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MEMÓRIA FUNDACIONAL E IDENTIDADE: OS OLHARES SOBRE A
POPULAÇÃO NEGRA
Maria Aparecida Corrêa Custódio
Doutoranda FeUSP
[email protected]
Palavras-chave: história da educação; Asilo Sagrada Família; população negra.
Esta comunicação é parte de uma pesquisa que se inscreve no âmbito da história de um
orfanato feminino da cidade de São Paulo, bairro Ipiranga, criado em 1903 para atender
filhas de ex-escravos e de seus descendentes. Trata-se do Asilo Sagrada Família, uma
obra idealizada pelo Conde Vicente de Azevedo desde 1890 e gerenciada pelas
Irmãzinhas da Imaculada Conceição a partir de 1903, data de sua inauguração. Os
objetivos nesse momento são os de analisar os olhares sobre a população negra
registrados nos documentos que tratam dos principais agentes do Asilo Sagrada Família:
o Conde Vicente de Azevedo e as Irmãzinhas da Imaculada Conceição - durante a fase
inicial de organização, inauguração e primeiros tempos do asilo, em especial em sua
implantação no ano de 1903.
Para trabalhar esta temática dialogo com alguns dados e excertos extraídos de fontes
primárias distintas: crônicas manuscritas da história das Irmãzinhas da Imaculada
Conceição elaboradas por Madre Dorotéa (História da Congregação: 1865-1921);
crônicas datilografadas da história das Irmãzinhas da Imaculada Conceição também
atribuídas à Madre Dorotéa (História da Congregação: 1895-1943); pesquisa de Irmã
Natividade (1975); biografia de Madre Paulina (Biografia Documentada, 1987). Entre
esses documentos, priorizo excertos das crônicas manuscritas por serem as mais antigas
e alguns da Biografia Documentada pela sua fluência redacional, mas em outro
momento da pesquisa farei uma análise comparativa desses materiais. Cito também
trechos das escrituras de doação do terreno onde foi construído o asilo a fim de chamar
atenção para a finalidade da obra. Apresento ainda alguns excertos da biografia do
Conde Vicente de Azevedo escrita por seus familiares (Franceschini, 1996). Todos
esses materiais reúnem um conjunto significativo de documentos e dados sobre as
origens do Asilo Sagrada Família e, certamente, expressam a visão das irmãs que
escreveram a história da congregação e a visão dos familiares do conde que
biografaram sua vida. Alguns aspectos dessas visões estão presentes nos fragmentos
selecionados de algumas entrevistas realizadas. No que diz respeito à pesquisa
bibliográfica, destaco a obra de Foner (1988) que me inspira na formulação de algumas
conjecturas a respeito do contexto de criação do Asilo Sagrada Família. Vale dizer que
percorro um caminho de pesquisa “que subjaz as expressões ler entre as linhas, decifrar
o não dito, procurar tornar visível o oculto, interpretar o indizível” (Dias, 1998, p. 250).
Com base na pesquisa realizada por Ir. Natividade (1975) sabe-se que a criação de uma
obra para atender parte da população negra começou a ser pensada pelo Conde Vicente
de Azevedo em 1890, no bojo da libertação dos escravos no Brasil (1888), quando ele
era provedor da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Catedral da Sé. Para essa obra,
o conde doou terreno no Ipiranga. Nesse terreno, inicialmente foi construída a Capela
Sagrada Família (inaugurada em 1891), onde se anexou o Asilo Sagrada Família em
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1903. A escritura de doação desse terreno, oficializada anos mais tarde, deixava claro
que a obra era “para o fim de serem asylados, socorridos ou beneficiados os ex-escravos
brasileiros, seus descendentes e principalmente os velhos desamparados ou inválidos”
(escritura de doação do inter-vivos: 20/07/1905). A ideia de criar um asilo com os
objetivos citados anteriormente, se pensada nas entrelinhas conforme me inspira Foner
(1988), pode revelar a situação caótica de negros e de negras na cidade de São Paulo no
final da escravidão e início da vida emancipada, suscitando ações filantrópicas
provavelmente decorrentes de múltiplos olhares. Mas há de se questionar a qualidade
desses olhares: assistencialistas e caritativos ou discriminatórios e preconceituosos?
Olhares convergentes, ambíguos ou contraditórios? Um desses olhares ou,
simultaneamente, parte de cada um compõe a memória fundacional do Asilo Sagrada
Família? Pois bem, são estas as questões que abordarei a seguir.
O Conde Vicente de Azevedo (1859-1944) é uma das figuras emblemáticas que
desponta nos relatos históricos dos tempos primordiais do asilo: membro de uma família
pertencente às oligarquias cafeicultoras da Província de São Paulo, professor, advogado,
político e católico atuante na igreja paulista. Em sua trajetória de político representante
da facção católica, Vicente de Azevedo é conhecido pelas “obras pias de religião e
instrução da infância pobre” que foram implantadas no Ipiranga - Asilo de Meninas
Órfãs Desamparadas Nossa Senhora Auxiliadora, Orfanato Cristóvão Colombo,
Instituto Padre Chico, Grupo Escolar São José - e em outras localidades. Pelo menos, é
isso que diz sua biografia familiar que o venera e o exalta (Franceschini, 1996).
No que tangue a questão da orfandade e dos negros, segundo relato familiar, aos nove
anos ele perdeu o pai e desde então teria se sensibilizado para com a infância desvalida
(Franceschini, 1996, p. 43-44). Ele também teria se incomodado com a situação dos
escravos.
Desde a sua adolescência, papai ficou profundamente penalizado pelo que
tantas vezes tinha ouvido contar a respeito dos inúmeros horrores e torturas que muitos
fazendeiros infligiam aos seus escravos e escravas.
Assim, bem cedo, concebeu o propósito de um dia fazer alguma coisa em
benefício desses pobres indefesos, profundamente sofredores (Franceschini, 1996, p.
382).
Sendo assim, o Conde Vicente de Azevedo teria tomado uma atitude de reparação aos
negros, destinando parte de suas propriedades, herdadas de seus avós, às obras de
caridade e religiosas, pois „aqueles cabedais provinham, em parte, do trabalho escravo, e
ele sempre dizia: o que foi ganho à custa do sofrimento alheio não traz felicidade‟
(Franceschini, 1996, p. 121). Uma coisa é certa: a família Azevedo possuía fazenda em
Lorena, no Vale do Paraíba, região pioneira na implantação da cultura do café no Estado
de São Paulo. Seu avô, Comendador José Vicente de Azevedo, se instalou lá na segunda
década do século 19 para “tentar fortuna no comércio” e logo “adquiriu posição social
de relevo pela atividade, não só no comércio e na lavoura, como ainda na política
(Franceschini, 1996, p. 23; 26). Na época os escravos representavam a grande força de
trabalho nas fazendas, sendo mais tarde substituídos pelos imigrantes (Costa & Mello,
1996, p. 152-154). Ora, nesse contexto o Conde Vicente de Azevedo tem razão quando
diz que seus cabedais provinham do trabalho escravo... Um trabalho interessante seria o
de arrolar os documentos [comprovantes] da referida doação de parte da herança às
obras de caridade.
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Ainda conforme informação familiar, o Asilo Sagrada Família foi pensado “como ato de
caridade e de reparação pelo muito que sofreu no Brasil essa pobre raça negra”
(Franceschini, 1996, 141). Por trás dessas intenções, podemos apreender o pensamento
azevediano para tratar da questão dos negros no pós-abolição: a solução é investir nas
obras de caridade. Certamente, a provável presença de negros “velhos desamparados ou
inválidos e de meninas que por questão de raça e de cor encontravam dificuldades para
receber o necessário amparo social em outras instituições” (Escritura de doação: 02 de
agosto de 1951) [grifo nosso] incomodava o Conde Vicente de Azevedo.1
Aqui faço um parêntese para explicar a provável dificuldade de as meninas negras
ingressar no próprio Asilo de Meninas Órfãs de Nossa Senhora Auxiliadora, fundado
pelo Conde Vicente de Azevedo em 1896, no Ipiranga. Segundo depoimento da neta do
conde, Maria Gabriela de Azevedo Fransceschini,
(...) na ocasião, hoje nós chamamos o que realmente é, preconceito, havia um
preconceito muito acentuado. Então mesmo para entrar lá, no asilo de meninas órfãs e
desamparadas [Asilo de Meninas Orphans de N. S. Auxiliadora do Ipiranga] precisava
ser órfã realmente, com atestado de óbito do pai ou da mãe, ou de ambos. Precisava ser
batizada, os pais tinham que ser casados na religião católica, precisava ser branca.
Então ele [Conde Vicente de Azevedo] ficou pensando... [precisa mesmo criar um asilo
para atender meninas negras] e realmente não eram só os brancos que precisavam,
né... tinha os negros descendentes de ex-escravos... (Entrevista: 2007).2
Conforme o depoimento, provavelmente o Asilo Sagrada Família constituiu-se em
espaço alternativo de atendimento para órfãs que não possuíam documentação (atestado
de óbito do pai ou da mãe; certidão de batismo; certidão de casamento dos pais) e nem
eram brancas. Em outro momento da pesquisa investigarei melhor esta questão.
Todavia, ainda que o Conde Vicente de Azevedo tenha idealizado o Asilo Sagrada
Família como uma instituição voltada para o atendimento de negros/as, entendo que sua
iniciativa está alinhada com o conceito de ação branca, desenvolvido por Barros
(2005).3 Assim, o Asilo Sagrada Família pode ser concebido como uma estratégia das
elites brancas que percebem a importância de destinar atendimento à camada negra
tendo em vista a modernização em curso, momento em que a abolição do trabalho
escravo trazia a demanda da integração na sociedade. No caso do Conde Vicente de
Azevedo, militante e representante fiel dos princípios da doutrina católica, a intenção
primária é a benemerência para com os pobres [filantropia]. E já que é uma obra
articulada nos espaços da Igreja Católica, é convidada uma congregação religiosa
feminina [freiras] para trabalhar nela.
Note que, com base na pesquisa de Abbade (1995, p. 96-174), após a inauguração da
Capela Sagrada Família (1891) passaram-se quase dez anos até a viabilização da obra
para atender a popular negra. De fato, o projeto foi retomado em 1900, com a realização
de eventos beneficentes para angariar fundos e, simultaneamente, criação de uma
instituição jurídica – inicialmente chamada Instituição Casas da Providência para
gerenciar a obra [uma espécie de associação formada pelo clero e pelo laicato da Igreja
Católica]. Nessa instituição, o Conde Vicente de Azevedo, certamente, era um dos
membros mais influentes até porque, conforme explanei anteriormente foi ele que doou
o terreno para a construção da Capela Sagrada Família e do futuro asilo.
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Vale dizer que o estatuto da Instituição Casas da Providência, publicado no Diário
Oficial do Estado de São Paulo de três de julho de 1902, previa uma ampla assistência à
população negra, em especial as pessoas idosas, conforme diz o artigo 1º:
I. Proporcionar agasalho, alimentação, vestuário e todos os socorros aos velhos
inválidos ex-escravos e descendentes destes, de um e de outro sexo;
II. Prestar assistência aos ex-escravos ou seus descendentes cegos, aleijados ou por
qualquer forma inutilizados para o trabalho;
III. Amparar e educar, instruindo-as principalmente em serviços profissionais e
agrícolas, ou conforme a vocação manifestada, as crianças desvalidas descendentes de
escravos ou ex-escravos;
IV. Promover o interesse de todos quantos sofreram o cativeiro no Brasil, e seus
descendentes: protegê-los e favorecê-los pelos meios a seu alcance (extraído dos
anexos do trabalho de Abbade, 1995, p. 120).
Lendo as intenções da Instituição Casas da Providência, entre suas linhas e por trás
delas, talvez se vislumbre a situação da população negra no período pós-abolição. É o
que sugere o título da obra de Foner: “Nada além da liberdade”. Segundo Foner, o
título indica a nova situação do ex-escravo e provém de um comentário feito pelo
tesoureiro da Associação Americana dos Fazendeiros de Algodão, o ex-general
confederado Robert Richardson, em 1865: “os escravos emancipados não têm nada
porque nada além da liberdade foi dado a eles” (Foner, 1988, p. 23). Também Azevedo
emprestou esta expressão para comentar a situação dos ex-escravos americanos
(Azevedo, 2003, p. 191). Seja como for, “Nada além da liberdade” sublinha a natureza
ambígua da própria liberdade: “(...) uma definição de liberdade como simples posse de
si era extremamente truncada, pois lançava os negros no mercado livre de trabalho
empobrecidos, analfabetos e em desvantagem em inúmeros outros aspectos” (Foner,
1988, p. 23-24). Contudo, ainda segundo Foner, “quaisquer que fosse suas limitações, a
liberdade era, no final das contas, mais do que nada. (...) para os negros, a emancipação
representava principal linha divisória em suas vidas” (Foner, 1988, p. 24).4 E por falar
em ambiguidades, as finalidades da Instituição Casas da Providência também não se
efetivaram conforme previam seus estatutos... é o que mostro a seguir.
Além da organização jurídica [escolha de diretoria e publicação de estatuto], os
membros da Instituição Casas da Providência entraram em contato com as Irmãs da
Divina Providência que aceitaram a proposta de trabalhar na futura obra dia 5 de
setembro de 1901. Na época, para não confundir os nomes das duas instituições (ambas
da Providência), os membros da Instituição Casas da Providência resolveram renomeála Instituição Sagrada Família. Mas as Irmãs da Divina Providência desistiram da obra
no dia 24 de março de 1902. Parece que um dos pivôs do desentendimento entre as
irmãs e os membros da Instituição Sagrada Família (leia-se: o conde!) foi o tipo de
público-alvo: as irmãs desejavam atender apenas as meninas e não os negros idosos.
Outra questão dizia respeito à aplicação dos recursos financeiros recebidos da Câmara
Municipal [subvenção articulada pelo Conde Vicente de Azevedo que na época era
deputado e atuava na Câmara Estadual, representando o Vale do Paraíba].
Todavia, em 1903, com apoio do padre jesuíta Luiz Maria Rossi que procurava uma
oportunidade para trazer as Irmãzinhas da Imaculada Conceição para São Paulo [eram
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suas assistidas desde o tempo de seu ministério em Nova Trento - SC (1895-1903) e
pertenciam a uma congregação religiosa brasileira co-fundada por ele], o Conde Vicente
de Azevedo, em nome da Instituição Sagrada Família patrocina a vinda delas de Santa
Catarina. Entre as freiras, está a superiora delas, Madre Paulina, mais duas irmãs e uma
jovem que se preparava para ser religiosa. É interessante notar que, desta vez, não há
desentendimentos entre as irmãs e os membros da Instituição Sagrada Família no que
diz respeito à clientela do asilo, pois elas aceitam atender meninas e pessoas idosas
negras. Mas não faltam conflitos de ordem econômica e administrativa. É o que se lê
nas crônicas manuscritas (História da Congregação: 1865-1921) quando estas relatam
os primeiros contatos de Madre Paulina com o Conde Vicente de Azevedo. É o que
reescreve e confirma a biografia de Madre Paulina (Biografia Documentada, 1987).
Um dos primeiros conflitos diz respeito à gerência da obra, pois o conde
(...) desejava, agora, confiar à direção da Obra, para maior tranquilidade e
sossego, a uma Comissão de Senhores. A Madre Paulina, com justa razão, não
concordou com tal plano, expôs-lhe o que mais parecia conveniente:
a) que a obra ficasse na direção das Irmãs;
b) com a subvenção do Governo e da Câmara, com esmola de pessoas piedosas e com
esforços e economias, as Irmãs, pouco a pouco, poderiam ir adiante, auxiliando a obra;
c) não se comprometiam a um número determinado de órfãs e asilados, mas receberiam
conforme a possibilidade.
O Senhor Presidente anuiu o parecer da Madre e mostrou-se muito satisfeito
(História da Congregação: 1865-1921, p. 348-349).
Após estes primeiros contatos com o conde, segundo as crônicas, as freiras tiveram a
impressão de que estava tudo certo para iniciar em breve os trabalhos no asilo. Mas, o
tempo passou e o Conde Vicente de Azevedo não se pronunciou. Para resolver esse
impasse, Madre Paulina marcou uma audiência com ele.
(...) A Madre Paulina, ansiosa por começar a desejada missão, chamou o Sr.
Presidente e lhe disse o que pretendia ele fazer, achando-se ela em casa alheia , muito
desejaria no dia 7 de dezembro próximo [1903], se estabelecer na nova habitação e se
isto não pudesse ser, desistiria do compromisso; nesse caso, voltaria, com suas Irmãs
de hábito, para Nova Trento.
O Senhor Presidente de maneiras afáveis e obsequiosas animou a Madre
Paulina e ofereceu-lhe uma de suas casas, fora do terreno [do futuro asilo], para se
abrigar e dar começo a nova empresa.
A Madre continuou firme na resolução: se era para iniciar a obra queria se
estabelecer no lugar designado, isto é anexo à Capelinha [Sagrada Família]; ao
contrário, absolutamente, não aderia.
Estando as cousas nestas condições, fez logo o Senhor Presidente o orçamento
da construção, dois pequenos cômodos e nada mais [grifo meu] (História da
Congregação: 1865-1921, p. 350-351).
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De fato, Madre Paulina teria sido enfática e ameaçado desistir do projeto se os quartos
não estivessem prontos até sete de dezembro de 1903. Ameaças e promessas à parte,
Madre Paulina e suas companheiras se mudaram para os dois pequenos cômodos anexos
à Capela Sagrada Família na data desejada. Mas encontraram uma instalação muito
precária:
A capelinha era bem espaçosa, tendo aos lados duas tribunas, embaixo das
quais havia uns cômodos que serviam: um para sacristia e outro para alguma
necessidade; junto à capelinha estavam construindo a pequena alcova, mas ainda por
acabar; as tribunas com as portas e janelas sem folhas. Esta casa era exposta a todos
os ventos e a toda intempérie; a falta de higiene fazia horror. Na salinha, que foi
destinada para sacristia, habitava uma família de pretos, os quais estavam cheios de
certos insetos [grifo meu]. (...) (História da Congregação: 1865-1921, p. 352-354).
(...) Não tinham camas e nem uma cadeira para se assentar; dormiam no
presbitério. A capelinha lhes serviu, até o dia de Natal, de oratório, lavatório,
refeitório, dormitório, por não ter outro lugar. A cozinha era feita no ar livre (História
da Congregação: 1865-1921, p. 354-355).
Nesse contexto e reunindo estas condições, teve início o Asilo Sagrada Família e sua
situação de precariedade perdurou nos próximos dois anos. Certamente por esta razão,
as crônicas apresentam duras críticas ao conde.5
Não tendo o Sr. Presidente nenhuma providência nas mãos, tirou por dois anos
a subvenção do Governo e da Câmara para os trabalhos dos cômodos e para arranjar
as tribunas [construção]. Ainda mais; a construção foi tão mal feita que, no fim de dois
anos, rachou pelo meio, sendo necessário demolir tudo e começar de novo a
construção.
O ilustre Presidente da Instituição da Sagrada Família é um Senhor de espírito
profundamente religioso, dotado das prendas de uma piedade sólida, cumpridor
exemplar dos deveres familiares e sociais; sendo ele tão devotado à glória de Deus e a
alma consagrada a grandes empreendimentos, é de estranhar que suas obras não
correspondiam à expectativa; seus feitos ficavam somente nas aparências externas.
Sendo riquíssimo e possuidor de grandes terrenos, oferecia parte deles às várias obras
de caridade. Oh! Como é de lamentar! Enriquecido de uma inteligência de escol e com
meios para a execução de seus elevados ideais - depois de iniciar a empresa
abandonava tudo. Começava muitas obras e nenhuma conduzia a termo. Funcionando
a Obra da Instituição da Sagrada Família, retirou-se e não ajudou as Irmãs nem com
um real. Alguns anos depois, tanto a Câmara como o Governo cortaram a metade da
subvenção (História da Congregação: 1865-1921, p. 356-358).
Em relação ao contato com negros, as crônicas manuscritas (História da Congregação:
1865-1921), as crônicas datilografadas (História da Congregação: 1895-1943), a
biografia de Madre Paulina (Biografia Documentada, 1987) e outras obras da
historiografia oficial das Irmãzinhas da Imaculada Conceição (Eymard, 1995) falam
que, além das dificuldades de entendimento com o conde, as irmãs estranharam a
experiência de morar perto de uma casa de jogos e divertimentos, nas proximidades do
asilo, ambiente muito diferente da vida conventual. A biografia de Madre Paulina,
fundamentada nas crônicas datilografadas (História da Congregação: 1895-1943), diz
que: “Como não bastasse a pobreza extrema, as Irmãs deviam suportar também o
incômodo de uma casa vizinha, ponto de encontro de numerosos desocupados que
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bebiam e dançavam quase a noite toda” (Biografia Documentada, 1987, p. 171). A esse
respeito, a Biografia Documentada resgata trechos de um sermão do padre Luiz Maria
Rossi, proferido durante retiro das irmãs, realizado em 1918, extraído do Diário da Casa
Madre.6 Nessa pregação, padre Rossi fala sobre os tempos iniciais do Asilo Sagrada
Família (1903) e identifica os referidos desocupados com pretos e povos de ínfima
espécie.
(...) ficando esta casa isolada sem muro, e exposta a mil perigos; os pretos e
povos de ínfima espécie armavam barracas nos arredores, onde faziam seus botequins,
jogavam, embriagavam-se, gritavam, etc. e as pobres Irmãzinhas, em número de 4, (...)
ficavam amedrontadas, submergidas num pélago pavoroso! [grifo meu] (padre Rossi
apud Biografia Documentada, 1987, p. 171).
Note que a existência dessa casa e a presença desses desocupados foram recontadas por
duas irmãs entrevistadas em 2007, o que pode indicar que as Irmãzinhas da Imaculada
Conceição até o momento não fizeram revisão da história de sua congregação.7
Nessa casa vizinha à noite se reunia aquela homearada pra beber, pra dançar,
pra cantar. Era um negócio que soava muito pra elas (irmãs), as atrapalhava. Então o
que ela (Madre Paulina) fez: ela comprou esta casa à prestação. Dai foi recebendo
depois, aos poucos, esses doentes que apareciam e os negros. Certamente, eram mais
essas pessoas negras que andavam por ai porque foi logo depois da liberação da
escravidão. Eles estavam por ai sem eira nem beira e ela então começou a recebê-los e
a fez um trabalho com essa gente (Entrevista de Ir. Sabina Dallabrida: 2007).
Naquela casa que ela comprou, que era dos bêbados, ai ela colocou as crianças
(Entrevista de Ir. Célia Bastiana Cadorin : 2007).
A meu ver, estes fragmentos escritos e orais expressam a visão das cronistas e das
biógrafas que, por sua vez, resgatam a visão do padre Rossi. Ao relatar os medos e os
dissabores das freiras, revelam certa concepção de negros, alinhados aos povos de
ínfima espécie, desocupados e bêbados. Mas há de se questionar se as irmãs que
iniciaram o Asilo Sagrada Família teriam a mesma visão relatada nos documentos
institucionais, pois como trabalhariam com os negros se os considerassem, por exemplo,
povos de ínfima espécie? Sem dúvida, inserido no quadro de pensamento da época, os
olhares citados anteriormente estão alinhados com a ideologia da vadiagem (Fausto,
1984). Cabe lembrar a legislação contra a vadiagem abordada por Foner e que também
mostrava uma visão de negro, constituindo-se provavelmente em uma tentativa de
discipliná-los para o trabalho. Além disso, Foner explorou bem as estratégias e ações
das elites caribenhas e americanas cuja intenção era manter a ordem social desde o
controle da força de trabalho negra que também parecia, aos olhos de fazendeiros e
dirigentes, ora desqualificada ora perigosa ou até mesmo desinteressada e preguiçosa.
No caso do Asilo Sagrada Família, talvez as irmãs que o fundaram estivessem mais
preocupadas com a melhoria das instalações e com o atendimento das meninas negras e
dos idosos do que com a presença de vizinhos desocupados. Por esta razão,
Madre Paulina, de acordo com o P. Rossi, comprou aquela Casa por “Seis mil reis”,
emprestados a 6% [de juros ao ano], porém sem tempo fixo para a restituição. O
negócio resolveu dois problemas: livrou as Irmãs da contínua perturbação noturna e
ofereceu a possibilidade de receber as primeiras meninas (Biografia Documentada,
1987, p. 171-172).8
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Essa casa passou por várias reformas, abrigou meninas negras e depois os idosos,
inclusive recebeu o nome de Obras dos Pobres Pretos, sob a proteção de São Pedro
Claver (História da Congregação: 1865-1921, p. 357). Mas em 1918, os idosos foram
transferidos para Guapira/SP. A casa que os abrigava foi reformada e ampliada para
receber as filhas dos falecidos, vítimas da epidemia da gripe espanhola que grassou na
época (Coletânea Histórica, 1990, p. 278).
Considerações finais
Finalizo a reflexão com a impressão de que, de fato, há uma multiplicidade de olhares
em torno da criação do Asilo Sagrada Família. Provavelmente são olhares
assistencialistas e caritativos do veio católico, mesclados com olhares discriminatórios.
Em qualquer um dos casos, são olhares permeados pelas ambigüidades e controvérsias
dos agentes [conde e freiras que iniciaram o asilo], cronistas e biógrafos dos fundadores
do asilo. São olhares emoldurados pelo quadro de pensamento da época. Portanto, ao
que indicam os excertos visitados, certamente parte de cada um desses olhares compõe a
memória fundacional do Asilo Sagrada Família. Fica como desafio, para outro momento
da pesquisa, a discussão sobre os desdobramentos desses olhares no atendimento da
população infanto-juvenil feminina do asilo. Vale salientar que a premissa nada além da
liberdade continuará inquietando meu olhar e minha busca pela caracterização das
meninas negras que frequentaram o Asilo Sagrada Família, pois órfãs e pobres elas
eram herdeiras tão somente de uma liberdade: a de não serem escravas, mas de
carregarem a marca de descendentes de ex-escravos! Cabe aqui, um trecho da obra de
Hartman [tradução livre] que pode ser aplicado às meninas afrodescendentes do Asilo
Sagrada Família:
Como uma „criança escrava‟, eu representava o que mais me esquivava de
escolher: a catástrofe do passado e as vidas comercializadas por tecidos da Índia,
pérolas venezianas, conchinhas de moluscos, armas e rum. (...)
Sou a lembrança de 12 milhões que atravessaram o Oceano Atlântico e o
passado ainda não terminou. Sou descendente de cativos. Sou um vestígio dos mortos.
E a história é como o mundo secular presta atenção aos mortos (Hartman, 2007, p. 4;
17).9
1
A informação foi retirada de uma cláusula da escritura de doação do terreno no qual foi edificado o
Asilo Sagrada Família, comportando também a Igreja Sagrada Família e abrangendo todo o quarteirão da
Av. Nazaré nº 470 (Arquivo das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, Escritura de doação: 02 de agosto
de 1951). Mas esta informação também consta em relatos históricos da instituição (Coletânea histórica,
1990, p. 277). Vale lembrar que o terreno pertencia ao Conde Vicente de Azevedo que o doou
inicialmente para a Instituição Casas da Providência, da qual ele era membro, e em 1951 para a
Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição com a condição de que elas continuassem dando
prioridade ao atendimento de meninas negras.
2
A informante tinha 85 anos de idade na data da entrevista (2007).
3
O conceito de ação branca é trabalhado por Barros em sua pesquisa sobre a escolarização da população
negra na cidade de São Paulo (1870-1920). Fundamentada nos conceitos de estratégia e tática de Michel
De Certeau (1994), a autora apontou a existência de uma ação branca (estratégica) e de uma ação negra
(tática) no processo de instrução formal dos negros.
4
Para uma comparação do abolicionismo brasileiro e americano, ver Azevedo (2003). Embora tenha
abordagem e temática peculiares, consideramos esta obra um estudo complementar a obra de Foner no
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sentido de tratar do caso brasileiro e de outros aspectos do abolicionismo americano. Para um estudo da
emancipação em Cuba, ver Scott (1991).
5
Na biografia do conde há uma critica a esses relatos da Madre Dorotéia e uma defesa e justificação dos
procedimentos dele (Franceschini, 1996, p. 393-399).
6
O padre Luiz Maria Rossi é considerado pelas Irmãzinhas da Imaculada Conceição co-fundador da
congregação [junto com Madre Paulina]. Portanto, toda a sua pregação é relevante e transmitida de
geração em geração, em especial por meio de suas próprias cartas (Padre Luiza Maria Rossi, 1929) e das
obras: Biografia Documentada (1987) e Eymard (1995).
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Até o momento, entrevistei seis irmãs que atuaram no asilo na década de 30 do século passado, a neta do
Conde Vicente de Azevedo e uma ex-interna negra. Mas o trabalho com fontes orais ainda não está
concluído.
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A partir de 1904 as irmãs contam com a ajuda financeira de Ana Botero, uma senhora da elite paulista.
Mas a presença e a interferência de Ana Botero no Asilo Sagrada Família é alvo de conflitos e tensões,
em especial no ano de 1909.
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As frases foram extraídas do prólogo da obra de Saidiya Hartman. A autora, afro-americana, relata sua
viagem a Gana (África) em busca das cinzas de seu passado escravo na tentativa de compreender como se
iniciou o suplício da escravidão (Hartman, 2007). Aliás, esta leitura é obrigatória para quem deseja
saborear um relato cheio de afeto e tato para discutir a construção de identidades afrodescendentes. Vale
mencionar que, abordada sobre o resultado de sua investigação, em uma entrevista eletrônica, Saidiya diz
que se uma pessoa afrodescendente viajar à África na esperança de resgatar alguma identidade original,
ficará desapontada porque identidades mudam ao longo do tempo, ou seja, são constantemente refeitas,
pois é produto da história e das relações sociais (Tavis Smiley, 26/01/2007).
Bibliografia
ABBADE, M.P. Uma trajetória singular. A Instituição Sagrada Família e a Educação de
Meninas e Moças. São Paulo: FEUSP, 1995 (Dissertação de Mestrado).
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história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003.
BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. Negrinhos que por ahi andão: a escolarização
da população negra em São Paulo (1870-1920). São Paulo: FEUSP, 2005 (Dissertação
de Mestrado).
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História e do Departamento de História da PUC de São Paulo, nº. 17, novembro/1998.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo, 1880-1924. São
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Paolo Rouanet). São Paulo: Paz e Terra, 1988.
HARTMAN, Saidiya. Lose your Mother. A Journey along the Atlantic slave route. New
York: Farrar, Straus and Giroux, 2007, p. 3-18.
_________________ . Entrevista concedida a Tavis Smiley, Jan. 2007. Disponível em:
[http: www.pbs.org/kcet/tavissmiley/archive/200701/20070126_hartman.html] Acesso
em: 21 out. 2008.
SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br
Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores.
SOUZA, M.C.C. de. & HILSDORF, M.L.S. “Um olhar para os esquecidos: José
Vicente de Azevedo e a educação das meninas negras” em ROCHA, H. H. P.
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São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2006, p.57-70.
Fontes primárias
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Conceição pelo seu fundador Padre Luiz Maria Rossi, S.J. Apparecida do Norte:
Officinas Graphicas Santuário d´Apparecida, 1929.
CONGREGAÇÃO DAS IRMÃZINHAS DA IMACULADA CONCEIÇÃO. Coletânea
Histórica da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Ano Centenário:
1890-1990. São Paulo: Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, 1990
(texto mimeografado).
EYMARD, Irmã (Maria de Oliveira). Padre Luiz Maria Rossi, SJ. Orientador e
Missionário Incansável. São Paulo: Loyola, 1995.
FRANCESCHINI, M. A.V. de A. (org.). Conde José Vicente de Azevedo: sua vida e
obra. São Paulo: São Paulo: Fundação Nossa Senhora Auxiliadora/Loyola, 1996.
Irmã NATIVIDADE MARIA de Jesus Misericordioso. Pesquisa realizada em outubro
de 1975. Secretária da Causa de Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus,
(datilografado).
Madre Maria DOROTÉA do Coração de Jesus. História da Congregação: 1865-1921,
606 páginas. v. 1-3. s/d. (manuscrito).
Madre Maria DOROTÉA do Coração de Jesus. História da Congregação: 1895-1943,
1500 páginas. v. 1-12. s/d. (datilografado).
MADRE PAULINA: Fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada
Conceição. Biografia Documentada. São Paulo: Loyola, 1987. v.1.
Arquivo consultado: Irmãzinhas da Imaculada Conceição
Escritura de doação inter-vivos: 20-07-1905. 3º Tabelião, Livro nº 114 – Auxiliar, fls.
87 – verso (cópia datilografada de 16-04-1943).
Escritura de doação: 02 de agosto de 1951.
Entrevistas concedidas
CADORIN, Irmã Célia Bastiana Cadorin. Entrevista concedida a Maria Aparecida
Corrêa Custódio. São Paulo, 10 jul. 2007.
DALLA BRIDA, Irmã Sabina. Entrevista concedida a Maria Aparecida Corrêa
Custódio. São Paulo, 06 jul. 2007.
FRANCESCHINI, Maria Gabriela de Azevedo. Asilo Sagrada Família. Entrevista
concedida a Maria Aparecida Corrêa Custódio. São Paulo, 13 jul. 2007.
GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br
Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores.