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Sumário
NÚMERO 01 - ANO 01 - SETEMBRO 2015
EDITORIAL
03
NEGÓCIOS
Rosália Diogo
ENTREVISTA
04
NOTÍCIAS
Alcione Amos
CANJERÊ
08
20
Afroempreenderismo: coragem e
determinação para empreender sem
esquecer a responsabilidade social
23
• Mulheres na Política
• Samba Fino de Garagem
ENSAIO
Instituto Casarão das Artes: O Espaço
da Diversidade Afro-Brasileira e
Africana em Belo Horizonte
24
GENTE DO CANJERÊ
MODA
10
28
A mulher negra nas obras do artista
Marcial Ávila
Ah, o Jazz!!
Coisa de gente chique, né?!!
Capulanas: Cores e padronagens
africanas na moda
OLHAR SOCIAL
CULTUR A - FOTOGR AFIA
14
30
Quilombolas em Belo Horizonte:
Territórios de resistência
Exposição Mwana-Mwana:
pérolas do índico
MATÉRIA DE CAPA
CULTUR A - LITER ATUR A
16
32
Década dos Povos Afrodescendentes:
Reconhecimento, Justiça e
Desenvolvimento
Notas quase poéticas: Tempo dos
Bichos
Ano 01 - Edição 01
Setembro de 2015
ISSN 2447-1143 - PUBLICAÇÃO ONLINE
Valorização e promoção da cultura africana e afro-brasileira
Expediente
A REVISTA CANJERÊ É UMA PUBLICAÇÃO
TRIMESTRAL DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO
DAS ARTES E TRADIÇÃO PLANALTO PRODUÇÕES
VISUAIS E EDITORIAIS LTDA.
FOTO DA CAPA
Foto: Ricardo S. G.
Modelos: Anna Gabriella
Passos Lopes e Adriane
Santana Passos
INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES
Marcial Ávila
PRESIDENTE
Rosália Diogo
PRESIDENTA DE HONRA
Virgínia Marques
VICE-PRESIDENTA
EDITORIAL
Ricardo S. Gonçalves
EDITOR EXECUTIVO
Elissandra Flávia
EDITORA
Leonardo Oliveira
DIAGRAMAÇÃO
Maria Luiza Viana
ILUSTRAÇÃO
Rodrigo Marçal Santos
REVISÃO
COMERCIAL
Tradição Planalto (31) 3226-2829
PUBLICIDADE
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Serra
UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE - MOÇAMBIQUE
MATÉRIA DE CAPA
Marcos Antônio Cardoso
Década dos Povos
Afrodescendentes:
Reconhecimento, Justiça e
Desenvolvimento
Edmilson de Almeida Pereira
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA - BRASIL
Eduardo de Assis Duarte
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL
Ibrahima Gaye
CENTRO CULTURAL CASA ÀFRICA - BRASIL-SENEGAL
Maria de Mazzarelo Rodrigues
MAZZA EDIÇÕES - BRASIL
Marcial Ávila
CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL
Maria Nazareth S. Fonseca
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA MINAS GERAIS - BRASIL
Patricia Gomes (Guiné Bissau)
Editorial
É com muita alegria que o Instituto Cultural Casarão das Artes (BH)
lança o primeiro número da Revista Canjerê. Canjerê é uma palavra
bantu que significa união de forças, e de pessoas que se unem com
intuito de multiplicar suas energias, forças e saberes. O número
inaugural é composto por artigos, matérias e entrevistas, escritos
por parceiros do Brasil e da África, contemplando temas que em sua
maioria não estão na grande mídia. A matéria da capa, “Década dos
Povos Afrodescendentes” é uma contribuição do filósofo e militante
do movimento negro, Marcos Antônio Cardoso. O artigo apresenta
quatro eixos estratégicos e fundamentais para a reflexão durante a
Década dos Povos Afrodescendentes.
A entrevista com Alcione Meira Amos, trata da exposição que
vem para o Brasil pela primeira vez, intitulada “Gullah, Bahia, África:
Lorenzo Dow Turner ligando comunidades da diáspora africana
através da linguagem”. O artigo de Robson Di Brito traz um panorama
da presença das mulheres negras nas obras do artista plástico
Marcial Ávila. Na seção “Olhar Social”, as pesquisadoras Adriana
Araújo e Bárbara Paes assinam o artigo que trata das comunidades
Quilombolas de Belo Horizonte e onde exatamente estão localizadas.
A matéria relacionada a negócios destaca o crescimento do número
de afro-empreendedores no Brasil e é assinado por Elissandra Flávia,
o texto apresenta empresárias que trabalham a moda afro. O texto
do pesquisador e professor Leonardo Oliveira traz à tona a história
do Jazz, gênero musical de origem afro-americana. A participação do
professor moçambicano Carlos Serra vem para consolidar a parceria
com a África, ao destacar as Capulanas e o enigma que gira em torno
da sua origem. A trajetória da Exposição moçambicana “MwanaMwana: Pérolas do Índico”, é o tema do texto de Solange Brito. Por
fim, o texto do caboverdiano Filinto Elísio Correia e Silva, “Tempos dos
Bichos”, com ilustração de Maria Luiza Viana, fecha a primeira edição
da revista.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - BRASIL
Rosália Diogo
Desejamos a todos uma boa leitura!
CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL
Olusegun Michael Akinrulli
INSTITUTO YOURUBÁ - BRASIL - NIGÉRIA
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO
Carlos Serra, Rosália Diogo, Robson Di Brito, Alcione
Amos, Ricardo S. Gonçalves, Elissandra Flávia, Adriana
Araújo, Bárbara Paes, Leonardo Oliveira, Filinto Elísio
e Solange de Brito
Agradecemos a todos da equipe Casarão das Artes
e parceiros do Brasil e do exterior que aceitaram
o desafio de construir essa importante fonte de
informação e pesquisa.
AV. BERNARDO MONTEIRO, 414 - SANTA EFIGÊNIA
30150-280 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3273 0601
[email protected]
Rosália Diogo
RUA LINDOLFO DE AZEVEDO, 192 - SL. - NOVA SUIÇA
30421-265 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3226-2829
[email protected]
PRESIDENTA DE HONRA DO INSTITUTO
CULTURAL CASARÃO DAS ARTES
R EVISTA CANJ ERÊ - 3
E n tre v i s ta
Alcione Meira Amos
Curadora do Anacostia Community Museum da Smithsonian Institution em
Washington D.C, Alcione Meira Amos é responsável pela exposição, que vem
para o Brasil, pela primeira vez, “Gullah, Bahia, África: Lorenzo Dow Turner
ligando comunidades da diáspora africana através da linguagem”
Ricardo dos Santos Gonçalves
EDITOR, FOTÓGRAFO E VIDEOMAKER
Nascida em 21 de novembro de 1946, em Belo
Horizonte, Alcione cursou Letras com habilitação
em Inglês, na FAFIBH (atual UNIBH), à noite,
e trabalhava para o USIS, a Seção Cultural do
Consulado Americano em Belo Horizonte, quando
conheceu Preston Amos. Em 1972, foi morar em
Washington D.C., EUA, onde se casou. Logo após sua
chegada aos Estados Unidos, Alcione matriculouse no programa de Mestrado em Biblioteconomia,
da Catholic University. Após a graduação, em 1974,
foi trabalhar na Biblioteca da George Washington
University por três anos.
Em 1977, foi trabalhar como pesquisadora
e, depois, como bibliotecária no Banco Mundial,
durante vinte e sete anos, aposentando-se em
2004, como Chefa Interina, da Biblioteca do Banco
Mundial.
Como pesquisadora independente, publicou
os livros “The Black Seminoles: History of a FreedomSeeking People” (University Press of Florida, 1997),
e “Os que voltaram: a história dos retornados
afro-brasileiros na África Ocidental no século XIX”
(Tradição Planalto, 2007), além de vários artigos
em revistas especializadas no Brasil, na França, nos
Estados Unidos e na África.
Em 2008, recebeu uma colocação no Anacostia
Community Museum, quando realizou as pesquisas
que originaram essa exposição.
Durante muitos anos você foi uma pesquisadora
independente. O que motivou essas pesquisas
sobre afrodescendentes no Brasil e nos Estados
Unidos?
Quando cheguei aos Estados Unidos ajudei o
meu marido, Preston, a fazer pesquisas sobre a
história dos Afro-americanos que haviam recebido
a Medalha de Honra do Governo americano por
corajosos atos durante as muitas guerras lutadas
por aquele país Quatro dos soldados que receberam
esta medalha, a mais alta condecoração de guerra
dos Estados Unidos, eram Seminoles negros. Achei
a história deles superinteressante e comecei a
me interessar em pesquisar mais e mais sobre o
assunto. Ao mesmo tempo, descobri a história dos
Afro-brasileiros que voltaram para a África ocidental
no século XIX. De certo modo, havia uma ligação
entre estes dois grupos. Eram pessoas que haviam
saído da escravidão e conseguido estabelecer
novas vidas, indo para outros países. Os Seminoles
negros fugindo para o México e as Bahamas, os
Afro-brasileiros comprando passagem num navio
e mudando para a África. Como eu era imigrante,
eu sabia das dificuldades de adaptação que uma
pessoa encontrava, sem falar no fato de que estes
dois grupos ainda lutavam contra o problema de
discriminação racial. Daí começou a jornada que
me trouxe até aqui. São trinta anos de pesquisa.
O Preston, seu marido, era negro e você uma
estrangeira branca. Como era sua mobilidade
social nos Estados Unidos, um país muito
segregador?
Quando cheguei aos Estados Unidos eu me
movia entre a comunidade branca e a comunidade
negra e, na verdade, não pertencia nem a uma nem
a outra. Passei a ser “other” (outra). Na verdade, era
e ainda é uma posição confortável.
Há algum tempo, fiz o meu teste de DNA, o que é
um verdadeiro passatempo nacional aqui. Descobri
que, além do sangue ibérico/português, que era o
mais ascendente, tenho 12% de sangue africano e
mais um tanto de outras etnias. Então cheguei a
mais uma conclusão: eu tenho mesmo é que ser
“other”. E viva a diversidade de raças!
E depois de se aposentar do seu trabalho formal,
ofereceram para você o emprego dos seus
4 - R EV ISTA CA NJERÊ
sonhos no Anacostia Community Museum, um dos
museus da Smithsonian, o maior complexo de
museus e de pesquisa do mundo. Como foi isso?
Pois é. Uma colega aqui do Museu sempre diz
que foram os espíritos amigos que me trouxeram
para cá.
Em 2005, uma colega de muitos anos no Banco
Mundial, que estava trabalhando como voluntária
na Smithsonian me disse que eu deveria ir até o
Anacostia Community Museum, para conversar com a
Arquivista. O Museu tinha recebido uma coleção de
um professor americano que havia feito pesquisas
no Brasil e estava com dificuldades para identificar
o material relativo ao Brasil. Ainda me lembro como
se fosse hoje que a arquivista me deu uma coleção
de fotocópias que o Prof. Turner tinha feito na Bahia.
Eu fiquei surpresa com a riqueza das fotos e com
o fato de que ele tinha, na coleção, várias fotos de
Afro-brasileiros que tinham ido para Lagos no século
XIX. Imediatamente me ofereci para trabalhar com
a coleção. Passei dois anos como voluntária e, logo
depois da publicação do meu segundo livro (primeiro
em Português), me ofereceram um contrato para
fazer o roteiro de uma exposição sobre o trabalho
do Prof. Turner não só no Brasil, mas com o povo
Gullah e a África. E aí eu fiquei.
Essa foi sua única exposição na Instituição?
Não, já produzi outra exposição sobre o impacto
da Guerra Civil Americana em Washington, D.C..
Nesta exposição, sob o título “How the Civil War
Changed Washington” eu quase não menciono
Lincoln, nem os seus generais, e nem falo de
batalhas. Conto a história de pessoas que vieram
para Washington durante a Guerra Civil e cujas vidas
foram mudadas ou mudaram a cidade.
Quem foi Lorenzo Dow Turner?
Lorenzo Dow Turner era um homem de uma
mente brilhante, extremamente dedicado ao seu
trabalho. Ele era filho de uma ex-escrava e de um
homem que só conseguiu estudar depois do final da
Guerra Civil Americana, por ser negro. Mas o pai de
Turner era tão inteligente e dedicado que conseguiu
fazer o curso preparatório, a universidade e obter
um mestrado. Esta tenacidade e dedicação aos
estudos foram passadas para Turner, que conseguiu
frequentar a universidade trabalhando como
REVISTA CANJ ERÊ - 5
Os Gullah tinham recebido a mensagem de que a
língua deles era um Inglês mal falado e que devia
ser esquecido. De repente, estavam recebendo o
aval de um respeitado Museu da Smithsonian. Veio
gente em ônibus fretado da Geórgia e da Carolina
do Sul. Tinha um senhor idoso, Gullah, que me disse
que todo domingo ele ia ao culto e depois vinha
para o Museu ver a exposição novamente.
A exibição chegou a receber um artigo na primeira
página da Seção de Artes do New York Times.
garçom, para custear os estudos. O seu interesse na
língua Gullah começou quando ele já era professor
universitário nos anos de 1930 e ouviu dois alunos
conversando em uma língua que ele imediatamente
identificou como não sendo Inglês. Com o tempo,
ele descobriu que o Gullah era uma língua crioula,
baseada em mais de 30 idiomas africanos e o Inglês.
O fascinante da história é que, antes dos estudos
de Turner, todo mundo achava que os negros
americanos não tinham mantido nenhum resquício
da cultura dos seus ancestrais africanos. Turner
provou o contrário.
Ele esteve no Brasil?
Sim, ele fez pesquisas na Bahia em 1940-41.
Turner sabia que no Brasil os Afrodescendentes
tinham mantido muito da sua cultura e ele queria
comparar as suas pesquisas sobre os Gullah com o
que iria encontrar na Bahia. Na verdade, o que ele
encontrou foi a África na Bahia. E ficou fascinado;
fez muitas gravações de pessoas falando línguas
africanas e tirou fotografias incríveis.
Parece que Turner faz uma “ponte” com as suas
duas pesquisas que viraram livro, os Seminoles e
os afro-brasileiros que retornaram para a África.
Como é isso?
Esta parte é muito interessante, porque quando
eu editei o livro contando a história dos Seminoles
negros, eu não sabia que eles eram Gullah. Foi só
quando eu trabalhei com a coleção do Prof. Turner
é que descobri a ligação. Eu até escrevi um artigo
sobre o assunto, examinando as várias ligações
entre a língua falada pelos Seminoles negros, o
Gullah falado hoje nos Estados Unidos, e as línguas
de matrizes africanas. Este estudo deixou bem
claro que os Seminoles negros foram os Gullah que
fugiram!
Quanto aos Afro-brasileiros que voltaram para a
África Ocidental, o Prof. Turner estava interessado
na comunidade de Lagos (Nigéria) e entrevistou
vários membros dessa comunidade e outros que
estavam vivendo na Bahia em 1940-41, e que haviam
vindo de Lagos. Ele também colecionou fotografias
que usei para ilustrar o meu livro.
Assim, de fato, a coleção do Prof. Turner fez uma
“ponte” entre as minhas duas linhas de pesquisa
que viraram livro.
6 - R EV ISTA CA NJERÊ
Por onde ela passou?
O Prof. Lorenzo Dow Turner gravando sem
eletricidade na África.
Coleção Lorenzo Dow Turner, arquivos do Anacostia Community Museum,
Smithsonian Institution, doação de Lois Turner Williams
Você foi responsável pelas pesquisas, curadoria
e montagem?
Curadoria, aqui, nos Estados Unidos, implica
pesquisa, elaboração do roteiro (script) da exibição, e
coleta de fotografias e de objetos para exposição. Na
fase de desenho da exibição, o curador ou curadora
colabora com a pessoa que está elaborando o layout
da exibição. A parte gráfica e a montagem são
sempre feitas por uma companhia especializada.
Como concebeu a exposição? Ela vem para o
Brasil completa?
A exposição que foi inaugurada no Anacostia
Community Museum, em 2010, continha vários
objetos da coleção do Prof. Turner, daqui do Museu
e de coleções de outros museus. Infelizmente,
não pudemos mandar os objetos para o Brasil
por motivo de segurança de objetos raros. Mas a
exposição no Brasil contém muitas fotos raras e
cinco vídeos, feitos especialmente para a exibição,
que adicionam muita riqueza.
Qual a repercussão que essa exposição teve nos
EUA?
Foi um sucesso incrível! Existe uma comunidade
Gullah imensa ao redor de Washington, D.C. e esta
comunidade veio em peso dar apoio. Tinha gente
que chorava em frente ao Mural de Palavras, no
qual comparávamos as palavras matrizes nas
línguas africanas com palavras em Gullah, no
Português falado no candomblé e até no Inglês.
A exibição chamou a atenção de um deputado
federal americano, James Clyburn, da Carolina do
Sul, que por meio de uma ONG pessoal financiou a
visita da exposição a quatro cidades de três estados.
É esta a exposição que viajou pelos Estados Unidos
e foi traduzida sob os auspícios da Representação
Diplomática dos Estados Unidos no Brasil, e agora
vai ser exibida em São Paulo.
O que significa para você essa exposição no
Brasil?
Para mim é o máximo do sucesso pessoal e
profissional. É o resultado de quase dez anos
de trabalho e demonstra que profissionalismo e
perseverança conseguem resultados.
Você acha que fará o mesmo sucesso aqui no
Brasil?
Eu acho que vai chamar atenção, porque fala
de um tema muito interessante para brasileiros e
afrodescendentes, em especial: as ligações com a
África. A experiência dos Gullah e dos Seminoles
negros de certo modo remonta a experiência dos
quilombolas brasileiros. Acho que vai repercutir
bastante.
Iniciado do Candomblé com a vestimenta de
Omolu, Bahia, 1940-41.
Coleção Lorenzo Dow Turner, arquivos do Anacostia Community Museum,
Smithsonian Institution, doação de Lois Turner Williams
Gullah, Bahia, África: Lorenzo Dow Turner ligando
comunidades da diáspora africana através da linguagem
A exposição documenta a pesquisas do Prof. Lorenzo
Dow Turner que nos anos de 1930 descobriu que o povo
Gullah da Geórgia e da Carolina do Sul mantinham partes
da cultura e língua de seus antepassados escravizados
do Oeste Africano para os Estados Unidos. A pesquisa de
Turner produziu um tesouro vivo de tradições anteriormente
desconhecidas, músicas e costumes que iluminaram conexões
com as comunidades afro-brasileiras e da África Ocidental.
São fotografias raras, gravações e artefatos recolhidos por
Turner nessas comunidades Gullah, entre os Afro-brasileiros
da Bahia, e na África Ocidental.
Museu Afro Brasil
A partir de 18 de agosto até 18 de outubro de 2015
Av. Pedro Álvares Cabral, Portão 10
Parque Ibirapuera, São Paulo.
REVISTA CANJ ERÊ - 7
C a n je rê
Instituto Casarão
das Artes:
O Espaço da Diversidade Afro-Brasileira e
Africana em Belo Horizonte
Rosália Diogo
DOUTORA EM LETRAS/LITERATURA. PÓS-DOUTORA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL.
PRODUTORA CULTURAL DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES
É UMA DAS CURADORAS DO FESTIVAL DE ARTE NEGRA DE BELO HORIZONTE/2015
Editoria de Arte - Fotos: Sol Brito e Rita Peixoto
O Instituto Cultural Casarão das Artes celebra
com orgulho seus 2 anos de atividades. A instituição
ganhou destaque no cenário cultural de Belo
Horizonte por valorizar a arte, a música, a moda,
a literatura e a culinária. O Instituto nasceu com
o intuito de valorizar e promover as culturas
africanas e afro-brasileira, e de contribuir para o
enfrentamento do racismo na sociedade brasileira.
8 - R EV ISTA CA NJERÊ
Tudo começou em 2013, em um diálogo entre
a atual presidenta de honra da instituição, Rosália
Diogo, e o artista plástico Marcial Ávila, sobre a
riqueza da diversidade cultural que existe em Belo
Horizonte. Ávila é o fundador da grife Chica da Silva
e desde 1998 é um dos artistas de grande destaque
no cenário da arte em Minas Gerais por ressaltar a
beleza da cultura negra em suas obras. Rosália já
era admiradora dos trabalhos do artista desde 2007.
Após conhecer a riqueza de conteúdo cultural na
fábrica e show room da grife Chica da Silva, localizada
no bairro Santa Efigênia em um casarão antigo, ela
percebeu que o seu engajamento social de mais
de vinte anos com relação aos afrodescendentes
poderia gerar uma grande parceria. A ideia era
transformar o Casarão da Avenida Bernardo
Monteiro em um centro de referência das mais
variadas ações sociais com foco na cultura negra.
Ávila conta que o convite para uma parceria veio
no momento certo: “A proposta foi a oportunidade
que faltava para completar um desejo antigo meu
em abordar as riquezas da cultura negra. Sempre
foi meu desejo transformar o Casarão das Artes em
um lugar voltado para as questões étnico-raciais.
Tentei fazer vários projetos assistencialistas. Depois
de quinze anos tentando, a Rosália apareceu com
essa ideia, que aceitei na hora”, ressaltou.
Em agosto de 2013, o Instituto Cultural Casarão
das Artes iniciou suas atividades com o lançamento
do projeto Canjerê, nome escolhido por se tratar de
uma palavra de origem Bantu que significa união de
forças: as pessoas se unem com intuito de multiplicar
suas energias, forças e saberes. O primeiro Canjerê
trouxe a escritora, professora e arte educadora Madu
Costa para um bate-papo e performance artística.
Houve ainda um desfile de moda afro com as grifes KISaco, Black Vika e Chica da Silva. O evento funcionou
como termômetro para o futuro do projeto Canjerê
que não parou mais.
Em cada Canjerê um tema é escolhido e abordado
em vários formatos. As edições do projeto contam
com participações de pessoas que se interessam
igualmente pelos temas a serem trabalhados. No
espaço foram realizados vários canjerês. Já se falou
sobre Mulher, Mídia e Racismo, Modelos Negros na
Moda e na Mídia, Independência de Moçambique,
Áfricas, Ecos de Zumbi, Negras Primaveras e outros
cujos temas estão frequentemente em pauta nas
rodas de conversa sobre a cultura africana e afrobrasileira. A música negra é sempre destaque nos
eventos, com estilos que variam entre o Rap, a
Música Popular Brasileira, o Samba, o Jazz, Soul e
outros estilos e gêneros musicais.
Várias personalidades do Brasil e da África, como
o escritor e cineasta Alex Dau, o fotógrafo e jornalista
Albino Moisés e o cineasta e artista plástico Aldino
Languana já passaram pelo Casarão por meio da
residência artística e compartilharam seus saberes.
Esse intercâmbio foi fundamental para o Instituto
e proporcionou uma rica troca de experiências. Foi
a oportunidade de ouvir a história da África ser
contada pelos próprios africanos.
Outra atividade importante nas edições do Canjerê
é a feira de produtos com motivos étnicos, peças
produzidas por afroempreendedores. A culinária
também é destaque na maioria dos eventos, na Festa
da Independência de Moçambique, por exemplo, foi
servido Caril de frango, prato típico de Moçambique.
O sucesso dos Canjerês atraiu muitos interessados
nas culturas africanas e afro-brasileira e o Casarão
passou a receber visitas de educadores e estudantes
de escolas públicas, privadas e de instituições
socioeducativas da Região Metropolitana de Belo
Horizonte. Os visitantes apreciam a exposição
permanente das obras do artista plástico Marcial
Ávila, a produção e show room da grife Chica da
Silva, e ainda são recepcionados com palestras e
contação de histórias.
No ano de 2015 o projeto Canjerê tornou-se
itinerante. A equipe do Casarão das Artes passou
a levar os eventos para outros pontos culturais de
Belo Horizonte. O projeto foi realizado na Casa
África, no Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos
(Muquifu), na Mazza Edições, na Biblioteca Infantil e
Juvenil de Belo Horizonte, no Centro de Referência
da Moda e no Centro Cultural Liberalino Alves de
Oliveira (Mercado da Lagoinha).
O Instituto Cultural Casarão das Artes é
impulsionado por uma equipe engajada com
projetos sociais no que se refere à relação mais
direta com o continente africano. Os artigos desta
revista abordam as diversas manifestações culturais
em contextos africanos e brasileiros promovidas
pelo Instituto e seus parceiros.
REVISTA CANJ ERÊ - 9
G e nte d o C a n je rê
Fotos: Ricardo S. G.
A mulher negra nas obras
do artista Marcial Ávila
“O afeto é capaz de levar à abolição do racismo, é o sentimento que abole a
distância ontológica entre o Mesmo e o Outro”. Muniz Sodré
Robson Di Brito
DISCENTE DO BACHARELADO INTERDISCIPLINAR NA UFVJM-MG.
GRADUADO EM JORNALISMO PELA PUC-RIO E LETRAS PELA UNIVERSIDADE PAULISTA-SP
10 - REV ISTA CA NJ E RÊ
É comum ver-se que as questões de gênero nos âmbitos sociais
estão em constante confronto. Evidentemente esta luta incessante vai
de encontro as maneiras hegemônicas e opressoras de se pensar o
mundo1. Não é desconhecido do tecido histórico que a mulher sempre
foi um objeto de representação da arte. E a mulher negra, uma figura
iconográfica, sempre alvo do tom alegórico da representação do “Belo”.
Uma tentativa deliberada de limitar a mulher negra para um papel de
subordinado como subordinado e inferior como inferior2.
No princípio do Brasil colonial a mulher negra foi representada
como coadjuvante. Ela não era o tema central assim como os demais
negros, mas apenas mais um dos elementos da composição das
pinturas, como árvores e animais retratados por artistas europeus,
pesquisadores, curiosos ou contratados para descrever a nascente
Nação brasileira. No barroco, “Mestre Athayde3”, em oposição às alvas
belezas santíssimas da igreja de São Francisco de Assis, na cidade de
Ouro Preto – MG, retratou em Nossa Senhora de Porciúncula a mulher
negra sobre o tom da mestiçagem. No Modernismo, envolta ao forte
apelo social, a mulher negra, surge como um elemento representativo
das raízes do Brasil, contudo não menos inserida em um universo
em que se vê representada de forma ambígua, ora vista como objeto
sexual, ora como fruto da opressão masculina e do capitalismo.
Surge de encontro a tudo isso, no apogeu do individualismo do século
XXI, em oposição à supraproduções das artes plásticas afundadas no
glamour contemporâneo, sem permitir que o princípio catártico da
pedagogia na construção social proporcionado pela arte se perca –
Marcial Ávila. Esse dicotômico artista nascido na cidade de Diamantina
– MG, é um autodidata, pesquisador, e tornou-se especialista em
estudos africanos e afro-brasileiros. É possível identificar seu intuito
na simples contemplação de sua arte. Seu significar e ressignificar por
meio da modalidade da linguagem não verbal, na concretude educativa
e na construção da autoestima das mulheres negras, destaca-se da
ação clássica da arte na construção social, nas coleções “Sete Vezes
Chica4”, “Devoção”, “Santas Marias”, “Origens” e “Mulheres do Rosário”.
Não há luta de classes nas obras de Marcial, mas lá ela está. Não
as confronta; tão pouco as suaviza, mas faz uso de um olhar clínico
intuindo, conforme preconizou Clive Beel, um prazer que provoca
nas pessoas emoções. Sua franqueza ao representar a estética da
mulher negra sem recorrer a estereótipos não se permite ser tragada
pelas formas hegemônicas de poder e opressão, mas relê as formas
de concepções do mundo que giram em torno dessas mulheres, sem
lançar o receptor a uma pesada construção histórica e social, que não
as representou ou representa.
Seria conveniente suprimir o entendimento de identidade das
obras de Marcial, e isolar qualquer pressuposto de seu bem dizer a
mulher negra, nivelando-o a uma artista que apenas pintou um ideal.
Seria cair nas garras afiadas pela história mal analisada e contribuir
com a manutenção das hierarquias de poder vigentes, no agora.
Trata-se de um indivíduo, componente de uma construção social.
Sujeito, consciente das relações e correlações do negro na contem-
1
Butler busca compreender as
características e questionamentos
do movimento feminista, e de que
forma suas discussões influenciam a
construção do é chamado “gênero”.
2Edward
Said
Imperialismo.
em
Cultura
e
3 Manoel da Costa Athayde (17621830), importante artista do BarrocoRococó mineiro.
4 Acervo permanente do IPHAN, na
Casa da Chica da Silva, na cidade de
Diamantina – Minas Gerais.
REVISTA CANJ ERÊ - 1 1
poraneidade. Questionador do
superficial pertencimento a que
essa etnia, e dentro dela a mulher, são submetidos. O Pintor-Artista inserido neste contexto
influencia e é influenciado. Para
tanto suas obras são mais que
pigmentos em tecido: são as definições de si e as definições dos
outros. Um arauto de defesa dos
negros e negras, no amparo contra as ideologias que se pautam
por interesses econômicos, políticos, psicológicos5.
Fica claro, portanto, que ao
retratar a mulher negra em suas
obras Marcial Ávila não apenas
se vale da estética na produção
artística, mas contribui contra a
manutenção hegemônica da não
representação. Entretanto não
o faz em tom de acusação, mas
na suavidade e delicadeza que
atribui as formas femininas sem
feminilizar. Para Marcial a mulher
negra é mulher, ser, representação
da obra máxima da criação “divina”
e, acima de tudo, Negra.
5 Kabengele Munanga em Entrevista à
USP, 2011 (Estudos Avançados).
Referências
BUTLER, J. Problemas de gênero:
Feminismo e a subversão da identidade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e
movimentos. Tradução: Carlos Eugênio
Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac
& Naify, 2003.
HALL, Stuart. Quem precisa da
identidade? In SILVA, Tomaz Tadeu da
(org.). Identidade e diferença. Petrópolis:
Vozes, 2000
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Trad.
Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora
Jorge Zahar, 1986.
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. A
travessia da kalunga grande: três séculos
de imagens sobre o negro no Brasil
(1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização
da arte. São Paulo: Cortez, 2001.
12 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 13
Foto: Adriana Araújo
Olhar Social
Quilombolas em
Belo Horizonte
Territórios de resistência
Adriana Araújo
Bárbara Paes
HISTORIADORA, ESPECIALISTA EM PATRIMÔNIO CULTURAL NA
CONTEMPORANEIDADE, PESQUISADORA - CULTURAS POPULARES
GEÓGRAFA, ESPECIALISTA EM GEOPROCESSAMENTO, PESQUISADORA
SOCIOAMBIENTAL E DAS CULTURAS NEGRAS
Os quilombos no Brasil
escravocrata foram a principal
forma de resistência do povo
negro no país. Muito mais do que
esconderijos de escravizados,
significaram a maior forma de
protesto e resistência contra o
sistema escravista e um espaço,
compartilhado, onde negros e
negras puderam desenvolver
seus costumes e reafirmar sua
identidade.
O termo “quilombo” teve
seu sentido histórico ampliado,
incorporando as comunidades
étnicas em que a identidade
do grupo e sua territorialidade
está diretamente relacionada à
opressão vivida e à consequência
da exclusão social resultante do
processo escravista.
Dessa forma, os quilombolas
não pertencem somente ao
passado escravagista brasileiro,
nem estão isolados no tempo e
no espaço. Ao contrário, mantêmse vivos e atuantes, lutando
pelo direito de propriedade de
suas terras, reconhecidos como
legítimos donos pelo artigo 68 do
Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias
(Constituição
da
República de 1988).
Os quilombolas desenvolvem
práticas
de
resistência
na
manutenção e reprodução da
história negra no Brasil, tendo
mantido suas tradições culturais
ao longo dos séculos. No
território nacional, existem mais
Mapa das Comunidades Quilombolas em
Belo Horizonte - Fonte: Quilombo Fundação
Palmares - Prodabel 2015
Editoria de Arte
de mil e quinhentas comunidades
certificadas
pela
Fundação
Palmares.
Devido à expansão dos centros
urbanos,
vários
territórios
quilombolas
tornaramse
quilombos urbanos. Em Belo
Horizonte, existem 3 quilombos
representando a ancestralidade
negra. A comunidade dos Luízes,
certificada no ano de 2005 pela
Fundação Cultural Palmares,
localizada na regional Oeste, no
bairro Grajaú; a Comunidade
Mangueiras, certificada em 2006,
na região Norte, no bairro Ribeiro
de Abreu; e a Comunidade Manzo
Ngunzo Kaiango, na regional
Leste, no bairro Santa Efigênia,
reconhecida pela Fundação no
ano de 2007.
Referências bibliográficas
LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no
Brasil: questões e normativas.
Revista do Centro de Estudos de
Antropologia Social, V. 2, n. 2, p. 333354, 2000.
“(...) quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo
modificado através dos séculos” (...) Quer dizer acampamento guerreiro na
floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa”.
Ney Lopes
14 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 15
M até r i a d e C a pa
Década dos Povos
Afrodescendentes:
Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento
Marcos Antonio Cardoso
MILITANTE DO MOVIMENTO NEGRO, FILÓSOFO, MESTRE EM HISTÓRIA SOCIAL PELA UFMG,
PROFESSOR DE INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ÁFRICA E PESQUISADOR DAS CULTURAS NEGRAS
Nas Américas vivem mais de 200 milhões de
negros e negras. Muitos mais vivem em outros
lugares do mundo, fora do continente africano.
Como descendentes das vítimas do tráfico
transatlântico de escravos ou como migrantes,
essas pessoas constituem alguns dos grupos mais
pobres e marginalizados do mundo.
Estudos e pesquisas de órgãos nacionais
e internacionais demonstram que pessoas
afrodescendentes ainda têm acesso limitado à
educação de qualidade, serviços de saúde, moradia e
segurança. Com frequência, vítimas de discriminação
perante a justiça, enfrentam alarmantes índices de
violência policial e discriminação racial. Além disso,
seu grau de participação política é baixo, tanto na
votação quanto na ocupação de cargos políticos.
Os afrodescendentes podem sofrer de múltiplas
formas de discriminação baseadas em outros
critérios relacionados, como idade, sexo, idioma,
religião, opinião política ou outra, classe social,
incapacidade, origem ou outros.
A Declaração e o Programa de Ação de Durban
reconhecem que afrodescendentes foram vítimas de
escravidão, do tráfico de escravos e do colonialismo,
e continuam sendo vítimas das consequências.
A IIIª Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância
em Durban, em 2001, deu visibilidade às pessoas
afrodescendentes e contribuiu para um avanço
substancial na promoção e proteção de seus direitos,
como resultado de ações concretas tomadas
pelos Estados, pela ONU, por outras organizações
internacionais e regionais e pela sociedade civil.
Ainda assim, apesar de avanços originais, o racismo
e a discriminação racial, diretos ou indiretos, de
fato ou de direito, continuam a se manifestar em
desigualdade e desvantagem.
A Década Internacional de Afrodescendentes foi
proclamada pela resolução 68/237 da Assembleia
Geral das Nações Unidas em 2014 e será observada
entre 2015 e 2024, com o objetivo de que as
Nações Unidas, os Estados-membros, a sociedade
civil e todos os outros atores relevantes possam
tomar medidas eficazes para a implementação do
programa de Durban no espírito de reconhecimento,
da justiça e do desenvolvimento.
A Década deverá destacar a importante
contribuição dada pelas e pelos afrodescendentes
para nossas sociedades e propor medidas concretas
para promover a plena inclusão delas e deles,
o combate ao racismo, à discriminação racial, à
xenofobia e à intolerância. Ora, como segundo
país do mundo em população negra, atrás apenas
da Nigéria, o Brasil tem enorme importância no
cenário mundial, tendo se tornado uma das maiores
economias do mundo, com forte crescimento
econômico, queda do analfabetismo, população
predominantemente urbana e diminuição das
Freeimages.com/Justine Furmanczyk
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REVISTA CANJ ERÊ - 17
desigualdades. Proporcionalmente, o maior índice
desse progresso afetou positivamente a população
negra. No entanto, persistem desigualdades raciais,
1
2
3
étnicas e de gênero. Por isso, destaco quatro eixos
estratégicos e fundamentais para a reflexão durante
a Década dos Povos Afrodescendentes:
O primeiro está relacionado à produção de visibilidade da força humanizadora das
mulheres negras e ao seu empoderamento cultural e político. As mulheres negras
recebem, em média, 50% da remuneração das mulheres brancas. Elas correspondem
por quase 70% das famílias com renda de até 1 salário mínimo. As mulheres negras são
as guardiãs da sabedoria, fonte na produção do conhecimento agroecológico e são as
principais mantenedoras da ciência do bem viver e dos laços psíquicos e afetivos que
organizam as comunidades negras tradicionais ou não.
O segundo refere-se à juventude negra. Cerca de 50 mil brasileiros são assassinados
por arma de fogo por ano. Contudo, essa violência distribui-se de forma desigual: as
vítimas são, sobretudo, jovens negros do sexo masculino, entre 15 e 24 anos. O Índice de
Homicídio na Adolescência (IHA) evidencia que a probabilidade de ser vítima de homicídio
é maior que o dobro para os negros em comparação com os brancos. Isso configura o
que o Movimento Negro denomina de Genocídio do Povo Negro através do extermínio
em massa da juventude negra. Nessa década, como diria Hamilton Borges da Campanha
“Reaja ou será Morto, Reaja ou será Morta”, “Eu contrario as estatísticas: todo preto e
preta que permanece vivo aqui neste país, que mata mais gente que qualquer outro
mesmo sem guerra declarada, tem contrariado as estatísticas cotidianamente”. Desde já
sigamos na contramão desta estatística fúnebre, senão em 2024, meio milhão de jovens
negros terão sido assassinados no Brasil. E será inútil discutir os fantásticos mapas da
exclusão pelo racismo ou chorar os mortos pela rede mundial de computadores.
4
O último eixo trata da distorção da imagem do homem e da mulher negra na televisão.
Essa situação perversa de racismo e discriminação da mídia é reflexo das práticas de
racismo existentes na sociedade brasileira, dos aspectos sócio-históricos que entrelaçam
a trajetória do povo negro no Brasil e resultado de uma política de invisibilidade planejada
da população negra pelas grandes corporações midiáticas controladas por apenas 12
famílias que detém os meios de comunicação, dos interesses econômicos do mercado e
de um desejo desenfreado e subjetivo das elites em transformar e hegemonizar o Brasil
como uma nação branco-européia.
Portanto, a democratização dos meios de
comunicação é uma exigência ética, democrática
e pública para que a sociedade brasileira possa
avançar na construção de políticas que promovam
o desenvolvimento social e democrático inclusivo
e sustentável. Isso significa ir para além do
reconhecimento de que o Brasil é um país onde
a diversidade étnico-racial e pluralidade cultural
são marcas identitárias da nação. Isso significa
produzir visibilidade da população negra como
parte constitutiva da nação brasileira e que deseja
ter a sua representação simbólica nos meios de
comunicação social.
Enfim,
nesta
Década
dos
Povos
Afrodescendentes, aqui no Brasil, não vamos
permitir que o racismo nos submeta à violência
simbólica e física, que destrua o nosso legado
ancestral e espiritual africano. Esse legado
é libertário, ecológico e sagrado. A nossa
emancipação é a tomada da consciência negra,
dos nossos direitos como sujeitos de nossa
história.
Freeimages.com/Simona Balint
O terceiro percebe que o agravamento das questões ambientais tem atingido
significativamente as comunidades negras, submetendo-as a um quadro de injustiça
ambiental alarmante. Há um silencioso massacre em curso dos quilombolas pelas
hidrelétricas, mineradoras e latifundiários, que roubaram as terras dos povos indígenas
e quilombolas. Os madeireiros, fazendeiros, mineradoras, barragens e usinas para
produção de energia espremem e asfixiam os povos indígenas e os territórios das
comunidades tradicionais quilombolas e ribeirinhas. A monocultura e o cultivo de
pastagens para boi e plantações mergulhadas no veneno deterioram os alimentos
e desgastam o solo, acentuam o desmatamento e destroem a diversidade biológica,
poluem os rios e derrubam as árvores. O capitalismo é o grande responsável pelas
crises econômica, alimentar e ambiental. O modelo de produção e consumo capitalista
é incompatível com a preservação ambiental, com o uso coletivo das riquezas naturais
e com a justiça social. Os verdadeiros responsáveis pela devastação das florestas, pela
poluição dos rios e mares, pela degradação dos biomas e insustentabilidade urbana em
todo planeta são os países imperialistas e colonialistas. Não somos responsáveis por
tamanha espoliação dos seres humanos e da natureza. Não apoiamos o princípio da
responsabilidade comum, pois cabe aos países ricos o principal ônus da preservação. São
nos países pobres e em desenvolvimento que se encontra a maioria dos povos vitimados
pela degradação ambiental e pelo racismo ambiental. As comunidades quilombolas são
verdadeiros territórios de resguardo da biodiversidade e escolas da diversidade cultural.
18 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 19
Ne g ó c i o s
Afro
empreende
dorismo
Elissandra Flávia Sandrinha
coragem e determinação para
empreender sem esquecer a
responsabilidade social
O Brasil vive um momento
em que as políticas de inclusão
impulsionam um novo ciclo de
desenvolvimento
econômico
devido ao aumento da participação da população negra no empreendedorismo. O empoderamento econômico da população
tem sido motivo de mobilização
dos afroempreendedores para
criarem uma atuação conjunta,
visando fortalecer um ao outro.
Em Belo Horizonte algumas
marcas criadas por empresárias negras, como Todo Black é
Power, Lolita Az Avessas, Nêga
Badu e Black Vika, trabalham
exclusivamente com produtos
étnicos e vêm despontando no
cenário da moda afro. Cientes
do crescimento da autoaceitação do povo negro elas sabem
que o mercado é cada vez mais
exigente. Para continuar desen-
GRADUANDA EM JORNALISMO(UNI-BH), ASSESSORA DE
COMUNICAÇÃO DO INST. CULTURAL CASARÃO DAS ARTES
RADIALISTA NA NOSSA RÁDIO BH
MESTRE DE CERIMÔNIAS, PRODUTORA DE EVENTOS
E CONSELHEIRA DE MODA DA ACMINAS
CORPETE: TODO BLACK É POWER
ACESSÓRIOS: NEGA BADÚ
BLUSA, SAIA E CORRENTES: LOLITA AZ AVESSAS
ACESSÓRIOS: TODO BLACK É POWER
FICHA TÉCNICA:
FOTO: RICARDO S. G.
MODELO: CHRIS SOUZA
MAKE: CATARINA QUEIROZ
PRODUÇÃO DE MODA: ALINE RODRIGUES
PRODUÇÃO: ELISSANDRA SANDRINHA E CIDA SANTOS
20 - REV ISTA CA NJ E RÊ
volvendo o crescimento de suas
empresas, as empresárias encontram apoio no projeto Brasil
Afroempreendedor, iniciativa
que surgiu para promover o
desenvolvimento social e econômico do Brasil, junto a microempresas e empreendedores
individuais afrobrasileiros oferecendo gratuitamente consultoria, cursos e capacitações.
A maioria dos afroempreendedores iniciou seus negócios
com recursos próprios e estão
em fase de expansão. A designer de moda e empresária Enia
Dara é idealizadora da Feira
Ébano, evento que reúne cerca de 50 expositores vindos de
várias partes do Brasil. Enia explica que a feira nasceu a partir
do desejo de divulgar o trabalho dos afroempreendedores
da moda, arte e beleza em um
mesmo espaço multicultural.
Além da Feira Ébano, outras
iniciativas consolidaram-se em
várias partes do Brasil, como a
Feira Preta, Mercado di Preta,
Deusas Urbanas, Encontro de
Cacheadas e Crespas, Encrespa Geral, dentre outras ações
que incluem a comercialização de produtos étnicos e que
têm contribuído para o fortalecimento e crescimento desse
nicho de mercado comercial e
cultural.
A pedagoga Zane Santos,
40, não perde a oportunidade
REVISTA CANJ ERÊ - 2 1
de participar de feiras em que
os produtos étnicos são destaques. Zane ressalta que sempre
usa peças com motivos étnicos:
“Eu uso porque gosto de valorizar o que é produzido pelo
povo negro. Antes não existiam
cosméticos, roupas e acessórios específicos para nós. Agora
que tem, eu uso e valorizo”.
As marcas que crescem a
cada dia com base no empreendedorismo social
Levantar a bandeira do empreendedorismo social é o foco
de todas as marcas citadas
nessa matéria. Embasadas no
conceito étnico, as empresárias
criam, produzem e comercializam suas mercadorias e ainda
encontram tempo para participar de várias ações sociais que
acontecem na cidade.
A empresária Dandara Elias
da marca Todo Black é Power,
por exemplo, tem como objetivo social trabalhar autoaceitação, autoestima e a valorização
do cabelo crespo. A empresária
comercializa vestuário e acessórios com motivos étnicos e ao
mesmo tempo traz à tona os debates sociais que visam empoderar principalmente as mulheres negras. A marca Nêga Badu,
da empresária Cida Santos tem
como foco os produtos inspirados na ancestralidade, usando
tecidos como base principal. O
resultado são peças com designer exclusivos. Já a Black Vika,
de Virgínia Marques, trabalha
com o vestuário afro e acessórios étnicos usando tecidos africanos. As duas últimas estão interligadas em vários projetos e
eventos sociais da cidade além
de realizarem oficinas em escolas. Outra marca que se inspira
no empreendedorismo social é
a Lolita Az Avessas, da designer
de moda Lorena dos Santos. A
grife trabalha com a concepção
de roupas que sinalizam características de personalidade, estilo musical, postura política e
orientação sexual. A marca está
presente em vários eventos sociais, principalmente nos de Hip
Hop.
As iniciativas que visam ampliar a promoção da igualdade
são grandes responsáveis pela
inserção, aceitação e reconhecimento da negritude: quanto
mais ações eficazes, maior o
reconhecimento da importância da identidade cultural dos
povos afrodescendentes. Esse
é o segredo do sucesso do afroeempreendedor.
No tíc ias
Mulheres na Política
Nilma Lino Gomes
A presidenta Dilma Roussef escolheu para chefiar a Secretaria
Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Nilma
Lino Gomes. Ela é pedagoga, antropóloga e pós-doutora em sociologia.
Integrante da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação (2010-2014) e ex-reitora Pró-Tempore da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). A
secretaria especial tem o estatuto de ministério. Nilma Gomes é a
única negra no ministério.
Macaé Evaristo
Pela primeira vez em Minas Gerais tem-se uma mulher negra na
condição de Secretária de Estado. O nome escolhido pelo Governador
Fernando Pimentel foi o de Macaé Evaristo. Macaé Evaristo é assistente
social formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas). Mestre em Educação pela UFMG. Foi secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério
da Educação no governo Dilma Rousseff. É professora da rede municipal
de ensino desde 1984. Foi Secretária de Educação de Belo Horizonte (MG)
e uma das responsáveis pelo programa de Educação Integral da capital
mineira. Também coordenou o programa de implantação de escolas
indígenas de Minas Gerais entre 1997 e 2004.
Samba Fino de Garagem em Belo Horizonte
O Samba Fino de Garagem é realizado no coração de
um dos mais tradicionais bairros de Belo Horizonte, o
Caiçara. Caracteriza-se por ser um samba de raiz da melhor
qualidade que acontece em um sábado de cada mês. A
iniciativa foi da artesã Virgínia Marques, proprietária da
marca Black Vika, e de seus filhos Carolina Thompson,
Rafael Thompson, para entreter os amantes do samba
em um espaço tranquilo e confortável. A cada edição do
Samba Fino de Garagem, os presentes ficam com gosto
de quero mais e para saber quando vai ser o próximo siga
a página no Facebook.
Samba Fino de Garagem:
Rua Expedicionário Wilson Ferreira, 87
Bairro Caiçara.
2 2 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 2 3
Ensaio
Ah,
o
Jazz!!
Coisa de gente chique, né?!!
Leonardo Oliveira
MESTRE E PROFESSOR EM ARQUITETURA. PESQUISA SOBRE TECNOLOGIA E
COMPORTAMENTE. ESTUDA JAZZ, MÚSICA NEGRA E MÚSICA ELETRÔNICA E SUAS
INFLUENCIAS EM NOSSA SOCIEDADE
Quando Mama sai de casa
Seus filhos de olodunzam
Rola o maior Jazz
(Mama África – Chico César)
- Que música você gosta?
- Eu gosto muito de Jazz!
- Hum, já entendi! Chique hem?
Sou mais humilde! Fico mesmo
com o meu sambinha!!!
Mas ele não entendeu!
Também
gosto
muito
de
sambinha, de sambão, de soul, de
rock, de manguebeat, de hip-hop.
E de tantos mais outros estilos
musicais que devem alguma coisa
ao Jazz! Mas vou tentar explicar!
Vou falar de música negra. Não
se pode falar de Jazz se não falar
de música negra. E vou ter contar
história.
O Jazz é uma forma de
expressão musical do negro
norte americano que deve
sua concepção à existência da
escravatura (Calado, 2007). É
gênero musical de origem afroamericana do final do Século
XIX. Surgiu em muitas partes dos
24 - REV ISTA CA NJ E RÊ
Estados Unidos sob a forma de
independentes estilos musicais
populares, mas, todos ligados por
laços comuns de origem africanaeuropeia-americana
(Berendt,
1975). Não havia Jazz na África.
Entretanto, ele não existiria sem
a participação essencial do povo
negro. Historicamente existe
um pouco de reducionismo
ao se contar a clássica história
de negros escravos africanos
entoando tristes canções nos
campos de algodão. Toda cultura
ancestral do povo africano não
poderia ser reduzida às simples
lamentações, por mais dura que
fosse a vida obrigada a eles. Foi
essa cultura milenar a verdadeira
responsável por não deixar esse
povo esquecer sua terra mãe.
Toda a história e tradição da
África estavam ali gerando força
e esperança.
A África sempre foi um
continente
heterogêneo
e
a diversidade de culturas,
tradições, línguas e dialetos
sempre se fez presente. Quando
se inicia a diáspora, a África
Ocidental foi a origem da maior
parte dos africanos capturados.
A colônias inglesas dos Estados
Unidos receberam habitantes
negros de Angola, Guiné, Congo
e Benim. Com isso, a escravidão
americana apresentava uma
certa homogeneidade cultural.
É importante considerar que as
referências, matrizes, religiões
e tradições de séculos, com as
quais os grupos daquelas regiões
vivenciavam,
eram
fatores
determinantes em suas vidas.
Eram culturas ancestrais que
interagiam.
Não podemos esquecer que
a sociedade americana havia
King Jazzing Orchestra - The Robert Runyon Photograph Collection, [image number, e.g.,
00199], courtesy of The Center for American History, The University of Texas at Austin.
nascido e crescia sob as fortes referências, matrizes,
religiões e tradições europeias de séculos. Era um
cenário de união ou confronto de diferentes formas
de comportamento social, religião, valores etc.
A principal diferença era que os americanos não
chegaram e nem viviam naquelas terras na condição
de escravos. E talvez, o que se tinha de comum seria
a música. Entretanto a música não desempenhava
papéis semelhantes nas duas sociedades e a
principal diferença se dava justamente quanto a
natureza delas.
Naquela época, para os europeus a música era
um artefato desvinculado da vida cotidiana. Era
típico da música erudita europeia pertencer ao
mundo do “artístico” e da “estética” e ser uma obra
de arte (Calado, 2007). O estilo vigente na Europa
era o Barroco. A ópera, o concerto e a cantata se
desenvolveram neste período e eram músicas para
contemplação ou diversão de uma classe. Por sua
vez, a música africana era puramente funcional.
Elas eram criadas com objetivo utilitário e coletivo
e se prestavam à determinados propósitos sociais
e religiosos, como facilitar o trabalho ou auxiliar
na educação. As tais famosas canções de trabalho
(work songs) dos campos de algodão carregam
bem mais tradições que simples lamentações. Na
cultura africana mostrava-se inconcebível que se
fizesse qualquer separação entre música, dança,
canção, artefato e vida do homem ou adoração aos
desuses. A expressão advinha da vida e a vida era
a beleza. No ocidente, porém, o triunfo do espirito
econômico sobre o espírito imaginativo, possibilitou
o rompimento terrível entre a vida e a arte (Jones,
1963).
Quando chegaram ao continente norteamericano, os primeiros escravos africanos ainda
levavam consigo os instrumentos utilizados em sua
música cotidiana. Entre eles estavam os tambores.
E a cultura africana valoriza os tambores, que
sempre foram objetos sacros. Na África os
tambores podem falar. Em muitas sociedades a
linguagem é tonal, o que aproxima a fala da música
REVISTA CANJ ERÊ - 2 5
Lew and Ben Snowden on banjo and fiddle in the second-story gable of their home, Clinton, Knox County,
Ohio, c. 1890s. Taken from the Ben Snowden Small Picture Collection of the Ohio Historical Society
dos tambores. Um pensamento
ou uma mensagem poderiam ser
transmitidos, sem a necessidade
de se usar a voz (Calado,
2007). Em pouco tempo esses
instrumentos foram destruídos.
Os senhores donos de escravos
sabiam por que deveriam proibir
o uso destes instrumentos pelos
escravos. Eles compreenderam
que além de separá-los de suas
famílias e tribos, a única maneira
de dominá-los integralmente
seria cortando os últimos laços
culturais com a África (Calado,
2007). Mas a tradição era
muito forte e inicialmente os
negros africanos substituíram
os tambores pelas palmas e
batidas de pé (patting juba).
Depois essa atitude acabou
por acelerar o processo de
2 6 - REV ISTA CA NJ E RÊ
assimilação dos instrumentos
europeus. A tradição africana
os fez utilizar tais instrumentos
a sua maneira, de acordo com
seus traços e cultura latentes na
memória, em vez de adotar os
conceitos estéticos ocidentais.
Por esse motivo os tambores são
considerados como o elo não
perdido do Jazz com a música
africana. A forma como os negros
africanos os batiam, alternando
tensão e relaxamento é que deu
ao Jazz o ritmo sincopado que o
distingue das outras músicas.
Na evolução do Jazz muitos
dos instrumentos ocidentais
foram utilizados com a mesma
função rítmica do tambor. Esta
interessante
“aculturação”
demonstra como os negros
buscaram manter sua tradição
em relação às coisas do seu novo
dia-a-dia ocidental (Schuller,
1986). Foram os elementos
europeus que se integraram
às tradições africanas. Podese dizer que dentro do amplo
marco da tradição europeia
o negro afro-americano foi
capaz de conservar um núcleo
significativo de sua tradição
africana. Todos os elementos
musicais – ritmo, melodia,
timbre e as formas básicas
do Jazz são essencialmente
africanos em seus antecedentes
e derivação (Hobsbawn, 1985).
Afinal, não poderia ser diferente
pois tradições de séculos, que
não se tratavam de meros
cultos artísticos, senão partes
inseparáveis da vida diária,
não seriam abandonadas tão
facilmente (Schuller, 1986). E é esse núcleo que tem feito do Jazz a
linguagem tão singular e cativante que é.
Os negros africanos trazidos como escravos para o Brasil passaram
por processos similares. E um núcleo semelhante de tradição africana
foi desenvolvido mantendo o predomínio dos elementos musicais,
dança, estruturas cerimoniais e representações religiosas em nossa
cultura. Na música, podemos considerar que o samba é o nosso Jazz.
Nos Estados Unidos no começo do Século XX, o Jazz se desenvolveu
em paralelo à música ocidental nas etapas tardias da música clássica.
Contudo, o Jazz se firmava como expressão popular e era tocado em
bares, funerais, prostíbulos e boates onde as pessoas iam para dançar.
Suas raízes são dançantes e de rituais cotidianos. Por isso se tocava (e
ainda se toca) Jazz nos “alegres funerais” de Nova Orleans. Os solos
e improvisações do Jazz surgiram como uma solução de se manter o
ritual. Os músicos “esticavam” a música um pouco mais para que as
pessoas pudessem continuar dançando. A instrumentação também foi
se modificando para que, nos bares, a música se fizesse ouvir apesar
do barulho das pessoas. Os banjos foram utilizados pois possuem som
mais alto que violões (Byrne, 2014).
O Brasil apresenta paralelos de uma mesma “aculturação”, como
descrita por Schuller. O tambor, a roda de samba, o baile de forró, o
camdoblé, o afoxé, etc. Nossa música mais antiga é ritual, foi feita para nos
reunir, para diversão coletiva. E chegamos nelas resistindo fortemente
à perda da memória ancestral e criando nosso núcleo significativo de
cultura africana, mesmo que às vezes isso pareça contraditório. Talvez
ainda não demos conta disso em função dos problemas ocasionados
pela separação, pela tentativa de se colocar as coisas em caixas distintas,
mas certamente temos o nosso próprio Jazz.
Cortázar escreveu sobre Charlie Parker e seu Jazz. E o fez tão bem
que é difícil definir onde termina a ficção e começa a realidade (e vice-e
versa). Para ele
“o Jazz descarta todo erotismo fácil, todo wagnerismo, por assim
dizer, para situar-se num plano aparentemente despojado em que a
música encontra absoluta liberdade, assim como a pintura subtraída
ao representativo encontra a liberdade para não ser pintura” (Cortázar,
2009).
E é a liberdade do improviso, da virtuose, da forma de comunicar
entre os três elementos mais importantes do Jazz: a música tocada,
aquele que a toca e aquele que a escuta ser tocada, que marca o ritual
do Jazz como um ritual de liberdade!
Penso que é por isso, e não para ser esnobe ou distinto, que quando
me perguntam sobre que música gosto mais, eu imediatamente
respondo Jazz!
É que o Jazz é mais que um estilo musical.
Jazz é núcleo de resistência.
- Eu gosto muito de Jazz!!!
Referências bibliográficas
Malta, Carlos – O Jazz como espetáculo,
2007
Jones, Le Roi – O Jazz e sua influência na
cultura americana, 1963
Schuller, Gunther – Early Jazz: it’s root
and musical development, 1986
Byrne, David – Como funciona a música,
2014
Hobsbawn, Eric – História social do Jazz,
1985
Billard, Françoise – No mundo do Jazz,
1990
Cortázar, Júlio – O perseguidor (conto),
2009
REVISTA CANJ ERÊ - 27
Mo d a
Capulanas
Cores e padronagens africanas na moda
Carlos Serra
PROFESSOR CATEDRÁTICO E PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS DA
UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE, MAPUTO, MOÇAMBIQUE
Num belo texto, Maria de Lurdes Torcato escreveu
que a origem da capulana continua um enigma, mas
que na África Oriental falante de Swahili diz-se que
a maneira de vestir a capulana surgiu no século
XIX “quando as mulheres começaram a comprar
lenços (em Swahili diz-se leso) de tecido de algodão
estampado e colorido, trazido pelos mercadores
portugueses do Oriente para Mombaça” (AAVV,
2004).
Ora, sejam quais forem as suas modalidades
modernas, a capulana mais não é, em meu entender,
do que uma descendente do antigo bertangil (ou
bertangim), tecido de algodão vermelho e azul
fabricado na Índia (Surate, Cambaia, Diu e Damão),
que serviu, até, como moeda. O protótipo da
capulana é anterior ao século XIX e creio que começa
a afirmar-se na segunda metade do século XVIII.
Todo o comércio colonial em Moçambique
assentava-se em dois artigos básicos: o chamado
pano (mais tarde bertangil, vindo da Índia) e a
missanga (especialmente vinda de Veneza na gestão
colonial portuguesa).
E a atividade mercantil ligada aos tecidos, na
sua extensão e profundidade, foi sempre menos
atividade de portugueses do que de Indianos.
Por hipótese, foram os tecidos indianos que
contribuíram para a ruína da indústria local das
famosas machiras zambezianas, panos de fio grosso
(por vezes também fino) fabricados a partir de
algodão localmente cultivado, estando a fiação e a
tecelagem a cargo dos homens ainda no século XIX.
Referência bibliográfica
AAVV, Capulanas & Lenços. Maputo: Missanga, 2004, p. 2
Fotos: Albino Moises
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REVISTA CANJ ERÊ - 29
Foto: Acervo Pessoal
Fo to g ra fi a
Exposição Mwana-Mwana:
pérolas do índico
Solange de Brito
Fotos da exposição Mwana-Mwana
PROFESSORA E PESQUISADORA. GRADUADA EM PEDAGOGIA
Centenas de visitantes, desde maio de 2013, acolhem com
atenção a exposição de fotografias “MWANA-MWANA: pérolas do
Índico”, do jornalista e fotógrafo
moçambicano Albino Moisés. As
imagens já estiveram expostas
no Centro Cultural Casa África, no
Instituto Cultural Casarão das Artes, em vários Centros Culturais
da cidade e também em algumas
escolas.
A iniciativa de trazer as fotos
de Moçambique foi da Professora Doutora Rosália Diogo, que as
organizou em forma de curadoria
para propiciar ao belo-horizontino
um pouco dessa parte da África
do índico. As fotos foram captadas na cidade e periferia de Maputo, capital de Moçambique, e
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ainda na província da Zambezia,
na cidade de Mocuba, terra natal
do fotógrafo.
Em várias línguas nacionais do
centro e norte de Moçambique
(como é o caso das línguas chuabo,
sena, nhungue, macua e outras) o
termo “MWANA-MWANA” significa
criança. As fotografias retratam
crianças e jovens moçambicanos
negros e foram inspiradas por situações cotidianas de lazer, mas
também de desamparo em que
muitas delas vivem em seu país.
O cerne da exposição dialoga
com as várias iniciativas realizadas
em Belo Horizonte. Nota-se que
em vários espaços de memória e
diversidade cultural propiciam-se
saberes diaspóricos, além da promoção das possibilidade de frui-
ção a partir da produção artística
relacionada à cultura afro-brasileira.
Assim, Mwana-Mwana traz
para Belo Horizonte por meio da
fotografia uma faceta da história
e da cultura moçambicanas, permitindo aos estudantes e a toda
sociedade civil a oportunidade de
conhecerem um pouco mais sobre Moçambique - um dos países
africanos de Língua Portuguesa.
Albino Moisés é jornalista cultural desde 1997 e dedica-se à fotografia desde a década de 1990.
Possui fotos publicadas nos Jornais Notícias e Eco-Social e nas
revistas Essencial e Ideal, tendo
ocupado, nesta última, o cargo de
Coordenador Editorial. É editor da
Revista Baia.
REVISTA CANJ ERÊ - 31
L i te ra tu ra
Notas quase poéticas:
Tempo dos
Bichos
Ilustração: Maria Luiza Viana
Filinto Elísio Correia e Siva
FILINTO É POETA E CRONISTA, NASCEU NA CIDADE DE PRAIA, EM CABO VERDE. É BIBLIOTECÁRIO E ADMINISTRADOR DE EMPRESAS
A cidade da Praia, a esse tempo, não passava
de uma pequena aldeia. Numa lenta combustão,
consumava o vaticínio dos Tristes Trópicos e nós,
crianças, ainda sem ler Levi-Strauss, assistíamos
ao desboroar do poder colonial. Depois, veio a
Independência e o surto dos novos poderes. A
cidade tornou-se uma explosão de tudo. Menos de
lagartos e lagartixas. Dos seres mais rastejantes,
apenas certos deuses tinham direito à ribalta e
suas luzes. Luzeiro de mentiras, praguejava Nona,
para quem os dogmáticos deviam estar abaixo de
cão, na prateleira de sua consideração. Enquanto
assim explodia a cidade, seus transeuntes só não
eram mais rápidos que os desenfreados veículos
que, à hora de ponta, ficavam parados, quais botes
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encalhados na praia. Nona puxava a sua cigarreira,
em verdade dava duas baforadas de cannabis
e começava a contar histórias do antanho. Os
naufrágios, suas buscas e seus salvamentos.
Quando economizava em exageros de contar,
não se regateava em detalhes. À cena adúltera da
vizinha, especialmente aquela de ter sido enforcada
pelo marido traído, lá vinham os sórdidos detalhes
todos. Das duas, uma, responderá Diva: ou eras
o amante ou estavas debaixo daquela cama. Mas
havia ele escutado assaz novela de fio a pavio,
silente e compenetrado. Ou ficávamos, ainda
adolescentes, a reparar o germinar lento de
um endocolonialismo? A cidade não teria outro
atrativo...

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