais é excelsa a sua inteligência: aquele em quem
está o gênio, é sempre aquele que maiormente sofre.
155
Reforçando tal ideia, de que quanto mais avançado for o aperfeiçoamento da
capacidade da consciência, maior a dor, Schopenhauer cita e toma como base uma frase
do eclesistes: “Quem acresce a ciência, acresce também a dor”.
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
20.
Ibid., p.30
Ibid., p.30
22.
Num mundo, como verificam Adorno e Horkheimer, sob domínio da indústria cultural, tais
necessidades são inescrupulosamente recicladas (renovadas) a cada dia. A indústria cultural, de acordo
com Sousa (2013, p. 70-71), é eficiente em estimular necessidades e/ou desejos, que logo saciados,
ressurgem em novos aspectos, aprisionando o consumidor: “ela não se preocupa apenas em manter os
desejos já estabelecidos, ela atua na criação de novas necessidades, formando-se assim um ciclo –
necessidade/satisfação -, no qual o consumidor se encontra envolvido totalmente, pela sua ideologia de
negócio.” Segundo Schopenhauer, a cada realização retornamos ao estado de sofrimento, de
insatisfação e/ou infelicidade.
23.
Schopenhauer. O mundo Como Vontade e Representação, p.28.
21.
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4. O prazer enquanto ausência da dor
De acordo com o pensador alemão, a felicidade é momentânea, visto que nesse
mundo de tormento não há satisfação total, duradoura ou plena, mas um conflito ou
diversos obstáculos que se interpõem à realização íntima da Vontade, reduzindo-a a uma
satisfação incompleta ou mal realizada. Desta forma, como verifica Barboza, para
Schopenhauer:
a dor é positiva e a felicidade, negativa. Ser feliz não é em si mesmo algo real,
mas significa simplesmente ser menos infeliz, ter menos desejos que nos
atormentam, ter o querer em estado menos conflituoso. Porém, mesmo os
desejos sendo satisfeitos, contra cada um que o foi existem pelo menos dez
que não o são: quando um Schopenhauer postula, a felicidade não como algo
permanente ou duradouro, de modo que nenhuma felicidade plena pode ser
atingida em vida.
156
Com base no exposto acima, Schopenhauer concebe a felicidade, não como algo
constante, mas como transitoriedade, fugacidade, presente apenas em escassos
momentos de suavização da dor. Nesse sentido, podemos notar que esta seria apenas um
abrandamento ilusório, pois, não existe satisfação permanente, sendo como demonstra
Schopenhauer: “unicamente uma esmola concedida ao mendigo de quem prolonga a
vida por um dia para que no dia seguinte morra novamente de fome”.157
Nota-se, assim, que a existência humana oscila entre o sofrimento (este mais
constante) e uma breve pausa do sofrer: momento de “felicidade”. Em outras palavras, a
felicidade representaria apenas uma interrupção momentânea da dor, ou seja, “um
momento de respiração”, mas, “sem dúvida sobrevém logo o fastio”.158
Schopenhauer, portanto, entende a felicidade como sendo um adiamento, um
reduzido alívio ou retardação da dor. Em síntese, uma espécie de apaziguamento
momentâneo do sofrimento. Isto é, o bem-estar é fugaz, face ao mar de infortúnios que
nos atormenta. Viver é sofrer. Por isso, nos convida a observar que a vida não passa de
uma luta incessante e que nenhuma realização completa se encontra nela, pois como
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
24. Barboza. Schopenhauer, p.26.
25. Schopenhauer. O mundo Como Vontade e Representação, p.87.
26. Ibid., p.31.
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referido, o prazer, como recompensa de algo, é apenas uma supressão efêmera do sofrer.
Logo em seguida, o tédio volta a assaltar o indivíduo, impondo-o sob novos tormentos.
A vida é um ciclo oscilante entre sofrimento e uma breve retirada da dor. Vejamos o
gráfico abaixo:
Aqui, percebemos o registro do pessimismo schopenhaueriano em relação à vida.
“Tem-se assim, a partir do exposto, que a vida é no limite um negócio que não cobre
seus custos. É um investimento deficitário” 159 . Deste modo, o sofrimento está
entrelaçado à vida humana, representando seu fundo trágico.
Mais uma vez, Schopenhauer frustra-nos, ao desconstruir a mera ilusão humana de
busca pela felicidade, como se esta fosse algo estável, intrínseco ao ser. Ora, na visão de
Arthur, é um erro inato, acreditarmos que nascemos para sermos felizes. Na verdade, o
filósofo, de forma realística, tenta nos fazer despertar da fantasia,160 mostrando-nos que
no mundo vivenciamos mais períodos de sofrimento e dor, e que nossas ações não visam
à felicidade em si, mas representam uma luta para fugir das decepções, tédio e
infortúnios. Contudo, indica ele: “e quando se tem conseguido, o que, aliás, é bem
difícil, afastar a dor sob tal forma, eis que se apresenta sob mil outras formas”161. Nesses
termos: viver é sofrimento.
É por isso, que para o escritor alemão, num segundo momento, o que move o ser é
a tentativa de libertar-se do tédio, do peso da existência, de mata hora.
Assim é que vemos todos àqueles que se puseram a salvo da indigência e dos
cuidados, depois de terem alijado o dorso de qualquer outro peso, tornarem-se
(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
27.
Barboza. Schopenhauer, p.26.
Nesta reflexão, são relevantes as palavras de Strathern (1998, p.7): “com Schopenhauer, retornamos ao
planeta Terra. Radicalmente”.
29.
Schopenhauer. O mundo Como Vontade e Representação, p.32.
28.
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um peso para si mesmos, e considerarem como ganhas as horas que
conseguiram fazer passar, cada parcelazinha que lograram subtrair a essa
mesma existência em cuja conservação, mais longa possível, punham até
então todos os cuidados. O tédio não é um mal pequenino, nem desprezível:
162
acaba por dar ao contorno fisionômico o cunho do desespero.
5. Conclusão
Arthur Schopenhauer, através do seu pessimismo metafísico, discute o sofrimento,
ou melhor, as causas do sofrer, numa visão que contrapõe às explicações tradicionais
e/ou religiosas.
Enquanto, por exemplo, os filósofos cristãos, como Agostinho, tentam explicar a
miséria, a dor e sofrimento da humanidade, recorrendo às explicações dogmáticas e
sobrenaturais. Nosso autor procura, racionalmente, expressar as dores do mundo, como
decorrentes das aporias oriundas do querer, esboçadas no conceito de Vontade.
Como refletido nos capítulos acima, Schopenhauer especifica como causa do
sofrimento: a Vontade. Destacada como a força indestrutível que rege nossas ações.
Sendo assim, aprisionados pelos desejos insaciáveis do querer, os homens veem-se
atados no sofrimento, sendo o prazer ou felicidade apenas ausência momentânea da dor.
6. Referências
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Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1985.
BARBOZA, Jair. Schopenhauer. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2003.
MORAIS, Alexander Almeida. A crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral
proposto por Kant. Kínesis, Marilia, v. III, n. 5, p. 183-197, Julho, 2011.
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30.
Ibid, p.32
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São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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Disponível
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<http://
http://coral.ufsm.br/gpforma/1senafe/biblioteca/schopenhauer_o_mundo_como_vontade
_pt4.pdf>. Acesso em: 20 julho. 2014, 14:30:0.
SOUSA, Kairon Pereira de Araujo. Adorno e Horkheimer: uma visão critica sobre a
indústria cultural. Revista Aproximação, Rio de Janeiro, n. 4, p.63-75, 1° semestre de
2013.
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STRATHERN, Paul. Schopenhauer em 90 minutos. Trad. Maria Helena Geordani. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998.
TANNER, Michael. Schopenhauer: metafísica e arte. Trad.: Jair Barboza- São Paulo:
Editora Vunesp, 2001.
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SOCIEDADE, LITERATURA E CONTINGÊNCIA
Matêus Ramos Cardoso163
Mestrando em filosofia na UFRGS
Resumo: Segundo Richard Rorty há um declínio das filosofias tradicionais na tentativa
de oferecer algum caminho seguro para tentar dizer a Verdade sobre a Realidade,
cedendo lugar à ideia de Cultura Literária, como redentora da humanidade.
Palavras-chave: Richard Rorty; Verdade; Realidade; Cultura Literária.
Abstract: According Richard Rorty there is a decline of traditional philosophies and
religions in an attempt to offer a safe way to try to tell the truth about reality, giving way
to the idea of Literary Culture, as redeemer of mankind
Keywords: Richard Rorty. Truth. Reality. Literary Culture.
Introdução
Em nossa realidade atual, alunos, professores podem ser apenas pessoas que
passam o olhar sobre as palavras e nada mais fazem: eis os “ledores”. Não há, neste
sentido, um aprofundamento naquilo que se lê, uma reflexão, ler e ver dito no não dito,
descobrir por entre as linhas o que o simples olhar rápido não revela. Uma leitura assim
é como um alimento não digerido: “Assim, sua cabeça é semelhante a um estômago e a
um intestino dos quais a comida sai sem ser digerida.” (SCHOPENHAUER, 2012, p.22)
Mais do que nunca, ler foi tão importante, uma maneira de lidar com a
contingência da realidade, com o número de incertezas, de conhecimentos que estão
sempre num “devir”.
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163
Graduado em Filosofia. Especialista em Ética e Ciências da Religião. Pós-Graduando em
Psicopedagogia Clinica e Institucional. Aluno Especial no Programa de Pós-graduação em Filosofia na
UFRGS–RS. E-mail: [email protected]
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É importante perceber aqui uma relação com a nova natureza do trabalho, porque
ela parte de um fluxo de conhecimentos que não para de crescer. Trabalhar equivale
cada vez mais a aprender, transmitir saberes, produzir conhecimentos.
É importante lembrar o filósofo da antiguidade Sócrates, vendo nele a ideia de que
não se refutava por refutar. A sua ironia tinha por finalidade purificar o pensamento de
seus apegos mortais, dos diferentes dogmatismos, da prisão do falso saber. A missão de
Sócrates é promover no homem a investigação em torno do homem. Para Sócrates, o
diálogo é a essência do pensamento; e, para ele, o diálogo está dentro do método
socrático, do qual a ironia e a maiêutica são elementos necessários. Assim, com suas
perguntas, Sócrates deixava embaraçado e perplexo todo aquele que acreditava ter
segurança de suas respostas, e com isso levava seus interlocutores a verem novos
problemas, novas perspectivas.
Através deste método, Sócrates buscava desfazer a máscara que os cidadãos de
Atenas possuíam, e que escondiam sua verdadeira face, apresentando apenas uma fina
superfície, uma verniz da verdade. Por isso ele atacava a vaidade das opiniões
enraizadas nos dogmas, mas não necessariamente dava uma resposta. Assim, aquele que
era interrogado era posto no caminho da solução, para que mesmo a encontrasse. Tal
solução era uma tarefa difícil, porque exigia muito tempo de conversação. E assim,
pode-se até arriscar a dizer que Sócrates não lecionava aos seus discípulos, mas unia-os
através da conversação, da discussão, guiando-os, e abrindo caminhos, orientando-os,
para que buscassem sozinhos a verdade. Sócrates teve contato com os Sofistas, e há um
ponto interessante neste encontro. A grande diferença é que Sócrates acreditava poder
chegar à verdade, uma vez que ele acreditava que era possível existir leis e valores
universais. Já para os Sofistas todo e qualquer valor era subjetivo, reinando assim o
relativismo. Perceber a posição no qual a dialética é limitada é importante. Ela retira de
cena uma perspectiva própria de nossa condição humana: a contradição. E pode estar
expulsando exatamente a parte fundamental para a chegada de uma afirmação filosófica
mais clara. Não poderia deixar de concordar com o argumento de que toda verdade é
apenas circunstancial, histórica.
É necessário deixar muito claro que não existe em Rorty um “ressuscitar” da
filosofia grega e de seus conteúdos; mas em Sócrates, Rorty vê a possibilidade em minar
a epistemologia clássica, em especifico com a Ironia que nos pode levar à conversação e
então o desejo por construir um “Pensamento” Forte (desejo da filosofia clássica) ficara
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por terra. O que podemos afirmar do mundo e das coisas é que nada mais podemos dizer
que não tenha surgido de uma grande conversação. Insistir na Epistemologia e na
Metafísica Aristotélicas é perda de tempo, segundo nosso pensador pragmatista.
Para isso nada melhor que uma reflexão na perspectiva rortyana. Segundo Rorty,
não devemos pensar o mundo como possuidor de uma natureza que seja intrínseca, uma
essência, algo que lhe seja subjacente, incluindo nisso o próprio ser humano. Para ele, a
verdade não é algo que está aí para ser descoberta. Neste sentido, a contingência, além
de ser compreendida como constante movimento, também deve ser compreendida como
incompletude. O mais interessante é que, para Rorty, isso ocorre porque não há nada
para ser completado. Portanto, o máximo que podemos fazer é nos mantermos abertos
para revisar e expandir nossa linguagem, redescobrindo nossa contingência.
Segundo o filósofo Richard Rorty, nos últimos duzentos anos, a literatura teve
mais poder para sensibilizar a humanidade diante de suas crises, mais força, do que
pensamentos filosóficos “densos”, abrindo-se à discussão para a perspectiva da
sensibilidade, à multiplicidade do universo da sensibilidade, das relações, relacionandose também com o universo cultural.
Segundo Rorty, são as nossas diversas e múltiplas linguagens que dão sustentação
ao mundo. Por isso, ele quer chamar a atenção para a cultura literária que, por sua vez,
tem condições de oferecer muitas alternativas que estendem nosso "vocabulário final". A
tese geral de Rorty é de que não devemos pensar o mundo como possuidor de uma
natureza que seja intrínseca, uma essência, algo que lhe seja subjacente, incluindo nisso
o próprio ser humano. E a verdade não é algo que está aí para ser descoberto. Com isso,
fugimos da ideia de que o “mundo” ou o “eu” tenham uma natureza intrínseca e
enfrentamos a contingência da linguagem que usamos, a partir da percepção da
contingência na nossa linguagem.
O que nos dispomos é refletir sobre a leitura, a escrita, para que possam ser
concebidas como elementos emancipatórios numa sociedade cada vez mais ampla,
carregada de pensamentos sempre mais antagônicos.
Literatura e redescrição da realidade
Esta pesquisa busca explorar e aprofundar uma percepção de ser humano e de
mundo que já havia começado, segundo Rorty, com pensadores como Nietzsche, ao
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apresentar uma nova proposta de tradição de pensamento, no qual ocorre a vitória da
poesia sobre a filosofia indicando que a literatura tem um poder fundamental nos tempos
atuais. Nessa nova tradição, fica ressaltada a ideia da redescrição como meio
privilegiado do trabalho intelectual. Essa nova proposta também foi apresentada por
Wittgeinstein, James e Dewey, buscando uma nova autoimagem do ser humano e do
mundo. Essa capacidade de, em primeiro lugar, redescrever-se, passa pela capacidade de
duvidar de si mesmo, de estar sempre fazendo e refazendo a si mesmo. Isso nos leva a
pensar a proposta de Rorty como um projeto, pelo qual os vocabulários disponíveis são
sempre passíveis de mudanças e adaptações. Ao analisarmos o conceito de contingência
de Richard Rorty, deparamo-nos com uma argumentação que nos oferece a noção na
qual “A verdade não pode ser dada.” (RORTY, 2007, p. 28). O autor não busca uma
verdade já existente, mas uma utopia que leve o ser humano a estar sempre se
redescobrindo. Verdade é apenas uma palavra-função da nossa linguagem, uma
propriedade de entidades linguísticas chamadas frases. Portanto, quando interpretamos a
realidade podemos redescobri-la, e a perspectiva linguística pode realizar tal tarefa. Por
isso é necessário alargar nosso vocabulário, uma vez que, diante de uma realidade tão
vasta, a escrita e a reflexão propõe compreender o mundo e a si mesmo.
Conhecer é o primeiro passo necessário para começar a mudar qualquer realidade,
afinal, não existe experiência de mudança social e política que não tenha que trilhar os
caminhos passando pelo aprofundamento da consciência sobre realidade. Neste sentido,
a literatura promove a possibilidade de uma nova percepção da realidade, que diante de
problemas sociais, políticos econômicos, serve como ferramenta na busca de um mundo
novo. Isso ocorre porque a experiência de contato com diversos autores e suas
linguagens, atua sobre a consciência, incentivando a criatividade e desenvolvendo
horizontes de possibilidades. Tal ideia é abrangente, e diz respeito a todo tipo de
mensagem que leve o individuo para dentro e para fora de si, longe do status quo, não
aceitando a realidade de maneira passiva. Por isso temos o que Rorty chamaria de O
Declínio da Verdade Redentora e a Ascensão da Cultura Literária.
Na Filosofia, toda mudança ocorre através da aquisição de crenças “corretas”,
buscando compreender como a realidade é. Já a cultura literária, apresenta a
possibilidade de redenção através de um contato intenso e amplo com os seres humanos,
aumentando a rede de contatos, de maneira a não buscar uma “crença verdadeira”, o que
estagnaria o pensamento, fechando-o em si mesmo.
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Logo, o intelectual seria aquele que lê a maior gama de livros possível, na busca
de encontrar respostas, soluções para questões humanas, promovendo uma nova
autoimagem da humanidade. Mas, qual o motivo de ser de uma cultura literária em
Rorty? Ora, é pelo fato de que neste âmbito não se aceita uma essência, uma natureza
intrínseca, uma “humanidade comum” entre os seres humanos, mas, que existem tantas
possibilidades para “ser” um ser humano quanto há humanos. Para este filósofo a busca
está direcionada para um autoconhecimento, uma “verdade” que indique possibilidades
de nos orientar para quais atitudes tomar em relação a nós mesmos. Uma cultura assim
seria a bússola que nos guiaria. Ler é o caminho para alcançarmos ideais, como
deveríamos viver melhor, ou, que futuro buscamos. Assim, tomamos contato com
muitas alternativas e não ficamos presos a um vocabulário. Isso ocorre para todo aquele
que valoriza a autonomia na construção de si mesmo.
Segundo Rorty, são os intelectuais que realizam a leitura para buscar novos
propósitos. E intelectual não significa ser melhor que o que não lê, mas aquele que está
sempre em rumo a novas e variadas possibilidades de existência. Desta maneira
podemos argumentar que nas sociedades democráticas a melhor maneira de garantir o
direito à vida em sociedade, à participação nas discussões e vida política, a uma
discussão pública, é através da autocriação fomentada por tal desempenho através do
contato com os mais variados textos. Esta é a melhor maneira cultural de garantir tais
direitos. Para este pensador, uma cultura assim não pode ser restrita a um livro, a uma
visão de mundo e de ser humano, da mesma maneira que nenhum argumento solitário de
um texto, artigo, pode dar conta de todas as questões existentes. O todo não pode ser
dito de maneira única. “Nenhum conhecimento, de nenhuma ordem, pode servir
necessariamente para todos do mesmo modo. Assim, tal cultura é a que preserva melhor
os ideais da liberdade, da diversidade e da tolerância, os próprios esteios das sociedades
democráticas.” (CARVALHO, 2010). Rorty diz que poesia é todo conjunto de
conhecimentos adquiridos que nos permite encontrar um vocabulário capaz de estender
nossa visão de “nós” a toda realidade que percebíamos como sendo estranha a nós.
Portanto, tais conhecimentos possibilitam superar as diferenças através do encontro com
os diferentes. Assim, a literatura tem o poder de redimensionar nossas respostas,
revendo nossa sensibilidade a tudo o que é diferente, percebendo as peculiaridades da
vida humana de tal maneira que possamos ver o outro como um de nós, lendo,
redescrevendo e “sendo”.
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Literatura, contingência e originalidade
Através da literatura, busca-se um caminho no qual se volte o olhar para as
capacidade humanas sem qualquer relação com um ser transcendente, e quando ele fala
da vontade de poder percebe-se a necessidade de autocriação, que é própria de cada ser
humano, na busca de recusar a influência de um Deus supramundano. A literatura
contribui para lidar com a multiplicidade de concepções, num mundo fragmentado.
Podemos ancorar tal reflexão na argumentação de Schopenhauer , quando ele diz
que “...a verdadeira formação para a humanidade exige universalidade e uma visão
geral; (...) precisa reunir em sua cabeça as extremidades mais afastadas da vontade
humana. (SCHOPENHAUER, 2012, p.31).
Segundo o filósofo Schopenhauer, a peruca pode nos ajudar a entender a postura
de alguns educadores. Assim, como uma bela peruca, o pensamento de alguns
educadores também o são. São belos, mas não são seus! Com isso temos uma postura de
alguns educadores que se resumem em:
... ensinar e escrever coisas em que na verdade não acredita, rastejar, adular,
tomar partidos e fazer camaradagens, levar em consideração ministros, gente
importante, colegas, estudantes, livreiros, críticos, em resumo, qualquer coisa
é melhor do que dizer a verdade e contribuir para o trabalho dos outros...
(SCHOPENHAUER, 2012, p.27).
Com o tempo, restará educadores que perdem o efeito de "suas" ações, pois são
meros repetidores. Neste sentido o que surgirá, na melhor das hipóteses, é "...um velhaco
cheio de preocupações."(SCHOPENHAUER; 2012, p.27).
Acredito que, mais uma vez, Rorty, pode nos ajudar a pensar, fornecendo uma
maneira de percebemos a interdisciplinaridade como uma maneira não hegemônica do
conhecimento ser transmitido, o que levaria a uma mudança no pensamento do “poder
ser transmitido.” Interessante destacarmos uma frase de Monteiro Lobato, que diz que
“um país se constrói com homens e livros”. Isso não garante de que todos os literatos
irão mudar necessariamente a realidade, mas gera uma maior possibilidade de, ao
conhecer o mundo que está ao nosso redor, possam mudá-lo.
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Assim, a palavra “literatura” compreende todo tipo de livro que tenha a
possibilidade de mudar o sentido daquilo que é real, do que se mostra como importante.
E isso ocorre porque para Rorty isso levaria a possibilidade de, ao entrar em contato com
os críticos literários, termos uma gama maior de possibilidades, pois, tais críticos têm
excepcionalmente uma visão ampla de conhecimentos, de teoria, ideias. Não significa
que tenham um acesso especial à verdade moral, mas, como diz Rorty, por serem
“rodados”, ou seja, eles leram mais livros e têm melhores condições de não estarem
presos a um único vocabulário, a uma hegemonia ideológica.
Acredito que ao compreender a definição rortyana de ironista, podemos entender
um pouco mais sobre a necessidade de ter dúvidas radicais e contínuas sobre o
vocabulário final. Para este pensador, o ironista é aquele que percebe “... que qualquer
coisa boa ou má pode ser levada a parecer boa ou má, ao ser redescrita (...) (RORTY,
2007, p. 134). Ou seja, eles estão sempre conscientes de que ao redescrever sua
realidade, tem a percepção da contingência e fragilidade dos vocabulários finais, usados
pelos mesmos e, consequentemente, uma noção contingente do seu eu, da verdade.
Conclusão
O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser
humano a modificar sua realidade. Foi assim que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844–1900) resumiu o poder que o ato de conhecer tem sobre a vida de um indivíduo.
Séculos antes, mais precisamente no século XVII, outro filósofo muito conhecido,
Baruch Spinoza (1632–1677), enunciava afirmação semelhante. Também o pensador
holandês acreditava que no conhecimento a humanidade encontraria a mais forte fonte
de transformação social.
No pensamento contemporâneo parece existir, segundo Rorty, uma crise no
fundacionismo, uma vez que o filósofo não pode mais pretender saber algo sobre o
conhecimento que ninguém mais sabe tão bem. Segundo este pensador, tal crise seria
advinda do problema do dualismo corpo-mente, mundo externo e mundo interior, e na
noção tradicional de verdade. Para este pensador, os grandes sistemas filosóficos e o
caráter fundacional da filosofia em relação a outros saberes acabaram sendo superados.
Desta maneira a linguagem é simplesmente vista como algo “... útil para explicar o
sucesso da inquirição, exatamente como “um mapa tem sucesso se corresponde de um
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modo apropriado a uma porção particular da terra”. (PUTNAM in RORTY, 1988, p.
293).
Ocorre que ao ler, tenho estímulos para escrever, e o mais importante, refletir. Ora,
refletir se assemelha às pessoas que constroem casas, porque toda vez que estendo meu
conhecimento nos mais variados vocabulários, inclinando-me a uma “Cultura Literária”,
tenho a possibilidade de ‘construir’ casas para abrigar as angústia, as dúvidas.
As palavras nos permitem sermos homens e mulheres de partidas, buscando
sempre mais nossa incompletude.
Referências
CARVALHO, F. A. Individualismo Solidário: uma redescrição da filosofia política
de Richard Rorty. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
_____________,F. A. Sensibilidade, solidariedade, autocriação privada. Rorty e a
literatura. In: Redescrições. Ano I, Número Especial: Memória do I Colóquio
Internacional
Richard
Rorty,
2009.
p.
2.
Disponível
em:
http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/memoria/aldir.pdf . Acesso
em: 02 dez 2010.
NIETZSCHE, F, W. Genealogia da Moral. 3. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.
RORTY, Richard. Contingência, Ironia e Solidariedade. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
_______. Filosofia, Espelho da Natureza. 1. Ed. Lisboa: Dom Quixote, 1988.
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_______ O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária. In:
GHIRALDELLI JR., P. Ensaios pragmatistas sobre subjetividade e verdade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006. pp. 75-104
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