Move =_ DI =_ ou O Pixador_Parte 1 de 10

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Move =_ DI =_ ou O Pixador_Parte 1 de 10
 “Move ≠ DI ≠” ou “O Pixador” Parte 1 de 10 por Thiago Venco e Maia Jorge Uma adaptação do romance “Moby Dick” ou “A Baleia” de Herman Melville, publicado em 1851 Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-­‐NãoComercial-­‐CompartilhaIgual 4.0 Internacional 1 ≠ ALEIVOSIAS ≠ Pode me chamar de Ismail. Anos atrás – esqueça quantos exatamente – tendo um ou nenhum puto no bolso, e nada específico me interessando na barra, pensei em rodar um pouco e voltar aos alagamentos de São Paulo. Isso é modo meu de desbaratinar do tédio, e regular a circulação. Em toda a ocasião de me encontrar cultivando veneno através da boca; em toda ocasião de ser um Novembro abafado, enervante na minha alma; em toda ocasião de eu me pegar parando do nada na frente de depósitos de caixões, e colando na rabeira de cada funeral que eu cruzo; e especialmente em toda ocasião que meu gogó leva um cruzado de mim mesmo, isso tudo junto me demanda um forte princípio moral para me prevenir de deliberadamente pisar na rua e metodicamente bater os bonés dos cidadãos -­‐ aí, eu contabilizo como “demorou” para cair na noite, o quanto antes eu mesmo for capaz. Isso é meu substituto para pistola e bala. Numa espécie de gesto filosófico, um Getúlio dá-­‐se um tiro no próprio peito; eu, na miúda, eu pego a barca. Não tem nada para se surpreender nisso. Se eles só soubessem, 99% dos homens cada um em seu grau, cedo ou tarde, regula comigo os mesmos sentimentos sobre a cidade, quase exatamente. Agora aí está sua cidade ilhada de Sampa. Acinturada por trechos de mata indígena e barreiras de muros, e o comércio arrodeando em volta com seu surf. À esquerda e à direita, as ruas te levam às marginais. Seu extremo centro é a Sé, onde a nobre terra é batida pela passagem, e resfriada pela garoa, que poucas horas antes estava fora de vista, atrás das montanhas. Olhe para as multidões de tios e tias em São Paulo. Circuambulando a cidade em uma tarde de Sábado, dos sonhos. Vá do fim do Pari à Parada de Taipas, e de lá à frente, siga com a Água Rasa, ao Norte. O que você vê? Parados como sentinelas silenciosas dentro dos prédios, centenas de milhares de mortais vivem obcecados pelas marés da cidade. Alguns se debruçam nas varandas para sentir os borrifos; alguns sentados nas beiras de viadutos; alguns olhando para os contêineres chineses, indo e vindo; alguns bem por cima da carne seca, como se lutando por uma vista ainda melhor do mar. Mas isso tudo é coisa pedestre; de dia de semana, à paisana de jeans e poliéster, enrolados nos despachantes, pregados nos galpões, grampeados nas baias. Como é que se dá esse processo? Cadê os verdes campos? Eles aqui o quê? -­‐ Mas olha! Vem chegando novas legiões, rumando confiantes para o meio da muvuca, e aparentemente pretendendo cair de cabeça. Estranho! Nada vai satisfazê-­‐los, a não ser os extremos limites desse território, ir se imiscuindo nos terrenos baldios de sempre, eita, não bastará. Não. Tem que chegar o mais perto quanto possível da represa e não cair nela. E ali eles ficam – milhões deles – léguas. Tudo tatu, vem de quebradas e becos, ruas e avenidas – norte, leste, sul e oeste. E ainda todos se irmanam. Diga aí, qual virtude magnética captam as bússolas paulistanas, quando precisam prever para onde rumam todos os carros, pegos presos todos nas mesmas ruas? De novo. Digamos, você está no campo, no interior, numa terra alta que chega a formar lagos. Pegue qualquer travessa que queira, dez para um que você vai 2 descer até um ribeirão, que te deixará diante de um bica, denotando um córrego em curso. Tem mágica nisso. Deixe um sonâmbulo ser largado em seu sono mais profundo – bote este homem em suas botas, aponte seus pés para a porta, e ele vai infalivelmente se colocar no rumo d´água – se água houver naquela região. Esteja você passando sede no sertão nordestino, tente este experimento, se acaso sua caravana estiver suprida de um bom mestre metafísico. Sim, como todo mundo sabe, meditação e água estão casadas para sempre. Mas aqui tem um artista. Ele quer te pintar a mais fantástica, detalhada, tranquila, mais encantadora vista do buraco mais romântico de todo o vale do Rio Tietê. Qual será o elemento chave aplicado em tal retrato? Lá ele põe umas árvores, com uns troncos retorcidos formando grandes ocos, como se ali dentro coubesse uma família inteira e ainda um crucifixo; e ali vai um matinho briguento, acolá umas capivaras; e das ruazinhas, uma fumacinha constante e preguicenta. Lá pra dentro, nas distantes favelas venta um vento de labirinto, alcançando as matas naqueles mares de morros banhadas no azul da montanha. Mas apesar de todo esse belo quadro assim traçado, apesar dos eucaliptos postados para te agradar com seu cheiro bom de planta esterilizante, tudo isso teria sido em vão, se os olhos do pastorinho aí não se deitarem sobre este rio surreal estagnado diante de si. Vá o amigo visitar a várzea na Zona Leste, ao pôr-­‐
do-­‐sol de Junho, onde por quilômetros e quilômetros você pode ajoelhar e sumir no capim sujo – qual é o encanto que se estaria buscando nisso? – Água – e não tem uma gota d´água ali! Fosse a Foz do Iguaçu uma desgraça de uma catarata de areia, você viajaria milhares de quilômetros para ver essa duna? Por qual razão o Pobre Poeta Paulista, naquela vez que recebeu (do nada) duas mãos cheias de Cruzeiros, deliberadamente ao invés de se comprar uma boa de uma jaqueta, que ele lamentavelmente estava necessitando, não, ele investe tudo numa viagem chulezenta para a Praia Grande? Por que quase todo garotão do interior, com uma alma robusta saudável por dentro, mais cedo mais tarde entra numas de ir até o litoral? Por que, no seu primeiro rolê de viatura, ainda recruta, você, você mesmo, sentiu aquela vibração mística quando pela primeira vez informaram que estávamos fora do alcance da central de rádio – na beira da serra, quando você viu o mar em São Paulo? Por que os Tupis mantinham aqui em Sampa seu solo sagrado? E por que os portugueses vieram aqui e fizeram chamar esse lugar pelo nome do próprio apóstolo de Jesus Cristo? Com certeza nada disso é sem sentido. E mais profunda ainda é a história do Narciso, que por não conseguir dar conta do recado -­‐ da suave imagem que ele viu na refletida na poça -­‐ nós, a nós mesmos nos condenamos aos reflexos dos retrovisores e das vitrines. Vendo a imagem do intocável fantasma da vida; e o pior é que é essa a merda da chave de tudo isso que tá aí. Agora, quando eu digo que tenho o hábito de cair na avenida sempre que eu começo a ficar seco do olho, quando começo a ficar nervoso do pulmão, não tô querendo que você pense que eu vou como passageiro de barca, não. Porquê para ir de passageiro você precisa ter roubado uma bolsa, e uma bolsa é só couro esticado a não ser que tenha algo dentro. Além disso, passageiros passam mal – ficam estressados – não dormem bem à noite – não curtem muito a própria 3 companhia, de um modo geral – não, eu nunca vou de passageiro; e nem, apesar de eu ser um cara, como dizem aí, coxinha, eu jamais iria pra rua como major, ou de capitão, ou de piloto. Abandonai a glória e distinção do oficialato para quem tem gosto pela medalha. Porque, da minha parte, abomino todos os próceres, pompas e enroscos burocráticos de qualquer tipo que se apresentem. Já estou no limite do quanto eu posso fazer só pra cuidar de mim mesmo, quanto mais prestar conta de viaturas, motos, camburões e o que mais não. E sobre ir como piloto, -­‐ apesar de eu confessar que tem glória na direção, sendo o piloto uma espécie de comandante a bordo – nem assim, eu nunca me amarrei em ferver o motor ainda que uma vez fervido, meticulosamente azeitado, estando a barca minuciosamente alinhada e balanceada, não haverá um para falar mais respeitosamente, para não dizer reverenciosamente, de uma viatura bem pilotada quanto eu. É por causa dessa inclinação à idolatria ao carro, que os antigos “tiras” se permitiram um dia, que você ainda consegue encontrar múmias preservadas de Veraneios e Joaninhas, pretas e vermelhas sem estofo, nos vastos depósitos de veículos da PM. Não, quando eu vou para as ruas de São Paulo, eu vou como um simples soldado, bem atrás da farda, chumbo abaixo no coldre, investido abaixo do democraticamente eleito Governador. Verdade: ele frequentemente me ordena umas boas tarefas, fazendo-­‐me pular de poste em poste, como um macaco-­‐prego apressado na 23 de Maio. A princípio, esse tipo de coisa é bem desagradável por si só. Isso toca o senso de honra de um homem, particularmente se você vem de uma renomada família aqui estabelecida, como os Brito, os Mendes, os Salles, os Cavalcanti, os Setúbal, os Safra, os Jereissati et Cetera. E mais ainda acima de tudo, se antes de enfiar seu pé na jaca, você fez as vezes de lorde interiorano, enquanto Bacharel em Direito numa cidade pequena, fazendo os mais tarimbados delegados de polícia travarem diante de sua imponência. A transição é uma brasa, te garanto, de um Bacharel para um soldado, e requer uma boa interpretação de Jesus Cristo e São Francisco de Assis para fazê-­‐lo suportar e aguentar o tranco. Mas até isso se vai com o tempo. E daí, se um bode velho de um capitão de polícia me manda pegar um balde e uma bucha e lavar a viatura? O quanto me acrescenta isso de indignidade, quer dizer, na escala do Novo Testamento? Você acha que o arcanjo Gabriel pensa um tico menos de mim, porque eu pronta e respeitosamente obedeço o bode velho nessa instância específica? Quem não é um escravo? Me diga você. Bem, então, qualquer trolha que o velho capitão de polícia vier a me ordenar – independente de o quanto me enfie o dedo e doa-­‐me os brios, eu tenho a satisfação de saber que tudo vai bem; de que cada um de um jeito ou de outro fica servido de modo muito semelhante – seja num ponto de vista físico ou metafísico, que seja; e então o passa-­‐e-­‐não-­‐devolve universal vai rodando a roda, e todas as mãos darão seus croques nas nucas uns dos outros, e serão contentes. De novo, eu sempre vou pras ruas como soldado, porque eles tem um ponto em me pagar pela minha encrenca, enquanto que eles jamais pagam meus passageiros um único centavo que eu saiba. Ao contrário, os passageiros devem pagar por eles mesmos. E tem toda diferença no mundo entre pagar e ser pago. O ato de pagar é talvez a imposição mais desconfortável que o casal de ladrões de 4 maçã do Jardim armou pra cima de nós. Mas SER PAGO, -­‐ o que se compara a isso? A atividade urbana pela qual um homem recebe dinheiro é realmente maravilhosa, considerando que nós cremos piamente que o dinheiro é a origem de todos os males terrenos, e que em contagem alguma poderá o endinheirado adentrar o reino dos céus. Ah! Quão alegremente nos entregamos à perdição! Por fim, eu sempre vou pras ruas como soldado, por causa do exercício completo e do ar puro da janela da viatura. Porquê nesse mundo, os ventos de frente são bem mais comuns que os ventos de trás (isso é, contanto que você não esteja num show do Ary Toledo...), então o major no banco de trás pega a atmosfera de segunda mão dos soldados que vão na linha de frente. Ele acha que quem respira primeiro é ele; mas nem. Muito nesse mesmo jeito, o povão lidera os cabeças de muitas outras maneiras, ao mesmo tempo que a liderança pouco suspeita desse fato. Mas porque diabo foi que, depois de eu ter repetidamente sentido o cheiro podre de São Paulo enquanto soldado militar, deveria agora eu me enfiar numa caçada a um pixador; isso o oficial de polícia do Destino, que me mantém sob vigilância constante, que secretamente me leva na coleira, e que me influencia de modo inenarrável – esse aí poderia responder melhor que qualquer um. E, sem dúvida, minha ida a essa caça ao pixo, forma parte do grande programa da Providência que estava armado há muito tempo. Ela veio como um tipo de breve interrupção da programação para declaração do Excelentíssimo antes de outros espetáculos mais especiais ainda por vir. Tomo por mim que tal parte da manchete deveria ser mandada nessa linha: “GRANDE CONTESTAÇÃO DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DO BRASIL” “OPERAÇÃO CAÇA-­‐PIXADOR POR UM TAL DE ISMAIL” “BATALHA SANGRENTA NO AFEGANISTÃO” Apesar de eu não poder te dizer exatamente o porquê desses animadores de palco, os Destinos, terem me colocado para esse papel vagabundo numa operação caça-­‐pixo, enquanto outros foram escalados para papéis magníficos em altas tragédias, e/ou papéis curtos e fáceis em comédias chiques, e/ou alegres papéis em farsas globais -­‐ apesar de eu não poder dizer o porquê exatamente do ocorrido; ainda assim, agora que eu me relembro de todas as circunstâncias, penso que consigo enxergar um pouquinho das fontes e motivos que se me apresentaram sob os mais variados disfarces, induzindo-­‐me a definir a interpretação do papel que me coube, além de me sugerir com a ilusão de que a escolha foi de minha responsabilidade, resultante de meu imaculado livre arbítrio & oriunda de meu cristalino juízo discriminatório. Soberana entre estas motivações foi a própria ideia atordoante do grande 5 pixador de branco. Esse monstro agourento e misterioso atiçou minha curiosidade. Na sequência, as quebradas sinistras e distantes onde ele rolava sua tinta; os inescaláveis lugares sem nome do pixo; esses, junto com todas as maravilhas que atendem pelo nome de periferias de São Paulo, com suas vistas e seus sons, me ajudaram a rebolar rumo a essa tentação. Para outros cabras, talvez, essas coisas não teriam sido incentivo; mas de minha parte, eu sou atormentado por uma coceira eterna por coisas remotas. Eu amo fazer ronda em ruas proibidas, e descer da barca nos picos mais barbarizados. Não ignorante do que é bom, eu sou rápido em captar um horror, e ainda poderia socializar com ele – se me permitissem – pois não tem nada de errado se manter em termos amigáveis com os vizinhos do barraco onde você vai ser forçado a se hospedar. Pelo arrazoado geral dessas coisas, então, a Operação Caça-­‐Lata foi bem-­‐
vinda; as grandes comportas do mundo-­‐maravilha se abriram, e nos selvagens preconceitos que me levaram ao meu propósito, deu dois pras duas da manhã e pronto, estava lá já flutuando na minha alma mais encavernada um interminável rastro de pixos, e, no centro de todos eles, o grande fantasma encapuzado, o ≠DI≠, o “diferente”, o iceberg ao contrário, pendurado de ponta para baixo nos edifícios. 6 2 ≠ O SACO DE MARINHEIRO ≠ Enfiei uma camisa ou duas no meu velho saco de marinheiro, que mãe fez pra mim partindo um grande tapete azul marinho que meu pai achou numa caçamba e trouxe pra casa. Tasquei-­‐o nas costas e saí em direção ao Centro Velho, perto do quartel das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Saindo da boa e antiga cidade de Jundiaí, chego a São Paulo sem empecilho algum. Era uma noite de sábado em Dezembro. Fiquei bem desapontado com o fato de o trem para Santos não existir mais; sem chance de ir pra lá por trilhos, nem hoje nem em próximo Domingo algum. Como a maioria dos jovens candidatos às dores e penas do ingresso na PM eu desço na mesma Estação da Luz, de onde cada um toma seu rumo para os diferentes hotéis, e depois a seus postos de apresentação -­‐ ainda que valha a pena registrar aqui que a esta altura do campeonato eu não tinha idéia de onde iria parar. Minha mente ainda guardava a esperança de ir patrulhar o Boqueirão, porque estava rolando naquela época alguma boa e violenta treta que tinha tudo a ver com uma conexão do PCC com a Ilha de São Vicente, que sempre me agradou demais. Apesar de que São Paulo ter vindo gradualmente monopolizando o zum-­‐
zum-­‐zum da pixação, e apesar de hoje a coitada de Santos estar muito atrás da capital nessa matéria, dizem que Santos foi o berço original do pixo – a Pompéia dos trópicos; -­‐ o lugar onde o mais antigo rabisco de piche no alto de uma fachada de casarão foi avistado. De onde mais se não de Santos os pixadores pioneiros -­‐ os “Índios” -­‐ teriam saído de rolê com o pé na lama se não para caçar galpões abandonados na zona portuária? E de onde se não do Porto Macuco teria saído o primeiro bando de aventureiros do piche, carregados de pedras portuguesas nas mochilas – diz a lenda – para jogar antes nos telhados, para descobrir se as vigas estavam firmes o suficiente para arriscar uma travessia até os beirais dos armazéns? Agora tendo à minha frente uma noite, um dia, ainda uma noite, antes que eu me apresentasse no quartel ainda não designado, virou um tema de preocupação o local onde eu comeria e dormiria no “enquanto isso”. Uma área de aparência duvidosa, ou talvez não, a noite é que estava muito escura e tétrica, um estúpido frio cortante, triste. Eu não conhecia ninguém no pedaço. Num tique nervoso sacudi meu bolso, e só saíram lá de dentro uns poucos tostões – então, onde quer que você vá, Ismail, disse, pensei, parado no meio de uma rua decadente carregando meu saco, comparando o breu da direita com a escuridão da esquerda – onde quer que em sua sabedoria você decida pernoitar, meu caro Ismail, não deixe de perguntar o preço, e não entre em particulares com ninguém. Com passos cautelosos eu cruzei as ruas, e passei pelo luminoso do “San Raphael”, mas me pareceu muito caro e metido. Mais pra frente, saindo pelas janelas vermelho-­‐cortina-­‐de-­‐teatro do “Cambridge Hotel”, uma verdadeira 7 radiação de laser e fumaça parecia ferver o chuvisco na frente dos toldos, enquanto tudo à volta congelava, a começar pelas calçadas e asfalto, -­‐ penoso o suficiente para mim, a cada topada que meu dedão dava nos malditos desníveis, serviço gratuitamente prestado pelas solas das minhas botas, que andavam num estado lamentável. Caro e metido demais, pensei novamente, parando um pouco para assistir a festa que se formava na entrada, e ouvir o som dos copos tilintando lá dentro. Mas siga, Ismail, disse, pensei, afinal; você não escuta? Saia da frente da portaria; suas botas remendadas estão atravancando a passagem. Então em frente eu fui. Agora por instinto eu seguia as ruas que me levariam para a Boca do Lixo, porque lá, sem dúvida, estavam os mais baratos, se não as mais animadas pousadas. Que ruas decrépitas! Blocos de sujidão, não de casas, na mão e contramão, aqui e ali e ali e ali isqueiros acendiam e apagavam, como velas se mexendo numa tumba. A essa hora da madrugada, no último dia da semana, aquele pedaço da cidade estava improvavelmente lotado. Mas subitamente eu me deparo com uma luzinha esfumaçada vazando de um predinho baixo, comprido, a porta dele estando convidativamente aberta. Tinha um jeitão desencanado, como se fosse feito para uso público; então, entrando, a primeira coisa que eu faço é tropeçar numa caixa de cinzas na soleira. Há! Pensei eu, enquanto as partículas voadoras quase me sufocavam, tome aí as cinzas daquela cidade arrasada, Gomorra? Então, se aqueles eram o “San Raphael” e o “Cambridge Hotel”, isso aqui então deve ser o “La Arapuca”. No entanto, eu me recompus; escuto uma voz bem alta vinda de dentro, empurro e abro uma segunda porta interna. Pareceu que eu tinha entrado no Grande Parlamento Africano reunido no Benim. Uma centena de rostos negros, em sua maioria, virou-­‐se nas rodas ao me notar; atrás, um Santo bolado batia uma pila num pilão. Era um terreiro de Candomblé; abaixei a cabeça, como me desculpando pela intromissão, e não ousei fazer mais nada. Do pouco que pude ouvir, o discurso do Santo versava sobre a profundidade da noite; vinha misturado em sussurros e resmungos, entre dentes rangidos. Ei, Ismail, murmurei, retrocedendo, que grosseria do caramba, saia com humildade antes que você seja chutado de volta para a verdadeira Armadilha. Seguindo em frente, por fim me deparei com uma luz fraca, não longe dos trilhos, e escutei um rangido perdido ecoando pelo ar; olhando para cima, vi um letreiro ameaçando despencar da parede, balançando em cima de uma porta; havia uma pintura nele, uma tentativa tosca de representar uma espécie de erupção vulcânica saindo de um spray de gás lacrimogêneo, nas mãos de um policial, com essas palavras embaixo – “O Jato Inn: Pedro Esquife”. Esquife? -­‐ O Jato? -­‐ Bastante agourenta a conexão entre o gás repelente e o caixão. Mas quem sabe, esquife poderia ser um sobrenome até comum entre imigrantes do século passado, que receberam os mais estranhos apelidos ao se registrarem aqui na colônia, muitas vezes relativos à suas profissões. Uma vez que a luz parecia tão fraca, e o lugar, ao menos a esta hora da madrugada, parecia calmo o suficiente, e a deteriorada fachada de tijolos parecia ela mesma escavada das ruínas de um incêndio no quarteirão, sem falar daquele letreiro “balança-­‐mas-­‐não-­‐cai” e seu chiado ameaçador, eu concluí que aquele era o lugar ideal para uma hospedagem barata e com sorte, para um belo café passado num coador de meia. 8 Era um lugar bizarro – uma casa velha que terminava numa empena cega, como se a obra tivesse sido paralisada à meio do caminho, e ali ficou, tristemente capenga. Ela estava numa esquina sem vida, onde aquele vento tempestuoso, o Noroeste, criava um uivo muito pior do que o Santo Paulo de Tarso jamais escutou em suas viagens de barco pelo mediterrâneo. O Noroeste, todavia, é uma aragem extremamente agradável para qualquer um que esteja dentro de casa, com seus pés tostando diante de um aquecedor elétrico, antes de ir para a cama. ‘Quanto ao tempestuoso vento conhecido por Noroeste’, diz um velho escritor – de cuja obra eu possuo a única cópia existente – ‘ele proporciona um maravilhoso contraste, quer tu olhes para ele através de uma janela onde toda a geada esteja do lado de fora, quer tu o observes no reflexo de uma janela calafetada, de modo que tu vejas o granizo simultaneamente dentro e fora, duplicado neste vidro cortado pela própria Morte’. Justo, disse, pensei, enquanto esse trecho me ocorria – bem colocado para umas velhas palavras batidas à máquina. Sim, estes olhos são janelas e esse corpo que me pertence é a casa. Pena que não vedaram minhas frestas e fendas, nem me apararam os fiapos aqui e ali. Mas agora é tarde demais para solicitar tais reparos. O universo está pronto; a bolinha foi lançada e a roleta girada bilhões de anos atrás. Pobre Lázaro, batendo os dentes contra seu travesseiro de paralelepípedo, chacoalhando os farrapos com seus tremores, ele poderia tapar suas orelhas com trapos, enfiar uma espiga de milho na boca e mesmo assim nada lhe pouparia do tempestuoso Noroeste. Xô, xô, Noroeste! Diz o velho Rico da parábola, em sua túnica de seda vermelha – (ele tinha uma ainda mais vermelha no armário). Mas que belíssima noite de geada; como brilham as Três Marias, no cinturão de Órion; que linda auréola lunar! Deixai-­‐o falando de seus climas tropicais de verões sem fim; deixe-­‐me apenas o privilégio de fazer o meu próprio Janeiro, com meus próprios carvões. Mas o que pensaria Lázaro? Poderia ele esquentar suas mãos azuladas erguendo-­‐
as em direção ao alto do céu? Preferiria Lázaro estar em Bora-­‐Bora do que aqui na Cracolândia? Não preferiria ele, muito mais, estar deitado alinhado à linha do Equador em Macapá? Sim, sim, meu bom Deus, ir até o inferno quente e úmido, a fim de se manter longe deste congelador? Agora, pensar que era o dever de Lázaro prostrar-­‐se na soleira diante da porta do velho Rico, isso é mais absurdo do que uma nevasca na Ilha de Marajó. Contudo, ele mesmo, o Rico, vive como um Marajá em um palácio de gelo feito de suspiros congelados -­‐ e enquanto presidente de uma moderada Sociedade Anônima e Limitada, opta por bebericar somente lágrimas mornas de órfãos carentes. Mas por ora basta de choradeira, nós estamos indo patrulhar as ruas, e ainda há muito por vir. Chutemos o granizo para longe de nossos pés endurecidos, e vejamos que tipo de lugar pode ser esse “A Jato Inn”. 9 3 ≠ O "A JATO INN" ≠ Do lado de dentro da empena-­‐cega do "A Jato Inn", você se vê numa ampla, porém baixa recepção, nada convidativa, uma entrada de lambris mofados, o cheiro e o aspecto lembrando um casco de embarcação condenado. Na parede oposta, aquela sem janelas da empena, havia uma espécie de obra de arte, em uma moldura vaga, completamente borrada de fuligem e tão desfigurada que somente insistindo em aproveitar as fracas iluminações disponíveis no saguão, caçando diligentemente os ângulos possíveis, tendo ainda passado diante daquilo um mínimo de cinquenta e oito vezes, somente após ter interrogado a maioria dos confusos hóspedes sobre o que lhes parecia a disforme decoração ali exposta, só então seria aceitável assumir que -­‐ talvez -­‐
você estivesse se aproximando de uma compreensão acerca daquele despropósito. Mas o que mais intrigava e confundia ali era uma longa, ágil, solene massa preta de alguma coisa no centro da obra pairando acima de três linhas azuis, afiadas, escurecidas, flutuando perpendicularmente por cima de uma nuvem multicolorida -­‐ uma forma natural, de um tipo reconhecível, mas que eu não saberia nomear. Uma pintura realmente pantanosa, saturada, espremida a ponto de irritar um homem distraído. Mas havia ali uma qualidade; uma indefinida, inalcançada e improvável sublimidade na coisa, que honestamente te fazia brecar diante dela, que te obrigava a se prometer uma investigação que esclarecesse os objetivos do autor material e intelectual do delito estético, ou da quadrilha que o cometera. De tempos em tempos uma brilhante, mas infelizmente enganosa ideia te atravessava. -­‐ É a pororoca numa ventania de lua cheia. -­‐ É um combate irracional da Santíssima Trindade. -­‐ É uma cidade amaldiçoada. -­‐ É um exagerado retrato do inverno social deste país. -­‐ É o despedaçar das milenares geleiras do eterno Devir. -­‐ Mas todas essas pernósticas definições finalmente se rendiam àquele agourento "algo" no meio. Uma vez percebido isso, todo o resto era moleza. Mas espere; notou uma vaga semelhança com um pintor, ou um pixador? Talvez ele mesmo, o "Di", o "diferente"? Na verdade, o desenho do artista entregava isso: uma teoria final minha, em parte baseada nas opiniões agregadas de diversos "moradores" com quem eu conversei sobre o assunto. A pintura representava uma perseguição debaixo de uma tempestade massiva; um arranha-­‐céu naufragado e atolado no gás colorido, somente suas três antenas ainda visíveis; e um transtornado pixador, usando sua vara de rolo de tinta para saltar no abismo, por cima das armações de aço, em um apavorante ato de trespassar-­‐se pelas agulhas dos para-­‐raios. Atrás do balcão, como sempre, um quadro de chaves numerado: um escaninho de madeira. Na parede oposta, um móvel porta-­‐sapato o imitava, o escaninho, em escala de três ou quatro para um; expunha uma perturbadora coleção que supostamente deveria garantir a correspondência entre cômodo alugado e proprietário do calçado; alguns ornamentados, mais que simples ferramentas desgastadas. Um deles, por exemplo, carregava uma boa dezena de pequenos adornos esculpidos em ossos; outro, um sapato de couro com pelos compridos como cabelos humanos. Notei um bota curva, de cano altíssimo, com o 10 solado curvado num ângulo de foice, denotando alta quilometragem em sua sujeira de grama recém pisada, por um homem de passadas largas. Você estremeceu quando contemplou este caminho, e imaginou que tipo de andarilho, assassino e incivil poderia ter marchado aquele artefato inteligente durante uma batalha. Misturados entre os destaques, tênis carcomidos enlameados e sandálias deformadas, imprestáveis. Alguns, paradoxalmente à vista, eram evidentemente itens de valor -­‐ ou seja, alguém estava encarregado de vigiá-­‐los. Esta outra peça deve ter sido ergonômica há cinquenta anos atrás -­‐ talvez até, ortopédica, talvez usada em uma memorável ida à pé para a cidade ao lado. Mas aqueles coturnos altos -­‐ o "corpete", como o apelidei, por seu tantos ilhós e longo cadarço -­‐ andaram muito mato antes de chegar aqui em São Paulo, foram a campo com um soldado, Amazônia, possivelmente, se a manufatura não fosse tão... estrangeira. Vários reforços de metal cravavam os dentes na borracha, costurados para suportar os quarenta quilômetros de uma Maratona, mordendo duro para garantir que a mensagem fosse entregue. Cruzando esta desafiadora entrada, seguindo adiante sob os arcos baixos do corredor principal -­‐ um fechamento na abertura de uma longa varanda a quem um dia prometeram um jardim, jamais entregue -­‐ e então você chega no salão do hotel. Um lugar menos ainda iluminado, com vigas tão pesadas ao seu alcance, e tábuas tão estragadas abaixo de você, que você até gostaria de estar pisando em outras paragens, especialmente em uma noite tão uivante, na noite em que este cortiço ancorado nesta esquina chacoalhava tão furiosamente. A um lado, um aparador de madeira maciça estava tomado por garrafas escalpeladas, abrigando em seus ocos empoeirados suvenires trazidos de lugares desimportantes. Sobressaindo do último canto do salão à esquerda, um retiro sombrio -­‐ o bar -­‐ uma tentativa rude de simular um terraço de último andar, com vista privilegiada para o mar de edifícios da apocalíptica megalópole. Fosse como fosse, ali se podia ver também o rastro de pixos nos beirais dos prédios fictícios, escritos tão pequenos nesta parede que um míope os teria limpado com um lenço, querendo colaborar com a cena. Empilhadas nas falsas platibandas da cidade cenográfica estavam as garrafas de vodca, os mini barris de pinga, as latas de cerveja; e neste comércio da acelerada degradação alcoólica, comandava um outro Jonas (este homônimo vivendo na barriga de outra espécie de Leviatã -­‐ o bar), navegando em busca dos trocados de um futuro soldado, que paga antecipado por uma pequena morte e alguns delírios. Abomináveis os trôpegos nos quais ele derrama seu veneno. Ainda que cilindros comuns por fora, por dentro, o espesso vidro verde escuro dos copos escondia um truque ótico, maroto, que fazia com que a dose marcada por linhas paralelas no exterior dosassem uma quantidade menor do líquido. Encha o copo até aqui e pague é só um real; até AQUI um real a mais; e assim esvaziando e enchendo o fundo falso, você poderia mandar dez mangos goela abaixo e de quebra sentir-­‐se mais resistente à cachaça. Entrando no recinto encontrei um bom número de soldados reunidos em uma mesa, avaliando sob uma luz precária uma boa variedade de prontuários, 11 relativos às diversas instâncias das ocorrências. Procurei o proprietário, expus minha intenção de obter um quarto, ao que ele me responde que a casa estava lotada -­‐ nenhuma cama desocupada. ‘Ôu’, ele disse, batendo na testa, ‘o senhor não veria problema em dividir o lençol com um atirador da elite, veria? Supondo que o senhor esteja indo se alistar na PM, então nada como praticar com os bons’. Meu caro eu nunca gostei de dormir a dois numa cama; em caso de eu ter que fazê-­‐lo, isso dependeria de quem seria este atirador de elite, e de se por acaso talvez a gerência não tivesse nenhum outro lugar para mim, e de não ser o atirador uma pessoa abominável, porquê comparado a seguir por estas ruas nesta noite amarga, eu suportaria facilmente meio cobertor de um sujeito decente. -­‐ Era o que eu pensava. Está fechado, sente-­‐se. Janta? -­‐ quer janta? O caçulé está saindo. Sentei-­‐me em um longo banco de madeira que parecia adquirido de uma igreja abandonada. Na outra ponta, um rapaz estava concentrado em procurar, ou esconder, algo nos cantos da madeira, mas sem progresso aparente. Uns cinco entre nós fomos chamados ao depósito da cozinha; estava um frio de papai noel -­‐ ninguém sentou-­‐se à beira do fogão para a ceia -­‐ o proprietário tendo nos alertado de que não tinha dinheiro para uma cobertura neste beco final do "A Jato Inn". Cada um que levante seu zíper e caia de boca na sopa, aproveitando para queimar os dedos no caneco. A entrega foi melhor que a encomenda: além do feijão branco e da couve, linguiça; Deus no céu! Linguiça, na janta. Um rapazinho à minha esquerda ameaçou chorar de comoção quando meteu o embutido na boca, que eu vi. "Rapaz, você vai sonhar com os anjos essa noite", disse o proprietário, "com toda a certeza". Eu perguntei, "Meu senhor, o elite é ele"? "Não, o atirador é negro. E não come porco. Muçulmano ou judeu? Mas outras carnes ele aprova. E gosta da carne fresca, recém sangrada, se é que você me entende. -­‐ "Do diabo que ele gosta", digo eu. "Cadê o elite? Está aqui?" -­‐ "Ele vai chegar, pode crer". Não pense mal de mim, mas comecei a pensar mal desse oficial negro. Haja o que houver, fiz minha cabeça: se teríamos que dividir a cama, ele que pusesse o pijama primeiro -­‐ detestaria esperá-­‐lo deitado. Findo o banquete, a turma dos satisfeitos voltou ao salão do bar, quando eu, sem saber o que fazer de mim mesmo, optei por passar o resto da noite somente observando o movimento. De repente um barulho de arruaça lá fora. Imediatamente, o proprietário explica, 'É o 59° da Rota. Passaram aqui ontem de manhã. Tão faz três dias nessa, batalhão completo. Atenção! Quem não correu ainda é porque quer escutar história hoje, diretamente das quebradas'. O trote das botas militares chegou 12 antes do que as figuras; a porta foi posta de lado para dar passagem a um pacote selvagem de soldados, mais do que o suficiente. Encapotados em seus sobretudos impermeáveis, com as veias das têmporas apertadas pelas boinas, os rostos enervados e tensos, a pele ensopada, esticada pelo frio; uma matilha de lobos do mar. Acabaram de sair de seus enormes carros e esta foi a primeira propriedade pacífica em que entraram desde que começaram o serviço. Não estranha que tenham caminhado em linha reta para o terraço -­‐ o bar sem janelas -­‐ onde o mordomo Jonas, a postos em seu cargo, prontamente encheu os copos da rodada, sem esquecer-­‐se de um. Um deles queixou-­‐se de uma gripe apertando sua cabeça, ao que Jonas reagiu com uma poção branca, feito de licor de araque, cravo, canela, limão, rapadura picada e noz moscada, que ele jurou que era a cura de qualquer espécie de catarro, por pior que estivesse, independente de quanta chuva, ventania, granizo ou qualquer outra tempestade de verão que se tenha enfrentado em São Paulo. A bebida rapidamente subiu à cabeça, como geralmente é de se esperar em homens saturados de adrenalina, sentindo a coisa baixar, não querendo que baixe: estavam a ponto de dar cambalhotas. Observei, no entanto, que um deles mantinha-­‐se algo reservado, ainda que deixando claro sua intenção de não cortar o barato de seus companheiros com uma expressão sóbria, ainda que se notasse que continha mais seu ruído do que os demais. Este homem me interessou de imediato; agora, hoje, ciente de que os deuses paulistanos ordenariam que em breve participássemos da mesma missão (ainda que valha a pena que eu adiante: pouco fizemos juntos), eu vou aqui arriscar uma pequena descrição dele. Era baixo, um metro e setenta, ombros que lhe conferiam um porte seguro, o tronco estufado, uma saca de café. Eu raramente havia visto tanta fibra num homem. Seu rosto era marrom e queimado, contrastando com seus dentes brilhantes. Já em suas olheiras vi lembranças das quais ele parecia não extrair muita alegria. Seu sotaque denunciava, carioca, e por sua boa constituição, deveria ter servido na Serra da Mantiqueira, no quartel dos montanhistas, próximo ao Pico das Agulhas Negras. Quando a turba chegou ao ápice, este homem saiu à francesa, e eu não mais o vi até o dia em que se tornou meu camarada na Operação Caça-­‐Lata. Em poucos minutos, entretanto, tendo feito falta entre seus companheiros de barca, sendo ele pelo jeito um tremendo de um favorito entre os PM´s, eles levantaram um coro, "Bezerra! Bezerra! Cadê o Bezerra?´ e mandaram um pra fora da casa na procura do sujeito. Eram agora três e meia da manhã, e o salão sobrenaturalmente quieto após aquele pancadão, comecei a me consolar com um pequeno plano, que me ocorrera pouco antes da entrada do batalhão das Rondas Ostensivas. Nenhum homem prefere dormir em dupla numa cama. Pense, pode levar décadas para se aprender a dormir a dois com seu próprio irmão. Que sei eu, mas privacidade ao dormir, bem, as pessoas gostam disso. E quando se trata de dormir com um estranho desconhecido, num albergue estranho, numa cidade estranha, sendo o estranho um atirador de elite, aí suas objeções se multiplicam exponencialmente. Nem havia, parafraseando, qualquer razão terrena que justificasse que eu e outro soldado usássemos os dois o mesmo cinto de segurança numa viatura. Aliás, nem menos nem mais razão para quase ninguém 13 neste mundo, exceção feita aos reis empossados, que dividem menos seus bancos com o povo do que a maioria dos soldados -­‐ que por sua vez, pouco diferem de todo o resto. Por pior que se durma em um alojamento da prefeitura, todos num único local aberto, em ruidosos beliches, você tem sua própria esteira; se cobre com sua própria manta e encosta-­‐se em sua própria pele. Quanto mais eu remoía a expectativa em relação a este atirador, mais abominava a ideia de dormir ao lado dele. Por ser um soldado, seu algodão não deve estar lá essas coisas, seu lençol então, certamente entre os menos perfumados. Comecei a me coçar inteiro. Afinal, já havia passado da hora do meu idealizado atirador de elite ter retornado ao lar e afofado seu gentil travesseiro de macela e camomila. E se ele chegar e me encontrar, desavisado, dormindo em sua cama, vindo de sei lá qual buraco deste inferno? Que será, Ismail? Proprietário! Mudei de ideia sobre dormir com o atirador de elite. -­‐ Eu não seria capaz de dormir com ele. Fico com este banco de igreja. Como quiser, mas eu não tenho nem uma toalha de mesa para te emprestar e esta tábua seca está cheia de farpas e calombos; fique aí, que eu tenho uma plaina de marceneiro aqui no bar, vou dar um trato para você, olhe. Tendo dito isso, foi mesmo pegar uma plaina; ajoelhou-­‐se para limpar a madeira com um pano imundo, preparando o terreno para fazer a plaina gritar, àquela hora da madrugada do Domingo. Ele o fazia com uma dedicação tão grande que só poderia ser irônica (“ah, você quer isso então em vez da cama, ok, prefiro fazer o que você me pede”). As lascas voavam à torto e à direito, vez em quando interrompidas por pancadas do metal em nódulos resistentes. O proprietário estava a ponto de deslocar seu punho de tanta força que batia com a pesada ferramenta, até que eu lhe implorei pelo amor de deus que parasse, o leito estava macio o suficiente para minha necessidade e que eu sabia que lâmina nenhuma faria dessa prancha uma tábua de pinheiro tratado. Ele recolheu as rebarbas com uma pá e as dispensou na lixeira grande do salão, seguiu para cuidar dos próximos problemas, deixando-­‐me só, constrangido com meus botões. Só então eu meço o banco: um palmo a menos de largura, e o outro igual a ele é uns dez centímetros mais alto, então não poderei juntá-­‐los; então virei o banco para a parede, deixando um vão onde minhas costas pudessem caber. Mas não tive tempo sequer de me ajeitar, pois percebi que um vitral empenado acima da janela era a principal ventilação de todo o ambiente, soprando um vento gelado exatamente em cima de mim, que ainda por cima cruzava com a corrente de ar que vinha do saguão para a cozinha; juntos estes zéfiros peraltas realizavam a proeza de formar pequenos redemoinhos congelantes no exato santuário onde eu havia decidido passar a minha noite. O demônio está mancomunado com este atirador de elite, disse, pensei, mas calma lá -­‐ eu poderia dar uma rasteira no tinhoso -­‐ tranco a porta por dentro e pulo na sua cama para não ser acordado sequer pelo pior esmurro que já se teve notícia. Não parecia má ideia; então eu a descartei. Que manhã seguinte teríamos, eu abrindo a porta e ele ali, me esperando em sua paciência de franco-­‐atirador. Porém, contemplando minha precária situação e constatando que a única saída para esta noite torturante seria a cama de alguém, comecei a ponderar se não havia cativado muitos preconceitos contra o atirador desconhecido. Proprietário! Disse em voz alta, ‘que tipo de chapa é este -­‐ ele é desse turno, o noturno’? Já eram quase 14 quatro e meia da manhã. O dono pareceu entreter-­‐se com minha pergunta; agora sarcástico, ele grunhiu alguma coisa além do compreensível. 'Não', respondeu, 'normalmente ele é um Jeca, acorda com as galinhas, dorme no lusco-­‐fusco' -­‐ sim, ele é daqueles tipos que deus ajuda. Mas hoje ele saiu de ambulante, sabe, e não sei se foram os raios que o partiram, ou se ele não conseguiu vender sua cabeça. 'Não conseguiu vender sua cabeça? -­‐ que filme do Zé do caixão você vai me contar?’, fui ficando irado. ‘Está insinuando que este atirador está na pista oferecendo sua “cabecinha” a quem interessar possa, nessa madrugada de sábado, ou começo de domingo’? O proprietário riu da minha cara. Precisamente! -­‐ e eu tive a pachorra de preveni-­‐lo que o mercado aqui está saturado. De michês, perguntei com a voz esganiçada. Estou falando de cabeças mesmo, gritou o proprietário, por acaso está faltando cabeça nesse mundo? 'Eu te digo uma coisa, meu senhor, pode parar de tirar onda com a minha cara que eu não sou verde não. ‘Talvez não seja mesmo’, disse ele, pegando uma lasca de banco do chão e usando para limpar os dentes, ‘mas eu aposto que você ficaria azul se aquele atirador te pegasse fazendo piada de putaria com as cabeças dele’. Quebro-­‐lhe o pescoço!, disse, já alucinando de ódio da ironia do proprietário. ‘Já está quebrado!’, diz ele. 'Quebrado', digo eu, ‘quebrado, é isso mesmo’? 'Certamente, e esta é muito provavelmente a razão dele não conseguir vendê-­‐la hoje, eu acho’. ‘Pedro Esquife’, eu disse agora ficando frio como um pinguim no rótulo de cerveja, ‘meu senhor, pare de me zoar. Você e eu temos que nos entender e é para já. Eu chego à sua pousada e quero uma cama; você me oferece meia, porque a outra metade pertence a certo atirador de elite. E sobre o elite, que eu ainda não sei quem é, você só me traz as mais cabulosas histórias para me deixar paranoico justamente com quem você pretende que eu durma, me estressando justo no momento em que o animal aqui precisa de um isolamento para se recuperar. Exijo -­‐ agora você me fale francamente sobre quem ou o quê é este atirador, e se em todos os sentidos, se é que me entende, eu estarei seguro dormindo com ele esta noite. E pra começo de conversa, o senhor tenha a gentileza de desdizer aquela história das cabeças, caso contrário isso seria evidência de que este atirador é um maníaco, com que não tenho a menor intenção de me deitar; e você, senhor, VOCÊ MESMO, por ter conscientemente me induzido a fazer isso, o senhor poderia estar sujeito a processo criminal’. ‘Eita’, disse o proprietário, pegando um fôlego antes de bufar, ‘esse foi um sermão caprichado demais pra um aspirante a soldado. Mas acalme-­‐se, fique tranquilo, esse atirador de quem eu falo acabou de voltar dos rios da Amazônia, da Venezuela, onde ele comprou algumas cabeças encolhidas de índios (relíquias, você sabe), ele as passou adiante, todas menos esta, que é justamente a que ele saiu para vender, porque sendo amanhã Domingo, e não ia dar certo ele estar por aí vendendo cabeças para os crentes a caminho dos cultos. Era o que ele ia fazer Domingo passado, mas eu o segurei na beira da porta, quando ele já saía, quatro cabecinhas amarradas numa corda, igual uma réstia de alho’. Esse depoimento resolveu o até então inexplicável mistério, e demonstrou que no fim das contas o proprietário não estava tentando armar uma para mim, -­‐ mas ao mesmo tempo o que pensar de um sujeito que sai numa tempestade de sábado, engajado numa missão algo canibal de vender cabeças de múmias de outras civilizações? ‘Deduzo a partir disso, proprietário, que esse atirador de elite é sinistro’. 15 ‘Ele paga em dia’, retrucou. ‘Mas venha, está que passou da hora, você a esta altura deveria estar serrando lenha; é uma excelente cama! Eu mesmo dormia nela com a Salete, antes dela me dar o pé. Tem espaço para dois se chutarem nessa cama; é o maior colchão que você já viu. Antes da minha separação, a Salete punha Samuel e João com a gente; mas deu de um dia eu ter um pesadelo e uma agitação que mandei o Samuca para o chão, ele quase me quebra o braço. Depois dessa a Salete acabou com essa coisa dos meninos virem de noite. Pode me acompanhar, tô te dando uma força para você sair dessa’; e dizendo isso, acendeu uma lanterna e ficou apontando para mim, me convidando a entrar para o quarto. Fiquei imóvel, decidido; ele olha para o relógio no canto, ‘valha-­‐me que é Domingo, você não vê mais o atirador esta noite -­‐ caiu para dentro de algum esquema, se armou, jogou âncora em alguma mina, então venha logo; VENHA; NÃO VEM’? Hesitei por um instante, mas pelo corredor nós fomos, até que fui apresentado a um pequeno cômodo, frio demais, ainda que provido de uma cama de fato excepcional, onde eu diria que quatro soldados fardados dormiriam folgadamente. Aí está, disse o proprietário, deixando a lanterna em cima de um velho e exótico baú, que fazia as vezes de cabideiro e mesa de centro; ‘pronto, fique à vontade e boa noite pro senhor’. Hipnotizado pela a cama, quando virei o pescoço ele já tinha desaparecido. Dobrando para trás a coberta, me debrucei para checar os detalhes. Ainda que não fosse das mais elegantes, tolerou razoavelmente bem meu escrutínio em busca de manchas indesejáveis. Só então reparei pra valer no quarto; fora o estrado, colchão e baú, praticamente mais nada pertencia ao lugar, uma prateleira rude em uma das quatro paredes e uma impressão de xilogravura retratando uma perseguição policial em estilo de cordel. Das coisas que não pertenciam ao quarto, havia uma rede de dormir dobrada e amarrada em si mesma; também um saco de viagem como o meu, contendo os pertences do atirador de elite, sem dúvida o equivalente a um armário de madeira em uma casa normal. Do mesmo modo, no beiral da pequena veneziana, havia um imponente machete com cabo de marfim e uma bota de cano alto ao lado da cabeceira da cama. Mas o que é isso sobre o baú? Decidi pegá-­‐lo e trazê-­‐lo para perto da lanterna; apalpei, cheirei e tentei de toda maneira chegar a uma conclusão satisfatória sobre o que seria aquilo. O objeto mais parecido que me ocorria era um enorme capacho de porta, ornado nas pontas com cantoneiras repletas de saliências emborrachadas, mais ou menos como aqueles solados de mocassim tipo índio americano que estiveram na moda um dia. Tinha um buraco ou gola no meio dessa espécie de manta, como os que se fazem nos ponchos de lã andinos. Mas seria possível que o sóbrio atirador de elite se enfiaria num parangolé desses para desfilar nesta cidade louca porém repressora, ou em qualquer outro município deste estado tão tacanho? Eu o vesti para experimentar, e aquilo pesava como um fardo, com seu felpo grosso e incomum -­‐ algo encharcado, pensei, considerando que o atirador deveria está-­‐lo usando nestes dias chuvosos. Fui até um caco de espelho incrustado na parede: nunca na minha vida eu havia me visto em semelhante visão. Arranquei-­‐me para fora daquilo com tanta pressa que quase me acabo num torcicolo de pescoço. 16 Sentei-­‐me do meu lado da cama, oposto às botas dele, e comecei a pensar sobre o atirador traficante de cabeças em seu capacho ambulante. Depois de meditar algum tempo no beiral da cama, levantei-­‐me e tirei meu casaco, para, em seguida, postar-­‐me em pé no meio do quarto, processando o dia. Então tirei minha japona, e pensei um pouco mais, só de camiseta de mangas. Mas começando a sentir o frio bater, meio despido como eu estava, lembrando que o proprietário havia dito sobre a alta chance do atirador não voltar para casa esta noite, sendo agora ainda muito mais tarde, não fiz muito mais barulho por nada: pulei pra fora das minhas calças e botas, desligando a luz e afundando na cama, e promovi-­‐me à vigilância voluntária do Paraíso. Se aquele colchão estava recheado de dobrões de prata ou de entulho, não valia a pena examinar; pois eu seguiria igualmente rolando de cá pra lá sem conseguir dormir por um bom tempo. Demorou, mas um fio sem meada começou a levar-­‐me embora para Passárgada; foi quando ouvi um trote acuando no corredor e vi a luz por debaixo da porta formar feixes que se moviam em direção à cama. Deus me ajude, disse, pensei, chegou o assassino vendedor de cabeças encolhidas. Mas deitado fiquei; decidi não mover-­‐me e, portanto, a ordem era de manter a boca fechada. Segurando um isqueiro em uma mão e a cabeça Jívara na outra, o estranho entrou no quarto sem olhar para a cama. Deixou o isqueiro aceso num ponto longe de onde eu estava, num canto; começou a afrouxar as cordas da grande mala sobre a qual eu havia comentado antes. Minha curiosidade era toda focada no rosto dele, mas nada dele se virar enquanto abria a boca do saco. Isso feito, no entanto, ele virou – então, meu pai! Que visão! Que cara! Era de uma cor tão escura que só reluzia o amarelo do fogo, os roxos, aqui e ali formando sombras retas, que eu não entendia. Sim, como previsto, um terrível companheiro de cama; esse já se cortou feio na vida, esse já gastou linha de sutura em cirurgia. Mas no momento que ele realmente virou o rosto para a luz da chama, foi que me dei conta de que aquilo não era acidente algum, pois cicatrizes não formam quadrados, nem hexágonos, nem linhas pontilhadas. Ah, aquilo havia sido feito por uma arte humana. O que eu poderia compreender daquilo? E logo uma pincelada de verdade me ocorreu: lembrei de uma história de um soldado que tendo caído nas mãos de inimigos maléficos, teve sua cara “trabalhada na navalha”. Concluí que se não era um acidente, também não era um projeto, era apenas uma maldita aventura que engoliu o soldado. E daí, e daí, disse, pensei, o que importa? É só seu lado de fora; um homem pode ser honesto em qualquer tipo de pele. Mas o que dizer ainda de seu desenhado perfil, dos traços da sombra que independiam de qualquer textura? Com certeza poderia ser apenas a ausência de luz, mas eu nunca soube que rugas desaparecessem sob a luz frouxa de um isqueiro. Ainda que eu tenha ido muito para a Bahia, Salvador, meu conhecimento não foi suficiente para identificar a origem dessa silhueta extraordinária. Agora, enquanto todas essas ideias me atravessavam como relâmpagos 17 cruzados, por elite que fosse o atirador, ele não se deu conta de que havia um homem em seu quarto. Ou sim, porque depois de alguma dificuldade com a mochila, ele começou a revolvê-­‐la e logo sacou um tipo de faca de pesca, além de uma carteira de couro que fazia par com aquela bota de pelos compridos, grotescos. Colocando ambos no velho baú no meio do quarto, ele enfim, pegou a cabeça encolhida – um artefato desconcertante – e o empurrou fundo dentro do saco. Dali ele sacou seu gorro – desses que se compra em qualquer lugar – quando eu volto a me arrepiar, antes que pudesse me conter. Ele não tinha um só pelo na cabeça – completamente raspada – nada a não ser um único e comprido drede, saindo do cocuruto e enrolado como uma coroa, emoldurando sua testa. Sua cabeça careca e amarelada podia servir em qualquer curso de anatomia do mundo como ícone de um crânio. Se ele não estivesse entre mim e a porta, eu já teria partido num corisco mais rápido do que Einstein poderia ter previsto. Já que isso era impossível, considerei espremer-­‐me pela veneziana do segundo andar, mas ela era estreita demais. Não sou um covarde, mas como proceder diante de um camelô de cabeças rodado na matança, essa decisão exigia de mim algo que estava além do compreensível. Ignorância é prima do medo e estando eu completamente preocupado e ansioso com o estranho, confesso que eu tive tanto medo dele quanto teria ao ver Jesus entrar porta adentro gritando de pavor, debaixo desta chuva torrencial. Na real, eu estava tão paralisado que não tinha iniciativa sequer para assobiar pra ele reparar em mim antes que fosse tarde, quanto menos demandar alguma resposta satisfatória sobre tudo que parecia inexplicável em seu ser. Enquanto isso, ele continuou sua ocupação de se despir, revelando suas costas e seus braços. Juro pela minha morte, estas partes descobertas estavam traçadas com as mesmas diagonais de seu rosto; seu tronco, também, cheio de queloides quadrados; parecia que ele tinha saído vivo de um tribunal da inquisição, escapando através de sabe-­‐se lá qual providência. Mais ainda, abaixo, adiante, suas pernas estavam marcadas com, será, seriam, cipós e suas folhas em forma de sapos se enrolando numa palmeira ainda baixa? Estava bem claro agora que este incivil tinha vindo parar aqui a bordo de algo, provavelmente cruzando o Atlântico Sul, até se refugiar nesta terra predominantemente cristã. Tremi diante do desconhecido. Um mercador bruxo, entregador de cabeças, quem sabe se também as de seus irmãos foram vendidas. Ele poderia curtir o meu couro – céus! Olhe aquele machete! Mas não havia chance para a lamúria, porque o infiel deu de fazer algo fascinante, algo que subjugou minha atenção, convencendo-­‐me de que ali a coisa era quente, seguramente. Esticou-­‐se para alcançar seu capote, ou sobretudo, ou impermeável, que ele havia pendurado no chão. Remexeu os bolsos e lentamente expôs uma pequena e deformada peça com uma corcunda nas costas, pintadas com as exatas cores observadas em um bebê de três dias, nascido em qualquer lugar do mundo. Lembrei-­‐me da cabeça embalsamada e cheguei a cogitar, precipitadamente, que se tratasse de um bebê preservado nas mesmas técnicas. Mas vendo que aquilo não era orgânico, e que brilhava bem como mogno polido, conclui que era apenas uma escultura de madeira, conforme pude constatar mais tarde. Mas agora a besta vai até a parede, retira a xilogravura do prego e deita-­‐a ao contrário; no compensado onde o papel estava colado à frente, do lado de trás 18 ele desfaz um cigarro, forma um formigueiro de tabaco, no meio do pôster. Afunda a ponta da pirâmide de folhas com o dedo, formando um duto de ventilação para o fogo queimar melhor -­‐ não, é para receber o totem de madeira. Eu apertei meus olhos em direção da imagem meio escondida, no entrementes, premeditando o breque mal brecado – o que virá, o que? Primeiro, ele saca duas mãos de lascas do banco da igreja e circunda a escultura; depois distribui pipocas de arroz em cima e as acende com o isqueiro de marinheiro, esfarelando em fumaça um pó de madeira que há menos de duas horas atrás não apostaria sua alma de banco de igreja em um final tão elevado para si. Presentemente, depois de muitas debulhadas no fogo e ainda mais dramáticas tiradas de dedos (onde ele polvilhava a madeira, parecia fazê-­‐lo com afinco), ele finalmente terminou de preparar a oferenda; a seguir soprou um pouco as chama e as cinzas e fez uma elegante dedicatória ao pequeno tronco esculpido. Mas a entidade não se aboletava por aqueles secos impostos, de modo algum; jamais moveu seus lábios. Todos estes curiosos gestos foram acompanhados de sons guturais ainda mais inesperados do devoto, que estava acredito rezando um cântico ou cantada, como definir a adesão à tais e tais vertentes da música sacra de países em que nunca estive, enquanto durante todo este tempo seu rosto se contorcia conforme o intento, da maneira menos natural, ainda que viva, ou seja, inteligente. Por fim extinguindo o fogo, ele pegou o totem sem cerimônia alguma, e enfiou-­‐o em seus bolsos de modo mais displicente que meu enferrujado estilo permitiria descrever. Todos estes trâmites sem referência aumentaram meu desconforto, e vendo-­‐o exibindo fortes sintomas de conclusão de seus procedimentos operacionais, prestes a mover-­‐se em direção à cama onde estou, pensei, não disse, tarde demais, agora ou nunca, antes que a luz se apague, quebre o feitiço que calou minha boca. Mas o intervalo que gastei deliberando o discurso foi fatal. Agora ele pega a faca de pesca da dita mesa, examina a lâmina por um instante, leva ela até a luz, morde o cabo e começa a fumar e fumar uma bituca, de lado. Pronto, apagou-­‐se a luz, este imoral desconhecido, faca no dente, entra em minha cama. Eu soltei um urro miserável, não me contive no ato; e dado um átimo de segundo antes da surpresa, ele me pegou. Invocando sabe-­‐se lá quais desusados instintos, girei e me contorci, pulei na parede e supliquei, sem orgulho -­‐fique calmo e deixe-­‐me acender a luz. Mas sua resposta imponente enfatizou de imediato o abismo entre o que se diz e o que se entende – Que dimente é você? – ele ainda completa – não diz, maldito, eu matocê. Dizia aquilo e a faca dentada se aproximava e eu podia vê-­‐la agora em detalhes. ‘Dono, pelo amor de Deus, Pedro Esquife!’ gritei. ‘Proprietário! Venha! Esquife! Anjos socorro!’ ‘Falaê! Digaê que é que foi, o dane-­‐se, te mato!’, grunhia ainda o guerreiro, enquanto horríveis cinzas pegas na faca de pesca pingaram em mim a ponto de eu ter visto minha camisa queimando. Mas Minha Nossa, na hora H entra o proprietário, gerente, lanterna na mão -­‐ num pulo olímpico eu estou a seu lado na porta. ‘Pare de ter medo agora’, comandou, e disse, ‘Kwee Kweg não vai tocar um fio de cabelo seu’, ‘Chega disso’, gritei, ‘porque não me disse que esse atirador dos infernos era um E.T’, ‘Pensei que sua Terra não fosse tão pequena; -­‐ não te disse que ele estava passando cabeças nas ruas? – se feche mala, e vá dormir. Kwee Kweg, olha aqui, você me ganha, eu te ganho, cê sabe – 19 esse home dorme com você – me ganhou?’ ‘Te ganhei em cheio´ – resmungou Kwee Kweg, dando o último pega no cigarro e sentando-­‐se na cama. ‘Você, cai dentro’, ele acrescentou, gesticulando com sua faca, jogando as minhas roupas para meu lado. Ele não somente fez isso da maneira mais civil mas ainda de uma forma piedosa. Fitei-­‐o por um momento. Escaras à vista ou não, no todo ele era um animal limpo e chamativo. Que arruaça eu vim fazendo, pensei, disse-­‐me a mim mesmo – o homem é um ser humano tanto quanto eu sou: ele tem tanta razão para ter medo de mim quanto eu tenho de temê-­‐lo. Antes dormir com um canibal sóbrio do que com um católico bêbado. ‘Pedro, dono, eu disse, ‘diga para ele guardar o maço de cigarros, ou a paranga, como queiram; mas peça para ele parar de fumar, só isso, e eu fecho com ele. Só não queria um homem fumando na cama comigo. É perigoso. Ei, eu não tenho seguro’. Isso estando dito a Kwee Kweg, ele nos certificou e muito educadamente me sugeriu que entrasse na cama – virando ele mesmo para seu lado, como se explicando – não vou encostar uma unha em você ‘Boa noite, Pedro’, falei, ‘pode ir’. Virei, desvirei, e nunca dormi tão bem na vida. 20 4 ≠ A COLCHA DE RETALHOS ≠ Despertei à duras penas no dia seguinte, com o sol a pino, ainda que oculto pelas nuvens; recomposta a consciência, descubro o braço de Kwee Kweg jogado sobre mim da maneira mais amável, afetuosa e comprometedora. Você me tomaria por sua noiva, tivesse nos visto em tal posição. Nossa surrada colcha artesanal era feita com retalhos de tecidos, com alguns fuxicos costurados sobre alguns dos quadrados e triângulos estampados; já o braço dele era completamente escarificado, formando um interminável labirinto Cretino, palmo a palmo bronzeado em uma tonalidade diferente – devido, pensei, supus, à exposição inconstante do braço na janela da viatura, levando sol e sombra nas mangas arregaçadas cada vez a uma altura diferente – este mesmo braço dele, afirmo, qualquer cidadão do mundo diria que havia sido esculpido para fazer conjunto com a manta retalhada. Repare: meio deitado sobre ela logo que acordei, mal pude diferenciar braço de colcha, tamanha a coincidência dos tons sobrepostos; foi somente pela noção de peso e pressão que pude constatar que era Kwee Kweg me abraçando. Meus sentimentos foram contraditórios. Deixe-­‐me tentar explicar o porquê do estranhamento. Quando eu era criança, lembro-­‐me bem de ter vivido uma circunstância similar; se era realidade ou um sonho, essa minha particular acareação jamais chegou a conclusão alguma. O contexto era esse: estava fazendo uma ou outra estripulia – acho que tentando trepar na chaminé do fogão à lenha, imitando alguém que eu tinha visto limpando a tubulação; minha madrasta, que de um jeito ou de outro estava sempre me surrando ou me mandando pro quarto sem janta,-­‐ mãezinha me arrasta de cima do fogão pelas pernas e me aboleta na cama, ainda que fossem só duas da tarde de 21 de Dezembro, ou seja, do dia mais longo do ano no Brasil. Eu me senti um lixo. Mas não tinha remédio, então pelo quintal eu fui para meu pequeno quarto nos fundos, coloquei o pijama o mais lentamente possível, como que matando o tempo, e com um desconsolado suspiro me enfiei nos lençóis. Fico eu lá, abatidíssimo, calculando que se passariam dezesseis horas inteiras antes de eu poder almejar uma néscia ressurreição. Dezesseis horas deitado! Minhas pequenas costas doeram ao prever o baque. E o dia ainda tão claro; o sol brilhando na janela e um ronco de motoristas nas ruas, o som das vozes alegres que vinham de todos os lugares da casa. Meus sentimentos pioravam e pioravam -­‐ até que eu levantei, troquei de roupa outra vez e progredi mansamente nas minhas melhores passadas; busquei minha madrasta e logo que a vi me joguei em seus pés, suplicando por um favor, só esse, que me punisse sim por minha conduta; mas não desse modo, condenando-­‐me à eternidade da imobilidade, neste dia especial. Mas ela era a melhor e mais consciente das madrastas, portanto, de volta ao quarto fui. Por seguidas horas fiquei lá completamente desperto, sentindo-­‐me mal como nunca, jamais tão mal, podre, mais desgraçado do que cheguei a sentir-­‐me em outras graves sinucas morais de minha vida. Em alguma hora devo ter caído num pesadelo que foi dose pra leão; e lentamente vazando pra fora dele -­‐ ainda ancorado nos sonhos -­‐ abri meus olhos e o quarto anteriormente iluminado estava agora embrulhado na escuridão. Instantaneamente um choque percorreu minhas clavículas; não havia nada para se ver, nada para se ouvir; mas uma mão sobrenatural parecia estar posta sobre a minha. Meu braço estava para fora da 21 coberta, e a silenciosa forma ou aparição, inominável, impensável, a quem pertencia a mão, aparentemente estava sentada ao pé da minha cama. Durante o que pareceram eras geológicas, eu deitei ali, paralisado pelo mais perturbante dos medos, sem ousar retirar minha mão; preocupado ainda com a hipótese de, ao me mexer, quebrar de vez o horrendo encanto. Não soube como esta epifania finalmente deslizou para longe de mim; mas acordando de manhã, eu me lembrei de tudo -­‐ em fragmentos picotados, e por isso passei os dias e semanas e meses seguintes na sala escura de edição, tentando finalizar uma versão conclusiva acerca do mistério. Mesmo neste exato instante, eu frequentemente embaralho este caso. Agora, remova do causo o medo medonho: minhas sensações ao sentir a mão sobrenatural sobre a minha foram idênticas, em seu estranhamento, às que vivenciei ao acordar e ver o braço pagão de Kwee Kweg debruçado em mim. Mas mesmo à tamanha distância percorrida, os eventos desta noite passada recobram-­‐se sobriamente, um por um, na rígida realidade, para que eu os disponha à vida -­‐ incumbidos de entregar a comédia nossa de cada dia. Ao tentar mover seu braço -­‐ desloque esta lança articulada de guindaste -­‐ mesmo assim, dormindo como ele estava, ainda me abraçava forte como se nada a não ser morte pudesse nos separar. Agora me empenho em removê-­‐lo: 'Kwee Kweg!'-­‐ mas sua melhor resposta foi um ronco. Eu me virei, meu pescoço sentindo como se estivesse preso num estribo de cavalo; e de repente sinto um arranhão. Joguei de lado a colcha de retalhos, lá estava o facão serrilhado dormindo ao lado do maluco, um bebezinho de cara comprida no quentinho de mamãe. Que parada, fale sério, pensei; aboletado numa cama alheia ao meio-­‐dia, com um mercenário e sua imensa faca de pesca! ‘Kwee Kweg, de boa, te peço, Kwee Kweg, acorda!' Passadas as águas, cansado de encaná-­‐las demais e das incessantes arengas imaginadas, julgando a impropriedade do abraço de um colega macho em um estilo assim tão matrimonial, obtive o modesto sucesso de extrair de acolá um grunhido; em seguida ele puxou para trás o braço e chacoalhou-­‐se como um cão Labrador que conseguiu sair da chuva; sentou-­‐se na cama ereto como um arpão, me olhando, coçando as pálpebras como se não tivesse ainda juntado as peças do "como eu fui parar ali", ainda que uma fraca consciência de saber algo sobre mim pareceu lentamente acalmá-­‐lo. Enquanto isso fico deitado fitando a figura, sem sérios desvios de interpretação do personagem agora, mas ainda inclinado a afinar a observação de uma criatura tão intrigante. Quando, finalmente, sua mente pareceu concluir o toque no caráter de seu companheiro de leito, ele se tornou, como eu diria, reconciliado com o fato; pulou no chão e valendo-­‐se de uma mímica eficaz e de certos ruídos ele me fez entender que, se eu preferisse, ele se vestiria primeiro e depois sairia para eu me trocar, deixando o quarto para meu uso. Penso eu, Kwee Kweg, nestas circunstâncias, isso é um prelúdio extremamente civilizado. Que a verdade prevaleça: os radicais têm esse senso inato de delicadeza, digam o que quiser; é maravilhoso o quão essencialmente polidos eles são. Eu presto este singular elogio a Kwee Kweg, porquê ele me tratou com enorme civilidade e consideração, enquanto eu fui culpado de grandes rudezas; encarando-­‐o da cama, vendo seu protocolo de higiene pessoal, a esta altura, minha curiosidade invocou o gênio de minha estirpe. Não sem um bom pretexto: um homem como Kwee Kweg você não vê todos os dias, ele e seus modos eram uma proposta que valia a pena ser vista, pelo inusual da perspectiva. Ele começou a se vestir pelo 22 gorro, deixando-­‐o alto acima do topo da cabeça, estiloso, e só aí -­‐ estando ele de pau para fora -­‐ foi em busca de suas botas. Através de quais celestiais raciocínios ele criou esta sequência para vestir-­‐se, eu não posso dizer, mas seu próximo movimento era de se arrebentar – botas longas em mãos, e gorro na cabeça – pá, ele pula de volta pra debaixo da colcha; quando, entre enérgicas bufadas e violentos contorcionismos, inferi que ele estava dando um duro para calçar o coturno; ainda que jamais eu tenha tido notícia de uma lei das boas maneiras que preconize que um homem deva observar sua privacidade ao vestir suas botas de combate. Mas Kwee Kweg, veja, era uma criatura que habitava a maior de todas as fronteiras – um caranguejo costeiro: enquanto os animais da terra estão convictos de estarem diante de um espécime marinho (que tem a sorte de vir à tona vez ou outra), por sua vez, peixes, invertebrados e moluscos do oceano tem certeza de que se trata de um ser terrestre que, por acaso, aprendeu a entrar na água. Ele era apenas suficientemente civilizado para demonstrar seu espírito estrangeiro das maneiras mais estranhas possíveis. Um amador. Se ele não fosse minimamente consciente da real política dos homens, ele provavelmente jamais teria servido em um exército ou milícia; por outro lado, se ele não tivesse ainda um coração selvagem, ele nunca teria sonhado em cultivar suas peculiares idiossincrasias. Por fim, ele emerge com seu gorro bastante amassado e enfiado até a altura dos olhos e começa a mancar e ranger pelo quarto, como se não estivesse muito acostumado com o couro amassado e úmido do coturno – que certamente não fora feito sob medida – apertando-­‐lhe os calos e atormentando-­‐o na reestreia do calçado, justo nesta manhã fria e acre. Reparando, tardiamente, que não havia tranca na porta e que o corredor parecia estar bastante movimentado, um quarto talvez vizinho ao nosso sendo ocupado por um grupo ruidoso, observando e repensando a figura indecorosa que Kwee Kweg proporcionava, desfilando de botas e gorro apenas, implorei a ele tão bem quanto consegui para que ele acelerasse um tanto seu processo, especialmente colocando sua cueca e calça o quanto antes possível. Ele concordou e prosseguiu para seu banho de gato vespertino. Tendo acordado tão tarde assim num Domingo, qualquer cidadão teria pensado em lavar seu rosto; mas Kwee Kweg, para minha admiração, contentou-­‐se em restringir suas abluções ao peito, sovaco e mãos. Em seguida ele vestiu seu colete e pegou um pedaço de sabão duro de dentro do saco de viagem, cuspiu para umedecê-­‐lo (não havia pia nos aposentos...) e começou a ensaboar seu rosto. Fiquei de olho para ver de onde ele sacaria seu aparelho de barbear, quando eis que ele vai até a minúscula janela e pega seu machete, saca a longa bainha de couro trabalhado, cospe também na lâmina e ajeita-­‐se diante do caco de espelho colado na parede, começando um vigoroso barbear -­‐ ou machetar -­‐ de suas bochechas. Disse, pensei, Kwee Kweg, isso sim é maneira de vingar-­‐se do monopólio das giletes! Tempos depois minimizei meu espanto diante desta operação, quando vim a descobrir quão fino é o aço usado na manufatura desta arma e o quão extremamente afiado era mantido o fio de sua lâmina. O resto de sua toalete foi prontamente concluído e ele marchou orgulhosamente para fora do quarto, aprumando-­‐se em uma bela jaqueta de aviador, ostentando seu machete sobre o ombro como um tenista carrega sua raquete. 23 5 ≠ O DESJEJUM ≠ Eu apressadamente segui com minha troca de roupa e baixei no salão-­‐bar onde se encontrava o provocador proprietário, aparentemente muito satisfeito. Eu não captei malícia nenhuma vindo dele, ainda que ele houvesse mangado comigo -­‐ e não pouco -­‐ no tocante ao meu colega de cama. No entanto, uma boa risada é uma boa e poderosa coisa, ainda que uma coisa boa e escassa; uma pena a mais a se lamentar. Então, se qualquer um homem, em sua pessoa própria, estiver bancando motivos para que qualquer um faça boas piadas, não o deixemos para baixo, ao contrário, deixemos que ele alegremente se permita gastar e ser gasto desse modo. E o homem que não nos recompensa com nada risível sobre ele, tenha certeza que há mais por trás deste sujeito do que você talvez imagine. O salão-­‐bar estava agora cheio dos tripulantes que vieram "caindo pra dentro" na noite anterior, os quais eu ainda não tinha tido chance de dar uma boa olhada. Eles eram quase todos militares ou seguranças; segundo-­‐tenentes, aspirantes a oficiais, vigias de rua, cabos, segundos e terceiros sargentos, soldados de 2ª classe, subtenentes; uma companhia frita e tostada, em seus bigodes caricatos; um conjunto desmazelado e caído, todos vestindo suas jaquetas de couro para o aquecimento matinal. Você poderia sem dificuldades dizer quanto cada um tinha de tempo de serviço. Este jovem rapaz tem as bochechas bronzeadas num tom de coco queimado, e devia ter um cheiro tão torrado quanto; não parecia estar de folga de sua ronda ostensiva a mais do que três dias. O homem ao seu lado parece alguns tons mais escuro; você diria que havia nele um toque de madeira de lei. Na compleição de um terceiro ainda durava um bronzeado tropical, porém algo desbotado: ele certamente deveria estar completando sua última semana de férias. Mas quem poderia exibir uma fronte como a de Kwee Kweg? A qual, entrecortada por vários maciços, remetia à cordilheira dos Andes, feita para expressar em sua disposição os climas contrastantes, zona por zona. "Foi, fio, tá posta a mesa!", anunciou agora o proprietário, chutando a porta para abri-­‐la, e lá fomos nós para o café da manhã. Diz-­‐se que os homens que rodaram o mundo, por consequência tornam-­‐se mais mansos em seus modos, bastante comportados diante de um grupo. Nem sempre, no entanto. Mário de Andrade, o grande viajante da cultura brasileira, e Amyr Klink, o navegador de Paraty; dentre os tantos aventureiros deste país, eles eram os menos desenvoltos quando expostos ao bafafá social. Mas talvez uma mera travessia do litoral numa vapor de poucos cavalos, como fez o Mário, ou a empreitada solitária de barriga vazia no peito aberto do Oceano Atlântico, que foi a pioneira performance do tristonho Klink -­‐ este tipo de viagem talvez não seja o melhor dos modos de se conquistar um alto refinamento social. Todavia, para a maioria de nós, esse tipo de traquejo deva ser obtido em qualquer praça. Estas reflexões aqui são ocasionadas pela circunstância de estarmos todos nós sentados à mesa, eu me preparando para ouvir as tais histórias sobre a atividade policial; mas para minha não pouca surpresa, praticamente cada homem se 24 mantinha em profundo silêncio. E não somente isso, eles todos pareciam ainda constrangidos. Sim, aqui estava uma matilha de cães de caça, muitos deles os quais sem a menor cerimônia haviam apagado grandes meliantes da Grande São Paulo -­‐ pessoas completamente desconhecidas por eles, outras nem tanto -­‐ e trocaram tiros com estes mortos sem um pingo de hesitação; mas ainda assim, aqui eles se sentaram numa mesa coletiva para um desjejum -­‐ todos com a mesma vocação, cada um com seu mau gosto -­‐ olhando uns aos outros à sua volta, tão cordeiramente como se nunca tivessem saído da supervisão de seu pastor de ovinos, nas verdejantes campinas. Uma visão curiosa: estes mansos dobermanns, estes acanhados combatentes da contravenção! Mas quanto a Kwee Kweg -­‐ porque Kwee Kweg estava sentado entre eles -­‐ na cabeceira da mesa, ele também, calhava de estar tão indiferente quanto uma estalactite. Se fosse para dizer com certeza, eu não poderia comentar muito sobre sua educação Angolana. Sequer seu maior admirador poderia cordialmente justificar o porquê dele trazer consigo o machete para o café e usá-­‐
lo sem pudores; alcançando com ele os pães sobre a mesa, para a iminente ameaça às várias cabeças, puxando ainda o presunto para si. Mas esteja certo que ele o fazia com muita classe, e todos sabem que na avaliação da maioria das pessoas, fazer algo com espontaneidade é fazê-­‐lo gentilmente. Não falaremos aqui de todas as peculiaridades de Kwee Kweg; de como ele dispensava um pingado e os pães de queijo duros, aplicando sua atenção integralmente ao presunto vencido. Basta dizer que terminado seu desjejum e se retirou como todo o resto para o saguão, acendeu seu cachimbo paramentado e ficou sentado ali calmamente, fumando e fazendo a digestão, com seu inseparável gorro, quando eu tomei meu rumo para dar uma volta. 25 6 ≠ AS RUAS, AS RUAS ≠ Fosse o caso que eu devesse, obrigatoriamente, ter me embasbacado pela primeira impressão acerca do fato de um tão desterrado indivíduo quanto Kwee Kweg estar circulando entre a primorosa sociedade desta civilizada cidade, bem, esta asneira logo teria se dissipado na ocasião de meu mais recente passeio diurno pelas ruas do Centro Velho, também chamado de Cidade pelos mais antigos. Qualquer uma das plataformas de rodoviária desta metrópole pode lhe oferecer um desfile dos tipos menos retratados pelas mídias de massa, oriundos, quem saberia dizer, dos mais irrelevantes recônditos. Lá longe, no Minhocão com a Consolação, peões saudosos buscam conforto em inconvenientes galanteios dirigidos à trabalhadoras cansadas de guerra. A rua Augusta, por sua vez, não passa um dia sem ser visitada por ao menos um transexual e um oposto seu, o neofascista. No estádio do Pacaembu, há décadas Corintianos hostilizam Palmeirenses, e vice versa. Afirmo que, São Paulo, em seu todo, oferece mais que Ipanema e Copacabana juntas: nestes oásis prevalecem os oportunistas vezeiros, enquanto aqui você pode muito facilmente encontrar duplas de indiciados profissionais, conversando uns com os outros a cada esquina; delinquentes à rodo; muitos deles os quais carregam sinais de terem visto a impura cor de suas tripas e ossos com seus próprios olhos. Eis aí um quadro tenebroso, ainda que discutível. Tenha certeza de que aqui já se hospedaram, alguns presentes agora mesmo, Kaiowás, Nhambiquaras, Kadiwéus, Bororos, Tucanos, Guaranis, Jabutis, Caetés, Kaiagangues, Karajás, Kariris-­‐xocós, Macuxis, Pankararés, Suiás, Ticunas, Wapixanas e Xucurus; além destes ultrajados nativos do rigoroso continente, que teimaram pelo direito de perambular por estas ruas, você verá outras figuras verdadeiramente exóticas, certamente mais cômicas. Semanalmente desembarca nesta cidade uma contagem de sertanejos imaturos do interior e filhotes do Sul Maravilha, todos sedentos por lucros e glória no capitalismo periférico. Eles são jovens em sua maioria, de distintas famílias; uma ascendência de lavradores que agora busca largar a enxada para arrebatar bônus em cotas de ações preferenciais. Muitos são tão puros quanto a água dos poços artesianos de onde vieram. Observando alguns aspectos seus, você diria que eles nasceram ontem. Olhe lá! Esse sujeito hesitando ao dobrar a esquina. Ele usa um boné ainda com as etiquetas coladas e um suéter de tricô artesanal jogado nos ombros, um cinto de cowboy reluzente e uma mochila escolar. Aí vem outro, com uma touca velha e uma capa de plástico improvisada! Nenhum playboy criado na cidade se compara a um criado na fazenda -­‐ quero dizer, um mauricinho notoriamente capiau -­‐ pois os primeiros, em um dia de cão, não hesitam em gastar duas centenas de reais em táxis para evitar indesejáveis bolhas nas delicadas solas de seus pés. Agora, quando um playboy mandioqueiro enfia em sua cabeça que irá construir excelente reputação e se junta a uma grande empresa multinacional, você deve ver as coisas cômicas que ele faz ao galgar os degraus da carreira corporativa. Em se tratando de seus 26 trajes formais, ele compra as gravatas menos vendidas na loja e levanta a calça acima da linha do umbigo, revelando suas meias descombinantes. Ah, pobre matuto! Como amargamente ele irá destruir o couro italiano de seus caríssimos sapatos de bico fino no primeiro vendaval, quando a água contaminada que sobe dos esgotos levar sua camurça, sua pelica, seus cadarços e palmilhas amortecidas garganta abaixo de uma boca-­‐de-­‐lobo. Mas não creia que nesta famosa capital tenha somente bandidos, homicidas e vagabundos para mostrar a seus visitantes. De jeito nenhum. Evidente que São Paulo é um lugar deturpado. Não fosse por nós trabalhadores, este quinhão de terras estaria hoje talvez vivendo numa condição tão inóspita quanto a Serra do Roncador. Tal como está agora, partes de suas áreas de reserva são suficientes para assustar um sujeito, com suas costelas de montanhas. Pode se considerar, estando em certos bairros desta cidade, que não há mais amado local para se viver em todo o Sudoeste. Bem verdade que é uma terra provida de muito combustível; ainda que não como a Nova Canaã, ou Oriente Médio; mas uma terra, sim, de pão e vinho. As ruas não dão leite de suas pedras; também na primavera não as pavimentam com mantas de ovos fritos. Ainda assim, apesar de tudo, em lugar nenhum do Brasil você encontrará casas de tão sofisticada arquitetura, piscinas e jardins mais opulentos que na Paulicéia desvairada. Donde vieram? Como brotaram do seio de uma escória renitente de nação como essa? Vá e vislumbre os emblemáticos empregados por trás dos portões de ferro daquela mansão nobre acolá e sua pergunta será respondida. Sim; todas estas bravas casas e jardins floridos vieram da África, da Europa proletária, do Levante Libanês, do Japão rural e das antigas nações nativas da América do Sul. Uma e todas, foram amarradas e arrastadas para cá desde o fundo da milenar derrota de certas classes. Quantos Napoleões juntos seriam necessários para se realizar tal façanha, caso não tivéssemos tido todos estes 500 anos para chegar aonde chegamos? Em São Paulo, papais, dizem, dão apartamentos para suas filhas e com o troco compram carros para suas sobrinhas. Você tem que vir a esta cidade se quiser ver um casamento verdadeiramente brilhante; porquê, dizem, eles tem um banco a cada quadra, e dia e noite os paulistanos da gema queimam incansavelmente suas reservas em unidades reais de valor. No verão, São Paulo é linda de se ver; cheia de finas paineiras em harmonia nas alamedas de pinheiros, grama hebraica e ipês paulistanos. Em Janeiro, cheio de sol e chuvas bruscas porém intensas, os lindos e sociáveis papagaios, verdes como semáforos, gritam em bando para os transeuntes, um coro silvestre, liberto do deprimente repertório de imitações que os parvos lhes impõem. Sua arte é onipotente, em muitas galerias e terraços metropolitanos são hiper-­‐iluminadas de modo a sobreporem-­‐se às estéreis e recusadas obras lançadas no lado de fora dos muros, após o fim do expediente do último dia da criação. E as mulheres de São Paulo, elas desabrocham como suas próprias rosas vermelhas. Mas roseiras somente florescem no verão; ao passo que a fina cútis de suas maçãs do rosto é perene como a luz do sol no sétimo dos céus. Em que 27 outro local encontraríamos rivais para tal desabrochar? Impossível, a não ser no Rio de Janeiro, onde me disseram que as jovens garotas exalam um contraditório almíscar, que os marujos farejam a milhas da costa, ainda que estivessem sendo atraídos diretos para o Morro do Pau da Fome ao invés da Praia dos Amores. 28 7 ≠ O MINISTÉRIO ≠ Nesta mesma região da Luz em São Paulo há um insólito Ministério muito frequentado por policiais; uma pequena minoria de oficiais ateus, ainda que prestes a se alistar em perigosas diligências no Glicério ou Heliópolis, falha em fazer uma visita dominical ao lugar. Não faria questão de não me enquadrar neste grupo. Mas voltando de minha primeira caminhada matinal, eu outra vez me jogo nesta missão especial. O céu havia mudado de claro, ensolarado, mas frio, para neblina e mais ameaça de granizo. Embrulhei-­‐me na minha jaqueta desgrenhada, forrada com aquela pele falsa de carneiro, abri caminho contra a chuvarada teimosa, lutando. Entrei para encontrar uma pequena e dispersa congregação de soldados, esposas de soldados e viúvas. Um silêncio abafado imperava, apenas interrompido vez em quando pelos gemidos da tempestade. Cada devoto silencioso parecia estar propositalmente afastado dos outros, como se seu lamento mudo estivesse ilhado, incomunicável. O pastor ainda não estava lá; e lá estas silenciosas ilhas humanas sentavam-­‐se mirando fixamente os diversos cartazetes paginados, presos por alfinetes em grandes quadros de cortiça colados nas paredes de ambos os lados do púlpito. Três deles versavam sobre algo nesta linha, mas não pretendo ser literal aqui: -­‐ SACRAMENTADA A MEMÓRIA DE JOÃO TURIM, quem, em seus dezoito anos, foi alvejado em campo, próximo ao subdistrito do Chora Menino, no coração do Jardim da Saúde. 1° de Novembro, 1996. ESTE OBITUÁRIO foi redigido em nome de sua memória POR SUA IRMÃ. -­‐ SACRAMENTADA A MEMÓRIA DE ROBERTO LONGO, WILLIS EULER, NATANAEL COLELLA, WALTER CANISSO, SELTON MACIEIRA E SAMUEL GUEDES, formação da 3ª Companhia Territorial do 2º BPM/M "DOIS DE OURO", que foram sequestrados e levados para local ignoto por uma facção criminosa, em território além do perímetro da GRANDE SÃO PAULO, 31 de Dezembro de 1989. ESTE OBITUÁRIO foi aqui disposto por seus COLEGAS DE COMPANHIA que sobreviveram à emboscada. -­‐ SACRAMENTADA A MEMÓRIA do saudoso CAPITÃO EZEQUIEL DURÃES, que no comando de sua viatura foi assassinado por um facínora nas ruas do Jardim Japão, 3 de Agosto de 1993. ESTE OBITUÁRIO foi concebido em sua homenagem POR SUA VIÚVA. Sacudindo o sereno de meu boné e jaqueta, cristalizados pelo orvalho, sentei-­‐me próximo a saída; virei para o lado e surpreendi-­‐me ao ver Kwee Kweg bem próximo a mim. Influenciado pela solenidade da cena, vi em seu semblante um olhar questionador, de incrédula curiosidade. Este bárbaro foi a única pessoa presente que demonstrou notar minha chegada; porquê, talvez, ele deva ter testemunhado tantas mortes na guerra civil Angolana que a vida encarregou-­‐se de eliminar-­‐lhe qualquer traço de fascínio por modestos necrológios, de modo que sua atenção pôde voltar-­‐se para outros estímulos. 29 Se algum dos parentes dos militares cujos nomes constavam ali estava agora entre a congregação, eu não poderia dizer; mas são tantos os anônimos falecimentos em serviço e tão obviamente diversas das mulheres presentes vestiam preto, se não o preto de um luto incessante, que eu sinto segurança em afirmar que diante de mim ele -­‐ o luto -­‐ se manifestava nos corações adoecidos, a quem a elaborada vista daqueles batidos panfletos tentava à reabertura das velhas feridas, como se demandadas a sangrarem frescas. Oh! vós cujos mortos deitam-­‐se enterrados abaixo da grama recém-­‐
cortada; que em pé entre flores pode dizer -­‐ aqui, AQUI jaz meu amado; não sabereis a desolação que viceja em outros brotos. Que repulsivo vazio nestes cartazes pré-­‐editados que não conheceram as cinzas de seus mortos! Que desespero nestes imóveis caracteres impressos no papel! Que mortais vácuos e inconciliáveis infidelidades nas frases que pareciam corroer toda a Fé e recusar ressurreições aos seres que sem-­‐lugarmente pereceram fora do alcance dos seus. Estas inscrições seriam tão pertinentes aqui quanto seriam se estivessem rabiscadas na caverna de Lascaux, França, onde estão as mais antigas pinturas conhecidas pelo homo sapiens sapiens. Em qual censo das criaturas viventes, os mortos da humanidade são incluídos; porque é que um provérbio venha a falar sobre eles, dizer que eles não contam contos, ainda que contenham mais segredos que todas as centenas de bilhões de galáxias; como é que para seu nome que ontem partiu para outro mundo, nós pré fixamos tão significativa e infiel palavra, que ainda assim com ressalvas custosas lhe outorga o direito civil à revelia do fato dele ter falhado em ter sido finalmente despachado em um dos registrados instituto-­‐médico-­‐legais desta Terra viva; porque haverá motivos para que companhias públicas ou privadas hesitem em pagar mensalidades devidas aos segurados beneficiados pelos desaparecidos insepultos; em que eterna, imóvel paralisia e em que tipo de mortal, desesperado transe, está encerrado até hoje Adão -­‐ que morreu há exatos 62 séculos atrás; como é que nós nos recusamos, apesar de tudo, a sermos consolados por aqueles que nós, no entanto, imaginamos habitando um êxtase indizível, por que todos os seres vivos se esforçam para desapegar de seus mortos, portanto, considerando como fato que uma se uma legítima voz se pusesse a cantar de dentro de uma tumba, isso aterrorizaria o planeta inteiro? Por favor, não pense que todas essas coisas estejam privadas de seus significados. Mas a Fé, como uma hiena, alimenta-­‐se entre os túmulos, e até mesmo por entre dúvidas mortais ela coleta sua mais vital esperança. Não há residual necessidade de ser dito aqui, com que sentimentos, na véspera de um alistamento militar, eu lidei com aqueles pequenos pôsteres, e pela esverdeada luz fria que os iluminavam, fez-­‐me um dia triste de ler os destinos de policiais que se foram antes de mim. Sim, Ismail, a mesma fatalidade pode ser a sua. Mas de algum modo eu retornei à alegria. Estímulos positivos para que se embarcasse numa bela chance de uma promoção, poderia parecer -­‐ Ave, um camburão turbinado me fará imortal por meu distintivo. Sim, há morte neste negócio de polícia -­‐ uma chocantemente rápida comunhão caótica de um homem com a Eternidade. Mas e daí, então? Creio que penso que nós erramos 30 tremendamente nesse assunto da Vida e Morte. Creio que penso que o que eles chamam de minha sombra aqui na Terra seja minha verdadeira substância. Creio que penso que em olhando para as coisas espirituais, nós somos muito próximos a ostras observando o sol através da água, e pensando que esta imensa coluna de água é o mais fino dos ares. Creio que penso que meu corpo é nada que não a borra de meu melhor ser. Na real eu digo, coletem meus órgãos, acreditem no que eu digo, não os estou doando, porquê eles não são eu, nem meus. E, portanto, três vivas para Sampa e que venham, quando assim o desejarem, um motor de combustão e um comburente corpo para incinerar minha alma, porque nem sequer Júpiter poderia fazê-­‐lo. 31 8 ≠ O PÚLPITO ≠ Muito mais longo foi o tempo de sua leitura do capítulo anterior, longo o tempo transcorrido em sua inquestionavelmente mais longa velocidade de absorção da ação física e mental daquilo que em mim transcorreu, e que talvez não tenha me tomado, debaixo daquela lua daquele dia, mais que mil segundos ao todo antes que porta adentro entrasse, o ricochete da madeira na parede emoldurando-­‐o com seu estampido, um homem que instantaneamente atraiu os olhares de toda a congregação, tudo isso sendo suficiente para atestar-­‐me: esse era o Ministro. Sim, era o famoso Pai Maçã, assim conhecido desde que era um favorito no batalhão em que servia, o Maçã. Era Assan. Um soldado e atirador, em sua juventude, mas já há uma década dedicava-­‐se ao Ministério. No dia em que escrevo isso, Pai Maçã vivia sua fase de urrar nu contra a tempestade, ainda que sem o porte de um Rei Lear, digamos que experimentava aquele tipo de virada que lhe concede um segundo tempo na Terra; aquele tipo de velhice que entre todas as fissuras e rugas faz reluzir aqui e lá certos brilhos moderados de um novo ramo em crescimento -­‐ sustentados por aquela fotossíntese resiliente que, ainda que encoberta por uma massa de nuvens que atravessa os estados, floresce. Ninguém que soubesse um pouco de sua história passaria incólume à presença de Pai Maçã sem manifestar supremo interesse, porque havia nele, sobre ele, algumas encriptadas peculiaridades clericais, imputáveis à fatídica vida policial que ele levara. Quando ele entrou observei que que ele não carregava um guarda-­‐chuva, e certamente não teria vindo com um chofer, porquê seu chapéu tipo Chaves se esparramava por sua cabeça, ele inteiro encharcado, sua majestosa jaqueta de couro e pele falsa de cordeiro afundando-­‐o com o peso da água que havia absorvido. No entanto, acessórios e coberturas foram despidos um a um e pendurados em ganchos na pequena despensa do canto; quando, a seu critério, considerou-­‐se trajado de modo apto a proceder com o rito, ele silenciosamente dirigiu-­‐se ao púlpito. Como qualquer púlpito tradicional era pequeno; assim, escadas laterais em padrão normal de construção seriam largas demais para o espaço, consumindo a área construída com um uso muito pontual; então a arquiteta, aparentemente sugestionada por influência do Pai Maçã, decide finalizar a cenografia com uma engenhosa escada cenográfica, um elemento simbólico que ao liberar de uma trava girava de horizontal para vertical, criando um acesso funcional ao Púlpito. Explico: a esposa de um capitão de polícia contribuiu com uma enorme maquete de um trem urbano que ficava na altura dos pés do Ministro, oferecendo um lindo modelo em escala 1:100, vermelho, sobre o qual afirmo, foi entregue do ateliê com uma caprichada concepção e instalado com dedicada disciplina; por cima dele, como se num segundo andar, havia um trilho de trem que se projetava na transversal dos carros, apontando para o salão como um mastro de proa, na totalidade da contrição expressa por estas vigas e dormentes leves, para que o desafio a gravidade se evidenciasse, uma proposta assim trabalhada, considerando o local e a estado de conservação desta capela, não 32 parecia (a totalidade da contrição) de modo algum de mau gosto. Hesitando por um instante abaixo deste teto de um trilho que rumava ao nada, com as mãos segurando as alavancas simplórias de um mecanismo rudimentar, Pai Maçã lança um olhar ao alto e, então, com uma destreza treinada, praticada, ainda que reverente, gira a manivela para que os trilhos se dispusessem na posição vertical, bem diante de si; mano a mano ele galga os degraus como se ascendesse à cabine de sua embarcação. As partes perpendiculares desta escada de trilhos metafóricos, como normalmente é feito por quem sabe o que está fazendo, eram feitas de largo calibre e somente os pisadores eram recobertos por peças de madeira, de modo que cada passo ali era dado em um pequeno tronco preso em laterais de alumínio. Na minha primeira impressão do púlpito, não havia me escapado que ainda que conveniente para uma escada em local sem espaço adequado, este estilo e técnica na presente instância me pareceram desnecessários. Isso porque eu não estava preparado para ver Pai Maçã, depois de ter atingido às alturas, virar-­‐se lentamente, debruçar-­‐se sobre o púlpito e deliberadamente recondicionar à escada a seu papel simbólico, passo a passo, até que ela inteira estivesse apontando para seu invisível trajeto, deixando-­‐o, o Pai, inexpugnável em sua pequena Fortaleza. Eu ponderei por algum tempo sem completamente compreender a razão para este gesto. Pai Maçã prezava de uma disseminada reputação de sinceridade e beatitude, que eu não esperaria dele que cortejasse notoriedade por quaisquer meros truques de palco. Não disse -­‐ pensei, há de haver uma sóbria razão para isso; além do mais, deve simbolizar aquilo que não é visível. Pode ser, então, que por um ato de isolamento físico associado a um ícone do destino incerto, ele queira significar a debandada espiritual enquanto dure o entreato, ali em cima desligado de todos os exteriores e mundanos laços e conexões? Sim, pois para os refastelados em carne e vinho de palavra, para os fiéis homens de Deus, este púlpito, eu vejo, é um quartel autoportante -­‐ um forte resiliente, de onde jorra, perene, uma fonte interna de água. Mas insistir na escada de trilhos foi apenas pretexto até aqui para não falar do mais estranho dos conceitos do Ministério, emprestado de uma experiência pessoal do fundador desta corrente teológica. Os apoios oferecidos por cada parede lateral do púlpito sustentavam um longa prancha de surf [longboard] que flutuava em uma onda quebrando em tubo por cima do falso trem, na altura das canelas do Ministro. A parede que fazia as vezes de pano de fundo era adornada por uma grande pintura, representando um galante surfista indo de encontro a uma série de ondas enormes e suas cristas ameaçadoras como avalanches. Ora, no cume das alturas acima das nuvens muito escuras -­‐ ases da rotação em alta velocidade -­‐ flutuava lá uma pequena ilhota de raios de sol; deles, sobressaía um rosto de anjo e esta iluminada face refletia de volta para este fictício Arpoador um foco distinto, criado por lâmpadas amareladas postadas no teto, um brilho de medalha de ouro guardada na gaveta em homenagem à ocasional vitória de um certo João. 'Ah, nobre prancha', o anjo parecia dizer, 'fure 33 as ondas, fure as ondas, ó nobre prancha, e vá até além da arrebentação; vá por mim! O sol está prestes a nascer; as nuvens estão rolando para longe -­‐ o mais sereno dos azuis está ao seu alcance'. Nem sequer o próprio púlpito se eximia dos traços da mesma decoração praieira que aplicaram na pintura. O painel que recobria sua frente guardava semelhança com o vale de uma onda e a Bíblia sagrada descansava nas asas de uma gaivota sustentada por um pino de metal, estilizada para parecer-­‐se com a pomba das festas do Divino da Baía da Ilha Grande. O que poderia estar mais repleto de sentido? -­‐ pois o púlpito será sempre o último entreposto do continente civilizatório; todo o resto vem em sua retaguarda; o púlpito lidera o mundo. Dali em diante se avistará antes do que em qualquer outro local o túnel escuro da ira de Deus -­‐ e o arco terá que ser retesado até seu limite. A partir dali é que o deus das boas e más brisas será primeiramente invocado em nome de ventos favoráveis. Sim, o mundo é uma prancha que flutua girando no mesmo lugar em meio a uma série de ondas e não uma viagem completa e delimitada de trem; e o púlpito é o elástico que o prende ao surfista. 34 9 ≠ O SERMÃO ≠ Pai Maçã cresceu no púlpito e com uma moderada voz de autoridade humilde ordenou que a multidão dispersa se reunisse. 'Ocupem os espaços vazios, cidadãos! Lado a lado nos áreas vazias -­‐ vamos utilizar estes espaços! Vamos ao meio! Todos reunidos no centro!' Ouvimos o ressoar baixo das pesadas solas de borracha pisando nas tábuas e chutando os bancos, um ainda mais refinado embaralhado de batidas de saltos femininos, antes que tudo estivesse quieto novamente e todos os olhos voltados na direção do pregador. Ele pausou um pouco; então ajoelhando aos pés da prancha, dobrou suas grandes mãos marrons cruzadas no peito, elevou seus olhos por debaixo das pálpebras fechadas e ofereceu-­‐nos o convite a uma prece, que ele conduziu com tal devoção que parecia estar ajoelhado no fundo de um oceano. Isto feito, em murmúrios prolongados e solenes como um surdo marcando o ritmo numa bateria que está preparando a chegada do cantador -­‐ entre tais entonações guturais ele começa a interpretar a seguinte canção; sempre mudando suas maneiras quando se aproximando das palavras conclusivas, tendo as acelerado de início com enérgica exultação e contentamento -­‐ Os ossos e os amores dentro da pixação Arquearam sobre mim uma penumbra lúgubre Enquanto Deus criava todas as ondas do rolê E me elevava aprofundando-­‐me neste vício Eu vi a boca do inferno aberta Com infinitas cores e lástimas ali Que ninguém a não ser os que pixam podem dizer -­‐ oh mano, eu quase caio no abismo Em clara aflição, eu chamei meu Deus Quando eu mal podia crê-­‐lo meu Ele curvou seu ouvido às minhas queixas-­‐ O pixo nunca mais confinou-­‐me em culpas Com presteza ele acorreu por meu alívio Como se a bordo de um radiante teletransporte Luminoso, ainda que incomodado, brilhou como um raio A face deste meu Deus que entrega Meus versos para sempre registrarão Esta terrível, esta prazerosa hora Eu dou as glórias ao meu Deus Seus todo o perdão e todo poder Praticamente ninguém se juntou a ele na apreciação da música, que ressoou bem mais alto que o chiado da tempestade. 'Permitam-­‐me uma breve apresentação. O compositor criou aqui mesmo, nestes bancos, esta interpretação, esta poesia adaptada da parábola de Jonas -­‐ o mesmo que selecionei para o sermão desta noite'. O ministro lentamente virava as páginas da Bíblia, quando 35 finalmente, dobrando sua mão para baixo sobre a página em questão, disse: 'Amados irmãos, agarremo-­‐nos ao último verso do primeiro capítulo de Jonas -­‐ e Deus preparou um grande peixe para engolir Jonas.' 'Cidadãos, este trecho contém apenas quatro capítulos -­‐ quatro narrativas -­‐ é um dos menores elos na inquebrável corrente das Escrituras. Ainda assim em que profundidades da alma deste jovem pichador ecoaram estas histórias de Jonas! Mas que prenhe lição para nós todos nos traz este mito! Que nobre coisa é este cântico sobre estar nas entranhas de um gigantesco animal selvagem! Que semelhança à estupefação das ondas estourando no quebra-­‐mar! Nós sentimos a enchente insurgindo-­‐se acima de nós; ouvimo-­‐nos a seu lado indo ao fundo das águas repletas de vegetação; algas marinhas e toda viscosidade do mar vem para nos engolir. Mas QUAL é a lição que ensina este livro de Jonas? Cidadãos, é uma lição dupla, ou melhor, uma meta-­‐lição; para todos nós, pecadores, homens e mulheres, que se desdobra em uma lição a todos que, como eu, como este artista contraventor, se propõem a interpretar as palavras atribuídas ao Deus vivente. Enquanto seres pecadores é uma lição para todos sem exceção, porque é uma história do pecado, de almas enrijecidas, temores não superados, da punição em vida, arrependimento, preces e finalmente a concessão da graça, alcançada por Jonas. Como com qualquer outro pecador entre os homens, o pecado deste descendente de Adão estava em sua resoluta desobediência aos comandos de Deus -­‐ não se importe agora com qual comando era este, ou a forma usada para transmiti-­‐lo -­‐ Jonas considerou-­‐o difícil de obedecer. Mas todas as coisas que Deus quer que façamos são duras para nós ao fazê-­‐las -­‐ lembrem-­‐se disso -­‐ e, portanto, melhor será que ele nos ordene do que se esforce em nos persuadir. Logo, se vamos obedecer a Deus, teremos que desobedecer a nós mesmos -­‐ isso é para todos; mas a suprema provação consiste em obedecer a si mesmo, ainda que isso signifique desobedecer à lei dos homens, confiando apenas em sua fé e apostando a mais arriscada das apostas -­‐ seu ímpeto transgressor é justamente sua mais árdua prova de obediência -­‐ lúcida -­‐ ao trabalho de Deus. Com esta sina da desobediência pesando sobre si, Jonas zomba ainda mais de Deus, ao buscar fugir Dele. Ele pensa que um barco feito pelo homem o levará a países onde Deus não reina, mas somente os Capitães desta Terra. Agora, deixemos o Jonas histórico; interpretarei a partir daqui estes versos bíblicos para falar de uma classe de policiais do final do século vinte que, como Jonas, obedecem somente a si mesmos. Este oficial se encafua pelas quebradas da extrema zona leste, buscando uma outra barca que ele sabe que está comprometida com certa busca. Não esconderei, a esta altura, um significado até aqui oculto. Independente dos nomes próprios a busca não poderia deixar de se resumir a alguém -­‐ um bem posicionado contraventor. Minha opinião é de que se tratasse de um homem escolado. E onde quer ficar o violador, Cidadãos? Onde ele sabe onde está; o mais longe de seus algozes ainda que ao alcance de suas vítimas, mesmo que no início ele pensasse que a Capital tivesse dimensão oceânica, pois assim a sentia, mas ele agora sabe muito sobre o formigueiro onde pisa. Atentem ao fato de que a zona leste, incluindo a Grande São Paulo, cidadãos, é o maior de todos os adensamentos populacionais ao sul da 36 América, na 9ª maior cidade do mundo; e a apenas a duas mil milhas da África para leste, bem em frente à Namíbia. Não veem então, cidadãos, que meu Capitão em questão buscava era a fuga para interior do labirinto da Babilônia, querendo se esconder de Deus? Homem miserável! Oh! Aponto meu dedo para o mais desdenhável dos merecedores de todo o desprezo; com sua boina intacta e os olhos culpados, escamoteando a confiança de Deus; sondando o movimento pelo rádio pilotando como um vil trapaceiro querendo atravessar uma fronteira. Tão alterado, delator de si mesmo era seu olhar, que houvesse um só policial de verdade entre eles na Viatura, um soldado, pela mera suspeita de algo completamente errado, o Capitão teria sido preso tão logo houvesse pegado na maçaneta do carro. Claramente ele é um fugitivo! Sem bagagem, sem uma escova de dente, uma lancheira, uma mochila -­‐ nenhum amigo o acompanha até a garagem para seu até mais, abraço. Por fim, depois de muito rodar atrás de uma sintonia, ele encontra um camburão recebendo as instruções finais de uma ocorrência; no momento em que ele subitamente decide fazer contato pelo rádio com o comandante da outra viatura, todos os seus companheiros desistem de acompanhá-­‐lo por bem, pois marcam o estranho olhar maligno de seu superior. O capitão percebe isso; em vão ele tenta aparentar tranquilidade e confiança na voz: em vão um sorriso horroroso. Fortes intuições dos homens asseguram os soldados que o condutor não é inocente. Em seu bem articulado talento para bobo da corte, um deles sussurra para o outro -­‐ 'João, esse tá roubando a viúva'; ou 'Zé, grampeia ele; é um bígamo'; ou 'Edu meu chapa, acho que ele é o que botou o pomo da discórdia na mesa e agora tá afobado com a gritaria'. Um outro puxa o cartaz de procurados que está preso entre o pára-­‐sol e o espelho esbranquiçado da viatura, oferecendo vantagens concretas pela apreensão de um narcotraficante, contendo a descrição de um semelhante seu. Eles leem, olham para o Capitão e para a filipeta; agora todos os seus empáticos companheiros estão arrodeando o banco do motorista, preparados para pôr as mãos no volante, no breque e na cabeça do piloto, simultaneamente. O temeroso Capitão treme e invocando toda sua cara durice para seu rosto, somente para aparentar ainda mais um grandessíssimo covarde. Ele não se confessará suspeito; mas isso é em si um indício forte de suspeição. Ele dá o melhor de si; e quando os soldados concluem que ele afinal não acabara de matar seu próprio pai, eles o deixam prosseguir, e ele deixa de se comunicar com a outra unidade. 'QRZ -­‐Quem está aí?' grita o painel do veículo, que ao mesmo tempo avançava um sinal vermelho desnecessário -­‐ 'Quem me chama, QRU?' Oh! Como esta pergunta inofensiva corrói a alma do Capitão! Por um instante ele cogita não responder. Mas ele encara; 'QRU você tem algo para mim; QRD qual sua localização, senhor?' Até aqui a ocupada viatura não tinha dado atenção para o Capitão, mas agora um homem demorava em respondê-­‐lo; no que pareceram minutos eles escutam aquela voz eletrônica, e trocam-­‐se olhares analíticos. 'Nós estamos a postos para próximas instruções', ele finalmente respondeu pausadamente, ainda intencionalmente testando as reações do interlocutor. 'Nada até aqui, senhor, QSL?' -­‐ 'Nada, nenhum homem desonesto trafegando como passageiro por aqui QSN'. Ha! Capitão, essa foi uma indireta. Mas ele malandramente desvia o foco deste rumo de prosa. 'Eu fico em contato com você -­‐ ele diz, QAP -­‐ 'o bilhete do passageiro quanto custa isso? -­‐ eu cuido disso QSJ'. Porque isso poderia estar sendo gravado, cidadãos, entendam que isso não é algo a ser negligenciado nesta história, porque QSJ é o código internacional para taxa, dinheiro, 'eu faço a 37 passagem a partir daqui' pois assim as instruções foram efetivamente recebidas e postas em prática. e dado o contexto, isto tem seu sentido para o sermão. 'Eis aí que o outro comandante em contato com nosso Capitão, cidadãos, era um destes cujo discernimento detecta o crime em qualquer um, mas cuja avareza enquadra apenas os descamisados. Neste mundo, cidadãos, o pecado que paga seu pedágio pode viajar livremente, sem um passaporte; enquanto a Virtude, se proletária, é parada a cada aduana. Então o contato do Capitão se prepara para sondar a profundidade de seus bolsos, antes de julgá-­‐lo abertamente. Cobra-­‐lhe o triplo do acordo usual; fecha a venda mesmo assim. Neste instante ele sabe que o Capitão está mal comprometido no caso; mas ao mesmo tempo está convicto em ajudar um voo solo que deixe um rastro de ouro atrás de si. No entanto mesmo quando o Capitão consensualmente abre sua bolsa, prudentes suspeitas ainda molestam o outro comandante. Ele requer detalhes do registro e das patentes do Capitão, em busca de uma falsidade. Nenhum deslize, de qualquer modo, ele resmunga; e o Capitão está apto a fazer a entrega do dinheiro da passagem. 'Aponte o local estarei à disposição QRV senhor?', diz o Capitão agora, 'estarei sossegado agora, QTH? preciso retornar à base'. Jonas, quero dizer, o Capitão agora desliga o comunicador e tranca as portas -­‐ mas elas já estavam trancadas. Vendo o seu superior tolamente expor-­‐se, os soldados permitem-­‐se rir discretamente, soltando sem querer algo na linha de que as celas sempre estão trancadas, mas os prisioneiros estão sempre checando. Todo fardado e contaminado como ele estava, Jonas, quero dizer, o Capitão, afunda o pé nos pedais e descobre que o espelho do centro esteve o tempo todo o forçando a abaixar a testa e entortar o pescoço enquanto guiava. As janelas estiveram fechadas, e o Capitão tosse. Então, naquele buraco apertado, afundado também, abaixo da linha da cintura, Jonas sente o emblemático pressentimento daquela hora sufocante, quando a baleia deverá aprisioná-­‐lo entre suas enormes papilas gustativas e o céu de sua boca. Amarrado no painel do camburão estava um crucifixo, balançando seu brilho cobreado oscilando levemente conforme os trancos do carro; o motorista desconfia que os pneus do lado esquerdo estejam esvaziando, pois a corrente que segura a cruz parece estar pendendo para seu lado, esse pequeno reflexo fica piscando no canto de seu campo de visão, distraindo-­‐o com a dúvida, fazendo com que ele comece a procurar linhas paralelas no console e nas ruas, querendo confirmar o suposto desnível da cabine; ainda que, na verdade, a infalível gravidade puxasse o pêndulo (a cruz) para a retidão, isto tendo não outro poder do que tornar óbvio o falso, distorcido ângulo que se apresentava a situação. A corrente alarma e assusta Jonas; segurando-­‐se no volante ele roda seus atormentados olhos pelo interior do veículo, mas este até aqui imune desertor da lei não encontra refúgio algum para seu olhar sobressaltado. Mas essa contradição no crucifixo o domina -­‐ mais e mais. O piso, o capô, o teto, todos estão tortos. 'Oh! Igual minha consciência, torta!' ele lamenta sem querer, 'a cruz está sempre em pé; mas as câmaras de ar de meu peito estão completamente descompensadas!' Alguns buscariam remédio em uma noite de forte bebedeira, mas ao caírem na cama, lá estaria a consciência como um pernilongo no escuro, que some e de repente aparece em seu ouvido, você se dá um tapa na cara, mas quanto mais se agita, mais acorda; se alguém que neste miserável suplício ainda insiste em desviar-­‐se do vertiginoso erro inicial, ele será tentado a rezar que Deus o aniquile -­‐ mas só até a ressaca terminar; quando ele sentir a última migalha de lamentações se esvair, ao invés de alívio, uma profunda paralisia o 38 atingirá, como no homem que sangra lentamente até morrer, mas é sua consciência a vítima e não há nada que faça esta sangria estancar, então, depois de doloridas lutas livres em seu assento de motorista, o prodígio de trabalhosas misérias tragou o Capitão para a profundidade de seu inconsciente. 'E agora a hora do choque chegou; a viatura perde o controle de sua direção; naquelas desertas quebradas ia o mal aplaudido camburão em busca do final da zona leste, agora perdendo o contato com o solo, capotando no meio da rua. Esta barca, meus amigos, era somente a mais recente das registradas em flagrante contravenção! O contrabando era o Capitão. Mas a própria cidade se rebela; não tolerará este fardo amaldiçoado. Uma sinistra tempestade surge, a viatura completamente destruída. Agora o verdadeiro sobrevivente pede que quem esteja vivo e escutando faça um movimento; tudo o que havia de objetos estava espalhado entre os estilhaços; o vento estava berrando e os homens gritando, e cada trovão era uma palmatória batida em suas mãos impotentes. Em meio a este tumulto colérico, o Capitão cai em seu sono hediondo. Ele não vê o céu negro e o céu irado, não sente o tato em suas extremidades e pouco ele escuta ou verifica sobre a distante pressa do poderoso contraventor cujo destino ele negociava, quem naquele exato instante está com sua boca aberta pescando os manés que sobram por trás de onde ele passa. Ai, cidadãos, Jonas estava jogado ao solo encostado ao chão através da janela lateral, mas preso pelo cinto de segurança como estava, ele estava rapidamente entregando-­‐se ao torpor. Mas o apavorado soldado vem até ele e guincha em sua orelha moribunda, 'Ó seu perverso, ô seu dorminhoco imundo! Levante-­‐se agora!’ Arrancado de sua letargia por este direto imperativo, o Capitão busca pôr seus pés em algum chão e tropeçando até a janela da frente, ele posiciona a cabeça para fora do carro, tendo a chance de dar aquela avaliada na cena de destruição. Mas neste momento ele é lambido pela língua de uma pantera de fogo saindo do motor. Onda após onda de calor ele se contorce para fora da barca e não encontrando a saída ele berra do Oyapok ao Chuí, enquanto seus companheiros fazem o possível para não serem assados vivos. Apesar de tudo, uma vez que a branquíssima lua mostrasse sua escandalizada face nos profundos sulcos da escuridão que o encobria, um lívido Jonas enxerga a chama de sua alma apontando para o zênite, mas logo batendo pra baixo novamente em direção à profunda tormenta. Terrores sobre terrores trotam gritando por sua alma. Em seus mínimos gestos de adulação, agora tudo evidencia que ele é um fugitivo de Deus. Os soldados colam nele; segundo a segundo a suspeita se transforma em certeza e por fim, para pôr à prova a verdade, para submeter à matéria ao escrutínio terreno e celestial, eles partem para cima do Capitão para extrair a causa do desastre que os abateu. O alvo é Jonas; uma vez isso definido, como eles se aglomeram furiosamente com sua inquisição. ‘Qual é a sua, safado? De que buraco você saiu? Qual é sua facção? Quem é o homem que você estava comprando?’ Mas atentem, meus caros cidadãos, ao comportamento do pobre Capitão. Os ávidos oficiais apenas perguntam quem ele era, de onde vem, para onde vai; no entanto, eles não somente receberão uma resposta para estas questões, mas uma outra ainda para uma pergunta que ninguém fez, mas igualmente uma resposta para algo que eles jamais solicitaram, pois a inesperada confissão foi arrancada do Capitão pela mão de Deus que pesava sobre seus ombros. ‘Eu sou um herege!’, ele lamenta – e então – ‘eu temo o Senhor o Deus do Paraíso que criou os mares e os desertos!’ Temente a Deus, Jonas? Ai ai, bem 39 melhor teria sido teme-­‐lo, o Senhor Deus, ANTES! Indo reto toda a vida, ele agora vai em frente seguindo para a confissão total; donde que os soldados tornaram-­‐
se mais e mais estupefatos, posto que compelidos pela pena. Pois quando o Capitão, não ainda suplicando a Deus por perdão, uma vez que ele mesmo conhecia bem a ausência de visibilidade em seus desertos, -­‐ quando o náufrago Jonas lamenta a eles e pede que o atirem no buraco para morrer, pois ele sabia que era por SUA responsabilidade que o violento acidente os acometera; eles piedosamente se afastam dele e buscam meios de evitar a explosão do veículo. Mas em vão; o indignado temporal grita mais alto; então, com uma mão erguida em agradecimento pelo providencial aguaceiro, com a outra mantinham precipitadamente o Capitão sob seu domínio. Agora observem o Capitão ser erguido como uma âncora e ser arremessado no mar, tal qual Jonas; e eis que quando ele aterrissa no fundo do matagal a chuva ameniza o fogo quase que completamente e os soldados podem descansar, deixando pouco a ser feito pela propriedade estatal destruída; dado que instantaneamente uma sebosa calmaria flutuou desde o leste e o ar se tornou imóvel, então se conclua que ambos -­‐ Jonas e Capitão -­‐ carregavam consigo o vendaval e seu sacrifício deixou suaves águas para trás. Ao rolar ladeira abaixo ele desce ao coração profundo de comover-­‐se diante de quem o quer morto; mas aqueles eram seus amigos, seus companheiros e assim, não foi tão difícil para o Capitão amá-­‐los no papel de antagonistas – não eram seu verdadeiro nêmeses. O Capitão apenas subitamente desperta para os braços que o aguardavam, aquele rapaz descalço, sujo, magro e consciente, que veio com seus braços não para enforcá-­‐lo num gesto de oportuna e inesperada vingança impessoal -­‐ oh, muito mais complexo foi encontrar-­‐se nos braços deste jovem marginal que o carregava em alta velocidade para o hospital público mais próximo; e o rapaz disposto a matar e morrer o leva entre suas costelas, úmeros, rádios, ulnas e mãos, seus ossos chocando-­‐se contra os ossos de seu improvável e arfante salvador, liberto na prisão de seus braços descomunalmente fortes. Neste momento Jonas reza ao Senhor para estar fora da boca do Cachalote. Mas atentem à suas preces e aprendam uma pesada lição. Pecador que fosse, Jonas não chora e reclama por uma intervenção direta em sua crise. Ele sente que seu detestável castigo é justo. Logo, ele abandona todos os acontecimentos e suas consequências à vontade de Deus, contentando-­‐se com o fato de apesar de todas as suas dores e infelicidades ele ainda estar com a mente voltada para Seu templo sagrado. E aqui, cidadãos, está o verdadeiro arrependimento; não se esfalfando por perdão, mas agradecido pela punição. O quanto foi agradável para Deus ver esta conduta em Jonas, podemos mensurar pela pronta entrega Dele enviada pelo mar em forma de uma baleia. Eu não coloco aqui diante de vocês o caso do Capitão para que o copiem em seu pecado, mas sim o trago à tona como um modelo para o arrependimento. Não pequem; mas ao fazê-­‐lo, apressem-­‐se em arrepender-­‐se como o fez Jonas. ’ Enquanto Pai Maçã dizia estas palavras, o alarido da ruidosa, imponente tempestade do lado de fora parecia acrescentar novo poder ao pregador, quem, tendo a honra de descrever a tempestade oceânica de Jonas, era ele mesmo sacudido por uma chuvarada. Seu peito encavernado ia e vinha como uma cortina de pedra; seus braços articulados pareciam furar o bloqueio de cada um 40 dos átomos que se oporiam à suas investidas; de sua testa morena ressoavam trovões e de seus olhos saltava a luz de um relâmpago, fazendo com que todos os seus simples ouvintes olhassem para ele com um medo fugidio que lhes era estranho. Ali já se anunciava uma calmaria em seu olhar, enquanto ele silenciosamente virava as páginas do Livro uma vez mais; por fim, parado sem sombra de movimentos, de olhos bem fechados, pelo momento ele parecia comungar com Deus e consigo. Mas outra vez ele se inclina em direção às pessoas e curvando sua cabeça, com um aspecto da mais funda ainda que humana humildade, ele fala estas palavras: ‘Cidadãos, Deus deitou apenas uma de suas mãos sobre seus ombros; mas a mim ele pressiona com ambas. Eu interpreto a vocês sob a turva luminosidade que ensina a mim a mesma lição que a todos os pecadores leciona Jonas; portanto ela é para vocês e é ainda mais lição para mim, pois eu sou um pecador maior do que vocês o são. E com que satisfação eu desceria destes trilhos, desta prancha, desta onda, para sentar-­‐me nos bancos onde sentam vocês, para escutar como vocês escutam, enquanto outro alguém leria a MIM aquela outra e muito mais medonha lição que Jonas ensina a MIM, enquanto piloto do carro do Deus vivente. Eleito para ser ungido também para um papel de piloto, profeta, ou revelador de coisas verdadeiras, indicado pelo Senhor para fazer ouvir verdades indesejadas nas orelhas de amaldiçoadas metrópoles, o Capitão, horrorizado pela hostilidade provocada pelas ações às quais fora compelido por Ele, fugiu de sua missão e procurou escapar de seus deveres divinos pegando uma barca para os confins da Zona Leste. Mas Deus está em toda parte; Jonas jamais chegou até o porto de Társis. Como vimos, Deus veio até ele com a baleia e o abocanhou goela abaixo para os ácidos golfos de perdição que em rápidos chicoteados rasgou as águas em direção ao oceano sem luz, onde as profundezas o sugaram para debaixo de uma pressão de mais de mil toneladas, com restos de comida e algas enrolando em sua cabeça e toda aquela asquerosa realidade marinha oprimindo suas mundanas pretensões. Ainda assim escorraçado para além das vistas de qualquer opinião pública – ‘direto das tripas do inferno’ -­‐ quando a baleia chega a encostar-­‐se às costelas rochosas do leito marinho, mesmo então Deus escuta o engolfado, arrependido profeta quando este suplica. Ele então fala através do peixe; e do frio destroçador da escuridão das zonas abissais a baleia emerge em direção ao aprazível e morno solo, onde se encontram todos os deleites, do ar respirável ao calor do Sol, somente para ‘vomitá-­‐lo na terra seca’; outra vez o verbo inaudível do Senhor se fez presente; Jonas, ainda que espancado e ferido – seus tímpanos estourados escorriam como água do mar de uma concha, ressonando sempre o murmúrio fractal do oceano – Jonas aceita o Todo-­‐
Poderoso compromisso. E qual era este comando, cidadãos? Pregar a Verdade diante do rosto repulsivo da Falsidade! Era isso! ‘Ei-­‐la, cidadãos, aquela outra lição que eu havia mencionado; pobre do condutor da voz de Deus que dela vier a desgovernar-­‐se. Perdido estará aquele que cede aos encantos terrenos em detrimento das tarefas do Evangelho! Ai de 41 quem tenta misturar água e petróleo, após Deus ter passado milhões de anos separando-­‐os. Ai de quem cuida mais de sua própria reputação do que de sua bondade! Miserável aquele que corteja os desonrados! Infeliz aquele que não distingue a essencial sinceridade nem ao menos diante da necessidade de redimir-­‐se sendo falso perante o falso! Sim, sim, como nos fez ver São Paulo, lastimável aquele que prega aos outros sendo ele mesmo um prego a ser batido contra o corpo de Jesus Cristo!’ O orador tropeça e cai para longe de si mesmo por um momento; então erguendo seu rosto para o público outra vez, demonstrou uma enorme satisfação em seus olhos, enquanto gritava com um celestial entusiasmo, -­‐ ‘Mas ó, cidadãos! Na pista interna de cada lamúria existe um certeiro encanto; e quanto mais alto o cume de tais delícias, mais profundo o poço de tal depressão. Não seriam os arranha-­‐céus mais altos que suas fundações? O contentamento é para aqueles – um alto, altíssimo e interno prazer – aqueles que contrariam as divindades orgulhosas e poderosas desta Terra, para fazer prevalecer seu caráter inexorável. Deleite é para aqueles que com seus braços fortes ainda se seguram à beira do abismo traiçoeiro que o mundo tratará de abrir debaixo dele. Bem-­‐estar é para ele, que não oferece esmolas à verdade, que mata, incinera e destrói todo o pecado mesmo que para encurralá-­‐los tenha que arremeter-­‐se violentamente contra a barra das togas de Senadores e Juízes. Êxtase, -­‐ sublime êxtase existe para quem não reconhece contrato ou senhorio que não provenha do Senhor seu Deus, sendo patriota somente da nação celestial. A tranquilidade está reservada para aqueles a quem os mares turbulentos das multidões citadinas não são capazes de desviar da orientação que lhes passa o GPS do Espírito Atemporal. Eterno gozo e delícias são para aqueles que ao deitar-­‐se para seu último suspiro podem dizer – Ó Pai! – que reconheço seguramente por seu cajado apontado para mim – se mortal ou imortal minha alma isto é convosco, pois aqui quem morre é apenas o eu. Lutei para ser Teu, mais do que deste planeta, ou de mim mesmo. Contudo isto é nada: deixo a eternidade para Ti; para que haveria o homem ter que sobreviver à expectativa de vida de seu Deus?’ Mais não disse, mas lentamente acenando com uma benção, cobriu a face com as mãos enquanto ajoelhava e assim permaneceu, até que todo o povo tivesse partido e ele fosse deixado sozinho no local. 42 10 ≠ AMIZADE ACIMA DE TUDO ≠ Volto ao “A Jato Inn”, vindo do Ministério, para encontrar Kwee Kweg deveras solitário; tendo ele abandonado o recinto em algum momento antes da benção final. Ele estava sentado sobre seu saco em frente ao aquecedor, com seus pés tostando nos raios alaranjados emitidos pela resistência de metal, com uma das mãos segurando próximo ao rosto aquele seu pequeno totem de madeira; escrutinando com afinco sua face, usando um canivete para delicadamente aparar o nariz do objeto, enquanto murmurava para si mesmo com grande concentração. Porém, interrompido à revelia por mim, ele coloca a carranquinha de lado; num salto, dirige-­‐se ao baú e pega um grosso livro ali, põe-­‐no sobre o colo e de olhos fechados, começa a folhear as páginas como se as contasse com deliberada regularidade; a cada quinze segundos – diverti-­‐me em contar este tempo – parava subitamente, olhava à sua volta de forma descompromissada, apontava o dedo indicador a um local da página, lia o trecho apontado e começava a dar vazão à entusiasmadas manifestações guturais de espanto e contentamento. Era um dicionário. Ele fechava o volume num estampido e começava a dedilhar o papel pelos próximos quinze segundos, sendo que graças à vasta quantidade de páginas estando disponíveis para seu processo aleatório, ele exprimia um contentamento específico durante esta busca intuitiva. Com extremo interesse eu sentei-­‐me para observá-­‐lo. Por alheia que fosse sua estética à minha cultura e horrivelmente desfigurada sua cara – ao menos à minha pobre primeira impressão – sua beleza certamente se manifestava, simultaneamente à sua arte desagradável. A alma não se deixa esconder. Através de suas alienígenas escaras, pensei ter visto os traços de um coração simplesmente honesto; em seus largos, profundos olhos, em sua íris tentadoramente preta e bem delimitada, eu pude ver todos os sinais de um espírito apto a esconjurar dez mil demônios. Além disso tudo, havia uma certa majestade no comportamento deste estrangeiro que nem mesmo sua bruta aparência seria capaz de mutilar. Tive a visão de um homem que nunca se rebaixou nem nunca pegou dinheiro emprestado. Fosse o caso, também, de o fato dele ter raspado os cabelos acima de sua testa e têmporas criar o efeito de destacar sua silhueta de forma mais livre e luminosa, aparentando ser ainda mais expansiva do que poderia ter sido de outra forma, não me arrisco a decidir; mas com certeza sua cabeça era um excelente modelo vivo para um escultor. Pode parecer ridículo, mas eu imaginei o próprio Michelangelo preparando-­‐se para talhar no mármore um busto que teria entrado para a história. Ele tinha aquela mesma ameaçadora contração do cenho que o Davi, com aquela massa de músculos projetando-­‐se por cima das sobrancelhas, como um veio de rochas que aflora do chão por entre arbustos em um deserto. Kwee Kweg era um Davi de Michelangelo ao mesmo tempo ancestral e contemporâneo. Enquanto eu estava assim, tão descaradamente escaneando-­‐o, entretanto meio que fingindo estar olhando a tempestade lá fora através da pequena abertura na parede, ele jamais abalou-­‐se com minha presença, nem constrangeu-­‐
se com sequer um de meus olhares; ainda, parecia integralmente ocupado em 43 seu jogo de encontrar palavras e significados em seu maravilhoso dicionário. Tendo em mente o quão socialmente estivemos dormindo juntos na noite anterior, especialmente considerando o afetuoso braço que encontrei lançado sobre mim ao acordar pela manhã, julguei muito estranha esta indiferença de sua parte. Mas guerreiros são seres estranhos; tem hora que você não sabe exatamente como lidar com eles. Inicialmente, são intimidadores; sua calma economia de manifestações parece uma sabedoria aprendida com a Morte. Eu havia notado que Kwee Kweg jamais se abriu, ou ao menos muito pouco, com os outros soldados no cortiço. Ele não criou qualquer tipo de brecha; aparentava ter zero desejos de aumentar seu círculo de conhecidos. Tudo isso me chocou como algo demasiadamente misógino; no entanto, ao repensá-­‐lo, tinha algo de quase sublime na coisa toda. Estava ali um homem a oito mil quilômetros de sua terra natal, tendo atravessado o Oceano Atlântico, portanto – vindo por ar ou por mar, sem que houvesse outro caminho – jogado entre pessoas que o estranhavam tanto quanto se ele tivesse vindo diretamente de Plutão; e no entanto ele parecia estar completamente de boa; preservando uma extrema serenidade; satisfeito com sua própria companhia; sempre fiel a si mesmo. Com certeza esta era uma boa dose de fina filosofia; ainda que sem dúvida alguma sua existência pudesse sobreviver incólume a um troço desses. Mas, quem sabe, para sermos verdadeiros filósofos, nós mortais devêssemos nos manter inconscientes de tais títulos ou carreiras. Tão logo eu ouço que tal ou tal sujeito trata a si mesmo por filósofo, eu concluo que, assim como aquela tia engasgada no restaurante, o figura deve “ter engolido alguma coisa que ficou entalada em sua garganta”. Enquanto isso, sentava eu ali naquele quarto isolado; o aquecedor já desligando sozinho, naquele estágio em que após ter cumprido seu papel de esquentar o ambiente, o termostato parece lembra-­‐se apenas de funcionar para cumprir a função de iluminar a escuridão com uma fraca luz laranja; as sombras da noite e os fantasmas agora reunindo-­‐se em torno da precária laje, espreitando silenciosamente esta dupla solitária; a tempestade crescendo em ondas, solene; eis que começo a sensibilizar-­‐me por desconhecidos sentimentos. Fui acometido por um derretimento que aconteceu dentro de mim. Deixei de apontar meu coração estilhaçado e meu punho ameaçador para este mundo selvagem. Este sedativo estrangeiro os havia redimido. Sentado ali, sua própria indiferença tratando se uma natureza na qual não floresciam hipocrisias civilizatórias nem puras artimanhas. Selvagem, ele? Essa resposta era o que eu gostaria de ver, em cada um que o visse; pois eu comecei a sentir-­‐me misteriosamente tragado em sua direção. E estas mesmas coisas que repeliriam a maioria dos outros, foram estes os ímãs que começaram a me atrair até sua realidade. Eu tentarei este amigo pagão, pensei, não disse, uma vez que a bondade Cristã mostrou-­‐se a mim como superficial cortesia. Puxei meu corpo para perto dele, cuidando de proporcionar-­‐lhe gestos sutis e indicações de simpatia, fazendo meu melhor para estabelecer conversa com ele durante esta ação. No começo ele pouco se ligou nestes avanços; mas imediatamente, uma vez que fiz menção às hospitalidades da noite passada, ele dispôs-­‐se a perguntar-­‐me se mais uma vez seríamos companheiros de cama. Eu disse a ele, “sim”; diante do que ele pareceu agradecido, talvez até um pouco... elogiado. Então nos debruçamos juntos sobre o dicionário e eu me aventurei a 44 testar seu método de pesquisa, recebendo do caos mensagens surpreendentemente pessoais sobre o sentido dos conceitos registrados sob a ponta de meus dedos. Abri uma página qualquer; o resultado desta impensada decisão não poderia ter sido melhor. A primeira palavra que apontei e li foi “merda”; Kwee Kweg não gostou, tomou-­‐me o livro e sem olhar para a página, com certo asco (não das fezes, mas do mau augúrio), sem virá-­‐la no entanto, escolheu seu verbete: “meritíssimo”. Rimos e ele quebrou seu resguardo, comentando: “Nunca falha”. O vinagre começou a ceder. Passou-­‐me o tomo; “mercenário”, saiu; agora ele, “mercúrio”. “Mergulhar”. “Meridiano”. “Meretriz”. “Meritocracia”. “Mercê”. “Mércia” – um nome? Não: “negócio, trato oculto; comércio clandestino. 2. Namoro às escondidas". Deste modo eu rapidamente conquistei seu interesse sobre minha pessoa; a partir dali desembestamos da melhor forma que pudemos a discorrer sobre as várias outras vistas a serem vistas nesta famosa metrópole. Logo me arrisquei a propor uma tragada socializante; ele, produzindo sua paranga e seu cachimbo, discreta e rapidamente preparou tudo e já me ofereceu o pega. E ali nos sentamos trocando baforadas naquele velho cachimbo dele, mantendo a regularidade na passagem da bola entre nós. Se ainda restava algum gelo de indiferença dele para mim em seu peito estrangeiro, esta agradável, genial fumada que tivemos, rapidamente o fritou, fazendo-­‐nos chapas um do outro. Ele pareceu levar-­‐me de forma tão natural e desencanada quanto eu a ele; e quando nossa sessão de fumaça estava encerrada, ele bravamente pressionou sua testa contra a minha, pinçou-­‐me com força em volta do tronco e disse que dali em diante éramos parceiros; querendo dizer, na gíria local e talvez também na Angolana, que nossa amizade estava acima de tudo; que ele com prazer daria sua vida por mim, se fosse este o caso. Em um paulistano, esta súbita chama de amizade com certeza soaria como demasiadamente prematura, algo do que se desconfiar, e muito; mas para este humilde guerreiro essas velhas convenções não se aplicavam. Depois da janta, depois de outro bate papo e sessão social de fumaça, fomos para nosso quarto juntos. Ele me deu sua cabeça embalsamada de presente; sacou seu enorme saco de maconha, cavando algo no fundo deste flagrante, para sacar um rolinho com algo como trinta Reais em dólares; espalhou essa módica quantia na cama e mecanicamente fazendo a aritmética das notas que não se dividiam exatamente aos pares, dividiu a soma nas partes o mais idênticas possíveis e propôs-­‐me com um gesto que escolhesse uma delas – optei pela um pouco menor, claro. Pensei em retribuir, colocando as mãos no bolso para fazer o mesmo; mas ele sorriu e segurou minha mão com ternura. Imediatamente desisti de insistir. Ele então seguiu para suas rezas noturnas, pegou seu ídolo e removeu novamente o quadro de madeira da parede. Por certos sinais e sintomas, pensei que ele estava ansioso para que eu me juntasse a ele; mas ciente do mistério do que estava por vir, deliberei por um momento se, em caso dele me convidar abertamente, eu seria capaz de estar à sua altura ou se falharia. O que pensaria de mim, de nós, o Pai Maçã? Criado e cultivado na infalível doutrina evangélica? Como poderíamos, após ter comungado em nome de Jesus 45 Cristo, comungar na idolatria à esta desconhecida entidade de madeira? Mas o que é idolatria?, disse, pensei. Seria você capaz de supor, Ismail, que o magnânimo Deus do Paraíso e da Terra – que reina até mesmo sobre a totalidade dos incréus – teria alguma chance de sentir-­‐se enciumado de um insignificante pedaço de madeira escura? Impossível! Mas afinal, o que é a idolatria? – fazer a vontade de Deus – ISSO é idolatrar. E qual é a vontade de Deus? – que se faça aos meus irmãos o que se gostaria que seus irmãos fizessem por você – ESTA é a vontade de Deus. Agora, Kwee Kweg é meu irmão. E o que eu desejo que Kwee Kweg faça por mim? Ora, unir-­‐se a mim em minha particular forma Evangélica de devoção. Consequentemente, devo eu então unir-­‐me à ele em seus rituais; conclua-­‐se deste modo que eu deva me tornar um idólatra. Portanto eu busquei as lascas de madeira; ajudei-­‐o a preparar o inocente pequeno totem; ofereci a ele biscoitos queimados com Kwee Kweg; fiz meus salamaleques diante dele duas ou três vezes; beijei seu nariz; e feito tudo isso, nos despimos e fomos para a cama, em paz com nossas consciências e com o mundo inteiro. Mas não adormecemos sem antes bater um bom papo. Como se dá esse fenômeno eu não saberia explicar; mas não há lugar como uma cama para troca de confidências entre amigos. Marido e mulher, dizem, ali destapam o fundo do poço de suas almas uns aos outros; e alguns velhos casais frequentemente deitam-­‐se a falar sobre os velhos temos até quase o amanhecer. Deste modo, então, na lua de mel de nossos corações, nos deitamos eu e Kwee Kweg – um aconchegante, amável par. 46 11 ≠ PIJAMAS ≠ Estivemos deitados nesta cama generosa, papeando e cochilando em pequenos intervalos, de vez em quando Kwee Kweg afetuosamente jogando suas pernas escarificadas sobre as minhas, e retirando-­‐as; soubemos naturalmente sentirmo-­‐nos sociáveis, livres , de boa; por fim, pela razão de nossas confabulações, o que em nós restava de bocejos foi-­‐se embora e tivemos vontade de despertar novamente, ainda que o alvorecer aguardasse em algum lugar no futuro próximo. Sim, acordamos deveras; tanto que nossos contatos físicos começaram a se tornar despropositados, então pouco a pouco nos pusemos sentados, os trajes civis aguardando diante de nossos quatro joelhos enfileirados para fora da ilha, nossos narizes sonolentos apontando para as coxas, os olhos como que aguardando uma torrada pular da torradeira. Sentíamo-­‐nos bem e remediados, mais ainda sabendo que porta afora o frio estava pior; de fato, fora da roupa de cama já não estava zero a zero, uma vez que o aquecedor parecia ter quebrado durante a noite. Quanto melhor, disse, pensei, pois para verdadeiramente apreciar o calor corporal, algum pé seu precisa estar para fora gelando, pois não há qualidade neste mundo que não se defina como o que é senão por mero contraste. Nada existe em si mesmo. Se você se gaba de estar bem em qualquer lugar, e tem estado assim durante um bom tempo, bem, não vejo como você ainda possa estar apreciando o que venha a ser o conforto. Mas se, assim como eu e Kwee Kweg nesta cama, você sentir suas orelhas geladas ou sua careca sentir um friozinho, é assim que seu sistema nervoso entende que todo o resto do corpo está em excelentes condições de temperatura. Por isso sou contra turbinar um quarto com um ar condicionado perfeito, algo que vejo como um luxuoso incômodo para os ricos. Porque o grande barato desta experiência é não ter nada que não os tecidos entre você com sua moleza e a temperatura exterior. Aí você se refugia como uma brasa perene no interior de um mineral. Nós estivemos sentados nesta postura de pensadores por algum tempo, quando por tudo de uma vez pensei que abriria os olhos; porque entre colchões e lajes, seja dia ou noite e seja acordado ou dormindo, tenho um modo meu de fazer com que as pálpebras e os olhos permaneçam fechados, para melhor concentrar-­‐me no que há de animal em se estar na cama. Será que outros homens conseguem apreciar suas próprias identidades senão de olhos plenamente fechados? Como se a ausência de estímulos externos pupila adentro fosse afinal o caminho para atingirmos o elementar de nossas essências, sendo a luz, deste modo, mais propensa à lama, ao pau e às pedras no meio do caminho. No momento de abrir os olhos, de sair de minha confortável e por mim mesmo construída escuridão para entrar na bruta, imposta exterior influência de uma desiluminada meia-­‐noite e meia, experimentei uma desagradável náusea. Nem mesmo hesitei diante da insinuação de Kwee Kweg em acender alguma luz uma vez que estávamos evidentemente acordados; além disso, ele quis outra vez encher seu cachimbo e silenciosamente tragar a fumaça ilegal. Falemos a verdade, sobre eu ter me oposto veementemente ao fumo no quarto diante do dono, veja nossos rígidos preceitos se tornarem elásticos uma vez expostos ao poder amolecedor do amor. Pois agora nada havia naquele momento que 47 superasse minha satisfação em ter Kwee Kweg fumando ao meu lado, não pelo efeito sobre meu enjoo, mas porque ele parecia mesmo estar repleto de um contentamento caseiro no instante. Minha cena de preocupação perante o Pedro Esquife -­‐ meu temor travestido de “prevenção a incêndios começados em meu quarto” -­‐ pareceu-­‐me grotesca. Estava eu vivo para o condensado, confidencial conforto existencial de compartilhar os lençóis e o cachimbo com um real amigo. Com nossos panos surrados jogados sobre os ombros, nós passamos um ao outro o trabalhado artefato, até que lentamente cresceu sobre nós um azulado nevoeiro, iluminado por um isqueiro de fluido que foi aceso. Se foram os borrifos da maresia que arrolaram a mente do guerreiro para cenas muito, muito distantes, como poderia eu saber? Mas agora ele falava de Angola; dei-­‐me por imerecido e, sem súplicas, incentivei-­‐o a prosseguir. Ele concordou, feliz. Uma vez que neste dia eu ainda não havia me familiarizado com as retorcidas construções frasais de Kwee Kweg, permita-­‐me repassar o que trago comigo, amadurecido sim depois do acontecido, mas que se provará apenas mero esqueleto da história inteira; é isto o que posso oferecer. 48 12 ≠ BIOGRÁFICO ≠ Kwee Kweg era nativo de Korovoro, uma aldeia no interior do sudoeste Angolano. Não vai encontrá-­‐la em nenhum mapa; lugares verdadeiros jamais são registrados. Quando ainda era um guerreiro "fogo-­‐novo" no louco -­‐ porém militarizado -­‐ conflito que invadia suas esparsas matas nativas, acompanhado por um assustado rebanho de ovinos, como se fora ele mesmo um mero fruto verde da natureza; desde então, na alma ambiciosa de Kwee Kweg, corria o intenso desejo de ver algo mais deste planeta do que um estrangeiro ou outro. Seu pai era um homem respeitado em seu "reino"; um rei? Seu tio, um pajé? Do lado de sua mãe, tias casadas com poderosos senhores da guerra. Sua ascendência era primorosa -­‐ a coisa Real; ainda que viciada, temo, na propensão à exploração que ele deve ter nutrido em sua desorientada juventude. Um desgarrado avião da Força Aérea Brasileira visita o vale de seu pai e Kwee Kweg busca uma passagem para o além-­‐mar. Mas o avião, já lotado de expedicionários da FAB, não fez jus à vossa alteza; nem toda a influência local do Rei do Pedaço prevaleceria sobre a carga máxima da aeronave. Mas Kwee Kweg havia feito um voto. Sozinho em sua canoa, ele remou para um distrito vizinho, onde sabia que o avião teria que abastecer quando houvesse retornado do seu ponto mais recôndito de seu plano de voo. Para um lado, havia o deserto da Namíbia (em frente à cidade de São Paulo); para o outro, as florestas úmidas e densas em Angola e Congo. Deixou a canoa seguir o rio, flutuando com sua proa em direção ao mar, mas manteve o remo como uma bandeira em suas mãos; enquanto a canoa se perdia, avistou o surrado cargueiro C-­‐82; localizou a pista pelo alinhamento da montanha, ao longe; viu, incrédulo, o posto solitário já preparado para entregar o combustível; benzeu-­‐se pelo que considerou um tremendo bom presságio e começou a correr para chegar à base antes que o avião completasse a volta para o pouso; gritou para que os homens do posto o avistassem; atirando-­‐se em direção ao miserável aeroporto, ergueu o remo no ar e anunciou-­‐se, e jurou que ninguém sairia vivo dali se ele não embarcasse naquela aeronave. Em vão o capitão ameaçou-­‐o com um fuzil; o outro vindo para cima dele com um par de algemas abertas; Kwee Kweg sentia-­‐se príncipe e não se abalou. Chocado pela desesperada impertinência do guerreiro diante da mira da 5.56 x 45 mm, diante do irracional propósito de invadir o avião militar brasileiro, o pobre miliciano arrebatou-­‐se, sugestionado pela totalidade da mensagem que a cena lhe transmitiu. Mas este arfante líder local jamais apresentou-­‐se às forças armadas estrangeiras enquanto comandante desta unidade; apenas infiltrou-­‐se no cargueiro, valendo-­‐se da complacência de seus compatriotas, durante o bem programado abastecimento. Esperou o momento certo e anunciou-­‐se à tripulação, sendo conduzido à cabine do comandante. Eles o reconheceram, é claro, e ainda que contra prováveis inconveniências, diante da convicta altivez do clandestino consentiram em discutir os meios de abrigá-­‐lo como refugiado (ao invés de um desertor). 49 Mas como um bom judeu que decidiu ativamente usar sua providencial porta dos fundos, Kwee Kweg não sentiu-­‐se de modo algum rebaixado pela condição de exilado, uma vez que sob seu ponto de vista, ele mesmo havia sub-­‐
repticiamente instruído seus anfitriões sobre a conduta a ser seguida. Porque no fundo -­‐ assim ele me disse -­‐ estava motivado por um intenso desejo de descobrir como se sairia ao lutar em um exército que em nada se assemelhava ao seu, de vivenciar a arte de estar no poder mas não estar em luta aberta; mais ainda, de governar militarmente sem que a guerra civil se instaurasse. Mas que nada! As práticas dos soldados brasileiros logo o convenceram que estes miseráveis em nada eram responsáveis pela manutenção de mais este desdito Estado; tão subjugados às "forças ocultas" da guerra fria quanto estava seu "reino", aparentemente submisso às sujeições da tripartite sublevação Angolana pós-­‐
independência. Tendo pousado finalmente em Brasília; analisando o que viu os soldados fazerem; vendo como gastavam seus parcos cruzeiros nas cidades satélite, o pobre Kwee Kweg deu suas lições por encerradas. Pensou ele, digo, é um mundo dominado em todos os seus meridianos; morrerei expatriado de minhas ilusões. Assim, ainda que um legítimo guerreiro no coração, ele viu-­‐se vivendo entre civis no Brasil; comprando suas roupas e tentando adaptar-­‐se ao sotaque. Nada que minimizasse sua insólita presença, fossem quantos fossem os anos que o separassem de sua terra natal. Por indiretas, quis saber se ele havia cultivado intenções de voltar, buscando resgatar seu destino enquanto protagonista dos particulares conflitos de sua linhagem; uma vez que ele mesmo havia dado a entender que a guerra estava recrudescendo, que há tempos seu pai estava morto, que sua própria região já não mais se configurava como antes. Ele disse, pensei, que não, não ainda. Kwee Kweg sentia que a experiência no Brasil havia diluído sua aptidão para o jogo de forças Angolano, sob o risco de deturpar a reputação que o precedia, de desonrar a história de sua família naquelas terras do sul do país. Mas por idas e vindas, sim, ele voltaria -­‐ assim que entendesse ter cumprido algum batismo de fogo que intuía ser necessário na mitologia pessoal de um tal retorno. No entrementes, no entanto, ele havia se proposto trabalhar simplesmente, e jogar suas sementes nos quatro cantos desta nação continental. Eles o haviam feito um policial militar, e este arame farpado agora penetrava o cerne de sua personalidade. Eu perguntei então sobre seus propósitos imediatos, tateando seus movimentos futuros. Ele respondeu, alistar-­‐me em São Paulo, em uma de suas convocações recorrentes. Sobre isso eu lhe disse que meus planos eram os mesmos, e contei-­‐lhe que havia me informado sobre o posto 444, Zona Centro, sendo este o mais próximo local de alistamento da cidade; onde, dizia o folheto, o Centro de Apoio Social e Jurídico promovia a peça teatral “Um Novo Alvorecer”, visando dar ao aspirante uma visão do dia-­‐a-­‐dia do policial militar. Ele imediatamente concordou em me acompanhar no mesmo posto, para iniciarmos juntos o longo processo seletivo, para que eu o ajudasse com as provas de português, geografia, para que ele me inspirasse com sua conduta de chefe, 50 misturando nossas bagunças de modo a compartilharmos nossas desgraças; acrescentando minha mão esquerda à direita que já o cumprimentava, quis dizer que me entregava totalmente à fusão de nossos reservatórios existenciais. Por tudo isso celebrei; porque além do afeto que sentia então por Kwee Kweg, ele era ainda um atirador experiente, e sendo assim, não poderia falhar em ser-­‐me extremamente útil para alguém que, como eu, era totalmente ignorante dos mistérios da excelente pontaria; ainda que bem inteirado com as vicissitudes da polícia, tendo visto muita pixação pelas janelas da barca, fato era que até ali eu nunca havia puxado o gatilho em serviço. Tendo terminado sua história em sincronia com o esmaecimento da brasa de seu cachimbo, Kwee Kweg me abraçou, pressionou sua testa contra a minha, e apagando as luzes, nós rolamos para o lado um do outro e desse jeito e daquele, muito em breve estivemos dormindo. 51 13 ≠ LATA D´ÁGUA NA CABEÇA ≠ Acordamos cedo segunda-­‐feira. No Centro de São Paulo, soubemos encontrar o único barbeiro da região capaz de dar valor à uma cabeça encolhida; este Fígaro da antiga Boca do Lixo entusiasticamente incluiu em sua coleção de peças decorativas o indigente desafeto dos Jívaros. Eu diria que sim, ele ficou eufórico com o escambo -­‐ dois escalpos por uma múmia -­‐ mas penso que menos pela barganha do que pela satisfação de estar em sintonia conosco; de poder contribuir com nosso incerto alistamento, como se nossas carecas nos tornassem mais aptos a comunicar a vontade de trabalhar pela manutenção cívica -­‐ inclua-­‐
se aí a preservação da brancura cinzenta dos muros. Fígaro apenas passou-­‐me a máquina (altura: zero); e com poucos golpes de tesoura deu fim ao derradeiro drede de Kwee Kweg. Mais que óbvio para o barbeiro da Rua do Triunfo que o convidado ali era eu -­‐ sem dúvida o Angolano o mais provável provedor de um tão poderoso ídolo. Não, não foi apenas o Fígaro brazuca que admirou-­‐se com este estranho par: dos orgulhosos serviçais do senhorio de São Paulo à marginália, nenhum pedestre falhou em captar a singular amizade que aqui brotava; com o dedo de suas mentes eles acusavam esta maçã mordida -­‐ a repentina amizade entre Kwee Kweg e Ismail -­‐ estando especialmente impressionados os vizinhos do "A Jato Inn", influenciados pelas histórias de Pedro Esquife sobre o atirador de elite que eu agora fielmente acompanhava. Pegamos água para beber antes de ajustarmos nossa bagagem em um providencial carrinho de mão, emprestado, que incluía meu saco de carpete azul marinho, o insólito parangolé, machete e mala de lona Angolana; em direção ao pântano paulistano, ei-­‐nos! Um ônibus específico a buscar-­‐nos num ponto próximo da Avenida Tiradentes. Enquanto caminhávamos, quem nos viu, se interessou; nem tanto pela visão de Kwee Kweg marchando de mãos vazias ao meu lado, eu orgulhosamente fazendo as vezes de carregador, nem mesmo pelas escaras em rosto -­‐ estes cidadãos estão acostumados à um estilo independente, até mesmo improvável -­‐ quanto pela evidente intimidade, em plena luz do dia, entre um burro sem rabo encantado com si mesmo e um imponente e estrangeiro guerreiro; a todos demos de ombros, sem erguê-­‐los, alternando contato visual e distraído desdém, como se indo e vindo buscar uma água simbólica, em turnos; com este enigma proposto "a quem interessar possa", ao andar pelas ruas de São Paulo, Kwee Kweg e eu fazíamos expor no outro suas mínimas hesitações de caráter. Perguntei, finalmente, porquê ele mantinha uma aparência tão impactante e por quê trazia suas próprias armas, dado que a força militar à qual ele pretendia a se alistar previa-­‐se responsável por prover armamento e munição -­‐ e rejeitava formalmente o culto à estética pessoal. Isto posto em sólida substância, ainda que em indiretas palavras, ele me disse, pensei, 'ainda que você entenda o que eles ordenam, e que o justifiquem como verdade, antes de mobilizar meu corpo e meu machete, instrumentos testados e validados no sangue alheio, íntimos do coração que encontraram em cada morte, quero obrigá-­‐los a saber que a decisão é minha'. Seu português era ruidoso para mim, mas seu pensamento era cristalino: enquanto tido por escravo, um dia ofereceram-­‐lhe foices e martelos -­‐ enquanto potencial príncipe, apresentaram-­‐no a mísseis e minas explosivas. Portanto, enquanto homem livre, preferia impor suas marcas singulares como testemunho de sua precária autonomia -­‐ e assim 52 vestir um uniforme: sem sê-­‐lo; assim como preferia confiar em seu facão na luta pela sobrevivência a depender de quaisquer revólveres alugados. Passando as manoplas do carrinho de minhas mãos para as dele, Kwee Kweg me contou um causo engraçado sobre a primeira vez que foi escalado para jumento no Brasil. Os donos da empresa que o contratara como segurança, ao que parece, deram-­‐lhe uma lata para que ele buscasse água para si mesmo, num poço, para que passasse a noite no posto designado (a meio do caminho de longe de tudo). Essa tarefa em nada lhe caiu mal -­‐ ao contrário, buscar água para seu próprio acampamento pareceu-­‐lhe a mais natural, razoável das demandas -­‐ e então ele buscou na mala seu kefieh, lenço palestino que havia ganho de presente, fez uma complexa amarração do tecido como um turbante e, diante do poço e de mais ninguém, colocou a lata d´água na cabeça; caminhou, pensei, se não com pompa, com circunstância; equilíbrio, força, sabedoria; aquilo devia ser hábito para seus músculos e ossos. Ele carregou a água na cabeça por ao menos um quilômetro até a base. "Para quê", disse, não pensei, "Kwee Kweg, você deveria saber que isso é coisa de mulher, ou não? Eles te chamaram de Baiana? Riram muito?". Kwee Kweg não riu nem respondeu. Replicou-­‐me com outra história; o povo de Rovokovo, ao que parece, em suas festas de casamento usam como elemento estético a água de coco em uma larga e polida cabaça, como uma pia cerimonial; e esta pia é a peça central da cenografia que compõe o ritual em que os noivos recebem em festa os convidados. Eis que, no entre ato, uma grande corporação internacional por ocasião alcança o povoado de Rovokovo, e seu Presidente -­‐ Chefe, Diretor, que o seja, por onde se olhasse era um representante da companhia -­‐ este líder foi convidado para o festim de casamento da irmã de Kwee Kweg, que acabara de menstruar pela primeira vez. Bem; uma vez que todos os hóspedes estavam dispostos sob a cabana de bambu que guardava a noiva, este representante caminha por conta própria ao lugar de honra do casamento, em frente à cabaça, entre o alto pajé e sua majestade da montanha, o pai de Kwee Kweg. Mas isso não os desconcertou -­‐ pois este povo tem sua graça tanto quanto nós a temos -­‐ ainda que ele tenha me expressado até aqui que, diferente de nós, de minha terra, que olhamos em demasia para nossos pratos, eles, ao contrário, imitam os patos, erguendo os bicos para os céus intuindo o grande Doador de todos os banquetes -­‐ Graça, eu digo, que foi dita, o grande pajé abre os trabalhos do serviço da imemorial cerimônia de casamento; que consiste em dispor seus dedos na água enquanto é consagrado e assim tornando-­‐se apto a consagrar o líquido bento que circulará entre os presentes. Notando-­‐se à esquerda do pajé e embevecido pela cerimônia, pensando consigo mesmo -­‐ sou um executivo global -­‐ supondo ter, sim, precedência sobre o pai da noiva, sua majestade local, em seus domínios -­‐ o chefinho desenxabidamente lava suas mãos na cabaça; tomando-­‐a por um ordinário limpa-­‐dedos. 'E aí', disse Kwee Kweg, 'nós rimos muito'. 'Você vê diferença da nossa risada'. Por fim, estando paga a passagem do ônibus, a bagagem devidamente instalada no fundão e o carrinho entregue na mecânica do camarada do Pedro Esquife, nós nos vimos a caminho do alistamento. Sacolejando o bumba nos embalou até a Marginal Tietê, e deslizou pela direita, distante das margens do 53 rio, para a Zona Leste. De um lado, as montanhas de São Paulo viravam terraços de bairros inteiros, as janelas de seus edifícios brilhando como lagos no ar frio, esfumaçado da cidade. Enormes pilhas de entulho estavam acumuladas nas margens do Tietê, e lado-­‐a-­‐lado os carros e caminhões paravam no trânsito, fazendo seu barulho em silêncio, abrigados que estavam em suas cabines; enquanto das fachadas dos galpões vinha um som de serra e correia, misturado com pancadas e estampidos de grandes massas metálicas em colisão, todos os sons anunciando que novos pedidos estavam sendo entregues, ainda que na fase de preparação; que enquanto uma mais perigosa e longa viagem se encerrava, uma segunda estava a postos para a largada; tendo a segunda jornada se encerrado, só se falará na terceira, e assim vai, pra sempre e etc. Tal é o que não cessa, o sem fim, o "si, como no", exaltando-­‐nos a intolerabilidade de todo esforço humano. Ganhando velocidade em vias mais abertas, a reconfortante brisa da janela lustrou-­‐me a alma; os resíduos espalhados na espuma do assento à frente, como se um menino tivesse assoado ali o nariz. Como aquele ar fétido me inspirava! -­‐ Como desdenhei das ruas sem asfalto! -­‐ aqueles caminhos marcados no barro, com suas desoladas fendas na lama; e pus-­‐me a admirar a magnanimidade da apocalíptica megalópole, aquela que não concede registro. Diante da mesma fonte de introspecção, Kwee Kweg parecia ali também beber e acompanhar-­‐me em minha linha de pensamento. Suas narinas elegantes ergueram-­‐se espontaneamente; ele mostrou seu sorriso, seus dentes, sim, seus dentes limados. Mais, e mais, rodamos; porém, ainda que aceita de bom grado nossa apreciação, a decadência começou sua labuta de homenagear o tranco, o barranco e a ladeira abaixo; saltou e caiu como um frango assado, ajoelhada e curvada perante seu Sultão. Tombados pelas circunstâncias, fomos tombados; cada futuro policial daquele ônibus agora ciente do alarme inesperado; com a intuição e com os olhos produzimos uma dupla certeza de que estávamos colidindo, coincidentemente, com uma perseguição em andamento. De tal modo imersos na emergência estávamos eu e Kwee Kweg (enquanto constatávamos que do carro em fuga quatro homens corriam diante de uma pequena multidão de pedestres) que durante um tempo não notamos os descomprometidos olhares de nossos companheiros de alistamento que vinham conosco no coletivo -­‐ surpresos, talvez, com a obrigação de decidirem incluir-­‐se -­‐ ou não -­‐ em um dos lados daquele tiroteio; como se um homem da lei fardado fosse qualquer coisa mais merecedor de sua gratuita intervenção do que um indigente pé rapado pedindo ajuda. Pois havia ali naquele ônibus entre os candidatos à polícia, uns tão goiaba-­‐verde, tão piaba, que podiam ter nascido e crescido numa caverna no centro da Terra. Kwee Kweg pegou um deles em pleno pecado de medo, associando o sujeito demasiado estranho às circunstâncias evidentemente ruins; pronto, o atirador enxergou telescopicamente em seu colega mais um potencial traíra. Pensei, não disse, a hora do infeliz é agora. O ônibus já estava parado e brecado, mas ninguém desceu; jogando seu saco de viagem no chão de alumínio do ônibus, o cordial selvagem pegou pelos braços o covarde que o fitava e, com explícita destreza, levantou o banana no ar, desobstruindo sua passagem; e com um leve golpe de punho direito no tronco que segurava, Kwee Kweg arremessou o fraco em pé; seus pulmões chocando-­‐se com as costelas, sem dúvida, 54 humilhado, mas portando uma réstia precisa de dignidade. Kwee Kweg, ao constatar que a perseguição se definia, com os fugitivos encurralados em uma loja, entendeu que não era chegada a hora de plenamente engajar-­‐se no curso das ações; sacou o cachimbo do bolso, acendeu seu fumo ilegal no ônibus, e ainda teve a hombridade de me oferecer um trago. 'Capitão! Ô senhor!', gritou o verdugo enquanto fugia pela porta de trás, atrapalhando o oficial que contabilizava reféns no interior daquele comércio. 'Capitão, tenha cuidado ali dentro do ônibus também'. 'Aqui comigo imediatamente os ocupantes do coletivo, já!', choramingou o capitão, conformado com a farda mas inconformado com o fardo, obviamente esperando a reação de Kwee Kweg, 'Desce dessa porra todo mundo que tá de putaria, aqui, diante de mim'. Descemos e Kwee Kweg caminhou diretamente para o Capitão, comunicando-­‐se com ele, olhando, vendo, sendo visto, explicando (desdobrando) com sua imponente calma, seu carisma por quê não, fazendo o chorão oficial apenas desabafar 'Se vai matar alguém mata esses putos que estão aí dentro'. Como se soubesse, sem nunca tê-­‐lo visto, que este macaco era seu companheiro de galho. 'Que me diz, comandante?´, disse Kwee Kweg, enquanto docemente estendeu seu braço e pelos ombros me puxou para uma conversa intimista com o Capitão. 'Eu digo', disse, 'capitão este homem é um atirador de elite', e apontei para o interior do armazém. 'Mato eles não', sussurrou Kwee Kweg, 'Ah! Peixe pequeno; Kwee Kweg no mata nenê; tiro eles de lá'. 'Mato eu você, já, canibal, se tentar qualquer truque seu aqui; então 'abe' 'tu' olho". Mas o sucedido deu-­‐se logo então, que já era um pras duas quando o Capitão se deu conta; ele tinha é que ter aberto seus próprios olhos. Do mal iluminado interior da loja as balas estouraram vários vidros, e uma tremenda gritaria agora voando de lado a lado, desestabilizando a plateia que se espremia inteira atrás de cada poste daquele cruzamento. O pobre aspirante que Kwee Kweg havia posto de lado sangrava na cabeça; seu pânico era um positivo sinal vital; qualquer tentativa de cair pra dentro daquele fogo entrincheirado seria demente. As balas voavam da direita para a esquerda, e de volta outra vez, como um pêndulo, um sino, e a cada instante eu antecipei minha pele estourando e os ossos pipocando em lascas. Nada fizemos, e nada parecia possível de ser feito; aqueles mais próximos correram para longe, mas ficaram olhando, como se a boca da loja fosse a lápide violada de um túmulo. Kwee Kweg dobrou-­‐se habilmente em seus joelhos, e rastejando por baixo do rastro das balas, chegou até bem próximo da porta, assegurou-­‐se do que podia assegurar-­‐se, e então rolando pelo chão no nível da soleira, encostou numa gôndola de vassouras e por ali se esgueirou durante a seguinte saraivada; eu vi suas botas imóveis, 55 aparecendo para fora da entrada enquanto os tiros insistiam sobre sua cabeça, mais uma rodada havia sido gasta e ele estava lá, em intenção de ataque. Os soldados calcularam e presumiram que as investidas iriam diminuir e agora sentiam-­‐se seguros para mudar de posição. As viaturas manobraram aproveitando a baixa da maré, e enquanto mãos nervosas abanavam os imprudentes para longe, Kwee Kweg encolheu as pernas e atirou-­‐se para dentro num longo impulso, como um sapo querendo sumir da clareira. Por três minutos ou mais víamos as gôndolas chacoalhando como se um cachorro estivesse batendo o rabo nelas, subitamente um braço levantando e por vezes suas musculosas escápulas aparecendo entre as caixas de isopor expostas. Eu via meu bravo e glorioso amigo, sem conseguir avistar nenhum refém a ser resgatado. Num rompante perpendicular às prateleiras, Kwee Kweg, checando num piscar de olhos a situação aqui do lado de fora para constatar as condições do ambiente externo, caiu pra dentro e sumiu de vez. Alguns minutos depois, ele emerge de volta, um braço empurrando o que houvesse na frente e outro carregando uma forma inanimada. Dois policiais rapidamente o recolheram. O pobre coitado não estava morto. A plebe toda garantiu em urros que seus votos eram do Angolano, com certeza; e o capitão, em seu evidente constrangimento, desculpou-­‐se sem fazê-­‐lo. A partir dali, eu estava para Kwee Kweg como o bolor está para o pão; junto, até o fim. Seu desapego era sem precedentes; ou não? Ele não dava pinta de estar esperando qualquer medalha de honra ao mérito de nenhuma Humana e Magnânima Sociedade. Pediu apenas água -­‐ água gelada -­‐ alguma coisa para rebater o suor salgado; isso feito, ele pegou comigo uma camiseta seca, acendeu seu cachimbo num canto, e recostando-­‐se na sarjeta, suavemente sondando com os olhos aqueles que o rodeavam, pareceu estar dizendo a si mesmo -­‐ ei-­‐lo, o mesmo mundo ordinário, inespecífico, de polo a polo. Nós indígenas temos que dar uma forcinha pra esses cristãos. 14 ≠ SÃO PAULO ≠ Nada mais aconteceu no trajeto que fosse digno de nota; assim, depois de 56 uma hora e meia de viagem, chegamos a salvo em... São Paulo. São Paulo! Pegue um mapa e dê uma olhada. Constate a mancha no mundo que ela representa; como se esparrama, perto e longe da costa, negando sua solidão assim como um fungo corre em busca da próxima fatia de trigo no saco. Olhe para isto -­‐ um mero cancro, uma mancha numa pele; toda ela cinza, irrelevantes as nuances. Tem mais tonelada de concreto ali do que poderia ser devorado em vinte anos de alimento no Brasil. Qualquer besta te dirá que aqui é necessário importar vacas, porque naturalmente não há pasto que aí viceje; que as olivas de seu azeite brotaram em terras portuguesas; que a energia elétrica cruzou mares de morros para acender esta entre um bilhão de lâmpadas; que a madeira de suas novas casas é tão maculada quanto aquela verdadeira lasca da cruz que jaz em Roma; que as pessoas estendem lonas de plástico em cima de suas portas em vez de plantarem figueiras, se querem sombra no verão; que um metro quadrado de grama faz um jardim, três deles fazem um parque para se desfrutar uma campina; que eles precisam de solas de borracha amazônica, pois nem o couro dobrado seria suficiente para o tranco; que eles são tão entrincheirados, afivelados em seus cintos de segurança, de todo o modo anexados aos muros, cercados e totalmente ilhados daquilo que um dia se chamou "os campos", que entre os poros e brônquios do cidadão montículos de carbono podem ser encontrados, grudados nos tecidos vivos como pequenas conchas se grudam nas peles das baleias. Mas estas extravagâncias apenas demonstram que São Paulo não é nenhuma Fortaleza. Acompanhe comigo a fascinante e "pouco tradicional" história da ocupação destas terras pelos tupinambás. Alguém nos diga se resta neste relato algum mísero vínculo com a lenda original -­‐ o que chega a mim, trato essencialmente enquanto ruído. Sabe-­‐se lá em qual século, um dos seus desviou-­‐
se do caminho que o Criador -­‐ Monã -­‐ havia estabelecido (assim como o fez Adão, assim como fizeram os homens de barro do Popol Vuh, Maia); a reconciliação foi penosa para ambos -­‐ homem e Deus; como não poderia deixar de ser, em recôndito algum do planeta, perante a má conduta, "Ele" penitencia a pequena comunidade com grandes tragédias ambientais -­‐ dilúvios, secas, incêndios, pragas -­‐ não façamos causa pelo tipo; pois tal e qual observamos em todos os continentes, refeitos os vínculos entre criatura e criador, importará mais o fato de que ao menos um entre eles (humanos) haverá de conquistar, por mérito ou por clemência divina, a aptidão de controlar a agricultura -­‐ Magé, entre os Tupinambás? -­‐ e portanto a competência de prover à nação uma mínima fé na promessa de segurança alimentar para o ano seguinte. Que surpresa nos restará portanto, se simplesmente considerarmos que, dentre as vastas e indemarcadas terras deste continente, os tupinambás escolheram esta e não outras paragens como o assentamento de sua preferência! Primeiro eles pescaram os peixes dos rios que aqui haviam; fortaleceram-­‐se, e fizeram suas roças; mais experientes, desceram a montanha e cortaram árvores para cavar canoas e capturar lulas; e por fim, estabeleceram clareiras e em suas casas procriaram, com prazer, grandes populações; abriram trilhas e estabeleceram um tronco linguístico; encontraram seus semelhantes na baía da Guanabara e na Guaíba; e em todas as estações e em todas as praias e campinas 57 declararam guerra permanente com quaisquer massas humanas que tivessem sobrevivido aos divinos cataclismos; os mais monstruosos e os mais ambiciosos guerreiros! Ainda que mais gigantesca, mais amarga e mastodôntica, travestida de avassalador e irracional poder fosse a Terra, cuja histeria fosse sempre mais temida que as mais perversas e maliciosas emboscadas. E deste modo vem agindo estes Paulistanos, estes inconciliáveis ermitões viajantes do mundo, tramando de seu formigueiro estradas para os sete mares, transbordando e conquistando mundanos municípios como tantos outros Alexandres; repartindo o butim entre os santos, Bernardo, André, Caetano, assim como os poderes Europeus esquartejaram a Africa. Deixe Portugal unir as capitanias de Santana e São Vicente, e deixem-­‐nos pilhar a Bahia desde Ilhéus; deixe os holandeses engolirem toda Pernambuco, que tostem sua bandeira orgulhosa naquele sol; que um terço de todo o Produto Interno Bruto haverá de ser Paulista. Pois a vitória lhes pertence; eles a possuem, enquanto condutores que não são conduzidos; outros conterrâneos seus tendo direito a não mais que uma permissão de passagem. Estradas haverão de ser suas pontes; patrulhadas enquanto quartéis lineares; até mesmo os bandidos e facções, ainda que usando suas rodovias como piratas navegam os mares, serão tolerados enquanto sitiantes desta mesma sesmaria, incapazes de inviabilizar a sobrevivência do fundo sem fundo que é este Estado em si. Pois o Paulistano, somente ele terá o privilégio de verdadeiramente residir e vandalizar este rincão; ele apenas, em linguagem bíblica, poderá dividir e devastar, ainda que em seu desfavor; de cima a baixo, lavrar em sua proprietária e singular fazenda. AQUI é seu lar; AQUI subsiste o seu negócio, que nem sequer o insistente dilúvio anual poderá interromper, ainda que humilhe milhões em sua rotina. Ele vive entre o concreto, assim como o defunto jaz entre a madeira; ele se esconde atrás dos muros, ele os transpõe assim como o tirolês supera os Alpes. Por anos ele não põe os pés no mar; de tal modo que quando ele finalmente chega até a praia, tudo cheira a outro mundo, mais estranho do que a Lua cheiraria a um cão. Junto aos ratos sem endereço, que ao pôr do sol começam a acelerar seu metabolismo ancestral, multidões dão início ao comezinho processo de deitar as costas em deformados colchões; então, ao cair da noite, o Paulistano, já sem poder engordar com seu olho de dono gordas ou magras vacas, baixa suas portas de aço de enrolar, físicas e mentais; estes consistentes perfis modulares fornecerão suficiente ilusão de segurança para que eles possam adormecer, ainda que intranquilos. Eis que, nesta vazia e inquieta hora, perante milhões de cabeças prostradas em sintéticos travesseiros, apressam-­‐se puxadores de carros e incontáveis grifes da pixação; notavelmente um, entre todos, iniciará uma longa caminhada pelas ruas de São Paulo; é ele, o diferente; o DI. 58 

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